PRÁTICAS EDUCATIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
IMPRESSÕES DE UMA REALIDADE.
Janaina Cassiano Silva. UFSCar
e-mail: [email protected]
Eliza Maria Barbosa. UNESP/ Araraquara
e-mail: [email protected]
Introdução
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 9394/96 estabelece a
Educação Infantil como a primeira etapa da educação básica, dando visibilidade ao
trabalho pedagógico com a criança de 0 a 6 anos, que adquire assim um reconhecimento
que se expressa pela função legal amplamente divulgada, qual seja: atender às
especificidades do desenvolvimento das crianças dessa faixa etária e contribuir para a
construção e o exercício de sua cidadania. Ainda no campo legal cinco anos mais tarde,
essa perspectiva se reforça com a aprovação em 2001 do Plano Nacional de Educação,
que expressa o objetivo comum de garantir os direitos da criança, entre eles o direito à
educação, só podendo ser alcançado, mediante a cooperação entre a União, os Estados,
o Distrito Federal e os municípios.
Numa análise primeira a respeito de um conjunto de leis que asseguram amplos
direitos educacionais às crianças menores de seis anos, destacamos que o acesso às
creches e pré-escolas é sem dúvida um grande desafio somente superado pelo desafio
ainda maior de construirmos propostas curriculares que sejam democráticas na medida
em que respeitem as diferenças sócio-econômicas, de gênero, faixa etária, étnicas,
culturais e das crianças com necessidades educacionais especiais, mas que também
garanta a todas elas o acesso aos bens culturalmente produzidos pela humanidade,
expressos pelos saberes cientificamente fundados e repassados de geração em geração
como forma inclusive de continuação da espécie humana.
Embora haja um consenso em torno da garantia dos direitos das crianças e suas
famílias à educação infantil, há no campo teórico divergências em torno da função que
esta etapa da escolaridade deve cumprir, permitindo assim que as propostas pedagógicas
orientem-se, ora por práticas educativas que primam pelo espontaneísmo, entendendo a
aprendizagem como processo que independente do processo de ensino, ora por práticas,
2
como as que defendemos neste trabalho, que entendem que as instituições escolares de
educação infantil tem como função possibilitar a criança de 0 a 6 anos uma formação
humana e cultural através do acesso ao saber sistematizado. Tal acesso se produz por
meio de relações pedagógicas intencionais exercidas pelas professoras, fazendo com
que os conhecimentos das crianças acendam para níveis culturais mais elevados.
Este texto resulta de reflexões construídas sobre a hipótese de que há
amplamente divulgado entre professores da Educação Infantil um paradigma orientador
das práticas que se baseiam nas teses fundamentais do construtivismo subsidiando uma
forma específica de conceber a escola de Educação Infantil. Entre essas idéias estão: a
centralidade na criança, em seus processos de aprendizagem individual, a valorização
do conhecimento do cotidiano em detrimento de outros universalmente e
cientificamente validados, a ausência do planejamento por parte do professor, o lúdico
como eixo da prática educativa, entre outros (Arce, 2004).
Os dados parciais apresentados referem-se às observações realizadas em salas de
crianças com 04 anos de idade nos Centros de Educação e Recreação (CERs) do
município de Araraquara-SP, expressando o cotidiano das atividades ali desenvolvidas e
consequentemente o perfil das práticas educativas. Estes dados revelam uma tendência
nas práticas educativas em consolidar as etapas de desenvolvimento intelectual das
crianças, secundarizando o ensino como processo que concretiza os principais
mecanismos de apropriação cultural que garantem às novas gerações a compreensão de
si e das formas sociais de atividade historicamente constituídas.
Esta perspectiva anunciada por teóricos da chamada Escola de Vigostski se
diferencia da matriz teórica Psicogenética que concebe o desenvolvimento psicológico
como fruto de um processo espontâneo e o conhecimento como resultado da ação
coordenada que permite assimilar o real às estruturas de transformação (Piaget, 2003).
Essa matriz teórica guarda semelhanças com estudos evolucionistas desenvolvidos no
campo da filosofia (Warde, 2003). Por esta razão, neste trabalho me refiro a esta matriz
como psicológica pragmática por sua origem filosófica em teóricos do pragmatismo que
evidenciam o aspecto ativo das aprendizagens e suas implicações para os processos de
ensino.
O desenvolvimento é concebido nesta matriz e nas interpretações realizadas a
partir dela quase sempre a partir de um naturalismo, sem que se expresse conjuntamente
a estreita relação entre o desenvolvimento e aquilo que o promove: as relações de
produção de conhecimentos, saberes e técnicas culturais, sem as quais nenhum
3
desenvolvimento acontece de forma efetiva. Os dados apresentados na pesquisa e
discutidos neste texto demonstram uma dinâmica nas ações educativas da educação
infantil orientada por uma perspectiva maturacional e evolutiva que de modo geral
limita as relações de produção de conhecimento das crianças àquilo que elas já
conseguem realizar de forma efetiva. Essa consideração se transmuta no equívoco que
leva as professoras a negligenciar o acesso das crianças a conteúdos culturais mais
evoluídos ou a divulgar entre as crianças conhecimentos informais produzidos por suas
próprias experiências.
Do princípio dialético de que as propriedades típicas das funções intelectuais
psicológicas superiores possuem origem no social e de que a cultura vai se integrando à
natureza de cada indivíduo, Wallon (1879-1962) e mais especificamente Vigotski
(1896-1934), situam suas discussões em torno de questões com grande implicação para
a educação como, por exemplo, o desenvolvimento e aprendizagem numa outra base
teórica. Segundo Carvalho (2002), Vigotski sempre se preocupou com as repercussões
de suas reflexões teóricas no campo da educação, orientando-se sempre pelo princípio
norteador de que o aprendizado escolar produz algo fundamentalmente novo no
desenvolvimento da criança.
A interpretação daquele princípio psicológico indica os processos de ensino
intencionalmente
planejados
e
a
valorização
dos
conhecimentos
científicos
transformados em conteúdos escolar, como imperativos para um modelo educativo que
considera que, é pelas aprendizagens proporcionadas pelo trabalho escolar que o
desenvolvimento acontece.
Segundo Arce e Martins (2007, p.59) a escola de educação infantil tem de
afirmar uma educação para o desenvolvimento assumindo “[...] (de fato, a transmissão
de conhecimentos como condição de humanização), corroborando, inclusive, com a
socialização do patrimônio cultural da humanidade”. Para Vigotski (2004), a educação
escolar
pressupõe
a
influência
premeditada,
organizada
e
prolongada
no
desenvolvimento de um organismo. Portanto, a tarefa fundamental da escola é assegurar
condições pelas quais se desenvolva nos alunos aquilo que lhes falta para a
consolidação das funções psicointelectuais superiores, ferramentas imprescindíveis para
que os homens sejam, de fato, sujeitos da sua história.
Apoiada em tal compreensão, o objetivo principal desse trabalho é evidenciar
elementos das práticas educativas expressos nas escolhas das atividades propostas às
crianças de 04 anos de idade e a forma como elas são desenvolvidas pelas professoras.
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A compreensão desses elementos indica o perfil de formação reproduzido com as
crianças, entendendo que tal perfil contribui de forma mais, ou menos efetiva para os
processos de desenvolvimento e formação humana e cultural das crianças.
O percurso metodológico: algumas impressões.
De acordo com Lüdke e André (1986), todas as vezes que um pesquisador se
propõe a estudar um fenômeno escolar pelo viés das metodologias qualitativas, ele
deverá presenciar ao máximo as situações em que o fenômeno acontece devendo para
isso estabelecer um contato direto e constante com o cotidiano escolar. Os dados
apresentados neste texto apresentam traços de situações reais que compõem o cotidiano
do fazer educativo, podendo ser lidos como traços de uma fisionomia da função que a
instituição desempenha através do modelo de educação que legitima.
Realizamos observações do cotidiano das instituições (CERs), movidos pela
certeza de que os elementos que caracterizam as rotinas das atividades das crianças
naquelas instituições coadunam-se para explicitar a função educativa que fomos
investigar. Com este mesmo intuito, cumprimos uma das principais características da
pesquisa qualitativa que considera como foco de atenção do pesquisador, o significado
que os sujeitos observados dão às coisas e a sua vida, focalização que se faz sempre pela
tentativa de capturar “[...] a perspectiva dos participantes” (Lüdke & André, 1986, p.
12). De acordo com essa perspectiva acreditamos que os dados coletados expressam um
conhecimento abrangente sobre o cotidiano educativo das pré-escolas observadas.
Os dados desta pesquisa foram coletados em três diferentes Centros de
Recreação (CERs) do Município de Araraquara-SP, estão aqui representados pelos
números 01, 02 e 03, resguardando as crianças e os profissionais dos mesmos de
qualquer tipo de exposição indevida. Os três CERs apresentam uma estrutura física
semelhante com amplos espaços de área aberta, apresentando também uma dinâmica de
organização dos espaços de uso coletivo que funciona satisfatoriamente. As rotinas de
alimentação e higiene são bem estruturadas permitindo assim que as crianças da creche
e pré-escola utilizem os mesmos espaços ainda que neles sejam desenvolvidas
atividades distintas em função da idade das crianças.
Em cada um dos CERs apresentados no Quadro 01, acompanhemos as rotinas de
atividades de crianças de três a cinco anos de idade que são agrupadas nessas
instituições por: três anos - 1° ano do segundo ciclo; quatro anos - 2° ano do segundo
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ciclo e cinco anos - 3° ano do segundo ciclo. Esse agrupamento obedece ao critério da
divisão em ciclo que apesar de ser uma indicação legal, não possui caráter prescritivo
para a Educação Infantil, mas que foi acatado pela Secretaria Municipal de Educação de
Araraquara. O quadro 01 apresenta o número de crianças que foram observadas em cada
CER, lembrando que correspondem a uma aproximação, visto que a taxa de frequência
dessas crianças altera-se bastante ao longo do ano letivo.
Observamos e anotamos os elementos que caracterizam todas as atividades
desenvolvidas ao longo da rotina diária das crianças. As observações foram registradas
com o auxílio da grade de observação do dia-a-dia, cuja estrutura prevê variáveis e
modalidades, não havendo, portanto, um registro literal das atividades desenvolvidas
nos contextos investigados. O modelo da grade de observação do dia-a-dia indica: o
espaço que corresponde aos espaços físicos em que cada atividade da rotina das
crianças aconteciam; os participantes que são os atores que participam da atividade:
crianças (CRI), professor (PRO) ou demais agentes da instituição (DAI);
agrupamentos que são diversas formas de organização das crianças para a realização
das atividades: em grupo (GRP), pequenos grupos (PQG) ou individualmente (IND); as
modalidades de gestão da professora que correspondem às formas de intervenção das
professoras junto ao grupo de crianças durante o desenvolvimento das atividades: 1.
Direta (DRT: quando a professora conduz a atividade do início ao fim); 2. Não realizam
intervenção (NRI: sempre que a atividade transcorrer sem nenhum tipo de intervenção
da professora); 3. Com intervenção pedagógica (CIP: quando o professor dirige a
atividade fornecendo informações, elementos e conceitos para favorecer a realização da
atividade pelas crianças); 4. Disciplinar (DIC: quando a professora só intervém no
sentido de manter a organização e a disciplina durante a atividade) e o tempo utilizado
em cada atividade.
As atividades observadas e analisadas a seguir, cruzando seus dados com os
dados das gestões das professoras, são as que se seguem: atividades de rotina:
atividades cotidianas de entrada e saída das crianças, atividades ligadas aos cuidados,
higiene e alimentação; atividades didáticas são as atividades de registro, com livros
didáticos, desenhos, colagem, histórias; as atividades lúdicas: brinquedos, brincadeiras
e jogos; as atividades com músicas: canções para brincar em roda, músicas que
acompanham as atividades de rotina e as atividades com histórias: momentos em que
as crianças manuseiam livros ou ouvem histórias contadas pelas professoras. O
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cruzamento das variáveis que compõem a grade de observação com as atividades
desenvolvida delineiam as análises realizadas a seguir.
Análise dos dados e conclusões: perfil de uma realidade revelada.
Segundo Lüdke e André (1986), o momento de análise dos dados corresponde ao
mais formal em toda a pesquisa, uma vez que também expressam uma parte
significativa das escolhas, questões ou proposições específicas que vão se afunilando
pelo processo de aproximação gradativa do foco principal de investigação. Para isso,
observando as variáveis anunciadas acima que apresentam proposições mais gerais e
outras mais específicas obtendo a partir disso, critérios mais apurados para as
sistematizações que realizamos a partir dos dados encontrados. Entendemos que a
escolha das variáveis que permitiram a estruturação dos dados em um continuum é
relevante nesta fase de análise, pois, expressam conjuntamente com as modalidades de
gestão das professoras uma amplitude e flexibilidade que permitiram obter um número
bastante significativo de dados, embora nem todos estejam expressos neste texto em
específico.
Formalizamos os dados, transformando os dias de observação em minutos para
obtermos percentuais de tempo dedicados a cada atividade nas turmas observadas.
Foram realizadas 10 observações das crianças de quatro anos com 2300 minutos
coletados. Esses valores convertidos em porcentagem apresentam-se abaixo. Neste
trabalho apresentamos as análises correspondentes às atividades de rotina, lúdicas e
didáticas.
As atividades de rotina ocupam 29,56% do tempo, as lúdicas 24,13%, as
didáticas 21,09%. Música 01,52% e de História 01,96%. Os demais percentuais são
ocupados com intervalos entre uma atividade e outra.
O que os dados nos mostram é um percentual bastante superior aos demais
dedicados às atividades de rotina, representada pelas atividades de higiene, cuidados e
alimentação. Isso sugere que estas são as atividades-eixo, ou seja, atividades que pela
relação de sua natureza (por exemplo, didáticas ou lúdicas) e o tempo dedicado a elas
indica que tais atividades são as que produzem, segundo a interpretação das professoras,
os principais recursos ou conteúdos formais ou informais para as aprendizagens das
crianças. Entretanto não podemos afirmar que houvesse algum indicio de planejamento
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dessas atividades, elas aconteciam de maneira informal e por ações autônomas das
crianças.
O segundo maior percentual de tempo é dedicado a realização de atividades
lúdicas porque se construiu um consenso influenciado por teses psicológicas e
psicopedagógicas de que o brincar constitui uma atividade central para o processo de
desenvolvimento das crianças, sendo esta perspectiva defendida por proposições e
princípios teóricos distintos, potencialmente capazes de alterar significativamente a
forma de conceber, pelos professores, o papel das brincadeiras livres ou planejadas.
Leontiev (2001) nos apresenta a defesa de uma perspectiva cultural dos
princípios psicológicos da brincadeira, considerando a grande variação entre as
atividades a serem desenvolvidas pelas crianças e os seus processos de satisfação vital.
Um desses exemplos é a brincadeira que possui motivos em si mesma, sendo que o que
motiva a ação da criança é o conteúdo real da atividade dada. A brincadeira é para este
autor uma atividade não instintiva, precisamente humana, objetiva que, “[...] por
constituir a base da percepção que a criança tem do mundo dos objetos humanos,
determina o conteúdo de suas brincadeiras” (Leontiev, 2001, p. 120).
Na idade pré-escolar das crianças, as atividades que satisfazem os motivos nãolúdicos se secundarizam em relação ao desenvolvimento das brincadeiras, tornando-se
esta a atividade principal 1 . Essa mudança ocorre porque o mundo inclui os objetos que
constituem o ambiente próximo da criança, dos objetos com os quais opera, mas
também os objetos com os quais os adultos operam e que as crianças não são capazes
plenamente de operá-los.
Por esta compreensão, explicita-se a vertente do papel socializador que as
atividades lúdicas podem desempenhar no desenvolvimento geral das crianças, ao
mesmo tempo em que se evidencia seu componente social e cultural, ao traduzir o
esforço que a criança faz para como um adulto realizar as atividades que possuem um
sentido simbólico e cultural para todos os membros da cultura. Isso sublinha um papel
fundamental que os adultos em geral e os professores de modo específico podem
desempenhar nos processos pedagógicos cujo eixo central é a atividade lúdica, pois os
professores possuem o domínio de um corpo de conhecimentos coletivamente aceitos,
1
¹Os teóricos sócio-históricos a definem como, “[...] aquela que em conexão com a qual
ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro da
qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho da transição da criança para
um novo e mais elevado nível de desenvolvimento” (Leontiev, 2001, p. 122).
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tornando-se por essa razão, indivíduos potencialmente capazes de alterar, pelas
atividades lúdicas escolares, o curso das aprendizagens.
Esta perspectiva não coincide com as observações das atividades lúdicas
observadas e reveladas pelos dados. Em tempo integral, as crianças brincam com
objetos dispostos informalmente nos ambientes, não há nenhuma intervenção ou
planejamento pedagógico dessas atividades que acontecem cotidianamente nos mesmos
espaços, com os mesmos objetos e sem que se perceba nenhuma articulação destas com
as demais atividades que compõem o dia-a-dia das crianças. Ora, se por um lado não
estamos defendendo que as atividades lúdicas de jogos e brincadeiras realizadas com as
crianças sejam dirigidas integralmente pelas professoras, por outro não acreditamos que
sem a intervenção do adulto que organiza e fornece dados sobre a realidade social para
as crianças, as brincadeiras cheguem a desempenhar seu papel socializador, visto que tal
papel exige a interação entre o universo significativo das crianças e o dos adultos que
possuem uma compreensão mais ampla da realidade social e cultural.
Se as atividades lúdicas ocupam 24,13% do tempo total de atividades que se
realiza com as crianças, isso sugere que haja uma importância formativa atribuída às
mesmas mas que não se concretiza na prática na medida em que elas se caracterizam
por atividades que acontecem livremente, sem as intervenções das professoras e isso
coloca em cheque sua legitimidade e valor formativo quando desenvolvida nas creches
e pré-escolas segundo esta perspectiva informal.
O terceiro maior percentual é dedicado às atividades didáticas. O conjunto das
atividades diárias das crianças de 04 anos indica uma transição, uma passagem,
guardando mais semelhanças com a rotina de crianças menores, apartada do propósito
de sistematizar conhecimentos formais com elas. Os percentuais verificados nas
atividades lúdicas e didáticas indicam esta transição, principalmente quando se constata
que o tempo dedicado às atividades didáticas nas salas de crianças de cinco anos é
proporcionalmente superior ao tempo dedicado a qualquer outra atividade. Tal mudança
na rotina justifica-se pela aproximação dessas crianças que possuem entre 04 e 05 anos
de idade do período “formal” de alfabetização. Isso nos sugere que há um entendimento
entre as professoras de que o ingresso da criança na escola e os processos educativos
escolares ali iniciados devem alterar significativamente seu desenvolvimento psíquico.
De acordo com Davidov (1988), para a escola soviética (Vigotski, Leontiev,
Luria, Blonski, etc) a tese fundamental é que o desenvolvimento psíquico da criança
desde o começo está mediatizado por sua educação/ensino, realizado pelos adultos que
9
organizam a vida da criança, criando condições determinadas para seu desenvolvimento
e lhe transmitindo a experiência social acumulada pela humanidade no período
precedente de sua história. Os adultos são os portadores desta experiência social.
Segundo Elkonin (1969), através dos adultos a criança assimila um amplo círculo de
conhecimentos adquiridos pelas gerações precedentes, aprende as habilidades
elaboradas socialmente e as formas de conduta que se têm criado na sociedade. À
medida que assimilam a experiência social se formam nas crianças distintas
capacidades, entre elas a capacidade de abstrair conceitos abstratos formalizados
culturalmente.
Baseados em toda essa compreensão, o que mais nos chama a atenção é que em
100% do tempo observado essas atividades de rotina, lúdicas e didáticas são
realizadas pelas próprias crianças, individualmente e as modalidades de gestão
predominantes das professoras são respectivamente: Direta (DRT) ou Disciplinar (DIC)
quando a professora só intervém no sentido de manter a organização e a disciplina
durante a atividade. Ora o que isso nos indica? Se essas são as atividades que traduzem
os principais momentos de aprendizagem das crianças, o que se realiza é um simples
reforço de conceitos, habilidades ou conhecimentos já dominados pelas crianças, pois se
não fosse assim a intervenção pedagógica intencional e efetiva das professoras se faria
necessária.
Se a criança consegue realizar sozinha a atividade e se as professoras intervêm
somente para disciplinar as crianças, isso significa que os conhecimentos presente
nestas atividades já estão efetivados para a criança. A compreensão do conceito de
desenvolvimento segundo a interpretação Psicogenética nos permite evidenciar que se
não há desequilíbrio causado por alguma perturbação vindo do objeto exterior
(conhecimento em construção), podemos concluir que sua compreensão já se realizou
para as crianças.
Esta constatação possui uma implicação na compreensão que têm as professoras
da relação entre o desenvolvimento e aprendizagem. Tal compreensão apóia-se na
perspectiva Psicogenética que proclama que o curso do desenvolvimento precede o da
aprendizagem, ou seja, a aprendizagem segue sempre o desenvolvimento, devendo ser
considerado em vão o ensino de qualquer conceito ou habilidade que exijam níveis de
estruturas mentais ainda não consolidados pelo desenvolvimento.
Para compreender um pouco mais este postulado, nos parece necessário
esclarecer que o funcionalismo, base do pensamento Piagetiano interpreta as
10
experiências conscientes dos indivíduos de forma distinta da psicologia clássica que via
nesta relação um sujeito dos erros ou das ilusões do conhecimento apoiada na fisiologia
sensível. Para o funcionalismo esta relação deve ser interpretada como processos da
vida, adaptação e desadaptação. Com isso a relação da consciência com o mundo passa
a ser de adaptação e não mais de adequação. Para esta corrente a função deve ser
entendida como processo vital em seu sentido adaptativo (Ferreira & Gutman, 2007).
O conceito de função como adaptação implica em pensar a consciência humana
não só como adaptada - produto da evolução filogenética - como adaptante (fator de
evolução individual e selecionadora dos impasses na vida dos indivíduos), ou seja, a
consciência adapta o organismo ao meio ao selecionar, em função de um fim por ela
fixado, uma dentre várias possibilidades de ação oferecidas pelo sistema nervoso. Neste
caso como se pode perceber a adaptação não se refere a um processo somente
filogenético, mas antes de tudo ontogenético (ligado á adaptação individual). Estar
adaptado é estar ajustado às demandas do meio social.
Apoiado nesta perspectiva, Piaget (1976) define o desenvolvimento como uma
sucessão de estágios que por sua vez caracterizam-se pela aparição de estruturas
originais cuja construção o distingue do estágio anterior. As características de tais
estágios, sejam momentâneas ou secundárias são atribuídas em função da necessidade
de melhor organização efetuando-se assim a evolução mental no sentido de
equilibrações sempre mais completas. Essas necessidades, segundo a teoria
Psicogenética, correspondem sempre a manifestação de um desequilíbrio, ou seja,
quando algo fora de nós ou em nós se modificou, exige-se um reajustamento da conduta
em função da mudança ocorrida. As ações, isto é, todo movimento, pensamento ou
sentimento correspondem a uma necessidade que possui em qualquer tempo os
seguintes objetivos: incorporar as coisas e pessoas à atividade própria do sujeito ou
mesmo que, assinalar o mundo exterior às estruturas já construídas e reajustar estas
últimas em função das transformações ocorridas, ou seja, acomodá-las aos objetos
externos (Piaget, 1976).
O que esta breve descrição da interpretação funcionalista do desenvolvimento
nos mostra é sem dúvida um processo auto-regulado de mecanismos funcionais que
ocorrem segundo uma dinâmica que considera o encontro com o objeto exterior
(conhecimento) como aquilo que impõe a necessidade/ação do organismo que funciona
segundo as características típicas de cada estágio e que têm seus limites de
funcionamento definidos segundo essas mesmas características. Em outras palavras, o
11
encontro com o conhecimento e sua efetivação depende exclusivamente de um
funcionamento que é regido por leis gerais de regulação internas.
Echeverri (1994) ao discutir conceitos clássicos da epistemologia construtivista
como: continuidade, verificação, revisão reflexiva e reorganização, afirma que eles
foram fundamentais para nos dizer que existe um saber cotidiano apreendido pelos
sujeitos em seus processos de socialização, desconhecido da escola tradicional até
então. Porém para o referido autor, torna-se necessária uma revisão daqueles conceitos,
já que credita a eles, bem como a outros princípios deste marco teórico construtivista, o
fato de que as crianças, de um modo geral, verificam somente uma descrição dos
fenômenos (conhecimentos), sem poder explicá-los.
De forma particular, os conceitos de continuidade e verificação condenam a
criança a recriar permanentemente o seu saber cotidiano e isso constitui o principal
obstáculo epistemológico para a aquisição de uma cultura superior. Tal tendência é
verificada pelo cruzamento das variáveis que realizamos logo acima, permitindo que
reafirmemos a predominância de um modelo de organização educativa em que
prevalecem as ações das crianças, consequentemente, uma tendência em promover
acentuadamente atividades cujas exigências materiais ou simbólicas já são de domínio
das mesmas, ou seja, as crianças dispõem de uma estrutura psicológica que lhe garante a
execução de tais atividades sem a mediação de um adulto, neste caso, a professora. Isto
nos sugere uma adaptação das crianças às exigências impostas para a realização dessas
atividades.
Contrário a esta perspectiva na interpretação histórico-cultural de Vigotski
(2006, p. 109) compreende-se que a aprendizagem da criança tem início anteriormente à
aprendizagem escolar, ou seja, “[...] toda a aprendizagem da criança na escola tem uma
pré-história”. Isso sugere que, primeiramente, devemos compreender a relação entre
aprendizagem e desenvolvimento em geral e, posteriormente, as características
específicas desta inter-relação na idade escolar. “É uma comprovação empírica,
freqüentemente verificada e indiscutível, que a aprendizagem deve ser coerente com o
nível de desenvolvimento da criança” (Vigotskii, 2006, p.111).
O autor afirma que para se definir a efetiva relação entre desenvolvimento e
aprendizagem, é necessário determinar, no mínimo, dois níveis de desenvolvimento
infantil: o desenvolvimento efetivo e o desenvolvimento potencial da criança.
Entendemos o primeiro como “[...] o nível de desenvolvimento das funções
psicointelectuais da criança que se conseguiu como resultado de um específico processo
12
de desenvolvimento já realizado” (Vigotski, 2006, p. 111). Em relação ao segundo
temos que “[...] a diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos
adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade
independente define a área de desenvolvimento potencial da criança” (Vigotski, 2006,
p.112). Vigotski (2006), também, apresenta que a zona de desenvolvimento potencial da
criança 2 permite-nos analisar o processo de desenvolvimento e maturação já
produzidos, até o momento, bem como os processos que ainda estão ocorrendo e se
desenvolvendo, além de determinar os futuros passos e a dinâmica do desenvolvimento
infantil.
Vigotski (2006) considera que a aprendizagem não é em si mesma,
desenvolvimento, porém, uma correta organização da aprendizagem da criança
conduzirá ao desenvolvimento mental, ativará todo um grupo de processos de
desenvolvimento, sendo que esta ativação não poderia produzir-se sem a aprendizagem.
Por isso, “[...] a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal
para que se desenvolvam na criança essas características humanas não-naturais, mas
formadas historicamente” (Vigotski, 2006, p. 115).
Seguindo esta mesma orientação, Elkonin (1969) afirma que considerar as
particularidades da idade das crianças não deve consistir em que o pedagogo se oriente
somente pelo nível de desenvolvimento já alcançado e típico para esta idade. Isto
significaria deter-se artificialmente ao desenvolvimento da criança. A função do
pedagogo é fazer adiantar o desenvolvimento psíquico das crianças, formar e facilitar o
desenvolvimento do novo. O pedagogo não pode partir somente do nível de
desenvolvimento
existente,
este
deve
orientar-se
para
as
perspectivas
do
desenvolvimento, sobretudo para as mais próximas. Somente ao conhecer bem o que é
próprio das crianças de uma idade determinada e o que pode a estas ser acessível (em
condições determinadas, no grau seguinte do desenvolvimento, tanto de suas
perspectivas próximas como do futuro próximo da criança), o pedagogo pode dirigir
real e verdadeiramente a evolução da criança.
Ainda neste âmbito, Davidov (1988) afirma que os problemas de ensino e
educação constituem questões importantes para a Psicologia contemporânea, em
especial a Psicologia evolutiva e pedagógica. Para elaborar corretamente o ensino, não
basta segundo Bozhovich (1976) conhecer quais são as particularidades da atenção, da
2
Defini-se zona de desenvolvimento potencial da criança, segundo Vigotskii (2006,
p.112) como “[...] o que uma criança é capaz de fazer com o auxílio dos adultos”.
13
memória ou do pensamento da criança. A pedagogia deve dispor de conhecimentos
necessários acerca do que representa, por sua estrutura psicológica, a atividade docente
do escolar; como por quais leis se realiza o processo de assimilação dos conhecimentos.
Para organizar a educação corretamente, é necessário conhecer as particularidades da
personalidade da criança segundo sua idade; saber o que aspiram, quais são suas
vivências, conhecer as peculiaridades de sua esfera moral e as leis de seu
desenvolvimento.
As demais atividades, de história e música ocupam lugar periférico no
cotidiano das atividades desenvolvidas com as crianças. São atividades sub-valorizadas
no processo de formação cultural das crianças não necessariamente porque a elas é
dedicado pouco tempo, mas fundamentalmente porque elas traduzam a marca do
espontaneísmo, do informal e do circunstancial. Ou seja, mais uma vez percebemos a
ausência de um propósito educativo que se por um lado e a princípio, reconhece os
conteúdos dessas atividades (história e música) como necessários à formação das
crianças, por outro se isenta de promover as sistematizações próprias dos contextos
escolares que se caracterizam primordialmente pelas estratégias de ensino e por
metodologias eficazes do ponto de vista das aprendizagens das crianças.
Afirmar isso é reconhecer que se também nas atividades eixo já analisadas
anteriormente temos a ausência desses componentes pedagógicos, estamos diante de um
quadro desolador obrigando-nos a concluir que há uma ausência ainda maior e mais
“grave” que é o próprio conhecimento sistematizado. Ora, se em todas as atividades
desenvolvidas com as crianças há de um modo geral a ausência de gestão pedagógica
das professoras, aliada às experiências informais das crianças em ambientes que se quer
podem ser considerados apropriado do ponto de vista do desenvolvimento, devemos
concluir que o direito das novas gerações de ter acesso ao patrimônio cultural está sendo
claramente negado, aplacando de forma mais aguda as crianças menores de 06 anos.
Toda essa discussão subsidia-nos para afirmar que as práticas analisadas aqui
indicam uma função educativa contrária aquela defendida pelos autores da Escola de
Vigostski e também inadequada do nosso ponto de vista pois entendemos que a
finalidade de creches e pré-escolas deve ser a garantia do acesso aos conhecimentos
formais e culturalmente produzidos pelas crianças, como condição indispensável para
estas produzirem-se como sujeito social e cultural.
Neste argumento explicita-se a perspectiva que tentamos defender ao longo
deste trabalho, ou seja, as experiências de conhecimento das crianças são sociais,
14
esbarram-se nas circunstâncias dos contextos onde essas experiências se produzem, mas
precisam de uma estrutura lógica, conceitual e pedagógica que lhes permita fazer esses
conhecimentos empíricos originários das experiências comuns avançarem para um
estado de formalização dada pelos princípios lógicos próprios dos conhecimentos
científicos.
Não conseguimos visualizar outra possibilidade de organização para as
experiências educativas que se produzem nas pré-escolas, a não ser através do princípio
que coloca em xeque a possibilidade de que a criança alcance os conhecimentos
culturalmente legitimados pelo simples encadeamento de conteúdos informais
originários de suas experiências espontâneas e que se realizam sem intervenções
pedagógicas efetivas. Ensinar e aprender permanece no centro de uma dinâmica que por
sua natureza educativa e por ter como finalidade a formação das novas gerações,
constituem as ações e práticas sob as quais devemos produzir conhecimentos
cotidianamente sob pena de ao descuidarmos do ensino, condenar as crianças a uma
dinâmica de circularidade do pensamento própria dos conhecimentos espontâneos.
Referências
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