TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO I i AMAURI MASCARO NASCIMENTO Professor Titular de Direito do Trabalho da USP , TEORIA JURIDICA , DO SALARIO 2ª edição :««««« EDITORA L'G SÃO PAULO :««««« Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nascimento, Amauri Mascaro, 1932Teoria jurídica do salário / Amauri Mascaro Nascimento. - 2. ed. - São Paulo: LTr, 1997. Bibliografia. ISBN 85-7322-234-4 1. Direito do trabalho 2. Salários I. Título. 96-5187 CDU-34:331.2 índices para catálogo sistemático: 1. Salários: Direito do trabalho 34:331.2 (Cód. 1447.3) © To dos os d i r e i tos r e s c r v a dos EDITORA LTDA. Rua Apa, 165 - CEP 01201-904 - Fone (01I) 826-2788 - Fax (Oll) 826-9180 São Paulo, SP - Brasil 1997 APRESENTAÇÃO Na edição anterior fiz as seguintes observações a título de apresentação. Os estudos que me permitiram desenvolver a teoria jurídica do salário foram iniciados em 1968 e publicados no livro "O Salário", o primeiro que dediquei ao tema, sob a forma de repertório de casuística resumindo questões que foram respondidas com base nos textos de lei, da doutrina e da jurisprudência. Pelas suas características e diante dos objetivos que esse primeiro trabalho visou, nele não houve nenhuma preocupação crítica que agora foi possível. Em 1975, em "O Salário no Direíto do Trabalho", tentei imprimir ao estudo do tema um caráter de certo modo sistemático, mas que não se afastou muito das características de obra destinada à compilação para permitir ao profissional dispor de uma fonte de consulta onde encontrar alguns dados sobre os diferentes aspectos jurídicos do salário. Todavia, verifiquei, na ocasião, que a melhor forma de abordar o tema não é o Manual como havia sido feito. Assim, voltei ao método de 1968, enriquecido com experiéncia adquirida nos livros anteriores, publicando o terceiro livro que recebeu o nome de "Manual de Salário" editado em 1984 e que mesclou a descrição casuística com argumentos de autoridade. Todavia, sempre tentei conseguir dois objetivos que me parecem prioritários, estudar o salário segundo uma visão crítica e dogmática e depurá-lo de outros aspectos com que se confunde, como os de natureza econômica, que só podem ser bem 6 AMAURI MASCARO NASCIMENTO analisados, em toda a sua complexidade, pelos economistas e não pelo jurista. A teoria jurídica do salário, que pode ser ousada, tem a sua razão de ser na medida em que procura examinar conceitos de que o ordenamento jurídico se vale para a consecução dos seus fins. O salário é tema central do Direito do Trabalho e como tal merece toda a nossa atenção o que justifica esta obra que deve ser recebida como uma tentativa, embora imperfeita, de teorização de tão complexa questão. Nesta edição os temas na mesma desenvolvidos foram revistos e atualizados em função das alterações do nosso modelo de relações econômicas, antes fundado na idéia da indexação salarial, agora tendo como pressuposto a estabilização da economia e seus reflexos nas relações de trabalho. Espero merecer a atenção que foi dada às obras anteriores. O Autor íNDICE Capítulo I PRINCípIOS ÉTICOS DO SALÁRIO 1. Princípio do justo salário A Origens da idéia do justo salário BAtendimento das necessidades do trabalhador, das possibilidades da empresa e das exigências do bem comum CSalário justo segundo Régis Jolivet.... DSalário segundo Johannes Messner 2. Princípio do salário vital.................................................. 3. Princípio do salário suficiente 4. A função alimentar do salário 17 17 22 25 26 29 31 33 Capítulo 11 PRINCípIO DA IGUALDADE SALARIAL 1. 2. 3. 4. A igualdade salarial na perspectiva internacional......... A constitucionalização do princípio A fundamentação jurídica Brasil: requisitos legais da equiparação salarial........... A Limitação a empregados da mesma empresa. BRelações de emprego na mesma localidade... CExigência de igual produtividade DTrabalho com a mesma perfeição técnica........ EIdentidade de funções FDiferença máxima de tempo de função............ 36 37 38 41 41 43 46 47 48 51 8 AMAURI MASCARO NASCIMENTO G H I - Inexistência de quadro de carreira.................... Concomitância dos requisitos.... ........ ......... ....... Simultaneidade da prestação dos serviços....... 53 54 54 Capítulo 111 O SALÁRIO NO PLANO INTERNACIONAL 1. A Organização Internacional do Trabalho e o Salário. 58 2. A União Européia e o salário 3. O salário e os países do Mercosul.............. 59 60 Capítulo IV A COMPLEXA ESTRUTURA DO SALÁRIO 1. Partes componentes do salário.... Bipartição ou tripartição? A Salário-base........................................................ B C Complementos salariais .. 2. Estrutura bipartite da lei brasileira: salário e remuneração 62 62 63 68 70 Capítulo V OBRIGAÇÕES SEM NATUREZA SALARIAL 1. Características.................................................................. 2. Principais tipos...................... A Indenizações Ressarcimentos de gastos para o exercício da B atividade.............................................................. C Participação nos lucros ou resultados desvinculada do salário.................................................... Atribuições assistenciais: o terceiro setor......... DE Complementações previdenciárias..................... 74 76 76 85 87 95 96 TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO 9 F- Programas de alimentação e transporte aprovados pelo Ministério do Trabalho G H - Treinamento profissional.......... 100 Abono de férias não excedente a vinte dias... 100 I - Clubes de lazer 96 101 J - Escola gratuita para filhos do empregado 101 L- Seguros 102 M - Produção rural na infra-estrutura do empregador 103 Capítulo VI TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE SALÁRIO COMO CONTRAPRESTAÇÃO DO TRABALHO 1. Introdução................ 105 2. Teorias sobre o conceito de salário A Contraprestação do trabalho.............................. BContraprestação da disponibilidade do trabalhador CContraprestação do contrato de trabalho OConjunto de percepções econômicas do trabalhador 107 107 EFG- 108 111 114 Novo conceito de salário................................... 117 A teoria do salário social................................... 123 Salário e encargos sociais 126 Capítulo VII GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO SALÁRIO 1. Introdução........................................................................ 128 2. A Constituição de 1988.... 129 A - Salário mínimo fixo ou variável e pisos salariais 129 B - Irredutibilidade do salário 131 10 AMAURI MASCARO NASCIMENTO c- Décimo terceiro salário D- Proteção do salário na forma da lei e contra a sua retenção dolosa 134 E- R.e~~neração '" 133 superior para o serviço extraor- dmano 135 F- Remuneração das férias acrescida de um terço 135 G - Adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas 135 H- Proibição de discriminação salarial.... 136 Capítulo VIII ESTIPULAÇÃO DO SALÁRIO 1. Formas de estipulação 137 A Ajuste expresso ou tácito................................... 137 BSalário fixo ou variável....................................... 138 2. 3. 4. 5. 6. 7. C Salário-base e complementos salariais............. 142 Salário sob condição 143 Oportunidade de ganho 145 Proibição de salário complessivo 147 Determinação supletiva do salário 148 Salário e contrato de trabalho nulo 154 Plano de salários 159 Capítulo IX O SALÁRIO COMO CRÉDITO DO EMPREGADO 1. 2. 3. 4. 5. Incessibilidade do crédito salarial................................. Impenhorabilidade do salário Privilégio do crédito salarial.......... Prescritibilidade Irredutibilidade 161 165 165 167 170 11 TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO Capítulo X O SALÁRIO COMO OBRIGAÇÃO DO EMPREGADOR 1. 2. 3. 4. Periodicidade do pagamento Comprovação do pagamento.......................................... Inalterabilidade da forma e do modo de pagamento.. Limitação dos descontos A Necessidade de limitações. 8 Descontos legais e convencionais.......... C Adiantamentos, descontos e redução dos salários DConvenções coletivas EContribuições e mensalidades sindicais FCaução ou garantia............................................ G - Aluguel.... H Horas não trabalhadas a céu aberto. I Juros de adiantamentos. J Compensação na rescisão................................. L Valores dos descontos M - Danos causados pelo empregado................ NIrregularidades da chefia.................................... O Dívidas civis do empregado............................... PEmpréstimos concedidos ao empregado Q Dívidas do empregado com terceiros................ RMulta disciplinar S Planos de assistência odontológica, médicohospitalar, de seguro, de previdência privada ou de entidade cooperativa, cultural ou recreativa associativa....... 180 182 183 187 187 189 190 190 191 193 194 194 195 196 196 196 197 198 198 199 199 203 Capítulo XI MEIOS DE PAGAMENTO DO SALÁRIO E AS UTILIDADES 1. Dinheiro, cheque ou depósito bancário 204 12 AMAURI MASCARO NASCIMENTO 2. Pagamento em utilidades A B - 205 CD- Conceito, origens e tendências.... 205 Teorias sobre as utilidades como salário in natura 207 211 Critérios e limites da lei brasileira Determinação do valor das utilidades 215 E- Substituição do salário em utilidades F- Suspensão do contrato de trabalho e o salário em utilidades 217 217 Capítulo XII O SALÁRIO, A SUSPENSÃO E A INTERRUPÇÃO DO CONTRATO 1. Fundamentos da continuidade da obrigação de pagar 219 2. Enumeração dos principais casos 222 Capítulo XIII PRINCIPAIS COMPLEMENTOS DO SALÁRIO 1. Abonos salariais.............................................................. 2. Adicional de horas extraordinárias A Conceito e incidência BTipos e percentuais............................................ C Reflexos sobre outros pagamentos................... DSuspensão do pagamento................................. EIntervalos da jornada.......................................... FAlgumas questões jurídicas................................ 3. Adicional noturno A Conceito, incidência e percentuais BO problema dos turnos ininterruptos de revezamento C Reflexos sobre outros pagamentos................... D Suspensão do pagamento 230 231 231 234 235 237 238 239 241 241 242 245 246 TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO 4. Adicional de insalubridade 13 246 A - Conceito e objeções doutrinárias 246 B - Incidência e percentuais 248 C - Algumas questões jurídicas 249 5. Adicional de periculosidade 250 A - Conceito, percentuais e incidência BC D - Modalidades 251 Reflexos sobre outros pagamentos 251 Suspensão do pagamento................................. 251 6. Adicional de transferência A B- Conceito, incidência e percentuais...... Reflexos sobre outros pagamentos 7. Comissões sobre vendas A BC - - 252 252 254 254 Conceito e incidência.... 254 Aquisição do direito e prazos de pagamento... 256 Reflexos sobre outros pagamentos.... 258 8. Gratificações salariais A B C D E 250 Conceito e incidência Classificação Reflexos sobre outros pagamentos Gratificação de função Incorporação da gratificação 9. Décimo terceiro salário 258 258 261 262 263 264 265 A B- Conceito Prazos de pagamento 265 265 C D- Décimo terceiro salário proporcional................. 266 Reflexos sobre outros pagamentos................... 266 10. Gorjetas 266 A B - 266 269 Conceito e modalidades Reflexos sobre outros pagamentos 14 AMAURI MASCARO NASCIMENTO 11. Prêmios 270 A - Conceito.................................. 270 B - Modalidades 272 C - Reflexos sobre outros pagamentos 273 Capítulo XIV INTERVENÇÃO DO ESTADO E AUTONOMIA PRIVADA COLETIVA. BASES DA POlÍTICA DE SALÁRIOS 1. O salário como objeto da política econômica do Estado 274 2. O salário e as negociações coletivas de trabalho........ 284 Capítulo XV OS MíNIMOS SALARIAIS OBRIGATÓRIOS 1. Fundamentos doutrinários dos mínimos salariais obrigatórios............................................................................. 298 2. Origens dos mínimos salariais 303 3. Princípios tutelares da Organização Internacional do Trabalho.. 30S 4. Salário mínimo 306 A - Sistemas: intervenção do Estado e autonomia negociai............................................................... 306 B - As transformações ocorridas no Brasil............. 307 C - O conceito legal................................................ 312 D - Características: imperatividade, generalidade, irrenunciabilidade e intransacionabilidade 312 E - Regras da Constituição Federal (1988) F - Disposições principais da legislação infraconstitucional 321 313 S. Os salários profissionais e as alterações do Direito brasileiro............................................................................... 321 I ' TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO 15 Capítulo XVI BASE CONTRIBUTIVA PARA RECOLHIMENTOS PREVIDENCIÁRIOS E DO FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERViÇO 1. Contribuições previdenciárias 325 2. Contribuições para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço 328 3. Conveniência de unificação 330 Bibliografia 333 índice Alfabético................ 345 · I' Capítulo I PRINCípIOS ÉTICOS DO SALÁRIO 1. Princípio do justo salário. A - Origens da idéia do justo salário. B - Atendimento das necessidades do trabalhador, das possibilidades da empresa e das exigências do bem comum. C - Salário justo segundo Régis Jolivet. O - Salário justo segundo Johannes Messner. 2. Princípio do salário vital. 3. Princípio do salário suficiente. 4. A função alimentar do salário. 1. Princípio do justo salário A - Origens da Idéia do Justo Salário. A proteção jurídica do salário é um valor que se desenvolveu como decorrência de diversos fatores, dentre os quais, mais recentemente, as manifestações internacionais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) que defende o direito a uma remuneração justa, compatível com a dignidade humana, satisfatória de um padrão de vida decente; as Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho sobre salário mínimo (Convenções ns. 26, 99, 109, 110 e 131 e Recomendações ns. 30, 89 e 135), isonomia salarial (Convenções ns. 100, 111 e 156 e Recomendações ns. 99, 111 e 165) e proteção ao salário (Convenção n. 95 e Recomendação n. 85); e o direito do trabalho através de normas destinadas a cercar os salários de algumas garantias para que não fiquem exclusivamente expostos às vicissitudes da Economia. Mais remotamente, as doutrinas sociais exerceram uma forte pressão na formação das idéias, em especial o princípio do justo salário. As raízes históricas do princípio do salário justo são encontradas na reação do pensamento humano que se seguiu à Revolução Industrial do século XVIII e ao liberalismo filosófico, 18 AMAURI MASCARO NASCIMENTO político e econômico subseqüente à Revolução Francesa de 1789. Tem uma das suas mais sólidas formulações na doutrina social da igreja católica, através dos documentos pontifícios e estudos paralelos sobre a questão social. Significa, na sua mais ampla expressão, um protesto e uma contestação contra a ordem trabalhista vigente e os conceitos de trabalho como mercadoria e salário como preço dessa mercadoria. Na Idade Média, com a escolástica, surgiram as primeiras formulações sobre os princípios fundamentais que deviam presidir a remuneração do trabalho. Os moralistas antigos, como Molina, Lugo e Lésio, sustentavam a regra da communis aestimatio. Significa que a fixação do salário deve observar uma estimativa comum coerente tanto com as necessidades do trabalhador como com o trabalho efetivamente executado. Essa estimação comum é a da gente sensata da região e varia entre um máximo e um mínimo. Segundo José Maria Guix 1), a doutrina escolástica pode resistir aos assaltos do mercantilismo que queria rebaixar os salários ao mínimo possível, prescindindo das necessidades do trabalhador. De outro lado, o princípio da communis aestimatio garantia o respeito ao bem comum, uma vez que a estipulação do salário competiria às corporações e não aos patrões. Em fins do século XVIII modificaram-se consideravelmente as condições econômico-sociais e os teólogos, para evitar as graves conseqüências do liberalismo, procuraram restabelecer a noção do justo salário, tendo em conta dois aspectos: o opus e o labor, isto é, o trabalho-produtivo e o trabalho-atividade, como o fizeram Costa-Rossetti, Lehmkuhl e Liberatore. Já os católicos liberais procuraram centralizar a atenção sobre o aspecto econômico do trabalho, portanto sobre o trabalho-produto e, em conseqüência, aceitar como único critério válido a equivalência econômica entre a retribuição e a efetiva contribuição do trabalhador com o seu trabalho. Assim, o tra- (1) "Curso de Doutrina Social Católica". ed. BAC, pág. 506. TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO 19 balho passou a ser encarado como mercadoria e devia ser retribuído segundo a sua duração, quantidade, qualidade, etc., e sem levar-se em conta os elementos subjetivos como idade, sexo, encargos familiares, etc. O aspecto pessoal do trabalhador, as suas necessidades vitais, eram desprezadas a um segundo plano, fora da justiça comutativa, e o contrato de trabalho era considerado como um contrato de arrendamento (/ocatio operis) que tem por objeto o produto do trabalhador. Diz José Maria Guix: "Fora disto, no contrato, segundo eles, não havia mais nada; a vida e a situação do trabalhador ficaram de fora, e não havia por que ter em consideração essas circunstâncias. Segundo essa doutrina, o justo salário é aquele que dá ao trabalhador a parte que lhe corresponde da produção total, ainda que eventualmente, como conseqüência do jogo da concorrência no mercado e de outras circunstâncias de ordem econômica, seu nível não permita ao trabalhador fazer frente às necessidades da sua família; mais ainda, o salário pode descer abaixo do mínimo necessário, sem que seja violada a estrita justiça. Em estrita justiça só é devido o salário que corresponde à efetiva colaboração do trabalhador na produção, cujo valor econômico vem manifestado pela lei da oferta e da procura, retificada pelo princípio da communis aestimatio (quando o seu valor seja admitido pelo conjunto de empregadores de uma mesma região). Portanto, o empregador satisfaz todas as suas obrigações de justiça quando paga o salário conforme o uso do lugar, prescindindo de saber se é suficiente ou não. Não obstante, em caso de ser insuficiente para cobrir as necessidades pessoais ou familiares, o empresário tem uma obrigação de caridade de auxiliar os trabalhadores". Esta corrente de pensamento, que os católicos liberais expuseram através da Revue Catholique des Institutions et du Oroit, está inspirada nos economistas do século XVIII e primeira metade do século XIX (A. Smith, J. B. Say, Malthus, Ricardo). Os católicos sociais da França, no entanto, concebiam o contrato de trabalho como um arrendamento especial comparável à loca tio operarum e, nessas condições, além das utilidades reais decorrentes do trabalho executado, único aspecto considerado pelos católicos liberais, o empresário, ao estabelecer o salário, deve também olhar as necessidades pessoais e familiares do trabalhador. Segundo essa corrente do pensa- 20 AMAURI MASCARO NASCIMENTO mento cristão, não é possível prescindir da pessoa do trabalhador, dos seus aspectos subjetivos. Nessa concepção, predominante é o trabalhcresforço e não o trabalho-produto, não é preferencial a obra, mas sim o obreiro, o qual já não é um simples preço de uma mercadoria, mas deve, isto sim, permitir ao trabalhador e sua família levar uma vida honesta e decente. Sempre que o salário fixado não permitir a manutenção desse nível mínimo, estará violada a regra de justiça. Nesse embate de idéias, surgiu a "Rerum Novarum" de Leão XIII (1819) condenando o liberalismo econômico e afirmando o direito do trabalhador a um salário que permita uma vida digna: "Pretende-se que o salário, uma vez livremente consentido por um lado e por outro, o patrão, ao pagá-lo, preenche todas as suas obrigações e não está mais comprometido com nada... Que o patrão e o trabalhador façam tantas e tais convenções que lhes aprouver, que eles entrem em acordo principalmente sobre a cifra do salário. Acima de sua livre vontade, há uma lei de justiça natural mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para fazer com que o trabalhador subsista sóbrio e honesto. Se, constrangido pela necessidade, ou impelido pelo temor de um mal maior, o trabalhador aceitar condições duras que ele não vê como recusar, porque elas lhe foram impostas pelo patrão ou por aquele que fez a oferta do trabalho, sofre uma violência contra a qual a justiça protesta (n. 34)". Segundo Pio X/(2), "em primeiro lugar deve dar-se ao operário uma remuneração que seja suficiente para o seu sustento e para o da família. É justo também que o resto da família concorra, dê um segundo das suas forças, para o sustento comum de todos, como antes sucedia, especialmente nas famílias de lavradores e também nas de muitos artesãos e pequenos comerciantes; mas também é um crime abusar da idade infantil e da debilidade da mulher. Principalmente em casa ou nas suas proximidades, as mães de famnia podem dedicar-se às suas tarefas sem por isso descurarem as atenções do lar. É, porém, um gravíssimo abuso, que se deve eliminar com todo o empenho, que a mãe, pela escassez do salário do pai, se veja (2) "Quadragesima Anna", 32, 405, 6. TEORIA JURíDICA DO SALÁRIO 21 obrigada a exercer uma profissão lucrativa, abandonando os seus deveres e ocupações peculiares, e sobretudo a educação dos filhos. Há de fazer-se, pois, todo o possível para que os pais de família recebam um salário tal que com ele possam fazer face convenientemente às necessidades domésticas ordinárias. E se as circunstâncias presentes da sociedade nem sempre permitem fazê-lo, pede a justiça social que quanto antes se introduzam reformas tais que se assegure esse salário a qualquer operário adulto. Não será inoportuno aqui o louvor merecido a quantos, com previsão tão sábia como útil, ensaiaram e experimentaram métodos diversos para adaptar a remuneração do trabalho aos encargos da família, de maneira que ao aumento destes corresponda o aumento daqueles e, ainda, se for necessário, se possam também satisfazer as necessidades extraordinárias" . Para Pierre Biga, Pio X/lançou-se ao conjunto do problema, de modo bem mais amplo, numa exposição sobre os direitos do capital e do trabalho, recusando exclusividade de direitos, entendendo que é injusto que uma das partes reivindique para si todo o fruto e assentando o seu ponto de vista sobre três princípios básicos: a) devemos pagar ao trabalhador um salário que lhe permita prover à sua subsistência e à de sua família; b) na determinação dos salários, levar-se-ão em conta as necessidades da empresa e dos que a dirigem, pois seria injusto exigir salários que possam levar o empregador à ruína e que não possam ser suportados; c) a fixação dos salários deve inspirar-se também na economia geral. Em João XXII/(3) são desenvolvidos estes princípios: "Por isso, julgamos que é nosso dever afirmar uma vez mais que do mesmo modo que a retribuição do trabalho não pode ser abandonada inteiramente à lei do mercado, também não se pode fixar arbitrariamente, mas que há de determinar-se de acordo com a justiça e a eqüidade. Isso exige que seja atribuída aos trabalhadores uma retribuição tal que lhes permita ter um nível de vida verdadeiramente humano e fazer face condignamente às suas responsabilidades familiares; mas exige, além (3) "Mater et Magistra", 22 AMAURI MASCARO NASCIMENTO disso, que ao determinar a retribuição se atenda à sua verdadeira influência na produção e às condições econômicas da empresa, às exigências do bem comum das respectivas comunidades políticas, particularmente no que respeita às repercussões no emprego total dos trabalhadores ativos de toda a região, assim como também às exigências do bem comum universal, ou seja, das comunidades internacionais de natureza e amplitude diversas". B - Atendimento das Necessidades do Trabalhador, das Possibilidades da Empresa e das Exigências do Bem Comum. Pode-se precisar, com Eberhard Welty4) , que a determinação do salário justo deve observar, segundo a doutrina social católica, três fatores: a) as necessidades vitais do trabalhador e da família; b) a situação da empresa; c) o bem comum. a) As necessidades vitais do trabalhador. Welty mostra que o trabalhador tem direito ao salário familiar que o patrão tem de dar e a comunidade tem de tornar possível e garantir. homem, que só possui as suas energias para trabalhar, deve ganhar o necessário para poder viver do seu trabalho e, uma vez que o trabalho é a sua única base de sustento, segue-se que é um preceito de justiça comutativa que, suposto um determinado volume de trabalho exigível a uma pessoa humana segundo a duração e as circunstâncias do mesmo, se lhe deva um salário de quantidade suficiente para o sustento. a Afirma Bigd5 ) que os assalariados têm direito "primeiramente ao mínimo de vida decente, mínimo proporcional aos encargos de família: este mínimo está fora do produto comum que tem que ser dividido; ele deve também variar com a qualificação do salário; cresce regularmente com o aumento dos recursos na sociedade global; em segundo lugar, a uma parte do resto, sendo este resto calculado depois das amortizações que reconstituem o valor real do objeto de trabalho, sem aumento ou diminuição, supondo justos preços pagos pela empresa e à empresa". (4) "Manual de Ética Social", ed. Herder, vaI. 3º, pág. 344. (5) "A Doutrina Social da Igreja", ed. Loyola, pág. 335.