O corpo do milagre I: o cheiro de Lázaro Lyslei Nascimento A morte veio como um sonho, lenta e mansamente, arrebatando-o da faina diária. O corpo, antes vivo, agora, no entanto, se deteriorava rapidamente. Primeiro foi lentamente, depois, mais rápido, mais rápido... A pele expandida parecia não mais conter o poder da corrupção, o terror dos vermes a entreabrir as carnes. Líquidos, soros, plasma escorriam do corpo do amigo. Ninguém poderia dizer, ou dar a resposta exata à irmã desolada. Se ele estivesse aqui esse exército invisível, silencioso, sob o comando da generala, a indesejada das gentes, não marcharia sobre a pele, dentro dos ossos, sob os nervos do meu irmão. Não há como responder se, de fato, ele deteria o processo, a maquinação surda dos vermes. Jaz, o amigo, no entanto, morto. Pavoroso, cheio de humores, fluidos, cansaços. O corpo desfalecido perde sua imaginária concretude. É preciso retirá-lo do convívio, da sala de estar, do quarto de dormir. Lázaro dorme o sono da corrupção. Sobre a pedra, dentro da caverna, cuja entrada foi lacrada, o corpo apodrece apesar dos ungüentos e das especiarias. O corpo do irmão foi perfumado pelo amor das lágrimas das irmãs desoladas que o enovelaram de despedidas. As mulheres, antes de enterram o seu morto querido, o envolvem em lençóis de linho. Tiras, laços, nós. O corpo, atado a si mesmo, mumifica-se e a pele, adere com fidelidade à segunda pele, o linho. Outrora fora flor, hoje, mortalha. Por entre a urdidura, o cheiro de vinagre, levemente doce, almíscar e mirra, e o cheiro incolor do corpo em putrefação. O sono aparentemente tranqüilo é agitado pelos vermes. A ordem imperativa do milagre é vibrante. Ressoa entre as paredes da caverna-túmulo a voz. Lázaro! Lázaro! Escuto pasmo a voz do meu amigo! Meu corpo é comandado. Veias, artérias, ossos. Os músculos, todos, vertiginosamente são eletrificados. Os vermes caem flácidos, porque o processo de morte se deteve, foi revertido, e não há mais pasto para esse tipo de gado. Estou amarrado, mas, daqui, posso ouvir a voz. Meu corpo levita até a entrada. Está escuro e ainda há essa imensa pedra... Tirai a pedra! Que ordem implacável! Tantos olhos me olham, incrédulos, ainda estou no limiar. Desatai-o. Diz a voz mansamente. Ouço, assim, a segunda ordem. Mãos alucinadas, assombradas, hipnotizadas, me desamarram. Estou livre! Estou vivo! Estou vivo? E agora? Que fazer? Ir para casa? Viver na casa que sempre me abrigou? E agora? O corpo redivivo contrariará o Livro que afiança que ao homem é dado morrer uma só vez? Soluço, solitário, sem saber se entre vivos, terei para onde ir. Sentindo-me só, um entre milhares, e ainda nas narinas, o cheiro agridoce que irá me acompanhar por toda a eternidade. O corpo do milagre II: as pálpebras de Bartimeu Eu sempre fui sozinho. Todos nós somos sozinhos, não é? Mesmo entre multidões somos sozinhos. Mas aprendi a me virar pelas ruas estreitas e empoeiradas da Galiléia. Dizem que ali, logo ali, há um lago tão grande que parece mar. Os homens pescam ali. Sinto o cheiro dos peixes e o ouço o barulho das ondas. Ouço, também, o vozerio dos homens do mar. Esmolando, percorri centenas de quilômetros sem sair do lugar em busca de pão. Um pedaço de pão ou, quem sabe, a felicidade de um copo de vinho. Isso sim era festa! Às vezes, uma moeda ia parar direto na minha mão. Eu a sentia rodopiando da palma à bolsa e, dali, ao mercado. Há um muro de trevas diante de mim, meus ouvidos, no entanto, alcançam o infinito. E a notícia de um milagre chega até mim. Tende misericórdia! Eu quero ver... quero ver as cores da areia. A cor do vento. A multiplicidade das cores das nuvens. O garoto que me acompanha me diz que são de um amarelo vivo!! Ah! Como eu quero ver o amarelo vivo das nuvens! Ô menino, ô menino, diz de novo que amarelo é o amarelo da nuvem? Tende misericórdia, sou atormentado pelo amarelo vivo de todas as coisas que não vejo... me conta, vai! Ouço que ele se aproxima. Há uma brisa estranha que o antecede. O calor se dissolve... Sinto um cheiro de beijoim e murta. Ele está por perto, posso ouvir as multidões. Tem misericórdia de mim! Minha fronte lateja. Quase posso levitar sobre a multidão febril... sol, poeira, calor... tudo vai se transformando numa onda de puro refrigério. Estou na presença dele. Minha cegueira ancestral, doméstica, aflita, deu lugar ao desespero. Ele não pode passar sem me tocar. Meu corpo, emparedado, precisa dele. Mas tenho de gritar! Ele pode ir embora sem me visitar, ele pode não me ver. Pai, são tantas as pessoas, são tantas as vozes! O milagre anda pelas ruas e pára em frente a mim. Senti suas mãos ternas, de ourives ou, quem sabe, de carpinteiro ou ceramista. Há calos. Tende misericórdia! Grito assustado. Mas, que horror! Como ter misericórdia de um espaço vazio encoberto pelas pálpebras? Córneas não há. De uma córnea que não existe, que não foi gerada, poderá esse homem divino fazer um milagre? Consertar, vá lá. Mas criar, no espaço vazio, o mecanismo perfeito que me permitirá ver as nuvens que, descubro, por segunda informação, que são verdes, quase como abacates? Não. Isso não. É muito difícil. Será possível? Finalmente o milagre se abaixou e cuspiu na poeira da estrada. É isso... Ele tem nojo de mim. Ele sabe que sou possuidor de dois espaços vazios por trás das pálpebras. Não um, mais dois. Não, não tem jeito. Esses ocos que me deprimem são, por ventura, pérolas, esmeraldas, luzes? Ele tem nojo de mim. Eu bem sei... Subitamente, há silêncio. A multidão perplexa observa o milagre se ajoelhar cavando a terra socada da estrada e misturar com os dedos de oleiro saliva e pó – o mesmo pó de que sou constituído. Algo entre argila e barro é moldado nas suas mãos firmes... Que faço, Senhor? Fico aqui? Continuo? Vou embora. Que está esse louco fazendo? Me conte, menino, de que cor são os olhos do Senhor? Negros, Bartimeu, ou azuis, não sei bem... Recebo, de chofre, o emplasto. O barro quente se adere a minha órbita vazia. Não há luz. É isso, além da cegueira, recebo na cara, uma nojenta amalgama de barro! Sou o mais desprezível entre os homens. De repente, percebo luzes, vertigens, tons. Cores que saberei mais tarde serem terrosas... ocre, marrom, ferrugem. Todas irão se confundir e se distinguir. Há um brilho ardente. Arrastam-me até a fonte. Lavamme o rosto. Gotas de água, da mais pura água, molham minha barba, minha roupa, minha alma. De novo, calor e poeira, o perfume dele já vai longe. Ele já não me escuta mais. Meus olhos lacrimejam, sofrem. Quanta luz! Quanta gente! Onde está ele? Leve-me contigo! Não quero ficar num lugar onde as nuvens são... assustadoramente brancas!