001829_C&T17.book Page 37 Wednesday, September 10, 2003 1:29 PM O Cenário de Inserção da Geração Termelétrica a partir do Gás Natural no Brasil The Scenario for the Implementation of the Thermoelectricity Generation Using Natural Gas in Brazil GILBERTO MARTINS Universidade Metodista de Piracicaba [email protected] RESUMO – Temos assistido, atônitos, a uma série de anúncios de intenções de implantação de termelétricas a gás natural em vários Estados brasileiros e, no Estado de São Paulo, em regiões já bastante comprometidas ambientalmente, como é o caso da bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. O objetivo deste artigo é analisar as motivações, o contexto e a lógica que geraram o Programa Prioritário de Termeletricidade, um pacote de medidas anunciadas pelo governo federal que visam incentivar a implantação de termelétricas em todo o país. Procuraremos apresentar as razões que levaram à criação desse programa, discutir suas conseqüências e propor alternativas. Palavras-chave: PROGRAMA PRIORITÁRIO DE TERMELETRICIDADE – GÁS NATURAL – FONTES RENOVÁVEIS DE ENERGIA. ABSTRACT – We have observed recently the announcement of a serie of projects of new thermoelectric power plants using natural gas in many states in Brazil, and, particularly in the case of the state of São Paulo, in areas considered critical in environmental terms as the Piracicaba River basin. The main objective of this article is to analyse the motivation and context for the creation of the Thermoelectricity Prioritary Program, a federal program launched to enhance the thermoelectric generation using natural gas in the whole country. Besides the reasons for the creation of this program, some of the consequences and alternatives to it are also discussed in the article. Keywords: THERMOELECTRICITY PRIORITARY PROGRAM – NATURAL GAS – RENEWABLE ENERGY SOURCES. REVISTA DE CIÊNCIA & TECNOLOGIA • V. 8, Nº 17 – pp. 37-41 37 001829_C&T17.book Page 38 Wednesday, September 10, 2003 1:29 PM INDEFINIÇÕES NO PLANEJAMENTO DA EXPANSÃO P odemos caracterizar duas componentes principais que, aliadas, culminaram na proposição do Programa Prioritário de Termeletricidade. A primeira componente tem raízes no processo de privatização (ou desestatização) de alguns setores chaves da economia brasileira iniciado com a Lei 8.031, de 12 de abril de 1990, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização (PND), no governo Collor. Esse processo, que começou com a privatização do parque siderúrgico, ampliou-se para o parque petroquímico e atingiu, em meados da década de 90, os setores elétrico, de telecomunicações e de transportes. Para que a privatização do setor elétrico pudesse ocorrer, entretanto, toda a legislação do setor teve de passar por um processo de reestruturação, que ainda não está acabado. Iniciando com a chamada Lei de Concessões de Serviços Públicos (Lei 8.987/95), de caráter mais geral – que criou condições para que o capital privado pudesse participar das licitações de concessões –, essa reestruturação foi seguida por uma série de regulamentações mais específicas para o setor elétrico, como a Lei 9.074/95, que permite que os grandes consumidores de energia possam escolher livremente de quem comprar sua energia, o Decreto 2.003/96, que criou a figura do produtor independente de energia, além de outras normas que regulamentaram o livre acesso à rede de transmissão, criaram o Mercado Atacadista de Energia etc. Apesar da fase adiantada do processo de privatização do setor, a regulamentação não se encontra totalmente definida. A própria criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), pela Lei 9.427/ 96, foi posterior ao início do processo de privatização do setor, já que o primeiro leilão para privatização de uma empresa de distribuição de eletricidade – a Escelsa – ocorreu em 11 de julho de 1995, demonstrando um certo atropelo do processo (Bermann & Martins, 2000, p. 49). Esse processo de reestruturação gerou um período de transição (os últimos cinco anos, aproximadamente), no qual as regras de funcionamento do setor não ficaram muito claras para os diferentes agentes, o que causou uma certa imobilidade em termos dos investimentos de longo prazo de 38 maturação que caracterizam as aplicações em geração de energia elétrica. Coincidentemente, esse foi um período de baixo crescimento econômico para o país e, também, de pequeno aumento do consumo de energia, não ocasionando problemas de atendimento da demanda a curto prazo. Com a perspectiva de um crescimento da produção industrial, ocorrido já no final de 1999, aliado aos baixos índices pluviométricos em 1999, o governo começou a se preocupar com a possibilidade de falta de energia. INSERÇÃO DO GÁS NA MATRIZ ENERGÉTICA BRASILEIRA O segundo componente é decorrente do objetivo declarado do governo federal de aumentar a participação do gás natural na matriz energética brasileira. Sua meta é passar dos 2,4%, em 1999, de acordo com o Balanço Energético Nacional 2000, para algo em torno de 12%, em 2010. Analisado em si, esse fato não constitui maiores problemas, uma vez que a queima do gás natural emite cerca de menos 30% de CO2 que a queima de diesel – o que representaria uma melhoria das condições ambientais desde que o gás natural fosse utilizado em substituição ao diesel, não em adição a ele. Vale lembrar que o gás natural também é um combustível fóssil e, portanto, finito. Para atingir essas metas, vários são os projetos de gasodutos que estão em pleno desenvolvimento, de norte a sul do país. No Nordeste, está prevista a interligação de todos os Estados, do Ceará até a Bahia. O gasoduto Bolívia-Brasil, que entra por Corumbá e vai até Campinas, interliga-se com os gasodutos já existentes que ligam Rio, São Paulo e Belo Horizonte à Bacia de Campos. A partir de Campinas, desce um ramal até Porto Alegre, através do Paraná e de Santa Catarina. Também no Sul, já está operando o gasoduto de 440 km, com capacidade para até 15 milhões m3/dia, que liga o Norte argentino a Uruguaiana, na fronteira brasileira. O duto transporta 2,8 milhões m3/dia para operação de uma termelétrica a gás em ciclo combinado de 600 MW, em Uruguaiana. Também está em implementação o gasoduto, com capacidade de 12 milhões de m3/dia, que liga Uruguaiana a Porto AleJunho • 2001 001829_C&T17.book Page 39 Wednesday, September 10, 2003 1:29 PM gre, conectando-se nessa capital com o gasoduto vindo da Bolívia. No Norte, além do poliduto de 280 km que liga Urucu a Coari, já existente, com capacidade de dois milhões de m3/dia, um possível gasoduto para Manaus (300 km) e um para Porto Velho (600 km) estão em discussão. Eles servirão para alimentar os sistemas isolados existentes, que hoje operam com diesel. A outra opção seriam estações de liquefação a 162oC e navios metaneiros para o transporte fluvial. Entre os projetos citados, o maior, mais caro e polêmico é o gasoduto Bolívia-Brasil, cujo contrato de compra e venda de gás, assinado em 1997, começou a ser aplicado em maio de 1999 e durará, inicialmente, 20 anos. Por esse acordo, a Bolívia exportará para o mercado brasileiro até 30 milhões de m3 de gás natural no esquema take or pay. A Petrobrás1 se compromete a comprar oito milhões de m3/dia a partir de 2000, mais oito milhões de m3/dia a partir de 2007, chegando a 30 milhões de m3/dia em 2019. O PROGRAMA PRIORITÁRIO DE TERMELETRICIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES Assim, tendo, de um lado, o aumento da demanda de energia elétrica e, de outro, o objetivo de implementar o gás – inclusive com a desconfiança do setor industrial em relação ao preço em dólar –, o problema de garantir um mercado para esse gás que já está sendo pago foi encontrado através do Programa Prioritário de Termelétricas, lançado em 24 de fevereiro de 2000 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo ministro de Minas e Energia, Rodolpho Tourinho. O programa prevê a instalação, até 2003, de uma série de termelétricas (o número cresceu de 49, quando do lançamento do programa, para 55, no início do mês de setembro de 2000), a maioria a gás natural, com capacidade total entre 15.000 MW e 20.000 MW, e consumindo entre 60 e 80 milhões de m3/dia de gás natural. 1 Até recentemente, era a única compradora do gás, mas a Enron conseguiu quebrar esse monopólio no início do mês de agosto/2000, fechando um contrato que prevê o transporte de 1 milhão de m3/dia, através do gasoduto Brasil Bolívia, por um ano. REVISTA DE CIÊNCIA & TECNOLOGIA • V. 8, Nº 17 – pp. 37-41 O programa garante aos empreendedores, por 20 anos, suprimento de gás natural a preço fixo de U$ 2,26 por milhão de BTU e a aplicação do valor normativo para o preço de venda da energia gerada (R$ 57,20, de acordo com a Resolução n.º 233, de julho de 1999, da Aneel), também por 20 anos, com reajuste anual, além de garantir acesso a recursos do BNDES para financiamento de até 30% do empreendimento. As usinas previstas são de ciclo combinado (turbina a gás, caldeira de recuperação e turbina a vapor em condensação), o que leva a alta eficiência (entre 50 e 56%). Entretanto, isso eleva os custos de capital a valores entre US$ 400 a US$ 600 por kW instalado – o que, junto com os custos de operação, principalmente o do gás, deve elevar o MWh produzido com essa tecnologia acima de US$ 35, enquanto os custos de geração de uma hidrelétrica já amortizada, como a de Furnas, são da ordem de US$ 20 a US$ 30 por MWh. A tecnologia de turbinas a gás é bastante interessante pela sua modularidade e escala: é possível trabalhar com turbinas de cinco a 500 MW e até com micro-turbinas de 25 a 500 kW. Essas turbinas, em ciclo simples ou aberto, podem rapidamente ser ligadas e entrar na rede para atender a horários de pico, com baixo custo inicial mas alto custo de operação (eficiência da ordem de 30 a 35%). A opção de se trabalhar com ciclos combinados, entretanto, faz com que a atratividade econômica só seja conseguida com escalas maiores (300 a 1.000 MW) e com fatores de uso da ordem de 80%. Ou seja, essas usinas termelétricas serão usinas de base, operando durante 70 a 80% do tempo, e não de ponta, o que implica que deve ser garantida sua operação mesmo que as hidrelétricas estejam com seus reservatórios cheios. Dessa forma, em anos hidrologicamente favoráveis, teríamos a situação absurda de ter de verter água das hidrelétricas sem turbiná-las, para garantir a demanda das termelétricas. PROBLEMAS COM A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA Apesar das vantagens oferecidas pelo programa, os empreendedores ainda estão reticentes e 39 001829_C&T17.book Page 40 Wednesday, September 10, 2003 1:29 PM têm forçado o governo no sentido de obter ainda mais garantias. Um dos problemas é o risco cambial: apesar de terem o preço do gás garantido por 20 anos (diferentemente de quem usa derivados de petróleo, cujo preço tem sofrido grandes variações, ultimamente), ele é garantido em dólar, e os empreendedores querem se precaver quanto a possíveis flutuações do real frente à moeda estrangeira, já que os reajustes das tarifas de energia elétrica vendida poderão ocorrer apenas uma vez ao ano. Em relação a esse aspecto, o Ministério das Minas e Energia tem procurado uma maneira de prever mais de um reajuste anual, enquanto a Aneel tem se posicionado contra essa proposta. Na realidade, metade da energia gerada por Itaipu (cerca de 10% da nossa capacidade instalada) é faturada em dólar, sem que, até hoje, se tenha dolarizado a tarifa de eletricidade. Outro problema a ser solucionado pelos empreendedores é o financiamento do projeto para a compra dos equipamentos e a instalação da planta. Os bancos financiadores exigem garantias de que serão pagos. Assim, exigem que boa parte da energia produzida já esteja com contratos de venda assinados, os Acordos de Compra de Energia (Power Purchase Agreement-PPA). Devido ao alto custo da energia gerada pelas termelétricas, entretanto, as concessionárias privatizadas não têm se interessado em assinar esses acordos. Somente a Petrobras, a Eletrobras e outras estatais é que têm assumido esse ônus. Recentemente, o Jornal do Brasil, em sua edição de 24 de julho de 2000, publicou entrevista com o presidente da Gaspetro, Luiz Rodolfo Landim, reconhecendo que, por dificuldades de obtenção de financiamento (project finance) dos projetos, “as dez primeiras usinas do Programa Prioritário de Termelétricas terão de entrar em operação até o final de 2001, gerando 2 mil MW”, operando em ciclo aberto, o que exigirá investimentos da ordem de US$ 1,5 bilhão, que serão garantidos pelos próprios sócios da Petrobrás (o total de investimentos previstos para o programa é da ordem de US$ 12 bilhões, dos quais 30% devem ser financiados pelo BNDES). Para aliviar o empreendedor que tiver de operar em ciclo aberto, os jornais noticiaram que a Aneel estuda a possibilidade de compensar o custo 40 mais alto de geração em ciclo aberto, aumentando a tarifa em cerca de 30%. Cabe, neste ponto, um questionamento: toda a reestruturação feita no setor foi para criar um mercado concorrencial de energia através de investimentos de risco do setor privado, sem a intervenção do governo. Não é isso que temos assistido no caso do Programa Prioritário de Termeletricidade. O governo tem procurado, de todas as formas, garantir as termelétricas do programa, protegendo o empreendedor de todos os lados. Com todas essas garantias, talvez possamos afirmar que não faltará energia, mas o que podemos dizer, seguramente, é que essa energia sairá bem mais cara – e quem vai pagar essa diferença seremos nós. ALTERNATIVAS PARA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO É preciso dizer que a função do MME é fazer um planejamento de longo prazo e utilizar instrumentos para viabilizar investimentos na área de geração. Nesse sentido, cabe questionar a opção pela geração termelétrica a partir do gás natural, feita em um momento emergencial, sob o risco de desabastecimento e falta de energia, já que essa opção implica em compromissos de longo prazo (tipicamente 20 anos, que é a vida econômica dos empreeendimentos em termelétricas). No momento em que os empreendedores solicitam garantias em relação à variação cambial, pois importam sua matéria-prima principal (o gás) pagando em dólar, cabe-nos questionar se não seria mais interessante importar diretamente a energia elétrica. Já que se pretende dolarisar a tarifa, melhor seria comprar a energia elétrica diretamente, livrando-nos dos impactos ambientais associados à geração termelétrica. Essa alternativa, emergencial, não implicaria em compromissos de longo prazo e nos daria o tempo necessário para planejar e implementar alternativas de geração mais adequadas e sustentáveis, como as propostas abaixo. Quanto à inserção do gás natural na matriz energética, seria mais adequado: • incentivar o uso do gás natural em substituição ao óleo combustível e GLP na indústria, em cogeração, com ganhos ambientais tanto com a Junho • 2001 001829_C&T17.book Page 41 Wednesday, September 10, 2003 1:29 PM redução de poluição quanto com a liberação de demanda; • incentivar o uso do gás natural em substituição à gasolina e ao diesel em transportes (coletivos, táxis, automóveis de cidade bi-combustível álcool-gás). Quanto a outras alternativas de geração renováveis com menor necessidade de intervenção e potencial razoável de implementação em curto prazo, que deveriam ser emergenciais: • incentivo ao aumento da eficiência das 131 usinas de açúcar e álcool existentes no Estado de São Paulo (capacidade instalada de 619 MW), somadas aos 358 MW instalados na Região Nordeste (Eletrobrás, 1999), que, utilizando a mesma tecnologia (ciclo Rankine), poderiam praticamente dobrar sua capacidade instalada e, com o uso de tecnologia BIG-STIG (gaseificação do bagaço e uso de turbinas a gás), praticamente quadriplicar esse potencial; • incentivo às pequenas centrais hidrelétricas; • incentivo ao uso da energia eólica. Com relação às alternativas apresentadas, vale ressaltar que, hoje, elas não são mais consideradas inviáveis economicamente. Segundo Walter (2000), o custo médio de capital dos sistemas eólicos foi reduzido em 80%, desde 1980, proporcionando custos de geração na faixa de 30 a 80 U$/MWh. O grande potencial eólico do litoral do Nordeste já começa a ser explorado em grande escala, como pode ser observado no quadro 1, que procura sistematizar algumas experiências em curso no Brasil, com dados extraídos de jornais. QUADRO 1. Experiências de geração alternativa e sustentável. TECNOLOGIA/ LOCAL EMPRESA CAPACIDADE FONTE RS (Piratini, Pelotas Camaquã Pelotas) CE Prainha Taiba CE Paracuru e Camocim CE –indefinido SP Ribeirão Preto 10 usinas de 10 MW (100 MW) 10x0,5 MW Woben 20x0,5 MW Windpower (15 MW) Woben Windpo- 2 x 30 MW wer (60 MW) 70x 3 MW ABB (210 MW) CGDE/ Santa Elisa/ Santa Rita/ 300 a 400 MW Maringá Gov. Estado/ CGDE /Koblitz CUSTO INSTALAÇÃO CUSTO ESPECÍFICO. FASE Casca madeira/ casca arroz Ciclo R$ 120 milhões R$1.200/kW Rankine Assinado contrato. Inicia dez/00 Eólico R$ 15 milhões R$1.000/kW Em operação Eólico R$ 60 milhões R$1.000/kW Em licitação Eólico n.d. Bagaço R$350 milhões R$1000/kW Menor que Estudo U$ 1.000/kW Assinatura de contrato REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERMANN, C. & MARTINS, O. S. Sustentabilidade Energética no Brasil: limites e possibilidades para uma estratégia energética sustentável e democrática. Projeto Brasil Sustentável e Democrático. Série Cadernos Temáticos n.o 1. Rio de Janeiro: Fase, 2000. ELETROBRÁS (2000). Plano Decenal 1999/2008. Brasília, 1999. MINISTÉRIO DAS MINAS E ENERGIA. Balanço Energético Nacional. Brasília: MME, 2000. WALTER, A. Fomento à Geração Elétrica com Fontes Renováveis de Energia no Meio Rural Brasileiro: barreiras, ações e perspectivas. Campinas, SP: Anais do Agrener-2000, 3.º Encontro de Energia no Meio Rural, 2000. REVISTA DE CIÊNCIA & TECNOLOGIA • V. 8, Nº 17 – pp. 37-41 41 001829_C&T17.book Page 42 Wednesday, September 10, 2003 1:29 PM 42 Junho • 2001