A Virada Anti-historicista de Kuhn
The Kuhn's Anti-historicist Turn
Eduardo Salles O. Barra
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Paraná
[email protected]
Resumo
Thomas Kuhn é sempre lembrado com um dos principais expoentes da chamada
“filosofia história da ciência”. Todavia, numa conferência proferida em 1991, sob o
título “Trouble with the historical philosphy of science”, Kuhn dirige duras críticas a
essa orientação dos estudos sobre a ciência. O objetivo deste trabalho é reconstruir
sucintamente o que poderiam ser os pontos de convergência entre o primeiro grande
trabalho filosófico de Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), e a filosofia
histórica da ciência. Em seguida, serão discutidos os argumentos apresentados na
conferência de 1991, procurando elencar e analisar os novos pontos de divergência com
a filosofia histórica da ciência e as alternativas que Kuhn sugere para seus “equívocos”.
Por fim, será feito um exercício de estender as alternativas proposta por Kuhn a outras
abordagens das práticas científicas, em particular, ao estudos sociais da ciência (SSS).
Palavras-chaves
historicismo, racionalidade, programa forte em sociologia do conhecimento
Abstract
Thomas Kuhn is always celebrated as one of the leading exponents of so-called
"historical philosophy of science". However, in a lecture given in 1991 under the title
"Trouble with the philosphy of historical science," Kuhn directs harsh criticisms to this
approach in science studies. The objective of this work is to reconstruct briefly what
could be the points of convergence between the first major philosophical work of Kuhn,
The Structure of Scientific Revolutions (1962), and the historical philosophy of science.
Then it will be discussed the arguments present at the conference in 1991, looking to list
and analyze the new points of disagreement with the historical philosophy of science
and the Kuhn's alternatives for its "troubles". Finally, an exercise will be done to extend
the Kuhn's alternatives to other approaches of scientific practices, in particular, the
social studies of science (SSS).
Keywords
historicism, rationality, strong program in sociology of knowledge
O nome de Thomas Kuhn (1922-1996) foi muito precocemente incorporado ao
grupo dos partidários da assim chamada “filosofia histórica da ciência” (historical
philosophy of science). É comum ver o nome de Kuhn colocada ao lado de outros tais
como Feyerabend, Lakatos e Laudan quando se trata de nomear os principais
promotores da "virada histórica" que abalou as bases da filosofia da ciência de matriz
empirista ao longo das décadas de 60 e 70 do séc. XX (ver, por exemplo, Laudan, 1996,
p. 126 e 137-138). Essa concepção, na visão de um dos seus principais divulgadores,
apropria-se da história da ciência, assim como a análise das práticas cientificas
contemporâneas, a fim de prover suas análises sobre as bases epistemológicas do
conhecimento científico de "informações empíricas sobre as freqüências relativas com
que vários meios epistêmicos são convenientes para promover diversos fins
epistêmicos." Assim, as normas ou regras metodológicas "são sustentadas por teorias
sobre os meios de condução da investigação" que se "comportam funcionalmente no
sistema do conhecimento precisamente do mesmo modo que outras teorias
[empíricas]...” (Laudan (1996:156; os itálicos são meus).
Quando a “filosofia história da ciência” é assim compreendida, Kuhn parece, sob
muitos aspectos, plenamente bem aclimatado aos seus objetivos e às suas práticas
analíticas. Todavia, numa conferência proferida em 1991, sob o título “Trouble with the
historical philosphy of science”, Kuhn dirige duras críticas a essa orientação dos estudos
sobre a ciência. O objetivo deste trabalho é reconstruir sucintamente o que poderiam ser
os pontos de convergência entre o primeiro grande trabalho filosófico de Kuhn, A
Estrutura das Revoluções Científicas (1962), e a filosófica histórica da ciência,
representada pelo nomes acima mencionados. Em seguida, serão discutidos os
argumentos apresentados na conferência de 1991, procurando elencar e analisar os
novos pontos de divergência com a filosofia histórica da ciência e as alternativas que
Kuhn sugere para seus “equívocos”. Por fim, será feito um exercício de estender as
alternativas proposta por Kuhn a outras abordagens das práticas científicas, em
particular, ao estudos sociais da ciência (SSS). Devo advertir que essa última etapa do
trabalho a seguir será bastante facilitada pelo fato de que o próprio Kuhn – ao menos da
referida conferência de 1991 – não fazer distinção entre a filosofia histórica da ciência e
o programa forte em sociologia do conhecimento. Sobre as razões dessa indistinção,
será apresentada na conclusão uma breve especulação. O ponto de partida dessa
especulação serão as seguintes considerações de Alexander Bird: "Por um período de
tempo durante os anos 1960 e 1970, parecia haver um paradigma kuhniano na 'filosofia
histórica da ciência', que estava florescendo especialmente nos recém-formados
departamentos de história e filosofia da ciência. Mas, à medida que uma parte mais
significativa da história da ciência e dos science studies passaram a ser envolvidos,
Kuhn repudiou os desenvolvimentos mais radicais feitos em seu nome. Com efeito,
parte da fama de Kuhn advém do fato de que tanto os seus partidários quanto os seus
detratores tomaram seu trabalho como sendo muito mais revolucionário (antiracionalista, relativista) do que ele realmente era." (Bird, 2009).
1. É um truísmo afirmar que histórias de disciplinas científicas particulares são muitas
vezes urdidas com exclusivos propósitos de autojustificação das teorias então em vigor
nessas disciplinas. O principal legado historiográfico d'A Estrutura das Revoluções
Científicas (1962), de Thomas Kuhn, foi precisamente mostrar que esse não é um
expediente meramente acidental ou mero fruto da ignorância histórica daqueles que o
empreendem. Ao contrário, trata-se de um expediente nitidamente funcional, destinado
frequentemente a fornecer os únicos meios pelos quais os defensores da teorias assim
justificadas poderiam reivindicar a sua aceitação pelos demais praticantes da mesma
disciplina. A lição filosófica que disso resulta é que não há razões epistemológicas
suficientes para absolutizarmos quaisquer pretensões de racionalidade e de progresso
com respeito às atuais teorias científicas – os juízos sobre a aceitabilidade de teorias
científicas particulares são sempre relativos às demais teorias disponíveis no mesmo
campo científico. Segundo Kuhn, a superioridade das teorias científicas mais recentes
não pode ser melhor traduzida do que em termos de sua "habilidade demonstrada para
formular e resolver quebra-cabeças apresentados pela natureza." (Kuhn, 1975, p. 252)
Nenhuma teoria, portante, pode sustentar-se como tal; todas apenas se sustentam ou não
se sustentam relativamente às suas antecessoras com as quais parecem tipicamente se
confrontar. "A ciência natural, apesar da tendência anti-histórica que freqüentemente
conforma os meios pelos quais é ensinada e transmitida, não pode escapar ao seu
passado." (MacIntyre, 1984, p. 44). A reconstrução autojustificadora do passado de uma
disciplina científica deixa, assim, de ter um papel apenas acessório e complementar na
sustentação de suas teorias atualmente aceitas para, em muitas circunstâncias, tornar-se
responsável pela explicitação das únicas virtudes epistêmicas que as tornariam
preferíveis com relação a suas antecessoras.
A contraparte desse modelo kuhniano de justificação das preferências teóricas
em vigor é a relativa autonomia da história da ciência em relação ao estágio atual de
desenvolvimento das ciências naturais. A suposição de um certo nível de
incomensurabilidade entre os diferentes paradigmas impede que avaliações estritas de
suas respectivas virtudes epistêmicas possam ser efetuadas. Isso explicaria por que é
imprescindível descrever as teorias científicas do passado "em seus próprios termos",
explicitando os problemas que estiveram presentes à mente de seus autores e as
conversações que de fato mantiveram com seus contemporâneos ou seus antecessores.
Adicionalmente,
esse
quadro
proporcionado
pela
noção
kuhniana
de
incomensurabilidade – problemática, como bem se sabe – permite conferir
razoabilidade aos frequentes reptos de anacronismo dirigidos a certos historiadores das
ideias do passado; afinal, como mostra a historiografia estruturalista, talvez não se
disponha de uma noção melhor para promover a defesa da "alteridade do passado".1
Por estas breves considerações sobre perdas e ganhos proporcionados à filosofia
da ciência do século XX pela Estrutura de Kuhn, nota-se que, para o bem o para o mal,
ele introduziu definitivamente a história no domínio das análises epistemológicas,
metodológicas, axiológicas etc. das práticas científicas. Disso resultou um novo enfoque
para esses temas filosóficos que logo passou a ser conhecido como um novo
"historicismo" ou, simplesmente, como uma inesperada filosofia "histórica" da ciência.
No verbete "historial theory of rationality" da famosa Enciclopédia de Filosofia
de Stanford, Carl Matheson argumenta que o historicismo na filosofia da ciência é
relativamente recente e ele teve início com a publicação da Estrutura de Kuhn em 1962.
Matheson enumera três grandes transformações que o trabalho de Kuhn produziu nos
estudos sobre a racionalidade científica. Primeiro, e mais importante, "ele trouxe a
história à tona" (it brought history to the fore). Segundo, substituiu as teorias científicas
1
Uma posição diametralmente oposta é defendida por Rorty, para quem nada se pode objetar ao
anacronismo de certas reconstruções racionais das idéias do passado, exceto questões meramente
verbais tais como se suas reconstruções "tornam claro o que realmente os filósofos do passado
disseram" ou se assim estamos "realmente" fazendo história. Segundo Rorty, uma explicação do
pensador morto tanto "em seus próprios termos" quanto "em nossos termos" – mesmo reconhecendo
que neste último caso o pensador poderia repudiar esses termos por serem estranhos a seus interesses e
suas intenções – são tarefas cujo contraste "não deveria ser expresso como o contraste entre descobrir o
que pensador morto pretendia e descobrir se o que ele dizia era verdade." (Rorty, 1984, p. 54) Isso
porque a noção de significado não oferece nenhuma base para favorecer o contexto contemporâneo do
autor em detrimento do contexto mais imediato e familiar ao leitor moderno. Em relação ao significado
ou ao conteúdo de uma asserção, a resposta do interlocutor a uma questão que não lhe havia ocorrido
na sua época deve ser tão reveladora quanto uma questão que esteve presente à sua mente. A verdade,
por sua vez, guarda o mesmo caráter contextual do significado, tanto que não poderiam ser atribuídos
separadamente. Haverá, assim, tantas verdades (ou falsidades) significativas a serem encontradas nos
trabalhos dos filósofos quantos forem os diferentes contextos importantes nos quais puderem ser
inseridos.
como unidades de avaliação racional por complexos mais amplos que poderiam persistir
a pequenas alterações teóricas realizadas no seu interior, mas que eventualmente seriam
rejeitados em bloco. A esses complexos Kuhn chamou "paradigmas". Terceiro, o
trabalho de Kuhn focalizou os problemas reais que uma explicação historicamente
orientada da racionalidade deveria enfrentar, quais sejam: "ao final das contas, não pode
haver nenhuma regra trans-histórica para os procedimentos científicos racionais"
(Matheson, 2009).
2. O aspecto talvez mais surpreendente da conferência "O problema com a filosofia
histórica da ciência", proferida por Kuhn em 1991 e publicada na coletânea de textos
intitulada O Caminho desde a Estrutura (Kuhn, 2006), não é propriamente que Kuhn se
indisponha com a tradição filosófica da qual era reconhecidamente um dos seus mais
eminentes propagandistas. O mais surpreendente é que ele não se dirija a qualquer um
dos seus antigos interlocutores nem a si mesmo ou às idéias que defendera num passado
ainda não muito remoto – cerca de 30 anos antes. Nas suas palavras, ele se dirige a uma
"geração que se seguiu à minha" responsável por "uma nova espécie de estudos
históricos e, mais especialmente, sociológicos que a obra de minha geração ajudou a
suscitar." (Kuhn, 2006, p. 138) A menção aos estudos sociológicos é a dica para
aguardar um imediata especificação dessa geração como sendo aquela formada pelos
proponentes do "programa forte". Kuhn acusa-os de não compreenderem as
circunstâncias que envolvem a chamada "negociação" nos processos voltados a
produção de consensos consecutivos a qualquer grande mudança científica, consensos
esses que, embora não surjam desse modo, carecem para se legitimarem do
estabelecimento de fatos nos quais possam se apoiar as novas leis ou teorias propostas.
A negociação é um processo contendo um duplo aspecto: um factual, outro
interpretativo, que surgem concomitantemente e moldam-se mutuamente. "Tal processo
é claramente circular, e fica muito difícil ver que papel a experimentação poderia ter na
determinação de seu resultado." (Kuhn, 2006, p. 138) Na ausência de uma clara
compreensão desse fator, passou a ser "admitido – em particular, por sociólogos e
cientistas políticos – que as negociações na ciência, como em política, na diplomacia,
nos negócios e em muitas das outras esferas da vida social, seriam governadas por
interesses, e seu resultado tido como determinado por considerações de autoridade e
poder." (Kuhn, 2006, p. 139) Os que assim pensavam destituíam imediatamente a
natureza de qualquer papel no desenvolvimento das crenças científicas. Saí, portanto, a
natureza e em seu lugar entram os interesses e os instrumentos de poder. Interpretandoas desse modo, Kuhn admite incluir-se "entre aqueles que consideram absurdas as
afirmações do programa forte: um exemplo de desconstrução desvairada" (Kuhn, 2006,
p. 139). Mas o que ele enxerga de propriamente equivocado nas análises que promovem
é a incapacidade de perceber que "talvez o conhecimento, entendido de forma
apropriada, seja o produto justamente dos processos mesmos que esses novos estudos
descrevem." (Kuhn, 2006, p. 140)
Essa última afirmação de Kuhn é bastante enigmática. Deixemos a sua discussão
para a próxima seção. Por enquanto, importa-nos discutir minimamente aquela que
parece ser a tese anti-historicista mais contundente de Kuhn, a saber:
"Sugeri, logo ao início desta conferência, que os filósofos/historiadores da minha geração
víamos a nós mesmos como construtores de uma filosofia baseada em observações do
comportamento científico real. Olhando para trás, penso que essa imagem do que
tencionávamos fazer é enganadora. Dado aquilo que denominarei a perspectiva histórica,
podem-se inferir muitas das conclusões fundamentais a que chegamos sem praticamente
nenhum recurso aos próprios registros históricos." (Kuhn, 2006, p. 140; os itálicos são
meus)
À primeira vista, as últimas palavras de Kuhn sugerem a completa irrelevância da
história da ciência para qualquer finalidade de ordem filosófica; pois, afinal, poucas ou
mesmo nenhuma das "conclusões fundamentais" dependeriam estritamente de registros
históricos para serem inferidas. Mas, lido com mais atenção, o período não parece
autorizar a crença de que a história da ciência fosse para seus objetivos filosófica da mai
solene irrelevância. Na passagem acima, Kuhn parece contrastar "perspectiva histórica"
e "registros históricos". Somente os últimos seriam irrelevantes. A perspectiva histórica,
ao contrário, seria indispensável. Ela deve permitir, entre outros, aquela que será a
grande revisão do kuhnianismo confirme o conhecemos desde a Estrutura.
Mas se não fossem derivadas dos registros históricos, como Kuhn e seus
partidários poderiam ter alcançado as suas conclusões fundamentais? Ele próprio
responde: a partir de primeiros princípios. Ora, é impossível não ver nisso um clara
adesão a uma perspectiva apriorista ou anti-empirista nos negócios da filosofia da
ciência,pois, afinal, tudo que o caráter de genuínos "primeiros princípios" deveria
preceder qualquer tipo de investigação empírica e, portanto, histórica. Essa primeira
impressão somente minimizada porque, recordemos, a perspectiva histórica está
mantida. E ela se mantém na medida em que esses princípios princípios seriam
mobilizados em favor de um objetivo que tem tudo a ver com a história: "compreender
pequenas mudanças incrementais de crença" (Kuhn, 2006, p. 141; itálico do autor). E o
que se ganha enfrentando esse problema a partir de primeiros princípios e não com o
apoio miríades de registros históricos? Kuhn é o mais direto possível: "a abordagem que
parte de princípios gera uma concepção muito diferente daquilo que está em jogo nos
processos avaliativos que têm sido frequentemente associados a conceitos tais como
razão, evidência e verdade"(Kuhn, 2006, p. 141).
Mas nada disso é imediatamente claro. A mudança que Kuhn pretende operar na
compreensão desses "processos avaliativos" é relativamente claro: ele pretende
substituir a "racionalidade da crença" pela "racionalidade da mudança incremental de
crença". A razão da substituição de "crença" por "mudança incremental de crença"
como foco das análises filosóficas da ciência está certamente vinculada à chamada
perspectiva histórica defendida por Kuhn. Mas por que diabos Kuhn insiste em manterse fiel ao vocabulário da tradição e falar insistentemente de racionalidade? Não é fácil
responder essa pergunta, mas aqui encontramos talvez o fio que faltava ser ligado: os
primeiros princípios. O argumento geral de Kuhn poderia, então, ser assim
parafraseado: derivar as conclusões fundamentais dos seus estudos a partir de primeiros
princípios, tem a vantagem para Kuhn de lhe possibilitar colocar ao alcance de sua
perspectiva histórica conceitos que estiveram à margem dos partidários do "programa
forte". Para tanto, basta que os tais processos avaliativos sejam encarados da perspectiva
das mudanças incrementais de crença.
Vejamos um exemplo disso. A tradição sustentou que a racionalidade de uma
determinada crença estava associada ao fato de serem sustentadas por observações
neutras. Diferentemente disso, Kuhn argumenta que
"A plataforma arquimediana tradicional fornece uma base insuficiente para a avaliação
racional de crenças, fato explorado pelo programa forte e seus semelhantes. Da perspectiva
histórica, contudo, pela mudança de crença é o que está em questão, a racionalidade da
conclusões exige apenas que as observações invocadas sejam neutras para os – ou
compartilhadas pelos – membros do grupo que toma a decisão, e para eles somente no
momento em que a decisão está sendo tomada. (…) É simplesmente irrelevante que
algumas ou todas essas crenças possam ser postas de lado em alguma época futura. Para
que forneçam uma base à discussão racional, elas só precisam (…) ser compartilhadas por
aqueles que estão discutindo. Não há nenhum critério da racionalidade da discussão mais
elevado do que esse." (Kuhn, 2006, p. 142)
O equívoco do programa forte – e, com ele, de toda a filosofia histórica da ciência – foi,
portanto, aderir à perspectiva da tradição e ignorar a possibilidade de uma genuína
"perspectiva histórica" sobre a racionalidade. É bem provável que seja exatamente isso
que Kuhn tinha em mente quando, acima, especulou que "talvez o conhecimento,
entendido de forma apropriada, seja o produto justamente dos processos mesmos que
esses novos estudos descrevem" (Kuhn, 2006, p. 140), isto é, que o programa forte
poderia ser curado de seus equívocos se levasse a sério aquilo que ele mesmo ajudou a
trazer à tona – que, para Kuhn, seria a incontornável perspetiva histórica ou, o que é o
mesmo, a mudança incremental de crença.
3. Por que "mudança incremental de crença"? Creio que o melhor modo de compreender
a insistência de Kuhn sobre esse ponto é reforçar sua tentativa de inserir a ciência como
mais um caso de um "processo de desenvolvimento ou evolução". Eis-nos novamente
diante de mais um dos acalentados "primeiros princípios", em cuja consideração Kuhn
acredita que esteja a chave para melhor compreender os processos avaliativos e,
consequentemente, o conhecimento científico.
Na conferência de 1991, Kuhn retoma algo que havia feito também de maneira
ilustrativa e alusiva na Estrutura. Trata-se de associar as suas idéias sobre a mudança
científica aos cânones da evolução darwiniana. Dessa vez, Kuhn volta-se ao
evolucionismo para traçar paralelos com suas noções de ajuizamento comparativo e de
evolução sem finalidade: "uma avaliação comparativa é tudo de que dispomos. O
desenvolvimento científico é, como a evolução darwiniana, um processo empurrado por
trás em vez de puxado em direção a algum objetivo fixo do qual ele se aproxima cada
vez mais" e, ele próprio acrescenta logo adiante, "o que a avaliação procura selecionar
não são crenças que correspondem a um mundo externo real, mas, simplesmente, ao
melhor dentre dois, ou melhor dentre todos os corpos de crença efetivamente
apresentados..." (Kuhn, 2006, p. 145 e 149)
Mas, se a mudança incremental de crença deve ser interpretada segundo esses
parâmetros, por que o programa forte não poderia incorporá-la entre os seus
pressupostos e aos seus modelos explicativos baseados em interesses e instrumentos de
poder? Creio que nos últimos anos muitos dos partidários do assim chamado programa
forte deram passos significativos nesse sentido. Em particular, a necessidade de uma
compreensão do que possa ocupar o lugar de uma natureza fixa e externa às teorias
parece mobilizar intensamente muitos deles e de seus opositores mais próximos (cf.
Barra, 2009). Todavia, não creio que isso seria suficiente para convencer Kuhn a revisar
suas críticas aos desvarios do programa forte. Num sentido que pretendo ainda melhor
desenvolver, a preocupação central de Kuhn na época da conferência em Harvard era
menos encontrar um papel distinto daquele atribuído pela tradição para a natureza no
controle das mudanças incrementais de crenças. A sua mais contundente preocupação
era em circunscrever um espaço para que genuínos primeiros princípios pudessem
tomar parte na perspectiva histórica sobre a ciência. Tudo indica que o programa forte
jamais possa vir a concordar com Kuhn nesse ponto, sob risco ver degenerar-se
integralmente o seu mais acalentado historicismo.
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_______. O problema com a filosofia histórica da ciência in _______. O Caminho
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