Malba Tahan versus Mello e Souza Adhemar N€brega, 1946 “Todavia, quem entra na casa 43 da rua Arthur Araripe vai encontrar, num confort‚vel gabinete, um autƒntico ocidental que pensa e age e vive segundo o nosso crit„rio de valores, verdadeiro burguƒs bem tratado (...).” ....................................................................... Malba Tahan versus Mello e Souza Adhemar N€brega, 1946. Entrevista publicada em peri€dico, 1946. Fonte desconhecida. Quem n†o conhece o professor J‡lio Cesar de Melo e Sousa, professor de matem‚tica, pai de famˆlia, sofrendo como tal os mesmos problemas decorrentes do abastecimento da dispensa dom„stica (s€ mesmo os potentados est†o hoje acima dessas dificuldades), h‚ de pensar, como n€s pens‚vamos em crian‰a, que Malba Tahan „ um velho s‚bio oriental, de vener‚veis barbas brancas, gestos pausados, olhar sereno e penetrante, vestido numa t‡nica branca e de turbante Š cabe‰a, perdido em solil€quios com os enigmas da ‚lgebra e da geometria. Todavia, quem entra na casa 43 da rua Arthur Araripe vai encontrar, num confort‚vel gabinete, um autƒntico ocidental que pensa e age e vive segundo o nosso crit„rio de valores, verdadeiro burguƒs bem tratado, desfrutando as mesmas alegrias, sofrendo e condenando os mesmos erros. O oriental, que vive como autor dos seus livros, n†o passa de uma atitude que ƒle adotou quando come‰ou a escrever, sob a sugest†o do estudo das matem‚ticas de que os ‚rabes se tornaram mestres. Assim, em vez de alfanges e cimitarras, vimos espalhadas por toda parte uma numerosa cole‰†o de sapos – sapos em lou‰a, em madeira, em jade, em bronze – s€ n†o h‚ sapos em carne e osso mas destes, em verdade, n†o conhecemos nenhum colecionador. Antes de procurarmos saber como o homem enveredara pelo gƒnero liter‚rio que o tornou conhecido em todo o Brasil, fomos atr‚s da origem do seu pendor liter‚rio. E demos, como acontece em tantos outros casos, com o talento de um estudante pobre. Mas vamos logo advertindo o leitor de que “o vencedor de €dios e esperan‰as” n†o significa nenhum qualificativo para um pregador da guerra nem para um sacerdote do otimismo. Que fale Malba Tahan para esclarecer o caso: “Em 1908 eu era aluno do internato Pedro II, que contava, no corpo docente, com o professor Jos„ J‡lio da Silva Ramos. Ele mandava que os alunos fizessem composi‰Œes, de preferƒncia sobre assuntos abstratos, - a Virtude, o •dio, a Injusti‰a, a Esperan‰a – em vez dos habituais temas de passeios pic-nics, festas e cartas entre amigos, como „ comum entre os professores de portuguƒs. Ora, acontece que para um estudante de 11 anos, uma reda‰†o sobre assuntos t†o vagos e imprecisos representava uma dificuldade e os meus colegas n†o escondiam o seu desapontamento. De uma feita, fiz uma reda‰†o sobre a “Esperan‰a” e n†o gostei. Fiz outra, deixando a primeira em cima da mesa. Um colega foi Š minha casa e encontrou o trabalho abandonado, pedindo-me para apresent‚-lo como seu, j‚ que eu n†o o queria. E ele tirou grau dez... N†o me interessei por saber. Apenas tomei conhecimento da sua gratid†o, traduzida num presente que dele recebi: uma pena nova e um selo do Chile. Ora, eu vivia em condi‰Œes extremamente difˆceis, como estudante pobre que era. Estudando no Internato, no Campo de S†o Crist€v†o, depois das aulas ia a p„ at„ a esta‰†o de S†o Francisco, onde tomava o bonde (pagava um tost†o) para chegar em casa, em Riachuelo. Levava uma vida de restri‰Œes, contando os tostŒes e os vint„ns. Talvez por isso mesmo, em face do sucesso da minha “Esperan‰a”, eu fui levado a fazer o raciocˆnio: se eu posso trocar uma reda‰†o por uma pena e um sƒlo, certamente ela me poder‚ render tamb„m alguns cobres. Data dessa „poca o meu “d„but” no profissionalismo liter‚rio. Desde esse dia, comecei a vender reda‰Œes aos colegas. E como os temas desses trabalhos, eram aqueles de que j‚ falei, eu era um autƒntico produtor e vendedor de virtudes, €dios, injusti‰as, crimes e outros ornamentos do espˆrito humano.” E o com„rcio rendia bastante? “Um sucesso. A cota‰†o dos produtos variava de 200 a 400 reis, chegando excepcionalmente at„ 600, nos casos em que eu citava Carolina Michaelis. Passei a andar menos a p„, dando-me ao luxo de pagar bonde para os colegas.” Mas a que se devia o pre‰o de exce‰†o para os trabalhos que citavam aquela escritora? “Ž que o professor Silvia Ramos frequentemente falava no nome dela, invocava o seu testemunho sobre assuntos linguˆsticos e sempre o fazia com respeito. Entretanto, talvez gra‰as Š malˆcia pr€pria da nossa idade, pens‚vamos que Carolina Michaelis fosse uma dona qualquer, moradora nas imedia‰Œes do col„gio e a quem o professor dedicasse interesse extra-professoral... Bem, vocƒ entende o que „ que n€s pens‚vamos...” “Quando saˆ do Internato, entrei para a Escola Polit„cnica e comecei a trabalhar na Biblioteca Nacional, onde tinha oportunidade de um permanente contacto com os livros. N†o demorei muito, todavia. Pouco tempo depois passei a lecionar no Pedro II, entrando cedo para a carreira a que tenho me mantido fiel, paralelamente Šs minhas atividades como escritor.” E a identifica‰†o que se percebe, nos seus livros, com os assuntos, o ambiente e a psicologia dos orientais, particularmente dos ‚rabes? “Como j‚ disse, a matem‚tica me levou desde muito cedo a considerar com simpatia a civiliza‰†o do pr€ximo oriente, onde ela teve grande florescimento. Depois, dediquei-me mais fundamente no assunto, estudando o Islam durante 5 anos. Com o professor Jean Achar, estudei ‚rabe, aperfei‰oando-me nos conhecimentos sobre a lˆngua e costumes com o professor Ragi Basili, grande erudito.” E quanto ao pseud•nimo? “Malba „ o nome dado ao lugar em que se abrigam as ovelhas para ordenha, conforme, ali‚s, explica o professor Suleiman S‚fady no pref‚cio de um op‡sculo sobre a minha obra. A melhor tradu‰†o em nossa lˆngua „ aprisco. Tahan, que em ‚rabe se pronuncia com o h aspirado, quer dizer moleiro. Entretanto, escolhi o meu Tahan do nome de uma aluna que tive na Escola Normal: Maria Zachsuk Tahan. Durante 15 anos conservei o pseud•nimo sem que ningu„m suspeitasse que o pacato professor Melo e Sousa era o autor das hist€rias orientais de que est†o cheios os meus livros. Isso, at„ que Humberto de Campos descobriu a mistifica‰†o. Continuarei entretanto a us‚-lo.” E o professor Mello e Souza passa a falar de outras mistifica‰Œes liter‚rias que se tornaram famosas em todo o mundo, originando equˆvocos entre grandes eruditos. “Ž o caso, por exemplo, dos Cantos de Ossian. Houve em todos os meios liter‚rios e particularmente na Inglaterra um verdadeiro movimento em torno de Ossian. Apareceu uma numerosa bibliografia sobre o assunto e muitos eruditos se dedicaram ao ossianismo, tal o interesse que despertou a nova corrente de poesia, empregando expressŒes rudes, esquisitas, para traduzir grandes momentos de beleza e emo‰†o artˆstica. No entanto, Ossian nunca existiu sen†o na pele do poeta inglƒs Mac Pherson, autor do “bloeuf” espetacular.” Diante disso, o rep€rter vai fazendo uma revis†o nos seus parcos conhecimentos de literatura que incluˆam Ossian, como um cidad†o que tivesse existido. E o teatro de Clara Gazou? – continua o entrevistado. “Clara Gazou apareceu na Europa como teatr€loga, suscitando enorme interesse. Pudera! Era nem mais nem menos do que Merim„, Prosper Merim„! Aqui no Brasil”, - prossegue o escritor empolgado pela lembran‰a das mistifica‰Œes como a dele -, “durante muito tempo, as Sextilhas do Frei Ant†o jamais deram a entender a quem as leu que se tratava de uma obra de Gon‰alves Dias, que as comp•s para demonstrar que era capaz de escrever em estilo diferente do seu indianismo”. A essa altura o rep€rter se lembra da mistifica‰†o n†o menos ousada e t†o sensacional quanto as que mais o sejam, em que se empenhou o grande violinista Fritz Kreisler, apresentando em todo o mundo, com o prestˆgio do seu nome, composi‰Œes que havia descoberto em meio a velhos pap„is, na Espanha. Eram obras de violinistas do s„culo XVIII, ainda in„ditas, que despertaram, entre os music€logos, um interesse fora do comum. No entanto, soube-se, depois, gra‰as ao mesmo Kreisler (se n†o nos enganamos) que as ‚rias, gaivotas, bourr„es e outras dan‰as, que ele tocava para assistƒncias cultas, atribuindo-as a compositores falecidos a cerca de duzentos anos, eram dele mesmo. O professor Melo e Sousa esta satisfeito com o seu Malba Tahan? “O nome j‚ tem uma repercuss†o bem apreci‚vel. Muitas crian‰as tƒm sido batizadas com o nome de Malba, em alguns casos eu recebo a afetiva comunica‰†o. At„ mesmo acidentes Geogr‚ficos. No municˆpio de S†o Domingos, no Alto Rio Doce, existe uma lagoa a que o propriet‚rio deu o nome de Malba, leitor assˆduo que era das hist€rias dos Nagib, dos Beremis, dos Ben-Nadim e outros personagens dos meus livros”. Muitas dessas pessoas, certamente, desconhecem que o seu querido contador de historias „ o homem simples e pacato, que temos Š nossa frente, bem vestido Š ocidental, fumando cigarros tipo americano, em vez do complicado “narguille”, sapatos comuns a todos n€s, em vez de sand‚lias, fazendo “blagues” dentro do nosso modo de pensar, desfrutando a vida como um “bon-vivant” malgrado a falta de caf„, de f€sforo, de leite, de tudo. Achamos que o professor Melo e Sousa devia fazer todo possˆvel para conservar, o mais possˆvel, a mistifica‰†o em torno do nome do autor dos seus livros. Por mais simpatia que ele desperte como professor, por mais nobres que sejam as suas qualidades morais como J‡lio Cesar de Melo e Sousa e por mais sonoro e robusto que seja este nome, seria preferˆvel a gente continuar alimentando a ilus†o de que, ao ler os contos de “Lendas do c„u e da Terra”, est‚vamos conversando com um velho s‚bio, vendo o seu sorriso sereno e tranq•ilo, sentindo o brilho do seu olhar perscrutador, verdadeira janela aberta para o conhecimento do mundo e dos homens. Ali‚s, somos contra todas as “descobertas” dessa natureza. Tais mistifica‰Œes fazem muito menos mal Š humanidade que outras tantas realidades nuas e cruas como o aumento do custo de vida, o desaparecimento do leite e da farinha de trigo, o “avan‰a” do cambio negro e outras mais que n†o tem nada de maravilhoso, sen†o para os bolsos dos especuladores... Ficamos ainda alguns momentos conversando com o autor de “A sombra do arcoˆris”, que considera, juntamente com “O homem que calculava”, a sua melhor obra. Al„m disso, Malba Tahan falou-nos do prazer que lhe d‚ o jogo de xadrez e convidou-nos para uma partida. Recusamos com delicadeza. Seria vergonhoso dar ao escritor uma demonstra‰†o da nossa ignor‘ncia nos segredos do tabuleiro. Como ‚rabe, ele n†o nos perdoaria, embora talvez o compreendesse como fil€sofo. Em todo caso, recusamos. Era preferˆvel gozar a sua palestra, a sofrer a investida dos seus peŒes e dos seus cavalos, assim como o avan‰o implac‚vel das suas torres bem protegidas. Mas Allah n†o quis dar-nos essa gra‰a. Toda a impress†o que havˆamos forjado para a nossa conversa desapareceu, como por encanto, quando soou, impertinente, a sineta no amplo sal†o, avisando que ia ter inˆcio o almo‰o. Est‚vamos no Autom€vel Clube, aguardando o almo‰o do Rotary, para o qual nos convidara, n†o o s‚bio Malba Tahan mas o professor J‡lio Cesar de Melo e Sousa, pertencente a esta sofredora fauna humana do Distrito Federal, que bebe mate gelado quando pretende tomar caf„ e come broa de milho dizendo que „ p†o. Nada mais havia de maravilhoso... Tudo se desvanecera. Tudo, n†o! O Rotary nos reservava uma agrad‚vel surpresa. E que o p†o servido no almo‰o era de trigo. Fazendo as honras de anfitri†o, o professor Melo e Sousa diz com espˆrito para o rep€rter: “Vocƒ n†o sabe que os rotarianos s†o homens de bem que se re‡nem para passar mal?” N†o, respondemos, empolgados pelo p†o de trigo, que come‰‚ramos a mastigar devagarinho para prolongar por mais tempo aquele alimento t†o comum h‚ uns cinco anos e hoje uma preciosidade mais rara do que leite puro e as tesouras marca “Corneta”. Sim senhor. P†o de trigo. A ilus†o de prosperidade era encantadora. Est‚vamos gozando um prazer hoje reservado, talvez, somente ao Pal‚cio Guanabara, ao Rotary Clube e Š mulher do padeiro...