4º ENCONTRO NACIONAL DE GRUPOS DE PESQUISA – ENGRUP, São Paulo, pp. 252-278, 2008. ANGRA DOS REIS: CONTRIBUIÇÃO AO ENTENDIMENTO DE UMA PRETENSA VOCAÇÃO TURÍSTICA - PENSANDO O TURISMO A PARTIR DO TERRITÓRIO ANGRA DOS REIS: A CONTRIBUTION TO AN UNDERSTANDING OF THE CLAIMS OF THE TOURIST VOCATION - THINKING OF TOURISM TERRITORY Renata da Silva Corrêa* Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ [email protected] Resumo O município de Angra dos Reis, situado na Região da Costa Verde no litoral Sul Fluminense passa, a partir de 1970, por um processo de profundas transformações socioespaciais decorrentes da atividade turística. Favorecida pela exuberância natural da sua paisagem e facilitado o seu acesso com a Rodovia Rio-Santos (BR-101), Angra dos Reis vivencia um período de intensificação da presença do capital imobiliário apoiada pelo poder público. O turismo modifica a vida local, estimula a especulação imobiliária, gera conflitos e transforma a maneira como seu território vinha sendo produzido. Nosso objetivo é desmistificar o desenvolvimento da atividade turística no município destacando os principais momentos e agentes envolvidos e as transformações que ocorrem em seu território. Palavras-chave: turismo, território, planejamento, Angra dos Reis. Abstract The municipality of Angra dos Reis, situated in the Costa Verde Region in the South Fluminense coast, experienced a period of profound social and spatial transformations from 1970. These transformations resulted from increased tourism to the region. Because of the natural beauty of its landscapes and the construction of the Rio-Santos Road (BR-101), this facilitated access to the area. Angra dos Reis experienced a period * Graduanda em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista Pibic-Cnpq do Núcleo de Estudos em Geografia Fluminense (NEGEF), orientada pelo Prof° Dr. Glaucio José Marafon. 253 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. of intense growth resulting from a tremendous increase in real estate capital, as well as with the support of the local public authorities. Tourism modifies the lives of local residents, stimulates the real estate speculation, generates conflicts among competing interests and transforms the way in which its territory has developed. Our objective is to demystify the growth of tourism in the municipality by emphasizing principal moments and agents involved and the transformations that occurred in its territory. Keywords: tourism, territory, planning, Angra dos Reis. INTRODUÇÃO O turismo é tratado como uma atividade que proporciona desenvolvimento sócioeconômico, que gera renda e empregos em determinadas localidades, Cruz (2007). A partir dessa atividade, investimentos em infra-estrutura e nos transportes, programação de eventos para atração de pessoas, incentivos a empreendimentos turísticos como hotéis e condomínios de luxo são realizados na tentativa de fomentar a economia local, inserindo-a na escala global em que se encontra o turismo. Não somente uma atividade econômica, o turismo é também uma prática social, que adquire dimensão espacial conforme pessoas circulam e se hospedam, temporariamente, nos lugares, objetos técnicos são construídos ou modernizados para atender aos turistas e espaços são apropriados em detrimento de outros usos, que não seja o turístico. Enquanto prática social e parte integrante do ciclo de reprodução do capital, o qual transforma o espaço em mercadoria e o insere no circuito da troca, o processo de turismo traz diferentes atores que agem com intensidades desiguais na transformação do espaço. O Estado, em seus distintos níveis de governo, os agentes de mercado e a sociedade civil atuam de maneira dinâmica e conflituosa com possibilidades de ação que os caracterizam entre agentes hegemônicos e não-hegemônicos na produção do espaço para o turismo, Cruz (2007). No mesmo sentido (BERTONCELLO, 1992, p.19), nos lembra que a atuação múltipla do Estado não se realiza sem conflitos, sobretudo porque territorialidades excludentes são envolvidas à medida que “o Estado assegura a disponibilidade do espaço para o processo de acumulação”. Ainda segundo o autor Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 254 (Ibid., p.19), é “no território, então, que o espaço abstrato do poder (estatal mas também das grandes corporações) se concretiza, nem sempre de um modo “puro” mas também, do modo resultante da prática do poder concreta”. O crescimento da atividade turística verificado nas últimas décadas acompanha a necessidade, muitas vezes criada, que as pessoas têm de estar em lugares diferentes dos quais vivenciam seus cotidianos. Juntamente com melhorias de acesso, meios de hospedagem mais flexíveis às características dos turistas, facilidades de pagamento e com parcerias e articulações que os governos estabelecem ligadas ao setor do turismo, mais pessoas viajam e com mais freqüência utilizando uma infraestrutura que é direta ou indiretamente empregada na atividade turística. Destacamos aqui as conseqüências da nova relação que o Estado assume com o capital global. Para o turismo, esta postura significa a adequação de novos territórios para a instalação de hotéis, pousadas, condomínios de residências secundárias, aeroportos, vias de acesso, segundo uma lógica que é, em sua maioria, alheia às condições territoriais já existentes. No município de Angra dos Reis, situado ao sul do Estado do Rio de Janeiro, a natureza é o elemento central do turismo que se desenvolve. Este se apropria dos espaços através da criação de um valor simbólico, assinalado pela valorização da natureza que passa a ser oferecida aos que tem condições de consumi-la. A valorização turística de Angra dos Reis ganha destaque na década de 1970, quando então é inserida no plano da política nacional de desenvolvimento do setor turístico. A EMBRATUR, hoje Instituto Brasileiro do Turismo, criada como órgão executor do Conselho Nacional de Turismo (CNTur), solicita a uma consultora internacional a elaboração do Projeto Turis, cujo objetivo é o levantamento do potencial turístico do litoral Rio-Santos e a classificação dos seus diferentes usos e ocupações turísticos. O Projeto Turis se viabiliza, entre outros, pela construção da Rodovia Rio-Santos (BR-101), que surge no contexto da política do Estado de integração do território nacional. A empresa Sondotécnica, a pedido do poder público federal, elabora um relatório com os argumentos justificativos para a construção da rodovia, entre os quais podemos apontar a interligação dos portos do Rio de Janeiro e de Santos e a modernização das estruturas diretamente influenciadas por ela. Como já dissemos, a rodovia possibilitaria a viabilização do estudo desenvolvido pela EMBRATUR sobre o 255 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. aproveitamento turístico do litoral entre Santa Cruz e Santos através da análise e da divisão do turismo em classes. Apoiamo-nos no conceito de território e de territorialidade para o entendimento da atividade turística no município de Angra dos Reis, que se efetiva vinculada à idéia de uma vocação turística instituída pelo poder público em associação com agentes privados (promotores imobiliários), e que transforma o território municipal pela ação de diferentes agentes modeladores com seus interesses sócio-econômicos distintos, mudando, de maneira excludente e seletiva, o uso e a apropriação do solo no município. O desenvolvimento do turismo em Angra dos Reis não é resultado da espontaneidade, mas da intencionalidade de agentes políticos associados aos imobiliários. Apoiados em Saquet (2007), entendemos o território em sua multidimensionalidade (economia, política, cultura e natureza), destacando aqui as duas primeiras, que nos servirão de base para compreender como se processa a atividade turística no município e a atuação dos principais agentes envolvidos em suas transformações territoriais. A EXPANSÃO DA ATIVIDADE TURÍSTICA O surgimento do turismo se dá com a aristocracia inglesa através das viagens que os jovens aristocratas realizam com seus tutores para reconhecimento daquilo que foi aprendido. A partir dessas viagens de estudos, os ricos ingleses adquirem status social e posição cultural privilegiada na sociedade inglesa do século XIX. Durante o desenvolvimento do turismo, a burguesia em geral assume essa postura aristocrática caracterizando o seu tempo livre como elemento de distinção entre a classe burguesa e a trabalhadora. No final da primeira metade do século XIX, o turismo moderno surge no contexto do desenvolvimento tecnológico, da expansão dos transportes e da disseminação dos meios informacionais, aumentando a acessibilidade das pessoas aos serviços turísticos independente da sua posição social, Andrade (1995). O turismo está inserido em um conjunto de atividades que se converte em fonte de acumulação em escala mundial. Para o turismo este desenvolvimento científico e Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 256 tecnológico possibilita o aumento dos fluxos de turistas à medida que os transportes se tornam mais eficientes incluindo segurança, rapidez e conforto. A transformação de um espaço em turístico ocorre através do processo de criação de valor simbólico pelo capitalismo onde processos gerais são transformados em especificidades. Não apenas o lugar, mas também a paisagem, a região e outros conceitos que fornecem identidade à geografia são apropriados pelo turismo e pensados em termos de valorização simbólica e transformação em lucros e rendas. Nesse contexto, a mídia exerce papel fundamental na divulgação e /ou construção da imagem turística com recursos que “impõem” ao turista a necessidade de estar em determinados locais. A criação de um espaço turístico pode acontecer de maneiras variadas, a saber: (re)invenção de tradições, criação de simulacros, refuncionalização e valorização da natureza: aqui a natureza é o cenário da fuga, do sossego, da aventura e das redescobertas; reforçada pela exuberância natural e pelos paraísos ecológicos ela torna-se um atrativo potencialmente turístico que sofre diversas transformações. Como também nos mostra (ANDRADE, 1995, p. 99) o turismo “situa-se no setor terciário e se caracteriza como organização que possibilita ou viabiliza viagens, hospedagem, alimentação e lazer às pessoas que se deslocam de suas residências para atendimento de seus objetivos diversos”. Estes objetivos, segundo o mesmo autor, estão ligados ao desejo e à necessidade de evasão, à busca de aventura ou de tranqüilidade, ao desejo e à necessidade cultural e de compra e à aquisição de status. A atividade turística permite que bens naturais e culturais se tornem atrativos propiciando a valorização de recursos naturais e artificiais. No caso de Angra dos Reis a valorização de sua exuberância natural é orientada por um planejamento, de início totalmente permissivo aos interesses dos especuladores imobiliários, e posteriormente, ainda que imbuído de uma preocupação com a dimensão social no crescimento do município, parece ver no turismo o responsável pelo desenvolvimento municipal como um todo. Sobre isso (RODRIGUES, 1999, p. 30) afirma que “o turismo não deve ser visto como única alternativa (...) mesmo onde a riqueza dos recursos potenciais justifique a priori sua exploração”. 257 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. Em relação a essa oferta turística natural (ANDRADE, op. cit., p. 102) ressalta que O potencial natural ou potencial turístico natural é fator primordial para que uma localidade, uma região ou um país sejam considerados possuidores de vocação turística decorrente da propriedade e dos atrativos que formam os recursos naturais. Entre estes elementos encontram-se o clima, a fauna, a flora e os recursos hídricos, que são evidenciados no Projeto Turis e assim vistos por (BERTONCELLO, 1992, p. 74) em função desta “vocação”, o espaço é analisado em seus componentes: paisagem, solo, relevo, clima e vegetação. Estes são descritos, tanto positiva como negativamente em função de seu aproveitamento turístico. E é como atrativo turístico que não só a população, como também as suas atividades são vistas. A partir dessa análise, o espaço é classificado para diferentes usos e funções, todos turísticos. O espaço não é apenas o reflexo das relações desiguais geradas pelo turismo, ele próprio torna-se mercadoria desse processo. Segundo (FALCÃO, 1996, p. 63) “a economia do turismo se expande pelo mundo, alargando as fronteiras do processo de acumulação do capital por meio do consumo do espaço”. Reforçando essa idéia (CARLOS, 1996, p. 26) nos lembra que a indústria do turismo transforma tudo que toca em artificial, cria um mundo fictício e mistificado de lazer, ilusório, onde o espaço se transforma em cenário para o “espetáculo” para uma multidão amorfa mediante uma série de atividades que conduzem à passividade. Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 258 Uma das críticas que se faz ao turismo é justamente esse consumo alienado do espaço, onde o turista é motivado a viajar, quase sempre, somente por questões pessoais sem levar em consideração características e comportamentos locais. As relações turista/natureza e turista/população local acabam se tornando superficiais onde o respeito fica por vezes ameaçado, Mendonça (1996). Segundo a autora para que esse respeito exista é preciso abandonar a visão estética que o turista tem do meio ambiente visitado e estabelecer uma relação de troca com os moradores. De acordo com (CARLOS, 1996, p. 31) no turismo contemporâneo “fragmentamse os lugares, exclui-se o feio, afasta-se o turista do pobre, do usual”, porém, o real conhecimento do lugar está além da contemplação de uma paisagem ou da compra de souveniers. Para (MENDONÇA, 1996, p. 24) são vários os pontos de contato entre as culturas, merecendo destaque a conversa fiada “tão rica em aprendizado”. No mesmo sentido (LIMA, 1996, p.197) comenta ser “o homem que atrai o homem, com suas lendas, suas estórias, sua arte, sua comunicabilidade e sua afeição”. Dito isto, ao invés de esconder o feio os planejamentos deveriam ser capazes de enquadrar a comunidade no processo turístico sem causar transformações excessivas a esta, criando também condições e estímulos ao turista de conhecer um pouco da realidade que ele está visitando. Veremos que não é o contato turista/comunidade local que se privilegia no planejamento do turismo no município de Angra dos Reis. Ao contrário, os planos e os projetos desenvolvidos para o setor, em diferentes níveis governamentais, são claros no seu objetivo de fragmentar o território municipal dotando os mais ricos de porções privilegiadas do seu sítio. OCUPAÇÃO E USOS DO TERRITÓRIO MUNICIPAL DE ANGRA DOS REIS O município de Angra dos Reis está localizado na Região da Costa Verde antiga Região da Baía da Ilha Grande, a qual foi renomeada e redefinida por força da Lei Complementar n° 105 de 4 de julho de 2002, sendo composta atualmente por Angra dos Reis, Paraty, Mangaratiba e Itaguaí (Mapa 1). Descoberto no ano de 1502 seu processo de ocupação confunde-se ao do país, caracterizado pela conquista das 259 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. terras litorâneas e um posterior avanço às regiões sertanejas com destaque a sua expressiva participação nos períodos econômicos nacionais. Mapa 1 - Localização do município de Angra dos Reis Base de dados: CIDE. Org.: Corrêa, 2008. Juntamente com Paraty, Angra formava o maior escoadouro de ouro proveniente das minas sendo a atividade a principal via dinamizadora da região. No período da cana-de-açúcar, o município destaca-se como um dos produtores do gênero Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 260 apresentando em 1749 a existência de 15 engenhos e 91 engenhocas de aguardente. A decadência da cana e a importância crescente do café na economia nacional influenciam o cultivo deste no município em áreas antes ocupadas pela cana (Angra: Plano Diretor - Primeira Fase, 1990, s.p.). Na segunda metade do século XIX, com a crise do café, o fim do tráfego de escravos e a construção da Ferrovia Pedro II†, Angra vivencia uma fase conturbada por conta do esvaziamento populacional e do isolamento da cidade entre outros. A decadência da função portuária acelerada com a crise do café fluminense possibilita o desenvolvimento de outras atividades como a bananicultura e a pesca. Na década de 1920, as plantações de banana ganham destaque sendo até hoje uma das principais atividades econômicas do município. Paralelo ao cultivo da banana e à prática pesqueira ocorre, na primeira metade do século XX, uma revitalização da atividade portuária com a reconstrução do porto e sua respectiva reativação em 1932. No contexto do desenvolvimentismo nacional, Angra dos Reis é escolhida para sediar alguns projetos que impulsionam o seu crescimento econômico e que transformam consideravelmente a sua realidade sócioespacial. Nesse sentido, podemos considerar a década de 1970 como a dos grandes empreendimentos sendo eles a Usina Nuclear Angra I, o Terminal da Baía da Ilha Grande e a Rodovia Rio-Santos (BR-101). Tais empreendimentos resultam em um incremento populacional, significativa urbanização e inúmeras transformações sócioeconômicas para a população dita tradicional residente no município. Entre os projetos implantados merece destaque a construção da Rodovia RioSantos, concluída em 1974, que de acordo com o relatório da empresa Sondotécnica, responsável pela construção da via, esta interligaria os portos do Rio de Janeiro e de Santos proporcionando uma integração nacional e a modernização das estruturas influenciadas por ela. Além disso, a BR-101 viabilizaria o Projeto Turis – um estudo realizado pela EMBRATUR sobre o aproveitamento turístico do litoral entre Santa Cruz e Santos através da análise e divisão do turismo em classes. Em Angra dos Reis, o turismo que se implementaria seria o classe “A” (turismo de hotéis cinco estrelas, marinas de luxo, condomínios fechados), mas para que tal † Ligação entre o Rio de Janeiro e São Paulo pelo Vale do Paraíba. 261 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. projeto fosse posto em prática era necessário uma regularização fundiária. Assim, em 1972 o município é declarado como Área Prioritária para Fins de Reforma Agrária e no ano seguinte como Zona Prioritária de Interesse Turístico, medidas que facilitam a apropriação do solo pelo capital imobiliário. Os loteamentos que surgem a partir da década de 1970, como conseqüência da abertura da BR-101 para a viabilização do Projeto Turis, caracterizam-se por grandes áreas e por condomínios fechados situados em porções privilegiadas do sítio municipal. Tais condomínios e demais empreendimentos imobiliários relacionados com a atividade turística localizam-se principalmente nas áreas situadas entre o mar e a rodovia, expulsando a população que vivia da pesca artesanal e da agricultura, restringindo o livre acesso às praias e privatizando o litoral do município. A IMORTÂNCIA DA RODOVIA RIO-SANTOS (BR-101) A definição da década de 1970 como marco para o nosso estudo se deve à dinâmica que caracteriza este período. As transformações que se processam nesses anos estão relacionadas com a instalação de grandes empreendimentos no município, sendo: a Rodovia Rio-Santos (BR-101), o terminal marítimo da Petrobrás (TEBIG) e as Usinas Nucleares. Entre os quais se destaca a Rodovia Rio-Santos por seu estreito vínculo com a atividade turística. A sua construção se insere no contexto de expansão da malha rodoviária nacional, cujo objetivo de integração e controle do território brasileiro é marcado pelo privilégio ao automóvel. Os principais argumentos que justificam a sua implantação podem ser vistos em (GUANZIROLI, 1983, p. 74). Mais do que modernidade e integração, a rodovia facilitaria o acesso à região, a qual dispõe de um grande potencial turístico baseado na exuberância natural, pois a região dispunha de grande potencial turística, baseado em suas excepcionais condições naturais, em seus “invulgares” recursos históricos, além de situar-se dentro do triângulo turístico formado por São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 262 Podemos perceber que um dos motivos que levam o governo federal a construir a rodovia é a valorização turística da área, que é assumida como alternativa para superação do seu atraso através da comunicação do litoral com as metrópoles nacionais. O estudo de viabilização da rodovia é encarregado à empresa Sondotécnica, cujos relatórios elaborados caracterizam-se como um instrumento técnico de apoio a uma decisão política vinculada a setores econômicos interessados na construção da BR-101 Bertoncello (1992). O quadro a seguir (Quadro 1) contém informações do sistema viário anterior à construção da Rio-Santos, que foram extraídas dos relatórios de avaliação da Sondotécnica. Quadro 1 - Sistema viário anterior a Rodovia Rio-Santos (BR-101) Presidente Dutra - Rio - São Paulo Rio - Sta. Cruz - Angra Angra - Presidente Dutra RODOVIAS Paratí - Presidente Dutra Caraguatatuba - Presidente Dutra Ubatuba - Presidente Dutra Estradas menores ligando Rio, Angra, Paratí, Ubatuba, Santos Viação Ferro Centro Oeste (VFCO): Angra - Barra Mansa FERROVIAS Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB): Rio - Mangaratiba Estrada de Ferro Santos - Jundiaí (EFSJ): Santos - Jundiaí MARÍTIMA Cia. de Navegação Sul Fluminense: Rio - Ilha Grande - Angra e Rio Paratí - Ubatuba Fonte: Guanziroli, 1983, p. 75-76. Org. Corrêa, 2008. Possíveis melhorias no sistema viário acima descrito são refutadas nos relatórios de viabilidade técnica e econômica nos indicando a intencionalidade do estudo. Conforme Guanziroli (1983), a intenção da rodovia é viabilizar os setores industrial e turístico, ficando clara a idéia de valorização do turismo quando o autor afirma que o 263 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. projeto aponta para um sentido de tráfego com dois pontos extremos (Rio e Santos), cuja proposta é facilitar a entrada de turistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ainda tratando dos relatórios da Sondotécnica, o autor acima referido trabalha cinco pontos julgados por ele como os mais relevantes. Referem-se ao crescimento demográfico e ao desenvolvimento agropecuário, industrial, da pesca e do turismo. De acordo com os relatórios, a BR-101 permitiria a modernização da estrutura agrária primitiva e a mudança do caráter artesanal da atividade pesqueira, entre outros aspectos que revelam um discurso pautado na ideologia da modernização. Os relatórios também apontam que a área de influência direta da rodovia (municípios situados ao litoral, entre Rio e Santos) seria declarada como Área Prioritária para Fins de Reforma Agrária sob intervenção do IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária. Dessa maneira, a expropriação de terras para fins especulativos visando à arrecadação de fundos para a construção da via seria assegurada pelo próprio IBRA, pois entre as suas funções estaria, como traz (GUANZIROLI, Ibid., p. 93) a: destinação de áreas que, por suas localizações e condições específicas, sejam mais aptas à comercialização para empreendimentos dos setores turísticos, viário, industrial e de serviços e que respeitem as restrições ao uso decorrente das leis ditas de proteção. Em 1972, os municípios de Angra dos Reis, Itaguaí, Mangaratiba e Paraty têm suas áreas declaradas como Zona Prioritária para Fins de Reforma Agrária ficando a cargo do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) a elaboração de um plano de atuação na área que contemplasse, entre outros, a regularização de títulos dos imóveis rurais. No ano seguinte, toda área compreendida entre o mar e a distância de até 1 km após o eixo da rodovia é declarada como Zona Prioritária de Interesse Turístico pelo CNTur. Embora os motivos dessa superposição de poderes não sejam explícitos, (GUANZIROLI, 1983, p. 255) aponta para a atuação do INCRA no sentido da não realização da reforma agrária, mas de Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 264 (...) regularizar os títulos dos proprietários de imóveis ameaçados pela situação de conflito com os posseiros da região, viabilizando assim a conversão dessas propriedades em sociedades destinadas à implantação de conjuntos turísticos. Um convênio assinado entre a EMBRATUR e o INCRA, em 1973, tem como objetivo a atuação conjunta desses dois órgãos nas áreas prioritárias para fins turísticos e de reforma agrária. Cabendo ao INCRA a desapropriação de áreas para a implantação de projetos, segundo o autor (Ibid., p. 257), “projetos turísticos”, ratificando a idéia de que a reforma agrária ficaria em segundo plano. Como nos aponta o autor, o INCRA não realiza desapropriações para fins turísticos tampouco para fins agrários, entretanto, sua passividade facilita a atuação de especuladores imobiliários. Os resultados dessas ações é o crescimento acelerado do setor turístico imobiliário. A Rodovia Rio-Santos propicia um fluxo de investimentos através da implantação de hotéis, pousadas e condomínios bem como um crescimento desordenado da malha urbana que passa a ocupar áreas de mangues, restingas e encostas. 265 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. O PROJETO TURIS A expansão da atividade turística faz parte da política nacional de incentivo ao setor expressa na criação do Conselho Nacional de Turismo (CNTur), ligado ao Ministério da Indústria e do Comércio, e da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR) como seu órgão executor, ambos criados em 1966. A atuação da EMBRATUR reflete o planejamento autoritário comum ao governo militar em que os impactos sócio-ambientais e os interesses das sociedades envolvidas são desconsiderados na aprovação dos projetos Bertoncello (1992). Nesse contexto, é elaborado por uma consultora internacional a pedido da EMBRATUR, o Projeto Turis, cujo objetivo é o levantamento do potencial turístico do litoral entre o Rio de Janeiro e Santos bem como a sua classificação de acordo como critérios como a paisagem, o clima e a vegetação. Estes critérios somados à análise do nível sócio-econômico dos fluxos turísticos definem os usos e as funções das áreas contidas nesse litoral, como nos mostra (BERTONCELLO, Ibid., p. 75) (...) a densidade de banhistas possibilitada pela praia, isto é a qualidade da praia e do local é diretamente proporcional ao nível de rendimentos da clientela turística a ser atendida: uma fraca densidade de ocupação corresponde a clientela de nível elevado, e vice-versa. (EMBRATUR, 1992: s.p.). A densidade de ocupação e a não inclusão dos interesses das populações envolvidas também são apontados em (GUANZIROLI, 1983, p. 239) quando revela os objetivos do projeto: “O projeto Turis visa a estudar principalmente a densificação ocupacional das localidades consideradas de interesse turístico, sempre dentro dos padrões ditados pela natureza e pela realidade nacional”. Este autor ainda caracteriza alguns pontos fundamentais do plano afirmando que este é inspirado em modelos importados, visto que a formulação das suas propostas é baseada em experiências estrangeiras, em contextos sócio-econômicos distintos da realidade analisada. Outro ponto tratado refere-se à segregação sócio-espacial, chamando à atenção de Guanziroli a destinação de áreas para os setores populares, para a classe média e Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 266 para os mais abastados, chegando mesmo a atribuir áreas de praia por banhista de acordo com a classe de turismo à qual ele se enquadra, conforme quadro abaixo Quadro 2 - Categorias, classes de turismo e áreas de praia por banhista A = Turismo de qualidade: 25m² por banhista B = Turismo médio: 10m por banhista C = Turismo econômico: 5m² por banhista Quadro 2 - Categorias, classes de turismo e áreas de praia por banhista A = Turismo de qualidade: 25m² por banhista B = Turismo médio: 10m por banhista C = Turismo econômico: 5m² por banhista (Quadro 2). A segregação social é verificada também em escala ampliada (GUANZIROLLI, 1983, p. 243), ao se referir à redistribuição das classes sociais pelo litoral importa não desencorajar, mas sim favorecer tais movimentos sociais, por meio do desenvolvimento das praias mais populares na direção de Mangaratiba (uma ação que se impõe logo após a abertura da rodovia) e por meio da criação de “unidade de marca”, entre Angra dos Reis e Paraty, a fim de seduzir a clientela carioca e não carioca mais abastada. Por fim, é considerado o programa de saturação do projeto, que revela o objetivo central do mesmo, “(...) ou seja, a mudança total do uso do solo angrense e a transformação num prazo de tempo relativamente curto, da região numa região predominantemente turística” (Ibid., p. 248). Retirado de Guanziroli, 1983, p. 243 267 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. O PLANO DE DESENVOLVIMENTO FÍSICO-TERRITORIAL (PDFT) Na esfera municipal, o Plano de Desenvolvimento Físico-Territorial (PDFT) desenvolvido pela Secretaria de Planejamento do Estado do Rio de Janeiro, atualizado pela Prefeitura Municipal e aprovado em 1981 - torna-se um importante exemplo de como a atividade turística se estabelece em Angra dos Reis: impulsionada pela administração pública em distintos níveis de governo em consonância com os interesses de especuladores imobiliários. O plano traz em seus objetivos específicos (Guanziroli, 1983, p. 262) 2 – Ordenar a ocupação indiscriminada do solo na faixa litorânea; 3 – Assegurar aos municípios condições para a utilização da faixa litorânea visando, inclusive, promover uma ocupação equilibrada para residentes e veranistas; 6 – Estimular o desenvolvimento econômico do município, especialmente o turismo, harmonizando-o como as necessidades peculiares da população; A partir daí, Guanziroli nos mostra que a legislação municipal atua dificultando o desenvolvimento de atividades que não estejam ligadas ao setor turístico-imobiliário. A Área Rural (AR) definida na lei de zoneamento do plano exemplifica a afirmação acima, pois fica permitida a formação de sítios de recreio acima de 5000m² dentro das áreas rurais. (1983, p. 268). Segundo estudo elaborado pelo IBASE em 1993 sobre a apropriação do solo urbano no município, o PDFT atinge grande parte dos objetivos propostos “(...) pois concretamente assegurou um ordenamento da ocupação territorial e garantiu a expansão da área urbana, fortalecendo principalmente o desenvolvimento das atividades relacionadas ao turismo”. (p.52). O estudo mostra ainda de que maneira o plano possibilita a expansão da especulação imobiliária. Como saída para a regularização de áreas ocupadas durante a década de 1970 tem-se a ampliação da área urbana municipal, que atende às expectativas dos especuladores imobiliários uma vez que o novo perímetro urbano vai além das áreas anteriormente comprometidas com a urbanização. A delimitação de Áreas de Proteção Paisagística e Lazer (APPL) é outro instrumento contido no plano que privilegia a ação dos promotores imobiliários. Essas Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 268 áreas definem-se como em processo de urbanização destinadas à implantação de projetos turísticos visando a uma ocupação equilibrada da faixa litorânea para residentes (pescadores e posseiros) e veranistas. O lote mínimo de 1200m² e a taxa de ocupação inferior a 30% justificam-se pela proteção ao equilíbrio ecológico da paisagem local. Como nos mostra o (IBASE, 1993, p. 54) (...) a preservação dos costões rochosos e dos manguezais que representam a maior parte das terras situadas nas APPL não chegou a ser considerada uma variável determinante quando, no mesmo plano, se decidiu pela liberação de extensas áreas da faixa litorânea para a construção de novos condomínios. Entretanto, o que se verifica é a expulsão da população ligada à pesca e à agricultura de subsistência e a sobreposição dos interesses turístico-imobiliários aos interesses sócio-ambientais. LOTEAMENTOS APROVADOS, MAS NÃO OCUPADOS A especulação imobiliária iniciada com a construção da BR-101 está ligada à valorização das terras situadas ao longo da rodovia. A valorização turística destas terras é responsável pelo acréscimo dos loteamentos aprovados no município e pela mudança do perfil destes, em que o tamanho e a localização dos lotes nos indicam a finalidade dos mesmos. Os dados a seguir (Quadro 3), retirados do Plano Diretor Primeira Fase e do estudo elaborado pela FEEMA (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente), “Diretrizes Ambientais para o melhor uso do solo na Região Sul Fluminense”, nos auxiliam no entendimento do processo de especulação discutido neste trabalho. 4º ENCONTRO NACIONAL DE GRUPOS DE PESQUISA – ENGRUP, São Paulo, pp. 252-278, 2008. Quadro 3 - Loteamentos aprovados segundo data de aprovação Total Data de Aprovação 1º distrito 2ºdistrito 3º distrito 4º distrito 5º distrito 6º distrito Nº % Até 1960 8 4 1 - - - 13 18% De 1961 a 1970 2 1 1 - - - 4 5% De 1971 a 1975 4 - 1 - 1 1 7 10% De 1976 a 1980 2 14 8 2 - - 26 37% Depois de 1981 3 14 2 1 - 1 21 30% Total 19 33 13 3 1 2 71 100% Levantamento realizado junto à Secretaria de Obras e Cadastro da Prefeitura Municipal de Angra dos Reis – 1989. Fonte: Angra: Plano Diretor – Primeira Fase, 1990, s.p. 4º ENCONTRO NACIONAL DE GRUPOS DE PESQUISA – ENGRUP, São Paulo, pp. 252-278, 2008. Este levantamento revela que 54 dos 71 loteamentos levantados são aprovados a partir da década de 1970. Destes, 47 o são após a conclusão da rodovia, ficando o distrito de Cunhambebe (2º distrito) com 28 loteamentos. É neste distrito também que se verifica o maior número de terrenos vagos à espera da valorização turística, conforme dados do Recadastramento – SERPRO 1981 (Quadro 4). Quadro 4 - Número de terrenos vagos segundo distritos 1º 2º 3º 4º 5º 6º distrito distrito distrito distrito distrito distrito Nº de terrenos vagos 1.313 10.929 2.303 3.123 101 154 % de terrenos vagos* 10% 60% 34% 71% 16% 31% Distritos * porcentagem de terrenos vagos em relação ao número de imóveis por distrito. Recadastramento SERPRO 1981. Fonte: Angra: Plano Diretor – Primeira Fase, 1990, S.P. O estudo da FEEMA mostra que o distrito de Cunhambebe possui 21 dos 54 loteamentos turísticos e/ou residenciais aprovados entre 1950 e janeiro de 1980 (Tabela 3). Quadro 5 - Nº e área dos empreendimentos turísticos. Angra dos Reis Local Nº de loteamentos Área ocupada Distrito Sede 19 176 has 2º Distrito Cunhambebe 21 592 has 3º Distrito Jacuecanga 10 196 has 4º Distrito Mambucaba 3 490 has 6º Distrito Praia de Araçatiba 1 47 has TOTAL 54 1.501 has Retirado de Guanziroli, 1983, p. 278 Baseado em dados do Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1981, Guanziroli (1992) afirma que apenas 20 dos 54 loteamentos apontados pela FEEMA Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 272 encontram-se em funcionamento. Tal fato ratifica que os loteamentos realizados se caracterizam por seus fins especulativos. É desta maneira que o litoral de Angra é loteado para a implantação de projetos como hotéis e condomínios de luxo, resorts e marinas, restringindo-se o acesso às praias, expulsando moradores, acarretando a ocupação desordenada, desestruturando atividades tradicionais e colaborando para a fragmentação do território municipal. A TERRITORIALIDADE DO TURISMO Fotos 1 e 2– Diferentes territórios, territorialidades excludentes Renata Corrêa. 25/12/06 Duas realidades distintas podem ser percebidas nas fotos 1 e 2: ao fundo, as casas possuem uma estrutura planejada, dispostas de maneira organizada em uma 273 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. porção privilegiada do sítio municipal. Em detalhe, a presença de marinas e de lanchas também nos indica o poder aquisitivo dos proprietários. Por outro lado, as casas situadas no primeiro plano da foto principal estão localizadas em morro da área central da cidade. Sua estrutura nos sugere a renda associada aos donos das mesmas. Distintas realidades, diferentes territórios, territorialidades excludentes. É desta maneira que se manifestam as diversas transformações ocorridas no município a partir da década de 1970, entre as quais destacamos aquelas cuja relação de causalidade se vincula ao turismo. Escolhemos o território porque, em sua essência e em sua multidimensionalidade, este conceito nos fornece o instrumental necessário para o entendimento de uma atividade que, como vimos se desenvolve apoiada em relações econômicas e políticas explicitamente assimétricas, com agentes cuja ação de influência e controle de áreas, recursos, atividades e pessoas corresponde a territorialidades que ocorrem em diferentes níveis escalares Sack (1986 apud SAQUET 2007). Uma abordagem territorial comporta ainda, segundo Saquet (2007), a natureza exterior ao homem e o processo histórico, ambos importantes para nosso trabalho. A primeira porque o substrato físico é a base da atividade turística em Angra dos Reis e condicionante de sua atual paisagem. E o segundo porque, para Saquet (2007[2001] p. 130-131) (...) o estudo do território ou dos territórios pode ser centrado no processo histórico (periodização dos elementos e momentos mais significativos e na análise dos principais agentes produtores do território e das principais mudanças e permanências ocorridas (...). Assim, consideramos essa perspectiva histórica ao analisarmos o Estado e os promotores imobiliários e as ações políticas consideradas por nós como as mais importantes para o desenvolvimento do turismo e de seus territórios, na tentativa de apontar os elementos e momentos acima referidos. Em Saquet (Ibid., p. 130) (...) o processo de apropriação e produção territorial pode ser compreendido reconhecendo-se a relação espaço-tempo, o domínio ou controle político, a apropriação simbólico-identitária e afetiva e, concomitantemente, a dinâmica econômica, em unidade, no processo Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 274 de reprodução da dominação social, em que o Estado e os agentes do capital se fundem histórica e incessantemente. Como resultado deste processo (BERTONCELLO, 1983, p. 125) caracteriza o município de Angra dos Reis, em finais dos anos oitenta, como “uma espécie de colcha de retalhos” coexistindo diferentes territórios “relativamente independentes, com atores e lógicas de gestão próprios”. Segundo o autor, alguns destes territórios estão ligados aos empreendimentos instalados no município nos anos anteriores, orientados por lógicas extra-locais e como não poderia deixar de ser, incompatíveis com as territorialidades existentes. Seriam eles os territórios dos grandes empreendimentos (TEBIG e Usinas Nucleares) e o da grande indústria (Verolme). Um outro território considerado por (BERTONCELLO, 1983, p. 126) é o das atividades de turismo e lazer também definido em função do projeto que lhe deu origem, de escala nacional, e pela sua implantação espacial: condomínios, hotéis e marinhas, todos relativamente fechados e autônomos, com fraco relacionamento com o local. Já vimos como têm sido apropriadas as melhores áreas (muitas vezes sem utilização, impossibilitando outros usos), num contexto onde o espaço físico não é muito apto. O caráter excludente e fechado deste modelo de gestão turística tem levado à permanentes conflitos com a população local, seja pelo das terras, seja pelo acesso ao mar e às praias. O caráter exógeno da população turística aumenta a desvinculação deste “território” da comunidade local. Outros dois territórios estão diretamente vinculados aos citados anteriormente, sendo o território da preservação ambiental e do tradicional, incluindo, neste, principalmente as áreas rurais. Especificamente em relação ao turismo, a territorialidade dos seus agentes (especuladores imobiliários - poder econômico – e o Estado em diferentes esferas de governo - poder político) contrapõe-se à territorialidade dos agentes associados aos territórios da preservação e do tradicional. Deste jogo de forças e de interesses, o que se verifica é a desestruturação das atividades agropecuárias bem como a expulsão de parte da população residente em áreas valorizadas pelo turismo, a geração de conflitos pela posse de terras, a privatização da natureza e a densa ocupação das encostas, entre outros. 275 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. O quadro a seguir (Box 1) traz um exemplo daquilo que Bertoncello denominou de territórios da atividade de turismo e lazer. Assim como os demais, Condomínio Porto Frade, Eco Resort de Angra dos Reis, Porto Real Resort, somente para citar alguns, o que se vê é a concretização de uma territorialidade hegemônica que esconde o feio, aquilo que não pode ser visto, a expressão oposta da realidade que é mostrada. Box 1 – Territórios fechados e exclusivos As terras em que hoje se localiza o condomínio Portogalo, abrigavam na década de 60 uma fazenda produtora de banana, Fazenda Itapinhoacanga. Hoje, um condomínio totalmente estruturado, 1.000 hectares de terras divididos em Glebas de B a M, com aproximadamente 600 casas alto suficientes. Com a criação do condomínio em 1975 foi construída uma vila com 40 casas destinadas à residência do pessoal da região. Possui 02 mercados, padaria, açougue, peixaria, Colégio Municipal Primário, Posto de Saúde, Igreja Católica e Evangélica garantindo assim abastecimento, integração e harmonia do condomínio. Em Portogalo o proprietário conta com 15 km de estradas pavimentadas, novas redes de água e luz, não precisando se preocupar com coleta de lixo, limpeza de rua e distribuições de água, tendo mananciais de água que são próprios e ficam acima da BR 101, longe de qualquer tipo de poluição. Os condôminos também contam com uma marina exclusiva, com capacidade para 400 barcos, em vagas secas e molhadas. Os condôminos contam com um sistema de segurança de padrão internacional, tendo seus funcionários treinados com cursos específicos de segurança e combate a incêndio, possuindo carros próprios, embarcações, rádios, visores noturnos, e monitoramento 24hs por câmeras. Fonte: site do Condomínio PORTOGALO CONSIDERAÇÕES FINAIS Angra dos Reis: contribuição ao entendimento de uma pretensa vocação turística pensando o turismo a partir do território, pp. 252-278. 276 Este trabalho tem a intenção de desmistificar o desenvolvimento da atividade turística no município de Angra dos Reis caracterizando a maneira como a mesma é instituída, lembrando que o desenvolvimento do turismo no município não é resultado da espontaneidade, mas da intencionalidade de agentes políticos associados aos imobiliários. Destacamos os principais momentos e agentes envolvidos neste processo e os resultados deste decorrentes, pois entendemos que assim é possível esclarecer alguns traços desta atividade em Angra dos Reis, os quais estão além de sua bela paisagem. Escolhemos o território porque, em sua essência e em sua multidimensionalidade, este conceito nos fornece o instrumental necessário para o entendimento de uma atividade que, como vimos se desenvolve apoiada em relações econômicas e políticas explicitamente assimétricas, que para o caso de Angra dos Reis é responsável por significativa fragmentação do seu espaço. 277 4º ENGRUP, SÃO Paulo, 2008. CORRÊA, R. S. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, José Vicente de. Turismo Fundamentos e Dimensões. 2.ed. São Paulo: Editora Ática, 1995. BERTONCELLO, Rodolfo V. Processo de modernização e espaço local: o caso do município de Angra dos Reis. 1992. 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