O RETORNO DA FILOSOFIA ÀS ESCOLAS PÚBLICAS NO ESTADO DE SÃO PAULO: O DESAFIO DA DIS-POSIÇÃO E A TAREFA DO FILOSOFAR 1 Monica Aiub Resumo Considerando o retorno da disciplina Filosofia como disciplina obrigatória nas escolas públicas do estado de São Paulo, este artigo apresenta alguns elementos para a reflexão acerca da tarefa do ensino de Filosofia na Educação Básica. Para tal, percorre a trilha histórica do ensino de Filosofia no Brasil, iniciando seu trajeto no período colonial, mas evidenciando, principalmente, os últimos vinte anos, nos quais a Filosofia tenta retornar às escolas. Mais que uma discussão acerca de conteúdos e métodos, o enfoque dado é à postura filosófica a ser suscitada e desenvolvida, e suas possíveis conseqüências no que se refere à vida individual e em comunidade. Também a possibilidade de promoção do exercício da cidadania, provocada pela postura filosófica, é destacada. Em síntese, trata-se de um artigo acerca do papel do professor de Filosofia no exercício da tarefa de ensinar a filosofar. Da chegada ao retorno: um pouco de história Há vinte anos discutia-se o retorno da Filosofia às escolas, especificamente no então denominado 2º grau. Os Encontros Estaduais de Professores de Filosofia debatiam questões urgentes para a educação e, mais propriamente, para o ensino da Filosofia. Consultando o texto organizado por Henrique Nielsen Neto (1986) com o objetivo de observar tópicos daquele momento histórico, senti-me reeditando questões. As discussões de 1985 e 1986, constantes no livro, continuam presentes em nossas escolas, sobretudo nas escolas públicas da rede estadual paulista, onde a filosofia somente agora, em 2005, retorna de fato. Talvez ainda não de fato. Para iniciar nossa reflexão sobre a situação atual do ensino de Filosofia, convido o leitor a um rápido passeio histórico, retornando onde tudo começou... A Filosofia chega ao Brasil em 1549, juntamente com o início da História da Educação Brasileira (AZEVEDO, 1997, p. 9). Vinda com os jesuítas, responsáveis pela educação no período colonial, a Filosofia já se faz presente no currículo escolar dos primeiros colégios da Companhia. A atividade filosófica, desenvolvida pela Companhia, nos primeiros dois séculos e meio de nossa história, constitui a mais expressiva 1 Artigo publicado na Revista Cadernos do Centro Universitário São Camilo. São Paulo, v. 11, n. 3, p. 55-63. Jul/set 2005. manifestação da cultura filosófica este período. Na verdade o ensino de Filosofia, até 1759, época da expulsão dos jesuítas, é ministrado nos colégios da Companhia, por padres inacianos, segundo os cânones estabelecidos pela Ratio studiorum, tendo como livros de texto os manuais, aprovados pela Companhia e, como livro de fundo, o célebre Curso Coimbricense. (CAMPOS, 1978, p. 42) Os primeiros colégios, e em pouco tempo, as primeiras faculdades, objetivavam formar a sociedade e o futuro professorado da Companhia, respectivamente. Segundo Campos (1978) o primeiro curso de Filosofia foi criado em 1572, dada a citada necessidade de formar o professorado e a falta de tradição filosófica no Brasil em seus primórdios. No século XVI, o ensino de Filosofia destinava-se aos que se dedicavam à carreira eclesiástica. Obedecendo as normas pedagógicas da Ratio studiorum (1586), a glória de Deus era o lema dos colégios dos jesuítas. Com formação centrada em Letras, Artes, Filosofia e Teologia, com método pautado em repetições, preservando, ao máximo, a doutrina Aristotélica e a Teologia Tomista, os inacianos seguiam a orientação da segunda escolástica portuguesa. Chegada ao Brasil como disciplina constante do currículo escolar, com orientação idêntica à orientação escolástica portuguesa, contando, inclusive, com dissertações avaliadas pelo padre provincial ou geral da Companhia (CAMPOS, 1978, p. 45-46), a Filosofia mantém-se no movimento escolástico até a expulsão dos jesuítas. A partir deste momento, passa a incorporar as tendências da filosofia européia moderna, abraçando um caráter iluminista. Em 1773, com a adoção do texto Instituições de Lógica de Genuense como texto oficial para o ensino de Filosofia, inicia-se o chamado período iluminista, que perdurará até o final do período colonial. Aristóteles é substituído por Locke, Rousseau, Condillac e a física newtoniana. Os manuais adotados para o ensino de Filosofia, de Genuense e Verney, possuem inspiração assumida no pensamento liberal de Locke. O Império é marcado pela presença do Curso de Filosofia Positiva, de Comte. “É no ano de 1858 que vamos encontrar a primeira adesão brasileira às doutrinas de Augusto Comte, em Antonio Ferrão Moniz de Aragão.” (BEVILAQUA, 1976, P. 26). O positivismo marca não apenas o ensino da Filosofia, mas a organização de toda a estrutura de ensino, valorizando agora a divisão e especificidade entre as ciências. Positivismo e liberalismo disputam espaço durante o Império, mas a adesão ao positivismo não supõe o abandono do liberalismo. Ele é declaradamente assumido, mantendo as teses de inspiração liberal. Nas palavras de Roque Spencer Maciel de Barros: O Brasil independente nasceu sob o signo das idéias liberais. Embora, em todo o Império, de modo organizado às vezes, de forma isolada outras, o liberalismo se encontre freqüentemente em questão, contestado por opiniões conservadoras, autoritárias ou ultra-montanas, há uma inspiração liberal que atravessa os sessenta e sete anos da monarquia e que, vestindo diferentes roupagens, 2 comanda a marcha da história nacional. A história do Império brasileiro é o testemunho de um triunfo liberal: a monarquia constitucional, apesar do caráter outorgado da carta de 1824, apesar da consagração de uma religião de Estado... (...) o positivismo deixou sua marca em nossa história imperial. É nossa convicção que ele reforçou as propostas liberais, trazendolhes novas forças, argumentos e fundamentos. E, para deixar mais claro esse papel de “subordinação” positivista ao idealismo liberal, basta pensar no malogro das teses comteanas que contrariavam frontalmente aquelas propostas. (...) a história do Império brasileiro é o testemunho de um triunfo liberal. (1976, pp. 115-142) Não percorreremos toda a história do ensino de Filosofia, pois isso demandaria um estudo que ultrapassaria os limites de um artigo, mas destaco que o ensino da Filosofia, chegado ao Brasil com os jesuítas, juntamente com nossa história educacional, manteve-se acompanhando o movimento do pensamento europeu. Uma vez que não havia, anteriormente, tradição filosófica no Brasil, nossa tradição tornou-se a européia, com a devida abertura, e em alguns momentos a ausência dela, para assimilar as discussões da modernidade e, na medida do necessário, ou conveniente, provocar reflexões específicas. Influências francesa e germânica, ou como afirma Anísio Teixeira (1964) “No fundo, o substrato português e talvez ibérico” determinando as discussões filosóficas e as orientações educacionais, é o que se revela em nossa história. Nosso currículo escolar trouxe, desde seus primeiros momentos, a presença da Filosofia como disciplina fundamental e a manteve até o golpe militar. Nesta época, juntamente com nossos líderes e pensadores, a Filosofia também foi retirada de seu local natural, exilada, calada pela violência. Em 1971, os efeitos pirotécnicos do milagre brasileiro repercutiam sobrepondo-se aos gemidos que os camarins da ditadura militar emitiam, mas não conseguiam abafar esses gemidos. O magistério, com suas lideranças cassadas, presas, exiladas ou caladas pela violência, não tinha condições de resistir, como o movimento estudantil. Submetida a sociedade civil, os tecnocratas apresentavam-se como “salvadores da pátria”. Era a época do elogio ao técnico. Para toda atividade humana havia um tecnocrata. (...) O objetivo foi atingido. Como quebrar é vocabulário típico da caserna, até a sede da UNE demoliram. E reduziram o ensino do País a frangalhos, sob o pretexto de democratizá-lo. (NIELSEN NETO, 1986, pp. 19-21) Cabe lembrar que Filosofia, assim como Psicologia e Sociologia foram substituídas pela disciplina Educação Moral e Cívica (EMC), incluída como obrigatória em todos os graus e modalidades do ensino, visando a “formação do caráter brasileiro”, o “culto à obediência à Lei”. A disciplina Organização Social e 3 Política do Brasil (OSPB) também é inserida, com objetivos similares. Os professores dessas disciplinas deveriam apresentar atestado ideológico fornecido pelos Departamentos de Segurança Pública. (NIELSEN NETO, 1986, pp. 26-27) Vinte anos depois, com a abertura política, a Filosofia é anistiada. Pode retornar às escolas de 2o. grau, em caráter de disciplina da parte diversificada do currículo, ou seja, cabendo às escolas a decisão entre optar ou não por ela, assim como determinar a carga horária de sua presença em cada série. Estamos em 1985, com grandes expectativas quanto ao retorno da Filosofia. Tratando especificamente da escola pública, alguns motivos foram suficientes para atravancar esse retorno, motivos esses semelhantes, para não dizer os mesmos, já levantados pelos professores do estado de São Paulo, reunidos no citado Encontro de 1985. Retornemos a 2005, após mais vinte anos de lutas, reivindicações e debates acerca do papel e da necessidade da Filosofia nas escolas, após projetos de Lei aprovados em vários estados, em outros vetados. O projeto apresentado pelo Pe. Roque, aprovado no Senado e vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, ou ainda o veto do governador Geraldo Alckmin a projeto semelhante, aprovado por unanimidade na Câmara Estadual de São Paulo. Pouco mais de um ano após seu veto, o mesmo Alckmin promove o retorno da Filosofia. Após tantos anos e tantas lutas, a Filosofia torna-se disciplina obrigatória nas duas séries iniciais do Ensino Médio da rede pública do estado de São Paulo, e apenas no período diurno, por uma resolução da Secretaria de Estado da Educação. Ao instituir o aumento da carga horária no Ensino Médio e ao incluir a Filosofia como disciplina obrigatória no currículo (depois de uma ampla consulta à rede pública), o governador Geraldo Alckmin mostra que está em sintonia com as necessidades mais prementes da História. Mostra, ainda, que a educação prossegue sendo uma de suas prioridades. (CHALITA2, 2005) Em âmbito nacional, a discussão ainda permanece. Na esfera estadual, inicia-se outra discussão: Como ocorrerá esse retorno? O que será ensinado? Há professores suficientes para atender a demanda? O que ocorrerá, de fato, nas escolas? Durante esses vinte anos, o debate acerca da reivindicação do retorno da Filosofia foi permeado por uma série de questões e argumentos já presentes em 85, alguns reforçados, ampliados, outros enfraquecidos, mas rever o livro O ensino da filosofia no 2º grau (1986) propiciou uma reflexão acerca das discussões sobre o retorno da Filosofia. Retorno que tenta acontecer a vinte anos. E por que não ocorreu de fato? 2 Gabriel Chalita é Secretário de Educação do Estado de São Paulo. 4 Apelo para minha vivência como professora de Filosofia na rede pública estadual, de 1990 até 2005 – numa das poucas escolas que optaram pelo retorno da Filosofia logo nos primeiros momentos – na tentativa de reunir argumentos para responder à questão, portanto, o que exporei nos próximos parágrafos consiste em minha leitura dessa situação, e portanto, minha representação. A decisão acerca do currículo, desde que de acordo com a lei, é feita, nas escolas, por seus respectivos Conselhos de Escolas, formados por professores, pais, alunos, funcionários. Isso é muito bom, pois bastaria argumentar acerca da necessidade e importância da filosofia e ela retornaria às escolas. Mas, em primeiro lugar, quem argumentará se não houver o professor de filosofia já presente na escola, e membro do Conselho de Escola para possuir direito de voz e voto? Professores de outras disciplinas que visem a importância e a necessidade da Filosofia poderiam defendê-la, mas eximem-se de fazê-lo pois para que a Filosofia pudesse retornar, a carga horária de alguma outra disciplina deveria ser diminuída. E que azar se fosse a sua, melhor não arriscar. Esse problema agravou-se em 19983, quando na Secretaria de Educação estava Rose Neubauer, as aulas diárias foram diminuídas de 6 para 5 no período diurno e de 5 para 4 no período noturno. Vejam, não houve diminuição de tempo na escola, mas houve diminuição de número de aulas. O artifício utilizado para uma enorme economia em termos de salário de professores foi transformar a hora aula, de 50 minutos em 60 minutos, sendo 10 para intervalo. A justificativa do momento eram as salas ambiente – os alunos precisavam de 10 minutos entre cada aula para trocar de sala. O artifício foi um engodo, muitas escolas optaram por suprimir esses 10 minutos de intervalo, em primeiro lugar porque não estavam equipadas para montar salas ambiente, e em segundo lugar porque esses minutos significavam descontrole, alunos soltos pela escola, e outros “perigos” para o espaço escolar. No final, os alunos perderam uma aula por dia. Em 200 dias letivos, há uma diferença e tanto. O que suprimir? Consultando a Resolução SE nº 11, de 1998, há as devidas indicações para o núcleo comum da então chamada grade curricular, para a parte diversificada, a decisão ficaria a cargo do Conselho de Escola. O que suprimir? A inútil Filosofia. Afinal, já estava no exílio há 20 anos, sua volta trazia problemas aos diretores de escola e a outros professores, pois, afinal, um professor que instiga, que provoca o aluno a pensar, gera muitos problemas na acomodação da rotina escolar. Pensar para quê? Trabalho inútil. Na escola onde lecionava neste período, a carga horária de Filosofia foi reduzida em setenta e cinco por cento. Inútil ou útil Filosofia? Determinando sua tarefa. Entre os argumentos da inutilidade da Filosofia encontramos: não cai no vestibular; não prepara para a “obediência”; os alunos não sabem nem ler; não é necessária para os futuros caixas de supermercado, entregadores de pizza, balconistas e empregadas domésticas – o que diziam alguns professores acerca 3 Resolução SE Nº 11, de 23 de Janeiro de 1998 5 das únicas perspectivas futuras aos alunos da escola pública –, e outras atrocidades. Mais convincentes foram os argumentos acerca da abrangência da Filosofia: tratase de uma disciplina tão ampla que qualquer professor pode trabalhá-la, via interdisciplinaridade, ao ensinar, por exemplo, o que é certo e o que é errado, a ler notícias de jornal e provocar a opinião dos alunos. Filosofia, opinião, obediência a regras e leis – tudo a mesma coisa, então, para que Filosofia? Melhor deixar essas aulas para Língua Portuguesa, pois as várias aulas semanais que restaram à Língua Portuguesa, durante todos os anos da formação escolar, são insuficientes para o aluno aprender a ler e a escrever – e, infelizmente, são, talvez mais por impossibilidades estruturais e ausência do pensar do que por insuficiência de tempo. Em resposta a essas e outras atrocidades, o argumento já debatido em 1985, pelos professores de Filosofia, é fundamental: “o saber filosófico não pode ser aleatório”. É preciso lembrar o que caracteriza a Filosofia, para entender sua necessidade no ensino regular. A descaracterização do ensino de Filosofia pende para dois lados opostos: ou uma banalização que a leva a perder o sentido, ou uma elitização, exigindo requisitos intransponíveis, que a torna restrita a um grupo muito pequeno. A banalização dá-se na medida em que há ausência de métodos e critérios. A Filosofia é sistemática, rigorosa, caracteriza-se, exatamente, pela presença de métodos e critérios. Prescindir deles significa abandonar a postura filosófica e conseqüentemente produzir um conhecimento de senso comum, caracterizado como um conhecimento prático, que não necessita refletir acerca dos motivos pelos quais aceitamos determinadas opiniões como verdadeiras. Na concepção platônica4, por exemplo, Filosofia é o conhecimento usado em benefício do humano; o conhecimento é uma crença verdadeira e justificada, o que implica métodos e critérios para verificação e justificação de tais crenças. Buscar os motivos que temos para aceitar determinadas crenças é papel da Filosofia. Partindo de uma incessante reflexão sobre as próprias idéias e sobre o processo de construção das mesmas, compreendendo-as como inseridas em determinadas circunstâncias que interferem diretamente sobre elas, assim como sofrem interferência delas, a Filosofia “está presente em nosso mundo e a ele necessariamente se refere” (JASPERS, 2003, p. 138 ). Pensar o mundo, o outro e a si mesmo, tentando compreender significados, sentidos; pensar as relações estabelecidas no mundo; tornar-se crítico e consciente de si e de suas ações não se deixando guiar pela consciência alheia, mas sem esquivar-se de refletir sobre ela, estes são o papel, o propósito e a utilidade da Filosofia. 4 Encontrada nos Diálogos Teeteto, Fedro e República 6 Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes que os seres humanos são capazes. (CHAUI, 1995, p. 15) Para atingir seus propósitos, a reflexão filosófica necessita de uma atitude inicial de colocar tudo em investigação, em questionamento. Perguntar é a atitude fundamental do filósofo. Mas não apenas perguntar. Segundo Deleuze e Guatarri: “Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados, ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. (...) O construtivismo exige que toda criação seja uma construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma. Criar conceitos, ao menos, é fazer algo. A questão do uso ou da utilidade da filosofia, ou mesmo de sua nocividade (a quem ela prejudica?) é assim modificada.” (1992, pp. 13-21) A construção de conceitos é a tarefa da Filosofia, o conceito é seu material de trabalho. Assim, não basta refletir acerca do mundo, do outro, de si mesmo, é preciso construir, fabricar conceitos. Novamente, métodos e critérios fazem-se necessários. Como um conceito é construído sobre um plano, o conhecimento deste plano é imprescindível para que o conceito possa ser pensado, criado. Daí a necessidade de conhecimento acerca do mundo, da história da Filosofia, da história e do processo da criação dos conceitos. Desta forma, o ensino de Filosofia não pode restringir-se a verificar a opinião dos filósofos e descrevê-las. É preciso compreender seu papel de construtores de conceitos e dialogar com eles, assumindo a postura daquele que está sempre aberto, sempre em dis-posição. Martin Heidegger aponta essa tarefa da Filosofia de abertura, diálogo constante: Quando é que a resposta à questão: Que é isto — a filosofia? é uma resposta filosofante? Quando filosofamos nós? Manifestamente apenas então –quando entramos em diálogo com os filósofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, é tarefa específica dos filósofos, é o falar, o légein no sentido do dialégesthai, o falar como diálogo. Se e quando o diálogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto. 7 Uma coisa é verificar opiniões dos filósofos e descrevê-las. Outra coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam. (1973, p. 217) Considerando como tarefa da Filosofia provocar essa dis-posição para o mundo e para o outro, construir conceitos sobre o plano da existência, refletindo sobre nossas ações, escolhas e posturas, sobre nossos caminhos individuais e comuns, pensar o ensino de Filosofia torna-se uma tarefa muito mais abrangente que selecionar conteúdos para serem assimilados e reproduzidos, que transmitir conceitos – visto que não há o céu dos conceitos –, o que se faz necessário ensinar é muito mais uma postura diante de si mesmo, do mundo e do outro; uma compreensão do conhecimento como instrumento para a vida; o desafio de produzir conceitos, ao invés de reproduzi-los. Banalizar a Filosofia é destituí-la de sua tarefa, é apropriar-se de idéias de filósofos e incorporá-las sem pensar acerca delas, tomando-as como máximas, como dogmas, numa atitude anti-filosófica; ou destituindo-as do plano no qual foram construídas e aplicando-as às situações, sem antes fazer o devido recorte epistemológico e atualizá-las, sem o devido diálogo com os filósofos. Que todos somos potencialmente filósofos, pois é característica do humano o questionamento, a atitude de perguntar para e sobre o mundo, é aceitável e válido. Mas afirmar que, por esse motivo, podemos prescindir do estudo sistemático da Filosofia, seria o mesmo que prescindir de todo o conhecimento produzido até então, necessitando inventar a roda diariamente, necessitando arrombar portas abertas. Se como afirmou Platão, a Filosofia consiste no uso do conhecimento em benefício do humano, necessitamos produzir conhecimento e, para tal, tomar como ponto de partida o conhecimento já produzido na história da humanidade. Isso não significa aceitá-lo sem reflexão, sem verificar os motivos que possuímos para tal, mas também não significa jogá-lo fora, desprezá-lo, como se não possuísse validade alguma, como se as construções dos conceitos viessem prontas, como se somente agora o mundo fosse inaugurado. A elitização da Filosofia, no outro extremo, coloca-a como atividade tão maravilhosa que não pode ser desenvolvida, exceto pelos “eleitos”. “A Filosofia não é para todos, não é para qualquer um”, dizem aqueles que pretendem elitizála e criam requisitos e mais requisitos para aproximação. Estes fecham-na em redomas, delimitando pequenos círculos de atuação. A Filosofia torna-se tão elitizada que se distancia do mundo. O filósofo passa a ser um “semi-deus” ou um ser bizarro, esquisito. Além de afastar a Filosofia de seu lugar de origem: a disposição para o outro, o mundo, o ser humano; essa postura afasta as pessoas da Filosofia e a torna algo incompreensível. O processo de elitização da Filosofia levou alguns profissionais da área a defender que o ensino de Filosofia deveria ocorrer somente em nível superior, pois alunos da Educação Básica não teriam condições de compreender sua complexidade. Outros defenderam que, inclusive na graduação, deveria ocorrer um processo seletivo mais exigente, com um teste de aptidão que requeresse, pelo menos, o domínio de línguas estrangeiras. 8 Essa postura, embora tencionasse defender a Filosofia desses estranhos seres comuns, capazes de banalizá-la fazendo-a perder sua majestade, sem perceber – ou talvez percebendo – deram argumentos para afastar a Filosofia de seu local e de sua tarefa. (...) a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através do trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas. A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas e uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente. (...) Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de rebanho. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. (JASPERS, 2003, p. 139) Afastada de sua tarefa, deixa lugar para a insensatez, para posturas irrefletidas, para “opiniões” não fundamentadas, que convencem a coletividade a rumar para o absurdo, a construir um mundo onde os interesses escusos de uma minoria imperam sobre o todo, sem dar lugar à reflexão, à dis-posição para o outro, à reflexão sobre si mesmo e sobre as posturas assumidas. Não sejamos ingênuos a ponto de crer que a simples presença do ensino de Filosofia poderia modificar o quadro. A Filosofia também pode ser utilizada para construir a defesa de posturas anti-éticas, desde que assumamos diante de tais posturas, uma atitude irrefletida de aceitação imediata, apenas por apresentaremse sob a égide da Filosofia. Assim, não basta termos a disciplina Filosofia nas escolas de Educação Básica. É preciso pensar, sobretudo, como será esse ensino: o que ensinar, como ensinar, por que ensinar, para que ensinar? Um dos grandes problemas enfrentados pelo professor de Filosofia no Ensino Médio – e isso também já era motivo de debate em 1985, e com o sistema de Progressão Continuada agravou-se – é o desconhecimento da Língua Portuguesa. Muitos alunos ingressam no Ensino Médio como analfabetos funcionais, e ler textos filosóficos supõe saber ler textos. Obviamente, um texto escrito não é o único tipo de texto a ser trabalhado, podemos trabalhar com intertextos: imagens, falas, histórias contadas, filmes, figuras, exemplos observados na realidade... mas o principal instrumento para o filosofar é a linguagem escrita, pois é nela que encontramos o percurso de construção de conceitos de nossos antepassados (a fim de não termos que “arrombar as portas abertas”). 9 A dificuldade de leitura e escrita de nossos alunos não é uma novidade, mas precisa deixar de acontecer. Não é porque o aluno não aprendeu a ler até o momento (seja no Ensino Fundamental ou na pós-graduação), que precisará manter-se sem esse recurso por toda a vida. “Nunca é tarde” pode ser adotado aqui. Obviamente, se alfabetizar o aluno tornar-se tarefa do professor de Filosofia, seu trabalho será aumentado sobremaneira, correndo o risco de deixar de apresentar todos os temas e conteúdos específicos da disciplina, a fim de suprir essa carência do aluno. Se não houver outra maneira, que se prejudiquem alguns conteúdos para suprir o desconhecimento da Língua, sem deixar, é claro, de apresentar o fundamental dos conteúdos específicos: a postura filosófica. Paralelamente, o questionamento do processo educacional e dos motivos que levam um aluno de Ensino Médio a não saber ler, é possível e recomendável ao professor de Filosofia. Não são apenas os alunos que precisam ser provocados ao pensar, mas os pais, os professores, a direção da escola e os responsáveis pelo sistema educacional; toda a comunidade escolar, toda a sociedade precisa ser alertada das carências e das maneiras existentes para supri-las. Isso se chama participação, democracia, cidadania. São cinco os princípios da democracia, são cinco e, juntos totalmente suficientes. Liberdade, participação, diversidade, solidariedade, igualdade. Cada um em separado já é uma revolução. (...) É preciso colocar o eixo desta revolução na cidadania, em cada pessoa e em todas. Não no Estado nem no mercado. Nenhum dos dois é capaz de dar vida completa a esses princípios. (...) O Estado quase sempre mata ou alija um desses princípios e alega que é uma medida necessária para salvar a democracia. (...) O Estado é um animal que precisa ser sempre domesticado. Sem estar sob controle da cidadania, perde o rumo. É corrompido e corrompe. O mercado, sem o controle da cidadania, perde seu gosto pela liberdade e a competição. Entrega-se a uns poucos para servir as minorias. (SOUZA, 1996, pp. 66-67) Nem sempre as pessoas sabem disso, percebem o quanto são enganadas ou corrompidas pelos interesses do mercado, pelas falcatruas de um Estado que serve a uma minoria. Qual o papel do ensino de Filosofia diante desse contexto? Provocar a reflexão, ensinar a postura filosófica; buscar e ensinar a buscar os fundamentos das opiniões – opiniões sem fundamento serão automaticamente desmascaradas; ensinar a organizar logicamente as idéias testando a validade dos argumentos, colocando-os em referência a seus contextos e validando-os segundo métodos e critérios. Em outras palavras... ensinar a pensar. Pensar sobre as próprias idéias, sobre seu processo de construção e aceitação, sobre seus posicionamentos no mundo, diante das situações, de si mesmo e do outro e, principalmente, nas implicações desses posicionamentos para a vida individual e da comunidade na qual está inserido. 10 Aqui destaco a diferenciação feita por Martin Buber entre coletividade e comunidade. Na coletividade estamos um-ao-lado-do-outro, mas não um-com-ooutro. Na coletividade temos a massa que se deixa levar sem saber para onde. Na comunidade temos objetivos comuns, mas cada um está com-o-outro, sabendo para onde o todo e cada um dirigem-se: há reciprocidade, há engajamento de simesmo e com-o-outro. A coletividade não é uma ligação, é um enfeixamento: atados, um indivíduo junto ao outro, armados em comum, equipados em comum, de homem para homem só tanta vida quanto necessário para inflamar o passo da marcha. A comunidade, entretanto, a comunidade em evolução é estar não-mais-um-ao-lado-do-outro, mas estar um-com-o-outro, de uma multidão de pessoas que, embora movimentem-se juntas em direção a um objetivo, experienciam em todo lugar um dirigir-se-um-ao-outro, um face-aface dinâmico. (...) O atual zelo devotado à coletividade é uma fuga da pessoa diante da prova e da consagração da comunidade, diante da dialógica vital que está no coração do mundo e que exige o engajamento de si mesmo. (BUBER, 1982, pp. 66-67) Aspectos Legais: conciliáveis com a tarefa? Determinada a tarefa da Filosofia, determina-se o objetivo a ser atingido com o ensino de Filosofia: a atitude, a postura filosófica, o filosofar. Comparando esse objetivo filosófico com as finalidades do Ensino Médio, constantes da LDBN 9394/96, no artigo 35, encontramos: “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos” (inciso I); “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo” (inciso II); “o aprimoramento do educando, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (inciso III); “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos” (inciso IV). Todas e cada uma das finalidades do Ensino Médio poderiam ser promovidas com mais empenho e facilidade se desenvolvida a citada postura filosófica. Isso, porém, não garantiria a obtenção de todas essas finalidades, pois a simples presença da Filosofia nas escolas não alterará as estruturas e vícios da Educação Nacional. É preciso que a postura crítica e reflexiva seja adotada para que 11 possamos pensar de maneira radical no contexto real da educação brasileira, promovendo, de maneira interdisciplinar e integrada, sua transformação e seu aperfeiçoamento. Nas diretrizes curriculares para o Ensino Médio, presentes no Artigo 36, § 1º da LDBN, encontra-se: “o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (inciso III). Considerando, conforme tratado anteriormente, a cidadania indispensável para garantir os princípios necessários à democracia – liberdade, participação, diversidade, solidariedade e igualdade – a postura filosófica, entendida como uma postura reflexiva e ética, é necessária à promoção de todos e cada um deles, mas não suficiente para garanti-los. Por fim, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), são apresentadas competências e habilidades a serem desenvolvidas em cada disciplina. Estudadas e construídas nesses tantos anos de retorno da Filosofia, as competências atribuídas a ela são: • Ler textos filosóficos de modo significativo. • Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros. • Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo. • Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais consistentes. • Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais. • Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica, quanto em outros planos: o pessoalbiográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica. O professor que assumir, como proposta de ensino, desenvolver a postura filosófica, atingirá todos esses objetivos, desenvolvendo as competências e habilidades propostas à disciplina. As dificuldades encontradas estariam no já citado desconhecimento da Língua Portuguesa, na falta de recursos pedagógicos, nos vícios desenvolvidos no cotidiano escolar, entre outras tantas, mas esses são os desafios. A opção metodológica, assim como o recorte epistemológico, histórico ou temático permanecem na dependência de uma leitura da realidade escolar e de suas necessidades. Não há como apresentar receitas, manuais para a construção de um processo educacional consistente e coerente com suas prioridades. Há como 12 pesquisá-las e construir metodologias e materiais próprios para cada necessidade. Essa é a tarefa daquele que se dis-ponibiliza a ensinar filosofia, ou melhor, ensinar a filosofar. Referências Bibliográficas: AZEVEDO, F. A cultura brasileira. Brasília: UNB, 1997. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CEB nº 15/98. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. _______. Parâmetros curriculares nacionais: história. 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