O NOME DA ROSA - UM CASO DE METODOLOGIA DE PROJETO ISABELLA PERROTTA SUMÁRIO: Tomando como exemplo o desenvolvimento do romance O Nome da Rosa de Umberto Eco, analisamos as etapas do processo de criação em geral, e especificamente na área de design. Se a rosa é a rosa, o que é a rosa? Um nome pr'aquilo que já tem nome, ou o nome daquela que nunca o teve? Palavra. Que fala do que se acabou ou do que nunca existiu. Puro símbolo. Muitas definições. A Palavra é a coisa mais preciosa para Umberto Eco, o mais importante teórico de comunicação contemporâneo, pai de A Obra Aberta e autor do romance O Nome da Rosa. Ele se recusa a responder o significado do título deste seu romance, se o mesmo é uma obra aberta ou com que personagem se identifica. Porém admite que nada consola mais um autor do que descobrir na sua obra leituras nas quais não pensava e que os leitores lhe sugerem. Diz que o autor não deve interpretar seu trabalho, que deveria morrer depois de escrever, para não pertubar o caminho do texto... Mas como excelente teórico que é, sente prazer em dizer, não porquê, mas de que modo resolveu o “PROBLEMA TÉCNICO” que é a produção de um romance. Para ele quando um escritor ou artista diz que trabalhou sem pensar nas regras do processo, quer dizer apenas que trabalhava sem saber que conhecia as regras. É justamente o processo - ou as regras - do trabalho de criação que vamos analisar. Tomamos como exemplo o processo de criação de O Nome da Rosa, para compará-lo com o processo de criação de qualquer obra, inclusive de design. Design é projeto. E projetar é uma metodologia. O termo design se universalisou vindo do latim. Desígnio - intento, intensão, plano, projeto. Talvez intento seja o início, a idéia; projeto o meio, o processo; e produto (ainda que gráfico) o fim, o resultado. Fazer design é criar, conceber, ter idéias, insights. Mas nosso verdadeiro trabalho é transformar as idéias em alguma coisa concreta e objetiva, um produto que atenda critérios específicos. Isto é projetar. E projetar é uma metodologia. Ser criativo não é ter que criar sempre coisas novas, mas saber gerir problemas diferentes. E se toda criação é “20% inspiração e 80% expiração”, estes 80% devem ser ajudados pelas técnicas metodológicas. É claro que quanto mais prática o profissional têm, e quanto mais simples for o seu problema, mais instintivamente ele percorre os passos metodológicos e menos conta se dá de que eles existem. Podemos, porém, afirmar que a criatividade não é um dom divino proporcionado a poucos eleitos. Ela está diretamente relacionada coma formação cultural e intelectual do indivíduo, (pois toda idéia parte do que se conhece), sua capacidade de análise e analogias e as técnicas que domina, tanto para expressar suas idéias quanto para organizar o seu problema. Para realizar O Nome da Rosa Umberto Eco utilizou toda a sua erudição na concepção, e muita técnica na realização. Os livros costumam definir metodologia como o caminho a ser percorrido para a solução de um problema. Este caminho é, de uma maneira superficial, dividido nas seguintes etapas: . definição do problema . levantamento de dados . determinação de limites . geração de alternativas . avaliação . revisão (redesenho, no caso do design) . detalhamento . acabamento Em relação ao romanceO Nome da Rosa: as duas etapas iniciais deste roteiro estão bastante bem ilustradas com os exemplos abaixo, quanto aos limites, perceberemos aqueles impostos pelo rigor de coerência histórica do autor, além dos comerciais, aqui não mencionados, mas também impostos pelo editor. Alternativas referentes a cada subparte do romance foram sendo desenvolvidas paralelamente, algumas foram “redesenhadas”, outras postas de lado. Detalhamento e muito pente fino não faltaram em mais de dois anos de trabalho. •A vontade de envenenar um monge - o problema Diz ele que este era um desejo antigo, e daí nasceu o livro. Na verdade queria escrever um romance - que seria o seu primeiro. Queria que fosse interessante.Uma história com mistérios, eventos políticos, teológicos e ambiguidades. Uma história que divertisse, que fosse agradável de ler, de calafrios metafísicos. Escolheu o romance policial, que tanto encanta o grande público. Segundo Eco, encanta porque representa uma história de conjetura. “De quem é a culpa?” Esta é a pergunta básica da filosofia, da psicanálise e do romance policial... Estava aí a enunciação do seu problema de projeto: escrever um romance policial interessante que tratasse de assuntos políticos e teológicos. Ah, sim... e queria envenenar um monge. Aí começa seu levantamento de dados: leu um tratado sobre venenos. Não satisfeito, pediu ajuda a um biólogo sobre a possibilidade de criar uma sustância absorvível pela pele no manuseio de alguma coisa. Esta coisa, como não poderia deixar de ser, seria um Livro. E assim, perceberemos em toda a história várias referências ao universo e às paixões do erudito Umberto Eco. • A ambientação / Construção de um mundo A princípio seus monges deveriam viver num mosteiro contemporâneo, mas como os mosteiros ou abadias de hoje ainda vivem de muitas lembranças medievais, começou a estudar seu guardados sobre o assunto. A certa altura disse para si mesmo que, como a Idade Média era o seu imaginário cotidiano, seria melhor escrever um romance que se desnvolvesse diretamente neste período. Além de ler sobre, leu e releu os próprios cronistas medievais para adquirir seu rítmo e sua candura. E durante um ano construiu o mundo onde a história se passaria - uma abadia medieval, ao norte da Itália, com uma grande biblioteca (ponto focal do crime): . LIVROS: Fez várias listas dos livros que poderiam ser encontrados em bibliotecas medievais, . PERSONAGENS: catalogou muitos, reais ou imaginários, muitos dos quais não chegaram a aparecer na trama, . ARQUITETURA: fez um levantamento através de fotos e desenhos, de forma estabelecer a planta da abadia, suas distâncias e números de degraus de uma escada. Desta maneira seus diálogos tornaram-se cinematográficos por que eram escritos sob o olhar de uma planta baixa real, durando o tempo exato necessário para se percorrer uma determinada distância. . HISTÓRIA: a inquisição e a questão da filosofia de pobreza franciscana seriam importantes para a trama, mas como as características que queria para seu perssonagem - investigador inglês - encaixavam-se melhor no séc XIV, a história se passa neste século - 1327 - e não no XII ou XII. . PRECISÃO: obedecendo os fatos reais, em dezembro de 1327 um dos perssonagens Michele - já estaria fora da Itália, logo os acontecimentos se desenrolariam em novembro. Mas talvez fosse muito cedo para matar um porco - que só acontece no inverno, daí decidiuse pelo final de novembro, e no alto de uma montanha, onde já seria possível estar nevando nesta época. (A morte do porco era necessária para que o segundo cadáver fosse encontrado num barril de sangue, obedecendo os presságios da segunda trombeta do Apocalipse.) . LABIRINTO: A famosa biblioteca tinha a forma de um labirinto (com todos os significados que isso possa ter). Leu um estudo sobre labirintos, e durante dois ou três meses de trabalho construiu o seu que precisava ser fechado, e não ao ar livre como normalmente são os labirintos, porém com frestas e arejamento necessário para poder incendiar-se. • A máscara Umberto Eco não decidiu contar apenas sobre a a idade média mas na idade média, e pela boca de um cronista da época - o grande teórico e crítico era um narrador principiante, tinha vergonha de contar. Sentia-se exposto. O jovem Adso - personagem narrador - foi ideal pois registra tudo com a fidelidade fotográfica de um adolescente, faz perguntas como as de quem desconhece o mundo e faz compreender tudo através das palavras de alguém que não compreende nada. (Este foi inclusive um dos fatores que permitiram a legibilidade do romance por parte dos leitores menos sofisticados.) • A narrativa “...toda história conta uma história já contada. Por esta razão, minha história só podia começar com um manuscrito encontrado - uma citação. Assim escrevi logo a introdução, colocando minha narração em um quarto nível de encaixe, dentro de outras três narrações: eu digo que Vallet dizia que Mabillon dissera que Adso disse...” Se toda história conta uma história já contada, reafirmamos que toda criação recria alguma coisa existente. Não é uma dádiva caída dos céus, e precisa contar com um criador possuidor de referências. • A Construção do Leitor As cem primeiras páginas do romance, difíceis e cansativas, são penitenciais mesmo. Destinam-se a prepar o leitor para o rítmo dos acontecimentos na abadia. Quem não conseguisse lê-las, também não conseguiria ler o resto do livro. Seria como não conseguir subir a colina, no alto da qual encontra-se a abadia, e ficar nas encostas privando-se dos acontecimentos. O objetivo do escritor era desenhar um leitor, que superada a iniciação, se tornasse um prisioneiro do texto, e para melhor conforto deste “usuário” foram “projetados” o ritmo e respiração da narrativa. Pode-se dizer que O Nome da Rosa é um romance pós-moderno, e segundo Eco, a resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, e de maneira não inocente. Não só o título simbólico, mas todo O Nome da Rosa, permite várias leituras nas entrelinhas da trama principal. Elas estão cheias de refências cultas à história, à literatura e à filosofia. É um labirinto de conjeturas que se constrói a parte do labirinto real. Tudo para o leitor (ou uma parte do universo de leitores que o livro atingiu) se divertir ? Esta era uma parte da enunciação de seu “problema”. Sem dúvida Eco conseguiu realizar. E sem dúvida ele também se divertiu bastante com algumas referências que talvez só ele conheça. Este livro está longe de ser um livro simples, mas mesmo o mais simples dos objetos ou o mais gestual dos quadros carregam por trás de si toda uma história de criação. Todo um reflexo de um determinado contexto. Bruno Munari, teórico do design, diz que quando alguém fala “isso eu sei fazer”, significa que saberia refazê-lo, se não, já o teria feito. Obs: O texto de Umberto Eco que trata de seu processo de criação de O Nome da Rosa refere-se à trama de seu romance como história, e nunca como estória, por isso obedecemos seu critério.