Ana Aranha Quem pode dizer que eles não são índios? Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional Ano 13 • Número 645 Pág. 8 R$ 3,00 São Paulo, de 9 a 15 de julho de 2015 O poderoso chefão www.brasildefato.com.br O Brasil vive uma ofensiva conservadora. E um dos principais expoentes dessa ofensiva é o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Segundo o advogado Cláudio Pereira de Souza Neto, o presidente da Câmara dos Deputados vulgariza emendas e ataca a Constituição. O teólogo Leonardo Boff afirma que o poderoso chefão do parlamento é um bandido político que não respeita a Constituição. Págs. 6 e 7 Marcelo Camargo/ABr ISSN 1978-5134 ISSN 1978-5134 WikiLeaks revela lista de alvos da NSA no Brasil Pág. 9 Neruda Fugitivo – filme sobre o poeta e senador do Chile Pág. 11 Ademar Bogo Frei Betto Marcelo Barros Mudar a ordem Do ódio à esperança Armas e (in)segurança Ninguém poderia imaginar que as crises políticas viriam, não porque se levantou a bandeira do socialismo, mas pela perda da moral, da coerência e por querer tornar eficiente o Estado capitalista. Pág. 2 Sabem os publicitários que uma mentira repetida acaba aceita como verdade. É o caso dos sucos de caixinha “naturais”. E ainda há quem pergunte por que tanta incidência de câncer. Pág. 3 Dizem que depois da aprovação da diminuição da idade penal, a próxima luta do presidente da Câmara e seus aliados será para ampliar o acesso dos cidadãos à armas de fogo. Pág. 3 2 de 9 a 15 de julho de 2015 editorial O pior ataque à nação AO LONGO DOS ANOS dos governos petistas, a medida política que tocou na questão da propriedade e teve o caráter mais estratégico para um projeto de nação foram as mudanças no marco regulatório do petróleo. Evidente que tal ousadia não permaneceria impune. As descobertas do pré-sal representam um volume de riqueza várias vezes maior que o PIB do Brasil. Os estudos atuais já avaliam que as reservas da Petrobras podem chegar a 300 bilhões de barris, pois considerando-se diferentes medições calcula-se que já tenham sido descobertos 70 bilhões de barris no pré-sal, que somados às reservas preexistentes de 14 bilhões de barris atingem 84 bilhões de barris. Isso, porque apenas uma parte menor das jazidas foram mensuradas. Calcula-se que as áreas com petróleo possam ir de Santa Catarina ao Espírito Santo. Assegurar tal riqueza de forma soberana é a maior decisão sobre nosso futuro. Recordemos que até 2006, a perspectiva de reservas de petróleo para o país era para 19 anos. Com o investimento e aposta na Petrobras, a perspectiva subiu para 178 anos. Mudou totalmente a visão histórica em relação à produção e a autossuficiência do país. Nossa maior riqueza despertou a cobiça dos grandes interesses geopolíticos e empresariais das potências. opinião A atual ofensiva conservadora que ataca os governos progressistas de nosso continente não poderia deixar essa questão de fora. Aliás, este é claramente o ponto principal que alimenta todo o processo de denúncias seletivas de corrupção, buscando gerar uma base social que permita abrir mão de nossa maior conquista de soberania nacional das últimas décadas. Já em 2010, o WikiLeaks denunciava as ligações entre o atual senador José Serra (PSDB-SP) e as petrolíferas privadas para entregar o pré-sal às transnacionais. De acordo com a Lei de Partilha nº 12.351, de 2010, a Petrobras tem que entrar com ao menos 30% dos investimentos na perfuração dos blocos e é a operadora única da camada do pré-sal. O PLS 131 do Senador Serra abre espaço para exploração da iniciativa privada sem participação da estatal. Representa um claro retrocesso no marco regulatório do pré-sal, porque retira da Petrobras a condição de operadora única e o direito de uma participação mínima de 30% na exploração dos campos. E, com isso, abre caminho para alterar no futuro a forma de contratação, restabelecendo as concessões ao invés da partilha. Um grande golpe nos interesses nacionais. Tendo a Petrobras como operadora única, 75% dos royalties arrecadados serão destinados à Educação e 25% para a saúde dos Os petroleiros aprovaram uma série de mobilizações, inclusive um indicativo de greve, para se contrapor ao plano de desinvestimentos em curso na Petrobras e também para barrar o PLS 131, do senador José Serra (PSDB/ SP). Barrar esse ataque à nação é uma luta decisiva crônica Ademar Bogo Bob May/CC rá produzindo 5,2 milhões de barris em 2020, o que tornará o Brasil um dos maiores exportadores mundiais de petróleo. Requião comprovou que nenhuma empresa no mundo havia conseguido extrair 800 mil barris/dia de uma nova reserva de petróleo apenas 5 anos após o início de sua exploração comercial. E não se trata de uma reserva comum, mas de uma reserva em águas ultra-profundas, das mais complexas explorações no mundo. Os muitos prêmios que a empresa tem ganhado apenas refletem sua competência. Sustentou que livrando-se dos diretores corruptos a Petrobras sairá deste processo fortalecida e revigorada. Os petroleiros que participaram da 5ª Plenária Nacional da FUP, na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP), aprovaram uma série de mobilizações, inclusive um indicativo de greve, para se contrapor ao plano de desinvestimentos em curso na Petrobras e também para barrar o PLS 131, do senador José Serra (PSDB/SP). Barrar esse ataque à nação é uma luta decisiva. A cada dia assistimos o Congresso Nacional destruindo impunemente nossos direitos e completamente divorciado dos interesses nacionais. Cresce a compreensão de que somente uma Constituinte Exclusiva e Soberana será capaz de mudar o atual sistema político abrindo possibilidades para um projeto nacional e popular. Luiz Ricardo Leitão O samba e a academia resistem Superescolas de Samba S/A / Superalegorias Escondendo gente bamba / Que covardia! (Aluísio Machado & Beto Sem Braço, “Bumbum Paticumbum Prugurundum”) Mudar a ordem das contradições O FILÓSOFO Leandro Konder deu a um de seus livros o título de A derrota da dialética para descrever o caminho invertido percorrido pelas forças que pretendiam chegar ao socialismo no século passado, mas que permaneceram mesmo foi no capitalismo; no entanto, como a dialética é o próprio movimento que comporta todas as contradições possíveis, no tempo presente, a derrota segue em frente. Quando os governos socialistas nos países do Leste da Europa foram derrotados, em diversos países das Américas ocorreu o contrário. Com programas alterados, as diversas forças democráticas alcançaram vitórias nunca vistas. No caso brasileiro parecia que as contradições empurravam as mudanças para a frente, fazendo com que muitas análises apontassem para a possibilidade de termos governos de crises. As análises mostraram-se corretas, mas ninguém poderia imaginar que as crises políticas viessem, não porque se levantou a bandeira do socialismo, mas pela perda da moral, da coerência e por querer tornar eficiente o Estado capitalista com o lema do “governo para todos”. A derrota da dialética se deu pela colocação do programa ter sido posto sobre dois trilhos equivocados: o primeiro constituído pelo abandono da transição socialista como perspectiva, imaginando que era função das forças eleitoralmente vitoriosas desenvolverem o capitalismo e, o segundo, diz respeito ao excessivo interesse pelo mercado como instrumento de inclusão social. Se é verdade que os trabalhadores não podem brasileiros, o que não acontecerá se a operação estiver nas mãos de estrangeiras. Isso significa que as bases do desenvolvimento nacional, como a política de conteúdo nacional e de desenvolvimento de tecnologia em toda a cadeia de exploração do óleo, estarão ameaçadas. Os investimentos em educação e saúde, por meio do pagamento dos royalties, estão sujeitos a fraudes. Segundo estimativa da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet) o país poderá perder cerca de 12 trilhões de dólares ao retirar da Petrobras a responsabilidade pela operação única da exploração do pré-sal. De acordo com o vice-presidente da Aepet, Fernando Siqueira, somente em royalties o Brasil deixaria de arrecadar 1,8 trilhão de dólares. Isto porque as fraudes na medição do petróleo extraído e nos custos de produção costumam ficar entre 30% e 50% do que é produzido, algo que não acontecerá se a Petrobras continuar no controle. O argumento cínico do Senador Serra de que há dúvida de que a Petrobras seja capaz de abastecer o mercado interno de Petróleo em 2020, se for operadora exclusiva do pré-sal foi demolido pelo Senador Requião (PMDB-PR), que demonstrou como o mercado interno já ficou pequeno para a Petrobras, que já tem excedente exportador. Com os investimentos já realizados e os que estão em implantação, a Petrobras esta- Ficar presos a um projeto que fortalece o capital e que tem no processo eleitoral a única solução para sair das crises, é continuar como reféns voluntários da classe dominante ter ideologia, pois ela representa o obscurecimento da verdade, pela primeira vez, no Brasil, passaram a ter, através da firme crença que, se o indivíduo consumisse mercadorias ele sairia da miséria e mudaria inclusive de classe social. A simplicidade do raciocínio governamental não elimina a complexidade das contradições, isto porque, se em primeiro plano garante-se que a classe dominante continue extraindo a mais-valia e acumulando capital, por mais que os pobres passem a frequentar as mercearias, os ricos não se enfraquecem, porque, a eles compete ficar com o excedente na forma de mercadorias e lucros. Por outro lado, se o acesso aos direitos se dá baseado no valor de troca é claro que no momento em que faltar para os consumidores a mercadoria dinheiro, todas as demais mercadorias deixarão de circular. E então vem o apedrejamento e a perda de popularidade dos governantes. Diante disso, as forças que acreditam que os avanços se dão pela via jurídica, porque ela pode garantir os direitos econômicos e a reforma política, na medida em que o parlamento aprova leis que contradizem os interesses do governo, e o poder judiciário ameaça com a forca aqueles que confiaram que o homem burguês é um quadro politicamente preparado, que nem sob tortura delata os seus aliados, não sabem o que fazer, a não ser, culpar um ministro, um deputado ou um juiz. Não há solução fácil, mas o certo é que, se as contradições apresentadas pelas forças de direita não favorecem os enfrentamentos é preciso mudar a ordem das contradições colocando sobre as batalhas jurídicas a luta de classes. Se a perspectiva das reformas se perde nos corredores do Congresso Nacional, a perspectiva da transição socialista deve ser colocada como ponto de aglutinação que designará as tarefas a serem cumpridas em cada luta política. O certo é que, ficar presos a um projeto que fortalece o capital e que tem no processo eleitoral a única solução para sair das crises, é continuar como reféns voluntários da classe dominante. Ademar Bogo é filósofo e escritor. “APESAR DOS PESARES”, o samba e a academia resistem. Mesmo asfixiada pelo “ajuste fiscal” de Big Foot (vulgo “Pezão”, para os íntimos), a UERJ, por meio do seu Departamento Cultural e da COART, lança agora em julho o Acervo Universitário do Samba, uma coleção que registrará em livro e disco a vida e a obra de grandes figuras do samba carioca, a maior expressão artística e sociocultural do povo negro do Rio. Publicado pela editora Outras Expressões, o primeiro volume homenageia Aluísio Machado – sambista de fato, rebelde por direito, o criador de clássicos do Império Serrano, como o antológico “Bumbum Paticumbum Prugurundum” (1982), “Mãe Baiana Mãe” (1983), “Eu Quero” (1986) e “Verás que um filho teu não foge à luta” (1996). Quem só conhece a produção “carnavalesca” – mas sempre muito crítica – do compositor há de deliciar-se também com o sambista rebelde que os militares de 1968 detestavam. Mestre Nei Lopes, que escreve o prefácio da obra, faz questão de lembrar como o “sambista de morro” futucava o “Brasil, ame-o ou deixe-o” com versos até hoje mais que atuais: Quem tem muito quer ter mais/ Quem não tem resta sonhar/ Quem não estudou é escravo/ De quem pode estudar/ Os direitos humanos são iguais/ Mas existem as classes sociais... Sim, caro leitor, canções como “A Humanidade” foram criadas e interpretadas por Aluísio em plena ditadura. É por isso que o próprio Nei Lopes indaga, com raro suingue e sutileza: “Quem é que disse que a vanguarda do protesto na música popular brasileira foi do roquenrol?” Quanto mais quente, melhor... Durante o período efervescente das décadas de 1970 e 1980, em que as classes populares e os sambistas se mobilizaram e se organizaram contra a tirania do regime, o “sambista de fato” encontrou o ambiente perfeito para compor suas canções. Afinal de contas, se os militares e os caretas o fustigavam de um lado, do outro ele contava com focos de resistência como a “Noitada de Samba”, do Teatro Opinião, onde se reunia a nata do canto negro. Ao lado de Cartola, Clementina, Nelson Cavaquinho, João Nogueira e Clara Nunes, quem não haveria de se inspirar? Axé, Mano Elói, Paulo da Portela, Candeia, Zé Ferreira, Nei e Aluísio! Desde que o samba é samba é assim... Não era a primeira vez que isso acontecia: nos anos 1920, Pixinguinha, João da Baiana e sua turma também se reuniam “no sapatinho”, a fim de discutir os passos que dariam para defender o samba da sanha repressiva da I República. Seguiam todos unidos, cientes de que sua arte também era um penhor de liberdade. Quase à mesma época, Mano Elói, Paulo da Portela e seus camaradas, líderes calejados pelas lutas dos estivadores no Cais do Porto, visitavam os morros e os subúrbios para aglutinar as comunidades e fazer do samba um símbolo imortal da criatividade e da força dos netos da Mãe África. A vida e a obra de tantas gerações provam que a covardia das Superescolas de Samba S/A jamais esconderá por completo o talento dessa gente bamba que, desde a Praça Onze e a Candelária até a Sapucaí, insiste em mostrar seu valor. “O samba não vai morrer, o samba é transformador”, cantou Caetano Veloso. O baiano tinha razão, mas lhe escapou decerto um verso à canção, pois o canto negro não é só filho da dor – ele é também, em larga medida, filho da resistência. Axé, Mano Elói, Paulo da Portela, Candeia, Zé Ferreira, Nei e Aluísio! Desde que o samba é samba é assim... Luiz Ricardo Leitão é professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários (Universidade de La Habana), é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Aluísio Machado: Sambista de Fato, Rebelde por Direito. Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Aparecida Terra• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Juliana Fernandes • Endereço: Alameda Olga, 399 – Barra Funda – São Paulo – SP CEP: 01155-040 – Tel. 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A Operação Lava Jato presta excelente serviço à nação. Leva corruptores à cadeia e traz à luz bilionárias somas de recursos públicos destinadas a favorecer interesses privados. Mas por que a Lava Jato é um samba de uma nota só? Será que houve corrupção apenas no governo do PT? E por que o Judiciário permite o vazamento de depoimentos especificamente centrados no PT? Algum diretor de revista anda corrompendo investigadores da Lava Jato para obter o conteúdo dos depoimentos dos réus antes que cheguem à Justiça? O fato é que se criou, no Brasil, um clima de amargura e ódio. Amargura, porque Dilma prometeu na campanha o contrário do que faz agora: não tocar nos direitos dos trabalhadores. O ajuste fiscal desajusta as conquistas obtidas nos últimos 12 anos. Estão de volta a recessão, os juros altos, a inflação e, em consequência, o desemprego, a retração da indústria e o fechamento de lojas. Após 12 anos de avanços, o Brasil dá marcha à ré. O ódio resulta da falta de consciência política. Quando não se consegue racionalizar uma experiência traumática, o ódio emerge. Por isso se procura terapia quando as emoções são embaralhadas pelo ódio e a visão obnubilada pela sensação de desespero. Ou se busca uma “saída” no gesto vingativo: o jovem branco que, em nome da supremacia “ariana”, extermina negros em uma igreja, ou o Exército Islâmico que, em nome de Deus, degola inimigos... Muitos me perguntam se guardo ódio dos torturadores de meus tempos de prisão. Digo com sinceridade: não. Assim ajo, não por virtude, mas por comodismo. Aprendi que o ódio destrói primeiro quem odeia e não quem é odiado. Shakespeare já havia dito o mesmo com mais estilo: “Odiar é tomar veneno esperando que o outro morra”. O PT promoveu a inclusão econômica de milhões de brasileiros, mas se omitiu quanto à inclusão política. Não politizou a nação. Não organizou os trabalhadores. Não fortaleceu os movimentos sociais. Ao contrário, estimulou o sonho consumista e, agora, é vítima da síndrome da criança impedida de tomar sorvete – a carência gera frustração e raiva. Resta à sociedade civil descruzar os braços e não esperar dos políticos no poder. É hora de arregaçar as mangas e reorganizar a esperança. Com meros protestos não sairemos dessa depressão cívica. Há que ter propostas. O Brasil soube dar a volta por cima diante de muitos períodos críticos, tanto na monarquia quanto na República. Precisamos é deixar de lamentar e articular em especial os jovens e os movimentos sociais. Igor Fuser Na Grécia, uma aula de política COM O ESPÍRITO ALEGRE pela vitória do “não” no referendo grego, abri o livro de Chantal Mouffe, uma das pensadoras mais lúcidas sobre a ação política radical na atualidade, intitulado Agonística – Pensar el mundo politicamente. Lá encontrei algo que vale a pena compartilhar. A socióloga belga fala sobre duas estratégias opostas que disputam influência sobre os movimentos de luta contra a globalização neoliberal. A primeira estratégia é a que prega a “deserção” (ou abandono) das instituições. A segunda consiste no “envolvimento crítico” com o Estado e os canais de participação política e eleitoral, utilizando, até o limite, as possibilidades aí existentes para avançar na busca da transformação social. Os ativistas que negam a ação política institucional já não aspiram a se transformar em maioria entre os cidadãos. Muito menos, pretendem se tornar governo. O importante, para eles, é constituir espaços autônomos onde seja possível desenvolver formas alternativas, não autoritárias, de organização coletiva. Em contraste com essa primeira corrente, atuam os militantes dispostos a disputar a hegemonia na socie- dade e a construir uma vontade coletiva capaz de travar a luta pela orientação do Estado. Para isso, afirma Mouffe, é necessário determinar com clareza quem é o adversário a ser combatido. Essa definição demarca o campo entre “nós” e “eles”, em uma guerra de posições (como dizia Gramsci) que mobiliza partidos, movimentos sociais e sindicatos em uma multiplicidade de lugares. O que está ocorrendo hoje na Europa, com os avanços que têm como protagonistas o Syriza (Grécia) e o Podemos (Espanha), mostra o predomínio da opção por jogar o jogo da política e enfrentar as classes dominantes na luta pelo controle do Estado. É para o Estado, afinal, que convergem as expectativas de todos os atores sociais. As políticas públicas, a cobrança dos impostos, o “sim” ou o “não” ao desmanche de direitos sociais promovido pelo capital financeiro - tudo isso passa pelas instituições de democracia representativa. Abandoná-las, como defendem os neoanarquistas, é deixar a burguesia com a faca e o queijo na mão, para nos devorar. DIZEM QUE DEPOIS DA APROVAÇÃO da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos, a próxima luta do presidente da Câmara e seus aliados será por uma revisão do Código Penal afim de ampliar o acesso dos cidadãos à armas de fogo. Um dos argumentos é que os bandidos estão armados e as pessoas honestas não têm armas para se defender. Querem armar todo mundo. Como se facilitar a posse e o uso de arma de fogo desse mais segurança à população e automaticamente diminuísse a incidência de crimes. Estudos revelam o contrário: onde se usam mais armas de fogo, há aumento de crimes de morte e mais violência. O uso generalizado de armas de fogo tem consequências trágicas para quem usa, para quem não usa e até para quem lhe é contrário. Em geral, as pessoas que são favoráveis às armas consideram como o ideal a sociedade dos Estados Unidos da América do Norte: basta olhar as estatísticas sobre crimes com armas de fogo nesse país para compreender. Facilitar o uso de armas pela população, ao invés de diminuir, aumentou muito a violência. Atualmente, nos Estados Unidos e em outros países muitos tentam voltar atrás e ter uma legislação mais rígida. Conforme reportagem do Courrier International, nos Estados Unidos, país no qual o acesso a armas de fogo é mais fácil, de 2004 a 2014, as estatísticas contaram 750 mil pessoas gravemente feridas por armas de fogo. Foram mais de 320 mil pessoas mortas por balas. A cada ano, 11 mil norte-americanos/as são assassinados com armas de fogo e 20 mil se suicidam do mesmo modo. Centenas de crianças morrem vítimas de acidentes com armas de fogo. A cada ano têm aumentado casos nos quais alguém entra em um cinema ou escola atirando em todo mundo. Argumentos humanitários, éticos e religiosos não convencem as pessoas a mudarem de opinião. Como em nosso país, também, nos Estados Unidos, o argumento mais aceito para deter essa cultura de viver armados e usar armas como se fossem brinquedos não é a sacralidade da vida, nem a ética do amor e do respeito ao outro. O único argumento ao qual a maioria parece sensível é o econômico. A cada ano, o Estado tem um grande prejuízo econômico com crimes e acidentes provocados com armas de fogo. Porém, as indústrias de armas de fogo impedem a publicação de dados sobre o que as vítimas e suas famílias sofrem por causa de armas. Em um editorial de 7 de abril desse ano, a revista médica Annals of Internal Medicine declarou: “Nos Estados Unidos, as armas são um dos mais graves problemas de saúde pública”. Essa obsessão por armas de fogo custa aos EUA a cifra anual de 229 bilhões de dólares (não milhões). Cada pessoa morta chega a custar em média seis milhões de dólares em gastos com segurança, hospitais e processos jurídicos. E a cada ano, morrem 31 mil pessoas, vítimas de armas de fogo (repetição do que vem no parágrafo acima). Na Câmara Federal, a bancada da bala quase se confunde com a da Bíblia Apesar de que, atualmente, na América Latina e Caribe, não há nenhuma guerra declarada, as taxas de homicídio no continente são comparáveis às de zonas de guerra. Conforme a agência da ONU contra as drogas e o crime organizado, dez por cento da população do planeta vivem na América Latina. No entanto, no nosso continente acontecem, a cada dia, 30% dos homicídios de todo o mundo. A cada dia, são assassinadas mais de 300 pessoas. No Brasil, em comunidades situadas em áreas de risco, os projetos que mais conseguiram libertar as pessoas e superar a violência foram projetos educacionais e artísticos que acreditaram nas pessoas e investiram em salvá-las e não em matar. Na Índia, sem nunca usar arma de fogo, o Mahatma Gandhi libertou o seu país da Inglaterra, na época, o império mais rico e bem armado do mundo. Nos anos 60, o pastor Martin Luther King conseguiu vencer as leis de discriminação racial nos Estados Unidos sem jamais usar uma arma. Ambos fizeram isso em nome da fé. Gandhi como fiel do Hinduísmo, Luther King como cristão. Gandhi considerava Jesus o mais importante defensor da não violência. Ao contrário disso, no Congresso brasileiro, em geral, financiados por empresas de armamentos, vários deputados e senadores que mais defendem o uso generalizado de armas de fogo são os que se autodenominam “evangélicos”. Na Câmara Federal, a bancada da bala quase se confunde com a da Bíblia. Marcelo Barros é monge beneditino e teólogo. Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT) e assessora comunidades eclesiais de base e movimentos sociais. fatos em foco da Redação Justiça livra McDonald’s de multa Na semana passada, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu anular a multa de R$ 3,2 milhões aplicada pelo Procon, órgão de defesa do consumidor, à multinacional. O órgão havia considerado abusiva a publicidade infantil da venda de lanche associada a brinquedos, mas o McDonald’s recorreu à Justiça e venceu a parada. Em sua estranha sentença, o desembargador Fermini Magnani alegou que “cabe à família o poder da boa educação dos filhos” e rejeitou o “modo paternalista” do Estado interferir no consumo. A multa contra o McDonald’s foi aplicada em novembro de 2011 com base no Código de Defesa do Consumidor, que proíbe a publicidade abusiva. A ação no Procon-SP foi deflagrada pela Alana, uma organização não-governamental de defesa das crianças e adolescentes. Brasil produziu 10,2% de petróleo a mais em maio A produção de petróleo no País registrou aumento de 10,2% em maio, comparado com maio de 2014. A produção de gás natural registrou o mesmo índice nesse tipo de comparação. Segundo a Agência Nacional do Petróleo, a produção nos campos do pré-sal foi de 726,4 mil barris por dia de petróleo e 26,9 milhões de metros cúbicos de gás natural. (Agência Sindical) Centrais vão à Rússia em busca de oficializar o Brics Sindical CUT, Força Sindical, UGT, Nova Central e CTB participam na Rússia do 4° Fórum do Brics Sindical, simultâneo à 7° Reunião dos Chefes de Estado dos países do bloco, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A cúpula do Brics se reuniu de 7 a 9 na cidade de Ufa, sul da Rússia. Representantes de Centrais Sindicais dos cinco países devem ter encontro com o presidente russo, Wladimir Putin, para entregar uma declaração conjunta com as principais demandas dos trabalhadores. Os sindicalistas também vão oficializar o pedido de reconhecimento do Brics Sindical. A ideia é criar um canal para expressar as reivindicações trabalhistas nas discussões do bloco, como já existe em relação ao setor empresarial. Maioria é contra doações de empresas à campanhas políticas A maioria dos brasileiros rejeita doações de empresas para campanhas eleitorais. Segundo pesquisa Datafolha encomendada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), 74% dos entrevistados são contrários ao financiamento empresarial de partidos e políticos. Apenas 16% são favoráveis a esses repasses, enquanto 10% não opinaram. O Datafolha ouviu 2.125 entrevistados, entre os dias 9 e 13 de junho, em 135 municípios de todas as regiões do país. A margem de erro da pesquisa é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos. Entre os pesquisados, 79% avaliou que a corrupção é estimulada por doações de empresários para o financiamento de campanhas – sendo que 12% não apontam relação, 3% acreditam que combate a corrupção e 6% não tem opinião formada a respeito. Mercosul cria Portal de combate ao trabalho infantil Os cinco países do Mercosul decidiram colocar a internet a serviço da luta contra o trabalho infantil. Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela vão lançar de forma simultânea, em agosto, portal na internet para impulsionar ações e compartilhar conteúdos sobre o tema. Serão publicadas normativas nacionais, regionais e convenções internacionais, além das atividades realizadas em cada país. O portal será apresentado em espanhol e português. 4 5 brasil de 9 a 15 de julho de 2015 “Grandes grupos econômicos estão ditando a formação de crianças e jovens brasileiros” Governo MG ENTREVISTA Novo reitor da UFRJ, Roberto Leher, aponta os impactos da lógica mercantilizada sobre a educação brasileira e aponta que como grupos financeiros tentam dominar a educação pública Luiz Felipe Albuquerque do Rio de Janeiro (RJ) UM GRANDE negócio. É assim que o novo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, enxerga o novo momento da educação brasileira. Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ traça um panorama do atual estágio da educação no Brasil, e as conclusões não são nada animadoras. Para Leher, que tomou posse dia 3 de julho, os recentes processos de fusões entre grandes grupos educacionais, como Kroton e Anhanguera, e a criação de movimentos como o Todos pela Educação representam a síntese deste processo. No primeiro caso, ocorre uma inversão de valores, em que o primordial não é mais a educação em si, mas a busca de lucros exorbitantes por meio de fundos de investimentos. No segundo, a defesa de um projeto de educação básica em que a classe dominante define forma e conteúdo do processo formativo de crianças e jovens brasileiros. O movimento Todos Pela Educação é uma articulação entre grandes grupos econômicos como bancos (Itaú), empreiteiras, setores do agronegócio e da mineração (Vale) e os meios de comunicação que procuram ditar os rumos da educação no Brasil. Para o professor, o movimento se organiza numa espécie de Partido da classe dominante, ao pensarem um projeto de educação para o país, organizarem frações de classe em torno desta proposta e criar estratégias de difusão de seu projeto para a sociedade. “Os setores dominantes se organizaram para definiram como as crianças e jovens brasileiros serão formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano”, observa o professor. Confira a entrevista: O que muda com essa nova forma de mercantilização da educação? O negócio do investidor não é propriamente a educação, é o fundo. Ele investiu no fundo e quer resposta do fundo, que cria mecanismos para que os lucros dos setores que eles estão fazendo as aquisições e fusões sejam lucros exorbitantes. É isso que valoriza o fundo. A racionalidade com que é organizada as universidades sob controle dos fundos é uma racionalidade das finanças. São gestores de finanças, não são administrados educacionais. São operadores do mercado financeiro que estão controlando as organizações educacionais. Toda parte educacional responde uma lógica dos grupos econômicos, e por isso eles fazem articulações com editoras, com softwares, hardwares, computadores, tablets; é um conglomerado que vai redefinindo a formação de milhões de jovens. “No caso do Brasil, cinco fundos têm atualmente cerca de 40% das matrículas da educação superior brasileira, e três fundos têm quase 60% da educação à distância no Brasil” Sala de aula: os setores dominantes se organizaram para definir como as crianças e jovens brasileiros serão formados No caso do Brasil, cinco fundos têm atualmente cerca de 40% das matrículas da educação superior brasileira, e três fundos têm quase 60% da educação à distância no Brasil. “Esse processo levou a Kroton e a Anhanguera – fundo Advent e Pátria – a constituírem, no Brasil, a maior empresa educacional do mundo, um conglomerado que hoje já possui mais de 1,2 milhão de estudantes, mais do que todas as universidades federais juntas” Quais os interesses dessas grandes corporações para além do econômico? A principal iniciativa dos setores dominantes na educação básica brasileira é uma coalizão de grupos econômicos chamado Todos pela Educação, organizado pelo setor financeiro, agronegócio, mineral, meios de comunicação, que defendem um projeto de educação de classe, obviamente interpretando os anseios dos setores dominantes para o conjunto da sociedade brasileira. Em outras palavras, os setores dominantes se organizaram para definiram como as crianças e jovens brasileiros serão formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano. Em última instância, é com isso que eles estão preocupados: em como fazer com que a juventude seja educada na perspectiva de serem um fator da produção. Essa é a racionalidade geral, e isso tem várias mediações pedagógicas. A aparência é de que estão preocupados com a alfabetização, com a escolarização, com o aprendizado, etc. E de fato estão, mas dentro dessa matriz de classe, no sentido de educar a juventude para o que seria esse novo espírito do capitalismo, de modo que não vislumbrem outra maneira de vida que não aquela em que serão mercadorias, apenas força de trabalho. De que maneira eles interferem nas políticas educacionais do Estado? Como sociedade civil, os setores dominantes buscam interferir nas políticas de Estado. O Todos pela Educação conseguiu difundir a sua proposta educativa para o Estado, inicialmente por meio do Plano Nacional de Educação (PNE) – que aliás foi homenageado “A racionalidade com que é organizada as universidades sob controle dos fundos é uma racionalidade das finanças. São gestores de finanças, não são administrados educacionais” E há resistências a isso? Existe um complexo de situações onde as resistências, as tensões são muito grandes, o que traz infelicidade aos professores e aos estudantes, mas tudo isso é muito difuso. As resistências acontecem na forma de lutas sindicais, quando fazem greve criticando a chamada “meritocracia”, os sistemas de avaliação. Aparecem aqui e ali, mas é forçoso reconhecer que existe um complexo de controle sobre as escolas que restringem muito a margem de manobra dos trabalhadores da educação para desenvolverem um projeto pedagógico autônomo e crítico. Essa situação é agravada quando a própria direção da escola, que deveria pensar como a escola se auto governa, vem sendo ressignificada como um papel de gestão. O diretor e os coordenadores são pensados como gestores na lógica de uma empresa, que deve cumprir metas, fiscalizar o cumprimento delas e tentar atingir essas metas de todas as formas. Temos uma mudança de referências quando a própria equipe de coordenação da escola se torna uma equipe de gestores. No documento Pátria Educadora há uma possibilidade de punição dos professores que não cumprirem as metas. com o nome Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, em referência ao movimento. Com isso definiram em grandes linhas o que seria o PNE que está vigente. Articulam por meio de leis, mas também da adesão de secretários municipais e estaduais às suas metas, aos seus objetivos. Articulam com o Estado, que cria programas, como o programa de ações articuladas, em que a prefeitura, quando apresenta um projeto para o desenvolvimento da educação municipal, tem que implicitamente aderir às metas do movimento Todos pela Educação. Temos um complexo muito sofisticado que interage as frações burguesas dominantes, as políticas de Estado e os meios operativos do Estado para viabilizar esta agenda educacional. Mas como se dá isso na prática? Quando um município faz um programa de educação para a sua região, ele já deve estar organizado com base no princípio de que existe uma idade certa para educação, que os conteúdos não deElza Fiúza/ABr Brasil de Fato – Muitos setores denunciam a atual mercantilização da educação brasileira. O que está acontecendo neste setor? Roberto Leher – De fato há mudanças no que diz respeito a mercantilização da educação, diferente do que acontecia até 2006 no Brasil. Os novos organizadores dessa mercantilização são organizações de natureza financeira, particularmente os chamados fundos de investimento. Como o próprio nome diz, os fundos de investimentos são fundos constituído por vários investidores, grande parte estrangeiro, como fundos de pensão, trabalhadores da GM, bancos, etc, que apostam num determinado fundo, e esse fundo vai fazer negócios em diversos países. Em geral, os fundos fazem fusões, como é o caso da Sadia e Perdigão no Brasil. Mas é o mesmo grupo que também adquiri faculdades e organizações educacionais com o objetivo de constituir monopólios. Esse processo levou a Kroton e a Anhanguera – fundo Advent e Pátria – a constituírem, no Brasil, a maior empresa educacional do mundo, um conglomerado que hoje já possui mais de 1,2 milhão de estudantes, mais do que todas as universidades federais juntas. Renan Silva/Sintufrj vem se referenciar nos conhecimentos, mas sim no que eles chamam de competências, que o professor não deve escapar deste currículo mínimo que eles estão desenvolvendo por meio de uma coerção da avaliação. A escola que não consegue bons índices no Idep [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] é penalizada, desmoralizada, sai nos jornais, e isso cria um constrangimento que chega ao cotidiano da sala de aula, e as prefeituras pressionadas por esses índices acabam sucumbidos às fórmulas que o capital oferece. A mais importante delas é comprar sistemas de ensino, apostilas, que são fornecidos pelas próprias corporações. O professor está em sala de aula, recebe apostilas, exames padronizadas que foram feitos pela corporação, e na prática, ao invés do professor desenvolver um papel intelectual, criador, ele tem que ser muito mais um aplicador das cartilhas, um entregador de conhecimento, e isso obviamente esvazia o papel do professor que tem consequências diretas com o processo de formação. A formação esperada do educador não é uma formação enquanto intelectual, mas sim como alguém que sabe desenvolver técnicas para aplicar aqueles pacotes que as corporações preparam. Aloizio Mercadante, durante congresso promovido pelo movimento Todos Pela Educação em 2013 Por sinal, o Pátria Educadora é um dos programas carro chefe do governo federal. Como você avalia este documento? Não casualmente, esse documento foi elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), atualmente dirigido pelo ministro Mangabeira Unger. Ele parte de um diagnóstico de que o modelo de desenvolvimento baseado em commodities se esgotou com a crise mundial, com seus preços despencando depois daquele período de ouro entre 2004 e 2009. Com a desvalorização dessas commodities, Mangabeira chama atenção para o fato de que o Brasil deveria buscar outra Roberto Leher, reitor da UFRJ “As resistências acontecem na forma de lutas sindicais, quando fazem greve criticando a chamada “meritocracia”, os sistemas de avaliação” forma de inserção na economia mundial que não fosse apenas de commodities. E a minha hipótese é que eles estão sinalizando nesse documento que o Brasil deveria ser uma espécie de plataforma de exportação, assim como já existe na fronteira norte do México, em alguns países asiáticos – o modelo chinês foi isso nos anos de 1990, de ser um local em que a força de trabalho é muito explorada, recebe um treinamento específico que permite uma exploração muito grande, e esses países entram em circuitos de produção industrial de maneira subalterna, explorando o que seriam sua vantagens comparativas: baixo custo de energia, da força de trabalho, baixa regulamentação ambiental, e isso daria vantagens competitivas novamente ao país. O drama é que a concepção do Pátria Educadora tem como correspondência a ideia de que a formação da maior parte da força de trabalho no Brasil deve ser por um trabalho mais simples, e isso tem consequências pedagógicas muito grande. Se é para formar para o trabalho simples, a maior parte das escolas podem ser instituições estruturadas para a formação de um trabalho de menor complexidade, que seria desdobrados em processos de formação técnica de cursos de curta duração, cujo exemplo mais conhecido é o Pronatec, em que grande parte dos cursos são aligeirados para a formação de uma força de trabalho simples - tanto aquela que já estará inserida no mercado quanto aquela que constitui o que podemos denominar de um exército industrial de reserva. O documento Pátria Educadora altera a racionalidade da organização da escola quando vislumbra escolas que vão formar forças de trabalho de menor complexidade. É importante destacar que no documento encontramos uma formulação muito perigosa de enormes consequências para o futuro da educação brasileira, que é a referência que o Mangabeira faz da adoção de um modelo tipo SUS (Sistema Único de Saúde). O que é isso? O modelo SUS teve como objetivo assegurar o direito ao atendimento à saúde de maneira universal, e isso poderia ser feito tanto pelo órgãos públicos quanto pelas entidades privadas. Quando Mangabeira reivindica o modelo SUS, claramente está sinalizando que a formação do conjunto da classe trabalhadora deveria ser feita em nome de uma suposta democratização, realizada tanto pelas instituições públicas quanto pelas organizações privadas. Isso é congruente com o PNE aprovado em 2014, ao estabelecer que a verba pública é aquela utilizada nas instituições públicas, mas também em todas as parcerias público-privadas, como o FIES, PROUNI, Ciências Sem Fronteira, Pronatec, Pronacampo, sistema S, tudo isso entra como recurso público. A rigor, estamos diante de uma política que pode indiferenciar as instituições públicas e privadas em detrimento do público, já que as corporações também se acercam da educação básica. Em setembro acontecerá o 2° Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (Enera), em Brasília. Como o Enera se insere nesta conjuntura? Tenho uma expectativa muito positiva em relação ao segundo Enera. No primeiro Enera tivemos a constituição de outra perspectiva pedagógica para a educação brasileira, que foi a Educação do Campo, uma conceituação do que seria uma educação pública voltada para o campo, mas com um horizonte de formação humana que ultrapassa o campo. Foi certamente uma proposta que promoveu sínteses brilhantes entre uma perspectiva crítica que vem do campo marxista, da ideia da escola unitária, do trabalho, ao compreender que o trabalho deveria ser um elemento simbólico, imaginativo, capaz de nos constituir como seres humanos, e que portanto a escola é o lugar da cultura, da arte, da ciência, da tecnologia, e não uma instituição livresca. É uma instituição que tem interação com o mundo, com a vida, com os processos de trabalho, com a produção real da cultura em diversos espaços, como pensar no que significa a agricultura no Brasil. Foi uma proposta pedagógica que promoveu sínteses incorporando pensamento critico marxista, tradição latino-americana de educação popular, particularmente com Paulo Freire, e criou bases para um pensamento pedagógico socialista. O segundo Enera, a meu ver, está desafiado pela conjuntura a fazer um balanço do que foi essa mercantilização e de como o capital está tentando se apropriar do conjunto da educação básica. Ao fazer essa reflexão, certamente o Enera vai ajudar a criar bases para uma perspectiva de educação pública unitária capaz de contrapor a educação frente à lógica de movimentos empresariais como o Todos pela Educação. Pode haver incorporações de elementos novos na nossa reflexão sobre a pedagogia socialista que respondam desafios da ofensiva do capital, mas sobretudo respondam os anseios que estão pulsando em todo o país em torno da educação pública. “Estamos diante de uma política que pode indiferenciar as instituições públicas e privadas em detrimento do público, já que as corporações também se acercam da educação básica” Como as últimas greves na educação? Podemos problematizar a fragmentação das lutas pela educação, o fato de que muitas vezes são lutas econômicas e corporativas, que estão vinculadas as políticas municipais e estaduais, mas não tenho dúvidas de que essas lutas que estão pulsando no país estão enfrentando aspectos dessa pedagogia do capital, criticando a meritocracia, a racionalidade das competências e dos sistemas centralizados de avaliação, o uso de cartilhas. Temos críticas reais a essa lógica de controle que o capital está buscando sobre a educação básica, mas precisamos sistematizar isso com outros fundamentos pedagógicos, e aprofundando a experiência que foi construída a partir do primeiro Enera. No segundo Enera acredito que novas dimensões para essa pedagogia socialista vão ser esboçados, e não como o resultado de um processo em que os especialistas de educação do MST vão se reunir e pensar o que seria essa agenda. Ao contrário, como resultado de uma articulação de movimentos que estão fazendo educação pública e estão buscando uma educação criativa, que estão fazendo as lutas de resistências com as greves, mobilizações, com a participação de estudantes. Esta riqueza de produções que estão em circulação nas lutas em defesa da educação pública que podem criar uma sistematização maior. Creia condições para que possamos ampliar esta aliança entre experiências da luta urbana com as que vieram do campo, produzindo novas sínteses e novas possibilidades para que a classe trabalhadora tenha sua própria agenda para o futuro da educação pública. É um processo longo e exigirá um esforço organizativo e intelectual de enorme envergadura. Temos que ter uma produção pedagógica mais sistematizadas, mais profunda, para criarmos a base desse pensamento pedagógico crítico, que assegure uma formação integral, mas uma educação que recusa a divisão dos seres humanos em dois grupos: um que pensa e mando, outro que executa e obedece. Essas bases para uma proposta socialista estão sendo gestadas nas lutas, mas com o Enera podemos ganhar um momento de qualidade no terreno da elaboração, articulação e organização em defesa desse projeto de novo tipo. 6 brasil de 9 a 15 de julho de 2015 Advogado diz que Cunha vulgariza emendas e ataca Constituição JUDICIÁRIO Cláudio Pereira de Souza Neto afirma estar otimista sobre julgamento, pelo STF, do mandado de segurança que pede a inconstitucionalidade das “manobras” do presidente da Câmara dos deputados Eduardo Maretti de São Paulo (SP) da Rede Brasil Atual APESAR DO QUADRO aparentemente irreversível provocado pelas “manobras” do presidente da Câmara, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), para aprovar as emendas à Constituição como quer, o advogado Cláudio Pereira de Souza Neto diz estar “muito” otimista quanto ao julgamento de mérito, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do mandado de segurança impetrado por 61 deputados. Mesmo com a rejeição da liminar pela ministra Rosa Weber, Souza Neto diz que “a violação à Constituição é evidente” e que a prática de Eduardo Cunha (idêntica nas PECs do financiamento privado e da maioridade penal) está “vulgarizando” o procedimento de alteração da Constituição. Após a ministra negar o pedido, o grupo entrou com um agravo regimental para que a questão seja levada ao Plenário. Segundo Souza Neto, advogado dos deputados, a decisão do Supremo deve se dar em agosto, após as férias dos ministros. “Alterar a Constituição é muito sério, não pode ser vulgarizado o procedimento de alteração da Constituição. A Constituição está sob ataque na presidência do deputado Eduardo Cunha” A argumentação do mandado de segurança é de que o processo desencadeado por Eduardo Cunha viola o artigo 60, parágrafo 5º, da Constituição, que proíbe a apreciação de matéria de emenda rejeitada ou prejudicada na mesma sessão legislativa. Outra alegação é de que a emenda do financiamento privado, aprovada no dia 27 de maio, pela Câmara, “não é verdadeira emenda aglutinativa, mas nova proposta de emenda constitucional”, violando o artigo 60, inciso I, da Constituição (que só poderá ser emendada mediante proposta de um terço, no mínimo, dos membros da casa, mas a emenda aprovada foi “subscrita apenas pelos líderes do PRB e bloco e do PTB”). Especializado em Direito Constitucional e Direito Administrativo, Souza Neto diz ainda que “a Constituição está sob ataque na presidência do deputado Eduardo Cunha”. Souza Neto falou à RBA. A intenção do agravo regimental é forçar o Plenário do Supremo a se pronunciar? É isso mesmo. Tínhamos um pedido de liminar em mandado de segurança, o pedido foi indeferido pela ministra relatora, Rosa Weber, e agora é o colegiado, o conjunto dos magistrados que pode julgar o pedido. Nossa expectativa é de que, depois do recesso, em agosto, haja a deliberação do Plenário a respeito desse pedido de liminar que formulamos. O agravo regimental é um recurso puramente processual ou diz respeito também ao mérito? É preliminar. Não sei se ela vai levar simultaneamente o agravo regimental, que trata da liminar, e o próprio mandado de segurança, que cuida do mérito. É possível que ela leve. Mas o fato é que o problema está se agravando. O presidente Eduardo Cunha repetiu o mesmo procedimento ilícito agora, na votação da maioridade penal. As situações são idênticas. Existe previsão para uma decisão do STF sobre o agravo? O problema é que começou o recesso, então a oportunidade para o tribunal se manifestar é só no final do recesso, em agosto. Segundo o deputado Alessandro Molon, os deputados vão entrar com um novo mandado de segurança contra a votação de ontem. Considerando que a ministra Rosa Weber já negou a liminar no primeiro caso, há expectativas positivas? Estou muito otimista, porque a violação à Constituição é evidente. Alterar a Constituição é muito sério, não pode ser vulgarizado o procedimento de alteração da Constituição. A Constituição está sob ataque na presidência do deputado Eduardo Cunha. Não é possível que quando seu time toma um gol o dono da bola altere as regras do jogo. Do jeito que está é muito fácil. A votação da PEC não logrou êxito, não foi aprovada, e o que se faz? Já sabemos quem votou contra, e é só convencer, persuadir 20 ou 30 deputados que se obtém o êxito no dia seguinte com uma nova proposta de emenda constitucional sob essa fantasia da emenda aglutinativa. Será que no Brasil inauguraremos essa prática? O presidente Eduardo Cunha está convertendo esse tipo de manipulação do procedimento legislativo num instrumento normal de direção dos trabalhos dos parlamentares. Não existe o risco de o Plenário do STF começar a examinar o caso, como vocês preveem, e no momento do voto de um ministro, por exemplo Gilmar Mendes, ele pedir vista do processo e o julgamento ficar suspenso indefinidamente? Não acreditamos que isso ocorrerá no caso do mandado de segurança. Sobretudo porque são liminares, que estão sendo submetidas ao Plenário. O instrumento de vista não pode se converter num mecanismo para evitar a deliberação do colegiado. Mas não foi isso o que aconteceu no caso do julgamento do financiamento privado, que estava 6 a 1 a favor da OAB, Mendes pediu vista há mais de um ano e não devolveu? É, mas a reiteração desse tipo de coisa vai acabar resultando na mudança do sistema, porque o sistema obviamente é insustentável dessa maneira. OPINIÃO Agravamento da crise e ameaças à democracia NOTA Diante do agravamento da crise política e das ameaças à democracia brasileira, o Secretariado Nacional do Partido Comunista do Brasil aprovou, dia 6 de julho, uma nota onde desmascara a falsidade dos argumentos golpistas e chama à mobilização em defesa do mandato constitucional da presidenta Dilma Rousseff. Leia a seguir a nota: Defender a democracia, derrotar a ameaça golpista A SITUAÇÃO política do país se agrava. A democracia, conquista histórica do povo brasileiro, é ameaçada abertamente pela direita neoliberal. O PSDB, na sua convenção realizada no último final de semana, às claras fez soar as trombetas de que teria chegado a hora de se afastar, por qualquer meio e a qualquer pretexto, a presidenta Dilma Rousseff do cargo que lhe foi conferido pelo voto de mais 54 milhões de brasileiros e brasileiras. Uma presidenta, com apenas seis meses de mandato nos quais faz uma grande luta para o país retomar o crescimento econômico, a geração de empregos, no contexto de uma grande crise mundial do capitalismo. A Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal, no que se refere à Operação Lava Jato, já se pronunciaram afirmando que “nada consta” contra a presidenta Dilma Rousseff, uma grande liderança, de conduta ilibada, com reputação incontestável de defensora do Brasil, de seu povo e do patrimônio da Nação e do Estado brasileiro. Sem nenhum fato, sem nenhuma base legal, jurídica, a direita neoliberal, com o apoio da grande mídia, na sua ambição de reaver o governo a qualquer preço, passou a pisotear em linha crescente a institucionalidade democrática. Neste momento, por exemplo, o consórcio oposicionista de direita tenta desesperada e criminosamente envolver o Tribunal de Contas da União (TCU) e o próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na sua trama antidemocrática. A matéria em exame no TCU, das chamadas “pedaladas fiscais”, está sendo totalmente esclarecida pelo gover- no, além do fato de ser um expediente ao qual recorreram outros governos e nenhum deles sofreu qualquer condenação por isto. Em relação ao TSE, a oposição tenta conspurcar a prestação de contas da campanha da presidenta, apoiando-se na delação premiada de um empreiteiro que sequer foi divulgada e cujo mérito já foi esclarecido: todas as doações eleitorais de empresas foram efetivadas de acordo com as leis do país. E a isso pode-se acrescentar que esse mesmo empreiteiro fez doações ao PSDB. Fica claro, portanto, o tipo de justiça que se quer impor: dois pesos, duas medidas. Ademais, conforme tem assinalado o PCdoB, outras forças progressistas, juristas renomados e mesmo vozes do STF, a Operação Lava Jato desvirtuou-se. Está claro que as sucessivas ações seletivas, afrontosas à Constituição, estão direcionadas para golpear a presidenta Dilma Rousseff, criminalizar o PT, desmoralizar a esquerda como um todo e atingir outros partidos da base do governo e, agora, tentando materializar a antiga ameaça de alvejar o ex-presidente Lula. O PCdoB — em 93 anos de presença ativa na história brasileira, e ao preço da própria vida de centenas de militantes — sempre defendeu a democracia como caminho indispensável para o fortalecimento do Brasil. Respaldado por esta trajetória de lutas, faz um chamamen- to às forças políticas e sociais democráticas e progressistas, às personalidades e lideranças que concebem a democracia como um bem maior da Nação, para que se manifestem, com senso de urgência, em defesa do Estado Democrático de Direito – uma bandeira que, neste momento, se materializa na defesa do mandato constitucional da presidenta Dilma Rousseff. Além da unidade e da ação de amplas forças democráticas, é importante a mobilização do povo, dos trabalhadores, através de suas entidades e seus movimentos. Se a oposição neoliberal ambiciona torna-se governo “em breve”, como proclamou em tom de ameaça o presidente do PSDB, Aécio Neves, que enfrente as urnas em 2018 e não tente, 51 anos depois da imposição da ditadura militar, chegar ao governo pela via suja de um golpe. A experiência histórica nos ensina que o golpismo da direita não se derrota com apelos, nem cedências, mas com a mobilização e a tomada de posição em defesa da democracia por parte de amplas forças políticas e sociais. É hora de mobilização, é hora de ação em defesa da democracia, do mandato constitucional da presidenta Dilma Rousseff! São Paulo, 6 de julho de 2015 O Secretariado Nacional do Partido Comunista do Brasil – PCdoB. brasil de 9 a 15 de julho de 2015 7 “Eduardo Cunha é um bandido político”, diz Leonardo Boff Guilherme Santos/Sul21 ENTREVISTA Teólogo afirma que presidente da Câmara é “extremamente ambicioso, manipulador, inescrupuloso e sem sentido ético”, cuja pretensão é propor o parlamentarismo para ser primeiro-ministro Marco Weissheimer de Porto Alegre (RS) Ofensiva conservadora em nível mundial “Vejo esse quadro com preocupação, pois é um quadro sistêmico. Ocorre também nos Estados Unidos, na Europa, em toda a América Latina. Acabo de vir de um congresso que contou com a presença de representantes das esquerdas de toda a América Latina e todos foram unânimes em dizer que essa etapa das democracias novas, de cunho popular e republicano, que surgiram depois das ditaduras, estão recebendo os impactos dessa ofensiva da direta, organizada e financiada também a partir do Pentágono. Essa direita está se organizando em nível mundial. Isso é perigoso. A história já mostrou que, depois que a direita se organiza, surgem fenômenos de caráter fascista e nazista, surgem regimes autoritários que buscam impor ordem e disciplina.” “Essa direita está se organizando em nível mundial. Isso é perigoso. A história já mostrou que, depois que a direita se organiza, surgem fenômenos de caráter fascista e nazista, surgem regimes autoritários que buscam impor ordem e disciplina” “Eu não tenho muito medo no caso do Brasil. Acho que aqui nós conseguimos uma ampla base social de movimentos organizados e um núcleo de pensamento analítico político que resiste vigorosamente, mas enfrenta a resistência da grande mídia que, de forma sistemática sustenta teses conservadoras e reacionárias, em consonância com a estratégia traçada pelo Pentágono em nível mundial. O objetivo central dessa estratégia é: um mundo, um império. Todos têm que se alinhar aos ditames des- O teólogo Leonardo Boff durante aula pública intitulada “Expressões sobre Direitos Humanos: Mais Amor, Mais Democracia” se império, que não tolera a existência de alguma força capaz de enfrentá-lo. O grande medo dos Estados Unidos é com a China, que está cercada por três grandes porta-aviões, cada um deles com um poder de fogo equivalente ao utilizado em toda a Segunda Guerra Mundial, com ogivas nucleares e submarinos atômicos de apoio, entre outras coisas. Isso nos mete medo, pois pode levar a um enfrentamento, senão global, de guerras regionais, com grande potencial de devastação.” “No que nos diz respeito mais diretamente, o grande problema é que os Estados Unidos não toleram a existência de uma grande nação no Atlântico Sul, com soberania e um projeto autônomo de desenvolvimento, que às vezes pode ser conflitivo com os interesses de Washington. O Brasil está mantendo essa atitude soberana e isso causa preocupação a eles, pois a economia futura será baseada naqueles países que têm abundância de bens e serviços naturais, como água, sementes, produção de alimentos, energias renováveis. Neste contexto, o Brasil aparece como uma potência primordial, pois tem uma grande riqueza desses bens e serviços essenciais para toda a humanidade.” Agenda conservadora no Congresso Nacional “De modo geral, a sociedade brasileira é conservadora, mas nos últimos anos, especialmente com a resistência à ditadura militar e com o retorno à democracia, se criou um sentido de democracia participaria e republicana, onde o social ganha centralidade e não simplesmente o Estado e o desenvolvimento material e econômico. Incluir aqueles que estiveram sempre excluídos passou a ser um tema central. Isso foi um elemento de progresso e avanço que assustou as classes privilegiadas que perceberam que esses 40 milhões de pessoas estão ocupando um espaço que era exclusivo deles e começam a ameaçar seus privilégios. Os representantes dessas classes não querem que o Estado se defina por políticas sociais, mas sim pelas políticas que, historicamente, sempre beneficiaram as classes dominantes. Eles conseguiram uma articulação com grandes empresas, com grupos do agronegócio e outros setores para construir uma representação parlamentar. O que vemos hoje é que os sindicatos praticamente não estão representados, os indígenas e negros não estão, o pensamento de esquerda não está. O que temos, na maioria dos casos, são deputados medíocres que representam in- “Acho que essas bancadas evangélicas fundamentalistas que se espalham pelo país são formações em si legítimas, uma vez que são eleitas, mas ilegítimas na medida em que não se inscrevem dentro do quadro democrático” teresses de grandes corporações nacionais e internacionais, que tem pouca ou nenhuma ligação com um projeto de nação.” “Diante desse quadro, nós precisamos, em primeiro lugar, travar uma batalha ideológica e debater que tipo de Brasil nós queremos, um Brasil como um agregado subalterno de um projeto imperial, ou um Brasil que tem condições de ter um projeto nacional sustentável próprio. Temos um grande embate a travar em torno dessa ideia. Acho que esse será também o tema central das próximas eleições. O povo não quer perder aquilo que conquistou de benefícios sociais nestes últimos doze anos e quer ampliá-los. Essas conquistas são de Estado, não são mais de governos. Esse embate será muito difícil, mas acho que há um equilíbrio de forças que vai permitir, pelo menos, governos de centro-esquerda, não totalmente de esquerda, pois creio que não há condições para isso hoje.” Sobre Eduardo Cunha, presidente da Câmara “Em primeiro lugar, acho que é um bandido político. Sempre foi conhecido assim no Rio. Um jornalista do Globo fala dele como ‘a coisa má’. É um homem extremamente sedutor, não respeita lei nenhuma, tem dezenas de processos de corrupção contra ele, mas consegue manipular de tal maneira os poderes que sempre consegue prolongar sua vida. É alguém que não tem nenhum respeito à Constituição e atropela normas do Congresso como bem entende. Creio que a pretensão dele, no final dessa legislatura, é propor o parlamentarismo para ele ser o primeiro-ministro, já que não poderá ser presidente pela via eleitoral. É uma pessoa extremamente ambiciosa, manipuladora, inescrupulosa, sem qualquer sentido ético e um fundamentalista religioso conservador e de direita.” “Acho que a campanha da Dilma foi mal conduzida. Tudo aquilo que ela combatia, que seriam medidas neoliberais, a primeira coisa que fez, sem discutir com o povo brasileiro, com os sindicatos e sua base de apoio, foi aplicá-las diretamente” O crescimento do fundamentalismo religioso “Acho que essas bancadas evangélicas fundamentalistas que se espalham O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha pelo país são formações em si legítimas, uma vez que são eleitas, mas ilegítimas na medida em que não se inscrevem dentro do quadro democrático. Querem impor a sua visão sobre a família, a ética individual e pública para toda a sociedade brasileira. O correto seria eles terem o direito de apresentar a própria opinião para ser debatida e confrontada com outras opiniões, respeitando as decisões coletivas. Mas eles querem impor a opinião deles como a única verdadeira e difamar e combater pelos púlpitos qualquer outra alternativa. Acho que devemos atacá-los pelo lado da Constituição e da democracia e enquadrá-los dentro da democracia, pois são pessoas autoritárias e destruidoras de qualquer tipo de consenso que nasce do diálogo.” Sobre o governo Dilma “Acho que a campanha da Dilma foi mal conduzida. Tudo aquilo que ela combatia, que seriam medidas neoliberais, a primeira coisa que fez, sem discutir com o povo brasileiro, com os sindicatos e sua base de apoio, foi aplicá-las diretamente. Neste sentido, ela decepcionou a todos nós que apoiamos a sua candidatura e o povo é suficientemente inteligente para perceber que houve um engodo. Por outro lado, cabe reconhecer que há uma crise que não é só brasileira, mas mundial, que afeta gravemente países como Grécia, Itália, Portugal e Espanha, com níveis de desemprego e de dissolução social muito mais graves do que os nossos.” Marcelo Camargo/ABr A OFENSIVA conservadora atualmente em curso no Brasil faz parte de um processo mundial de rearticulação da direita e representa um perigo real para a democracia e os direitos. No caso brasileiro, essa rearticulação conservadora também é uma reação das classes dominantes que não se conformam com a centralidade que a agenda social adquiriu nos últimos anos e com a ascensão social de cerca de 40 milhões de pessoas. Um dos principais expoentes dessa ofensiva, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é um bandido político que não respeita a Constituição e tem como objetivo, no final de seu mandato, propor a instauração do parlamentarismo e virar primeiro-ministro. A avaliação é do teólogo e escritor Leonardo Boff, que esteve em Porto Alegre (RS) no sábado, 4 de julho, para ministrar uma aula pública sobre direitos humanos. Intitulada “Expressões sobre Direitos Humanos: Mais Amor, Mais Democracia”, a aula pública reuniu centenas de pessoas no Parque da Redenção, na tarde fria de sábado. Após a aula, Leonardo Boff conversou com o portal Sul21, no Hotel Everest, sobre a atual conjuntura política do país e defendeu que, diante da ofensiva conservadora, é preciso travar, em primeiro lugar, uma batalha ideológica sobre que tipo de Brasil queremos: “Um Brasil como um agregado subalterno de um projeto imperial, ou um Brasil que tem condições de ter um projeto nacional sustentável próprio. Temos um grande embate a travar em torno dessa ideia. Acho que esse será também o tema central das próximas eleições”, diz Boff. A seguir, um resumo dos principais momentos da conversa de Leonardo Boff com o Sul21: “Então, estamos diante de um problema sistêmico, não só brasileiro, mas aqui ele ganhou conotações muito específicas porque o PT tinha um projeto progressista de centro-esquerda, de apoio aos movimentos sociais, comprometido a não tocar em direitos dos trabalhadores e pensionistas. E o governo acabou tomando medidas que considero injustas, pois colocou a carga principal da crise sobre os ombros os trabalhadores e pensionistas, e não em cima dos grandes capitais, das grandes heranças e do sistema financeiro dos bancos. Estes setores foram poupados e isso eu acho uma injustiça e uma indignidade.” “Então, o povo, com justiça, fica desolado. A gente sabe que a Dilma é ética e não cometeu malfeitos, mas tomou medidas na direção contrária do que pregava. Então é uma contradição visível que não requer muita análise para mostrar. Ela dizia que nem que a vaca tussa iria mexer em direitos, e a primeira coisa que fez foi mexer no seguro-desemprego e nas pensões. Houve uma quebra da confiança e, em política, o que conta de verdade é a confiança. Agora, se ela tiver algum sucesso e conseguir não penalizar o país demasiadamente em termos de desemprego e retrocesso no processo produtivo, ela poderá voltar a ganhar confiança, mas é uma conquista muito difícil.” (portal Sul21) 8 brasil de 9 a 15 de julho de 2015 Quem pode dizer que eles não são índios? EXPLORAÇÃO Ao revelarem que o governo do Pará autorizou planos de manejo florestal dentro de terra indígena, os Borari e Arapiuns foram acusados de serem “falsos índios”. O caso fortalece a importância da autodenominação Ana Aranha de Terra Indígena Maró, Santarém (PA) “Primeiro foi uma oferta no valor de 30 mil. O madeireiro abriu a pasta na minha frente e mostrou o dinheiro” Ofensiva Nos últimos anos, o grupo de vigilantes só aumenta a ofensiva contra os madeireiros. Aprenderam, com a Funai, a manusear o GPS e colher elementos para relatórios de fiscalização. Assim, documentam e encaminham denúncias formais sobre tudo que encontram dentro da terra. A pressão exercida pelo grupo foi tanta que despertou uma delicada disputa jurídica entre entes federais e estaduais. Com as evidências colhidas pelos Borari e Arapiuns, as entidades de apoio aos indígenas descobriram que a Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará autorizou a exploração da floresta dentro da Terra Indígena. No mapa abaixo, levantado pela ONG Fase Amazônia (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), é possível ver ao menos dez áreas dentro da terra indígena onde o governo do estado autorizou o registro de Cadastros Ambientais Rurais. Fonte: Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) Fotos: Ana Aranha “DÓI, COMO SE FOSSEM rasgando o nosso ventre.” Apolonildo de Souza Costa, mais conhecido como Rosí, pousa a mão sobre a barriga para explicar o que sente ao ver barcos madeireiros escoando pilhas de troncos pelos rios que banham a Terra Indígena Maró, noroeste do Pará. Os outros 239 indígenas Borari e Arapiuns que vivem nesta terra também sentem, no estômago, os impactos do desmatamento: a fome é o primeiro efeito da degradação ambiental, consequência da fuga da caça e da dificuldade em coletar frutas. Como muitos representantes de povos que foram perseguidos e catequizados pelas missões jesuítas na região, Rosí não tem “nome de índio”. A colonização ensinou seus antepassados a esconder a identidade. Mas o semblante altivo denuncia novos tempos e Rosí enche o peito para se apresentar como “guerreiro-vigilante Borari”. As evidências formais sobre a identidade indígena dos habitantes da terra Maró somam 250 páginas de estudo de identificação feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A mais contundente delas, porém, não está no papel; mas na ousada ação dos “guerreiros-vigilantes”. O grupo se arrisca para combater o desmatamento dentro de sua terra. Uma vez por mês, deixam suas casas e passam dias vasculhando os 42 mil hectares da terra Maró em busca dos invasores. Quando os encontram, geralmente instalados em serrarias, os vigilantes acionam a Funai e ficam no local até uma equipe de fiscalização chegar. Os funcionários das madeireiras não costumam reagir com violência. A reação vem depois. O segundo-cacique Odair José Souza Alves, conhecido como Dadá Borari, já recebeu ofertas de dinheiro, ameaças, perseguições e sofreu um violento atentado. “Primeiro foi uma oferta no valor de 30 mil. O madeireiro abriu a pasta na minha frente e mostrou o dinheiro”, diz Dadá. Depois, vieram as ameaças. Até que a violência subiu de tom e, em junho de 2007, Dadá foi sequestrado na cidade de Santarém (sede do município onde fica a terra Maró). Ficou sete horas em cativeiro. “Fui amarrado em duas árvores, pernas e braços, e fui apanhando”, lembra. Um inquérito foi aberto sobre o caso, mas os culpados nunca foram encontrados. Como Dadá continuou a receber ameaças, foi incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Há sete anos convive com a escolta de policiais militares. Quando fala da violência, cresce a convicção na voz do cacique. “Posso estar no último suspiro, mas não vou embora daqui. Ameaça pra mim é fortalecimento.” Dadá Borari recebeu ameaças e foi espancado depois de denunciar as madeireiras Acionado pelos indígenas, o Ibama identificou e embargou Projetos de Manejo Florestal dentro da área. Ou seja, madeira que saía da terra indígena com selo de certificada. Em alguns casos, as madeireiras receberam a autorização como permuta após terem sido retiradas de outra terra indígena ao sul do estado. A legalidade dessas autorizações é questionada pelo Ministério Público Federal do Pará, que moveu ação pedindo a retirada das serrarias do local. Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará respondeu que a concessão só ocorreu porque o processo de demarcação ainda não foi concluído: “A referida área está somente delimitada e não demarcada, o que oficializaria o local como terra indígena. Em área indígena consolidada não há Cadastro Ambiental Rural”. A demarcação da Terra Indígena Maró anda a passos lentos no Ministério da Justiça desde 2011, quando foi publicado o relatório de identificação e delimitação. Segundo a Funai, o processo está “em fase do contraditório administrativo em análise pelo Ministério da Justiça”. Em meio à disputa, os Borari e Arapiuns municiaram o Ibama e o MPF para que realizassem uma grande fiscalização no território. Em novembro de 2014, os fiscais interditaram as serrarias e em- “Posso estar no último suspiro, mas não vou embora daqui. Ameaça pra mim é fortalecimento” bargaram os Planos de Manejo Florestais em execução na área. “Índios falsos” Duas semanas depois, no que foi interpretado como uma resposta à operação, o juiz federal de Santarém Airton Portela soltou uma controversa sentença: ele determinou a “inexistência” da identidade Borari e Arapiuns. Usando termos como “índios falsos” e “supostos rituais”, o juiz questionou o laudo antropológico da Funai para determinar que o órgão deveria suspender o processo de demarcação, liberando a exploração da floresta dentro da terra indígena. A ação também foi citada como justificativa pela Secretaria do Meio Ambiente quando questionada sobre as autorizações de manejo florestal: “há uma discussão jurídica em andamento sobre a existência da Terra Indígena Maró. A Justiça Federal considerou essa Terra Indígena inexistente”. A argumentação do juiz despertou a reação de antropólogos e indigenistas porque nega o direito à autodenominação. Placa feita pelo Conselho Indígena Intercomunitário Arapium Borari Foi o caso de Jane Felipe Beltrão, vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia. “Assim que soube, entrei em contato com o procurador do caso e ofereci apoio. Essa ação atenta contra a Constituição, que garante aos indígenas o direito a se apresentar como tal”, afirma a antropóloga. Ela foi uma das pareceristas da apelação movida pelo Ministério Público Federal, que conseguiu suspender a ação. A sentença final sobre este caso pode fixar um importante marco ou um perigoso precedente. Isso porque o juiz usa a miscigenação entre culturas para negar a identidade indígena. Argumenta, por exemplo, que o hábito de beber xibé (alimento de origem indígena feito da farinha de mandioca) seria “inservível” para caracterizar a identidade porque já foi incorporado pela população do Pará. Do mesmo modo, práticas católicas introduzidas pelos missionários servem como argumento contra o reconhecimento dessa população. Levando o raciocínio ao extremo, todas as populações indígenas que já foram influenciadas ou influenciaram outras culturas perderiam o direito à terra. Cultura “O juiz erra quando acha que a cultura é estanque”, pontua Jane. Ela explica que toda a população indígena da bacia do Tapajós sofreu severo processo de perseguição e repressão cultural do século 16 ao 18. Entre os que não foram escravizados pelos colonos, morreram no confronto ou fugiram para outras regiões, muitos foram conduzidos aos aldeamentos: comunidades submetidas à catequese de missionários. Nesses locais, segundo o relatório de identificação da Funai, os indígenas eram ensinados a “demonizar” (termo retirado dos registros históricos) sua língua nativa, hábitos alimentares, rituais e organização política. “Há uma discussão jurídica em andamento sobre a existência da Terra Indígena Maró. A Justiça Federal considerou essa Terra Indígena inexistente” “A tentativa era de homogeneizar, fazer com que deixassem de ser indígenas. Por muito tempo, eles foram obrigados a ocultar sua identidade para sobreviver. Com a Constituição vem um marco importante dos seus direitos”, explica Jane. A ação dos Borari e Arapiuns na afirmação da sua identidade revela que passou o tempo de se esconder. O caso é mais um exemplo do protagonismo indígena na defesa de suas terras. Para quem ainda tem dúvidas sobre o que define a identidade indígena no século 21, o cacique Dadá deixa um convite: “Pra quem questiona a minha etnia, eu quero convidar: venha até minha aldeia, venha me conhecer, mas venha para ser alfabetizado por nós. Ser indígena hoje não é o mesmo de 200 anos atrás. O fato de usar camisa, celular, computador, casa de alvenaria, de jeito nenhum isso diz que eu perdi minha cultura. Se a gente não aprender com a sociedade, vamos ser como o indígena era 200 anos atrás, enganado, roubado. Hoje nós estudamos. O indígena hoje é um cidadão brasileiro”. (Repórter Brasil) brasil de 9 a 15 de julho de 2015 9 NSA espionou assistente pessoal de Dilma e avião presidencial Roberto Stuckert Filho/PR RELAÇÕES Novo vazamento do WikiLeaks revela lista de alvos da NSA no Brasil; entre eles, Palocci, o ministro do Planejamento Nelson Barbosa e o atual embaixador nos EUA Natalia Viana de São Paulo (SP) Para monitorar a chefe do executivo brasileiro, a NSA selecionou nada menos que 10 telefones diretamente ligados a Dilma Diferentemente dos vazamentos europeus, os dados sobre o Brasil não contêm mensagens interceptadas, apenas enumera os alvos preferenciais dos EUA. O vazamento publicado dia 4 de julho são chamados de “Bugging Brasil”, ou “Grampeando o Brasil”, em português. Para monitorar a chefe do executivo brasileiro, a NSA selecionou nada menos que 10 telefones diretamente ligados a Dilma. São telefones fixos de escritórios, como aquele usado pelo comitê de campanha em 2010 no Lago Sul de Brasília, celulares marcados como “relações de Dilma” (liaison, em inglês) e a linha fixa do Palácio do Planalto. Anderson Dornelles, assessor pessoal de Dilma, foi incluído na lista de “alvos” da NSA no primeiro ano do mandato, e seu celular passou a ser atentamente monitorado. O gaúcho de 35 anos, chamado pela presidente carinhosamente de “bebê” e “menino”, é há duas décadas seu fiel escudeiro, começou a trabalhar como office-boy da presidente aos 14 anos, quando ela presidia a Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul, e a acompanhou em todos os cargos públicos desde então. O tema de interesse em espionar Anderson está descrito como “Brasil: Assuntos Políticos”. Espioná-lo era considerado como prioridade de nível “3” para Dilma Rousseff é recebida por Barack Obama em Washington, nos EUA Reprodução NA MESMA SEMANA em que Dilma Rousseff realizou a primeira viagem presidencial aos Estados Unidos, informações secretas obtidas pelo WikiLeaks revelam detalhes sobre a espionagem da NSA, sigla em inglês da Agência Nacional de Segurança, contra a presidenta e assessores próximos, ministros e um integrante do Banco Central. As informações, às quais a Agência Pública, Carta Capital e O Globo tiveram acesso em primeira mão, revelam que a espionagem da NSA no início do governo Dilma se centrava não só na figura da presidenta, mas em integrantes ou ex-integrantes importantes do governo nas áreas econômica, financeira e diplomática. São 29 “alvos”. Entre eles, Antônio Palocci, então chefe da Casa Civil. O celular do assistente da presidenta, Anderson Dornelles, responsável por cuidar das ligações pessoais de Dilma, também estava na mira da NSA. Nem o avião presidencial escapou da bisbilhotagem norte-americana. As informações provêm de uma base de dados usada pela NSA para selecionar “alvos” cujas comunicações devem ser analisadas. Os arquivos sobre alvos (ou “selectors”) brasileiros referem-se ao ano de 2011 e fazem parte de uma série de vazamentos realizados nas últimas semanas. O WikiLeaks já havia publicado uma lista de 69 nomes que seriam alvos da NSA na Alemanha, incluídos ministros e representantes para comércio, finanças e agricultura, além do assistente pessoal da chanceler Angela Merkel. Também foram publicados três resumos de conversas interceptadas em 2011. Em uma delas, Merkel discute com seu assistente a crise grega. No fim de junho, o WikiLeaks revelou que os EUA espionaram o presidente francês François Hollande e dois ex-presidentes, Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, além de ministros das finanças e empresários. Em resposta, Hollande realizou uma reunião de emergência do seu gabinete para discutir o tema e ligou em seguida para Obama, que garantiu que os EUA deixaram de fazer espionagem. O ministro de Relações Exteriores convocou o embaixador americano em Paris para pedir explicações. Merkel fez o mesmo. o governo dos EUA. Quanto mais baixo o número, segundo a classificação da NSA, maior a prioridade. Todos os alvos brasileiros têm prioridade “3” enquanto os alemães são de prioridade “2”, assim como os presidentes franceses. Outro integrante espionado foi Palocci, que deixou o governo em junho de 2011 após denúncias de enriquecimento ilícito: seu patrimônio aumentou 20 vezes entre 2006 e 2010. O ministro Palocci era o principal articulador político do governo. A presidenta não era deixada em paz pelos ouvidos atentos da NSA nem mesmo quando estava em viagem. O telefone via satélite instalado no avião presidencial, o Airbus Força Aérea 1 também estava na mira. O avião é equipado com sistema de comunicação por satélite da empresa britânica Inmarsat, que opera onze equipamentos posicionados em órbita geoestacionária ao redor da Terra. Nada disso evitou que os espiões norte-americanos pudessem acessar livremente o conteúdo das chamadas presidenciais a bordo do avião. Assim como no caso da Alemanha e França, o novo vazamento do WikiLeaks é eloquente ao mostrar que o governo dos EUA tinha como alvos preferenciais negociadores da política econômica e financeira. Nelson Barbosa, hoje Ministro do Planejamento, foi espionado quando era secretário-executivo do Ministério da Fazenda. O número fixo assinalado pela NSA é usado ainda hoje pela Secretaria. Mercado financeiro Outro espionado foi o ex-chefe de gabinete do Ministério da Fazenda, Marcelo Estrela Fiche, exonerado em dezembro de 2013. O embaixador Luís Antonio Balduíno Carneiro, que em 2011 era diretor do Departamento de Assuntos Financeiros do Itamaraty e atualmente é diretor da Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, e o subsecretário de Relações Internacionais, Fernando Meirelles de Azevedo Pimentel, também constam na lista. Sobre ele, a NSA anota que conduzia o mesmo tipo de vigilância exercido sobre diversos países – de olho no mercado financeiro. “Multi-países: desenvolvimentos financeiros internacionais”, diz o registro. A procuradora-geral da Fazenda, Adriana Queiroz de Carvalho, era outro alvo. Vinculada à Advocacia Geral da União, a Procuradoria representa a União em disputas judiciais e dá assessoria jurídica ao ministério sobre créditos tributários, entre outros assuntos. Luiz Awazu Pereira da Silva, que se prepara para assumir a vice-presidência no Banco de Compensações Internacionais, considerado o Banco Central dos Bancos Centrais, não escapou. Era diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central. Posteriormente comandou a Diretoria de Regulação do Sistema Financeiro e a diretoria de Política Econômica do BC. Nesse posto, atuou diretamente sobre a política de juros, como os aumentos ou redução da taxa Selic. “Nossa publicação de hoje mostra que os EUA têm um longo caminho à frente para provar que a sua vigilância massiva em países ‘amigos’ realmente acabou” Acordos climáticos Além dele, também foi espionado o atual embaixador brasileiro nos EUA, Luiz Alberto Figueiredo Machado. O interesse em Machado teria relação com as negociações de acordos climáticos. Em 2011, Machado era diretor do Departamento de Meio Ambiente e temas especiais do Itamaraty. Foi secretário-executivo da Rio+20 e chefiou ao menos três delegações brasileiras nas Conferências da ONU para o Clima. Machado assumiu o Itamaraty após a saída de Antônio Patriota em 2013 e permaneceu até o fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff. A NSA monitorou ainda o telefone da residência do embaixador Luiz Filipe de Macedo Soares Guimarães em Genebra, o atual embaixador na Argentina Everton Vieira Vargas, quando era representante na Alemanha, e a embaixada brasileira em Paris, segundo os arquivos. Procurados, nenhum dos “alvos” quis se pronunciar. As novas revelações do WikiLeaks mostram pela primeira vez os alvos específicos da NSA no Brasil. Em 2013, documentos vazados por Edward Snowden haviam revelado que milhões de e-mails e ligações de brasileiros e estrangeiros em trânsito no país foram monitorados. Snowden também revelou que as comunicações da Petrobras e de Dilma Rousseff eram espionadas. Em resposta, a presidente cancelou uma viagem aos EUA que estava agendada e criticou publicamente a espionagem americana na Assembleia-Geral da ONU. Junto com o governo alemão o Brasil propôs ainda à ONU uma proposta que prevê regras para garantir o direito à privacidade na era digital. Vigilância “amiga” Porém, antes da recente viagem aos EUA, Dilma Rousseff já dizia considerar o conflito como “uma coisa do passado”. Agora, depois da visita, considerada bem-sucedida, resta saber como o governo vai lidar com essas novas – e preocupantes – revelações. Afinal, pouco se sabe ainda sobre quais informações sigilosas foram acessadas e como isso foi usado para o benefício econômico e político dos americanos. “Nossa publicação de hoje mostra que os EUA têm um longo caminho à frente para provar que a sua vigilância massiva em países ‘amigos’ realmente acabou”, diz Julian Assange. “Os EUA não só espionaram a presidente Rousseff mas também figuras-chave com quem ela fala todos os dias. Mesmo se as promessas dos EUA de que deixaram de espioná-la forem dignas de confiança – e não são – é impossível imaginar que Rousseff possa governar o Brasil falando apenas consigo mesma. Se a presidente Rousseff quer receber mais investimentos no Brasil após sua recente visita aos Estados Unidos, como ela pode garantir às empresas brasileiras que a concorrência americana não obterá vantagens provenientes dessa vigilância até que ela possa realmente comprovar que a espionagem cessou? E não apenas sobre ela, mas sobre todos os alvos brasileiros.” Colaborou Renan Truffi. O que revelam os documentos A BASE DE DADOS publicada pelo WikiLeaks demonstra como funciona o aparato de espionagem da NSA. Embora o órgão americano intercepte milhões de registros de telefonemas em diversos países, apenas alguns telefones são considerados alvos prioritários, aos quais os analistas devem estar sempre atentos. Para que a espionagem seja conduzida é necessário que ela siga uma ordem de “Necessidade de Informação” promulgada pelo Departamento de Inteligência Nacional. O código dessa autorização aparece em todas as comunicações, bem como a unidade dentro da NSA que é encarregada de espionar as conversas. Um documento de “Necessidade de Informação” de 2002, feito sob medida para espionar os franceses, estabelece como áreas de interesse informações sobre relações econômicas bilaterais, política macroeconômica e financeira, orçamento, contratos internacionais e negociações com instituições financeiras internacionais. Documento semelhante foi produzido sobre o Brasil, segundo consta na base de dados, mas seu teor não consta do vazamento do WikiLeaks. (Agência Pública) 10 brasil de 9 a 15 de julho de 2015 Documentário lembra livro histórico e perpetuação da tortura Douglas Mansur/Celeiro da Memória BRASIL: NUNCA MAIS “Coratio” aborda publicação lançada em 1985, que tornou públicas as torturas na ditadura, mas ressalta que prática persiste até hoje Vitor Nuzzi de São Paulo (SP) da Rede Brasil Atual HAVIAM SE PASSADO apenas quatro meses da saída do último presidente-general, João Figueiredo, quando um livro escancarava e detalhava as torturas praticadas durante a ditadura formalmente encerrada. Era julho de 1985, quando, sem alarde, Brasil: Nunca Mais chegou às livrarias. A obra se tornou possível pela ousadia de advogados, religiosos e uma rede de contatos que garantiu, clandestinamente, a preservação de processos e documentos anexos – mais de 700. Esse conteúdo hoje é acessível a todo interessado (http://bnmdigital.mpf. mp.br). Na época, foi um risco. Ainda maior quando os organizadores decidiram resumir as informações em um livro. Dom Paulo Evaristo Arns e o reverendo presbiteriano Jaime Wrigt estiveram à frente do projeto, que envolveu, entre outros, o ex-ministro e ex-preso político Paulo Vannuchi, o jornalista Ricardo Kotscho e o escritor Frei Betto. Atualmente na 40ª edição, o livro, que se tornou uma referência para os movimentos de direitos humanos, é tema do documentário Coratio, dirigido por Ana Castro e Gabriel Mitani e que foi exibido dia 4 de julho, no Memorial da Resistência de São Paulo. Após a exibição, houve debate com Paulo Vannuchi (membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos), o também ex-preso político Anivaldo Padilha e o cientista político Bruno Paes Manso. Além de lembrar os 30 anos da publicação do livro, o documentário propõe também refletir sobre a persistência da expressão “nunca mais”. Os diretores do filme lembram que a tortura continua sendo uma prática recorrente no país e lamentam certo esquecimento de fatos passados no período autoritário. “A preservação da memória, o aprendizado a partir das experiências anteriores são hábitos pouco cultivados no país. O livro foi um sucesso, vendeu muito, marcou uma época. E mesmo assim caiu no esquecimento”, constata Ana Castro, para quem há um déficit entre a realidade e o que ensinam a escola e a mídia. Debate no Memorial da Resistência de São Paulo após exibição do documentário Coratio época. E mesmo assim caiu no esquecimento. O assunto: tortura, violação de direitos humanos não é algo fácil. É mais fácil varrer para debaixo do tapete do que colocar em cima da mesa e escancarar o problema. Dói ler aqueles relatos, então as vezes é mais fácil fingir que eles não existem. “Quando a violência atinge setores da sociedade que já são marginalizados ela é naturalizada, como se fosse normal um menino morrer ou ser espancado pelo simples fato de morar na periferia, por ser negro, ser pobre” O Brasil: Nunca Mais surgiu da audácia de algumas pessoas, que conseguiram montar uma operação que envolveu cópias de processos e uma grande rede de apoio. Você diz que se impressionou com o que chamou de esquecimento dessa história. Por que acha que isso aconteceu? Ana Castro – Acredito que o Brasil já se esqueceu de muita história. A preservação da memória, o aprendizado a partir das experiências anteriores são hábitos pouco cultivados no país. O livro foi um sucesso, vendeu muito, marcou uma Faltou ousadia, faltou enfrentar a chamada ideologia da segurança pública? Os governos que se sucederam desde a redemocratização não quiseram mexer nessa questão? O Estado policial prevaleceu? É difícil dar uma resposta única para isso. A impunidade dos torturadores da ditadura, a falta de uma reforma institucional nas policias, a invisibilidade que alguns grupos específicos sofrem na sociedade: negros, pobres, periféricos, presidiários. São muitos os fatores que contribuíram para a perpetuação desse estado de violência. O senso comum, hoje, aponta para uma perpetuação desse ambiente? Reprodução Com 15 anos de profissão e passagens pela revista Época, pela TV Globo e pela Pública, agência de reportagem e jornalismo investigativo, Ana Castro pediu demissão da Globo, onde há 12 anos trabalhava como produtora e editora. Ela conta que resolveu fazer o que sonhava. O nascimento de sua primeira filha, Tarsila, foi decisivo na guinada. “A maternidade me deu forças para ir atrás de outros sonhos e de realizar projetos significativos para mim, mas também que pudessem contribuir de alguma maneira para a sociedade.” Há pouco menos de dois meses, Tarsila ganhou a companhia de Ernesto. Sem punições para os violadores de direitos humanos, para agentes do Estado que praticaram abusos, a vida continuou como se tudo aquilo fosse natural e até necessário. “Vivemos uma espécie de limbo da história”, diz Ana. Leia a íntegra da entrevista. Será que o país esqueceu rápido demais de sua história recente ou é, em alguma medida, desconhecimento? Em algumas manifestações de rua recentes e nas redes sociais, há quem peça a volta da ditadura. Acredito que há uma geração que nasceu depois dos anos 1980 que teve o privilégio de não ter vivido a ditadura. Essa geração cresceu sem muita informação de qualidade a respeito da época. Há um déficit muito grande entre a realidade e aquilo que é ensinado nas escolas, divulgado na grande mídia. Claro que isso não justifica o desconhecimento. Mas alimenta uma visão limitada. Outro ponto é que essa história, o fim da ditadura, ainda não está bem resolvida no país. Vivemos uma espécie de limbo da história. Acabou a ditadura sem punição para quem violou direitos humanos, sem que houvesse um grito definitivo contra a tortura, contra os abusos de agentes do Estado. A vida seguiu sem que isso tenha sido resolvido. Perpetuou-se a violência, mas também um sentimento de que a ditadura não foi tão ruim, já que com o fim dela ninguém foi punido. Há também a questão de alguns mitos sobre o período, como por exemplo: a economia era uma maravilha, havia controle social, não existia corrupção, só quem era bandido e estava fazendo “coisa” errada é que foi torturado. Esses mitos ficam no inconsciente coletivo e alimentam uma imagem equivocada do período. Quem não se aprofunda e não vai atrás de informação de qualidade, acaba reproduzindo essas besteiras. Não é de se estranhar que essas pessoas peçam a volta da ditadura, por achar que de fato ela era melhor. Acredito que há uma tolerância muito grande com a violência cometida contra certos grupos. A tortura ainda é vendida como algo necessário para se arrancar uma confissão, para punir algum criminoso. Nem as instituições, nem a sociedade ainda deram um grito de que a tortura e as violações dos direitos humanos são inaceitáveis em quaisquer situações. Ainda é muito comum ouvir, mesmo em alguns programas de rádio e televisão, que “bandido bom é bandido morto”, que se apanhou é porque fez coisa errada, que se foi torturado na cadeia é porque mereceu. Esses discursos não chocam as pessoas. Naturalizamos tanto as violações que hoje elas parecem ser normais. Por que em alguns casos as violações parecem “aceitáveis” e em outros não? O mesmo que respondi na pergunta anterior. Quando a violência atinge setores da sociedade que já são marginalizados ela é naturalizada, como se fosse normal um menino morrer ou ser espancado pelo simples fato de morar na periferia, por ser negro, ser pobre. A situação piora ainda mais quando a violência praticada por agentes do Estado atinge a população prisional. Nós, como sociedade, não reagimos quando um bandido tem seu direito violado. Há um sentimento de vingança, de uma falsa justiça. Isso alimenta um sentimento de impunidade que ronda quem viola os direitos humanos, especialmente os agentes do Estado ou os justiceiros. Se alguém bater no bandido, espancar um estuprador, a sociedade se sente vingada. Isso nos aproxima da barbárie. Agora se a violência atinge setores de classe média, brancos, as pessoas que são “visíveis”, daí sim há um sentimento de revolta da sociedade. “Acabou a ditadura sem punição para quem violou direitos humanos, sem que houvesse um grito definitivo contra a tortura, contra os abusos de agentes do Estado. A vida seguiu sem que isso tenha sido resolvido” O STF também deixou de ousar ao manter a interpretação da Lei da Anistia? Você acredita que, com a nova composição do tribunal, essa visão poderá mudar? Eu acho que o STF não muda mais essa matéria. Mas acredito que há espaço jurídico para se processar os violadores de direitos humanos da ditadura sem se apelar para a Lei da Anistia. Já há alguns casos em andamento, como por exemplo da família Teles contra o Ustra (o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, identificado como torturador por ex-presos políticos). Há outros caminhos possíveis. Ainda que haja esse esquecimento, Brasil: Nunca Mais foi também um marco no movimento dos direitos humanos e contra a violência do Estado. Trinta anos depois, qual a importância do livro para a história e para a memória coletiva? Eu acho o livro importantíssimo. Foi a primeira obra que denunciou a tortura, usando documentos oficiais. A ditadura nunca conseguiu desqualificar o livro. Ele é um marco mesmo. Uma das nossas entrevistadas, a advogada Eny Moreira, disse que pela primeira vez a história não era contada apenas pelos vencedores. O livro está na 40° edição, ainda é muito vendido, mas infelizmente es- tá restrito a alunos universitários, de algumas áreas. Ele deveria ser lido na escola, por todos os alunos, para inculcar em todos uma aversão à violência. Como você e Gabriel reencontraram os personagens? Alguma passagem marcou mais? Os entrevistados foram todos muito generosos. Conseguimos encontrar quase todos, mas não fizemos entrevista com todo mundo. Tentamos muito entrevistar o dom Paulo Evaristo Arns, mas não foi possível. Ele é o grande patrono do livro, a pessoa que tornou tudo isso possível, mas vive muito recluso nos últimos anos. O Frei Betto, um dos autores do livro, nos recebeu, tivemos uma conversa muito boa, mas ele não quis gravar. Tentamos muito falar com o Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, mas também não conseguimos acertar as agendas. O Charles Harper, do Conselho Mundial de Igrejas, está um pouco doente. Enfim, faltaram alguns personagens importantes nessa história, mas acredito que conseguimos contar o que foi produzir esse livro na clandestinidade, durante a ditadura. Mas certamente essa história daria um belo filme de ação. “Eu acho o livro importantíssimo. Foi a primeira obra que denunciou a tortura, usando documentos oficiais. A ditadura nunca conseguiu desqualificar o livro. Ele é um marco mesmo” Aconteceu também um reencontro com a sua história, com seu avô comunista? Meu avô, seu Sebastião Francisco da Silva, morreu em 1985, ano do lançamento do livro. Apesar da pouca convivência que tivemos, ele me marcou profundamente. Ele era negro, ferroviário, pobre. E um homem autodidata, inteligentíssimo, comunista, idealista. Minha mãe conta que durante a ditadura ele sumiu por alguns dias, quando voltou, destruiu diversos livros e escondeu outros. Nunca tocou no assunto. Não sabemos se ele foi preso e torturado. A Tarsila foi decisiva na sua mudança profissional? Foi completamente. A maternidade me deu forças para ir atrás de outros sonhos e de realizar projetos significativos para mim, mas também que pudessem contribuir de alguma maneira para a sociedade. Quero que meus filhos cresçam num país menos violento e mais justo, preciso fazer algo por isso, nem que seja levantar essa discussão. Por que o nome Coratio? É uma junção de duas palavras de origem em latim. COR, de coração e RATIO, de razão. Debater sobre violência requer essas duas qualidades, a emoção, os sentimentos de empatia, de humanidade, mas também a razão, a análise da conjuntura, dos dados. O documentário foi produzido com contribuições via Catarse. Como foi esse processo? Surpreendeu a adesão para o financiamento do projeto? Eu e o Gabriel percebemos que a nossa ideia estava crescendo e que precisávamos de mais recursos para finalizar esse nosso projeto independente. Esse documentário surgiu de algumas inquietações nossas: por que a história do Brasil Nunca Mais é praticamente desconhecida nas novas gerações? Por que, mesmo com as denúncias do livro, a violência continuou? Por que o Nunca Mais ficou apenas como utopia e não como realidade? Decidimos tentar o financiamento coletivo, inspirados pelo projeto Verdade 12.528, da Paula Sachetta e do Peu Robles. Nós acreditávamos muito no nosso documentário, agora era saber se mais pessoas se interessariam pelo assunto. E tivemos a grata surpresa de ultrapassar o valor pedido e de contar com o apoio de 199 pessoas que embarcaram com a gente nessa história. A cada centavo que era depositado no nosso projeto a gente ganhava mais confiança de que esse é um assunto relevante, que ainda há pessoas que querem discutir isso. Foi uma adrenalina muito grande passar pelo financiamento, mas valeu muito a pena saber que não estávamos mais sozinhos na jornada. E uma das coisas mais legais foi ver gente totalmente desconhecida por nós dois doando e se interessando. cultura de 9 a 15 de julho de 2015 11 Neruda Fugitivo CINEMA Filme de Miguel Basoalto registra fuga do poeta e senador comunista do Chile de González Videla, para a Argentina Divulgação Maria do Rosário Caetano de São Paulo (SP) A PEÇA TEATRAL “Ardente Paciência”, de Antonio Skármeta, deu origem a filme de sucesso planetário – “O Carteiro e o Poeta” (“Il Postino”, de Michael Radford, 1994) – protagonizado pelo italiano Massimo Troisi (intérprete de homem humilde que busca o poeta Pablo Neruda para aprender a escrever versos e com eles conquistar a mulher amada) e pelo francês Philippe Noiret (na pele de Neruda). Vinte anos depois, outro filme traz o poeta, diplomata e senador chileno Pablo Neruda (1904-1973) como personagem central: “Neruda Fugitivo”, de Miguel Basoalto. Desta vez, o idioma adotado é o espanhol, a produção é chilena, assim como o diretor e todos os atores. “O Carteiro e o Poeta” era uma produção internacional, dirigida por um realizador britânico, com atores estrangeiros, falada em inglês e ambientada na Itália. Quem quiser conhecer mais da trajetória do poeta laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1971, deve ler seu livro de memórias, “Confesso Que Vivi”. Este best-seller foi publicado em 1974, ano seguinte à sua morte, ocorrida apenas doze dias depois de seu amigo, o presidente Salvador Allende (11 de setembro de 1973, data do golpe militar comandado pelo general Pinochet). A relação entre o poeta e o presidente socialista resultou no livro Pablo Neruda e Salvador Allende – Uma Amizade, Uma História, de Abraham Quezada (2014). O presidente que aparece em “Neruda Fugitivo” é Gabriel González Videla (interpretado por Max Corvalán). Eleito em 1946 pela frente popular que incluía o Partido Comunista (PC), no qual Neruda militava e pelo qual se elegera senador, Videla já não rezava pela cartilha que o levara ao poder. Em 1948, recorrendo à chamada “lei maldita”, ele colocou o PC na ilegalidade. Neruda, que vinha em franca campanha contra o governante, que instituíra o campo de prisioneiros políticos de La Pisagua, o primeiro do gênero no pais andino, recebe ordem de prisão. Permanecer em Santiago tornara-se, portanto, inviável. A fuga O Partido Comunista do Chile organiza a fuga clandestina de Neruda (interpretado por José Secall). O plano inicial era sair por mar, elegantemente vestido, como se fosse um rico burguês. Tanto que o poeta vai tirar as medidas para um terno sofisticado com uma diligente costureira, interpretada pela grande atriz Catalina Saavedra (de “A Criada” e “A Mulher Em cena do filme “Neruda Fugitivo”, militantes de esquerda e amigos do poeta são presos pela Polícia Política (PP) em 1948 O tom do filme é tão solene quanto as imagens documentais da cerimônia de entrega do Nobel ao poeta, ocorrida em Estocolmo, e usadas como abertura da narrativa de Barro”). A sequência tem um tom levemente cômico-erótico, pois Neruda se entusiasma com os toques e a proximidade insinuante da costureira. Justo quando as medidas são tiradas para definir a altura do gancho da calça. Fora este momento, o tom do filme é tão solene quanto as imagens documentais da cerimônia de entrega do Nobel ao poeta, ocorrida em Estocolmo, e usadas como abertura da narrativa. Como a fuga por mar não dá certo, novo plano é elaborado pelo Partido Comunista. Neruda fugirá para a Argentina, pelo território austral chileno, por matas e montanhas (portanto aos pés da Cordilheira dos Andes). O trajeto rumo ao país vizinho será percorrido de carro e, em determinados e longos trechos, a cavalo. A mulher do escritor, a pintora argentina Delia del Carril, “La Hormiguita”, prati- cante de equitação (e vinte anos mais velha que o marido) insiste em empreender junto com ele a viagem. Os companheiros do Partido não permitem. Neruda parte, então, acompanhado apenas de alguns militantes comunistas. O clima do filme é de thriller, mas sem grandes sustos ou suspense. A viagem servirá para que o poeta reveja o Chile de sua infância e adolescência, para que reencontre as vozes ancestrais que conformaram sua criação artística (até a fuga, Neruda tinha publicado alguns livros, entre eles Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, que muitos têm como ponto máximo de sua criação lírica. Depois da fuga, viriam Canto Geral (1950), Cem Sonetos de Amor (1959) e o best-seller Confesso que Vivi. Elegância, mas sem ousadia Miguel Basoalto, parente distante de Neruda, fotógrafo de formação, já realizara um documentário (“Diário de Um Fugitivo”/2007) sobre o mesmo tema. Agora, com as liberdades da ficção, constrói o filme com elegância, mas sem ousadia. Os versos do poeta são ditos com excesso de solenidade. E mesmo restringindo a narrativa à fuga que o senador proscrito empreendeu em 1949 (com evocações fragmentadas de sua infância e juventude), ele acaba reforçando a imagem de um mito e não a de um ser humano dotado de contradições. E se Philippe Noiret, de poucas semelhanças físicas com o poeta, construiu um Neruda fascinante em “Il Postino”, o mesmo não se pode dizer de José Secall, apenas correto no papel. Falta a ele o que sobrava em Noiret: carisma. Mesmo assim, vale conferir esta ficção que o crítico chileno Leopoldo Muñoz definiu como um film noir em cores. “Neruda Fugitivo”, estreia em 18 cidades brasileiras, de São Paulo à João Pessoa, do Rio de Janeiro à Tubarão, no Paraná, passando por Brasília, Salvador, Belo Horizonte, entre outras capitais. Sinal de que, aos poucos, o cinema ibero-americano vai conquistando espaço, mesmo que alternativo, em nosso circuito exibidor, dominado por blockbusters estadunidenses. SERVIÇO “Neruda Fugitivo” – Produção chilena de 2014 – Direção de Miguel Basoalto. Com José Secall, Paulina Harrington, Catalina Saavedra, Erto Pantoja, Sérgio Madrid, Alejandro Trejo, Luis Dubó, Max Carvalán, Nelson Brodt, Eliana Furman. Duração: 97 minutos. NerudaFundación Salvador Allende O canto geral de um cidadão do mundo de São Paulo (SP) Pablo Neruda, nome artístico de Ricardo Eliecer Neftali Reys y Basoalto, nasceu em Parral, no Chile, em 1904, e morreu em 23 de setembro de 1973, doze dias depois de Salvador Allende. A causa oficial de sua morte foi um câncer de próstata. Mas muitos a atribuem ao desgosto do poeta e militante comunista com o golpe militar que provocou a queda (e morte) de Allende e o fim do governo da Frente Popular. Com sutileza, Miguel Basoalto mostra, em “Neruda Fugitivo”, que a “lei maldita” decretada pelo governo do Videla chileno, também eleito por uma Frente Popular, de certa forma anteciparia a trágica experiência vivida pelo Chile durante a ditadura Pinochet. Neftali, o futuro Neruda (o nome foi escolhido em homenagem ao escritor tcheco Jan Neruda), perdeu a mãe ainda bebê. Cresceu no sul do Chile, iniciou-se nas Letras e tornou-se presidente do Ateneu Literário de Temuco. Em 1921, o jovem Neftali mudou-se para a capital, Santiago, para estudar francês no Instituto Pedagógico. Seu primeiro livro, Crepusculário, seria publicado em 1923 e, um ano depois, viria o festejado Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada. Pelo mundo Aos 23 anos, viajou para o Oriente como cônsul honorário (prestou serviços na Birmânia, onde uniu-se à sua primeira esposa, Maryka Hagenaar Vogelzang, de origem holandesa). A carreira diplomática marcaria a vida de Neruda e faria dele um cidadão do mundo. No Uruguai, conviveu com o poeta espanhol Frederico Garcia Lorca (1898-1936). Na França, com Paul Éluard e Aragon. Na Espanha, com Rafael Alberti (estava no país na época da Guerra Civil e, destitu- O presidente Salvador Allende e o poeta Pablo ído de seu posto consular, escreveu Espanha no Coração). No Brasil, que visitou algumas vezes, Neruda conviveu com Vinícius de Moraes e Jorge Amado. São saborosas as lembranças etílicas do escritor baiano, em suas memórias (Navegação de Cabotagem/1992) sobre o poeta (e companheiro de militância). Em 1945, tempos de redemocratização, no estádio paulistano do Pacaembu, Neruda de- Os problemas de saúde originados pelo câncer não impediram o poeta de acrescentar às suas memórias (Confesso Que Vivi) o trágico desfecho do governo da Frente Popular comandada por Salvador Allende clamou poema em homenagem a Luiz Carlos Prestes, para plateia estimada em cem mil pessoas. Prêmios Como Jorge Amado, o chileno ganhou o Prêmio Lenin da Paz (URSS, 1953), honraria máxima atribuída pelo bloco socialista. Seu livro Canto Geral, no qual ampliou o lirismo de seus poemas, atribuindo a eles intenção social, ética e política, teve repercussão planetária. Muitos atribuem à longeva pintora argentino-chilena Delia del Carril (1884-1989), segunda esposa do poeta, a internacionalização de sua obra. Não se pode, porém, negligenciar o poder dos partidos comunistas, que dos anos 1920 aos 60 tiveram imensa influência político-cultural em todos os cantos do mundo. E, claro, não se pode esquecer que Pablo Neruda agradou à comunistas e capitalistas. Se não fosse assim, não teria conquistado o Prêmio Nobel, láurea literária que nunca se pautou por ideias socialistas. A fuga (do governo Videla) que Neruda evocou em seu discurso de agradecimento ao Nobel terminou bem. Depois dela, o escritor separou-se de Delia del Carril e seguiu sua carreira como diplomata, escritor e militante do Partido Comunista Chileno (que nunca renegou). Casou-se, em 1966, com Matilde Urrutia, com quem viveu (especialmente na Isla Negra, a 100 km de Santiago) até sua morte. Os problemas de saúde originados pelo câncer não impediram o poeta de acrescentar às suas memórias (Confesso Que Vivi) o trágico desfecho do governo da Frente Popular comandada por Salvador Allende. Mas Neruda não veria o livro editado, pois morreu dias depois do amigo presidente. Confesso que Vivi seria lançado postumamente, em 1974, transformando-se em campeão de vendagem na América Latina, Europa e Ásia. (MRC). 12 de 9 a 15 de julho de 2015 cultura Quando o fascismo cresce, silenciar é ser cúmplice OPINIÃO Até quando vamos aceitar calados as agressões dos derrotados nas urnas, uma elite iletrada, egoísta, ignorante e preconceituosa, que ficou 500 anos no poder e transformou o Brasil no país mais desigual do planeta? Jorge Furtado FIQUEI MUITOS meses sem escrever por aqui, por excesso de trabalho e por achar que o debate político estava tão alterado que a atitude mais sábia era o silêncio. Esperava que os derrotados das eleições fizessem o mesmo, deixassem passar os primeiros meses do novo governo para cobrar resultados. Meu volume de trabalho não diminuiu, na verdade cresceu, e os derrotados não esperaram nem um dia para subir ainda mais o volume e a grosseria das críticas, muitos pregam em voz alta, sem qualquer pudor, a volta da ditadura militar ou qualquer outro golpe que lhes devolva o poder que perderam nas urnas. Volto a escrever sobre política porque o crescimento da direita, da intolerância, do fascismo, da ignorância e da homofobia, transforma os calados em cúmplices. A história ensina que os inimigos da democracia se utilizam da frustração e dos anseios legítimos da sociedade, das pessoas de boa fé, para chegar ao poder, e então passam a exercê-lo com tirania, perseguindo minorias, promovendo a intolerância e a violência. E aí é tarde demais para combatê-los pacificamente. Não é possível ficar quieto quando o congresso é dominados pelo que há de pior na sociedade brasileira, bandidos e falsos pastores, achacadores em nome de Cristo, picaretas envolvidos em todo tipo de falcatrua, legislando em causa própria, manobrando votações, chantageando empresários para garantir seu butim, promovendo cultos religiosos no plenário, fomentando a homofobia e a ignorância. O atual congresso brasileiro, comandado por Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ambos investigados por uma dúzia de crimes e toda sorte de imoralidades, é uma vergonha para o país. Não é possível aceitar calado que o ministro Gilmar Mendes, uma única pessoa sem um único voto, por uma manobra rasteira, mantenha engavetado, por mais de um ano, um projeto de mudança da legislação eleitoral já aprovado pe- la maioria dos juízes, projeto este que, se não impede, dificulta em muito a roubalheira nas eleições e na política. A quase totalidade dos escândalos que entravam a vida nacional e sangram os cofres públicos está relacionada com a doação de empresas aos políticos, que retribuem o favor legislando contra o interesse da maioria da população e superfaturando obras, ambulâncias, remédios. Sem o fim da doação de empresas para políticos a roubalheira nas eleições será eternizada. Não é possível silenciar quando a presidente Dilma, eleita legitimamente pela maioria da população brasileira para manter e aprofundar os avanços dos governos populares, concede a tal ponto em nome de uma suposta governabilidade que entrega a economia aos banqueiros, a agricultura aos latifundiários do agronegócio e a política aos sanguessugas do PMDB, um partido que é eternamente governo porque sua única convicção é ser eternamente governo. Se eu imaginasse que Kátia Abreu, Levy e Eliseu Padilha poderiam ser ministros de Dilma teria votado em Luciana Genro. Infelizmente, quem deveria fiscalizar o governo, o legislativo e o judiciário é a imprensa, que tornou-se irrelevante quando abriu mão de fazer jornalismo para fazer oposição partidária. A imprensa brasileira, que sempre foi ferozmente governista, descobriu sua vocação oposicionista quando a Casa Grande perdeu um pouco o seu poder. É constrangedor ver jornalistas ou similares pensando exatamente como seus patrões man- www.malvados.com. br dam. Talvez pela profunda crise que o setor atravessa, com jornais e audiências minguando, velhos jornalistas e jovens sedentos de poder e fama se agarrem aos seus empregos com unhas e dentes, repetindo bobagens até a náusea. A verdade não agrada o patrão? Esqueça! O bandido disse que também deu dinheiro aos tucanos? Ignore! O patrão esconde dinheiro na Suíça e sonega fiscais para não pagar impostos? Não é comigo! O mensalão foi criado para eleger o presidente do PSDB? Concentre-se no plágio petista! A acusação contra um petista não faz sentido? O que importa? A antiga imprensa, que já estava seriamente ameaçada por conta da revolução digital, acelerou seu caminho para o fim abrindo mão do princípio básico do jornalismo: a defesa da verdade factual. Quando a história da antiga imprensa brasileira for contada descobriremos que ela não morreu, suicidou-se. Você pode achar esta conversa de política uma chatice, e é mesmo. O problema é que os que não gostam de política são governados por aqueles que gostam. Ontem, pela segunda vez, imbecis agrediram o ex-ministro Mantega num restaurante. Outro dia foi num avião, um jornalista - sozinho - que lia uma revista, foi atacado por um punhado de trogloditas. Jô Soares foi ameaçado de morte por entrevistar a presidente da república, eleita democraticamente. Os sinais de intolerância crescem, tornam-se mais frequentes e mais violentos, é de se esperar que a ignorância dos mal informados covardes que andam em bando logo produza vítimas. Silenciar é ser cúmplice deste fascismo crescente. Votei no Lula e na Dilma na esperança de promover a inserção social, a melhor distribuição de renda, para garantir a geração de empregos, o acesso dos filhos dos trabalhadores às universidades, na esperança de melhorar a vida dos mais pobres, para ver a corrupção ser investigada e punida. Tudo isso aconteceu, menos do que eu esperava, porém mais do que nunca. 40 milhões de pessoas passaram a ter uma vida mais digna, a fome foi praticamente erradicada, os níveis de emprego se mantém altos, milhares de jovens passaram a ter acesso ao ensino superior, a mortalidade infantil no Brasil caiu pela metade. O combate à corrupção também avançou muito. Uma lei promulgada por Dilma permite que hoje os corruptores também sejam punidos. A Polícia Federal investiga, o Procurador-Geral da República não engaveta as denúncias e vemos, pela primeira vez, empresários, políticos e banqueiros graúdos serem investigados e presos. É bom lembrar (já que ninguém lembra) que Renan Calheiros, que hoje é investigado pela Polícia Federal, no governo de Fernando Henrique era o Ministro da Justiça e, portanto, chefe da Polícia Federal! E foi neste momento (segundo o Ministério Público e segundo vários bandidos delatores), no final do primeiro mandado de FHC, que a quadrilha de Youssef começou a roubar a Petrobras. Mas também é fato que a continuidade no poder atraiu toda espécie de picaretas que, somados aos picaretas já existentes no PT, sugam os recursos públicos que faltam para os hospitais, para a escolas, para a segurança pública. E os avanços do governo popular começam a ser comprometidos. Felizmente - talvez pela cretinice evidente dos seus apoiadores na mídia - a direita brasileira tem perdido eleições com agradável regularidade, foram quatro, em dois turnos, nos últimos 13 anos. Oito vezes o povo brasileiro foi às urnas dizer não à intolerância, ao egoísmo e a hipocrisia. Espero que eles percam outra vez em 2018, mas se até lá o PT não se livrar desta direita truculenta, homofóbica, picareta e ignorante, pode até ganhar as eleições, mas não terá mais o meu voto. Afinal, até quando vamos aceitar calados as agressões dos derrotados nas urnas, uma elite iletrada, egoísta, ignorante e preconceituosa, que ficou 500 anos no poder e transformou o Brasil no país mais desigual do planeta? (Blog da Casa de Cinema de Porto Alegre: www. casacinepoa.com.br) Jorge Furtado é cineasta brasileiro. dahmer PALAVRAS CRUZADAS Verticais: 1.Geógrafo britânico marxista conhecido pelo conceito de “acumulação por despossessão”. 2. Pregador no culto islâmico; também designa os principais líderes religiosos do Islamismo que sucederam ao profeta Maomé – Sigla de Pernambuco. 3.(?) Molusco, amigo de Bob Esponja – Coisa realizada, acontecimento. 4.Sigla de Rondônia. 5.O ditador Efraín Ríos Montt foi julgado por genocídio e crimes de lesa-humanidade contra o povo deste país. 7.Sigla do Rio Grande do Sul – Sobrenome de ex-vice de Chávez, atual presidente da Venezuela. 8.Agora – União Nacional dos Estudantes. 9.Fatigado. 10.”Pedra”, em tupi – Militar sem graduação. 11.Lição – “E”, em inglês. 12.Nesse lugar. 13.Candidato do PSDB derrotado na penúltima eleição presidencial. 14.Atingidos. 15.Terceira nota musical – Organização das Nações Unidas (sigla). 16.Profana – Aguardente de melaço da cana-de-açúcar. 17. “Sim”, em espanhol – Divisão principal das peças de teatro. 18.Ferocidade. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 101112131415161718 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Horizontais: 1.Dilma – CIA – MA – MST. 2.Is – Atua – Fluir. 3.Vil – Análise. 4.Ímã – ET. 5.Dá – Carajás – Rama. 6.Dado – Ordinal. 7.Apare – Ola – Ao – Até. 8.Retomar – DNA – On. 9.Ousadia – Or. 10.Lá – Nu. 11. Yes – Demora – Bumba. Verticais: 1.David Harvey. 2.Imã – PE. 3.Lula – Fato. 4.RO. 5.Guatemala. 7.RS – Maduro. 8.Já – UNE. 9.Cansado. 10.Ita – Soldado. 11.Aula – And. 12.Aí. 13.Serra. 14.Afetados. 15.Mi – ONU. 16.Mundana – Rum. 17.Sí – Ato. 18.Truculência. Horizontais: 1.Antes de ser eleita presidenta, ela foi chefe da Casa Civil do governo Lula – Agência de espionagem dos Estados Unidos – O padre Josimo Tavares foi assassinado neste estado (sigla), em 1986 – Considerado por Noam Chomsky o mais organizado movimento social do mundo, que em 2014 completou 30 anos. 2.“É” ou “está”, em inglês – Age – Correr em estado líquido. 3.Torpe – Exame minucioso. 4.Possui a capacidade de atrair o ferro – Alienígena. 5.Cede – Jipe que era fabricado pela Gurgel – Conjunto dos ramos e folhagem de uma árvore ou arbusto. 6.Oferecido – Que indica a série ou ordem numérica. 7.Desbaste – “Onda”, em espanhol – Masculino de “à” – Indica limite ou termo espacial, temporal ou quantitativo. 8.Recuperar – Sigla inglesa usada em português para Ácido desoxirribonucleico – “Ligado”, em inglês. 9.Audácia – “Ou”, em inglês. 10.Sexta nota na escala musical – Pelado. 11.“Sim”, em inglês – Atraso – Gíria para “ônibus”. américa latina de 9 a 15 de julho de 2015 13 Reprodução Dez anos na Guatemala “Gloriosa Vitória”, obra do mexicano Diego Rivera, que conta a história do golpe que derruba Jacobo Árbenz em 1954 1944-1954 A intervenção estadunidense na Guatemala em 1954 foi a segunda levada a cabo por Washington depois da Segunda Guerra – a primeira se deu no Irã (1953). Sem base social interna com suficiente força para sustentar um golpe, a intervenção foi feita através de uma invasão, com mercenários recrutados entre a escória de países da região Alipio Freire “ENQUANTO eu for presidente, não outorgarei liberdade de imprensa nem de associação, porque o povo da Guatemala não está preparado para a democracia e necessita de um pulso forte.” Esta declaração foi feita pelo ditador guatemalteco Jorge Ubico, cinco dias antes de sua queda, em 1944. A ditadura do general Ubico dominou a Guatemala durante 13 anos (1931-1944), encerrando o chamado ciclo de governos liberais, que abriram o país ao capital estrangeiro e estiveram no poder, com breves interrupções, desde 1871. O governo Ubico é derrubado por uma frente formada por comerciantes, outros setores da pequena burguesia, profissionais liberais e estudantes. Os trabalhadores participam do movimento, mas sua representação política é fraca, pois até então nunca puderam se organizar de modo expressivo. Cem Dias de Organização Com a queda do ditador, assume um triunvirato e, em seguida, o general Ponce, que se compromete a convocar eleições. Iniciam-se assim os chamados Cem Dias de Organização. Às pressas, as correntes políticas representativas das diversas classes vão criando seus partidos, e os trabalhadores, fundando seus sindicatos. Os exilados regressam, a vida política se intensifica e os comunistas (ainda que não reconhecidos legalmente) passam a ser tolerados. Em poucos meses, Ponce tenta um golpe que fracassa: as classes que esperavam as eleições se insurgem. É a Revolução de Outubro. Durante a Insurreição, são armados os estudantes, os comerciantes e os trabalhadores, que instituem um novo triunvirato: Jacobo Árbenz Guzmán (capitão do Exército), Jorge Toriello (comerciante) e Francisco Javier Arana (comandante da Divisão de Tanques e responsável pela cisão do Exército durante o levante). São marcadas eleições gerais e surge como presidente Juan José Arévalo Bermejo, um professor universitário de 40 anos, parte dos quais viveu exilado. Sua base social era fundamentalmente a pequena burguesia, profissionais liberais e outros setores médios urbanos. À sua orientação filosófica, dava o nome de Socialismo Espiritual. Durante seu governo é convocada uma Constituinte que, tendo como base a Constituição dos EUA, a Constituição Revolucionária Mexicana de 1917 e a Constituição Soviética, elabora a Constituição Guatemalteca de 1945. O novo presidente encontra a Guate- mala dominada por companhias estrangeiras, particularmente estadunidenses. Só a American Fruit Company dominava uma extensa propriedade que se estendia do Atlântico ao Pacífico, onde atuava quase como um governo paralelo: mais de 40 mil guatemaltecos dependiam direta ou indiretamente dessa empresa. Além disso, La Frutera, como era chamada, era a acionista majoritária da International Railways of Central America, tinha o monopólio da navegação (nas duas costas), possuía e administrava as instalações portuárias e, através de uma subsidiária, fiscalizava as comunicações telegráficas do país. Com a queda do general-ditador Jorge Ubico (1944), têm início os Cem Dias de Organização Aproximação dos comunistas Frente a esse quadro, longe de combater os comunistas, Arévalo procura se aproximar deles. Em sua opinião, “enquanto o imperialismo da União Soviética era uma ameaça potencial, a ameaça do norte-americano era imediata e palpável”. Durante seu governo, os sindicatos de trabalhadores são fortalecidos e, paulatinamente, vão se transformando na principal base do poder. No pleito presidencial de 1950, Arévalo e as forças que o apoiavam elegem seu sucessor, Jacobo Árbenz. Este, segundo os estudiosos, foi o governo de maior base popular que a Guatemala conhecera desde a conquista espanhola do século 16. Os sindicatos urbanos e rurais aprofundaram sua organização, estruturando-se horizontalmente em duas grandes centrais: a Confederação Geral dos Trabalhadores da Guatemala e a Confederação Geral Camponesa. Os comunistas continuaram a atuar intensamente e muitos deles chegaram a assessorar Árbenz que, como Arévalo, nunca foi comunista. A aliança de ambos com os comunistas, no entanto, pode ser facilmente entendida: o desenvolvimento do capitalismo guatemalteco exigia a resistência a sérios interesses estrangeiros, como, por exemplo, a United Fruit. Para isto, os representantes dos capitais nacionais (ou dos programas políticos que pretendiam apenas seu desenvolvimento) deveriam, desde logo, se aliar e buscar o apoio das organizações (profissionais, sindicais, partidárias e outras) que tinham como base os trabalhadores. Além disto, em consequência do papel desempenhado pelo Exército Vermelho e das resistências comunistas e socialistas na Europa, durante a Segunda Guerra, na derrota do nazi-fascismo, grande parcela da intelectualidade e dos técnicos guatemaltecos se inclinava para a esquerda. Isto explica, em grande parte, que os elementos mais capacitados para assessorar os dois governos fossem recrutados entre comunistas ou, pelo menos, entre seus simpatizantes. Chamamos a atenção, porém, que a eleição de Árbenz coincide com o início da Guerra Fria. O fato é que as centrais de trabalhadores do campo e da cidade crescem e um sentimento anti-imperialista e nacionalista toma conta do país. Tanto aos que tinham como perspectiva apenas o desenvolvimento de um capitalismo guatemalteco, quanto aos que (para além deste horizonte) pretendiam uma revolução socialista/comunista, colocava-se a necessidade de uma reforma agrária. Esta era a palavra de ordem. Era também a primeira vez que, desde a chegada dos espanhóis, os índios (descendentes dos maia-quiché e que representavam quase 60% da população, contra 10% de brancos e 30% de ladinos – os mestiços) – eram chamados a participar enquanto sujeitos do processo político. A palavra de ordem que os sensibilizava era a propriedade da terra: os índios viviam encurralados nas montanhas, em terras exíguas e pobres. Os brancos (nativos e estrangeiros) ocupavam as planícies, férteis e vastas. Reforma agrária Em 1954, com a reforma agrária em curso, o país está tensionado e dividido. De um lado, as forças que compunham o Governo e internamente hegemônicas: nacionalistas, socialistas e comunistas, organizações de trabalhadores da cidade e do campo (entre estes, a população indígena) e o Exército. Do outro, enfraquecidos, os latifundiários, os comerciantes, amplos setores da pequena burguesia urbana, a Igreja Católica e todos os que mantinham seus interesses políticos/econômicos vinculados a empresas estrangeiras, especialmente à United Fruit. Incapazes de agir contando apenas com as forças internas, os opositores e a Frutera passam a apostar numa intervenção externa. Desde meados de 1953, o governo do presidente Ike Eisenhower (EUA), através de seu secretário de Estado, Foster Dulles, intensifica a campanha internacional que já desenvolvia contra a Guatemala. A conspiração se articulava fundamentalmente em três frentes: ações diplomáticas, ações de propaganda e organização de uma força militar externa, composta de mercenários recrutados entre o lumpemproletariado e delinquentes dos países da região. Nas capitais do Caribe, começa o recrutamento de mercenários Em 30 de dezembro daquele ano (1953), o presidente Jacobo Árbenz divulga um comunicado oficial, com centenas de cópias de trechos de documentos apreendidos pelas autoridades guatemaltecas, que implicavam três ditadores latino-americanos – Anastasio Somoza (Nicarágua), Rafael Trujillo (República Dominicana) e Perez Jimenez (Venezuela) – na preparação de um golpe contra seu governo. O comunicado denuncia compra de aviões, armas e munições (inclusive bombas de napalm) pelos generais guatemaltecos Miguel Idigeras Fuentes e Carlos Castillo Armas (ambos exilados em Honduras), através de uma empresa da família Somoza. O comunicado encerra descrevendo resumidamente um plano de invasão: “Desembarque nas costas do Pacífico com tropas trazidas de portos nicaraguenses (...); apoio aéreo mediante bombardeio das povoações e aterrisagem em aeroportos particulares do Pacífico: posse dos pontos-chave (...); ataques simultâneos pela fronteira de Honduras (...), onde estão comprometidas todas as autoridades militares dessas populações”. Exatamente este plano foi posto em prática, seis meses depois, sem qualquer alteração ou pejo, pela United Fruit, pelo secretário de Estado Foster Dulles, pela elite econômica e de direita guatemaltecas, respaldados por um exército de mercenários. Recrutamento de mercenários Entre outras ações, para a formação de uma força militar sob a direção de Cas- tillo Armas, foram afixados, nas capitais do Caribe, cartazes para o recrutamento de mercenários, prometendo um bom pagamento e acenando com o butim. Em Honduras, o aliciamento de todo tipo de marginais era feito de modo tão desabrido, que provocou a reação dos estudantes. Resultado: o governo hondurenho determinou a ocupação militar da universidade. Prisões em massa. Em Bogotá, agentes da Frutera estabeleceram um escritório no centro da cidade, para atendimento de todos os que quisessem fazer fortuna rápida na invasão da Guatemala. Na Nicarágua, o ditador Anastasio Somoza simulou um atentado contra si próprio, atribuído – de forma orquestrada – pelo seu Governo e pelo Departamento de Estado de Washington, ao Governo Árbenz. Mas, se esta era a parte visível da operação, restava ainda uma série de tarefas de preparação da infraestrutura bélica articuladas diretamente por militares de Washington. Na base estadunidense no Panamá, concentraram-se as providências para os ataques aéreos: pilotos e outros especialistas das forças armadas estadunidenses, aviões, armamentos, munições e outros equipamentos de guerra. Alguns destes, a serem usados na data escolhida para a invasão. Outros deveriam chegar às mãos dos articuladores do golpe em território guatemalteco com alguma antecedência. Ofensiva golpista Dentre as iniciativas diplomáticas, certamente a de maior expressão foi a 10a Conferência Interamericana de Consulta, reunida em 3 de março de 1954, em Caracas, e destinada a “estudar a penetração do comunismo na América Latina”, manipulada por Foster Dulles, tendo como grande aliado (ao lado dos Somoza, Trujillo, Jimenez e outros do mesmo naipe) o chanceler brasileiro Vicente Rao. O documento final, que contou em sua aprovação com apenas duas abstenções (México e Costa Rica) e o voto contrário da Guatemala, isolava o governo Árbenz. Os meios de comunicação latino-americanos, as agências noticiosas e as grandes mídias ocidentais transformaram-se em caixas de ressonância da política, versões e calúnias de Washington contra a Guatemala, e do “perigo comunista que rondava a América Latina”. No Brasil, os principais guardiões da Pax Americana foram os jornais O Globo, O Estado de S. Paulo, os Diários Associados e a Tribuna da Imprensa. Entre as mais virulentas personalidades públicas brasileiras que abraçaram a campanha, estava, como era de se esperar, o jornalista e deputado Carlos Lacerda. Por fim, às 18h30 de 18 de junho de 1954, a rádio Voz da Guatemala transmite para todo o mundo o comunicado de Guillermo Garrido Toriello, chanceler da Guatemala: “Neste momento, meu país foi invadido”. Iniciava-se uma grande chacina. Com a queda de Árbenz, assume o governo Carlos Enrique Diez, imediatamente substituído pelo general Castillo Armas que, três anos mais tarde, seria assassinado por uma das sentinelas do seu palácio. (Este texto foi publicado originalmente com este mesmo título, como Apêndice, na edição da Expressão Popular (2002) do livro Week-end na Guatemala, do escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias) Alipio Freire é jornalista, escritor, artista plástico e cineasta. É membro dos conselhos editoriais do Brasil de Fato e da Editora Expressão Popular, colabora com diversas publicações de movimentos populares e de esquerda, e integra o Conselho Curador do Memorial da Anistia (BH-MG). 14 15 américa latina de 9 a 15 de julho de 2015 “No socialismo não pode sobrar gente” Halbag/CC Peter/CC ENTREVISTA Jesus Brigos, professor do Instituto de Filosofia de Havana, fala sobre o novo cenário político de Cuba, as mudanças econômicas e a abertura do país à iniciativa privada Cátia Guimarães e Maíra Mathias do Rio de Janeiro (RJ) JESUS BRIGOS é professor do Instituto de Filosofia de Havana e esteve no Brasil para participar do Seminário da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde. O momento não poderia ser mais oportuno, já que os jornais noticiavam um esforço de aproximação diplomática entre Cuba e Estados Unidos, depois de décadas de bloqueio econômico. Aproveitando sua estada no Brasil, Jesus participou de outros eventos e cursos, em que abordou os riscos que estão colocados para Cuba nesse novo cenário e, principalmente, as mudanças econômicas com as quais o país tem enfrentado a crise, promovendo uma maior abertura para a iniciativa privada. Ainda existe socialismo em Cuba? É possível controlar o capital? Essas são algumas perguntas que Jesus responde nesta entrevista, em que ele reconhece o desafio do país de criar um caminho alternativo, que não está escrito em lugar nenhum. Aqui, ele também comenta o êxito das políticas sociais cubanas, principalmente de saúde e educação, e tenta se defender das críticas sobre a postura do país em relação aos direitos humanos. Quais as principais mudanças ocorridas em Cuba a partir do anúncio da reformulação, que ampliou o espaço da iniciativa privada no país? Jesus Brigos – O foco foram essencialmente mudanças no funcionamento da economia, na criação, por exemplo, de possibilidades de ampliar o autoemprego. Aí resulta incluir isso que você chamou de empresas privadas, mas que nós chamamos de autoemprego, ainda que essencialmente sejam empresas privadas. O que nós chamamos de lineamento é ampliar as formas de gestão da propriedade, e não se reconheceu explicitamente que essas mudanças nas formas de gestão podem significar alterações nas formas de propriedade. Aí há um problema teórico, que tem importância prática: o lineamento está voltado a coisas que tem que ser feitas porque essa propriedade tem que funcionar de maneira diferente, tem que permitir um processo sustentável economicamente. Mas tem que fazê-lo mantendo o socialismo. Há uma parte do lineamento que diz que em Cuba a forma fundamental de direção da economia será a planificação, atendendo ao mercado. Mais aí não fica claro se isso significa socialismo de mercado, como se diz em alguns lugares; se significa controlar o mercado. Aí surge a dificuldade que eu havia explicado: não é que se pode controlar o capital, é que não se pode introduzir relações de capital. Isso está em discussão ainda em Cuba. Mas o lineamento diz respeito essencialmente a mudanças na economia e coisas que têm de ser ampliadas: deve-se aumentar a produção agropecuária, as empresas estatais têm que ser mais eficientes e eficazes; deve-se desenvolver determinadas áreas da economia. Estamos concebendo essas alterações como um aperfeiçoamento integral. Se não for feito de forma integral, quanto mais aumentar o PIB cubano mais nos convertemos em um país capitalista. Isso que se falou muito, que aumentou o emprego privado em Cuba, a realidade é que o emprego privado existia antes como um mercado negro. Quando houve a crise econômica isso aumentou. Vamos legalizar e ordenar para que funcione como interessa que funcione, para que não se reproduza espontaneamente. No momento da primeira grande crise nos anos de 1990 depois do fim da União Soviética, em alguma medida nos parece que o investimento no turismo como atividade econômica, com capital privado, já era o início de uma ampliação da presença da iniciativa privada. Ali já era o início da mesma solução que Cuba está regulando hoje? Essa é uma ampliação do enfrentamento da crise. Na crise, desapareceu o campo socialista. O que podia fazer ingressar novas divisas de maneira mais rápida para podermos comprar fora o que precisávamos era o turismo. Primeiro de tudo tivemos que permitir que fosse usado o dólar em Cuba, que circulava ilegalmente, mas foi autorizado no ano de 1993 para poder facilitar que esse dólar que entrou pelo turismo entrasse de fato na economia cubana. Para isso tinha que ser legalizado, estabelecendo-se mecanismos de câmbio, ordenando pouco a Crianças do ensino fundamental aproveitam o recreio oficial. Os cubanos recebem remessas, então se sabe determinados serviços que foram criados como negócios em Cuba o fizeram com dinheiro recebido dos Estados Unidos. Por isso temos que regular tudo isso. Isso gera desigualdades, o cubano que recebe remessas vive melhor que o cubano que não recebe. Moradores caminham em rua de Havana, tendo ao fundo o Capitólio em obras VII Cumbre de Las Américas Raul e Obama se cumprimentam durante a Cúpula das Américas, realizada no Panamá em abril de 2015 pouco. Nos anos de 1990 era questão de subsistência obter dinheiro para pagar as coisas. O único dinheiro que tínhamos era dos poucos hotéis. E com esse dinheiro decidíamos se comprávamos petróleo ou leite em pó, de acordo com a situação do país. Às vezes tínhamos que comprar petróleo porque tínhamos que manter a eletricidade. Em algumas províncias do país às vezes eram 12, 16 horas sem eletricidade. Por isso começamos a ampliar o turismo. Não tínhamos dinheiro para construir hotéis, tivemos que começar a fazer negócios com empresas estrangeiras. Isso nos permitiu respirar um pouco. Hoje em dia segue-se construindo hotéis, mas os investimentos novos no turismo são feitos a partir das próprias divisas geradas pelos hotéis. Mas isso não significa que o capital já entrou em Cuba? Se falarmos em termos rigorosos, o capital já entrou em Cuba. Agora, nós temos que entender que não podemos regular o capital. Mas o que temos que fazer é vacinar-nos, isto é, fazer de alguma forma com que esse capital que entrou deixe de ser capital e que o que de novo fizermos não comece sendo capital. Por isso dizia que temos que inventar. Se o primeiro começou tendo fins lucrativos, se a “enfermidade” entrou, temos que dar a “vacina” e fazer com que o outro não entre dessa forma. Temos que ter como princípio não permitir que as relações socioeconômicas geradas entre patrão e empregados e deles com a sociedade sejam relações de exploração. E isso não é somente criar impostos. Se quer que sejam colaboradores seus tem que deixar que participem com você das decisões, eles têm que intervir no planejamento. Não só recebendo ordens, mas intervindo no Estado. E aí tem que ter a força política nossa fazendo com que eles trabalhem em função da sociedade e não em função do lucro. Grande parte da situação difícil de Cuba desde os anos de 1990 é atribuído ao embargo dos Estados Unidos. Mas existem outros elementos que podem ser determinações também: o fato de Cuba ter feito uma revolução socialista sendo um país ainda não desenvolvido e de ter bancado o desafio do socialismo num só país, por exemplo. Qual é a parcela de responsabilidade de cada um desses elementos? A parte que não corresponde ao embargo corresponde a erros nossos. Vou te dar um exemplo: nos anos de 1960 em Cuba se eliminou praticamente todo tipo de negócio privado. Isso teve que ser feito não por razões econômicas. Mesmo Fidel, em uma visita que fez em 1959 aos Estados Unidos em uma reunião com jornalistas norte-americanos disse que tinha interesse em ajudar aos pequenos empresários cubanos a desenvolver-se, para trabalhar em função da nova sociedade. Mas o que aconteceu: em muitos desses negócios privados começou-se a apoiar a contrarrevolução. Então, por uma razão política, foi preciso expropriar a todas essas pessoas e colocar os trabalhadores para administrar diretamente seus recursos. Aos trabalhadores e ao final ao Estado que representa os trabalhadores. Isso teve que ser feito. Já o tabaco em Cuba sempre funcionou bastante bem e sempre esteve em mãos privadas. O tabaco nunca foi nacionalizado em Cuba e foi uma sorte que não tenhamos feito isso, porque o tabaco tem suas diferenças: quando são cultivos de tabaco para produzir cigarros isso pode ser feito de forma mecanizada. Mas quando é para a elaboração de charutos, aí é muito importante que sejam camponeses que tenham suas pequenas propriedades porque o tabaco tem que ser tratado como uma criança: deve-se colocar telas em algumas épocas do ano para que não receba muito sol, pra que não dê pragas. Isso não se pode fazer com grandes extensões estatais, maquinário. Qual o sentido de que os que consertam sapatos pertençam a um ministério dirigido de forma centralizada em Cuba? Para consertar sapatos pode ser uma pessoa em sua casa com duas ou três máquinas. Ninguém vai ficar rico consertando sapatos. Esse é o tipo de propriedade privada que nós pensamos que poderia se reestabelecer em Cuba. Quando começamos a abertura nos anos de 1990 os negócios privados tinham que ser familiares. Eu podia abrir um restaurante, mas não podia contratar ninguém, tinha que ser minha filha, minha esposa. Agora permitimos contratações. São permitidos 30 contratados legalmente. Às vezes, de forma não legal tem mais de 30. E a esses se explora mais, porque para os 30 contratados há leis trabalhistas em Cuba que os protegem. Os outros, como estão ilegais, não estão protegidos por nenhuma lei. Qual é o interesse dos Estados Unidos que justificam que nesse momento eles sinalizem com uma reaproximação com Cuba? Eu tenho bem claro que o objetivo é destruir a revolução. Para isso impuseram o bloqueio. Mas depois que o impuseram sempre vinham estudando como endurecê-lo ou abrandá-lo quando lhes convinha. Se se reestabelecem relações e eles ajudam a esse proprietário privado a enriquecer isso o levará a ser favorável a acabar com o socialismo em Cuba. Então nesse ponto de vista eles sabem que nós temos que lutar para que esse privado não se reproduza como capitalista. Se agora que trabalho em uma empresa privada começo a ganhar mais e viver melhor materialmente do que quem trabalha em uma empresa estatal, vou terminar no longo prazo defendendo a empresa privada. Isso é o que temos que lutar em Cuba para que não se desenvolva e para isso temos que ter a empresa estatal que funcione bem, que trabalhar em uma empresa estatal permita as pessoas viver bem, que a empresa estatal possa garantir os serviços públicos de saúde, educação, com qualidade. Pelas notícias que saíram no Brasil quando esse primeiro pacote foi apresentado, parecia que parte dessa abertura para pequenas propriedades privadas dizia respeito à dificuldade do Estado de manter aquele volume de trabalhadores vinculados as estatais... Em Cuba existia uma situação em que todo mundo tinha trabalho. Em um lugar em que uma pessoa poderia dar conta trabalhavam quatro pessoas. Uma empresa que funcione assim não é eficiente. Se mantém ainda em Cuba que a empresa estatal precisa ser mais eficiente, que o que pode ser feito com um trabalhador não tenha de ser feito com três. Mas para isso temos que colocar tecnologia na empresa e precisamos de dinheiro. Nosso discurso político, às vezes foi ruim, porque às vezes houve quem dissesse que tínhamos que aliviar o Estado. Esse é o mesmo discurso neoliberal. Fidel sempre dizia que não podemos falar que sobra gente. No socialismo não pode sobrar gente. Mas não pode haver gente fazendo menos do que podem fazer. Às vezes, o que se fez é que para poder ter só um fazendo o trabalho de um, pegávamos os outros três e pagávamos seus salários enquanto eles estudavam para que eles se preparassem para trabalhar em algum novo investimento que iríamos fazer quando tínhamos recursos. Hoje não temos recursos. Quando começamos a gerar possibilidades de recursos como fizemos com o turismo, nossa economia cresce e podemos ter novas fábricas, novos centros de trabalho com novas tecnologias, propriedades do Estado. Não é nosso interesse desmantelar o Estado. Historicamente existe um grupo grande de cubanos que migraram para os Estados Unidos e são donos de várias empresas, pilotam aviões, são donos das emissoras de rádio que fazem propaganda contrarrevolucionária. Como essa abertura pensa a inclusão dessas pessoas? Nesse momento a lei não excluiu a possibilidade de que cubanos que moram fora invistam em Cuba. Mas não é qualquer cubano que vamos deixar investir. Um cubano que conseguiu juntar dinheiro fora do país, que abriu uma empresa de construção e quer fazer o mesmo em Cuba; tudo bem, venha à Cuba com as regras que nós estabelecemos, com as normas de contratação que nós estabelecemos. Hoje esse investimento de cubanos no exterior já está presente de forma não Nessas primeiras negociações com a diplomacia norteamericana, Cuba também estabeleceu exigências? Existe alguma referência a Guantánamo? Não me lembro disso ter sido mencionado nos comunicados oficiais sobre os debates. Em 1962 quando houve a crise dos mísseis, Fidel colocou cinco condições que teriam de ser cumpridas para o reestabelecimento das relações. Desde aquele momento sempre tivemos a posição de negociar com os Estados Unidos. O primeiro era o fim do bloqueio, que eles justificam porque dizem que Cuba tirou propriedades deles. Isso é falso. Cuba nacionalizou todas as propriedades estrangeiras que havia em Cuba, mas a todas indenizou mediante compensações. Os Estados Unidos nunca quiseram sentar para conversar. Outro ponto era a retirada da base de Guantánamo. Estou seguro de que esse será um ponto de discussão. Porque está claro que nós não queremos a base de Guantánamo. Esse território é nosso e tem de ser devolvido. Queria falar sobre a perspectiva dos direitos humanos: é ótimo quando você diz que garantir saúde para o conjunto da população, universal, pública, gratuita e de alta qualidade, como Cuba tem, é respeito aos direitos humanos. Mas, o que se convencionou chamar de direitos humanos envolve um conjunto de questões que vão além desses direitos mais ligados à políticas sociais. E Cuba tem um histórico de denúncias nessa área... Cuba é criticada por manter a pena de morte, mas para que delitos temos pena de morte? Para estupro. Essa pessoa pode ser condenada à pena de morte, mas isso depois que todas as provas sejam apresentadas e ela tenha chance de se defender. Fuzila-se em Cuba a quem comete um atentado terrorista. No ano que nós fuzilamos pessoas, foram pessoas que colocaram em perigo a vida de centenas, sequestrando barcos que não tinham condições para navegar, levando gente à força e pondo em risco o país, porque pelas leis dos Estados Unidos se se produz uma migração desordenada isso pode ser usado como justificativa para agredir Cuba. Por isso fuzilamos essas pessoas. Deve-se ter pena de morte para quem põe em risco um país. É muito banal dizer que com isso não há respeito aos direitos humanos. Desrespeito aos direitos humanos é condenar pessoas à pena de morte somente por serem negras, como acontece nos Estados Unidos, o país que mais aplica a pena de morte no mundo. Mas você deu o exemplo do estupro. Qual é o limite racional dentro dos princípios da revolução para se estabelecer que o assassinato de uma pessoa não é passível de pena de morte e o estupro é? Em Cuba existe um consenso social de rejeição tão grande a esses crimes que a população não vê com maus olhos a aplicação da pena de morte. Há uma cultura de rejeição a esse tipo de crime. Há uma cultura profunda de rejeição a quem viola uma mulher, uma criança, à pedofilia. Tenho muitas discussões com amigos espanhóis que dizem porque uma pessoa que molesta alguém tem de ser fuzilado. E eu pergunto: e se violarem sua irmã, sua filha? var os interesses dos centros de trabalho às decisões estatais. Que as mulheres tenham efetivamente possibilidade de levar seus interesses. Se não funciona assim não é socialista. O cubano de hoje tem mais possibilidades de atuar nesse sentido: já não é analfabeto, já não é inexperiente politicamente. O que antes era suficiente como participação hoje é insuficiente. O cubano de hoje tem condições de propor ideias, de formular políticas. Isso é o que necessita a sociedade cubana cada vez mais. Tem que ser que através dos delegados eleitos as pessoas estejam constantemente influenciando as políticas estatais, fazendo críticas às leis, sugerindo novas leis. Pode ser através dos delegados, pode ser através dos sindicatos. Em Cuba há toda uma estrutura para que isso ocorra. Mas esse é o discurso da direita no Brasil. É o discurso da direita, mas não é interpretado como uma vingança. Essa é uma pessoa que não pode viver em sociedade. Se for comprovado que é um doente mental não se condena a morte, vai para um sanatório. Há um problema cultural também. A cultura cubana é profundamente machista. Nos anos 1960 houve certa repressão contra os homossexuais que inclusive foi mais longe: acontecia de cubanos que tinham cabelos compridos e eram acusados de serem homossexuais e colocados para trabalhar em fazendas especiais. Isso foi um erro. Mas isso não existe mais. Cuba tem indicadores sociais impressionantes. O próprio Banco Mundial reconheceu agora o sistema público de educação de Cuba como o melhor da América Latina, o sistema de saúde cubano é um exemplo inspirador. Em que países Cuba tem equipes de saúde hoje? Quase não consigo enumerar: tem no Brasil, muitos na Venezuela, tem também em países da África. Na crise do Ebola, os que mais mandaram médicos e enfermeiros foram os cubanos, um deles inclusive ficou doente. Temos médicos em todos os países que nos pedem. Quando houve o terremoto no Haiti, me incomodaram as notícias que falavam dos médicos venezuelanos, brasileiros e nada diziam dos médicos cubanos. É que os médicos cubanos não chegaram com o terremoto, já estavam lá! Há médicos cubanos na Guatemala, Honduras, El Salvador, em todos os países da América Latina praticamente. Oferecemos até aos Estados Unidos quando houve o Katrina, mas eles não os quiseram. Em 48 horas preparamos uma brigada de mil médicos e enfermeiros, que foram equipados e preparados e oferecidos aos Estados Unidos para ajudar no Katrina e eles não aceitaram. E aí morreram muitos negros principalmente. Em relação a essas questões, que não são imediatamente de classe, que diz respeito ao fim do machismo, do preconceito contra homossexuais, do racismo, etc, existe um trabalho também educativo que esse Estado faça em Cuba? Existe um trabalho educativo, mas isso que não é diretamente classista é classista também. E o classista não é fácil de mudar. Há o trabalho ideológico, cultural, mas isso não basta. Há pessoas que dizem que é preciso dar os mesmos direitos às mulheres, aos negros. Em Cuba desde 1959 todos temos os mesmos direitos, mas temos que efetivar isso. Em Cuba não há discriminação racial. Entretanto permanecem diferenças raciais na quantidade de negros que chegam à universidade em determinadas carreiras e a quantidade de brancos. Até por questões culturais. Nas famílias negras não há a tradição de estudar física, química, direito. Há a tradição de estudar arte, esportes. Isso não é discriminação racial. Há tradições que não se pode mudar com uma lei revolucionária. Isso é parte da transição cultural que tem de ser feita. Se nos países capitalistas a centralização dos interesses econômicos no Estado são obstáculo ao desenho da democracia burguesa, em que parece que todo mundo pode participar, na situação concreta de Cuba eu queria que você analisasse em que medida a centralização do poder político também pode ser um obstáculo à realização plena do modelo de participação que o país construiu. Se o Estado socialista se desenvolve como um estado muito centralizado, um Estado que termine sendo de um grupo de dirigentes, não vai ser socialista. O Estado cubano faz com que todo mundo seja efetivamente parte das decisões. Na medida em que se consegue isso, fortalecemos o Estado. Não falo em fortalecimento do Estado no sentido de ter um presidente mais poderoso. Fortalecimento do Estado é que os sindicatos tenham efetivamente a possibilidade de leReprodução Jesus Brigos, professor do Instituto de Filosofia de Havana Mas há pessoas que dizem que não é preciso ser um país socialista para ter bons indicadores de saúde e educação, e trazem o exemplo da Suécia, da Inglaterra, da Finlândia. Qual é a diferença desses indicadores, do modelo e da situação de saúde e educação, em um país como Cuba? A primeira diferença é que os países capitalistas que alcançaram isso são os mais ricos. Guatemala, Honduras, El Salvador não alcançaram. Ainda que não diretamente, eles alcançaram isso à custa de que esse capital explore o resto do mundo. Se fala muito no sistema educacional da Finlândia, mas ali se educa as pessoas no sentido do capital humano, de se preparar para ser um gerente da Coca-Cola. Nós não educamos as pessoas nesse sentido. Educamos no sentido de preparar para desenvolver suas potencialidades para ser útil à sociedade. Acredito que são diferenças essenciais. Um país pobre capitalista não vai poder ter esse modelo. Mesmo os países ricos capitalistas estão desmontando seus sistemas. Eles o mantiveram porque ao capitalista faz falta ter uma força de trabalho sadia, mas também porque existia o contrapeso do campo socialista, ideologicamente tinham que competir. Quando desaparece esse contrapeso começa a desmontagem dos sistemas de saúde. Mas não podemos esquecer que os países capitalistas que alcançaram bons indicadores são países ricos. (Revista Poli – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV) 16 de 9 a 15 de julho de 2015 internacional Gregos rechaçam a Troika nas urnas Reprodução CRISE A participação popular superou os 62%, muito mais que os 40% exigidos para que o resultado fosse considerado válido Público.es via agências internacionais A DECISÃO DAS URNAS gregas no domingo, 5 de julho, um grito, um retumbante “NÃO” à Troika, rejeitada por uma grande maioria, que disse não querer a proposta apresentada pelos credores, sobre a qual se expressaram no referendo celebrado hoje no país. Com 94,5% dos votos apurados, o “NÃO” se impôs com 62,5 % contra 38,7% do “SIM”, um reflexo de que o povo helênico deu as costas às políticas de austeridade. A participação popular superou os 62%, muito mais que os 40% exigidos para que o resultado fosse considerado válido. “O referendo não tem vencedores nem vencidos. É uma vitória em si mesma. Demonstramos que a democracia não pode ser chantageada”, disse o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, numa mensagem televisionada. Ele também destacou que agora é o momento de “restabelecer a coesão social”, pois a consulta gerou um clima de divisão entre os partidários de uma e outra opção. O primeiro-ministro assegurou que seu governo retomará as negociações com os credores, tentando buscar um acordo com as instituições, e afirmou que a prioridade é a reabertura dos bancos. Uma das peculiaridades deste referendo é que ele aconteceu uma semana depois de ser imposto um mecanismo de controle de capitais. Reestruturação da dívida Tsipras garantiu que a reestruturação da dívida entrará na negociação, e que essa é uma necessidade reconhecida pelo próprio Fundo Monetário Internacional – uma das entidades que formam parte da Troica, junto com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Ele também expressou sua confiança numa solução para o problema de liquidez dos bancos e afirmou que espera que o Banco Central Europeu “entenda a dimensão humana da crise”. “O primeiro-ministro assegurou que seu governo retomará as negociações com os credores, tentando buscar um acordo com as instituições” Cooperar com os sócios Após a confirmação da vitória do “NÃO”, o ministro das finanças Yanis Varoufakis também se pronunciou, e declarou que a partir de segunda-feira (6/7), com a opinião do povo grego como argumento, o governo poderá “estender uma mão de cooperação” aos sócios e tentar buscar com eles um ponto em comum. Varoufakis definiu o “NÃO” do domingo como um rechaço à austeridade. “Ele significa uma Europa que recupera os seus valores.” Apesar do tom conciliador, o ministro reafirmou suas críticas às instituições, ao lembrar que “durante cinco meses, todas as tentativas de contestar a austeridade e a dívida foram obstruídas”. Reações Após a divulgação dos primeiros resultados, os membros do governo coincidiram em afirmar que a vitória do “NÃO” fortalece a posição do governo grego nas negociações, já que envia uma mensagem à Europa, de que os gregos desejam um acordo que ofereça novas perspectivas de futuro. O resultado do referendo também já produziu sua primeira vítima política: o presidente do principal partido da oposição – Adonis Samarás, do Nova Democracia, que liderou a campanha pelo “SIM”. “O governo tem a responsabilidade de buscar um acordo para evitar que o país afunde. Muitos na Europa traduzirão a vitória do `NÃO´ como uma vontade de sair da Zona Euro. Eu peço aos sócios que ajudem a Grécia a permanecer no euro”, disse o líder opositor e ex-primeiro-ministro conservador. Membros do seu partido pediram ao governo que faça todo o possível para que o país “volte à normalidade” o quanto antes, e exigiram medidas para diminuir a divisão social. Enquanto eram publicadas as primeiras cifras da recontagem de votos, milhares de pessoas foram à Praça Syntagma, no centro de Atenas, para uma grande celebração. Tradução: Victor Farinelli. Em Atenas. gregos comemoram o “NÃO” à Troika “Não” dos gregos é uma grande vitória para a Europa CRISE Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia repudia a “campanha verdadeiramente vil de intimidação” que a troika promoveu contra o povo grego Esquerda.net NUMA NOTA publicada no The New York Times, intitulada A Europa ganhou, Paul Krugman reage aos resultados do referendo na Grécia sublinhando que “Tsipras e o Syriza tiveram uma grande vitória, fortalecendo a sua posição para o que quer que venha a seguir”. “Mas eles não são os únicos vencedores”, avança Paul Krugman, defendendo que “a Europa, a ideia europeia”, também venceram. “Acabamos de ver a Grécia enfrentar uma campanha verdadeiramente vil de intimidação, uma tentativa de assustar o povo grego, e não só para que aceitasse as exigências dos credores, mas também para que se livrasse do seu governo”, lembra o prêmio Nobel. “Foi um momento vergonhoso na história da Europa moderna, e teria aberto um precedente realmente tenebroso se tivesse sido bem-sucedido”, acrescenta. Sobre a possibilidade de estarmos mais perto de um Grexit, o economista norte-americano salienta que, “em qualquer caso, a democracia é mais importante do que qualquer acordo cambial”. “Um voto ‘sim’ na Grécia teria condenado o país a mais anos de sofrimento sob políticas que não resultaram e que, na realidade, dada a aritmética, não podem resultar” Num artigo de opiniãopublicado algumas horas depois, Krugman refere que “a verdade é que os autodemoninados tecnocratas europeus são como os médicos medievais que insistem em sangrar os seus pacientes – e quando o seu tratamento degrada a saúde dos doentes, exigem ainda mais sangramento”. “Um voto ‘sim’ na Grécia teria condenado o país a mais anos de sofrimento sob políticas que não resultaram e que, na realidade, dada a aritmética, não po- dem resultar: a austeridade provavelmente encolhe a economia mais depressa do que reduz a dívida, pelo que todo o sofrimento não tem qualquer propósito”, advoga. Quanto à possibilidade de o país conseguir permanecer na zona euro, o prêmio Nobel considera que se o Banco Central Europeu (BCE) não retomar o financiamento dos bancos, admitindo “que o anterior congelamento teve motivações políticas”, forçará a Grécia a introduzir uma nova moeda. “O país não terá outra opção senão começar a pagar salários e pensões com títulos”, alerta Krugman, sublinhando que tal representará, “na realidade, uma moeda paralela – e que, brevemente, dará lugar ao novo dracma”. Por outro lado, o economista considera que, “mesmo que o BCE volte a garantir o financiamento, ainda permanece a questão sobre como restaurar o crescimento econômico”. “Nas negociações fracassadas que levaram ao referendo de domingo, o ponto de discórdia central foi a reivindicação da Grécia no sentido do alívio permanente da dívida, por forma a remover a nuvem que paira sobre a sua economia”, refere o prêmio Nobel, lembrando que a Troika recusou, mesmo após o Fundo Monetário Internacional “ter concluído de forma independente que a dívida da Grécia não pode ser paga”. “Existe agora um forte argumento de que a saída da Grécia do euro é a melhor de más opções”, avança. “Imagine, por instantes, que a Grécia nunca tinha adotado o euro, que tinha apenas fixado o valor do dracma em termos de euros. O que diria a análise econômica sobre o que fazer agora? A resposta, esmagadoramente, seria a de que se deveria desvalorizar a moeda – deixar o valor do dracma cair, tanto para estimular as exportações como para romper o ciclo de deflação”, refere Krugman. O economista norte-americano esclarece que está ciente de que “a Grécia já não tem a sua moeda, e muitos analistas costumam reivindicar que a adopção do euro foi um movimento irreversível - afinal, qualquer indício de saída do euro iria despoletar corridas bancárias devastadores e uma crise financeira”. Paul Krugman salienta, contudo, que “nesta altura, essa crise financeira já aconteceu, pelo que os maiores custos da saída do euro já foram pagos”. “Por que razão, então, não usufruir dos benefícios?”, questiona. “Se a Grécia acabar por sair do euro, isso não significa que os gregos são maus europeus. O problema da dívida da Grécia reflete empréstimos irresponsáveis, bem como endividamento irresponsável” Segundo o prêmio Nobel, “a menos que a Grécia usufrua efetivamente de um importante alívio da dívida, e, possivelmente, mesmo assim, deixar o euro oferece a única rota de fuga plausível do seu pesadelo econômico sem fim”. “Se a Grécia acabar por sair do euro, isso não significa que os gregos são maus europeus. O problema da dívida da Grécia reflete empréstimos irresponsáveis, bem como endividamento irresponsável, e, em qualquer caso, os gregos pagaram pelos pecados do seu governo muitas vezes. Se eles não puderem manter-se na zona do euro, é porque essa moeda comum não oferece qualquer alívio aos países em dificuldades”, advoga. “O importante agora é fazer o que for preciso para acabar com o sangramento”, remata.