I
PRÓLOGO NO CÉU
Q
uando me reúno com os criadores de outros universos, sempre
faço o possível para ser modesto. Em vez de me gabar do meu
trabalho, eu os elogio pela beleza e pela complexidade do trabalho deles.
Mas, privadamente, não posso deixar de achar o meu superior, porque
sou o único que pensou em algo tão imprevisível como a humanidade.
Que espécie! Ao vê-los vivendo seus destinos sobre a Terra, muitas vezes fico empolgado quase a ponto de acreditar neles. Sim, eles me
dão a estranha impressão de serem providos de autonomia, livre-arbítrio, uma vontade própria. Sei que é apenas uma ilusão, uma idéia
despropositada. Eu sou o único livre! Cada reviravolta de seus destinos
foi decidida antecipadamente; somente eu sei aonde eles estão indo e
quais caminhos percorrerão para chegar lá; somente eu conheço suas
esperanças e seus medos secretos, suas constituições genéticas, as mais
escondidas engrenagens de seus corações... E ainda assim, ainda assim... eles nunca deixam de me espantar.
Ah, meus doces humanos. Fico tão inquieto ao vê-los sofrer e se
debater. Cegos, cegos... eternamente esperando e tateando, esforçando-se
por acreditar na minha bondade, descobrir o sentido de seus destinos,
entender os meus planos. Simplesmente não conseguem evitar a busca
por um significado. Tudo o que preciso fazer é tocá-los de leve com o
nascimento ou com a morte, e eles pensam que o encontraram. Impressionam-se todas as vezes. Ficam absolutamente abalados.
Veja por exemplo esses homens e mulheres reunidos na casa de
Sean Farrell. Não há nada de diferente em relação a eles, embora todos
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se considerem (esta é uma das especificidades hilariantes da espécie humana) o centro do universo. Eles não são especialmente interessantes,
estranhos nem loucos. A maioria é branca, a maioria não é mais jovem, a maioria é de judeus e cristãos que oscilam entre o agnosticismo e
o ateísmo. Apesar de vários terem nascido em outras partes do planeta,
eles se reuniram para passar a noite perto do limite leste da mancha
de terra que, durante o estalar de dedos de uns duzentos anos, autodenomina-se Estados Unidos da América.
Por que essa história em especial? Por que essas pessoas, esse lugar e esse período? Ora, o fato de ter lido meu próprio trabalho de
frente para trás e de trás para frente um número incalculável de vezes
não significa de modo algum que eu não tenha meus momentos favoritos, meus episódios preferidos da história da humanidade. A Guerra
dos Cem Anos, por exemplo. A morte de Cleópatra. O jantar de Ação
de Graças na casa de Sean Farrell, por volta de 2000... Não há por
que procurar razões. Tudo o que posso dizer é que uma profusão de
pequenas coincidências e convergências inesperadas transformou esse
jantar num poema. Repentinamente belo. Repentinamente dramático.
Chamas de fúria, tempestades de riso.
Então aqui estão eles, e, em vez de mergulhar in medias res
num grupo de perfeitos estranhos, permitam-me listar quem é quem
para auxiliar com uma orientação inicial.
Para começar, Sean Farrell. Nascido em 1953 em County Cork,
na Irlanda. Poeta e professor de poesia na universidade.
O círculo mais próximo é formado por pessoas que conhecem e
amam Sean. Outros dois também são professores – Hal Hetherington,
romancista, nascido em 1945 em Cincinnati, Ohio, e Charles Jackson,
poeta e polemista, nascido em 1960 em Chicago, Illinois. Duas são
ex-amantes de Sean – Patrizia Mendino, secretária, nascida em 1965
em South Boston, e Rachel, professora de filosofia, nascida em 1955 na
cidade de Nova York. Três tiveram relacionamentos profissionais com
Sean que acabaram evoluindo para amizades de intensidades variadas
– seu advogado, Brian, nascido em 1953 em Los Angeles, Califórnia, o
pintor de sua casa, Leonid Korotkov, nascido em 1933 em Shudiany,
na Bielo-Rússia, e o padeiro, Aron Zabotinsky, nascido em 1914 em
Odessa, Ucrânia.
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Os demais presentes, que formam o círculo externo, foram à
casa de Sean para o jantar de Ação de Graças sobretudo porque seus
companheiros haviam sido convidados. São eles a mulher de Leonid,
Katie, nascida em 1948 na Pensilvânia (e que administra uma loja
de artesanato); o marido de Rachel, Derek, nascido em 1954 em Metuchen, Nova Jersey (que também é professor de filosofia); a mulher
de Brian, Beth Raymondson, nascida em 1957 em Hammondsville,
Alabama (médica); a nova mulher de Hal, Chloe, nascida em 1977 em
Vancouver (cuja profissão revelarei no devido tempo), e o filho deles de
onze meses, Hal Junior.
Aqui estão eles, portanto, reunidos numa história que um romancista contaria da mesma maneira como os seres humanos gostam
que as histórias sejam contadas – com protagonistas e antagonistas,
um clímax e um desenlace, um final feliz ou trágico. Mas de onde eu
estou, nada jamais “acontece”, há apenas uma espécie de redemoinho,
um caos infinitamente intrincado de causas e efeitos. Por motivos óbvios, contar histórias não faz parte da minha natureza. Não sou nem
um pouco talentoso para prolongar a ação, revelar isso, protelar aquilo, construir suspense. Como o tempo foi uma invenção minha, todos
os momentos do tempo são simultaneamente presentes para mim, e
posso passar os olhos rapidamente de uma ponta à outra da eternidade. Além disso, é um esforço terrível me adaptar à seqüencialidade humana – isso implica diminuir a velocidade, cantar os freios e
espremer uma palavra depois da outra. Uma ferramenta diabólica e
desajeitada, a linguagem...
Ainda assim, gostaria de tentar.
Muito bem...
Um pouco de luz, por favor.
Mehr Licht!
Fiat Lux!
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II
O PREPARO DO JANTAR
O
aroma se espalha feito uma dor por toda a casa – sempre foi
assim, pensa Sean, perturbador, o cheiro de boa comida ao
ser preparada, pior ainda desde que Jody foi embora, mas sempre
foi assim, em cada casa que conheci, a carne principalmente, os cozidos de carne da vovó em Galway, as canjas de galinha da mamãe
em Somerville, os perfeitos ossobucos de Jody, o cheiro da carne
cozinhando uma dor aguda, um golpe de nostalgia, tudo bem entrar numa casa e comer uma refeição com carne, mas ser forçado a
sentir o cheiro dela durante todo o tempo de cozimento é tortura,
não por causa da fome, não, mas por causa da idéia, constantemente conduzida e reconduzida até as tripas, do peru dourando
lentamente em seus sucos, insinuante, irresistível, perversamente
prometendo calor humano, bondade, felicidade, simples prazeres
familiares, todas as coisas que nunca se pode ter, nunca se teve,
nem mesmo quando criança.
Fazia muito tempo que ninguém cozinhava aqui. O que se
pode chamar de cozinhar. O cheiro, o cheiro de novo, o cheiro.
Como se concentrar em qualquer outra coisa, Jesus, são duas da
tarde, faltam quatro horas ainda, é uma ave grande, doze quilos,
“Do tamanho de uma criança de três anos!”, disse Patrizia antes de
colocá-lo orgulhosamente sobre a mesa, abrir as coxas e enfiar punhados de recheio dentro. Katie e Patrizia estão providenciando as
comidas, e Sean está irrequieto, irrequieto, não tinha previsto esse
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prolongado limbo na torturante e divina fragrância do peru em cozimento enquanto esperam o cair da noite.
É preciso voltar à suavidade, de algum modo. Certo, dosar
com precisão. Sem contar, sem nunca mais contar, apenas mantendo
no nível certo, suave, o tempo todo. Um dedo, dois, três, aí está.
Uma calma líquida e dourada. Um cigarro bom e amargo. Certo.
Um suspiro. Uma tossida. Uma folheada pela The New Yorker. Um
dos desenhos o faz rir alto, e Patchouli aproxima-se para esfregar o
focinho no seu joelho e ganhar carinho atrás da orelha. Uma vez,
Sean pensou em mandar para a revista uma piada que tinha inventado, sobre pessoas comendo salsicha frankfurt – “a mostarda ideal
para a sua salsicha – franca, forte”. Mas Jody o dissuadira, dizendo
que não havia como ilustrar um trocadilho tão bobo. Isso foi perto
do fim; nos primeiros meses juntos, ela jamais teria usado a palavra
bobo a respeito dele ou de qualquer coisa que ele escrevesse, concebesse, sussurrasse, de dia ou de noite. Também perto do fim, ele deu
um soco no olho dela por ter chamado a mãe dele de masoquista
profissional e depois chorou aos seus pés de remorso (essa imagem
lhe vem à cabeça e o faz se encolher de vergonha – a única vez em
que ele levantou a mão para uma mulher, ou para quem quer que
fosse; um efeito calamitoso). Passado, cinco anos passados. Agora
ele não faz idéia em que continente ela está.
Mais nada no copo; ele o abandona e olha fixamente pela janela
para o céu cinza chumbo, um céu que poeta algum na história jamais
tentou abordar com versos, nem qualquer cineasta com uma câmera,
um céu que desafia a definição, ridiculariza as metáforas, perturba a
esperança, um terrível céu de novembro tão pálido que as árvores, a
cerca e a cabana se confundem. Quando tudo fica dito e feito, pensa
Sean, e ri de novo, mas silenciosamente, pensando se isso poderia talvez vir a se tornar parte de um poema. Nulo, nulo, era tudo o que o
céu continuava dizendo, e ninguém parecia preparado para discutir
aquilo. Preto vai ser uma melhora, pensa Sean. Preto é uma quantidade conhecida. Dá para fazer coisas com o preto. Quando acendemos
as lâmpadas e está preto lá fora, faz diferença. Algo confortável, aconchegante... O cheiro o está perturbando de novo.
Pegar o touro pelos chifres. Caminha lentamente na direção
da cozinha, pensando “chifres do dilema”, ele sabia de onde vinha
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isso, mas não sabe mais, olá, Alzheimer, prazer em conhecê-lo, ah,
quer dizer que já nos conhecíamos? Hum, acho que isso me fugiu, rá,
rá! Essa minha cabeça está se transformando num piso escorregadio.
Mas por que um dilema deveria ter chifres? É algum tipo de monstro
mitológico, uma quimera, di-lema, dois lemes, touro do labirinto de
Creta, alegremente jogando Ariadne para cima com suas saliências
afiadas e pontudas? Claro que não. Ah, que importa, mamãe. Não
vou ter tempo de bater o seu recorde em matéria de esquecimento.
Encontra Patrizia sozinha na cozinha, de costas para ele, as
fitas brancas do avental amarradas num laço em volta da firme cinturinha italiana, os longos cabelos negros torcidos num coque, para
não caírem na comida, a minissaia preta justa com os outros coques
distintamente perceptíveis por baixo, Katie deve ter ido ao banheiro, que sorte dar com Patrizia sozinha desse jeito, o sexo de Sean
se agita dentro das calças, ele se aproxima e desliza as mãos, ambas
livres, pelos ossos pélvicos e pela barriga dela, sempre achou que
Patrizia tinha os mais lindos ossos pélvicos da história da humanidade, eles se sobressaem levemente através do tecido preto da saia.
(“Eu amo os seus seios também, não me entenda mal”, disse a ela
uma vez, quando eram amantes, ele sabia que mulheres que haviam
amamentado podiam ser sensíveis quanto aos próprios seios, e Patrizia já havia tido seus dois filhos àquela altura, ambos meninos,
embora nenhum menino fosse de Sean, e nenhuma menina, nem
seriam, já que Jody matou... “Seus seios são lindos, mas os seus ossos pélvicos são excepcionais, uma dádiva de Deus.”)
Ela chega mais perto para senti-lo endurecer, e ele, mordiscando a nuca de Patrizia onde os cabelos estão úmidos do vapor da
cozinha, inclina-se por cima dos ombros dela para ver o que há na
panela. Cranberries com casca de laranja ralada. As cranberries
estão começando a estourar. Feito pipoca, mas mais baixinho,
úmidas, vermelhas, quase inaudíveis. Quando os estouros param
(Sean lembra de Jody ter lhe dito isso uma vez, quando ele ainda
tinha esperança de aprender a cozinhar), é preciso tirar o molho
do fogo e deixá-lo esfriar. Então, por algum motivo insondável, ele
fica gelatinoso.
– Que cheiro bom – ele inspira, os lábios roçando o lóbulo
macio da orelha esquerda de Patrizia.
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– Secret d’un vieux livre – diz Patrizia. – Um novo perfume
francês que estou experimentando. Gostou do nome?
– Eu estava falando da comida – diz Sean. – A comida está
com cheiro bom.
– Ah! – diz Patrizia, fingindo irritação e pisando de leve no pé
dele com um de seus saltos pontudos. De salto alto, ela fica exatamente da altura dele – não exatamente uma altura gloriosa para um
homem – e, de pés descalços, não chega até as suas sobrancelhas.
Ele gosta das blusas rendadas e saias justas dela, da sua feminilidade
antiquada: as mulheres americanas não se vestem mais assim. Ao
ouvir Katie puxar a descarga no final do corredor, ele se afasta suave
e educadamente do corpo de Patrizia, que ainda é jovem e firme
(ainda que não tão jovem nem tão firme, é claro, como seis ou sete
anos atrás, quando ela foi contratada como secretária pelo Departamento de Línguas Românicas e ele passou devagar pela porta da sala
dela e parou abruptamente no corredor, deu três passos para trás e
se virou para testar o seu irresistível olhar castanho e triste; na época, ela ainda era casada, ele ainda não, agora ela está divorciada, e ele
também, para dizer o mínimo) – e, acariciando a bunda dela demoradamente enquanto se afasta, ele manda o seu amiguinho voltar a
dormir, chegando a enfiar uma mão no bolso a fim de empurrá-lo
para o lado, com um tapinha categórico.
– Está tudo sob controle – diz Katie ao entrar na cozinha, enfiando dentro das calças a camisa exageradamente roxa, o rosto vermelho sob os cabelos brancos gretado como uma velha almofada de
couro. – O recheio está no peru, o peru está no forno, o forno está
na casa, a casa está na floresta... E agora – com um floreio, ela tira de
uma sacola de compras de papel uma lanterna de abóbora murcha
(morta, pensa Sean, estranho como tudo me parece morto ultimamente) –, para a torta de abóbora!
– Tem certeza de que esse cara ainda está comível? – com as
mãos nos quadris bem desenhados, Patrizia inclina-se sobre o sulcado globo cor-de-laranja e o cheira.
– Claro que sim! É uma obra-prima da minha neta. Olhem só
esse sorriso maldoso, a cicatriz na têmpora, não é maravilhoso?
– Maravilhoso é uma coisa, comível é outra – diz Patrizia,
sem maldade.
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