BREVE OLHAR SOBRE A POÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS
Fábio Rolim – mestre em Literatura
“O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu!”
O jovem poeta paraibano Augusto dos Anjos emergiu no cenário da literatura
brasileira quando esta se encontrava mergulhada na busca da Essência dos seres ou era aferida
pelo labor do poeta (rima perfeitas, versos alexandrinos, chave de ouro...). Tínhamos uma
poesia ora voltada para a descrição objetiva de vasos/mulheres, metalingüística ora uma
poesia que transmitia sensações vagas, que privilegiava o espírito em detrimento da matéria, a
catarse. Augusto dos Anjos, apesar de trazer consigo características do Parnasianismo e do
Simbolismo, não foi enquadrado em nenhuma dessas duas estéticas pelo fato de trazer
aspectos do cotidiano para dentro de sua lírica. Não o cotidiano cosmopolita ou rural, mas o
cotidiano da decadência, da decomposição, dos vermes, dos cemitérios... Augusto dos Anjos,
em sua obra, poetizou a anti-idealização da vida.
Podemos observar em Augusto dos Anjos um homem de visão caleidoscópica, lúcida
e real. Ele soube mesclar o sonho (o ideal) e o cotidiano (o real) de maneira singular.
Dissolenizando o verso e despoetizando o viver, Augusto foi pioneiro em indagar sobre o
mistério da existência. Existência essa com uma única finalidade: “O futuro de cinza que me
aguarda”. Como conseqüência dessa visão de mundo completa e incrédula, ele buscou
produzir uma poesia também completa; uma poesia que mesclou beleza e asco. Para ele:
“A antítese do novo e do obsoleto
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo”
E por que não trazer essa completude para a poesia? Em Augusto a poesia não está á
serviço único e exclusivo da Suprema Forma, dos estados d´alma, dos sonhos, do diáfano.
Está também no escarro, no óvulo infecundo e no pé de tamarindo. Assistindo de perto a
derrocada das oligarquias nordestinas, e conseqüentemente também de sua família, ele
transferiu a sensação de derrota – a descoberta do mundo real – para seus poemas. Nas
palavras de Ferreira Gullar: “É o processo interminável da natureza a gerar e destruir o que
gerou, essa madrasta, que avara, esconde o sentido da existência”. Através do poder da
palavra, pôde Augusto dos Anjos não se desprender do vivido e erguê-lo de sua vulgaridade à
condição de poesia.
Embora fale do feio, do grotesco, do terreno, as palavras não soam vulgares e nem
estão colocadas a esmo na obra desse poeta. Elas estão mescladas a sentimentos nobres ou
conectadas por justaposição:
“os pães – filhos legítimos do trigo”
“ a miséria anatômica da ruga”
“a dança dos encéfalos acesos”
“Ah! Foi teu beijo convulsionador”
“sem o escândalo fônico de um grito”
“Hoffmânnicas mensagens enchiam meu encéfalo de imagens”
“no eterno horror das convulsões marítimas”
Augusto quebrou o mito das palavras poéticas, extraindo poesia de palavras grotescas
a partir de suas relações semânticas e/ou sintáticas com outros vocábulos presentes nos
poemas. Quando o poeta diz: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última
quimera”, o fato de o adjetivo formidável ter por escopo o substantivo enterro, eleva esta à
categoria sublime/elevada; o adjetivo confere um ar de grandeza a um substantivo
extremamente terreno, a partir já de sua estrutura morfológica (em + terr + ar). Para ilustrar o
fascínio de Augusto pelo terreno, pelo vil, extraímos a primeira estrofe do “Último Credo”:
“Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!”
A hipérbole e as relações agente-ação (adúltero – adultério; ébrio – garrafa de rum;
coveiro – arrastar para o cemitério) são os responsáveis pela poesia presente nesse verso. O
eu-lírico não apenas reproduz aquilo que seus olhos contemplam, ele consegue imprimir sua
visão, sua percepção do mundo. Ao afirmar que “o beijo é a véspera do escarro”, Augusto
manifesta sua visão dessacralizadora/descrente da vida e do outro, relacionando dois pólos
antagônicos, beijo – escarro. Sua grandeza está justamente no fato de incorporar à poesia
elementos que eram considerados não-poéticos.
“Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!”
Cantar a poesia de tudo quanto é morto soa como conseqüência de uma visão
despoetizada/ descrente da vida e de si mesmo enquanto homem. A vida era a causa de todo o
sofrimento do poeta. Ele se via como um vencido, um fraco, uma pessoa – composta de
material perecível – sem sorte e que veio ao mundo para sofrer:
“Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco”.
“Sucede a uma tortura outra tortura.
- Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida – aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!”
“Ah! Um urubu pousou na minha sorte”
“Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde”
Ele manifestou sua descrença no homem no seguinte verso:
“Homem, carne sem luz,criatura cega,
realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca de maldiz!”
Para exemplificar esse desgosto que assolava o poeta, extraímos o poema Eterna
Mágoa:
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
O Brasil do início do século passado mantém basicamente a mentalidade do final do
século XIX, pós-republicana, positivista e liberal. Entretanto, um quadro político tenso põe
em risco o poder das oligarquias civis, provenientes dos setores rurais. uma burguesia
industrial nascente, ligada à produção e exportação do café no eixo Rio - São Paulo – Minas,
começa a ascender. A urbanização e a imigração, decorrentes do crescimento industrial,
trazem à cena ideologias progressistas que conflitam com o nosso tradicionalismo agrário.
As pressões de outros segmentos da população interessados numa mudança política –
profissionais liberais, proletariado, classe média, militares – manifestam-se através de
movimentos como a Revolta contra a vacina obrigatória, a revolta da Chibata e as duas greves
gerais de operários em São Paulo. No meio rural, por sua vez, as tensões se expressam na
proliferação de grupos de cangaceiros e em movimentos messiânicos relacionados a eventos
de grande repercussão política, como a Guerra de Canudos e a Revolta do Contestado. Parece
haver dois brasis em estado de confronto, ao longo da Primeira República; aquele agrário,
tradicionalista e conservador, que detém o poder, e este que anuncia a virada do século – um
país industrial, urbano, em busca de modernização.
As transformações políticas e sociais pelas quais passava o país, assustavam o poeta e
não conseguiam remover o pessimismo de sua alma. Augusto era incrédulo quanto ao futuro:
“A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
- Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?”
Em face das incertezas do novo século que despontava e trazia consigo a idéia de uma
guerra mundial, bem como os problemas (ter sido expulso do Liceu Paraibano por cause de
desentendimentos com o governador) e distúrbios pessoais (a destruição do engenho/ falência
da família), Augusto dos Anjos impregnou sua obra da morte e, após a morte, a desintegração,
os vermes apenas:
“Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e a vida em geral declara guerra”.
“E muita vez,à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!”
Augusto dos Anjos imprime uma visão crua da realidade. Ele conseguiu enxergar o
que havia por trás das instituições, do sistema, dos atos humanos e da própria alma humana.
Augusto abriu as cortinas da sociedade de sua época. Augusto constrói a cartografia da
realidade; realidade essa que a literatura já não podia ocultar:
“Rasga essa máscara de ótima seda
E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos
É noite, e à noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda!”
Para Augusto, o vil, o execrável era natural à essência humana.
Regia nos meus centros cerebrais
a multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais!
Não sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No húmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!
Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão..
E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!”
Em virtude de Augusto sofrer devido a sua condição de humano e vivente, de levar
esse sofrimento para o outro – a partir do momento que travamos contato com sua obra,
absorvemos a visão do poeta e também passamos e enxergar a podridão do mundo –, e de
conseguir desvendar a sociedade de sua época é que o célebre Anatol Rosenfeld o denominou
de “um sadomasoquista que lança o desafio do radicalmente feio à face do pacato burguês,
desmascarando, pela deformação hedionda, a superfície harmônica e açucarada de um mundo
intimamente podre”.
Augusto dos Anjos, com uma estética do feio, da transgressão, das confluências, da
dissonância, definitivamente rompeu os padrões poéticos/ literários vigentes em seu tempo.
Os eruditos de sua época tratavam a obra de arte como um objeto com formas perfeitas (visão
gramaticalista), e não se importavam com o conteúdo. As sensações eram estáticas e o mundo
se apresentava como uma tela bem-pintada. Augusto, embora tenha zelado pela forma,
conseguiu fazer com que seus poemas exalassem emoções. Eram versos que injetavam vida à
linguagem. Os temas em Augusto são palpáveis, concretos, visíveis e não meramente
sugeridos ou descritos estaticamente. Importa, agora, as sensações. Em sua obra não há um
falseamento do real, mas ela é o resultado da experiência concreta do autor. Ao contrário da
literatura que procura imitar formas importadas – que pouco tem a ver com nossa realidade –,
experiências além-mares; Augusto imprimiu sua realidade cotidiana, suas experiências
vividas aqui mesmo, provocando, assim, uma renovação na lírica brasileira. Por influência
dessa atitude de Augusto, os poetas do Modernismo vão priorizar e intensificar nas suas obras
os aspectos do cotidiano, do real, do dia-a-dia.
Para falar de uma realidade concreta, conseqüentemente o autor usa de palavras
concretas. A desmistificação do real, implica a desmistificação da linguagem, daí por que ele
se esforça por usar uma linguagem concreta, transformando a prosa em poesia. E é justamente
na obra de Augusto dos Anjos que se dá a introdução de tons prosaicos na poesia, prática
muito cultivada pelos Modernistas. Podemos exemplificar essa transformação da linguagem
poética, valer-nos-emos de uma estrofe de três poemas desse autor. Ressaltando que o tom
prosaico irá permear quase que toda a obra do escritor:
“Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja”.
“- Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Cloreto de sódio, água e albumina...
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!”
Quando meu pai deixou o lar amigo
Um sabiá da casa muito antigo,
Que há muito tempo não cantava lá,
Diluiu o silêncio em litanias...
E hoje, poetas, já faz sete dias
Que eu ouço o canto desse sabiá!”
Foi em de Augusto dos Anjos que o poeta passou a falar a partir da fala comum. A
linguagem desceu do Olimpo e passou a habitar as camadas inferiores do Universo. As
relações entre os vocábulos se tornam responsáveis pela poeticidade do texto. Augusto dos
Anjos soube magistralmente transfigurar a realidade concreta – realidade essa não de objetos,
mas sim de experiências históricas sobre os objetos – em mote existencial. As ações passaram
a obter um significado humano real. Os fatos se tornam o ponto de partida para a produção
literária. O poeta colhe no cotidiano o mote para os seus poemas. No entanto, Augusto buscou
abranger o real na sua complexidade, daí resultar uma elaboração poética não muito pueril.
Augusto dos Anjos, a exemplo de pouquíssimos, conseguiu criar seu próprio universo
poético.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Emília. FERREIRA, Mauro. LEITE, Ricardo e ANTÔNIO, Severino. Novas
Palavras. São Paulo: FTD, 2000.
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina. In: ANJOS, Augusto
dos. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
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