O RETORNO DA FILOSOFIA ÀS ESCOLAS PÚBLICAS NO ESTADO DE SÃO
PAULO: O DESAFIO DA DIS-POSIÇÃO E A TAREFA DO FILOSOFAR 1
Monica Aiub
Resumo
Considerando o retorno da disciplina Filosofia como disciplina obrigatória nas
escolas públicas do estado de São Paulo, este artigo apresenta alguns elementos
para a reflexão acerca da tarefa do ensino de Filosofia na Educação Básica. Para
tal, percorre a trilha histórica do ensino de Filosofia no Brasil, iniciando seu trajeto
no período colonial, mas evidenciando, principalmente, os últimos vinte anos, nos
quais a Filosofia tenta retornar às escolas. Mais que uma discussão acerca de
conteúdos e métodos, o enfoque dado é à postura filosófica a ser suscitada e
desenvolvida, e suas possíveis conseqüências no que se refere à vida individual e
em comunidade. Também a possibilidade de promoção do exercício da cidadania,
provocada pela postura filosófica, é destacada. Em síntese, trata-se de um artigo
acerca do papel do professor de Filosofia no exercício da tarefa de ensinar a
filosofar.
Da chegada ao retorno: um pouco de história
Há vinte anos discutia-se o retorno da Filosofia às escolas, especificamente no
então denominado 2º grau. Os Encontros Estaduais de Professores de Filosofia
debatiam questões urgentes para a educação e, mais propriamente, para o ensino
da Filosofia. Consultando o texto organizado por Henrique Nielsen Neto (1986)
com o objetivo de observar tópicos daquele momento histórico, senti-me
reeditando questões. As discussões de 1985 e 1986, constantes no livro,
continuam presentes em nossas escolas, sobretudo nas escolas públicas da rede
estadual paulista, onde a filosofia somente agora, em 2005, retorna de fato. Talvez
ainda não de fato.
Para iniciar nossa reflexão sobre a situação atual do ensino de Filosofia, convido o
leitor a um rápido passeio histórico, retornando onde tudo começou...
A Filosofia chega ao Brasil em 1549, juntamente com o início da História da
Educação Brasileira (AZEVEDO, 1997, p. 9). Vinda com os jesuítas, responsáveis
pela educação no período colonial, a Filosofia já se faz presente no currículo
escolar dos primeiros colégios da Companhia.
A atividade filosófica, desenvolvida pela Companhia, nos primeiros
dois séculos e meio de nossa história, constitui a mais expressiva
1
Artigo publicado na Revista Cadernos do Centro Universitário São Camilo. São Paulo, v. 11, n. 3, p. 55-63.
Jul/set 2005.
manifestação da cultura filosófica este período. Na verdade o ensino
de Filosofia, até 1759, época da expulsão dos jesuítas, é ministrado
nos colégios da Companhia, por padres inacianos, segundo os
cânones estabelecidos pela Ratio studiorum, tendo como livros de
texto os manuais, aprovados pela Companhia e, como livro de fundo,
o célebre Curso Coimbricense. (CAMPOS, 1978, p. 42)
Os primeiros colégios, e em pouco tempo, as primeiras faculdades, objetivavam
formar a sociedade e o futuro professorado da Companhia, respectivamente.
Segundo Campos (1978) o primeiro curso de Filosofia foi criado em 1572, dada a
citada necessidade de formar o professorado e a falta de tradição filosófica no
Brasil em seus primórdios. No século XVI, o ensino de Filosofia destinava-se aos
que se dedicavam à carreira eclesiástica. Obedecendo as normas pedagógicas da
Ratio studiorum (1586), a glória de Deus era o lema dos colégios dos jesuítas.
Com formação centrada em Letras, Artes, Filosofia e Teologia, com método
pautado em repetições, preservando, ao máximo, a doutrina Aristotélica e a
Teologia Tomista, os inacianos seguiam a orientação da segunda escolástica
portuguesa.
Chegada ao Brasil como disciplina constante do currículo escolar, com orientação
idêntica à orientação escolástica portuguesa, contando, inclusive, com
dissertações avaliadas pelo padre provincial ou geral da Companhia (CAMPOS,
1978, p. 45-46), a Filosofia mantém-se no movimento escolástico até a expulsão
dos jesuítas. A partir deste momento, passa a incorporar as tendências da filosofia
européia moderna, abraçando um caráter iluminista. Em 1773, com a adoção do
texto Instituições de Lógica de Genuense como texto oficial para o ensino de
Filosofia, inicia-se o chamado período iluminista, que perdurará até o final do
período colonial. Aristóteles é substituído por Locke, Rousseau, Condillac e a
física newtoniana. Os manuais adotados para o ensino de Filosofia, de Genuense
e Verney, possuem inspiração assumida no pensamento liberal de Locke.
O Império é marcado pela presença do Curso de Filosofia Positiva, de Comte. “É
no ano de 1858 que vamos encontrar a primeira adesão brasileira às doutrinas de
Augusto Comte, em Antonio Ferrão Moniz de Aragão.” (BEVILAQUA, 1976, P.
26). O positivismo marca não apenas o ensino da Filosofia, mas a organização de
toda a estrutura de ensino, valorizando agora a divisão e especificidade entre as
ciências. Positivismo e liberalismo disputam espaço durante o Império, mas a
adesão ao positivismo não supõe o abandono do liberalismo. Ele é
declaradamente assumido, mantendo as teses de inspiração liberal. Nas palavras
de Roque Spencer Maciel de Barros:
O Brasil independente nasceu sob o signo das idéias liberais.
Embora, em todo o Império, de modo organizado às vezes, de forma
isolada outras, o liberalismo se encontre freqüentemente em
questão, contestado por opiniões conservadoras, autoritárias ou
ultra-montanas, há uma inspiração liberal que atravessa os sessenta
e sete anos da monarquia e que, vestindo diferentes roupagens,
2
comanda a marcha da história nacional. A história do Império
brasileiro é o testemunho de um triunfo liberal: a monarquia
constitucional, apesar do caráter outorgado da carta de 1824, apesar
da consagração de uma religião de Estado...
(...) o positivismo deixou sua marca em nossa história imperial. É
nossa convicção que ele reforçou as propostas liberais, trazendolhes novas forças, argumentos e fundamentos. E, para deixar mais
claro esse papel de “subordinação” positivista ao idealismo liberal,
basta pensar no malogro das teses comteanas que contrariavam
frontalmente aquelas propostas.
(...) a história do Império brasileiro é o testemunho de um triunfo
liberal. (1976, pp. 115-142)
Não percorreremos toda a história do ensino de Filosofia, pois isso demandaria
um estudo que ultrapassaria os limites de um artigo, mas destaco que o ensino da
Filosofia, chegado ao Brasil com os jesuítas, juntamente com nossa história
educacional, manteve-se acompanhando o movimento do pensamento europeu.
Uma vez que não havia, anteriormente, tradição filosófica no Brasil, nossa tradição
tornou-se a européia, com a devida abertura, e em alguns momentos a ausência
dela, para assimilar as discussões da modernidade e, na medida do necessário,
ou conveniente, provocar reflexões específicas. Influências francesa e germânica,
ou como afirma Anísio Teixeira (1964) “No fundo, o substrato português e talvez
ibérico” determinando as discussões filosóficas e as orientações educacionais, é o
que se revela em nossa história.
Nosso currículo escolar trouxe, desde seus primeiros momentos, a presença da
Filosofia como disciplina fundamental e a manteve até o golpe militar. Nesta
época, juntamente com nossos líderes e pensadores, a Filosofia também foi
retirada de seu local natural, exilada, calada pela violência.
Em 1971, os efeitos pirotécnicos do milagre brasileiro repercutiam
sobrepondo-se aos gemidos que os camarins da ditadura militar
emitiam, mas não conseguiam abafar esses gemidos. O magistério,
com suas lideranças cassadas, presas, exiladas ou caladas pela
violência, não tinha condições de resistir, como o movimento
estudantil. Submetida a sociedade civil, os tecnocratas
apresentavam-se como “salvadores da pátria”. Era a época do elogio
ao técnico. Para toda atividade humana havia um tecnocrata. (...) O
objetivo foi atingido. Como quebrar é vocabulário típico da caserna,
até a sede da UNE demoliram. E reduziram o ensino do País a
frangalhos, sob o pretexto de democratizá-lo. (NIELSEN NETO,
1986, pp. 19-21)
Cabe lembrar que Filosofia, assim como Psicologia e Sociologia foram
substituídas pela disciplina Educação Moral e Cívica (EMC), incluída como
obrigatória em todos os graus e modalidades do ensino, visando a “formação do
caráter brasileiro”, o “culto à obediência à Lei”. A disciplina Organização Social e
3
Política do Brasil (OSPB) também é inserida, com objetivos similares. Os
professores dessas disciplinas deveriam apresentar atestado ideológico fornecido
pelos Departamentos de Segurança Pública. (NIELSEN NETO, 1986, pp. 26-27)
Vinte anos depois, com a abertura política, a Filosofia é anistiada. Pode retornar
às escolas de 2o. grau, em caráter de disciplina da parte diversificada do currículo,
ou seja, cabendo às escolas a decisão entre optar ou não por ela, assim como
determinar a carga horária de sua presença em cada série. Estamos em 1985,
com grandes expectativas quanto ao retorno da Filosofia. Tratando
especificamente da escola pública, alguns motivos foram suficientes para
atravancar esse retorno, motivos esses semelhantes, para não dizer os mesmos,
já levantados pelos professores do estado de São Paulo, reunidos no citado
Encontro de 1985.
Retornemos a 2005, após mais vinte anos de lutas, reivindicações e debates
acerca do papel e da necessidade da Filosofia nas escolas, após projetos de Lei
aprovados em vários estados, em outros vetados. O projeto apresentado pelo Pe.
Roque, aprovado no Senado e vetado pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso, ou ainda o veto do governador Geraldo Alckmin a projeto semelhante,
aprovado por unanimidade na Câmara Estadual de São Paulo. Pouco mais de um
ano após seu veto, o mesmo Alckmin promove o retorno da Filosofia. Após tantos
anos e tantas lutas, a Filosofia torna-se disciplina obrigatória nas duas séries
iniciais do Ensino Médio da rede pública do estado de São Paulo, e apenas no
período diurno, por uma resolução da Secretaria de Estado da Educação.
Ao instituir o aumento da carga horária no Ensino Médio e ao incluir
a Filosofia como disciplina obrigatória no currículo (depois de uma
ampla consulta à rede pública), o governador Geraldo Alckmin
mostra que está em sintonia com as necessidades mais prementes
da História. Mostra, ainda, que a educação prossegue sendo uma de
suas prioridades. (CHALITA2, 2005)
Em âmbito nacional, a discussão ainda permanece. Na esfera estadual, inicia-se
outra discussão: Como ocorrerá esse retorno? O que será ensinado? Há
professores suficientes para atender a demanda? O que ocorrerá, de fato, nas
escolas?
Durante esses vinte anos, o debate acerca da reivindicação do retorno da Filosofia
foi permeado por uma série de questões e argumentos já presentes em 85, alguns
reforçados, ampliados, outros enfraquecidos, mas rever o livro O ensino da
filosofia no 2º grau (1986) propiciou uma reflexão acerca das discussões sobre o
retorno da Filosofia. Retorno que tenta acontecer a vinte anos. E por que não
ocorreu de fato?
2
Gabriel Chalita é Secretário de Educação do Estado de São Paulo.
4
Apelo para minha vivência como professora de Filosofia na rede pública estadual,
de 1990 até 2005 – numa das poucas escolas que optaram pelo retorno da
Filosofia logo nos primeiros momentos – na tentativa de reunir argumentos para
responder à questão, portanto, o que exporei nos próximos parágrafos consiste
em minha leitura dessa situação, e portanto, minha representação.
A decisão acerca do currículo, desde que de acordo com a lei, é feita, nas escolas,
por seus respectivos Conselhos de Escolas, formados por professores, pais,
alunos, funcionários. Isso é muito bom, pois bastaria argumentar acerca da
necessidade e importância da filosofia e ela retornaria às escolas. Mas, em
primeiro lugar, quem argumentará se não houver o professor de filosofia já
presente na escola, e membro do Conselho de Escola para possuir direito de voz
e voto? Professores de outras disciplinas que visem a importância e a
necessidade da Filosofia poderiam defendê-la, mas eximem-se de fazê-lo pois
para que a Filosofia pudesse retornar, a carga horária de alguma outra disciplina
deveria ser diminuída. E que azar se fosse a sua, melhor não arriscar.
Esse problema agravou-se em 19983, quando na Secretaria de Educação estava
Rose Neubauer, as aulas diárias foram diminuídas de 6 para 5 no período diurno e
de 5 para 4 no período noturno. Vejam, não houve diminuição de tempo na escola,
mas houve diminuição de número de aulas. O artifício utilizado para uma enorme
economia em termos de salário de professores foi transformar a hora aula, de 50
minutos em 60 minutos, sendo 10 para intervalo. A justificativa do momento eram
as salas ambiente – os alunos precisavam de 10 minutos entre cada aula para
trocar de sala. O artifício foi um engodo, muitas escolas optaram por suprimir
esses 10 minutos de intervalo, em primeiro lugar porque não estavam equipadas
para montar salas ambiente, e em segundo lugar porque esses minutos
significavam descontrole, alunos soltos pela escola, e outros “perigos” para o
espaço escolar. No final, os alunos perderam uma aula por dia. Em 200 dias
letivos, há uma diferença e tanto. O que suprimir? Consultando a Resolução SE nº
11, de 1998, há as devidas indicações para o núcleo comum da então chamada
grade curricular, para a parte diversificada, a decisão ficaria a cargo do Conselho
de Escola. O que suprimir? A inútil Filosofia. Afinal, já estava no exílio há 20 anos,
sua volta trazia problemas aos diretores de escola e a outros professores, pois,
afinal, um professor que instiga, que provoca o aluno a pensar, gera muitos
problemas na acomodação da rotina escolar. Pensar para quê? Trabalho inútil. Na
escola onde lecionava neste período, a carga horária de Filosofia foi reduzida em
setenta e cinco por cento.
Inútil ou útil Filosofia? Determinando sua tarefa.
Entre os argumentos da inutilidade da Filosofia encontramos: não cai no
vestibular; não prepara para a “obediência”; os alunos não sabem nem ler; não é
necessária para os futuros caixas de supermercado, entregadores de pizza,
balconistas e empregadas domésticas – o que diziam alguns professores acerca
3
Resolução SE Nº 11, de 23 de Janeiro de 1998
5
das únicas perspectivas futuras aos alunos da escola pública –, e outras
atrocidades.
Mais convincentes foram os argumentos acerca da abrangência da Filosofia: tratase de uma disciplina tão ampla que qualquer professor pode trabalhá-la, via
interdisciplinaridade, ao ensinar, por exemplo, o que é certo e o que é errado, a ler
notícias de jornal e provocar a opinião dos alunos. Filosofia, opinião, obediência a
regras e leis – tudo a mesma coisa, então, para que Filosofia? Melhor deixar
essas aulas para Língua Portuguesa, pois as várias aulas semanais que restaram
à Língua Portuguesa, durante todos os anos da formação escolar, são
insuficientes para o aluno aprender a ler e a escrever – e, infelizmente, são, talvez
mais por impossibilidades estruturais e ausência do pensar do que por
insuficiência de tempo.
Em resposta a essas e outras atrocidades, o argumento já debatido em 1985,
pelos professores de Filosofia, é fundamental: “o saber filosófico não pode ser
aleatório”. É preciso lembrar o que caracteriza a Filosofia, para entender sua
necessidade no ensino regular.
A descaracterização do ensino de Filosofia pende para dois lados opostos: ou
uma banalização que a leva a perder o sentido, ou uma elitização, exigindo
requisitos intransponíveis, que a torna restrita a um grupo muito pequeno.
A banalização dá-se na medida em que há ausência de métodos e critérios. A
Filosofia é sistemática, rigorosa, caracteriza-se, exatamente, pela presença de
métodos e critérios. Prescindir deles significa abandonar a postura filosófica e
conseqüentemente produzir um conhecimento de senso comum, caracterizado
como um conhecimento prático, que não necessita refletir acerca dos motivos
pelos quais aceitamos determinadas opiniões como verdadeiras.
Na concepção platônica4, por exemplo, Filosofia é o conhecimento usado em
benefício do humano; o conhecimento é uma crença verdadeira e justificada, o
que implica métodos e critérios para verificação e justificação de tais crenças.
Buscar os motivos que temos para aceitar determinadas crenças é papel da
Filosofia. Partindo de uma incessante reflexão sobre as próprias idéias e sobre o
processo de construção das mesmas, compreendendo-as como inseridas em
determinadas circunstâncias que interferem diretamente sobre elas, assim como
sofrem interferência delas, a Filosofia “está presente em nosso mundo e a ele
necessariamente se refere” (JASPERS, 2003, p. 138 ). Pensar o mundo, o outro e
a si mesmo, tentando compreender significados, sentidos; pensar as relações
estabelecidas no mundo; tornar-se crítico e consciente de si e de suas ações não
se deixando guiar pela consciência alheia, mas sem esquivar-se de refletir sobre
ela, estes são o papel, o propósito e a utilidade da Filosofia.
4
Encontrada nos Diálogos Teeteto, Fedro e República
6
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for
útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e
aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a
significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o
sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política
for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para
serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a
liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que
a filosofia é o mais útil de todos os saberes que os seres humanos
são capazes. (CHAUI, 1995, p. 15)
Para atingir seus propósitos, a reflexão filosófica necessita de uma atitude inicial
de colocar tudo em investigação, em questionamento. Perguntar é a atitude
fundamental do filósofo. Mas não apenas perguntar. Segundo Deleuze e Guatarri:
“Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos
celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados,
fabricados, ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura
daqueles que os criam. (...) O construtivismo exige que toda criação
seja uma construção sobre um plano que lhe dá uma existência
autônoma. Criar conceitos, ao menos, é fazer algo. A questão do uso
ou da utilidade da filosofia, ou mesmo de sua nocividade (a quem ela
prejudica?) é assim modificada.” (1992, pp. 13-21)
A construção de conceitos é a tarefa da Filosofia, o conceito é seu material de
trabalho. Assim, não basta refletir acerca do mundo, do outro, de si mesmo, é
preciso construir, fabricar conceitos. Novamente, métodos e critérios fazem-se
necessários. Como um conceito é construído sobre um plano, o conhecimento
deste plano é imprescindível para que o conceito possa ser pensado, criado. Daí a
necessidade de conhecimento acerca do mundo, da história da Filosofia, da
história e do processo da criação dos conceitos.
Desta forma, o ensino de Filosofia não pode restringir-se a verificar a opinião dos
filósofos e descrevê-las. É preciso compreender seu papel de construtores de
conceitos e dialogar com eles, assumindo a postura daquele que está sempre
aberto, sempre em dis-posição. Martin Heidegger aponta essa tarefa da Filosofia
de abertura, diálogo constante:
Quando é que a resposta à questão: Que é isto — a filosofia? é uma
resposta filosofante? Quando filosofamos nós? Manifestamente
apenas então –quando entramos em diálogo com os filósofos. Disto
faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate
em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, é
tarefa específica dos filósofos, é o falar, o légein no sentido do
dialégesthai, o falar como diálogo. Se e quando o diálogo é
necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto.
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Uma coisa é verificar opiniões dos filósofos e descrevê-las. Outra
coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer
dizer, do que falam. (1973, p. 217)
Considerando como tarefa da Filosofia provocar essa dis-posição para o mundo e
para o outro, construir conceitos sobre o plano da existência, refletindo sobre
nossas ações, escolhas e posturas, sobre nossos caminhos individuais e comuns,
pensar o ensino de Filosofia torna-se uma tarefa muito mais abrangente que
selecionar conteúdos para serem assimilados e reproduzidos, que transmitir
conceitos – visto que não há o céu dos conceitos –, o que se faz necessário
ensinar é muito mais uma postura diante de si mesmo, do mundo e do outro; uma
compreensão do conhecimento como instrumento para a vida; o desafio de
produzir conceitos, ao invés de reproduzi-los.
Banalizar a Filosofia é destituí-la de sua tarefa, é apropriar-se de idéias de
filósofos e incorporá-las sem pensar acerca delas, tomando-as como máximas,
como dogmas, numa atitude anti-filosófica; ou destituindo-as do plano no qual
foram construídas e aplicando-as às situações, sem antes fazer o devido recorte
epistemológico e atualizá-las, sem o devido diálogo com os filósofos. Que todos
somos potencialmente filósofos, pois é característica do humano o
questionamento, a atitude de perguntar para e sobre o mundo, é aceitável e
válido. Mas afirmar que, por esse motivo, podemos prescindir do estudo
sistemático da Filosofia, seria o mesmo que prescindir de todo o conhecimento
produzido até então, necessitando inventar a roda diariamente, necessitando
arrombar portas abertas. Se como afirmou Platão, a Filosofia consiste no uso do
conhecimento em benefício do humano, necessitamos produzir conhecimento e,
para tal, tomar como ponto de partida o conhecimento já produzido na história da
humanidade. Isso não significa aceitá-lo sem reflexão, sem verificar os motivos
que possuímos para tal, mas também não significa jogá-lo fora, desprezá-lo, como
se não possuísse validade alguma, como se as construções dos conceitos
viessem prontas, como se somente agora o mundo fosse inaugurado.
A elitização da Filosofia, no outro extremo, coloca-a como atividade tão
maravilhosa que não pode ser desenvolvida, exceto pelos “eleitos”. “A Filosofia
não é para todos, não é para qualquer um”, dizem aqueles que pretendem elitizála e criam requisitos e mais requisitos para aproximação. Estes fecham-na em
redomas, delimitando pequenos círculos de atuação. A Filosofia torna-se tão
elitizada que se distancia do mundo. O filósofo passa a ser um “semi-deus” ou um
ser bizarro, esquisito. Além de afastar a Filosofia de seu lugar de origem: a disposição para o outro, o mundo, o ser humano; essa postura afasta as pessoas da
Filosofia e a torna algo incompreensível. O processo de elitização da Filosofia
levou alguns profissionais da área a defender que o ensino de Filosofia deveria
ocorrer somente em nível superior, pois alunos da Educação Básica não teriam
condições de compreender sua complexidade. Outros defenderam que, inclusive
na graduação, deveria ocorrer um processo seletivo mais exigente, com um teste
de aptidão que requeresse, pelo menos, o domínio de línguas estrangeiras.
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Essa postura, embora tencionasse defender a Filosofia desses estranhos seres
comuns, capazes de banalizá-la fazendo-a perder sua majestade, sem perceber –
ou talvez percebendo – deram argumentos para afastar a Filosofia de seu local e
de sua tarefa.
(...) a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além
de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz
respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas
questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano
geral para mergulhar, através do trabalho consciencioso, num
capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto,
bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.
A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si
mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse,
teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria
as coisas e uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor
é não pensar filosoficamente. (...)
Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência
da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular
quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de
rebanho. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo
entediante. (JASPERS, 2003, p. 139)
Afastada de sua tarefa, deixa lugar para a insensatez, para posturas irrefletidas,
para “opiniões” não fundamentadas, que convencem a coletividade a rumar para o
absurdo, a construir um mundo onde os interesses escusos de uma minoria
imperam sobre o todo, sem dar lugar à reflexão, à dis-posição para o outro, à
reflexão sobre si mesmo e sobre as posturas assumidas.
Não sejamos ingênuos a ponto de crer que a simples presença do ensino de
Filosofia poderia modificar o quadro. A Filosofia também pode ser utilizada para
construir a defesa de posturas anti-éticas, desde que assumamos diante de tais
posturas, uma atitude irrefletida de aceitação imediata, apenas por apresentaremse sob a égide da Filosofia. Assim, não basta termos a disciplina Filosofia nas
escolas de Educação Básica. É preciso pensar, sobretudo, como será esse
ensino: o que ensinar, como ensinar, por que ensinar, para que ensinar?
Um dos grandes problemas enfrentados pelo professor de Filosofia no Ensino
Médio – e isso também já era motivo de debate em 1985, e com o sistema de
Progressão Continuada agravou-se – é o desconhecimento da Língua Portuguesa.
Muitos alunos ingressam no Ensino Médio como analfabetos funcionais, e ler
textos filosóficos supõe saber ler textos. Obviamente, um texto escrito não é o
único tipo de texto a ser trabalhado, podemos trabalhar com intertextos: imagens,
falas, histórias contadas, filmes, figuras, exemplos observados na realidade... mas
o principal instrumento para o filosofar é a linguagem escrita, pois é nela que
encontramos o percurso de construção de conceitos de nossos antepassados (a
fim de não termos que “arrombar as portas abertas”).
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A dificuldade de leitura e escrita de nossos alunos não é uma novidade, mas
precisa deixar de acontecer. Não é porque o aluno não aprendeu a ler até o
momento (seja no Ensino Fundamental ou na pós-graduação), que precisará
manter-se sem esse recurso por toda a vida. “Nunca é tarde” pode ser adotado
aqui. Obviamente, se alfabetizar o aluno tornar-se tarefa do professor de Filosofia,
seu trabalho será aumentado sobremaneira, correndo o risco de deixar de
apresentar todos os temas e conteúdos específicos da disciplina, a fim de suprir
essa carência do aluno. Se não houver outra maneira, que se prejudiquem alguns
conteúdos para suprir o desconhecimento da Língua, sem deixar, é claro, de
apresentar o fundamental dos conteúdos específicos: a postura filosófica.
Paralelamente, o questionamento do processo educacional e dos motivos que
levam um aluno de Ensino Médio a não saber ler, é possível e recomendável ao
professor de Filosofia. Não são apenas os alunos que precisam ser provocados ao
pensar, mas os pais, os professores, a direção da escola e os responsáveis pelo
sistema educacional; toda a comunidade escolar, toda a sociedade precisa ser
alertada das carências e das maneiras existentes para supri-las. Isso se chama
participação, democracia, cidadania.
São cinco os princípios da democracia, são cinco e, juntos
totalmente suficientes. Liberdade, participação, diversidade,
solidariedade, igualdade. Cada um em separado já é uma revolução.
(...)
É preciso colocar o eixo desta revolução na cidadania, em cada
pessoa e em todas. Não no Estado nem no mercado. Nenhum dos
dois é capaz de dar vida completa a esses princípios. (...) O Estado
quase sempre mata ou alija um desses princípios e alega que é uma
medida necessária para salvar a democracia. (...) O Estado é um
animal que precisa ser sempre domesticado. Sem estar sob controle
da cidadania, perde o rumo. É corrompido e corrompe. O mercado,
sem o controle da cidadania, perde seu gosto pela liberdade e a
competição. Entrega-se a uns poucos para servir as minorias.
(SOUZA, 1996, pp. 66-67)
Nem sempre as pessoas sabem disso, percebem o quanto são enganadas ou
corrompidas pelos interesses do mercado, pelas falcatruas de um Estado que
serve a uma minoria. Qual o papel do ensino de Filosofia diante desse contexto?
Provocar a reflexão, ensinar a postura filosófica; buscar e ensinar a buscar os
fundamentos das opiniões – opiniões sem fundamento serão automaticamente
desmascaradas; ensinar a organizar logicamente as idéias testando a validade
dos argumentos, colocando-os em referência a seus contextos e validando-os
segundo métodos e critérios. Em outras palavras... ensinar a pensar. Pensar sobre
as próprias idéias, sobre seu processo de construção e aceitação, sobre seus
posicionamentos no mundo, diante das situações, de si mesmo e do outro e,
principalmente, nas implicações desses posicionamentos para a vida individual e
da comunidade na qual está inserido.
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Aqui destaco a diferenciação feita por Martin Buber entre coletividade e
comunidade. Na coletividade estamos um-ao-lado-do-outro, mas não um-com-ooutro. Na coletividade temos a massa que se deixa levar sem saber para onde. Na
comunidade temos objetivos comuns, mas cada um está com-o-outro, sabendo
para onde o todo e cada um dirigem-se: há reciprocidade, há engajamento de simesmo e com-o-outro.
A coletividade não é uma ligação, é um enfeixamento: atados, um
indivíduo junto ao outro, armados em comum, equipados em comum,
de homem para homem só tanta vida quanto necessário para
inflamar o passo da marcha. A comunidade, entretanto, a
comunidade em evolução é estar não-mais-um-ao-lado-do-outro,
mas estar um-com-o-outro, de uma multidão de pessoas que,
embora movimentem-se juntas em direção a um objetivo,
experienciam em todo lugar um dirigir-se-um-ao-outro, um face-aface dinâmico. (...) O atual zelo devotado à coletividade é uma fuga
da pessoa diante da prova e da consagração da comunidade, diante
da dialógica vital que está no coração do mundo e que exige o
engajamento de si mesmo. (BUBER, 1982, pp. 66-67)
Aspectos Legais: conciliáveis com a tarefa?
Determinada a tarefa da Filosofia, determina-se o objetivo a ser atingido com o
ensino de Filosofia: a atitude, a postura filosófica, o filosofar. Comparando esse
objetivo filosófico com as finalidades do Ensino Médio, constantes da LDBN
9394/96, no artigo 35, encontramos:
“a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos
no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”
(inciso I);
“a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando,
para continuar aprendendo” (inciso II);
“o aprimoramento do educando, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”
(inciso III);
“a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos
processos produtivos” (inciso IV).
Todas e cada uma das finalidades do Ensino Médio poderiam ser promovidas com
mais empenho e facilidade se desenvolvida a citada postura filosófica. Isso,
porém, não garantiria a obtenção de todas essas finalidades, pois a simples
presença da Filosofia nas escolas não alterará as estruturas e vícios da Educação
Nacional. É preciso que a postura crítica e reflexiva seja adotada para que
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possamos pensar de maneira radical no contexto real da educação brasileira,
promovendo, de maneira interdisciplinar e integrada, sua transformação e seu
aperfeiçoamento.
Nas diretrizes curriculares para o Ensino Médio, presentes no Artigo 36, § 1º da
LDBN, encontra-se: “o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia
necessários ao exercício da cidadania” (inciso III). Considerando, conforme
tratado anteriormente, a cidadania indispensável para garantir os princípios
necessários à democracia – liberdade, participação, diversidade, solidariedade e
igualdade – a postura filosófica, entendida como uma postura reflexiva e ética, é
necessária à promoção de todos e cada um deles, mas não suficiente para
garanti-los.
Por fim, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), são apresentadas
competências e habilidades a serem desenvolvidas em cada disciplina. Estudadas
e construídas nesses tantos anos de retorno da Filosofia, as competências
atribuídas a ela são:
•
Ler textos filosóficos de modo significativo.
•
Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e
registros.
•
Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.
•
Debater,
tomando
uma
posição,
defendendo-a
argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais
consistentes.
•
Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e
modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e
em outras produções culturais.
• Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de
sua origem específica, quanto em outros planos: o pessoalbiográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da
sociedade científico-tecnológica.
O professor que assumir, como proposta de ensino, desenvolver a postura
filosófica, atingirá todos esses objetivos, desenvolvendo as competências e
habilidades propostas à disciplina.
As dificuldades encontradas estariam no já citado desconhecimento da Língua
Portuguesa, na falta de recursos pedagógicos, nos vícios desenvolvidos no
cotidiano escolar, entre outras tantas, mas esses são os desafios. A opção
metodológica, assim como o recorte epistemológico, histórico ou temático
permanecem na dependência de uma leitura da realidade escolar e de suas
necessidades. Não há como apresentar receitas, manuais para a construção de
um processo educacional consistente e coerente com suas prioridades. Há como
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pesquisá-las e construir metodologias e materiais próprios para cada necessidade.
Essa é a tarefa daquele que se dis-ponibiliza a ensinar filosofia, ou melhor, ensinar
a filosofar.
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O retorno da Filosofia às escolas públicas no estado de São Paulo