Henrique Oswald e os Românticos Brasileiros
Em Busca do Tempo Perdido
EDUARDO MONTEIRO
T
alvez não haja melhor expressão do que garimpo
musical para descrever os primórdios das pesquisas
musicológicas no final da década de 1940 no estado
de Minas Gerais. Isto porque foi necessário muita
paciência, perseverança, uma boa dose de sorte
e um olhar clínico para se começar a descobrir
as verdadeiras preciosidades que jaziam nos porões
das cidades históricas em meio a antigos manuscritos
musicais, até então considerados “papel velho, bom
para queimar”.
As mesmas montanhas que no século XVIII
haviam presenciado a corrida do ouro – que fez
florescer subitamente toda a região, produzindo uma
cultura musical importante, soterrada pela ação
do tempo – foram, no século XX, testemunhas de um
novo rush, este mais discreto, protagonizado por
musicólogos que se debruçaram sobre esse patrimônio
da cultura brasileira, até então ignorado.
Quase espremidos entre a produção surpreendente
dos antigos mestres da música colonial mineira e os
feitos merecidamente louvados de Villa-Lobos (18871959) e demais membros do nacionalismo musical
pós-semana de 1922, encontra-se toda uma geração de
autores que encarnam o romantismo brasileiro.
São eles Carlos Gomes (1839-1896), Leopoldo Miguez
(1850-1902), Henrique Oswald (1852-1931), Alberto
Nepomuceno (1864-1920) e Francisco Braga
(1868-1945), para citar os mais representativos.
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Diferentemente dos autores mineiros, a produção
dos românticos nunca chegou a ser de fato esquecida,
mas por outro lado, também não teve a sorte
de ser plenamente “redescoberta” e assim repercutir
com seu real valor. Parece, ao contrário, aguardar
pacientemente o dia em que finalmente será
reconhecida em sua magnitude. Quanto mais
se estuda e conhece o conjunto da obra desses
compositores, torna-se evidente sua excelência
técnica e profunda inspiração.
Não obstante, sua obra sofre uma espécie de
preconceito latente na historiografia musical brasileira,
ainda fortemente baseada na tradição fundada
por Renato Almeida e Mário de Andrade. Na maior
parte da literatura especializada, encontra-se uma
tendência a qualificar esses autores segundo
seu grau de envolvimento com a construção do mito
do nacionalismo musical. Chegou-se assim, de forma
velada, a uma equação simplista, na qual a importância
do compositor é determinada pelo índice
de características nacionais de sua obra.
O distanciamento no tempo preservou os mestres
mineiros desse tipo de julgamento, mas o mesmo não
aconteceu com os românticos. Esses carregam até hoje
o injusto fardo de serem autores supostamente
influenciados em demasia pela cultura européia.
O destino acabou sendo um pouco mais
complacente com Alberto Nepomuceno e Carlos
Henrique Oswald. Il neige. Obra premiada no concurso promovido por “Le Figaro”:
“1er. Concours de morceaux pour piano”. 8 de novembro de 1902.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Gomes. Mesmo estando Nepomuceno, musicalmente,
mais próximo do velho continente que de Villa-Lobos,
este autor é freqüentemente evocado na literatura
tradicional como sendo o “pai” do nacionalismo,
devido à sua batalha pela valorização do canto em
português. Quanto a Carlos Gomes, sua importância
como operista para o Brasil jamais poderia ser negada.
Felizmente, a temática indianista de Il Guarany, mesmo
que cantada em italiano, forneceu elementos concretos
para serem louvados pelos defensores do nacionalismo.
A sorte foi mais madrasta com Leopoldo Miguez
e Henrique Oswald. É comum encontrar nos livros
de história da música brasileira uma censura mais ou
menos explícita a estes autores em função da ausência
de características nativas em suas peças. Miguez
é invariavelmente acusado de wagneriano. A Oswald
cabe normalmente o termo “afrancesado”.
Apenas duas considerações deveriam ser
necessárias para refutar este olhar preconceituoso.
Inicialmente, é preciso ter consciência que embora haja
um sentimento pátrio desde o século XIX que se
manifesta esporadicamente na produção dos
românticos, o nacionalismo musical só se organizou
efetivamente como movimento em fins da década
de 1920, quando esses autores ou já haviam morrido,
ou composto boa parte de sua obra. Em segundo lugar,
deve-se constatar que a sociedade brasileira da virada
do século XX sofria de fato forte influência da cultura
européia. Era portanto de se esperar que a música
desses compositores refletisse essa realidade.
No caso específico de Oswald, a identificação com
a Europa é inerente a seu histórico de vida.
O autor de Il neige!... – sua obra mais célebre, para
piano solo – nasceu no Rio de Janeiro em 1852
e, como boa parte dos compositores da época, era filho
de europeus. A vinda de seus pais para o Brasil em
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1850 insere-se no amplo movimento migratório
verificado no século XIX. Entretanto, os Oswald nunca
pretenderam trabalhar na lavoura, como era o objetivo
da maior parte deste contingente. O pai, Jean-Jacques,
suiço-alemão, possuía um ofício – era comerciante –
e algum capital. Homem empreendedor, depois de um
início difícil no Brasil, quando teve negócios
malogrados e chegou mesmo, por razões ideológicas,
a ser perseguido por membros da oligarquia cafeeira
paulista, acabou prosperando com seu negócio de
pianos na pacata São Paulo dos anos 1850-60. A mãe,
Carlotta Cantagalli, uma italiana com boa formação
intelectual, era uma mulher de fibra que assumiu,
quando foi preciso, as despesas da casa com suas aulas
de piano, francês e italiano.
O retorno da família à Europa, mais
especificamente a Florença, aconteceu em 1868, e teve
como objetivo principal o aprimoramento musical
de Oswald, que se deu junto aos excelentes mestres do
DISCOGRAFIA
Discos Compactos:
CARDOSO, André, MONTEIRO Eduardo. “En Rêve”; “Andante
con Variazioni para piano e orquestra”. In: Leopoldo Miguez e
Henrique Oswald – Orquestra Sinfônica da Escola de Música da
UFRJ., Rio de Janeiro: UFRJ/Música, 2004
DUARTE, Roberto Ricardo. “Elegia”. In: Música Brasileira Vol. I Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ.. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1991
KLINCK, Paul, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald.
Music for violin and piano. Ghent: PKP, 1995
GUIMARÃES, Maria Inês. Henrique Oswald. Piano Music. Munique:
Marco Polo, 1995
RUBIO, Quarteto, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald –
Quarteto para piano e cordas op. 26; Sonata-Fantasia op. 44;
Concerto para piano e orquestra op. 10. São Paulo: Revista
Concerto, Série Música de Concerto / USP / De Rode Pomp,
2002
Discos de vinil:
DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald –
Obras para piano e violoncelo e piano. Rio de Janeiro: Funarte,
1982
FUKUDA, Elisa, DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo.
Henrique Oswald – Trio em sol menor op. 9, Sonata em Mi maior
op. 36. Rio de Janeiro: Funarte, 1988
SILVA, Honorina. Documentos da Música Brasileira Vol. 11 - Honorina
Silva interpreta Henrique Oswald. Rio de Janeiro: Funarte /
Promemus, 1979
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Regio Istituto Musicale di Firenze, destacando-se Giuseppe
Buonamici e Reginaldo Grazzini.
Na Itália, Oswald casou-se com Laudomia
Gasperini, teve quatro filhos e por 35 anos atuou como
pianista, professor e compositor de prestígio no meio
musical florentino. Mas os vínculos com a pátria jamais
foram desfeitos. A partir de 1879 foi bolsista do
Imperador D. Pedro II; entre 1896 e 1900 veio quatro
vezes ao Brasil para realizar concertos, obtendo grande
projeção; e finalmente ocupou o cargo de Chanceler
no Consulado Brasileiro no Havre por um curto espaço
de tempo entre 1900 e 1901.
1902 é o ano que marca a grande reviravolta
em sua vida. Contando 50 anos de idade, obtém
o primeiro lugar em um concurso de composição
organizado pelo jornal Le Figaro de Paris. No júri,
ninguém menos que os ilustres compositores Gabriel
Fauré e Camille Saint-Saëns, além do grande pianista
Louis Diémer. Cabe a ressalva que os segundo
e terceiro lugares foram atribuídos aos hoje renomados
Alfredo Casella e Florent Schmitt. Essa premiação abre
uma possibilidade de penetração na vida musical
parisiense, a grande vitrine da época. Por outro lado,
esta vitória também projeta fortemente o nome do
compositor em terras brasileiras. Em conseqüência,
no ano seguinte, Oswald é convidado para ser diretor
do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro,
a instituição musical de maior prestígio da República.
O convite era irresistível e Oswald acaba por aceitá-lo.
No entanto, o compositor foi hostilizado como um
“estrangeiro” na direção da Instituição, cargo político
para o qual não possuía nenhuma vocação. A demissão
é finalmente aceita após 3 longos e sofridos anos.
Entre 1906 e 1911, Oswald passa por um momento
de crise e indecisão, envolvendo seu retorno à Europa,
onde deveria tudo recomeçar, ou sua permanência no
Brasil, onde ainda havia muito por se fazer. Mas, por
fim, sua nomeação para a cátedra de piano no Instituto
e a vinda de toda a família em 1911 deixam claro que
a opção pelo Brasil era irreversível.
Em seus últimos 20 anos no Rio de Janeiro,
Oswald goza de grande reputação e prestígio como
compositor e professor de piano. Sua morte, aos 79
anos de idade, se dá em meio a homenagens e pleno
reconhecimento como um
dos maiores compositores
brasileiros de todos
os tempos.
Itália e Brasil, os dois
países nos quais o
compositor viveu, tinham
em comum um meio
musical que privilegiava
a ópera e no qual a música
instrumental – solo, de
câmera e sinfônica – estava
Henrique Oswald.
ainda em florescimento
e por esta razão era fortemente calcada nas tradições
alemã e, posteriormente, francesa. Embora tenha
composto três óperas – uma delas um trabalho
de juventude – Oswald foi predominantemente um
compositor de música instrumental, e desta forma
sofreu influência dos quatro países acima mencionados.
Esta multiplicidade de fontes de inspiração, que
proporcionou o desenvolvimento de uma escrita
altamente refinada, deveria ser vista como um fator
de riqueza e não como uma justificativa para a falta
de interesse pela música nacionalista.
Há outros aspectos muito mais relevantes que
a questão do sentimento nativista a serem abordados
em sua obra, como por exemplo a importância da
contribuição para os gêneros sinfônico e camerístico
aportados por sua produção à música do país. Oswald
não foi o primeiro brasileiro a escrever obras deste
tipo, mas é, no que tange a música de câmera, um dos
autores nacionais mais significativos. A qualidade
e o volume de sua produção são a prova disso: Sonata
para violino e piano, duas Sonatas para violoncelo e
piano, cinco Trios para violino, violoncelo e piano, dois
Quartetos e um Quinteto para piano e cordas, quatro
Quartetos de Cordas, um Octeto para cordas, além de
várias pequenas peças para violino e violoncelo com
acompanhamento de piano.
O Trio op. 9, obra-prima de sua primeira fase que
testemunha ainda a influência do romantismo alemão,
seria uma composição digna de figurar no catálogo de
Felix Mendelssohn. A Sonata para violino e piano op. 36,
que marca sua aproximação da escola francesa, poderia
eventualmente ser tomada por uma peça de Fauré ou
César Franck. Já a 2me Berceuse para violino e piano vai
mais longe e se avizinha do universo de Ravel. Porém,
infelizmente, este repertório é praticamente ignorado
por nossos músicos.
Mas a herança de Oswald é ainda muito mais
ampla, abrange uma grande quantidade de peças para
piano, Prelúdios e Fugas para órgão, duas sinfonias e
várias transcrições de obras pianísticas para orquestra
sinfônica e de cordas, três concertos para instrumento
solista e orquestra, obras para canto e piano, canto
e orquestra, coro, incluindo duas Missas, coro
e orquestra, além das três óperas já mencionadas.
Embora possa-se observar que é crescente o
número de pesquisadores nas universidades brasileiras
que se debruçam sobre seu legado, o que mostra que
há um processo de revalorização em andamento,
a passagem praticamente em branco do
sesquicentenário do compositor no ano de 2002, indica
que Oswald está longe de ocupar o lugar que lhe cabe
como um dos maiores compositores brasileiros de
todos os tempos. A cultura nacional seria a principal
beneficiada se fosse abandonado o tom
predominantemente condescendente com que
o compositor é abordado em favor de um verdadeiro
reconhecimento de seu valor e, sobretudo, se Oswald
fosse mais executado em nossas salas de concerto.
É necessário recuperar o tempo perdido!
SUGESTÕES DE LEITURA:
MONTEIRO, Eduardo. Henrique Oswald (1852-1931), un
compositeur brésilien au-delà du nationalisme musical. L´Exemple
de sa musique de chambre avec piano. Doutorado em Musicologia.
Paris: Sorbonne, 2000.
MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald, músico de uma saga
romântica. São Paulo: EDUSP, 1995.
EDUARDO MONTEIRO
Prof. Dr. do Departamento de Música da ECA-USP, é Dr. em Musicologia pela Universidade de Paris IV – Sorbonne,
com tese sobre a música de câmera com piano de Henrique Oswald.
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