NA PONTA DO TACO: AS PERSONAGENS-EQUILIBRISTAS DE JOÃO ANTÔNIO Por Daniel Martins Cruz Junqueira Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literaturas Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Professor Dr. Alcmeno Bastos De acordo: Rio de Janeiro, Outubro de 2013 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa NA PONTA DO TACO: AS PERSONAGENS-EQUILIBRISTAS DE JOÃO ANTÔNIO por Daniel Martins Cruz Junqueira Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literaturas Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Professor Dr. Alcmeno Bastos Rio de Janeiro, Outubro de 2013 2 NA PONTA DO TACO: AS PERSONAGENS-EQUILIBRISTAS DE JOÃO ANTÔNIO por Daniel Martins Cruz Junqueira Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Examinada por: ___________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor. Alcmeno Bastos – UFRJ ___________________________________________________ Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto – UFRJ ___________________________________________________ Profª. Doutora Fátima Cristina Dias da Rocha – UERJ ___________________________________________________ Prof. Doutor Ronaldes de Melo e Souza – UFRJ, suplente ___________________________________________________ Prof. Doutor José Luís Jobim – UERJ, suplente Rio de Janeiro, Outubro de 2013 3 A635ju Junqueira, Daniel Martins Cruz Na ponta do taco: as personagens-equilibristas de João Antônio./ Daniel Martins Cruz Junqueira. — Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. 120 f. ; 30 cm Orientador: Alcmeno Bastos. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2013. Bibliografia: f. 117-120. 1. Antônio, João, 1937-1996. – Crítica e interpretação. 2. Antônio, João, 1937-1996. - Personagens. 3. Escritores brasileiros – Séc. XIX-XX- Crítica e interpretação. 4. Contos – História e crítica 5. Malandragem na literatura 6. Malandros e vadios na literatura 7. Infância na literatura. 8. Literatura e sociedade - Brasil. I. Bastos, Alcmeno, 1943- . II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título. CDD B869.35 4 Aos meus avós, Júlio Ferreira Cruz, Otávio Junqueira, Dorvalina Martins Cruz, Mercedes Pereira Junqueira 5 “Corpo-a-corpo com a vida. Um bandido falando de bandidos.” (João Antônio) 6 “A Vida é a Vida, meu filho.” (frase do Amigo Pelé, O chico dunga Escurinho, que dá banda em muito loca) 7 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, por me dar disposição e coragem nos momentos mais difíceis dessa caminhada. Aos meus pais, Pedro Paulo e Marise, pelo apoio em tudo, pilares fundamentais na minha construção; À minha irmã, Lívia, sempre uma esperança; Ao meu orientador, Alcmeno Bastos, sempre atento e paciente; A Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela grande oportunidade de crescimento; A todos os meus amigos, sempre me fazendo sorrir; Ao amigo Marcos Pasche, que me presenteou com a obra Guardador; A toda essa fauna que eu encontro pelos bares do Rio de Janeiro, principalmente, no subúrbio de Bento Ribeiro, onde há sempre uma inspiração... 8 RESUMO O objetivo principal deste trabalho é fazer uma apresentação tipológica das personagens de João Antônio, considerando sua poética de corpo-a-corpo com a vida. Nós analisamos, com mais profundidade, seus dois primeiras livros Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão-de-chácara e constatamos que o autor conseguiu, com maestria, representar o povo com sua ginga, sua linguagem e uma sintaxe ágil e sedutora. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira – João Antônio – Personagens Ficcionais – O malandro. 9 ABSTRACT The main objective of this study is doing a typological presentation of João Antônio’s characters, take into account his poetic of corpo-a-corpo com a vida. We analyse, carefully, his two beginners books Malagueta, Perus e Bacanaço and Leão-dechácara and had evidenced that author gets, very well, to represent people with his “ginga”, language and an agile and seductive syntax. KEY-WORDS: Brazilian Literature – João Antônio – Fictional Character – Trickster 10 Sumário Introdução.....................................................................................................................12 Capítulo 1: A poética de João Antônio.........................................................................17 1.1- O Gênero Conto.....................................................................................................17 1.2- O caso João Antônio..............................................................................................22 1.3- O narrador de João Antônio...................................................................................27 Capítulo 2: Os caminhos da malandragem...................................................................42 2.1- O cortiço................................................................................................................43 2.2- Clara dos Anjos.....................................................................................................45 2.3- Memórias de um sargento de milícias...................................................................54 Capítulo 3: As personagens-equilibristas de João Antônio..........................................61 3.1- Primeiros passos: a infância na malandragem.......................................................67 3.2- A malandragem.....................................................................................................77 3.2.1- A relação com a polícia......................................................................................84 3.3.2- A relação com a mulher......................................................................................89 Capítulo 4: Nos (des) caminhos da malandragem.......................................................101 Considerações finais....................................................................................................114 Referências bibliográficas...........................................................................................117 11 INTRODUÇÃO O ano letivo de 2006 se iniciava e, no primeiro dia de aula daquele semestre, um caro amigo, Marcos Pasche se aproximou e me presenteou com alguns livros; um, ele me estendeu, e me disse, peremptoriamente, – é a tua cara. O livro em questão era Guardador. Li e gostei muito, mas, naquele momento, não tinha intenções de estudar mais profundamente o autor. Anos mais tarde, com o firme propósito de ingressar no mestrado, buscava um autor que me agradasse e que me estimulasse, e um dia, em um sebo no bairro de Campo Grande, encontrei um exemplar de Leão-de-chácara. Comecei a leitura, ainda no trem, a linguagem, a sintaxe e a dicção do autor me deixaram maravilhado; como este escritor conseguia levar para as páginas do livro personagens tão cheias de vida, personagens que estavam transitando, naquele mesmo instante, na minha frente, dividindo comigo a mesma condução. Personagens com quem convivi e convivo nas ruas e nos botecos do bairro, onde resido, Bento Ribeiro e de todo o Rio de Janeiro. Me apaixonei. Esse sentimento íntimo norteou toda a nossa pesquisa e foi fundamental para a escolha do tema e do corpus da dissertação. Um estudo tipológico das personagens nascia, concomitantemente, com a necessidade de responder à pergunta de como João Antônio elaborava ficcionalmente seus contos de modo que a representação literária do seu “corpo-a-corpo com vida” fosse, efetivamente, instaurada. Malandros, prostitutas, crianças desamparadas emocionalmente e “merdunchos” – expressão criada pelo autor para representar toda uma gama de desvalidos e de excluídos sociais – ou seja, personagens que povoam os mais sórdidos ambientes, na incessante busca por dinheiro, por comida e por felicidade, perambulam por toda a sua prosa, bafejados por uma intensa vontade de viver. Essas figuras são representadas de maneira crua, sem pieguices, porém, com um olhar apaixonado pelo ser humano e pelas coisas que escreve, condição que leva o autor a alcançar momentos de puro lirismo. Um lirismo urbano, com certeza, como, por exemplo, no último período do conto “Joãozinho da Babilônia”. “Primeiros pardais passam entre os oitis da Mem de Sá. Vai ser dia de sol.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 73) Essa diversa geografia humana espalha-se por todas as obras na extensa bibliografia do autor. Sua obra, na visão de seus críticos e exegetas, de um modo geral, 12 divide-se em livros onde o elemento ficcional é preponderante e outros onde há um texto híbrido entre jornalismo e literatura. Seus dois primeiros livros, Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) e Leão-de-chácara (1975) possuem uma tendência mais ficcional do que sua produção a partir de Malhação do Judas Carioca (1975), na qual o autor radicaliza na forma de suas narrativas na representação daquela massa enxovalhada. Essa mudança em sua forma de produção advém da sua experiência como jornalista e da necessidade de o autor representar o cotidiano das camadas espúrias da sociedade sem retoques. “Precisamos de uma literatura? Precisamos. Mas de uma arte literária, como de um teatro, de um cinema, de um jornalismo que firam, penetrem, compreendam, exponham, descarnem as nossas áreas de vida.” (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 147) Não focalizaremos esses textos chamados parajornalísticos com a intenção de analisá-los mais detidamente, salvo no subcapítulo dedicado ao gênero conto, pois, acreditamos que para falar da sua poética de um modo geral, seria necessário abordar a hibridização entre literatura e jornalismo proposta pelo autor. Esses textos nos servirão, também, como um valioso material de apoio, juntamente com seus depoimentos e suas cartas, nos quais a escrita pulsante do autor emerge de maneira, também, vigorosa. Nosso trabalho, todavia, visa a analisar, principalmente, nos seus dois primeiros livros a maneira como o autor transpôs para suas obras mais ficcionais os seres humanos com quem o autor conviveu, conversou ou apenas esbarrou por entre becos e vielas, bares e prostíbulos. O título deste trabalho, pensamos, é bastante revelador do seu conteúdo. Sua exposição (do título) de maneira sucinta aborda toda a temática da condição precária em que vivem suas personagens. Elas são, efetivamente, equilibristas tal qual o componente dos circos que arranca suspiros dos espectadores que esperam, angustiosamente, para ver o que irá ocorrer com o artista durante seu percurso, se este conseguirá chegar ao fim são e salvo ou seu trajeto sofrerá alguma interrupção por obra do acaso ou por imperícia da sua parte. Assim são as personagens de João Antônio, a cada momento, imprevistos surgem diante delas, e nós, pobres leitores ficamos na expectativa da sua solução. O que saber o que irá acontecer com o Meninão do caixote, quando este, ainda, sem o apelido que imortalizou nas mesas de sinuca, entra no bar Paulistinha para se abrigar da chuva, ou quando Malagueta, Perus e Bacanaço, conluiados, desafiam o inspetor de polícia 13 aposentado Lima para um jogo e este está prestes a descobrir a trama armada pelos três malandros para ludibriá-lo e levar todo o seu dinheiro e sua fama de bom jogador. Nosso trabalho divide-se em quatro capítulos. O primeiro desatina-se ao estudo da poética de João Antônio, sua concepção de literatura e a maneira encontrada pelo autor para representar suas histórias. Esse capítulo tende a ser mais objetivo, pois, nele estudamos o gênero conto de um modo geral, a partir de assertivas teóricas de escritores tais como Edgar Allan Poe, Julio Cortázar e Mário de Andrade acerca do aspecto condensado do gênero. Neste capítulo procuraremos investigar como João Antônio concebe o gênero a partir da sua poética que preconiza que a forma seja exigida pelo conteúdo e não o contrário, pois, desta maneira, pode-se incorrer no erro de desvitalizar o texto literário. Neste capítulo, ainda, trataremos do estatuto do narrador joãoantoniano e as formas que este instaurou para dar vida aos seus personagens. A singularidade da sua sintaxe, a utilização de técnicas narrativas como o monólogo narrado e do vocabulário colhido nas ruas pelo autor, é conferida no ritmo e sonoridade da sua prosa cuja impressão de realidade salta às vistas do leitor. Cumpre-nos fazermos uma ressalva, pois, durante a elaboração da dissertação pensamos ser importante dedicarmos um capítulo, em especial, a representação do malandro na literatura brasileira; via o clássico ensaio de Antônio Candido, “Dialética da malandragem”, estudamos a obra Memórias de um sargento de milícias. Impelidos e animados com as descobertas feitas, desdobramos o capítulo na análise de mais duas obras com temática de natureza popular O cortiço, de Aluísio Azevedo e Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Ao longo da pesquisa, encontramos a tese O malandro brasileiro do fascínio ao rancor, de Maria Eneida Matos da Rosa, que, no capítulo “Nas trilhas do malandro”, discorre sobre a “genealogia” do malandro, e para tanto aborda as obras O cortiço, Memórias de um sargento de milícias e Macunaíma. Porém, não abortamos nossa ideia, tendo em vista entendermos que o mundo criado por João Antônio e todas as personagens que desfilam por ele são e serão sempre encantadores e sedutores, portanto, terão sempre as atenções voltadas para seus modos peculiares de concepção de vida, assim como todas as personagens que encarnam o modo malandro de viver. Dessa forma concluímos que se fazia necessária a manutenção do capítulo, pois, o tratamento dado ao tema é distinto e, ainda assim, para nós havia a 14 necessidade de vinculação de João Antônio ao cânone literário brasileiro, no que diz respeito à representação das camadas populares. Não hesitamos em incluir o estudo dessas obras, porque temos encontrado um grande número de dissertações e teses sobre essa vasta galeria de malandros, desde Leonardo Pataca até a representação da malandragem ou da bandidagem em produções literárias contemporâneas. Em nossa bibliografia incluímos não só a tese de Maria Eneida Matos da Rosa, pela clara referência ao trabalho, mas também outras como, por exemplo, a dissertação de Luciana Cristina Corrêa, Merdunchos, malandros e bandidos: estudo das personagens de João Antônio. No segundo capítulo, portanto, abordaremos três romances que possuem nas suas personagens a representação das camadas mais pobres ou, de relativa mediania, no que diz respeito aos costumes da população brasileira. O cortiço, de Aluísio Azevedo; Clara dos Anjos, de Lima Barreto e Memórias de um sargento de milícias, Manuel Antônio de Almeida. Os três romances foram eleitos por nós, pois, há, efetivamente, em suas páginas, a representação de um jeito malandro de conceber a vida. No primeiro, temos, a partir da estética naturalista, a representação de um aglomerado humano, no qual, toda uma fauna de desvalidos que se relacionam promiscuamente. O segundo e o terceiro foram escolhidos, ou melhor, se escolheram pelas óbvias razões de que as Memórias inauguram, na literatura brasileira, a representação de um jeito brasileiro de ser e de pensar, e por ter um estudo apuradíssimo sobre as origens do gênero, do crítico Antonio Candido, “Dialética da malandragem”. Por fim, o terceiro e último foi elencado por passear em suas páginas uma personagem malandra que flerta com a marginalidade e por ser uma obra de Lima Barreto a quem João Antônio consagra suas obras. Não incluímos outras obras que, efetivamente, também, tratam das camadas populares do povo brasileiro, por entendermos que bastávamos abordar as obras que trataram do povo e do malandro, pioneiramente. Nossa dissertação não aborda a figura do malandro na literatura brasileira de forma geral. O corpus limita-se, pois, às obras de João Antônio, como afirmo no título deste trabalho, mais precisamente, os contos: “Malagueta, Perus e Bacanaço”, “Meninão do caixote”, “Leão-de-chácara”, “Três cunhadas – natal de 1960”, “Joãozinho da Babilônia” e “Paulinho Perna Torta”. O terceiro capítulo é dedicado ao estudo da tipologia das personagens joãoantonianas e se subdivide em quatro partes, a saber: A infância, o malandro e a 15 relação deste com a polícia e com a mulher. Dispomos o terceiro capítulo dessa forma, pois, pensamos que perfazem as duas das três fases da vida na malandragem. O início, ainda criança, marcado pelo desamparo familiar, a segunda e emblemática fase, a vida da personagem, efetivamente, na malandragem, seus truques e meneios para garantir a sobrevivência. Nesse capítulo abordaremos como são as relações de umas com as outras, as possíveis influências de umas sobre as outras. As possíveis reversibilidades, de malandro a otário e vice-versa. O quarto capítulo compreende a transformação do malandro feito em bandido. Estudaremos os princípios que regem a ética da personagem Paulinho perna torta e o que o levou para o mundo do crime. Dessa maneira abordaremos as mudanças de fase pelas quais o malandro passou, de menino ingênuo a malandro sagaz e de malandro a bandido inescrupuloso. Teremos o cuidado de perceber e entender a ética que emerge e permeia suas relações, evitando a todo custo juízos morais e de valor, de nossa parte, que possam macular nosso trabalho. A despeito de sabermos da impossibilidade deste trabalho em ser algo definitivo na fortuna crítica do autor, pois esta é riquíssima, esperamos que seja mais uma contribuição para os estudos das obras de João Antônio, principalmente, e para o estudo da literatura de um modo geral. 16 CAPÍTULO 1 A Poética de João Antônio 1.1- O Gênero Conto Em nossa dissertação pensamos ser de fundamental importância um capítulo dedicado ao gênero conto, tendo em vista pensarmos ser essencial a análise deste visando à confluência harmônica entre forma e conteúdo. Partimos do princípio de que o gênero, largamente utilizado por João Antônio, ganhou feições bem peculiares a partir da relação com o tema central da obra do escritor: a malandragem. Para uma melhor definição, consideramos a abordagem teórica de quatro obras, a saber: A Nova Literatura III – O Conto, de Assis Brasil; O Conto brasileiro contemporâneo, de Alfredo Bosi; Conto brasileiro contemporâneo, de Antônio Holhfedt e Teoria do conto, de Nádia Battella Gotlib que traçaram um pequeno panorama das origens do gênero até sua consolidação no século XIX e apontaram seus reflexos na produção brasileira do século XX. Chegou-se, portanto, à conclusão de que o conto possui como ancestral os relatos orais que tinham por objetivo a transmissão dos mitos e dos ritos de uma determinada tribo. Temos, dessa maneira, a emergência do narrador, que, na passagem da tradição oral para a cultura escrita, teve a exímia capacidade de adaptar a transmissão dos fatos na construção dos seus relatos, sejam reais ou fictícios, com o objetivo final de conseguir maior expressividade estética. A origem popular do conto reside na troca de experiências nas reuniões em “torno das fogueiras, junto aos trabalhos coletivos rurais dos povos primitivos, essencialmente à noite.” (HOHLFEDT, p.14) Dessa maneira pode-se afirmar que a função primeira das narrativas orais era a transmissão de conhecimento significativo de um povo para a formação da identidade social do grupo. A despeito de a arqueologia feita sobre o gênero esclarecer muitos aspectos sobre suas origens, não torna a definição do gênero em algo menos espinhoso. Mário de Andrade o definiu desta maneira: “conto é tudo aquilo que o autor assim o denomine” (apud HOHLFEDT, p.15). Para o intelectual modernista, a definição saiu em um tom de 17 brincadeira, de ironia muito característica de sua personalidade, como notamos em toda a sua obra; o que é muito sintomático, pois em sua poética podemos perceber a ruptura com os gêneros tradicionais, por isso talvez Mário de Andrade nos tenha ofertado essa pérola, que para muitos é mais uma maneira de confundir do que definir em termos formais o gênero. Podemos atribuir esta definição ao pensamento criativo de Mário de Andrade, reflexo de sua personalidade, que deixa a cargo do autor a nomenclatura e exorta a inteligência deste para usar da sua liberdade criadora para pensar a forma, enquanto pesquisa estética e não somente como uma fôrma para enquadrar um conteúdo que melhor apraz o contista. Sua definição pode, à primeira vista, apontar para um total desregramento da forma, algo irracional. Se prestarmos atenção à obra do autor, percebemos que sua técnica e o seu refinamento estético não permitem, contudo, que tenhamos esta compreensão de sua proposta para uma definição do gênero conto. Gilberto Mendonça Teles, ao analisar o “Prefácio Interessantíssimo” atribui o rigor técnico e sua “honestidade intelectual” ao contato que Mário de Andrade teve com as vanguardas europeias e o conhecimento das teorias da revista L’esprit nouveau. E afirma ainda encontrar certa defasagem entre a teoria e a prática em sua Pauliceia desvairada, “apesar de estarem ambos sob o signo da ambiguidade destruição/construção, ambiguidade que sempre caracterizou a obra de Mário de Andrade, dividido entre o passado e a consciência do presente.” (TELES, 1977, p. 238) É nesta chave, a da ambiguidade destruição/construção, que devemos ler a definição do poeta para o gênero conto. Tal ambiguidade é inerente ao espírito moderno, algo não só iconoclasta, mas também renovador, de tal forma que o poeta, na sua ânsia por novos ideais, não fuja ao trabalho de ressignificar o passado, ou melhor, é fundamental que resgate o passado para se entender o presente. Uma caracterização do gênero conto se dá através da comparação com outros gêneros narrativos: a novela e o romance; no que diz respeito à medida de extensão. O romance é considerado o gênero mais extenso, o conto, o mais curto e a novela, o gênero intermediário. Na obra Teoria do conto de Nádia Battella Gotlib, a autora faz uma análise sobre a teoria da unidade de efeito proposta por Edgar Allan Poe no prefácio a obra de Nathanael Hawthorne, no texto Review of twice-told tales, na qual o escritor norte-americano preconiza que “em quase todas as classes de composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância” (POE apud GOTLIB, 18 p. 32). Para o autor, o conto deve ser lido em uma ou duas horas de modo atento para que o leitor atinja um estado de “exaltação da alma”. Para confirmar sua tese, Poe compara a brevidade da leitura de um conto à leitura de um romance em toda sua extensão, porquanto este não proporciona uma leitura de um só fôlego. A unidade de efeito preconizada pelo contista tende a se diluir neste gênero devido às várias interrupções feitas ao logo da leitura. Em contrapartida: No conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção. (POE apud GOTLIB, p34) Para tanto, o autor, como afirma Baudelaire, já no início de seus contos, elabora sua narrativa em busca da unidade de efeito: “cujo interesse inteiro repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto, sobre uma dosagem imprudente no amálgama das faculdades. O leitor, tomado de vertigem, é constrangido a seguir o autor em suas arrebatadas deduções (...)” (BAUDELAIRE apud BRASIL, p. 22) Para tanto o autor deve, desde a primeira frase, estar atento às suas intenções quanto ao efeito que pretende causar no leitor. Escolhido o efeito, aterrorizar, encantar etc., o autor deve passar à elaboração deste, sem perder de vista a extensão, os recursos narrativos necessários para aplicação e sua consequente realização. O conceito de economia de meios para alcançar o máximo de efeito. Esta é questão central para a noção de brevidade do conto, para Edgar Allan Poe e para o contista argentino Julio Cortázar. Para confirmar este conceito, Cortázar assevera que o primeiro princípio que o escritor deve levar em consideração é o do limite, no sentido de uma breve extensão material. Neste sentido a eliminação do que possa vir a ser supérfluo, de elementos acessórios é imprescindível. Ao comparar conto e fotografia, ele afirma que a arte da fotografia se funda em um paradoxo que pode ser estendido ao gênero literário: “o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abre de par em par uma realidade muito mais ampla”. (CORTÁZAR apud GOTLIB, p.67) É, portanto, a seleção do que há de significativo, como afirma Cortázar, de maneira que seja capaz “de atuar no espectador, ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que 19 vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.” (CORTÁZAR apud GOTLIB, p.67) Desta maneira entendemos que Cortázar assevera que a forma deve potencializar o conteúdo, garantido, assim, um nível ótimo de intensidade, fruto da condensação dos elementos da narrativa, e o conseqüente arrebatamento do leitor desde as primeiras linhas. Intensidade e tensão são dois conceitos íntimos e foram resumidos por Cortázar em uma metáfora retirada do universo do boxe. O romance ganha sempre por pontos e o conto, invariavelmente, por nocaute. Esta imagem só se torna possível, porque, o adensamento advindo da relação íntima entre intensidade e tensão desdobra-se em um terceiro conceito o de esfericidade, que é produto da pressão interna que, por sua vez, é fruto da eliminação do que não é essencial à narrativa. Apesar de ser um gênero de tão difícil definição, como vimos, o autor de contos deve saber aliar seu conhecimento teórico ao aspecto prático da escritura tendo em vista que: Se não tivermos uma idéia viva do que é conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto,uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes. (CORTÁZAR apud GOTLIB, p.10) Cortázar aponta para um embate entre a abstração dos conceitos e a concretude da vida sendo o conto uma resultante desta batalha. É importante salientar que o contista argentino trata do dilema imposto entre o ato de criar que, antes de qualquer coisa, pressupõe liberdade, e o problema das categorizações inflexíveis, que impõem no mais das vezes a rigidez desvitalizadora do texto literário. Como afirma Gotlib (1985, p. 10) em seu comentário ao fragmento acima. “Tratar da teoria do conto é aceitar uma luta em que a força da teoria pode aniquilar a própria vida do conto." O problema da categorização rígida pode ser, com efeito, algo enfraquecedor do gênero, porquanto, o conto, nas palavras de Alfredo Bosi, “tem assumido formas de surpreendente variedade.” (1989, p. 7) Para Bosi, estabelecendo uma análise comparativa entre outras formas da narrativa moderna, a extensão do conto potencializa todas as possibilidades da ficção, ou, como nas palavras do crítico, “compele o escritor 20 a uma luta mais intensa com as técnicas de invenção, de sintaxe compositiva de elocução: daí ficarem transpostas depressa as fronteiras que no conto separam o narrativo do lírico, o narrativo do dramático” (1989, p. 7). Uma mostra inequívoca desta assertiva é a divisão dos capítulos da obra de Antonio Hohlfeldt, em variada e abrangente temática. É, portanto, nesta chave, a do caráter variado assumido pelo gênero em nossas letras, que o crítico concebe o gênero conto na contemporaneidade: “Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a temática toda do romance, como põe em jogo princípios de composição que regem a escrita moderna em busca de texto sintético e do convívio de tons, gêneros e significados”. (BOSI, 1989, p. 7) Se pensarmos em Mário de Andrade, esta característica (proteiforme) é inerente ao gênero. Segundo Bosi, o gênero nasce, pois, da tensão vital e apaixonada entre opção narrativa e mundo narrável, se assim não o for o “conto não passa de crônica eivada de convenções” (BOSI, 1989, p. 9) É função do escritor aclimatar tema e forma atendendo às demandas de ambas. O adensamento da forma advém da tensão criada pela narrativa, constituindo uma via de mão dupla, na qual o escritor deve ter a habilidade para harmonizá-las. O conto, portanto, surge do sintagma que, à primeira vista, pode ser paradoxal, mas para o gênero é algo imprescindível: a tensão harmônica. Entendemos que, no discurso literário, o escritor deve estar consciente de que construir um texto não é enformar o conteúdo, mas extrair do conteúdo a forma. Antonio Candido, no capítulo “A Nova Narrativa”, na obra Educação pela noite, afirma sobre a relação entre conteúdo e forma. Não se trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a este ou àquele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe que crie para nós o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que é discurso literário. Este fato é requisito em qualquer obra, obviamente; mas se o autor assume maior consciência dele, mudam as maneiras de escrever e a crítica sente necessidade de reconsiderar os seus pontos de vista, inclusive a atitude disjuntiva (tema a ou tema b; direita ou esquerda; psicológico ou social). Isto porque, assim como os próprios escritores, a crítica verá que a força própria da ficção provém, antes de tudo, da convenção que permite elaborar os mundos imaginários. (CANDIDO, 2011, p. 250) É centrada na capacidade de efabulação do escritor que reside o valor de sua obra. À sua capacidade de percepção deve-se aliar a capacidade de inventar, de criar novas situações ou ressignificá-las para nós leitores, desprovidos da aguda percepção e da técnica da escrita literária. Bosi (1989, p.9) resume a função do escritor de contos 21 nesta belíssima metáfora: “Em face da História, rio sem fim que vai arrastando tudo e todos no seu curso, o contista é um pescador de momentos singulares cheios de significação.” Tais fatores contribuem para o engrandecimento do gênero e não o contrário como pensam alguns críticos mais mordazes, mais preocupados em compartimentar do que oferecer propostas para a contínua revitalização da literatura. Não pretendemos, todavia, elaborar uma nova teoria sobre o gênero, apenas reunir algumas definições e características que nos possam servir como fontes para analisarmos como a estrutura organizacional da forma é instauradora de sentido e de conhecimento da obra de João Antônio. Ao pensarmos a forma como configuradora de sentido ao texto literário e é este que de antemão nos interessa, estudaremos como João Antônio construiu seu mundo ficcional. Desta forma lançamos mão do conceito proposto por Antonio Candido em O Discurso e a cidade de “redução estrutural”, isto é, o processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo.” (Candido, 1993, p. 9) 1.2 - O Caso João Antônio Este capítulo consiste, pois, em tratarmos da composição estrutural do texto, sem cair nas teias das terminologias sem fim dos estudos estruturalistas. Nosso intento é notar nos procedimentos criativos de João Antônio a maneira como sua opção pelo gênero conto implica uma valoração estética de sua obra em si. Não queremos atribuir a sua obra quaisquer que sejam as ideologias totalizantes na tentativa de uma interpretação mais ou menos eficaz, que, todavia, poderão ser ineficientes na abordagem do texto literário. A análise do gênero é, dessa forma, parte do empreendimento de entendermos os princípios que regem a poética de João Antônio em sua totalidade. Evitaremos a todo custo cair em esquematismos nocivos à interpretação da obra do ficcionista, sem, obviamente, forçarmos a barra para enquadrarmos a obra de João Antônio ao conceito prévio do gênero a que se propôs cultivar, com pleno vigor, 22 diga-se de passagem. O tratamento dado à pesquisa visa a elaborar a conjunção dos critérios teóricos à singularidade do autor. Como vimos, o conto é um gênero de difícil definição, todavia não devemos abordar o gênero de forma aleatória e imprudente. As definições que mais se aproximam da pretendida por nós neste trabalho são as de Alfredo Bosi: proteiforme e poliedro, porquanto são capazes “de refletir as situações mais diversas da nossa vida real ou imaginária, se constituiu no espaço de uma linguagem moderna (porque) sensível, tensa e empenhada na significação), mas não forçosamente modernista.” (1989, p. 21) Consideramos, também, as definições de Cortázar em que, além da condição esquiva, quanto à sua definição, temos, sobretudo, a batalha entre a vida e a escrita dessa vida. Sendo esta última a que mais se adequa à poética de João Antônio no seu corpo-a-corpo com a vida. A luta pela sobrevivência diária não admite volteios, firulas sem objetivos, por isso o escritor, essencialmente o brasileiro, para João Antônio, deve estar engajado visceralmente, portanto: Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos e não que se rele neles. Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma. (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 146) Por isso, entendemos a escolha de João Antônio pelo gênero, pois, o conto permite ao autor ser mais “incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases.” (CORTÁZAR, 2008, p. 152). Temos, portanto, em João Antônio a união de um escritor comprometido com o povo, com a realidade crua deste povo e, também, comprometido com o seu ofício de escritor e de denunciador da condição de vida dos merdunchos. Poderá algum leitor mais incauto, ao se deparar com o texto corpo-a-corpo com a vida, acusar seu autor de um ingênuo proselitismo. Todavia, se o mesmo tiver um contato mais íntimo com seus contos e cotejá-los com sua poética verá sua opinião (do leitor) esfarelar-se logo na primeira frase. Tomemos como exemplo o início do conto Frio da obra Malagueta, Perus e Bacanaço e que será analisado mais detidamente no decorrer deste trabalho: O Menino tinha só dez anos. 23 Quase meia hora andando. No começo pensou num bonde. Mas lembrou-se do embrulhinho branco e bem feito que trazia, afastou as ideias como se estivesse fazendo uma coisa errada. (nos bondes, àquela hora da noite, poderiam roubá-lo, sem que percebesse; e depois?... Que é que diria Paraná?) (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 59) João Antônio segue religiosamente o que propõe em sua “arte poética” e corrobora a afirmativa de Cortázar sobre ser incisivo desde as primeiras frases. Em João Antônio, temos uma literatura carnal. Seus contos são a corporificação de seus pensamentos e de suas propostas para a vida, para a profissão de escritor e para a literatura de um modo geral. A primeira frase, lida em seguida ao título, não só insere o leitor em um contexto tenso, mas também, e muito por conta disso, o comove. João Antônio nos apresenta de maneira imediata o sofrimento, a perda da ingenuidade de uma criança de apenas 10 anos caminhando à noite, passando frio, afastando meios mais fáceis para chegar ao seu objetivo, porquanto receoso de sofrer alguma sanção de um tal de Paraná (seu mentor) se não cumprir sua missão. O episódio é narrado sem volteios, ou, nas palavras, do próprio autor, “sem salamaleque, sem flosô espiritual” (1975, p. 143) Seu estilo de narrar confere ao seu texto uma aderência à situação narrada. Sua literatura é de combate, de briga como afirma o próprio escritor “assim, uma literatura de murro, de porrada. Um corpo-a-corpo com a vida.” (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 148) (grifos do autor) O autor afirma, ainda, que o escritor não pode ter uma forma já préestabelecida para apenas enformar todos os temas que venham a surgir. Com efeito, João Antônio assevera que a forma é intrinsecamente configuradora de sentido. E, sobretudo, confere ao texto vitalidade, devido à experiência libertadora configurada pela “rebeldia” em não ser inflexível às mudanças comportamentais e estéticas. Desaparece a forma apriorística, que passa a ser determinada pelo próprio tema. O escritor não pode partir com uma forma pronta. Ela será dada, exigida, imposta pelo próprio tema e com esse elemento de certa novidade, é possível admitir também que cada novo tema tratado jamais deixará de surpreender o escritor. O tema passa a flagrar o desconhecimento do escritor, uma vez que o intérprete aceita um corpo-a-corpo a ser travado com a coisa a ser interpretada. (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 149) João Antônio concebe o conto como um gênero malandro, porquanto é a estrutura que melhor representa e com a qual melhor apresenta a técnica e a malícia do povo merduncho, do jogador de sinuca, das prostitutas, das crianças desprovidas de carinho familiar, do bandido sem escrúpulos. É neste gênero que vemos serem 24 encenados os dramas de sobrevivência de um povo oprimido e, muitas vezes, aturdido pelas circunstâncias contrárias. João Antônio estreia no mundo literário com o conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, em 1963, pela editora Civilização Brasileira. É, sem dúvida, seu conto mais extenso e é sempre tomado como referência da sua obra. O conto é, pois, dividido em seis subcapítulos, intitulados com nomes de bairros da cidade de São Paulo: Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e novamente Lapa. Tal disposição confere ao conto um caráter circular, de continuidade. As peripécias das personagens não têm fim, é algo rotineiro. A luta pela sobrevivência é a busca pelos trouxas. O conto adquire assim um estatuto de exemplaridade, ganha em universalidade. Podemos chamar cada trecho da narrativa intitulado com o nome de um bairro da cidade paulistana, os quais os três malandros percorrem, na luta pela sobrevivência, como subcontos que se interligam constituindo uma unidade coesa, mesmo que seus conteúdos soem independentes entre si. No conto, por ser mais extenso, João Antônio pode explorar, com mais cuidado e mais detidamente, todas as características da vida do malandro. A deambulação e a relação espaço-tempo, o embate malandro versus otário, a vida das piranhas, a obediência de um jovem ao malandro mais velho, os merdunchos, a dialética da malandragem, a ambiguidade dos homossexuais e do policial imiscuído na roda da malandragem. Enfim, nesta obra, João Antônio dá um tratamento literário a toda uma legião de marginalizados e de excluídos sociais. A identificação do autor com os “pingentes da vida” e a maestria da reprodução destes na obra levou o escritor Marques Rebelo a afirmar que o livro já nasceu clássico. Um clássico velhaco. Em seus contos, de um modo geral, João Antônio trabalha dentro de uma estrutura que comporta toda a dialética que rege o mundo da malandragem. Suas personagens perambulam por um mundo alheio às instituições sociais (salvo a polícia de quem eles fogem ou se relacionam de um modo promíscuo). Este alheamento comporta, inclusive, a família. A tendência à documentação e à denúncia, ou apenas ao relato da vida cotidiana, preconizada pelo autor em sua poética, contudo, impelem-no a explorar em seus contos a vida do povo com uma técnica que pressuponha uma aderência à realidade, inclusive, de cunho jornalístico. João Antônio produz, principalmente, em Malhação do Judas Carioca e em Casa de loucos, textos híbridos de conto, de matéria jornalística e de crônica. O título do primeiro já aponta para uma condição híbrida de 25 seu conteúdo, apontada pela mudança de Iscariotes para Carioca servindo para indicar uma adptação no tempo, no espaço e nos costumes. A malhação do Judas é uma brincadeira muito difundida nos subúrbios do país; trata-se de espancar com paus e pedras, socos e pontapés um boneco feito de pano com o nome, geralmente, dos fofoqueiros e de desafetos do bairro. É uma brincadeira híbrida, pois, situa no mesmo espaço a raiva e o ludismo; a fé católica e o prazer profano da vingança. A estrutura mais ampla da divisão dos textos nestas duas obras, que guardam parte da produção “jornalística” do autor, reproduz as seções de um periódico. As editorias de Malhação do Judas Carioca são: “Problema”, “Polícia”, “Contoreportagem Especial”, “Gente”, “Costumes” e “Futebol”, além do apêndice com sua poética corpo-a-corpo com a vida. As seções de Casa de loucos são: “Protesto”, “Comportamento”, “Música Popular”, “Costumes”, “Futebol”, “Gente”, “Habitação”, “Vida” e “Drama”. João Antônio desde muito cedo tem sua vida profissional ligada ao jornalismo, tendo exercido as funções de repórter, editor, articulista, cronista, etc. em jornais e revistas de grande circulação do país: os jornais Última hora, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, as revistas Realidade, Cláudia, Manchete, Livro de cabeceira do homem. Também trabalhou na chamada imprensa nanica, termo cunhado pelo próprio autor para designar uma imprensa emergente, todavia, extremamente investigativa. João Antônio afinado com as propostas do Novo Jornalismo de Truman Capote e de Norman Mailer, que se utilizava de técnicas de literatura de modo a proporcionar à matéria narrada um caráter mais humano, mais reflexivo e mais perene. Com efeito, a atividade jornalística não embargava a de ficcionista, antes, a impulsionava. Muitos de seus textos reunidos e lançados em livros foram publicados primeiramente nas páginas de jornais e revistas, como é o caso de “É uma revolução” e de “Cais” publicados na revista Realidade e de “Lapa acordada para morrer” publicada no Jornal do Brasil. A fusão de literatura e jornalismo, em João Antônio, cumpre a função de extrair a reflexão perene da literatura do fato provisório e efêmero, condição sine qua non do jornalismo. E o faz com uma linguagem ora feroz, ora adocicada, assim como a linguagem do povo que se acostumou a matar sua sede nos bares da vida; com uma sintaxe sincopada, marcada pelo ritmo do dia a dia do povo nas cidades, pela velocidade da movimentação das ruas nos centros e nos subúrbios do Rio de Janeiro e de São 26 Paulo. Ora sua escrita é melódica e suave como a do carioca, ora é dura e incisiva como a dos paulistas. Sobre a classificação dos seus textos, Paulo Rónai (1983, P.11), em prefácio a Dedo-Duro, observa: “Pois nem sei se são contos, apesar de o autor batizá-los assim, já que esses escritos refratários a qualquer classificação, não admitem rótulos.” A arte de João Antônio não admite rotulação de seus textos, propiciando, desta maneira, uma análise mais acurada da sua obra. Aquele que assim não o fizer certamente estará descartando uma ótima possibilidade de ir ao cerne do pensamento do escritor e das contradições sociais do nosso país. De que maneira narrar as ruas das grandes cidades reverberadas por um frêmito que só um escritor sensível às coisas da rua e aos movimentos da sociedade pode captar. Com a agudeza de um jornalista e a destreza de um esteta, João Antônio soube representar a agonia e a revolta presentes na alma de cada cidadão, de cada personagem; iluminando sempre a singularidade de cada ser espoliado, marginalizado dos nossos grandes centros “e que seus olhos de artista não deixam transformar em massa” (BOSI, 2001, p.11). 1.3 - O Narrador de João Antônio Ao iniciarmos a leitura de uma obra literária, de imediato, fazemos um contato mais íntimo com seu narrador, e já neste primeiro momento o reconhecemos como instância instauradora do discurso literário. Todavia, não podemos afirmar que o narrador é o único mediador do texto ficcional, pois estaremos diminuindo a função das personagens que no discurso literário também possuem tal atribuição. É o narrador que nos levará pelos complexos caminhos do texto; é ele que nos mostrará ou ocultará na trama o drama das personagens – às vezes, seus próprios dramas serão representados – ora privilegiando seu ponto de vista, ora dando voz às personagens para que estas nos revelem sua interioridade anímica. É dessa forma, portanto, que podemos aprender com a experiência alheia, pois é a partir da polifonia de um relato que poderemos estabelecer um contraste dos diversos pontos de vista, e com isso termos uma experiência mais completa e complexa. Dessa maneira é função do narrador revelar a diversidade qualitativa da existência 27 humana e iluminar o espírito de quem lê. O leitor participante tem de se entranhar na estrutura romanesca de modo a ressignificar o mundo plurissignificativo que foi engendrado pelo autor, e com isso, apreender o mundo desvelado pelo autor. O verbo aprender nos remete imediatamente a idéia de aquisição de conhecimento que pode advir de um contato mais íntimo e constante com a realidade que nos cerca ou através da leitura e apreciação de obras voltadas para esse fim. Em João Antônio temos a fusão dessas duas formas de aquisição de conhecimento, porquanto, a realidade é transposta esteticamente para as páginas de seus contos. Corpo-a-corpo com a vida, a poética de João Antônio, clama que a experiência da vida cotidiana, “real”, seja assimilada pelos leitores como um dado estrutural da obra, com função específica e não como mera transposição literária da realidade. Tampouco sua poética visa a propor a transfiguração da realidade baseada em um formalismo hipertrofiado. O de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da vida. O que é diferente de publicar livros, e muito. Daí saltarem dois flagrantes vergonhosos – o nosso distanciamento de uma literatura que reflita a vida brasileira, o futebol, a umbanda, a vida operária e fabril, o êxodo rural, a habitação, a saúde, a vida policial, aquela toda a que talvez se possa chamar radiografias brasileiras. (João Antônio, 1975, p.144) Uma literatura haurida da seiva da vida fica mais evidente se cotejarmos sua obra com sua poética e, assim, notarmos que o autor manteve a coerência das suas propostas. Dessa maneira, podemos afirmar que a literatura de João Antônio é enfática em ser denunciadora da realidade brasileira. Para tanto o autor traz as suas personagens em primeiro plano, observa-as de perto de forma arguta e pertinaz, muitas vezes são retiradas da própria experiência pessoal, pois o escritor afirma retirar da observação cotidiana os tipos para construir suas personagens. “Fácil compreender que o meu tipo de trabalho parte de uma realidade; é da vida que sugo meus personagens” (BRAIT, 1987, p. 78). Trabalha como um denunciador da dura realidade do homem comum, revelando suas complexidades psicológicas e a precariedade em que elas sobrevivem. Em Corpo-a-corpo com a vida, podemos sentir toda a força do seu projeto literário, baseado na representação das mazelas e dificuldades do povo brasileiro, entretanto, o escritor não poderia, ingenuamente, crer que levaria às páginas de seus contos a realidade tal qual a percebem os nossos sentidos, ou como os realistas e 28 naturalistas do século XIX preconizaram, mas que, obviamente, tiveram que reconstruir de acordo com as convenções artísticas estabelecidas para a criação literária e levando em consideração os impositivos estéticos das escolas a que se vincularam. A despeito da experiência pessoal de João Antônio em suas andanças pelos grandes centros brasileiros, sempre em busca de personagens que pudessem retratar o povo brasileiro a partir das suas complexidades – característica que confere às obras do autor uma marca algo confessional – entendemos que, conscientemente, o escritor criou um universo no qual deveria transmitir um senso de realidade, e é nesse ponto que fixamos o nosso interesse pelo narrador joãontoniano, como o escritor recriou esteticamente em seus contos a dura realidade da população, muito bem observada pelo autor, e de que forma ele organizou a matéria catalogada, em papéis de cigarro ou, simplesmente, nas gavetas da memória. Em prefácio à obra Guardador, José J. Veiga assevera: “Captar falas de gente do povo é muito fácil, basta ligar um gravador. Mas em seus contos João Antônio não está fazendo reportagem, está criando literatura. O que ele capta nas ruas e na vida passa pelo seu filtro de criador” (JOÃO ANTÔNIO 1992. p. 10). Para Antonio Hohlfeldt, João Antônio pertence à categoria de narradores da linha conto sócio-documental; sua obra é uma espécie de “literatura-denúncia” das distâncias entre as classes sociais. Vale apontar que vários estudos abordam a relação entre a vida pessoal do autor – seus hábitos, sua profissão de jornalista – e sua vida literária, ou seja, ressaltam a importância da experiência pessoal no ato criador do contista. Ieda Maria Magri, em sua tese1, reafirma a disposição de João Antônio em fundir “homem e autor, ficção e realidade, literatura e compromisso social”. Tal intenção é corroborada pelo próprio autor em sua obra, em sua poética, em suas cartas, entrevistas e depoimentos. Em uma carta a Ilka Brunhilde Laurito, João Antônio assevera que: Tenho feito sondagens e pesquisas, que talvez me levem ao entendimento do ‘porquê’ e ‘como’ não possuímos ainda uma literatura paulistana tão definitiva quanto e como a nordestina. (...) Alcancei algumas conclusões parciais e continuáveis – a ausência de uma linguagem paulistana, especialmente, e o desconhecimento por parte dos escritores do homem paulistano (a meu ver muito mais rico humana e espiritualmente, mais sofrido e dramático que quaisquer outros tipos brasileiros) – e pelas mesmas razões, muitíssimo mais difícil e arisco e inacessível, literalmente. Homem difícil, 1 Tese defendida por Ieda Maria Magri em agosto de 2010 na Faculdade de Letras da UFRJ. Ver referências bibliográficas. 29 fragmentado, prisioneiro de uma cidade de que em geral não gosta. Homem limitadíssimo, mal formado, piorado terrivelmente nesses últimos dez anos. Homem que não é covarde, mas a quem quase sempre falta coragem. Homem de transição e de solidão (repare nos bares cheios), cujo destino é desaparecer, dar lugar a um tipo mais concreto e de algum caráter. (JOÃO ANTÔNIO apud MAGRI, 2010, p. 20) O trecho acima se refere ao desejo de João Antônio em criar uma estética paulistana; deseja marcar o ritmo da cidade e de seus frequentadores através de uma linguagem que os retrate. Sua preocupação é, efetivamente, o ser humano. No trecho acima, João Antônio utiliza a palavra homem cinco vezes, sempre acompanhada de um adjetivo, de locuções adjetivas e de orações adjetivas que sempre denotam a condição miserável – econômica e psicologicamente – do cidadão paulistano, e que pode ser estendida a qualquer cidadão das grandes cidades ou até mesmo a avassaladora maioria do povo brasileiro, por ele chamados de merdunchos.2 O homem é o epicentro de suas narrativas, porém a relação deste com a cidade não é um tema periférico, tendo em vista que o autor ambienta seus contos nos grandes centros urbanos, principalmente, São Paulo e Rio de Janeiro. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, por exemplo, é a narrativa de três malandros que perambulam por toda a cidade em busca de bares abertos onde possam beber, comer e, principalmente, jogar, ou seja, estão sempre em busca de duas necessidades vitais para quaisquer seres humanos, além da terceira, imprescindível para qualquer malandro e que, de certa maneira, irá custear o provimento da comida e da bebida. Dentre os traços da malandragem, os jogos revelam-se como dos mais marcantes. Incorporados ao cotidiano, eles servem como ganhos de vida para os malandros. Não se trata, portanto, de mero entretenimento, mas de um meio, mesmo não exclusivo, de garantir a própria sobrevivência e ainda satisfazer alguns caprichos. Veremos assim, que diferentemente do simples passatempo ou diversão, essa prática, que também não exclui o ingrediente do prazer, se desenvolve de modo tão natural e diário a ponto de se tornar decisiva na configuração mesma do que se entende por malandragem. (CRISTINO, 2011, p.69) É através do jogo e da ginga que o narrador de João Antônio apresenta suas personagens em sua luta pela sobrevivência, sem artificialismos. Sua dicção revela um narrador mais aderente, “conluiado”, à experiência das personagens, denotando uma convivência de grande intensidade. 2 A análise tipológica das personagens de João Antônio, objetivo principal deste trabalho, será feita, pormenorizadamente, em capítulos mais adiante. Neste queremos analisar apenas a categoria do narrador e sua importância na obra do autor. 30 Na hora do jogo, o malandro não se entrega de primeira, ele vai e volta, circula a mesa, passa giz no taco, olha para o parceiro, estuda o adversário, dá um trago no cigarro no canto da boca, toma um gole de cachaça e vai para a mesa, estica o taco com a ponta indo e vindo sobre a mão, negaceando e irritando até o momento da tacada, certeira, levanta a cabeça, olha sobranceiro para todos em volta e solta um sorriso provocador de escárnio. Essa “milonga”3 dura até o momento da tacada final, momento de culminância de todo um bailado cheio de manha. A narrativa de João Antônio é reflexa dessa dança, podemos afirmar que o autor construiu seu modo de narrar a partir da transposição de toda técnica e malícia das mesas de sinuca. Apesar de dupla definição do termo “milonga” atribuído por João Antônio, em seu caderno de campo, para analisarmos seu modo de narrar, temos que desconsiderar o primeiro: conversa fiada, pois sua narrativa não possui nenhuma característica que a torne descartável, pelo contrário, sua narrativa é sedutora e envolvente e, portanto, reveladora do modo de ver, de sentir, de agir e de pensar do malandro. “Sinuca a passatempo é mancada. A gente perde a sensação.” (JOÃO ANTÕNIO, 1987, p. 150) Percebemos que tais atitudes não se resumem somente quando são narrados os acontecimentos relativos à mesa do jogo, mas em todos os seus contos. A mesa de sinuca, portanto, é revelada como uma metonímia que nos oferta a apreensão dos comportamentos compartilhados pelos jogadores e da suas posições perante a vida e a realidade por meio das regras de convivência estabelecidas à roda do jogo. No intuito de transformar o objeto narrado em sujeito da sua própria vida, João Antônio recorre ao monólogo interior para mostrar a revolta de um leão-de-chácara da noite carioca. Pirraça, esse é o nome de guerra que a personagem ganhou por ver a vida por um viés mais “realista”, sem “salamaleques” desde a infância e por não se acomodar a uma vida de negação. “Meu apelido é Pirraça e ele não veio sem um bom motivo” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 24). Os vocábulos escolhidos para ilustrar o pensamento da personagem denotam que seu aprendizado é o das ruas, e esse aprendizado, como afirma a própria personagem, é “debaixo de porrada”. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 16) 3 Conversa fiada, cantada. Termo retirado de seu caderno de campo, onde anotava o vocabulário das ruas. Foi publicado pela editora Cosac & Naify em 2012, como encarte dos seus contos reunidos. É resultado de suas andanças e de suas experiências pelas grandes cidades, denotando, portanto, a extrema dedicação do autor na caracterização de suas personagens. Consultada em 15/6/2013 no endereço eletrônico: http://issuu.com/cosac_naify/docs/joao-antoniocaderneta. 31 Dessa maneira, o narrador não pode utilizar outro tipo de linguagem, senão a linguagem da porrada, da violência com o propósito de bem retratar a relação dramática que a personagem tem com a cidade e com seus habitantes, principalmente, os mais abastados, que são, dependendo da situação, caracterizados como otários. Para representar o ódio da personagem com relação a quem ele classifica como otários, João Antônio lança mão do recurso da repetição de sinônimos injuriosos e degradantes em profusão. Para Antonio Candido, no ensaio “Na Noite Enxovalhada”, a repetição “viola o bom-tom mas cria uma trepidação expressiva que se ajusta à situação narrada. A fala se torna, portanto, estilo, elaboração que, apesar da aparência, tira a palavra da sua função meramente comunicativa e a traz para dentro da literatura” (CANDIDO, p. 85) Tal recurso aproxima a fala de um ritmo prosódico bastante característico da oralidade e cristaliza a revolta por parte do protagonista. Antonio Candido afirma que o escritor “elaborou uma voz narrativa manipulando da maneira mais fiel possível a comunicação oral.” (CANDIDO, p. 85) O que vai me baixar pela frente não está em nenhum caderno. O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé-grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado, amador, loque, cavalo de teta, Zé Mané dando bandeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado, quiquiriquis, langanhos paíbas (...) (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 15-16) A fala da personagem é reveladora dos seus pensamentos labirínticos e para construir o discurso, João Antônio recorre ao fluxo de consciência com a intenção de exteriorizar o estado anímico da personagem que dramatiza suas experiências em um relato mimetizado por uma torrente convulsa de palavras, frases, períodos e imagens que se misturam refletindo o ritmo veloz da oralidade apreendida na potente dicção das ruas, e se mostra bastante representativa da subjetividade de uma pessoa espoliada e que teve a vida negada desde o nascimento. No plano da criação literária, João Antônio mostra-se afinado com o modo de apreensão da realidade apresentado pela ficção moderna; principalmente, em seus contos, onde há a marca nítida de um tom de desabafo por parte das personagens. Monólogo interior e digressões são utilizados para proporcionar ao leitor a apreensão do fluxo da vida psíquica das personagens que projeta, sobremaneira, sua visão de mundo, em um jato contínuo, onde passado e presente se misturam, quebrando a ordem causal do mundo exterior. 32 Apesar de João Antônio não adotar processos muito radicais, no que diz respeito à categoria de narrador, em sua obra4; podemos identificar que há uma preocupação em mostrar como as personagens se conscientizam da própria condição, ou, em um processo de autoanálise, tentam se conscientizar, porém, sem cair em um discurso egótico. Seus depoimentos sempre levam em consideração as suas vidas em relação às demais pessoas e ao espaço, onde se inserem. Dos quatro contos que compõem a obra Leão-de-chácara, o que se diferencia do ponto de vista do narrador é “Três cunhadas – natal de 1960”. Tendo em vista que os outros: “Leão-de-chácara”, “Joãozinho da babilônia” e “Paulinho perna torta” são narrados em primeira pessoa através do monólogo interior e possuem o nome do protagonista como título, “Três cunhadas – natal de 1960” difere, pois o protagonista não é batizado pelo narrador e, consequentemente, não nomeia o conto e possui como foco narrativo uma parceria entre a narrativa na primeira pessoa e o narrador em terceira pessoa. Recurso recorrente nos contos de João Antônio é a introdução do leitor em seu universo ficcional, já no primeiro parágrafo dos contos com frases curtas que têm a capacidade de sintetizar a interioridade anímica dos protagonistas. É o que ocorre, por exemplo, no conto “Três cunhadas – natal de 1960”. Assim é seu início: “Isto não é vida.” E continua no parágrafo seguinte “Mas a gente toma o primeiro chope do dia e é como se tudo começasse de novo.” (João Antônio, 1976, p. 33) Este exemplo já nos adianta qual é estado de espírito da personagem e que será desenrolado ao longo do conto. Um homem com parcos recursos financeiros é obrigado pela esposa a comprar e levar presentes a três cunhadas, que se encontram em condição financeira decadente e com a moral ao rés do chão. A personagem caminha pelo centro da cidade do Rio de Janeiro e vai percebendo a sordidez do mundo e das pessoas ao seu redor. Termina o conto com a frase: “aquilo não era vida”, fechando um círculo vicioso que resume bem a vida “chué” levada pelas personagens na trama e que comprova a falência de instituições sociais como a família e a Igreja, pois, ambas foram vencidas pelo espírito do capitalismo. O caráter circular é impresso pelas duas orações que constatam sua condição “merduncha”. A inicial “Isto não é vida” indica um estado permanente, que é referendado ao longo do conto e a final “Aquilo não era vida”, que, por sua vez, 4 A radicalização na sua obra é operada no que diz respeito à forma. Ver seus contos-reportagem. 33 demonstra, coerentemente ao caráter circular do conto, que os fatos passados não cessaram, antes são um continuum na vida das personagens. Neste conto, evidencia-se a parceria narrativa entre narrador e personagem, tendo em vista que o conto inicia-se com a personagem afirmando que sua condição existencial não é nada positiva, ou ainda, vive-se empurrado e é corroborado pelo narrador no período que encerra o conto. Esse artifício confere força ao relato, porquanto, possibilita ao leitor, em geral, uma dupla possibilidade de interpretação de uma obra literária. No caso específico do conto por nós estudado, possibilita-nos o entendimento de uma comunhão narrativa entre personagem e narrador e a percepção mútua de que a vida das personagens do conto causa-lhes nojo. Dessa forma, não são narrados somente os fatos, mas é, também, dramatizada a emoção da personagem, através da parceria narrativa entre ambos. “Um táxi, um táxi. Enfia-se estabanado, antes tropeça na calçada, a canela atingida. Senta bufando. O desconhecido, lá fora, está lhe enviando um aceno de mão. Não responde, pede ao volante. – Ô doutor, vamos para as Laranjeiras.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 37) Notamos nesse trecho o desespero da personagem com relação a sua situação, fazer o que não quer e o que não pode: gastar dinheiro com presentes e ir visitar as três cunhadas chatíssimas. Para descrever a cena, o narrador dá voz à personagem para este dramatizar seus sentimentos “um táxi, um táxi”. Essas frases saem como um desabafo incontido de uma pessoa que não quer ficar mais onde está e, no caso da personagem, acabar logo com aquele desespero. Logo em seguida o narrador corrobora narrando com verbos que denotam a angústia da personagem. Segundo Antonio Candido (1999, p. 88): Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de “dar voz”, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor da sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Ainda no conto “Três cunhadas – natal de 1960”, o narrador vai percebendo os vários aspectos da relação entre o homem e a cidade e a partir de uma mundividência singular, apreende os movimentos da sociedade e nos apresenta com extrema habilidade a fluência de uma cidade que não para de crescer e que, em contrapartida, achata e aniquila seus moradores na urgência da luta pela sobrevivência. – Borboleta! Olha a borboleta! 34 Os preços driblam na Praça Quinze. O homem é empurrado para os lados do Largo da carioca. Ali se pede, se rasteja, se esmola. Molecadinha bate pandeiro e canta em louvor a Jesus. Que nascerá amanhã e enquanto é hoje, as crianças, bocas já cínicas, pedem ajuda pelo amor de Deus. As crianças pretas, uniformes de brim, a bem dizer não pedem, cutucam: exigem do basbaque passante. Os gasparinos no ar, sobre as mãos, vão gritando de cor: – Cavalo, olha o cavalo! (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p.34) (Grifos nossos) Nesse trecho o narrador organiza a matéria narrada de modo a passar ao leitor uma ideia não só de simultaneidade, mas também da velocidade com que os fatos se desenrolam. O rápido movimento é retratado através de dois recursos: o primeiro é de dispor duas falas de vendedores de bilhetes de loteria, uma no início, outra no fim, nos informando o intenso vozerio de uma cidade grande, denotando fidelidade à natureza do ambiente narrado. O segundo é um recurso largamente utilizado em vários dos seus contos: a figura da gradação, “Ali se pede, se rasteja, se esmola”. Nesse trecho, somamos duas locuções adjetivas à figura de pensamento de forma a caracterizá-la, singularmente, na poética de João Antônio: gradação do desespero ou gradação da miséria; pois até atingir o clímax, os verbos vão construindo uma imagem cada vez mais desesperadora devido à contundência dos seus conteúdos. Outro são os exemplos dessa figura de pensamento em toda a sua obra. Neste conto “Três cunhadas – natal de 1960”, mais adiante, para não nos excedermos nos exemplos, encontramos ainda mais alguns. “O sujeito fala. Fala. Refala”, “A rua geme, chia, chora, pede, esperneia, dissimula, engambela, contrabandeia. Espirra gente” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 35) Na primeira, construída em curtíssimos períodos e com a utilização do prefixo que denota repetição no último verbo, entendemos que tal recurso gera a representação literária do discurso malandro, que consiste na maleabilidade, no jogo de palavras, a partir de uma torrente monológica que não permite a seu interlocutor a possibilidade de se constituir, efetivamente, como um participante do processo de interação. Dessa forma, o malandro vai conseguindo ludibriar as pessoas mais incautas que atravessam o seu caminho. A segunda é a representação do movimento incessante das ruas e as consequências que nascem do convívio diário das personagens nesse ambiente de desespero. “O que a rua mais sabe fazer é misturar gente.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 35) O narrador personifica a rua para mostrar como ela pode enganar assim como um malandro engana um otário. O sociólogo Roberto DaMatta (1997, p. 55) em sua obra A 35 casa e a rua, estuda as contradições do Brasil, polarizando nesses dois espaços a construção de um conjunto de valores variáveis por parte do indivíduo5, dependendo do espaço que esteja ocupando. Não preciso acentuar que é na rua que devem viver os malandros, os meliantes, os pilantras e os marginais em geral – ainda que esses mesmos personagens em casa possam ser seres humanos decentes e até mesmo bons pais de família. Do mesmo modo, a rua é local de individualização, de luta e de malandragem. Zona onde cada um deve zelar por si, enquanto Deus olha por todos (...) Segundo Anatol Rosenfeld6, no romance do século XX, os acontecimentos externos à consciência do narrador se impõem nesta, que, por sua vez, os reproduz nos arranjos dos fragmentos e se cristaliza na própria estrutura da obra; como podemos conferir na experimentação feita nos seus contos-reportagem, por exemplo, o autor não tem a intenção de reproduzir, ingenuamente, uma ilusão de realidade, que se proponha representativo, como simples cópia, de uma realidade objetiva. O fundamentalmente novo é que a arte moderna não o [mundo empírico] reconhece apenas tematicamente, através de uma alegoria pictórica ou a afirmação teórica de uma personagem de romance, mas através da assimilação desta relatividade à própria estrutura da obra-de-arte. A visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso comum é incorporada à forma total da obra. É só assim que essa visão se torna realmente válida em termos estéticos. (ROSENFELD, 2009, p.81) João Antônio, todavia, não nega seu compromisso com a realidade “empírica”, pelo contrário, tal realidade, além de matéria essencial à sua poética, é a forja que na consciência do narrador imprimirá um senso crítico, muitas vezes, evidenciado pela revolta com que o narrador vivencia a realidade e a dicção do narrador é rancorosa, quase agressiva, como uma recusa a objetiva neutralidade do narrador do Realismo clássico do século XIX. Alfredo Bosi, no prefácio à obra Abraçado ao meu rancor, afirma que a literatura de João Antônio é uma combinação de um estilo original, realista que beira os extremos da reportagem e que denota total aderência do escritor à população retratada em suas obras. “Ora, realismo fervido na revolta pende mais para a margem que para o centro da sociedade.” Como, por exemplo, o conto “Abraçado ao meu rancor”, no qual o narrador não reconhece mais sua cidade natal, São Paulo, e vai, melancolicamente, percorrendo e buscando a cidade que conheceu na sua infância e adolescência na figura do cantor e 5 Não pretendo aqui estabelecer uma análise pormenorizada da obra de Roberto DaMatta, tendo em vista sua categorização conceitual de pessoas e de indivíduos. 6 Cf. “Reflexões sobre o romance moderno”, p.80. in: Texto/contexto 1. 36 compositor Germano Matias7 e na música de Wilson Batista8, “Pedreiro Waldemar” Tenta reconstruir a cidade a partir de fragmentos de memória, contudo, não consegue, efetivamente, êxito, pois a modernização apagou a cidade da sua infância, e aquilo que a modernidade não conseguiu esconder é escamoteado pelos cartões-postais publicitários, que escondem as mazelas da cidade e atraem, cada vez mais, imigrantes em busca da felicidade alardeada pelos publicitários e acabam mais miseráveis do que já eram. Se os publicitários mascaram, João Antônio revela. A cidade dos publicitários é um simulacro de si mesma, com uma população mais preocupada com futilidades, e que o narrador metaforiza na descaracterização e no “batismo” das bebidas. E o uísque, falso e batizado, teve entrada. Água e iodo. Até nos bares modestos. O botequim agoniza, já não se gosta de vender cachaça pura. Causa estranheza e encabula. Envergonha. Falando claro, cada vez se sabe menos o que é um botequim nesta terra. A batida e a caipirinha tomando a praça, igualmente descaracterizadas. Misturações safadas, fricotado, flosô. Metem água, afrescalham, enfiam vodca, melam a cachaça com açúcar e, assim, menininhas universitárias, sem quê nem pra quê e sem onde abanar o rabo, já se enfiam nos bares da Vieira de Carvalho, do Largo do Arouche, da Rua Aurora, a fim de verem um mundo de pobre-diabos que lhe parece tão pitoresco quanto um zoológico. E tão coitadinho. (João Antônio, 2001, p.101-102) A cidade tornou-se exótica, inclusive, para seus moradores. A modernização a qualquer custo pasteurizou ambientes, antes verdadeiros, honestos, cheios de história e de histórias, e lotados de personagens que encarnavam o espírito da cidade e que simbolizavam com fidelidade uma grande metrópole cosmopolita e com complexas contradições. Paulo Rónai em prefácio a Dedo-duro compara João Antônio a Gregório de Matos, devido ao tom veemente e ao caráter visceral com que retrata a sociedade em que vive, de maneira semelhante a que o poeta baiano satirizou seus contemporâneos. O crítico utiliza verbos que denotam irrupção, como marca do narrador de alguns contos de João Antônio. Para Rónai, os vocábulos são ejaculados, vomitados e prorrompem da boca das personagens de forma explosiva. “Tal um novo ‘Boca do Inferno’, o autor 7 Músico e malandro paulistano, representante do samba sincopado dessa cidade. Nascido em 2 de junho de 1934. 8 Compositor de sambas e marchinhas do carnaval carioca. Nasceu em 3 de julho de 1913 e faleceu em 7 de julho de 1968. Assíduo freqüentador da boemia carioca compôs “Lenço no pecoço”, um samba em que exalta a figura do malandro. Noel Rosa, apesar de também ser simpático à boemia e à malandragem, pensou que a letra da música fosse uma provocação e iniciou uma polêmica musical com Wilson Batista, na qual, sucediam-se letras provocativas de ambos os lados (muitos são os mitos acerca do motivo real que tenha sido o estopim da polêmica). O poeta da vila, em primeira resposta, compôs “Rapaz folgado”. A polêmica teve fim quando os dois em parceria compuseram a música “Deixa de ser convencida”. “Pedreiro Valdemar” é uma denúncia sobre a condição dramática dos operários da construção civil. 37 cataloga seus rancores, vomita a sua indignação, resmungando pragas e palavrões.” (JOÃO ANTÔNIO, 1988, p. 11) É a linguagem das ruas e de um narrador que retira toda sua experiência do contato doloroso com as ruas, o que confere originalidade ao autor e é bem simbolizada pela fala da personagem Pirraça do conto “Leão-de-chácara”: “O que vai me baixar pela frente não está em nenhum caderno” (João Antônio, 1976, p. 15), que denota o aprendizado advindo da relação com a dura realidade e não dos bancos escolares. A experiência é pisada e repisada no chão duro das grandes cidades. Para Candido, a “narrativa de João Antônio nos joga no universo noturno de São Paulo. Mas de um certo São Paulo, construído ao redor de alguns marginais moídos pela vida, procurando um jeito de sobreviver por meio da trapaça, da esperteza ou da brutalidade.” (CANDIDO, 1999, p. 86) João Antônio, portanto, molda seu discurso de maneira que possa representar fielmente o ritmo das ruas. Palavras obscenas e injuriosas são os artifícios de que se valeu o escritor para marcar a violência e realidade parca de recursos materiais das personagens. Bom exemplo é sua caderneta de campo onde anotou inúmeros vocábulos, dando ênfase especial às gírias, que conheceu na boca do povo e que utilizou para caracterizar seu universo ficcional. Na noite malhada e escrota, disciplinando mulheres, beliscando os otários, distribuindo mesuras e apanhando grojas, picardo e sonso; mas também molhando a mão dos ratos, que os arregos são de lei, acabarei dando muitas de cerca-lourenço, muita piaba e bastante pau nessa cambada de fariseus, sambudos mal-topados. Hoje sexta-feira. E gajo solto nesta noite é falso boêmio, metido a alegre e sabidinho, achando que é algum manda-tudo na cidade. Mordo-lhes uma grana, é verdade, mas me dão canseira. (João Antônio, 1976, p.16) João Antônio representa, estética e ideologicamente, a cidade e seus personagens a partir de uma relação simbiótica. A experiência do narrador é absorvida através da sua experiência com a rua e esta é o espaço onde se circunscreve a maior parte das relações sociais dos contos de João Antônio. Podemos afirmar que na narrativa de João Antônio há, efetivamente, o timbre das ruas, devido aos movimentos incessantes que dela capta o narrador, vide, por exemplo, o vocabulário rueiro que o autor compilou; são palavras que não são ditas à mesa de refeição ou no momento em que a família se reúne para assistir à telenovela, elas são ditas nas ruas e representamnas. 38 A rua, na obra de João Antônio, aparece como lugar, essencialmente, ligado à ambiguidade e esta é representada pela sua galeria de malandros e de otários e pelo perde e ganha das mesas de sinuca. A ambiguidade também está presente na representação das transformações sociais advindas com os tempos modernos e fica patente, por exemplo, como vimos acima, no seu conto “Abraçado ao meu rancor”, na qual a simbiose entre o narrador e a cidade é dilacerada de forma tão violenta que o discurso do narrador invade dolorosamente as almas gélidas da cidade e de seus habitantes. O narrador tem pleno domínio do espaço por onde circula, vide suas perambulações pelo centro e pelas margens da cidade, inclusive em “Abraçado ao meu rancor”, onde não se reconhece em uma cidade totalmente transfigurada. Nesse caso, realiza a reconstrução através da memória, mas sempre de modo comparativo com o que vai apreendendo nas suas andanças. Em entrevista à Editora Scipione, João Antônio responde o porquê de a rua ser seu tema predileto: É da rua que eu gosto, espetáculo humano rico, movimentado colorido, encantador, surpreendente. É na rua que as coisas coletivas costumam acontecer. Inclinação minha. Atração. (...) Até hoje, só tolero ambiente fechado, gabinete, casa, redação ou quarto de hotel, motel, se estiver absorvido e tomado por alguma atividade que me fascine, que me dê prazer, físico ou estético. (...) Freqüento feiras-livres e, claro, não vou lá para comprar alface ou bananas, limões ou caquis. Vou pelas cores, pelo que ouço da boca das gentes, atraído pelo espetáculo humano, o movimento, as vozes, as cores – é mais bonito e melhor que noventa e nove por cento dos programas da tevê brasileira, concordam? Toco às feiras, às ruas, para ver o pessoal viver e esse prazer só tem valor e não tem preço. Meus personagens andam a pé, atravessam bairros inteiros, reandam; pensam, sentem enquanto andam. Atenção: tenho um coração rueiro bem antes de ler A Alma Encantadora das Ruas de João do Rio. Não é, pois, uma relação intelectual, é vida. (SEVERIANO, 2005, p. 250) (grifos do autor) O depoimento de João Antônio é revelador de um sentimento íntimo que o levou a representar todo o encantamento e, também, todas as misérias das ruas. Esse sentimento o irmana ao cronista João do Rio, são duas almas encantadas pelas ruas. O cronista carioca inicia sua obra com uma simples revelação de um sentimento singelo “eu amo a rua.”, enquanto João Antônio afirma “é da rua que eu gosto”, embora essas duas afirmações sejam reveladoras do seus sentimentos, suas obras são mais loquazes neste sentido. Ambos são tocados pelas ruas e pelo sentimento que delas emana; são 39 sensíveis às ruas, à sua movimentação, ao seu ritmo e sabem distinguir a alma de cada rua, os dois escritores têm corações rueiros. João Antônio é um intérprete das ruas, os transeuntes transformaram-se em personagens, assim como as próprias ruas e bairros também o são. Estes são sempre nomeados e trazem para seus contos uma carga emocional fortíssima advinda da relação das personagens com cada localidade que percorrem. “Os lugares têm alma. Nem só por eles mesmos, mas pela alma intrometida e inseparável que têm. Uma questão de essência.” (SEVERIANO, 2005, p. 252) Sempre atento ao caráter multifacetado das ruas, João Antônio traduziu-as através das complexas relações entre elas e seus habituées: malandros, otários, prostitutas, crianças, bandidos, merdunchos entre outras figuras menos afortunadas, que compõem a galeria de personagens do contista. A rua nos seus contos sempre aparece como um espaço de dureza e aridez, e é o ambiente onde as personagens vão buscar sua sobrevivência, porém, muitas vezes sem conseguir êxito. É na rua que Paulinho Perna Torta vai, gradativamente, se transformando em bandido, é na rua que o menino Nego, do conto “Frio”, percorrendo a noite para satisfazer a um pedido de Paraná, seu protetor, vai encarando a dura realidade de um menino sem amparo familiar. Em seus contos, João Antônio trouxe, admiravelmente, à vista dos leitores uma cidade – tanto o Rio de Janeiro quanto São Paulo – repleta de personagens que foram suprimidas dos cartões-postais, que vendem uma imagem maquiada das cidades e longe das complexidades que afligem as grandes metrópoles. João Antônio nos apresenta a hostilidade que está presente nas relações sociais onde a aridez é perene. Não é, contudo, conivente com o crime ou com o aliciamento de crianças para o submundo, mas mostra como os sentimentos da falta de amparo, de amor e de perspectivas, oriundos dos tempos modernos, podem transformar o ser humano. Longe de um sentimentalismo piegas, João Antônio apresenta-nos suas personagens em uma perspectiva de adequação a um estilo de vida que levam por falta de opções que lhes proporcionasse uma vida mais digna. Trata-se de um narrador culto que usa a sua cultura para diminuir as distâncias, irmanando a sua voz à dos marginais que povoam a noite cheia de angústia e transgressão, numa cidade documentariamente real, e que no entanto ganha uma segunda natureza no reino da transfiguração criadora. (Candido, 1999, p. 87) 40 O narrador dos contos de João Antônio é, sobretudo, solidário aos sofrimentos e anseios do homem, e se revela em cada página como um irmão espiritual e consanguíneo de todas as personagens por ele criadas. A voz do narrador é a voz dos excluídos sociais, ela os representa – em todos os sentidos – e denuncia suas condições precárias, ora com extremo rancor, ora com profundo lirismo. 41 CAPÍTULO 2 OS CAMINHOS DA MALANDRAGEM Para abordarmos a figura do malandro na obra de João Antônio, não poderíamos nos furtar de buscar as primeiras representações da massa de onde emerge tal figura na literatura brasileira. O povo. Entretanto, não tratamos aqui a palavra povo como sendo toda a população do país, englobando todas as camadas sociais, mas somente aquelas pessoas pertencentes às camadas mais baixas da sociedade, ou como definiu Antônio Hohlfeldt no prefácio à antologia de contos de João Antônio (2001 pp. 8-9): lúmpem-proletariado como “escória integrada pelos elementos desclassificados de todas as camadas sociais e concentrada nas grandes cidades”, ou ainda, “esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade”... “centro de recrutamento de gatunos e delinqüentes de toda espécie, que vivem dos despojos da sociedade, pessoas sem profissão fixa, vagabundos”... “lado a lado com roués decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, Lazzaroni, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus, donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos – em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca.” É inegável a presença constante do povo na literatura brasileira do século XX. Todavia na literatura brasileira oitecentista, dominada em grande parte pela estética romântica, encontramos nas páginas dos romances a representação do drama burguês. As relações eram mediadas pela ótica da idealização e da subjetividade; desta maneira, a percepção da realidade é fruto da imaginação, da fantasia poética. O autor é responsável por caracterizar a realidade de acordo com suas disponibilidades anímicas, portanto a realidade é a projeção do estado e da liberdade de espírito de quem a concebe. A representação do espaço é, pois, para os românticos algo idealizado, a importância do retrato do espaço se deve ao fato de os românticos sentirem a necessidade de aclimatar os ideais europeus à nossa realidade. Para exemplificarmos, nos fixamos, apenas para não exceder, em dois próceres da nossa literatura romântica, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, este com o projeto literário fundado na 42 criação de mitos que revelassem ao público elementos formadores de sua nacionalidade; ancorou-se, portanto, na figura do nativo, principalmente. O ponto em comum nos dois escritores é o fato de estarem preocupados em retratar os costumes e as expectativas burguesas; portanto, ambientaram suas narrativas em salões, em confeitarias, em teatros em ilhas paradisíacas e em florestas arrebatadoras e, de certa maneira, regeneradoras, onde o público pudesse se reconhecer ou dar vazão às suas imaginações. A relação das personagens com o espaço no romantismo pressupõe comunhão. Todavia, nos romances urbanos de Alencar, principalmente em Senhora há, de modo superficial, um herói em desequilíbrio com o ambiente de vileza representado por Seixas, jovem ambicioso e calculista. Na sua ambição de subir na vida casa-se por conveniência com Aurélia, herdeira de uma pequena fortuna, bonita e inteligente; contudo, o romance guarda um final em que o amor os redimirá. Para Roberto Schwarz (1988, p. 52) o fim marca um defeito de composição da obra. “Ficou para o fim o defeito mais evidente de Senhora, o seu desfecho açucarado”. Todavia, entendemos que José de Alencar assim o faz a fim de atender aos anseios dos leitores daquele período. A obra é dividida em quatro partes que são intituladas por termos do mercado financeiro, a relação é marcada pelo impasse que a mediação pelo capital impõe ao casal, entretanto no fim a redenção pelo amor atenua as contradições da sociedade capitalista, reafirmando a estética romântica e sua busca por um final feliz. 2.1- O CORTIÇO Tal pensamento norteou a prática dos nossos romancistas até o aparecimento de Aluísio Azevedo com o romance naturalista O Mulato (1881), sendo, porém sua obra prima, O cortiço (1890). Em O cortiço vemos algo antecipador da representação de ambientes periféricos, salientando a convivência promíscua de diversos grupos raciais permeada por pequenas intrigas e sob influência determinista do meio. Este tipo de habitação coletiva popular proporcionou ao autor pôr em circulação uma gama de tipos humanos diversos e representativos das camadas mais baixas da sociedade carioca da época: lavadeiras, operários, prostitutas, capoeiras, policiais etc. balizado por uma 43 objetividade científica e com a intenção de revelar ao público a vida cotidiana desses tipos.9 Incluí neste trabalho um breve estudo de O cortiço visando não só a representação literária do povo e da malandragem, mas também por aparecerem na obra ótimos exemplos de personagens que mudam do polo da ordem para o da desordem, do polo positivo para o polo negativo. O cavouqueiro Jerônimo, por exemplo, português trabalhador honesto, cumpridor dos seus deveres sociais e familiares, transforma-se em um pândego ao experimentar os acepipes, as comidas, a cachaça da mulata Rita Baiana. Passa também a rejeitar as iguarias portuguesas que tanto apreciava feitas por Piedade, sua esposa, e, por extensão, deixa de apreciar a própria esposa. Esta por sua vez, desgostosa, descuida-se até ser possuída, bêbada, na frente da filha, pelo vagabundo Pataca. Sonia Brayner definiu bem as funções do meio (o cortiço) e da personagem de Rita Baiana como agentes corruptores da conduta ilibada de Jerônimo. A autora afirma que “o agente dinâmico dessa mudança é a mulata, caracterizada como a simbolização do trópico, que vai pondo à prova todas as áreas significativas de identificação do personagem.” (1973, p. 84) e sobre o meio assevera: O tema da ação do trópico sobre o português é o desdobramento do tema da imigração: Jerônimo desta vez assume, como protagonista, o estereótipo do “abrasileirado”. O trabalho, economia, honestidade, unidades de significado que vão colocá-lo numa situação de positividade para a moral do leitor, sofrem a modificação básica sob o influxo do meio ambiente: tese naturalista, em que o trópico entra como agenciador de características tidas como brasileiras. (...) (1973, p. 83) O trecho mostra a relevância que os conceitos deterministas impõem à literatura naturalista. O forte e íntegro português sucumbe diante da sensualidade mestiça brasileira e diante do cortiço, que age como um organismo fechado, impedindo que as personagens que lá vivem ou frequentam possam exercer a liberdade de escolher seu destino. Para Antonio Candido (1993), no artigo “De cortiço a cortiço”, o cortiço pode ser interpretado como sendo uma alegoria do Brasil, o país em miniatura, onde há a mistura de raças, o choque de culturas entre os mestiços e os estrangeiros exploradores. “Na composição, o cortiço é o centro de convergência, o lugar por excelência, em 9 Sonia Brayner A metáfora do corpo no romance naturalista: estudo sobre O cortiço, 1973, Livraria São José. Na obra a autora concebe o cortiço como um organismo vivo, somada as metáforas de cunho científico-biológico associadas às personagens muito ao gosto do escritor naturalista. Dessa maneira a obra é extremamente representativa da estética naturalista na literatura brasileira. 44 função do qual tudo se exprime. Ele é um ambiente, um meio –, físico, social, simbólico –, vinculado a certo modo de viver e condicionando certa mecânica das relações,” (p. 138) Antonio Candido (1993) afirma ainda que em nenhum outro romance brasileiro houve a representação da coexistência de tantos e variados tipos sociais, fato que se justifica “na medida em que assim eram os cortiços e assim era o nosso povo, é claro que visto numa perspectiva pessimista, como a dos naturalistas em geral e a de Aluísio em particular.” (p. 138) 2.2 – CLARA DOS ANJOS João Antônio, em sua poética, preconizava uma literatura que contemplasse os marginalizados da população brasileira. Para o escritor, havia a necessidade de que fosse assumido o compromisso de escrever sem se distanciar do povo. Daí se explica a devoção por Lima Barreto, a quem dedicou inúmeras epígrafes em suas obras. “A Afonso Henriques de Lima Barreto, pioneiro, consagro”, encontrada, por exemplo, no exemplar da obra Leão-de-chácara. Na obra Calvários e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, onde João Antônio reconstrói a vida boêmia de Lima Barreto cotejando passagens de suas obras com os hábitos do autor. O que mais atenta em João Antônio na obra de Lima Barreto é atualidade das suas narrativas e o poder de compreensão do homem brasileiro que delas emana. Tudo de Lima é atual, de uma atualidade alarmante. Diante de seus livros, um patrimônio nacional – quatro romances do maior peso, Isaías Caminha, Policarpo Quaresma, Numa e Ninfa e Clara dos Anjos e alguns contos são fundamentais para quem se meta a conhecer literatura brasileira –, nos embasbacamos. (JOÃO ANTÔNIO, 1977, p. 14) As observações argutas e a representação aguda dos pobres são características que norteiam a literatura de ambos os escritores. João Antônio viu em Lima Barreto um exemplo a ser seguido, pois ambos são unidos pelo mesmo sentimento, o da solidariedade pelos excluídos. 45 Não esqueçamos um fato importante na obra de Lima Barreto: ele achava que literatura não era “belas letras”, literatura era a vida militante, e o que vida militante significava para ele é que o escritor tem o compromisso fundamental de aproximar os homens e torná-los solidários uns aos outros, para que possam resistir ao fardo da vida.10 As palavras de Antonio Arnoni Prado sobre a concepção de literatura por parte de Lima Barreto se coadunam com a de João Antônio no seu “corpo-a-corpo com a vida”. A obra desses dois escritores se cristaliza como uma entrega ao povo e a literatura. Todavia, para Antonio Candido, no ensaio “Os olhos, a barca e o espelho”, essa militância na literatura por parte de Lima Barreto, sua posição contrária aos padrões estéticos vigentes no seu período e sua concepção de literatura como paixão e dever resultam em uma obra em que o ficcionista não se realiza plenamente. Para o crítico, há uma desnível entre seus escritos pessoais e sua obra ficcional. A análise dos escritos pessoais contribui para esclarecer isto, mostrando inclusive de que maneira o interesse dos seus romances pode estar em material pouco elaborado ficcionalmente, mas cabível enquanto testemunho, reflexão, impressão de cunho individual ou intuito social – como se o fato e a elaboração não fossem de todo distintos para que a literatura fosse uma espécie de paixão e dever; e até uma forma de existência pela qual sacrificou outras. (CANDIDO, 2011, p. 48) Não refutamos, pois, haver nos escritos ficcionais de Lima Barreto muito da sua vida pessoal, tendo em vista a vasta literatura sobre esse tema, porém, preferimos nos ater somente à construção das suas personagens e à relação destas com o espaço, onde circulam, não buscando em sua obra traços acentuadamente autobiográficos. Não poderemos fugir à sua concepção de vida e de literatura e ao seu posicionamento político refletidos em sua obra, o que não queremos é abordar seus problemas íntimos de tal maneira que nos limitemos a ver em sua obra somente um espelho do que há de mais íntimo no seu ser. Em Clara dos Anjos, podemos encontrar, sim, elementos que indignam o escritor: a condição de vida precária em que a sociedade republicana colocou a população humilde, seu posicionamento ético e estético, assim como, a maneira como representou o momento que viveu, isso é o que nos interessa, neste momento, e não uma abordagem que privilegie a ficcionalização do eu. Tendo em vista que sabemos, pois, da 10 Entrevista do crítico Antonio Arnoni Prado ao portal do MEC sobre a importância de se ler a obra de Lima Barreto. HTTP://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/revis%C3%83%E2%80%A0o-T.LimaArnoni.pdf. Acesso em 10 de setembro de 2013. 46 importância que tais estudos contribuiram para o enriquecimento da fortuna crítica do autor. A galeria de personagens que João Antônio reuniu em suas obras é vastíssima, no entanto, em nada difere de seu mestre. Lima Barreto expõe, segundo Sevcenko, “uma das mais vastas e variadas” galerias de personagens da literatura brasileira. O crítico elenca uma imensa quantidade de tipos representados por Lima Barreto em suas obras que vai desde burocratas, aristocratas, militares até ex-escravos, operários, ébrios, mandriões e prostitutas. Sevcenko termina sua catalogação desta maneira: “é praticamente todo o Rio de Janeiro do seu tempo que nos aparece agitado e tenso, condensado mais nos vícios do que nas virtudes.” (1989, p. 162) Para o crítico, das personagens de Lima Barreto, destacam-se “os tipos mais excusos e execrados.” (1989, p. 162) Nesta dissertação, portanto, pensamos ser interessante um capítulo em que analisemos, apenas, um romance de Lima Barreto, no qual possamos encontrar alguma personagem próxima daquelas que encontramos nos contos de João Antônio. Na vasta e rica obra do autor pós-modernista, escolhemos o romance Clara dos Anjos. Optamos por esse romance, não só por vermos retratada a vida no subúrbio, seus habitantes excluídos, mas também pela presença da personagem Cassi Jones, malandro inveterado que seduz a inocente protagonista, com as mais vis intenções. Lima Barreto criou essa figura malandra com exímia habilidade e atribuiu-lhe tanta força nos traços que compõem sua identidade que a personagem vai, paulatinamente, ao longo do romance revelando-se uma das grandes personagens criadas pelo autor. Tendo em vista que esta dissertação visa a um estudo tipológico das personagens joãoantonianas, principalmente a figura do malandro, dessa maneira, neste capítulo, procuraremos analisar não somente Clara dos Anjos, a protagonista, mas também Cassi Jones, o antagonista que levou, além da menina, toda sua família, à destruição, incluindo seu padrinho, Marramaque, que teve um final mais dramático, pois, foi morto a pauladas. Em toda a sua obra, Lima Barreto estabeleceu um contraste entre os adventos da modernidade e a condição precária em que vivia grande parcela da população brasileira. O momento retratado no romance foi de intensas transformações para a população do Rio de Janeiro, principalmente a da área central. Para os republicanos, era preciso estabelecer uma nova ordem, pois, conquistado o poder, “o novo grupo hegemônico 47 poderá exibir os primeiros monumentos votados à sagração do seu triunfo e de seus ideais.” (SEVCENKO, 1989, p. 30) A maior transformação foi a abertura da avenida central pelo prefeito Pereira Passos, na sua concepção de modernidade, a população carioca, leia-se, aquela que poderia usufruir das novidades, deveria acompanhar os costumes e hábitos do europeu, principalmente dos franceses. Dessa forma o prefeito abriu um imenso boulevard, a Avenida Central, onde essa parte da população poderia se exibir a população com seus novos ideais. Entretanto, para não macular a imagem de uma cidade afrancesada, civilizada e cosmopolita, como pretendiam os republicanos, e para a camada aburguesada da população poder consumir as novidades estrangeiras livremente sem se deparar com a miséria fazia-se necessário expulsar toda uma camada de infelizes que viviam de maneira insalubre em cortiços espalhados para área. Toda essa população miserável foi deslocada para regiões distantes, os subúrbios, ou para as favelas, localizadas em morros circundantes ao centro do Rio de Janeiro, onde, suas condições de vida em nada melhoraram, ao contrário, a falta de estrutura era alarmante, além da distância que tinham de percorrer para trabalhar no centro da cidade. O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de tropa, talvez os engenheiros da light se deram ao trabalho de fazer pequenos nivelamentos. (BARRETO, 2010, p. 87) Para a parcela aburguesada da população, esses miseráveis eram a imagem do anacranonismo de uma cultura arcaica que se devia combater em função de modernidade exuberante que se anunciava, portanto, o projeto “civilizatório” tinha que ser cumprido a qualquer custo. O clima de euforia era tanto que os passantes no auge desse processo trocaram nossos cordiais cumprimentos de “boa-tarde ou “boa-noite” pelo sonoro “Viva a França”. O advento da República proclama sonoramente a vitória do cosmopolitismo no Rio de Janeiro. O importante, na área central, da cidade, era estar em dia com os menores detalhes do cotidiano do Velho Mundo. E os navios europeus, principalmente franceses, não traziam apenas os figurinos, o mobiliário e as roupas, mas também as notícias sobre as peças e livros mais em voga, as escolas filosóficas predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas e até as doenças, tudo enfim que fosse consumível por uma sociedade altamente urbanizada e sedenta de modelos de prestígio. (SEVCENKO, 1989, p. 36) 48 Acontecimento sintomático dessa afirmativa é o momento em que Cassi Jones vai ao centro da cidade e se depara com rapazes com roupas luxuosas, conversavam sobre assuntos que passavam ao largo da parca inteligência do suburbano. Cassi sentiase diminuído diante de tal quadro. O trecho que segue é bem representativo de como o desnível social, cultural e intelectual entre as classes dominantes com relação aos dominados era gigantesco. A condição marginal a que foram relegados aqueles que não possuíam condições financeiras e intelectuais para se inserir nos modismos impostos na Belle Époque, a cada momento, se reafirmava com mais força. Na cidade, como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes a conversar sobre coisas que ele não entendia e a trocar pilhérias; em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava. Cassi vexava-se de não suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade medíocre suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma. (BARRETO, 2010, p. 149) (grifos do autor) Cassi Jones atinava-se em seus pensamentos refletindo sobre sua condição, sempre em uma atitude comparativa e, no início do parágrafo, chega à conclusão de sua condição inferior. Não entende as conversas dos jovens sobre o momento político do país; não reconhece os novos hábitos dos moradores das áreas centrais da cidade, metaforizado no desconhecimento das bebidas e dos seus nomes, possivelmente, em uma língua europeia. Como afirma o narrador, Cassi Jones fora do subúrbio sentia-se esmagado pelos novos hábitos cosmopolitas em face da rusticidade da sua inteligência e do seu comportamento. O trecho é representativo da baixa autoestima daqueles moradores do subúrbio. Todavia, Cassi Jones e sua mãe tinham a certeza da sua falta de pertencimento àquele lugar. A distinção que D. Salustiana defendia possuir e que o filho simbolizou na escolha do sobrenome Jones, que para a mãe representava as origens aristocráticas da família e remontava a um lorde inglês que fora cônsul em Santa Catarina, só tinham valimento naquele espaço circunscrito dos subúrbios, pois, se fora mesmo verdade tal descendência, ela se perdera na falta de educação e no mau-caratismo do filho. Lima Barreto representa no malandro Cassi Jones e na sua mãe, uma espécie de fidalguia perdida, porém que nunca houvera existido nesses pobres moradores do 49 subúrbio. A família de cor branca e com algum dinheiro estava, na escala social da época, acima dos demais moradores dos subúrbios, em geral, negros ou mulatos, e humildes. Todavia, Cassi Jones e D. Salustiana, na sua condição suburbana, tinham de suportar como vizinhos toda essa gente que eles repudiavam e, portanto, para distinguirem-se, ambos criaram esse mito de ascendência nobre e passaram a alardear suas origens aristocráticas. Belo exemplo ocorre no momento em que D. Margarida11, uma vai juntamente com Clara cobrar a dignidade roubada por Cassi a D. Salustiana e esta rispidamente responde: “– Que é que a senhora quer que eu faça?” (BARRETO, 2010, p. 171) a resposta é seguida por este comentário do narrador, que é revelador do caráter da mãe de Cassi. Até ali, Clara não dissera palavra; e D. Salustiana, mesmo antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer. (BARRETO, 2010, p. 171) A mãe de Cassi Jones, com sua “linhagem nobre”, não desejava ver a conspurcação da honra de sua família, porém não tinha a mesma preocupação quando a honra de outra família era aviltada por seu filho. No romance Clara dos Anjos, a representação do povo suburbano é polarizada na relação entre o malandro Cassi Jones e a ingênua protagonista, Clara dos Anjos. Esta, uma mulata, filha de um casal honesto, é o que há de mais precioso nessa família simples. Seu pai, o carteiro Joaquim, é um amante da música, seu instrumento, a flauta, porém, era avesso às serestas e serenatas, como nos apresenta o narrador, logo nas primeiras linhas do romance. Sua mãe, D. Engrácia, era uma mulher de poucos expedientes, não possuía o mínimo espírito para resolver as coisas mais triviais da rotina da família, que não fosse suas atribuições domésticas. Era incapaz de fazer compras na venda, serviço que incumbia a seu marido. “Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade de sua compleição individual, o certo é que, a não ser 11 D. Margarida é uma senhora amiga da família de Clara, a quem esta recorre para tentar solucionar o apuro em se houvera metido. Era em tudo diferente da mãe de Clara, D. Engrácia. É desta maneira que o narrador do romance define o caráter da senhora. “Margarida era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa, e não rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime de qualquer natureza.” (BARRETO, 2010, p. 167) 50 para os serviços domésticos. Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza.” (BARRETO, 2010, p. 75) Clara é criada com todos os cuidados que uma família recatada pode dispensar. “Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe e com o pai, só saía com D. Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.” (BARRETO, 2010, p. 32) Clara não tinha o mínimo conhecimento da vida fora de sua casa, pois, além dos serviços de costura, a única atividade de Clara era copiar as partituras musicais, a pedido do pai. Sua única maneira de concepção de mundo advinha das letras das modinhas românticas que copiava e que ouvia, quando seu pai e seus amigos, Lafões e Marramaque organizavam algumas serestas. Seu nome é bem representativo da sua concepção romântica da realidade, Clara dos Anjos. Clara, a alvura que simboliza a pureza de sua alma e dos Anjos, um sobrenome que representa o pensamento de uma menina nefelibata. Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitir meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida. (BARRETO, 2010, p. 120) Notamos na descrição feita pelo narrador do espírito de Clara que sua ingenuidade é comovente, a menina não conseguia distinguir o seu mundo idealizado da realidade. A ingenuidade não é um atributo somente de Clara, seus pais, também o são. O único arroubo de malícia de ambos foi por ocasião da festa de da filha, quando não gostaram dos modos sensuais de Cassi, ao interpretar uma modinha, e decidiram não permitir mais a entrada do malandro em sua casa. 51 É neste espaço familiar, onde todos têm a ingenuidade e a bonomia como princípios quase congênitos, que Cassi Jones encontrará campo para poder exercer, plenamente, sua vilania. Clara conheceu Cassi em sua festa de aniversário. O malandro fora convidado, com o consentimento do pai, pelo seu amigo Lafões, apesar da oposição do padrinho da moça, Marramaque, que conhecia bem a fama do mandrião. A menina, inclusive, ficara curiosa em saber quem era esse Cassi, por ocasião da discussão dos três sobre sua presença na festa da moça. A aparição de Cassi na festa causou um estremecimento geral “que percorreu os convivas como um choque elétrico.” (BARRETO, 2010, p. 67) Logo, ao ser apresentado aos anfitriões da festa, Cassi mostrou qual era o seu interesse. “Apresentado por Lafões, aos donos da casa, e à filha, ninguém lhe notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios empinados de Clara.” (BARRETO, 2010, p. 67) Clara, com sua ingênua curiosidade em conhecer as habilidades musicais de Cassi, convidou-o para cantar em sua festa. Após a apresentação do malandro, Clara não se continha mais, estava, perdidamente, apaixonada. Marramaque, ainda no dia da festa, fora o único a perceber a malícia do violeiro com relação à moça e recitou um poema com a intenção de ridicularizar o malandro. Marramaque era o único frequentador da casa da família de Clara que possuía uma visão crítica do mundo e, dessa maneira, poderia ser o grande obstáculo para as maldades de Cassi Jones e não pouparia esforços para impedir as ações do malandro. Este, apesar de sua ignorância, notou que a pilhéria feita, no dia da festa, se destinava a sua pessoa. Cassi que, logo, antipatizara com Marramaque, percebeu que a coisa era com ele. Perceberia outro mais burro do que o gabado artista da modinha, tanto era a teimosia com que o velho aleijado o olhava. Cassi pensou de si para si: “Este pobre diabo me paga.” (BARRETO, 2010, p. 72) Com efeito, essas palavras não ficariam apenas no pensamento de Cassi Jones. Quanto mais o malandro tentava se aproximar de Clara, mais aumentava o esforço de Marramaque em alertar a menina e sua família do perigo que corriam. Cassi e o seu comparsa, Arnaldo, certa noite, espreitaram Marramaque e o mataram a pauladas. 52 Após o assassinato de Marramaque, Cassi, ao ver seu cúmplice, Arnaldo sempre bêbado e arrependido, notou que o assassino poderia, a qualquer momento, falar quem foram os assassinos do velho. Notou, também, que não tinha mais a proteção de um político, Barcelos, a quem ajudava nas eleições. Outro fator que passou a amedrontar Cassi foi o fato de o marido de uma das suas vítimas estar o perseguindo com cadernos em que, definitivamente, colocaria o rufião na cadeia. O malandro, dessa maneira, decidiu vender seus galos de briga, outro vício de Cassi eram as rinhas, para pode fugir da cidade e dos seus crimes antes que pudesse ser surpreendido. Clara não sabia o que acontecera com Cassi, só sabia que este não aparecia há alguns dias. Ao saber que este fugira para São Paulo, os fatos começaram a fazer sentido em sua cabeça e, com isso, a menina tem o seu primeiro exame de consciência. “Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos com aquela nódoa indelével na vida?” (BARRETO, 2010, p. 165) Ao descobrir que está grávida e que Cassi fugira, Clara desespera-se. Nesse momento, pensa em abortar. Dessa maneira, corre à D. Margarida e pede-lhe um empréstimo, mas a senhora, com seu “ar varonil” fez a menina confessar o verdadeiro motivo do empréstimo. A senhora teuto-eslava convence Clara a contar o que lhe sucedera a mãe. Esta entra em desespero e o comentário do narrador cristaliza sua solidariedade com a desgraça daquela família, ao revelar o sentimento de D. Margarida ao observar aquela triste cena. “Aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto.” (BARRETO, 2010, p. 169) Em seguida leva a menina à casa da mãe de Cassi Jones. Lá, ambas são escorraçadas pela mãe do malandro. Ao voltar para casa, Clara dos Anjos abraçou fortemente a mãe e conclui sobre seu triste destino. “Nós não somos nada nesta vida.” (BARRETO, 2010, p. 173) Sem consciência sobre sua existência ao longo do romance, Clara descobre, pelas vias mais tortuosas, que sua criação não fora adequada à sua condição de mulata e pobre. Clara, ao ser enganada por Cassi Jones e, posteriormente, expulsa da casa pela mãe do malandro, se conscientiza de que sua condição social e racial requereria uma educação mais condizente com sua realidade. Clara dos Anjos representa, para Lima Barreto uma crítica do que sofriam as meninas que se encontravam na mesma condição que a protagonista, negras ou mulatas 53 e pobres. Para o autor, essas pessoas deviam se rebelar contra a sociedade que as impunha tamanha humilhação. Sobre Cassi Jones, podemos afirmar que Lima Barreto com habilidade criou uma das suas maiores personagens, uma personagem tão viva, tão humana. O malandro, com toda a sua astúcia, percorria os subúrbios sempre com as piores intenções. Lima Barreto, com a personagem Cassi Jones, inverteu uma forma de pensamento preconceituosa: a de que todo rufião deveria ser negro e pobre. Cassi Jones, com seu nome estrangeiro, mostrou-se um grande marginal, ao se favorecer de uma gente humilde. A transformação do malandro em bandido é apresentada de forma crua, sem rodeios, característica da escrita de Lima Barreto. Para Leandro Nascimento Cristino, (2011, p. 71) “o autor procurou desenhar com suas cores fortes um malandro que atua como vilão, um sujeito sem escrúpulos, arrependimentos ou afetos.” Ou seja, um bandido. No romance Clara dos Anjos, Lima Barreto questiona a condição dos negros e dos pobres no Brasil, na passagem do século XIX para o século XX. Suas pretensões eram ainda maiores, tencionava escrever a História da escravidão negra no Brasil, não conseguiu êxito, porém deixou este belíssimo livro como uma denúncia sobre a vida das populações mais humildes. Em Clara dos Anjos, Lima Barreto encarou de frente os intestinos da sociedade brasileira, como diria João Antônio, e a cada página, podemos notar a atualidade do livro, o subúrbio, continua sendo “o refúgio dos infelizes.” 2.3- MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS O romance de Manuel Antônio de Almeida é, ao tratarmos de personagens malandras, uma referência, pelo caráter pioneiro na abordagem do tema. A obra consiste, basicamente, na narrativa das aventuras de Leonardo Filho no Rio de Janeiro no tempo de D. João VI. O caráter pioneiro da obra levou-nos a abordar a obra Memórias de um sargento de milícias depois de O cortiço e de Clara dos Anjos. Outro fator que nos influenciou a deixar a abordagem da obra de Manuel Antônio de Almeida no final deste capítulo é o clássico ensaio “Dialética da Malandragem” de Antonio Candido. 54 Antonio Candido, no ensaio “Dialética da malandragem”, arrola três críticos que buscaram uma definição para o gênero ao qual se filia o romance. José Veríssimo definiu-o como um romance de costumes, por se tratar de uma descrição de lugares e de cenas do Rio de Janeiro joanino. O segundo é Mário de Andrade que o negou como romance precursor no gênero, considerou a obra como um romance picaresco próximo do Lazarillo de Tormes. Por último, Darcy Damasceno refuta a idéia de romance picaresco pelo “fato de haver nele um pícaro mais adjetival que substantival” (CANDIDO, 1993, p.19), preferindo defini-lo como um romance de costumes, mas não como um realismo antecipado, como definiu José Veríssimo. Antonio Candido não corrobora a tese de Mário de Andrade de a obra ser um continuador das narrativas picarescas, tendo em vista que não há uma influência significativa destas sobre aquela; todavia não afasta a possibilidade de que Manuel Antônio de Almeida tenha recebido algumas sugestões. O crítico aponta algumas afinidades entre Leonardo e as personagens das narrativas picarescas clássicas, como a origem humilde, o fato de serem largados no mundo, com a diferença de que Leonardo não é totalmente abandonado, pois tem o amparo do padrinho, o que representa para a narrativa um dos pontos cruciais porquanto Leonardo não sofre “o choque áspero com a realidade, que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das ‘picardias’”. (CANDIDO, 1993, p. 22) (grifos do autor) Tal fato afasta de Leonardo traço fundamental da personagem picaresca, sua condição servil. O padrinho quer vê-lo padre ou formado em direito e sempre está pronto para tirar o afilhado das enrascadas em que se mete. Assim como os pícaros, Leonardo Filho é amável e risonho, vive ao sabor da sorte, todavia não aprende com as experiências vividas, ao contrário do pícaro que, na sua luta pela sobrevivência, sem amparo algum, sempre reflete sobre as situações, características que lhes dão consistência como personagem. Para Candido o fato de o livro ser narrado em terceira pessoa contribui essencialmente para a falta de reflexão e consequente falta de amadurecimento psicológico da personagem, sendo atributo do narrador fazer tais reflexões; tal aspecto o diferencia essencialmente do narrador picaresco, pois: Em geral, o próprio pícaro narra as suas aventuras, o que fecha a visão da realidade em torno do seu ângulo restrito; e esta voz em primeira pessoa é um dos encantos para o leitor, transmitindo uma falsa candura que o autor cria habilmente e já é recurso psicológico de caracterização. (CANDIDO, 1993, p.21) 55 Leonardo, diferentemente dos pícaros, nada aprende com os eventos, “já nasce malandro feito”. (CANDIDO, 1993, p. 22) O apadrinhamento e o fato de não narrar suas próprias aventuras contribuem essencialmente para a falta de aprendizado da personagem, pois em qualquer aperto a figura do padrinho surge para auxiliá-lo e até mesmo para projetar sua vida futura. Como afirma Antonio Candido, “ele vive um pouco ao sabor do vento” (CANDIDO, 1993, p. 23), as reflexões acerca dos eventos não são feitas por Leonardo Filho, ficam a cargo do narrador, o que confere à obra um cunho menos corrosivo que as narrativas picarescas, senão suaves. Antonio Candido conclui que Leonardo Filho é o primeiro grande malandro da literatura brasileira. Leonardo se diferencia do pícaro à medida em que pratica suas peraltices sem o propósito deliberado de levar vantagens. Na afirmação de Candido, pratica a “astúcia pela astúcia [...] manifestando um amor pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando frequentemente terceiros na sua solução.” (CANDIDO, 1993, p. 26) Walnice Nogueira Galvão no ensaio “No tempo do rei” 12 afirma que alguns traços do malandro Leonardo adulto são encontrados no Leonardo criança e constituem a base do caráter da personagem. Para a ensaísta, tal caracterização feita por Manuel Antônio de Almeida confere ao autor pioneirismo em nossas letras no retrato do estereótipo do brasileiro. Manuel Antônio Almeida é o primeiro a fixar em literatura o caráter nacional brasileiro, tal como terá longa vida em nossas letras. Na ficção e na ensaística, particularmente no século XX, será constante a atribuição dessas características ao brasileiro: vagabundagem, preguiça, sensualidade, indisciplina, vivacidade de espírito – nossa modalidade de “inteligência” – e sobretudo simpatia. Creio que se pode saudar em Leonardo ancestral de Macunaíma. (GALVÃO, 1976, p. 32) Antonio Candido afirma que a personagem tem vocação para fantoche e se constitui ainda como um anti-pícaro, porquanto termina casado e herdeiro de cinco pensões, isto é, a personagem que durante toda a narrativa permaneceu no plano da desordem, aprontando várias travessuras, no final passa definitivamente ao plano da ordem. 12 In Saco de gatos 56 Roberto Goto, em sua obra Malandragem revisitada, na qual analisa a projeção da representação do malandro e da malandragem no contexto político e cultural no qual estava inserido o ensaio “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido, afirma sobre o romance de Manuel Antônio de Almeida: O romance tem uma malandragem, que é sua forma e aquilo que ele representa; esta malandragem tem uma dialética, que a define em sua forma e essência, em sua existência ficcional e real. Numa palavra, as Memórias se caracterizam pela “dialética da malandragem”; a malandragem se define pela dialética – “da ordem e da desordem” – das Memórias as duas caracterizações passam por uma terceira, que as articula e sustenta: a da sociedade brasileira; esta é igualmente descrita em função da malandragem e sua dialética, que forma o movimento profundo de uma prática social generalizada, relativamente livre de repressões morais e racionalizações ideológicas, e constitui um jeito brasileiro de ser no qual se realiza o modo natural de ser dos homens. (1988, p. 41) (grifos do autor) Temos desta maneira em Memórias de um sargento de milícias a caracterização da sociedade brasileira através da dialética da ordem e da desordem. Tal caracterização é feita por meio de uma generalização das formas de convivência não somente do Rio de Janeiro joanino, mas de uma movimentação ou de formas de pensamento mais gerais do que particulares. Um belíssimo quadro da sociedade brasileira metonimicamente representado pela sociedade carioca do começo do século XIX. Tal figura é construída de modo a proporcionar uma generalização do modo de ser e de pensar de uma camada social estratificada para o modo de ser e de pensar nacionais. Há no livro uma alternância entre os polos da ordem e da desordem a qual é construída e promovida por um narrador que se isenta de formular conceitos judiciosos, e propõe-se a mostrar um “mundo sem culpa” onde encontramos “certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do ‘homem como ele é’, mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o da desordem.” (CANDIDO, 1993, p. 39) (grifos do autor) O movimento das personagens entre os polos da ordem e da desordem caracteriza o ritmo da sociedade como um todo. Com efeito, no capítulo 15 “A Estralada”, por exemplo, temos a descoberta das relações pouco religiosas entre a cigana e o mestre-de-cerimônias, com este tendo sido pego vestido de um modo ridículo, com roupas íntimas do ventre para baixo e com um solidéu, parte da indumentária religiosa, à cabeça. Sem contar o fato de estar em uma festa mundana na companhia de uma cigana, elemento pertencente a um povo conhecido pelo seu 57 nomadismo e por sua astúcia e sensualidade, características que um reverendo deveria censurar e não fazer qualquer tipo de associação. O major Vidigal é o principal representante da ordem; é o elemento que tem por função o cumprimento da lei, contudo, também frequenta o hemisfério da desordem como ressaltou Antonio Candido, ao se referir ao episódio em que o major é surpreendido com roupas domésticas. Na tentativa de se recompor, o major Vidigal, de maneira caricata, veste “farda, calças de enfiar, tamancos, e um lenço de Alcobaça sobre o ombro, segundo seu uso.” (ALMEIDA, 2004, p. 144) Sua aparição, com o uniforme incompleto, diante das senhoras que foram em comissão pedir a soltura de Leonardo causou estranheza e risadas às senhoras, principalmente à comadre. Este episódio é marcado pelo tom burlesco que o narrador imprime às ações do livro. Para Antonio Candido, o sentido profundo do livro advém desse tom narrativo, caracterizado pelo balanceio entre a ordem e a desordem, que marca o ritmo da sociedade de maneira lúdica para imitar o movimento da sociedade real. Manuel Antônio de Almeida reconstrói esteticamente a cidade a partir da dissolução dos polos extremos. O crítico ainda assevera: É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas memórias é sugestiva, não tanto por conta das descrições de festejos ou indicações de usos e de lugares; mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, funcionando como correlativo do que se manifesta na sociedade daquele tempo. (CANDIDO, 1993, p. 44) (Grifo do autor) Ótimo exemplo temos no episódio em que foi conferido a Leonardo o cargo de granadeiro, por ser muito astuto e conhecedor das mais variadas súcias da cidade. Major Vidigal, então, aproveitou-se da experiência de Leonardo para revigorar sua equipe e de certa maneira o trouxe para perto de si e dos seus olhos. Todavia, o que se seguiu frustrou os planos do major Vidigal, ele e os seus granadeiros – incluindo Leonardo – iriam pilhar um grupo de vadios que encenavam uma peça que ironizava o próprio major. O novo granadeiro fora incumbido de entrar na casa onde acontecia a arruaça para dar o sinal para que os outros entrassem e acabassem com a brincadeira. A súcia consistia, basicamente, em um homem estendido e amortalhado no meio da sala, representando o major Vidigal e o restante dos arruaceiros cantando, à sua volta, um fado em que eram narradas as façanhas do major. Após longa espera e nenhum sinal de 58 Leonardo, Vidigal e os outros granadeiros interromperam a festa e pilharam Leonardo em plena bagunça, participando como figura principal, o amortalhado. Com efeito, nem este episódio nem o acordo feito com o malandro Teotônio, a quem foi incumbido de prender, e não o faz para poder pregar uma peça no major, impedira que Leonardo fosse alçado à patente de sargento. Desta forma podemos concluir que na obra os costumes são relativizados de acordo com cada situação apresentada. Para Antonio Candido a principal característica da obra, e o que diferencia das demais produções da época, é criar um mundo sem culpa e sem repressão no qual se pode depreender uma “visão folgada de costumes” (CANDIDO, 1999, p. 48) e uma ausência de remorsos e de culpa. Sendo a culpa um sentimento imposto por qualquer ato repressivo, este, por sua vez, o principal mecanismo de imposição da ordem, temos, portanto, na ausência de culpa, um mundo onde “os extremos se anulam e a moral dos fatos é tão equilibrada quanto as relações dos homens.” (CANDIDO, 1993, p. 48) Ao observarmos as reflexões do narrador, a assertiva acima fica patente, pois: A reflexão moralizante do nosso autor é de outra ordem. Entra no quadro geral da crônica geral de costumes, não visando diretamente apresentar um exemplo. (...) Quando apresenta os muitos aspectos negativos da época, chama nossa atenção para eles, mas sem demasiada ênfase. (GALVÃO, 1976, p.33) Manuel Antônio de Almeida mostra um convívio amoral – não no sentido negativo, mas na ausência de uma moral – através da comicidade dos costumes da época. Tal característica é o que diferencia as Memórias dos outros romances do mesmo período; pois não promove a ideologia burguesa, encontrada, por exemplo, nos romances de Macedo e de Alencar. Segundo Antonio Candido (1993, p. 48): “De tudo se desprende um ar de facilidade, uma visão folgada de costumes, que pode ou não coincidir com o que ocorria ‘ no tempo do Rei’, mas que fundamenta a sociedade instituída na Memórias (...)” (Grifos do autor) Ordem e desordem são, portanto, dois polos nos quais seus respectivos valores são relativos e se misturam nas ações e nos pensamentos das personagens, caracterizadas pela ausência de uma consciência moral. Nesta relação, há uma dissolução dos extremos que irá caracterizar o convívio das personagens no sentido de estas não possuírem uma visão ideologizada do dado real representada no agir por agir, 59 ou vivem a partir da avaliação das ações segundo sua eficácia, pensamentos que distinguem o mundo sem culpa. É neste mundo sem culpa que se insere a figura do malandro, tendo em vista que sua principal característica é a maleabilidade no trato social, passeando, sobejamente, entre os dois polos. A oscilação entre dois mundos tão estanques implica, portanto, no conceito de reversibilidade dos pares antitéticos que, por sua vez, é a demonstração de uma sociedade pautada pela fluidez em detrimento de uma conduta hirta. Para Walnice Nogueira Galvão, Manuel Antônio de Almeida é o primeiro a fixar em literatura o caráter nacional brasileiro e Leonardo é, pois, celebrado como ancestral de Macunaíma, devido à fixação de características tão peculiares ao malandro, encontradas nessas personagens, a qual sobressai a vivacidade de espírito, mãe de todas as outras. Para Roberto Goto a malandragem é traço pertinente da forma de ser do brasileiro e o seu modo de ser representa “atitudes vitais, as posturas humanas diante do mundo e da vida.” (1988, p.102) O malandro, portanto, vive com “talento” o exercício individualizado da liberdade, da livre movimentação por vários setores da sociedade. No imaginário da sociedade nacional, costuma sintetizar certos atributos considerados específicos ou identificadores do brasileiro: hospitalidade e malícia, a ginga, a finta, o drible, a manha e o jogo de cintura, muito apreciados no futebol e na política, a agilidade e a esperteza no escapar de situações constrangedoras ligadas ao trabalho e à repressão, o “jeitinho” que pacifica contendas, abrevia a solução de problemas, fura filas, supre ou agrava a falta de exercício de uma cidadania efetiva. (GOTO, 1988, p.11) (Grifos do autor) O romance de Manuel Antônio de Almeida é precursor de um gênero novo no Brasil e surge como um romance paradigmático no que diz respeito à representação da figura do malandro, este ser que não é mocinho e não é bandido e que possui grande maleabilidade e traquejo para o convívio em sociedade. 60 CAPÍTULO 3 AS PERSONAGENS-EQUILIBRISTAS DE JOÃO ANTÔNIO Nesta etapa do nosso trabalho, faremos um levantamento tipológico das personagens de João Antônio abordando a maneira como estas foram construídas como seres fictícios sempre de acordo com as peculiaridades estilísticas do autor por nós levantadas em capítulos precedentes. Importante salientarmos que, em nosso trabalho, não temos a intenção primeira de constatar o que há de biográfico na obra de João Antônio, todavia não pudemos nos esquivar do fato de que a força de sua obra se baseia, de certa maneira, na sua busca por um material que possa exprimir toda uma problemática social de onde emergem uma multidão de excluídos. A este mundo, também, pertencia o autor nas suas origens suburbanas. João Antônio viveu sua infância e sua adolescência em vários bairros de São Paulo, Presidente Altino, Vila Pompeia, Vila Anastácio. Seus primeiros empregos são os de muitos meninos humildes: entregador, “office-boy”, etc. até chegar à adolescência e é neste período que conhece as “zonas”, a sinuca e os primeiros amores. É devido a esses fatos que muitos críticos e biógrafos afirmam que a obra literária de João Antônio é marcada de forma indelével por sua biografia. Em seus contos-reportagem essa afinidade entre vida e obra é muito mais visível, pois neles há não só uma fusão de gêneros mais também a de autor e narrador e de indivíduos reais e personagens. Nesses textos a distinção entre autor e narrador é uma árdua tarefa, como afirma Ieda Maria Magri (2010. p. 60) em sua tese de doutorado: Nos textos menos ficcionais essa diferença é sutil e, se quisermos ir mais além, ela inexiste, já que o narrador não tem vestimenta ficcional, sendo claramente um homem comum, o escritor que se propôs a escrever a cidade e seus habitantes ordinários. No decurso do nosso estudo, não ignoramos a influência dos aspectos biográficos do autor refletir-se em seus contos, tendo em vista que os limites entre realidade e ficção são uma constante e, até mesmo, uma peculiaridade de sua obra que propõe até certo ponto um embaralhamento de papeis entre autor e narrador, principalmente em seus contos menos ficcionais. Magri (2010) salienta que os 61 depoimentos de João Antônio afirmam sempre a necessidade do autor em retratar o mundo que era de seu conhecimento íntimo – o mundo da malandragem – e que moldou e alimentou sua identidade de escritor-malandro, tal fato lhe conferiu um caráter ambíguo, pois circulava entre os dois polos; um, onde desempenhava um papel social definido na sociedade, o de escritor e outro onde não há definição stricto sensu desse papel, o malandro, que é rechaçado pela sociedade. Tal identidade imprimiu na vida de João Antônio um paradoxo, pois, “não pertence a nenhum dos mundos que retrata: nem malandro, nem intelectual” (MAGRI, 2010, p. 63) os malandros não o prestigiavam por não viver com o que a rua oferece e o autor repudiava o extremo academicismo dos escritores, que privilegiavam os ismos em voga, o que, no ponto de vista de João Antônio, dificultava uma reflexão sobre os problemas da vida brasileira. Para João Antônio, urge a “necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra”. (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 144) João Antônio, em seus depoimentos, sempre deixa claro sua preocupação em falar da vida brasileira, dos problemas que assolam e apavoram os moradores dos subúrbios. Dessa maneira, abordamos sua obra a partir de uma combinação entre a experiência pessoal, o imaginado e a criação ficcional. João Antônio é um malandro criado nas mais perigosas “curriolas”, o que poderia deixá-lo em um ponto de inércia intelectual tal grande que não conseguisse escrever nem o próprio nome, mas sua alfabetização literária – sempre cita os autores que iluminaram sua escrita, por exemplo, Lima Barreto, o maior, em seus depoimentos – permitiu-lhe uma consciência plena do que é fazer literatura. Cumpre-nos, antes, ressaltar a tarefa sempre difícil de distinguir até que ponto o autor se diferencia do narrador de suas obras ou até que ponto eles estão unidos por um sentimento íntimo através de uma incorporação da experiência do autor por parte do narrador. A crítica literária, a todo momento, ressalta a influência da biografia na obra de João Antônio, dessa maneira, dedicamos um pequeno espaço neste capítulo a duas entrevistas dadas pelo autor, explicando a sua tarefa de escritor e a relação desta com sua vida pessoal. Ambas as entrevistas trazem aspectos biográficos de modo a iluminar as obras e não um simples exercício narcisístico feito de maneira a conferir uma aura de escolhidos dos deuses aos entrevistados. Dessa forma, buscamos refutar a ideia de que suas personagens são meras cópias de pessoas com quem o autor conviveu ao longo da 62 sua vida, mas fruto de uma consciência literária capaz de transpor para seus contos a agilidade e a fluência da realidade. A primeira entrevista foi concedida a Beth Brait no livro A personagem, no qual a professora e crítica literária se debruça sobre os princípios de construção das personagens ficcionais. A entrevista foi publicada em um capítulo especial, no qual foram reunidos alguns depoimentos inéditos de escritores em atividade nas décadas 70 e 80, e respondiam a uma simples pergunta, porém, não menos árdua de responder: de onde vêm esses seres? A segunda, concedida a escritora Edla Van Steen, foi publicada com o nome Viver e escrever 1, que inaugura uma série de mais dois livros. A organizadora pautou suas perguntas de modo que pudesse extrair dos seus entrevistados o máximo de confissões, seja da arte de viver, seja da arte de escrever, porém não há uma padronização nas entrevistas, a escritora primou por eleger o que há de mais idiossincrático em cada escritor, se mostrando uma exímia conhecedora da obra destes. Em entrevista a Beth Brait, João Antônio, sobre o processo de construção de suas personagens, afirma que elas são sugadas da vida. “Eles vivem, tenha a certeza. Vivem na vida e, depois, vivem no meu papel. Mas falar no processo de criação de cada um deles é material de longa conversa. Claro que se eu não os amasse, não teriam o que têm em termos de vida ” (BRAIT, 1987, p. 79). Essa afirmação mostra a coerência entre a sua obra e a sua poética de corpo-a-corpo com a vida, ou seja, sua obra não só é, essencialmente, retirada da sua experiência pessoal, como essa vivência de mundo é um sopro vitalizador das suas personagens. A desconhecida vida de nossas favelas, local onde mais se canta e onde mais existe um espírito comunitário; a inédita vida industrial; os nossos subúrbios escondendo quase sempre setenta e cinco por cento de nossas populações urbanas; os nossos interiores – os nossos intestinos, enfim, onde estão em nossa literatura? Em seus lugares não estarão colocados os realismos fantásticos, as semiologias translúcidas, os hipermodelismos pansexuais, os supra-realismos hermenêuticos, os lambuzados estruturalismos processuais? Enquanto isso, os aspectos da vida brasileira estão aí inéditos, não tocados, deixados pra lá, adiados eternamente e aguardando os comunicadores, artistas e intérpretes. (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 146) Nesse trecho, podemos perceber que João Antônio reivindica para si a função de intérprete das classes marginalizadas, porém sua função não é somente levar para o mundo da ficção o que aprendeu com sua vivência, desde sua tenra infância, no submundo da sinuca, da prostituição e da malandragem, mas também transformar essa matéria em uma literatura sem enfeites. 63 Essa combinação entre vida e arte é referida pelo autor ao explicar, sinteticamente, a maneira que encontrou para transpor o movimento das mesas de sinuca para as páginas do conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”. O trecho abaixo é bem elucidativo do seu fazer literário e se encontra na coletânea de depoimentos de autores consagrados acerca do ofício de escritor organizada pela, também, escritora Edla Van Steen. Uma das perguntas feitas a João Antônio consistia em saber como o autor transpôs para a ficção a realidade vivida por ele. Malagueta foi o último conto que escrevi do meu primeiro livro, e eu imaginava nele fazer toda uma demonstração daquele mundo ligado à sinuca, através do dinamismo e dos movimentos de toda uma partida de sinuca, que começa pela bola 2 e termina pela bola 7, podendo recomeçar em outra partida. E um moto-contínuo, inteiramente desmontável, como uma partida de sinuca que, dependendo da habilidade do jogador, poderá se desdobrar em muitas outras (JOÃO ANTÔNIO apud VAN STEEN, 2008, p. 209) Ainda nessa entrevista o autor narra um fato interessante e revelador do poder transformador da escrita ficcional, que ocorreu quando João Antônio levou os originais de Malagueta, Perus e Bacanaço para serem lidos pelos jogadores de sinuca, após a leitura, o jogador que o inspirara a criar a personagem Bacanaço discutiu ferozmente com o autor por entender que a história do conto não correspondia com a realidade, apesar de o escritor afirmar que não havia imaginado nada sobre a história, apenas coletou de uma experiência vivida os fatos que o levou a escrever o conto. O escritor preconizava uma literatura que não estivesse a serviço senão da vida do povo brasileiro, denunciadora da condição sub-humana a que estavam sujeitos os moradores das favelas e dos subúrbios. Dessa maneira, entendia que o escritor que se dispusesse a narrar o submundo não poderia ser severamente obediente a convenções impostas por quaisquer movimentos literários, mas deveria voltar seus olhares a realidade desses ambientes e criar uma nova maneira de transmitir as necessidades desta camada da população. Fábio Lucas em “Reflexões sobre a obra de João Antônio” afirma que na obra do autor existe uma combinação perfeita entre o popular e o refinamento erudito, pois reverencia tanto os virtuosos do taco, Carne Frita, quanto os da pena, Lima Barreto, Machado de Assis e Graciliano Ramos. O seu convívio com malandros, prostitutas, jogadores de sinuca, trabalhadores humildes, contínuos de repartições entre outros integrantes de uma classe quase sempre escondida nos subúrbios e nas favelas não o permitiu outra escolha senão retratá-los em sua obra. 64 O universo da malandragem, que se espalha por bares, sinucas, bocas de fumo e cafuas, a sua ética, os seus contatos com a periferia pobre e trabalhadora ou com os segmentos mais corruptos da polícia, os dramas dos soldados na caserna, os namoros de pessoas humildes e desempregadas, eis o território humano de que João Antônio extrai o melhor da sua ficção. O contista se especializou em explorar o coeficiente de marginalidade das categorias humanas menos legitimadas. E fixou com arte e cortante poder de expressão o pacto da malandragem como forma de confronto com a ordem estabelecida. (LUCAS, 1999, p. 91) De que maneira poderíamos cotejar, por exemplo, um Paulinho Perna Torta com um ser humano real de carne e osso que vive andando pelas ruas de São Paulo? Poderemos, sim, afirmar que o Paulinho Perna Torta, personagem de João Antônio, protagonista do conto homônimo, simboliza um sem números de pessoas desvalidas, aprendendo a vida nas ruas e com enorme potencial de transformar-se de malandro a marginal. Suas personagens são “capturadas” pelo autor em suas andanças pelas duas maiores metrópoles brasileiras. Seu espírito “rueiro” é transposto em cada linha de seus contos, tanto os de cunho mais ficcional quanto os de cunho mais jornalístico, e em cada traço que define suas personagens. O essencial é que nenhum personagem de João Antônio esta em sua medida. Um sopro transformador os desengonça a todos: eles se fazem símbolos, ao invés de ‘retrato fiel’, à la naturalismo do século XIX. São símbolos de uma peregrinação universal, daqueles que não tem nas mãos o próprio destino. João Antonio não bate fotos. Pinta quadros apaixonadamente deformados. (AGUIAR apud AGUIAR, 1999, p. 108) João Antônio transporta para as páginas dos seus contos as pessoas com quem ele manteve contato, porém, nesse processo, transformam-nas em personagens e, dessa maneira, o escritor precisa seguir técnicas narrativas próprias na confecção de uma obra literária a fim de torná-las verossímeis dentro do enredo que fora criado e articulado por ele, a partir de fatos, passagens da vida. No ensaio “Crítica e sociologia”, Antonio Candido (2010, p. 14-15) enfatiza a necessidade de compreender os fatores que compõem a organização da estrutura de uma obra literária. É este, com efeito, o núcleo do problema, pois quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar. 65 Dessa forma, ao analisarmos a transposição de dados da realidade para o texto ficcional é necessário que consideremos os materiais não-literários como elementos constitutivos do texto literário, portanto, em uma análise crítica, estes elementos devem ser concebidos como agentes da estrutura a fim de se tornarem componentes essenciais filtrados e organizados pela consciência estética do autor. Antonio Candido (1981, p. 58) em “As personagens do romance” afirma que o sentimento de realidade advém da construção da personagem dentro da estrutura do enredo. Candido, ainda, afasta a idéia de uma correlação factual entre pessoas e personagens, tendo em vista as idiossincrasias na formação, digamos, espiritual de cada um desses seres. As pessoas são, minimamente, perceptíveis, no que diz respeito seu aspecto físico, porém seu mundo psíquico nos oferece um gama insondável de possibilidades existenciais, enquanto as personagens são elaboradas a partir do material que o escritor dispõe para criar um sentimento de verdade. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Autran Dourado em Uma poética de romance corrobora o pensamento de Antonio Candido e afirma que tanto o romancista quanto o psicólogo se utilizam de técnicas associativas, porém cada um com suas finalidades próprias, no romance como técnica narrativa, na psicologia, como terapêutica. Dessa maneira, pensamos que ficar preocupados se João Antônio copiou ou inventou suas personagens não seria profícuo para o nosso trabalho, pois procuramos em João Antônio as singularidades da construção do seu texto literário e de que maneira este comunica-nos uma possibilidade do real e não o real em si. Dessa maneira, nosso trabalho consiste, sobretudo, em analisarmos as obras de cunho, nitidamente, mais ficcionais; portanto, pensamos ser necessário notar como o autor construiu suas personagens de modo a conferir-lhes autenticidade, com forma própria de existir, utilizando-se de recursos dentro da especificidade do texto ficcional. Mesmo quando o romancista pretende que está retratando uma pessoa da vida real, que ele tenha conhecido, o que na verdade está fazendo não é retratar a pessoa real mas transpor para o romance uma figura que agora existe dentro dele (a pessoa real pode morrer, que continuará a viver na memória do autor); uma pessoa real filtrada pelas lentes da memória e da imaginação, subordinada à composição do livro, tendo o 66 romancista de aumentar ou diminuir ou mesmo apagar os seus traços mais marcantes, segundo o ritmo e a necessidade estrutural da obra. (DOURADO, 1976, p. 77) Dessa forma, procuramos não abordar as personagens de João Antônio como meras representações da realidade, no que diz respeito a mera transposição de pessoas reais para o texto literário, pois, assim estaríamos desqualificando seu poder efabulação da trama e de elaboração das personagens. 3.1- PRIMEIROS PASSOS: A INFÂNCIA NA MALANDRAGEM A ausência de estrutura e o desamparo familiares são os principais fatores que impulsionam as personagens dos contos de João Antônio a procurar fora de seus lares o abrigo afetivo que lhes falta em casa. A privação de uma convivência saudável os obriga, a despeito dos perigos e das dificuldades da vida errante, a buscar na rua o que lhes é negado em suas casas: uma referência em que se espelhar. Antônio Hohlfeldt sobre a temática da infância e a ausência da proteção familiar em João Antônio assevera: Aliás, verifica-se que por vezes a própria família é excludente, seja no sentimento vivido, por exemplo, pelo menino de “Bolo na garganta”, seja na melancolia do adolescente de “Visita”. A compensação substituidora pode chegar através de novas amizades e proteções, não obstante serem as mesmas perigosas porque interesseiras, como em “Frio” e “Paulinho Perna Torta”. A ausência de infância como estágio especialmente prolongado e protegido do ciclo vital é regra geral, e a iniciação sexual precoce é consequência até mesmo de abusos e violências cometidas no próprio ambiente familiar, como em “Mariazinha Tiro a Esmo”, violentada pelo próprio pai. (HOHLFELDT, 2001, P.11) Temos um ótimo exemplo no conto “Meninão do caixote”, no episódio em que menino entra no bar para se abrigar da chuva e, ao notar que havia um jogo de sinuca, pede para assistir e o malandro Vitorino com um sorriso aberto permite. “– Mas é claro, garotão. Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito às surras, aos xingamentos leves e pesados que um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 84) A infância em João Antônio é sempre marcada pela ausência de afeto e de atenção no núcleo familiar, criando traumas que vão acompanhar as personagens durante suas intensas trajetórias de vida nas mesas de sinuca e nas perambulações pelas 67 cidades. Para completar a lacuna que as carências afetivas, as crianças projetam nas figuras de malandros mais experientes a imagem de um pai protetor e do conselheiro. O menino Perus tem profunda admiração pela experiência dos malandros Malagueta e Bacanaço; Paulinho Perna Torta tem como mestre conselheiro o seu “padrinho” Laércio Arrudão e Nego, a todo o momento, relembra os conselhos e os costumes do seu protetor, Paraná. Todos eles são, portanto, aprendizes da rua, discípulos de malandros mais experientes que estão nos bares para investir tanto nos otários quanto em aprendizes, para satisfazer um dos maiores desejos do malandro: ser admirado ao ponto da reverência absoluta. No conto “Frio”, a narrativa se desenvolve através do ponto de vista de um menino de apenas dez anos, Nego. Ele perambula pela cidade de São Paulo, à noite, para satisfazer um pedido de seu protetor, Paraná. Ao lermos o conto, o título do conto vai ganhando força, não só por nos remeter ao clima gélido das madrugadas paulistanas, mas também, ao estado emocional da criança, desamparada física e emocionalmente. O monólogo interior, através do qual o menino vai revelando suas percepções da cidade, é, também, revelador do seu estado íntimo de desamparo afetivo. As imagens de Paraná, de Lúcia e de seu Aluísio, estão sempre presentes durante seu percurso. Lúcia e seu Aluísio constituem para o menino um mundo diverso do seu, pois, pai e filha são a representação da afetividade e do carinho ausentes em sua vida. Lúcia revela para Nego um mundo desconhecido, um mundo repleto de imagens de navios, de trapezistas, etc. que se misturam à sua dura realidade de engraxate. O menino gostava de conversar com ela, porque Lúcia lhe fazia imaginar uma porção de coisas suas desconhecidas: a casa dos bichos, o navio e a moça que fazia ginástica em cima duma balança – que o pai dela chamava de trapézio. Na sua cabeça, o menino atribuía à moça um montão de qualidades magníficas. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 63) Seu Aluísio conta-lhe piadas que o divertiam mais pelo modo de contar do homem do que, propriamente, por seu conteúdo. Seu Aluísio e Lúcia representam para Nego a família que este não possui. Em seu fluxo de pensamentos, durante sua caminhada, o menino rememora os momentos felizes que passou ao lado de ambos como uma forma de preencher um vazio existencial. Os pensamentos do menino se atropelam e às imagens de Lúcia e de seu Aluísio soma-se a de seu protetor, Paraná. A figura de seu “mestre” é onipresente nos pensamentos do menino; o respeito por Paraná é tão grande que os conselhos deste surgem, durante o percurso, 68 reprimindo as atitudes e pensamentos que possam desviar o menino do objetivo que fora traçado por Paraná; Nego tinha que estar sempre com o “– olho vivo – como dizia Paraná.” O malandro ensinou tudo para o menino poder “se virar” nas ruas, e, por isso Nego o idolatra. Esse é o conselho que os malandros julgam ser o mais importante a ser dado a seus aprendizes, com o intuito de ensinar-lhes o que é a vida, porque, para a malandragem, a vida se aprende na rua, transpondo os perigos que esta oferece. Paraná, ciente da frieza das relações humanas e das dificuldades impostas pelas ruas, protege seu aprendiz com uma manta para afastar o frio, forra os calçados para a longa caminhada e lhe dá dinheiro para uma eventual necessidade. Pequeno, feio, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e da casa daquela Nora, lá na Barra Funda. Tirante o que, Paraná era branco, ensinara-lhe engraxar, tomar conta de carro, lavar carro, se virar vendendo canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 61) Admiração de Nego por Paraná é tamanha que este tem ciúmes quando seu mestre não lhe dedica a mesma atenção que dispensa às mesas de sinuca e a Nora, sua amante. O afastamento de Paraná deixava o menino ensimesmado, com medo do mundo. “Ele sempre sentia um pouco de medo quando Paraná estava girando longe.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 63) Todavia, Nego não desconfia que o afastamento temporário de Paraná seja mais uma forma de ensinar-lhe o que é a vida na malandragem, pois, ao tornar-se adulto, não terá mais um protetor, terá que encarar sozinho as virações da rua, nas mesas de sinuca, nas perambulações pela cidade e na exploração de mulheres. O afastamento de Paraná é, na concepção do menino, algo temerário tendo em vista que simboliza a perda de seu referencial familiar e paternal. Nego teme que Paraná possa ser preso, mas afugenta logo a idéia por confiar na esperteza e na sagacidade de seu protetor. “Será que os guardas iriam agarrar Paraná? Ouvira que a cana é lugar ruim, escuro, onde se apanha muito. Contudo, Paraná era muito vivo, saíase bem de qualquer galho. Sossegou. Depois, resolveu perguntar se ele apareceria mesmo.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 61) Apesar de ter na extrema confiança na figura do malandro Paraná, Nego é “condenado” a caminhar solitariamente pelas ruas frias de São Paulo, e, para aquecer 69 seu corpo e sua alma, surge a ideia de tomar um copo de leite quente, que logo afugenta na sua obstinação de servir com fidelidade ao seu protetor. O parco conhecimento da vida devido sua pouca idade “o menino tinha só dez anos.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 59) se traduz na obediência cega em Paraná. Muitos são os momentos que fazem o menino parar sua caminhada, porém, sempre que vê sua andança ser interrompida por sua natural curiosidade de criança a imagem de Paraná o impele a continuar seu caminho. Na segunda travessa, topou com um cachorro morto. Longe, já o divisara. Assustou-se com as deformações daquele corpo na beirada do asfalto. Analisou-o de largo, depois marchou – O coitado engraxou uma roda. Ficou com pena do cachorro. Deveria estar duro, a dor no desastre teria sido muito forte. Não o olhou muito, que talvez Paraná estivesse no ferro-velho. A vontade forte seguia com ele. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 66) Ao chegar ao ferro-velho, o menino constata que o muro não é tão grande quanto o advertira Paraná. Entra em conflito o que fora narrado pelo malandro e o que o menino imaginou na sua cabeça infantil. Paraná apenas o informou que deveria pular o muro, não alertou sobre a altura nem sobre a dificuldade de transpô-lo. O muro é, para Nego, símbolo das vicissitudes que deverá encarar na sua vida solitária. No ferro-velho não encontra Paraná e se aflige, o medo e o desamparo são intensificados pela sensação de frio e pela ausência de pessoas. “repulou o muro. ainda olhou para a avenida. Frio. Queria ver um vulto. Ninguém. Não havia nada.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 67) Estes sentimentos tornaram aguda sua vontade de urinar. O menino não urinara, durante a caminhada, por medo de ser pego e prende a vontade de urinar até chegar ao seu destino, o que aumenta o seu sofrimento e o seu “heroísmo”, simbolizando seu desgaste físico e emocional. O conto se encerra com o menino dando vazão à sua vontade de urinar junto ao muro, no qual despeja todo o seu medo de não conseguir alcançar o objetivo traçado pelo seu protetor, Paraná, e dessa maneira sentirse aliviado de ter cumprido seu dever e não ter decepcionado seu mestre. Uma infância despida de imagens romantizadas é o que oferece o conto “Frio”. Ao deitar-se para dormir olha para as folhas de flandres e observa os objetos enferrujados ao seu redor, nota que na escuridão não há luar para iluminar sua imaginação pueril e as imagens que representam seu mundo são as do cachorro morto e 70 a ferrugem, elementos repulsivos que representam o mundo real no qual está, irremediavelmente, inserido. O medo e o desamparo são constantes na trajetória do menino e são reverberados pelo vocábulo frio, que nomeia o conto e aparece a todo o instante na narrativa, denotando a intensa aridez que permeia a andança solitária de um menino que aprende o sentido da vida na “friagem do asfalto”. A frieza das relações familiares, também, é encontrada no conto “Meninão do caixote”. Nesse conto, é narrado o modo como o distanciamento afetivo entre uma criança e seus pais promovem uma lacuna na alma do menino que encontra na mesa de sinuca o amparo e atenção que lhe são negados em casa. O próprio menino narra em primeira pessoa a sua transição da infância para a adolescência, uma vida de um menino acostumado a levar surras da mãe e a constante ausência do pai, que descobre a amabilidade nos bares e nas mesas de sinuca pelas mãos do malandro Vitorino. O narrador de “Meninão do caixote”, para Flávio Aguiar, em “Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno”, faz malabarismos com o ponto de vista narrativo: Sua carência afetiva é evidenciada logo no momento em que o narrador começa a narrar a gênese do sentimento de vazio que assola a alma do protagonista, fato que o levou, posteriormente, ao mundo da sinuca. A sensação de uma vida esvaziada de afeto é recorrente nos contos em que João Antônio focaliza o período da infância e da adolescência das personagens. Na rua vazia, calada, molhada, só chuva sem jeito; nem bola, nem jogo, nem Duda, nem nada. Quando papai partiu no G.M.C., apertei meu nariz contra o vidro da janela, fiquei pensando nas coisas boas de Vila Mariana. Eram muito boas as coisas de Vila Mariana. Carrinho de rodas de ferro (carrinho de rolimã, como a gente dizia), pelada todas as tardes, papai me levava no caminhão... E eu mais Duda íamos nadar todos os dias na lagoa da estrada de ferro. Todos os dias eu mais Duda. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 82) A alma da personagem é reflexa da rua vazia e calada. Em casa, o menino era constantemente surrado pela mãe, sempre nervosa em virtude da ausência do marido. O menino sempre imaginando por onde possa estar andando o pai no seu enorme caminhão G.M.C., que ele comparava sua extensão à imagem grandiosa que daquele pai, que quando estava presente satisfazia todas as usas vontades como para sua suprir suas ausências. 71 Era um caminhão, que caminhão! Um G.M.C. novo, enorme, azul, roncava mesmo. E a carroceria era um tanque para transportar óleo. Não era caminhão simples não. Era carro-tanque e G.M.C. Eu sabia muito bem – ia e voltava transportando óleo para a cidade de Patos, na Paraíba. Outra coisa – Paraíba, capital João Pessoa, papai sempre me dizia. Mamãe não gostava daquele jeito de papai, jeito de moço folgado, que sai e fica fora o tempo que bem entende. Também não gostava que ele me fizesse todos os gostos, pois, estes ele fazia mesmo. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 83) Podemos dividir o conto em quatro partes, as divisões são perceptíveis por um espaçamento maior entre os parágrafos. Na primeira, de apenas três parágrafos, resume as conclusões do garoto acerca da sua aventura em volta das mesas de sinuca e o fim do seu tutor em uma digressão; na segunda, quando rememora sua infância até entrar para o mundo da sinuca; na terceira, narra, efetivamente, a sua entrada e a sua permanência nos botecos e nas sinucas e como se opera a transformação de simples menino no famoso Meninão do caixote e, finalmente, na quarta, narra como a mãe o resgata das mesas de sinuca para trazê-lo de volta ao lar. O menino entra pela primeira vez no Bar Paulistinha para comprar leite, pois não havia encontrado na venda e onde teve que ficar por mais alguma tempo para se abrigar da tempestade que se iniciava. Pede um espaço para observar o jogo de sinuca que acontecia e recebe a resposta de “um homem feio, muito branco, mas amarelado ou esbranquiçado, eu não discernia”, homem de olhos sombreados, fundos e atentos à mesa de sinuca, marcaram o imaginário do menino. A resposta, a despeito da fisionomia execrável do homem, é dada de forma amável e com um sorriso franco. – Mas é claro, garotão! Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito às surras, aos xingamentos leves e pesados que um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 85) Esse homem é Vitorino, seu futuro patrão e padrinho na malandragem. Como podemos notar, na ausência da família e, principalmente, da figura do pai (no conto “Frio”, em momento algum surge o nome dos pais de Nego) há uma tendência de que as crianças e os adolescentes transfiram para outra pessoa, que obviamente esteja disposta a ensinar as “malandragens da vida”, ou, simplesmente, dispense alguma atenção aos jovens. É neste momento que surgem os padrinhos e os patrões. O padrinho é, segundo a tradição católica, é aquele escolhido pelos pais da criança para batizá-la, a escolha se dá por afeto destes ou, simplesmente, por ter condições financeiras razoáveis 72 para amparar o afilhado e será aquele que na ausência do pai, principalmente por motivo de falecimento, irá substituí-lo, ajudando na formação do afilhado. É o que ocorre no mundo da malandragem, todavia, o pai não é substituído somente por motivo de falecimento, mas também pela simples ausência afetiva. A substituição é tão normal que costumamos ouvir a seguinte frase “quem tem padrinho, não morre pagão.” Em clara referência às situações de dificuldade que a pessoa possa vir a passar em sua vida cotidiana saber a quem poder recorrer para ajudá-la. O patrão, na linguagem dos jogadores de sinuca, e, na definição do próprio João Antônio, “é o homem que patroa ou patrona. O resultado do jogo, o ganho, é dividido sagradamente, meio a meio. Metade para o patrão ou patrãozinho, e o restante para o empregado ou cavalo.” (1975, p. 108) Em “Meninão do caixote”, contudo podemos perceber que o dinheiro ganho pelo menino não é dividido igualmente e a exploração no jogo surge de maneira semelhante ao do mundo capitalista, onde os operários veem o dinheiro ganho com suas mãos esvaírem-se no lucro do patrão e de outros ocasionais exploradores. Vitorino era o patrão, eu ganhava, dividíamos a grana. Aquilo. Aquilo me desgostava. Ô divisão cheia de sócios de nomes, de mãos a pegarem no meu dinheiro! Por exemplo: ganhava um conto de réis. Dividia com Vitorino, só me sobravam quinhentos. Pagava tempo e despesas, já eram quatrocentos. Dava estia ao adversário: lá se iam mais dez por cento – só me sobravam trezentos. Dez por cento sobre um conto. Dava alguma estia... Ganhava um conto de réis, ficava só duzentos. Estava era sustentando uma cambada, sustentando Vitorino, seus camaradas, suas minas, seus... – Um dia mando tudo pra casa do diabo. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 91) Meninão, após uma rápida contabilidade, se conscientiza de que está fazendo papel de otário e mesmo tendo se tornado um exímio jogador, “um grande taco”, logo, a vontade de abandonar as mesas de sinuca surge. Não consegue, porém, deixar o jogo de imediato, pois, somada à ausência do pai, a lábia de Vitorino o persuadia facilmente. Após várias tentativas de abandonar o jogo “larguei uma, larguei duas, larguei muitas vezes o joguinho.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 92) a muda resignação da mãe que muitas vezes via-o chegar em casa esperava-o deitar-se e, chorando, ia cobrir-lhe o corpo, o constrangia e, paradoxalmente, o fortaleceu no seu intento de deixar o jogo. O momento final é construído com profunda sensibilidade e por um lirismo arrebatador e comovente. A mãe entra no salão e põe uma marmita com o almoço para o 73 filho, a situação o leva a um irremediável choro e o faz lembrar os grandes mestres da sinuca, homens violentos com o taco na mão, que derrotara sem dó, em apenas dois anos. Mas, a mãe o convencera com um singelo ato de amor, que lhe fora negado durante o período que antecedera ao das mesas de sinuca. Apesar dos apelos dos seus confrades e de suas vítimas, o Meninão do caixote, de chofre, abandona o bar e vai ao encontro de sua mãe que subia a rua em direção a sua casa e segura a sua mão, se olham, nada dizem um para o outro e sobem a rua juntos. Sua ânsia por voltar a ser um garoto normal, que freqüenta, a escola e abandonar o mito de Meninão do caixote em que se transformara é alcançada, após ultrapassar a cortina verde que separa o salão do resto do bar. A cortina aparece como um símbolo de transformação da personagem em alguém comum, como ocorre no teatro. O fim do mito de Meninão do caixote é, também, o fim do seu patrão Vitorino, se este lhe ensinou os truques da sinuca a fim de explorá-lo na sua ingenuidade, o menino abandona as mesas de sinuca sem se importar com o que poderia acontecer com o seu mestre, que terminou “curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos”. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 81) Na primeira parte do conto, podemos sentir a acidez na fala do protagonista, que nos revela, com um tom de vingança, o que ocorreu com Vitorino, após abandonar o jogo e o mestre. Sua admiração transformou-se me ódio. O mesmo não ocorre com o menino Perus, no conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, no qual o menino Perus não se livra da vida do “joguinho” por não desejar, porque o jogo, para ele, se constituiu, efetivamente, como modo de ganhar a vida. O conto compõe com “Frio”, “Visita” e “Meninão do caixote” a seção intitulada Sinuca, na obra homônima. As narrativas que possuem como tema central o universo do jogo mostram como João Antônio preocupava-se em representar a infância desvalida, sem perspectivas de crescimento pessoal. A despeito do conto “Meninão do caixote” ter um final que aponta para uma solução devido ao fato de o protagonista não ser abandonado totalmente pela família. Não encontramos, pois, tal solução para o menino Perus em “Malagueta, Perus e Bacanaço. No início do conto já vemos o menino imerso no mundo da rua e da malandragem e, inexoravelmente, lutando pela sua sobrevivência. E o menino sabe que se isolar no universo noturno da vida paulistana é saber que será logo devorado por 74 outro habitante da noite e que o melhor a fazer é associar-se a alguém que o proteja e o ensine a viver neste ambiente. Sua admiração por Bacanaço é tão grande que ao ser “convidado” para uma partida emudece e se apequena diante daquela figura desafiadora. “Calado. O anelão luzia no dedo do outro e o apequenava, largava-o de olhos baixos, desenxabido. O menino Perus chutou para longe uma ponta de cigarro, arriou no banco central.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 99) Perus segue os mesmos passos de Nego e de Meninão, busca acolhida em um malandro maior, mais experiente, que possa ensinar-lhe os caminhos da sinuca e da malandragem. Perus e Bacanaço ainda têm a companhia de Malagueta, que a conselho de Bacanaço seria melhor se unirem senão os três destruiriam uns com os outros, além de a união fortalecer o grupo. Um esbagaçaria o outro e juntos se estralhaçariam. O velho os alertou, que era bom o conluio. Trabalhando os três, um pelo outro, rendia mais o joguinho, evoluíam-se trapaças na sintonia do embalo. E nem se atirassem a qualquer jogo como piranhas famintas. Dessem juízo, não bobeassem como coió que nunca enxergou dinheiro. (JOÃO ANTÔNIO, 1987 p. 121) No mundo da malandragem a menor desatenção pode ser fatal para qualquer malandro, sobretudo, para um iniciante na arte da malandragem. Perus, ao entrar no centro da cidade de São Paulo, se distrai contando as luzes da avenida São João, olhando os automóveis que passam vertiginosamente e pensando nas bolas encaçapadas e este exercício mental de Perus incomoda seu mestre Bacanaço que o alerta sobre os perigos de estar desatento na noite. “– Vai levar muita porrada se quiser ser um virador, seu coió de mola!” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 125) A viveza de espírito dos malandros mais velhos contrapõe-se a certa timidez de Perus. Ele é, ainda, um aprendiz e os malandros mais velhos sabem que não podem deixá-lo a mercê de outros malandros. Como no episódio em que o policial silveirinha intimida Perus no bar Paratodos e o menino sofre calado, amedrontado e é salvo por Bacanaço que entrega ao policial uma nota de quinhentos. Durante o episódio, o narrador transmite a tensão interior de Perus “o menino tinha um bolo na garganta, feito espeto atravessado”, uma nova situação se impunha para o menino, que na sua timidez não sabia o que fazer. Sua dificuldade em sair daquela situação é patente e seu drama se intensifica com a repetição da frase “piranha esperava comida” que soa como uma batida de martelo dilacerando seus pensamentos. 75 Queria pensar em coisas diferentes, longínquas, estupidamente caçava atar um fio que começava pela mesma ideia e se estraçalhava logo e tornava ao começo. E assim. Não era de hoje que sentia vontade dos joguinhos de Vila Alpina. Se desse sorte... A coisa voltava à garganta, via Silveirinha, o pensamento se perdia.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 132) No final do conto, os três topam com Robertinho, grande jogador de sinuca, “grande taco”, nas palavras do narrador. Perus é o único que conhece o malandro e sabedor da grande habilidade do homem fica na expectativa de seus companheiros não o chamarem para o jogo. “Perus sofria” com a situação, mas “não poderia dizer um a”, porque, pela sua condição de aprendiz, teria que ficar calado e esperar a decisão dos seus comparsas. O menino sofre e aprende que no mundo da malandragem existem os dias de vitória e os dias da derrota. Tem que aturar achincalhações de outros malandros mais vividos para aprender o ritmo dessa vida “sem eira nem beira”, aprender a “charla” da maladragem. Aprender as leis da malandragem, aprender a hora de falar e de se calar, a respeitar aquele que não conhece e não pode repetir o que fizera o malandro Bacalau que “quis ser mais malandro que a malandragem e isto o perdeu.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 103) Nos três contos, temos a representação da infância e da adolescência no universo da malandragem. Três jovens que têm suas vidas acolhidas pela malandragem. Nego, do conto “Frio”, tem apenas dez anos de idade; Meninão, não chega aos quinze e Perus, dezenove. Os três estão entregues aos dissabores da vida e buscam na experiência de malandros o aprendizado que não recebem em seus lares. Meninão do caixote é o único dos três que se rebela contra seu mestre. O início do conto é o final da narrativa, no qual, conscientemente, o garoto afirma que não sucumbiu à exploração de Vitorino. “Fui o fim de Vitorino. Sem meninão do caixote, Vitorino não se aguentava.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 81) Nego não poderia ter semelhante atitude, pois, sua pouca idade o impedia de ter esta autonomia. Perus, por seu turno, já estava dependente da vida entre os malandros e não poderia sair, uma vez que já estava corrompido pela noite. No trecho abaixo se compara a outros jovens de sua idade e constata que não pertence aquele mundo de namoros e noivados. 76 E os trouxas? Noivando ou namorando, por aí, nas esquinas, nos cinemas. Ou dando dinheiro a mulher, que é o que sabem fazer. Os tontos. E quando apareciam, gordos de dinheiro, otários oferecidos, era fora de hora e era sempre outro malandro quem os abocanhava. Ele? Nem almoço nem janta. Sinuca, grande estrepe... Pôs-se a tamborilar, lento, contando as batidas. Pensou nos joguinhos de vila Alpina. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 106) Perus fugiu da casa da tia, onde briga, constantemente, com o amante desta; fugiu, também do quartel e é perseguido pela polícia do exército e pela polícia civil. Vive da sinuca e de pequenos furtos dentro de conduções. Meninão do caixote é, constantemente, surrado pela mãe e sofre a ausência do pai. Em “Frio” não há qualquer referência à família de Nego. Meninão, o único que conseguiu se desvencilhar da malandragem, pois teve na figura da mãe o ponto de apoio para deixar, efetivamente, o jogo. Em João Antônio, portanto, a infância é representada pelo desamparo e pelo abandono familiar e pelo encontro no mundo da malandragem com indivíduos acolhedores que lhes ensinarão “o pulo do gato” para encarar a realidade sempre adversa que os engole e corrompe. 3.2 – A MALANDRAGEM De um jeito ou de outro, o líquido e o certo é que Malagueta, Perus e Bacanaço é, talvez, mais sinuca que literatura. (João Antônio) Em “corpo-a-corpo coma vida”, João Antônio defende que os escritores devem encarar a literatura e o povo de frente, sem salamaleques. “Uma literatura que rale nos fatos e não se rele neles”. E o autor, efetivamente, o faz. Seus contos trazem, irremediavelmente, a marca do povo brasileiro, sua vida, suas lutas, suas glórias e suas derrotas. João Antônio transpôs para as páginas de seus contos toda uma gama de personagens, que seus narradores nos apresentam sem pieguices, sem fricotes e sem compadecimentos. Mostra o submundo, problematiza a falta de assistência à população das camadas mais baixas da sociedade. Seus contos falam de crianças desamparadas, de marginais, de merdunchos, de otários e de malandros. Este capítulo, portanto, abordará a malandragem, sua formação e sua atuação. Sua relação com os otários, seus apadrinhamentos, sua ética e outros 77 “conluios”, também, merecerão destaque. Dessa forma, a primeira pergunta que se impõe é como podemos definir o que é o malandro. O antropólogo Roberto DaMatta (1997, p. 263) define desta maneira: “O malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se.” A definição antropológica de DaMatta encontra uma fiel descrição literária na figura do malandro Bacanaço, no conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”. No início do conto, onde é narrado o encontro dos três malandros, Bacanaço se aproxima da porta do bar, onde os três estão reunidos, e percebe a movimentação das ruas, nota um casal que namora com pouca intimidade, os vendedores de jornais, uma velha cega que esmola e, principalmente, as pessoas voltando dos seus respectivos trabalhos, apertados nas conduções correndo de um lado a outro. Acerca da movimentação, Bacanaço filosofa: Trouxas. Não era inteligência se apertar naquela afobação da rua. Mais um pouco, acendendo-se a fachada do cinema, viria mais gente dos subúrbios distantes. A Lapa ferveria. Trouxas. Do Moinho Velho, do Piqueri, de Cruz das Almas, de Vila Anastácio, de... do diabo. Autos berrariam mais, misturação cresceria, gente feia, otários. Corriam e se afobavam e se fanavam como coiós atrás de dinheiro. Trouxas. Por isso tropicavam nas ruas, peitavam-se como baratas tontas. Há espaços em que o grito da cega esmoleira domina. Aquela, no entanto, se defende com inteligência, como fazem os meninos jornaleiros, os engraxates e os mascates. Com inteligência. Não andam como coiós apertando-se nas ruas por causa de dinheiro. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 105) (grifos nossos) O malandro cujo apelido, o superlativo de bacana, se deve ao fato de vestirse com esmero, veste roupa branca, calça sapatos lustrosos e usa um brilhante anel, é um crítico feroz do comportamento dos trouxas. Em seu pensamento exteriorizado por uma parceria narrativa entre a personagem e o narrador, no primeiro parágrafo em que descreve a afobação dos trabalhadores cita três vezes a palavra “trouxas” e uma vez as palavras “otários” e coiós”. Essas palavras fazem referência à massa de trabalhadores que é vista de maneira negativa por Bacanaço, pois usam, na sua concepção, um meio pouco inteligente de sobreviver: o trabalho assalariado. No segundo parágrafo, o malandro descreve aqueles que, no seu ponto de vista, usam a inteligência para ganhar dinheiro. Não se afobam, não são coiós, ficam à espreita da massa que desce e sobe das conduções e se apiedam da condição dos pedintes. 78 O trecho acima é significativo, pois, ilustra, com primor, a maneira como os malandros encaram com aversão o mundo do trabalho. Este sentimento não é, contudo, gratuito; os malandros sabem que as compensações financeiras não são suficientes para dar um mínimo de conforto ao trabalhador. Um belo exemplo encontramos no conto “Três cunhadas – natal de 1960”, no qual o angustiado protagonista sofre as necessidades impostas pelos desejos de sua mulher em agradar suas irmãs. O homem perambula pelo centro do Rio de Janeiro contando suas parcas economias para comprar presentes natalinos para suas cunhadas, pela quais não tem nenhuma afeição. Essa condição não condiz com a maneira de pensar do malandro; o trabalho, para o malandro, significa esforço, fadiga e, consequentemente, sofrimento. O trabalho automatiza os seres, devido ao seu caráter obrigatório e rotineiro e não produz para o trabalhador nenhum ganho efetivo. Podemos observar, por exemplo, que aquelas pessoas ironizadas por Bacanaço, à porta do bar, não ganham suficientemente para alcançar condições melhores de vida e estão enriquecendo seus respectivos patrões, além de viverem sempre assombrados pelo fantasma do desemprego, o que os lança, desesperadamente, naquela faina exasperadora. Na concepção do malandro, as pessoas trabalham não só para ganhar o seu próprio sustento, mas também para satisfazer convenções sociais. Nesse sentido, o malandro se opõe ao mundo reificado imposto pelo mundo trabalho, dedicando as horas do seu dia a ficar em bares e mesas de sinuca, o que, na visão daqueles trabalhadores afoitos, transforma-o em marginal, porém, na sua visão, essa forma de vida o permite não se submeter a funções sociais padronizadas, de muito esforço e pouco lucro, prefere, assim, ele mesmo instituir seu modo de viver de acordo com as suas necessidades e anseios, como forma de culto à sua condição de marginalizado. Dessa maneira, preferem ficar à espreita, nos bares e nas esquinas, para aproveitarem, maliciosamente, a ingenuidade daqueles que tentam aumentar sua renda no jogo. “O salão era na Lapa, era o velho Celestino, treze mesas, jogos bons, parceirinhos coiós. Catava-se ali muito trouxa do subúrbio, motoristas, operários, mascates, homens de sacaria, gente de estrada de ferro.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 102) Essas figuras, os coiós, entram no mundo da malandragem e, não raro, se dão mal, como aconteceu com Sorocabana que perdeu seu salário-prêmio de vinte anos de trabalho para o malandro Bacalau, em apenas algumas horas, o dinheiro de uma vida inteira. Sorocabana, cujo apelido advém do fato de trabalhar na estrada de ferro de 79 mesmo nome, não conseguiu adaptar-se ao mundo da malandragem, pois, como dedica a maior parte da sua vida ao trabalho assalariado, que o esfalfa, não tem mais forças físicas nem intelectuais para se dar bem no jogo. Temos aí, um otário até no nome, pois carrega consigo o trabalho para todo lugar onde vai, ou seja, não se desvincula a um só momento do trabalho. Sorocabana é trabalhador, casado e tem três filhos, mas, como afirma o narrador, é “um inveterado, um pixote se metendo a gente, um cavalo-de-teta”, um homem que não está acostumado à malandragem, não possui o traquejo necessário para viver das mesas de sinuca, por passar mais tempo na lida diária do que nos salões, para os quais reserva apenas algumas horas da noite pára desafogo do turbilhão da rotina. “Sorocabana, coitado. Ficava na beirada da mesa, atrapalhando-se com o cigarro, tirando as bolas, falando sozinho.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 103) A sobrevivência do malandro depende da existência do otário; sem essa entidade 13 que encara o jogo como diversão não haveria a garantia de sustento do malandro e de outras criaturas noturnas. A descrição abaixo é coerente com o pensamento e a atitude da personagem Sorocabana. Otário, coió-sem-sorte, estrela, mocorongo, cavalo de teta, zé-mané, loque, pixote, trouxa, pangaré, joia, pato, paca, mondrongo, paíba são os nomes nacionais com que naquele território humano se denomina um animal vulgaríssimo, porém fundamental para a sobrevivência do joguinho. Sem ele não há perspectivas nem para os iniciados, nem para os sabidos. Sem ele, a malandragem na sinuca é um martelo sem cabo. No entanto, canalha à sua maneira, ele é o homem que invade o salão à cata de divertimento, jogo fácil, lucro rápido, volumoso e certo. E principalmente muito riso. Essa gula o perde. No fundo não passa de um afobadinho (que a malandragem chama abofadinho), que chega sempre ao salão carregando dinheiro como se fosse empreender um investimento líquido e infalível, já sonhando com vitória. E o afobadinho, como dizem os cobras da sinuca carioca, acaba comendo cru. E o que se come cru desce quadrado. A observação do malandro, acurada, estabeleceu uma filosofia acerca desse tipo; – Pra quê trouxa quer dinheiro? (JOÃO ANTÔNIO, 1975, P. 101) 13 Em Malhação do Judas Carioca (1975), há o conto-reportagem “Sinuca”, no qual João Antônio desvenda para os leitores o universo dos salões. O conto é subdividido em pequenos capítulos; um deles é intitulado de “O otário, essa entidade”, onde o autor elenca os mais variados sinônimos para designá-lo e descreve física e psicologicamente essa criatura que povoa os salões, fazendo a felicidade da malandragem. Para completar, no subcapítulo seguinte “Chegou o pagamento”, que denota como o otário é visto pela malandragem: uma relação de exploração. Nesse subcapítulo, João Antônio afirma: “Sua triste figura chega ao patético. É sempre um trabalhador, muitas vazes operário, pobre, morando de aluguel e morando mal e longe, vizinho de uma classe média bastante decadente. Quase sempre casado, com alguns filhos no lombo, um homem de vida brava. Mas esbagaça dinheiro na sinuca. É só ter para perder. Em poucas horas, suas gratificações e salários extras voam e, às vezes, vai a extremos – é aí que deixa o leite das crianças. Freqüenta sinuca à noite, depois das sete ou oito, após o batente e sem janta na barriga, e ali passa seus sábados, domingos, feriados e dias santos de guarda. É um prisioneiro. (p. 102) 80 Atraídos pela curiosidade e pela habilidade com que veem os malandros manuseando o taco e ganharem dinheiro, os otários vão jogar, vão tentar a sorte, mas o ingênuo se engana, ele é enrolado, tem sua inocência adoçada pela lábia malandra, pois, o malandro não encara o jogo como mera diversão, fato que é revelado pela pergunta intimidadora “Olá meu parceirinho! Está a jogo ou a passeio?” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 99) O malandro não encara o jogo como diversão ou passatempo; o jogo é seu meio de sobrevivência, é ali que ele ganha a vida. Interessante constatarmos que um das variedades é o jogo da vida, o que é revelador da seriedade com que o malandro encara o jogo. O jogo é sempre à vera e aqueles que não estão dispostos a jogar o seu dinheiro nas caçapas devem se retirar do salão. À noitinha, grupos de estudantes encheram o salão com jogos a leite-de-pato. Não jogavam a dinheiro. Algazarra, um barulhão, mas não jogava a dinheiro. Aquilo faziam todos os dias, antes das aulas noturnas. Bacanaço se chateava com os frangalhos e levantavam-se. Machucava-os; – Vocês são é de coisa nenhuma. Fica aí toda a curriola nesse pé-pé-pé...pé-ré-pé-pé, fazendo o quê? Punheta? Um chove-não-molha do capeta! Vamos lá nesse jogo valendo uma nota! Os estudantes diminuíram o barulho, engoliam os desaforos. Mas ao jogo ninguém ia. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 106) Para sobreviver no mundo da malandragem é necessário conhecer suas regras e uma delas é saber “conluiar-se”, ou seja, fazer parcerias que sejam proveitosas para todos os parceiros. É o que fazem Malagueta, Perus e Bacanaço, formando um triângulo malandro que tem como vértice principal, Bacanaço, conhecedor dos meandros dos salões, mas não tão jovem e imaturo quanto Perus e, também, não chegou à fase da decrepitude, na qual se encontra Malagueta. Todavia, estes dois, também, têm importância fundamental na corja, Perus é o menino que servirá como isca nos jogos dissimulados para atrair parceiros para o jogo a dinheiro. Enquanto Perus tenta ascender na hierarquia da malandragem, Malagueta é o símbolo da fase final do malandro, nos salões fica pelos cantos escuros com suas roupas surradas e seus sapatos furados. Com sua experiência e a consciência de que sozinho não conseguiria sobreviver naquele mundo de “piranhas” propõe o “conluio”. “Malagueta propunha-lhes o conluio fantasiando grandezas. Claro que se arrumariam, eram firmes nas tacadas e davam muito juízo. Se Bacanaço os chefiasse...” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 108) 81 Malagueta sabe que sua idade não permite muitas façanhas e “sobreviver é só o que importa a esse mendigo-malandro marcado pela vida com ‘uma curva canalha no canto da boca’, que chegou sem ilusões e com resignação amarga ao fim do caminho.” (POLINESIO, 1994, p. 146) (grifos da autora) Portanto, Malagueta sabe que quem os deve chefiar é Bacanaço, pois esse conhece todas as picardias da malandragem e que Perus, apesar de ser um bom taco, não tem a experiência desse. Malagueta, Perus e Bacanaço, principalmente o velho e o menino, estão sempre em estado de carência, pois, apesar de malhar no joguinho e serem bons de taco, vivem em uma escala ainda mais inferior que Bacanaço que é mais esperto, mais malicioso e não tem os escrúpulos dos outros dois e banca o dinheiro para as apostas, ficando, pois com a porção maior do bolo. E sempre resguardado, enquanto os outros dois se expõem. (MAJADAS, 1999, P. 141) (Grifos da autora) Bacanaço empenha um relógio para poder financiar a aventura dos três na noite paulistana. Os três vão de bar em bar, de bairro em bairro, satisfazendo uma “ânsia deambulatória”, nas palavras de Alfredo Bosi, que faz do homem solitário “uma sombra errante pelas ruas da cidade”. (JOÂO ANTÔNIO, 2001, p. 6) O malandro reconhece o momento certo de deixar um bar, onde não consegue mais seu sustento, em direção a outro, pois, no seu linguajar, o malandro sabe que “cobra que não anda não engole sapo”, então “é andar e andar”. “Uma vontade súbita os tomou. A Cidade não dera jogo, dera prejuízo e até estrepe no caminho? Não havia nada. São Paulo era grande e eles, três tacos, tinindo para o que desse e viesse. Haveria jogo em algum canto. Faziam fé.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 140) Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e, novamente, Lapa, os três malandros circulam por toda a cidade e vão desvelando para os leitores toda uma sórdida fauna noturna matizada pela ambiguidade das relações. Malagueta, Perus e Bacanaço são três camaleões que sabem se adaptar às diversas condições impostas a eles em cada localidade. Se não se adaptam saem para procurar um lugar, onde possam se refestelar na bebida e no jogo. Na Barra Funda, há nos três um sentimento de inadaptação devido ao contraste social entre os moradores dessa localidade e os três na condição de viradores. Reconhecem que se fossem bem nascidos como aqueles meninos da Barra Funda a história de suas vidas seria outra, não precisariam ter que lavar carros, engraxar 82 sapatos, ser cafetões de prostitutas, arrumar a vida no jogo, esmolar, roubar nas conduções cheias, ou seja, não precisariam levar aquela vida ordinária. Ali, a noite tornou-se chata, pois não havia o jogo, então andaram em busca de um bar, de qualquer bar. A vida do malandro, jogador de sinuca, só tem sentido quando estão à roda da mesa, é ali que eles encontram seus pares, seus parceiros. É, no ambiente do bar, que o malandro sente-se acolhido, a despeito de saber que ali encontrará as mais tristes e sórdidas figuras, mas ele se inclui no rol dessas figuras e sabe como lidar com elas. Na Barra Funda deparam-se com um mundo organizado em torno da abastança e de uma aparente relação familiar sólida, no sentido mais estrito desse termo. Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam. Eram três vagabundos, viradores, sem eira nem beira. Sofredores. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 122) Um sentimento de derrota se abateu sobre os três malandros. Não se identificam com a paisagem física e humana do bairro, eles são perdedores da vida. Esse sentimento leva o velho Malagueta, o mais estropiado dos três, a reconhecer em um cachorro vira-latas um par, um irmão. “Engraçado – também ele era um virador. Um sofredor, um pé-de-chinelo, como o cachorro. Iguaizinhos. Seu dia de viração e de procura. Nenhuma facilidade, ninguém que lhe desse a menor colher de chá.” (JOÃO ANTÕNIO, 1987, p. 123) Os três terminam a noite e o conto de volta ao bairro da Lapa, onde se iniciaram suas andanças. “Lentos, nas ruas. As cabeças pesavam, seguiam baixas.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 156) Encararam os maiores tacos de São Paulo, ganharam, perderam, mas o mais importante “malandrearam”, ou seja, fizeram valer sua condição de malandros. 3.2.2- A relação com a polícia 83 A malandragem como uma modalidade de inteligência do brasileiro14 não só corresponde ao modo de pensar daqueles que vivem, efetivamente, da vida no joguinho. Esse pensamento atinge a todas as camadas da população, principalmente, àqueles que lidam, rotineiramente, com os jogadores e os viradores e disputam, no mesmo espaço, seu lugar ao sol. Com efeito, o termo malandragem não se reserva somente àqueles que rejeitaram as convenções sociais e são avessos ao mundo do trabalho. Cristalizada na prática do “jeitinho” brasileiro a malandragem está, cotidianamente, mediando nossas relações pessoais. Um dos requisitos para ser considerado malandro é, portanto, reconhecer e saber lidar com a relativização dos ambientes onde frequenta. As relações interpessoais se dão, de maneira mais extensiva, em ambientes matizados pela ambiguidade: os bares, as ruas. Esses são, portanto, espaços propícios a ocorrência de imprevistos, isto é, onde a desordem se impõe às ordens preestabelecidas, onde a flexibilidade das ações impera em detrimento da rigidez. Uma consequência disso é que na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não sabidas ou não percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a malandragem, essa arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de vida. [...] Na rua, então, onde o mundo tende a ser visto como um universo hobbesiano, onde todos tendem a estar em luta contra todos, até que uma forma de hierarquização possa surgir e promover alguma ordem. (DAMATTA, 1997, p. 91) (Grifos do autor) Entendemos como forma de hierarquização a aparição de alguma figura que represente alguma forma de repressão. Em “Malagueta, Perus e Bacanaço” a repressão é encarnada na figura do garçom Durão que pedira para Bacanaço e Perus cessassem os meneios que faziam simulando uma briga com navalha em punho. Diante da falta de ânimo e “da vontade frouxa de ordem” do garçom não obedeceram. Durão, ironicamente, contrariando seu apelido, não conseguiria por ordem no bar, pois não é uma figura a quem o malandro obedeça, tendo em vista que é empregado do bar e atende aos pedidos dos malandros, ou seja, é duplamente otário. O garçom não pede por seu desejo próprio de impor a ordem, mas obedece ao patrão que, por sua vez, tem receio de que tais brincadeiras possam atrair os olhares da polícia. Aí sim o caso ficaria mais sério. 14 É o que afirma Walnice Nogueira Galvão no ensaio “No tempo do rei” ao constatar que Manuel Antônio de Almeida é o primeiro a fixar em nossa literatura o caráter nacional brasileiro. Afirma, também, que Leonardo, protagonista do romance Memórias de um sargento de milícias é o ancestral de Macunaíma. Nós vamos além é o ancestral de todos os malandros posteriores ao seu aparecimento. 84 A polícia, no entanto, não frequenta o submundo na tentativa de impor a ordem e o respeito, seus agentes vão às curriolas para poder tirar o máximo proveito da sua condição de elementos da ordem. “Qualquer palavra ganha dignidade na boca de polícia e ninguém ri.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 113) Os três malandros entram no bar Joana d’Arc, onde o jogo da vida estava a todo vapor e depois de conluiarem-se vão à roda do inspetor Lima, policial aposentado, solitário e frequentador do bar, onde, além de jogar, vai contar histórias de malandros antigos e memoráveis que tiveram no vício do jogo e dos entorpecentes um fim execrável. Regozijava-se da honestidade que o manteve vivo e são até aqueles dias, afirmando que o futuro dos viradores é a casa de detenção. Mas o narrador alerta o leitor mais incauto sobre a real condição do inspetor. “Mas [Lima] não se afastava do joguinho do Joana d’Arc. Era um prisioneiro.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 114) Ao avistar Malagueta, Lima, sem saber do “conchavo”, intima o velho conhecido e o menino Perus para uma partida. Mas Lima era falso malandro e caiu. Para representar os movimentos incessantes e maliciosos dos dois malandros no seu balé em torno da mesa, o narrador usa como recurso adjetivos que se sucedem um após outro, gradativamente, e intensificam o substantivo joguinho de forma a criar um clima envolvente do qual o inspetor Lima não consegue desvencilhar-se. “As tacadas eram lentas, o joguinho arrastado, encrencado, sem-vergonha.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 116) O inspetor, ao perceber que as jogadas dos dois malandros se completam, avisa que se puder constatar o conluio leva todo mundo para a cadeia. Para acalmar o inspetor, Malagueta dissimula, Perus nada fala, pois, ainda, não tem a experiência suficiente para trocar desaforos e Bacanaço, como um “simples observador” pode, com muita picardia, acalmar o policial aposentado “– Velho, o jogo é jogado. Calhou. O menino é um atirador e está com a mala da sorte – sua palavra valia, que vinha de fora, como torcedor.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 119) O velho lima não aguentou a força do conluio, nem com toda a sua bazófia sobre sua vivência no mundo da malandragem, o jogo lhe rendeu frutos, nada pôde fazer contra os três. Toda sua experiência foi dilacerada pela agudeza de espírito dos malandros. Perdeu uma boa quantia em dinheiro. Passou de malandro velho a otário, em poucas horas. 85 Após saírem vitoriosos do bar Joana d’Arc entram em um táxi, passam pela Barra Funda, onde não conseguiram parceiros e chegam à Cidade, por lá rodam até o bar Paratodos. No bar, os três malandros encontram com o policial Silveirinha que, rapidamente, aborda o menino pedindo-lhe que pague uma taxa para que Perus pudesse frequentar o ambiente. “Surgisse malandro desconhecido, cara ignorada, o tira ia ao ataque, exigia com firmeza.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 133) Com uma atitude diversa a do inspetor Lima, Silveirinha não ia ao bar para jogar e tentar mostrar seus conhecimentos sobre a vida noturna e sua fauna aos seus adversários, contando histórias de malandros antigos e memoráveis, Silveirinha é um policial corrupto, que abusa da autoridade para tirar dinheiro dos mais novatos, e agia sempre de forma intimidadora. “Ali, cantava de galo, dava cartas, jogava de mão, mexia e remexia, a condição de mando era sua. Infeliz algum abria o bico.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 132) Caso não conseguisse intimidar e arrancar o dinheiro na primeira tentativa, o policial tinha outros meios mais espúrios, “abraçou o menino e era uma tentativa aberta de surrupiar-lhe a carteira como fazem os batedores e o geral dos lanceiros. O tira, mais alto e mais forte e os ombros de Perus se encolhiam, o menino suava no blusão de couro, se defendia arqueando-se com dificuldade.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 133) Diante da atitude de Silveirinha, Perus não tem a mesma desenvoltura como teve com Lima. Não consegue se desvencilhar do policial que a todo o momento reclama o “pedágio”. E Silveirinha cobra, “cadê o tutu, moleque?” e o garoto não tem a experiência suficiente para sair da situação. “E estava apagado, apagadinho, não falava um a.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 135) Malagueta e Bacanaço, revoltados, assistiam a cena, imaginavam várias maneiras de derrubar Silveirinha, mas nada faziam, pois, sabiam da sua condição de vagabundos impotentes diante de uma figura que tem a lei ao seu lado e é conhecedor dos meandros da malandragem e utiliza sua condição como artifício para levar vantagem sobre os três malandros. “O que viria depois do arranca rabo? Baixou os olhos, um vagabundo era um vagal e só” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 135) Fica bem claro nesse episódio que a relação entre a polícia e a malandragem é regida pela ética do “sabe com quem está falando?” discutida por Roberto DaMatta (1997) em Carnavais, malandros e heróis. 86 O “‘sabe com quem está falando?’ (...) é um instrumento de uma sociedade em que as relações pessoais formam o núcleo que chamamos de ‘moralidade’ (ou ‘esfera moral’), e tem um enorme peso no jogo vivo do sistema, sempre ocupando os espaços que as leis do estado e da economia não penetram. (p. 195) Para resolver a situação, Bacanaço age como o patrão dos dois malandros e pede para que seus dois companheiros deixem o bar, e vai ao encontro de Silveirinha para acertar o trato do “pedágio”. O malandro sabe que, neste momento, tem de estar aberto ao diálogo, pois o policial, paradoxalmente, representa a lei, mas não a cumpre, sendo dessa maneira um “inimigo” difícil, tendo em vista que Silveirinha conhece bem as regras da malandragem e as utiliza em proveito próprio juntamente com sua insígnia de homem da ordem. A atitude corrupta e o abuso de autoridade de Silveirinha surgem como evidências contundentes de como são as relações entre a ordem e a desordem no universo da rua. Os três malandros sabem que perambulam por um ambiente ambíguo e estão conscientes de que: Na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não sabidas ou não percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a malandragem, essa arte brasileira de usar o ambíguo como instrumento de vida. (DaMatta, 1997, p. 91) (grifos do autor) Após o desenrolar do dramático encontro entre os três, principalmente, Perus, alvo da ganância e da postura desonesta do policial, Bacanaço e Silveirinha sentam-se para discutir os termos do acordo para dar livre acesso ao menino. Pediu bebida com desplante, indicou o tamborete e sentaram-se como iguais. Como colegas. O malandro e o tira eram bem semelhantes – os dois bem ajambrados, ambos sapatos brilhavam, mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não soubesse, saber não saberia quem ali era polícia, quem ali era malandro. Neles tudo sintonizava. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 136) Em todo o episódio é Silveirinha quem manda na situação descrita, mas nesse trecho, o narrador compara as roupas e a maneira de falar e mostra que há, em ambos, uma identificação que indica uma harmonia entre os dois seres, que, a priori, pertencem a lados diferentes, um do lado da ordem e outro do lado da desordem, mas que, na realidade, pertencem à mesma fauna noturna que povoa as ruas dos grandes centros urbanos em busca de dinheiro fácil. 87 Temos, portanto, neste encontro, um espelhamento da dialética da malandragem, na qual, Bacanaço passa de malandro a otário e Silveirinha, de representante da ordem a agente da desordem. O conflito entre os malandros e o policial demonstra o caráter reversível entre a ordem e a desordem que pauta a relação entre as personagens. Tal reversibilidade denota a fragilidade de um mundo aparentemente hierarquizado, onde impera a frouxidão moral e onde o dinheiro é mediador e irá supostamente harmonizar os dois polos. Como afirmou DaMatta, na citação acima, se é preciso estar atento para não violar hierarquias não sabidas, então, é preciso estar muito mais atento e ter talento e inteligência para saber “respeitar” as hierarquias conhecidas. Bacanaço, após serem revelados seus pensamentos de espancar Silveirinha até a morte com chutes em todas as partes do seu corpo deixando para o final a parte, cuja a pancada seria para desmoralizar totalmente o adversário, a cara do policial, faz uma reflexão que o traz de volta à dura realidade da situação vivida. “Estes e outros pensamentos, entretanto, esbarraram com uma realidade e se esfriaram depressinha.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 135). Bacanaço “se concilia” com a lei e libera Perus dando uma nota de quinhentos cruzeiros ao policial; não o enfrenta, ajeita a situação, e, rapidamente, se desvencilha de Silveirinha. Este se aproveita da sua posição de homem da lei que é inerente a sua figura para reprimir, extorquir e se impor através da suposta lei dos mais fortes. A saída de Bacanaço é narrada com uma gradação que evidencia o desejo do malandro escapar das garras do policial e daquele ambiente asfixiante o mais rápido possível. “Pretextou pressa, escorregou a cédula, pediu licença. Ganhou a escada de madeira, o amargo na boca.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 136) Na rua, os três malandros caminham com o peso da perda sobre as costas, Perus ia calado, Malagueta tentava acalmar os amigos dizendo que esses inconvenientes faziam parte da vida na malandragem, somente Bacanaço mantinha um sentimento de revolta. Seu desejo de eliminar Silveirinha, porém, fica circunscrito, somente, na agressividade do seu discurso contra o universo da ordem, o que para o malandro era humilhante, pois, “o que doía era sofrerem uma apoquentação e não poderem malhar o abusado que a vomitara.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 137) A força de “Malagueta, Perus e Bacanaço” reside, portanto, na representação da flexibilidade das relações entre as personagens e na falta de rigidez na permuta de posições destas, nosso pensamento é corroborado pela afirmação de Antonio Candido 88 ao apontar que o princípio moral da obra Memória de um sargento de milícias era um balanceio entre o bem e o mal. Um dos maiores esforços das sociedades, através da sua organização e das ideologias que a justificam, é estabelecer a existência objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita política e assim por diante. Quanto mais rígida a sociedade, mais definido cada termo e mais apertada a opção. Por isso mesmo desenvolvem-se paralelamente as acomodações de tipo casuístico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilização. E uma das grandes funções da literatura satírica, do realismo desmistificador e da análise psicológica é o fato de mostrarem, cada um ao seu modo, que os referidos pares são reversíveis, não estanques, e que fora da racionalização ideológica as antinomias convivem num curioso lusco-fusco. (1993, p. 47) O conto de João Antônio é revelador da ética que rege o mundo da malandragem e da ausência de fronteiras entre o universo da ordem e o da desordem. O autor guia seus leitores pelos ambientes os mais vivazes e representativos da dialética da ordem e da desordem para que estes possam apreender o modo de vida singular das personagens de seus contos. Todavia, esse modo de vida não se circunscreve somente às suas personagens, essas, por sua vez, são representativas de um traço cultural do povo brasileiro de um modo geral, ser malandro. Ordem e desordem são intercambiáveis na medida em que seus valores são relativos e se misturam. Não há extremos que não se aproximem a partir de sua dissolução. Essa forma de pensar e de agir é que caracteriza o modo de viver do brasileiro. 3.2.3- A Relação com a mulher Neste capítulo propomos uma investigação sobre a relação dos malandros com as figuras femininas na obra de João Antônio. Tendo em vista que, embora sejam abordadas, geralmente, em um plano secundário, as personagens femininas possuem importantes funções nos contos do autor. Vê-se que o centro de gravidade da sua temática vem a ser a mulher: a mulher como um dos pólos da relação amorosa ou afetiva. Ora como objeto do desejo, ora como consciência oprimida; desde a prostituta adolescente, que emerge como industrial de pedintes e agente de negócios escusos em “Mariazinha tiro a esmo”, até a forte 89 dignidade de mãe, a operar decisivamente à sombra, em nítido segundo plano, na história comovente do Meninão do caixote. (LUCAS, 1999, p. 92) Na sua maioria, salvo algumas exceções, as personagens femininas são sempre submissas aos malandros e por eles são exploradas. As exceções mais patentes são a mãe do protagonista do conto “Meninão do caixote” e a mulher do contínuo, protagonista de “Três cunhadas – natal de 1960”. Em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, Bacanaço explora a prostituta Marli, que sustenta o malandro dando-lhe uma quantia diária para que ele possa desfrutar de uma boa vida. Bacanaço gasta o todo dinheiro roupas e sapatos, além de “investir” no jogo e em outras “virações”. Quando a prostituta trazia menos dinheiro, Bacanaço a surrava com a justificativa de ensinar à mulher as coisas da vida. Tapas, pontapés, coisas leves. Apenas no natural de um cacete bem dado para que houvesse respeito, para não andar com bobice na cabeça e para que não se esquecesse preguiçando na rua, ou bebericando nos botecos, ou indo a cinemas, em vez de trabalhar. Obrigação sua era ganhar – para não acostumá-la mal, Bacanaço batia-lhe. Nas surras habituais, o porteiro da pensão da Lapa surgia, assustado. Bacanaço o encarava. – Olhe, camarada: entre marido e mulher, ninguém bote a colher. (João Antônio, 1987, p. 143) Para Bacanaço, as surras e os castigos eram leves, mesmo que a deixasse presa em casa até ele voltar bêbado das suas virações e a espancasse com um cabo de aço, agindo como se Marli fosse um homem, batendo na região dos rins e queimando os seus seios com a ponta acesa do cigarro, o que fazia Marli urinar de dor. Para o malandro, os espancamentos são uma demonstração de carinho e sua maneira de proteger a prostituta. Bacanaço vê a prostituta como uma criança, como uma otária que não sabe as artimanhas da profissão, como, por exemplo, roubar seus clientes. Todas essas sessões de torturas são, também, para Marli, uma demonstração de afeto do seu amante. Ao ser indagada por clientes sobre as manchas e marcas no seu corpo, Marli, prontamente, responde: “– É amor – e olhava para o teto – vamos logo.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, P. 143) Marli só quer arrancar o dinheiro de seus clientes para poder sustentar o seu amásio; sua volta ao trabalho, também, acontece devido ao fato de ter medo de Bcanaço, pois, se não retomasse a “linha de produção”, seria espancada novamente pelo malandro. 90 A expressão “linha de produção” nos remete, diretamente, ao modo de produção introduzido por Henry Ford no início do século XX, e denota o processo de reificação das relações humanas. Marli é escrava da sua atividade profissional e é vista por Bacanaço como sua propriedade privada. O malandro não quer ver sua fonte de renda “preguiçando”, a prostituta tem que “produzir” em larga escala para financiar as roupas e as partidas de sinuca do rufião. A resposta dada e a atitude de Marli diante do freguês denotam desprezo com relação à preocupação e à figura do cliente e uma passividade perante seu amante. A fala de Marli denota, também, resignação, pois se vê atrelada, de maneira irremediável, ao malandro que tudo lhe ensinou na vida. É revelador da sua submissão o fato de, no conto, ser esse o único momento em que o narrador concede à prostituta a permissão de exprimir seus pensamentos. Ela não fala com Bacanaço, pois, a ele só deve obediência, a prostituta reclama com seu cliente que a relação de ambos deve ser pautada pela mecanização e deve ser exercida da maneira mais enfadonha possível, assim como a atividade rotineira de qualquer operário. Apesar de explorar Marli, Bacanaço estava saturado de ter que ensinar tudo à jovem prostituta e intenciona romper a relação de dependência mútua entre ambos. O rufião sonha com outra mais experiente e mais rentável, Dorotéia, que lhe renderia quatro vezes mais do que Marli. Dorotéia é vista, por Bacanaço, pela ótica da animalização “Uma égua de raça, que corria na boca e na pretensão de grandes malandros.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 144) A expressão “uma égua de raça” remete ao mundo das apostas nos hipódromos e Bacanaço fantasiava ganhos volumosos, porém, ficara somente no mundo dos sonhos, o malandro não tinha cacife para bancar a aposta. O malandro descreve Dorotéia em um discurso em que se misturam fantasias (com o corpo de Dorotéia e com as vantagens que ela poderia lhe oferecer) e a sua dura de realidade de malandro de baixíssimos recursos. Arisca como manhosa, gata, atraía otários como só mulher que quer e sabe, consegue. Tivera vários coronéis, gente da alta, que lhe davam mesadas de trinta, quarenta contos por mês. Era alta e loira e Dorotéia e o seu dinheiro era muito. E sem amásio, que era mina exigente também. Muito malandro tentara a conquista e ficara falando sozinho. E pelo começo dos olhares interessando-se, aquele medir-se de corpos, à malandra, mudamente sintonizando vontades... Aquilo seria um caso. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 144) 91 A relação cliente-prostituta-malandro é trabalhada, também, no conto “Joãozinho da Babilôna” no triângulo Batistão-Guiomar-Joãozinho. Joãozinho da Babilônia é um malandro maduro, “vinte anos de janela”, porém cansado da vida boêmia, “bastava uma casa no subúrbio, quarto e cozinha” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 52). O malandro trai o código da malandragem, no qual malandro não deve se apaixonar por piranhas e a relação com as mulheres deve ser pautada pela rápida substituição de uma amante por outra. “– Mulher é como folhinha na parede. Você puxa um dia tem outro atrás” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 54) e se apaixona uma prostituta, fato que, para o próprio Joãozinho da Babilônia, o retira da condição de malandro e o coloca na de merduncho. Joãozinho da Babilônia está apaixonado pela prostituta Guiomar, e revela seu sentimento pela moça em pensamentos cheios de lirismo. Neste trecho, é revelada toda a sua admiração por Guiomar através de uma belíssima comparação com o mar. Barulho do mar nada resolve. Tinha mais mistério lá, na parte de cima de sua cara, do que nesta merda de mar grande que eu vejo ainda agora. Tinha mais segredo e provocação lá no canto da sua boca do que no quebrar das ondas. Tinha mais perfume ali, na risca do seu cabelo; tinha mais cheiro, chamado e violência ali, quando ela beliscava no canto da boca o dedo mínimo, do que quando o mar tenta gritar, de encontro às pedras, no preto-escuro das madrugadas que curto, eu e só. Tinha mais de tudo ali, dentro dela, com sua mão pequena, com seu sapato sofrido, com a bolsa que só poderia ser sua, com seu agasalho marrom surrado, suas ilusões, manhas, preguiças, gatices, com os olhos sonsos que iam e vinham, riam e espetavam mais do que em todo o barulho que o mar tem. E não tem. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 53) Para Joãozinho, sua relação com Guiomar é uma incógnita, o malandro não compreende porque a prostituta o escolheu para amante e protetor, e não entende porque se apaixonou por ela. O malandro para diante do mar e dos mares profundos e insondáveis que são os olhos de Guiomar. Joãozinho é tragado, tal qual Bentinho fora pelos olhos de ressaca de Capitu, e procura um lugar seguro, mas não encontra. “Eu me contenho diante do mar. Os seus olhos eram dois. Escuros, sonsos e onde o cais? Aperto o passo, ando esta Copacabana, me consolo. Seus olhos, dois mares.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 54) Guiomar é uma jovem prostituta de dezessete anos, porém sua idade não se traduz em pouca experiência “Guiomar, apesar da idade, tinha tanta coisa para me ensinar na cama que eu perdi o remorso.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 71) A malandrinha explora com muita picardia, um velho milionário metido a malandro, 92 Batistão, que é descrito como um “moloide”, um otário, por Joãozinho. “Soberbo na vida, coronelão em cima da carne-seca, virava um neném na mão do carro novo Guiomar.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 61) Em uma primeira descrição de Batistão, Joãozinho narra o hábito nojento do velho de ir a um restaurante e pedir carne mal passada, mascá-la e depois devolver os pedaços murchos ao prato. Vem o filé, quase cru, dispensado de arroz ou acompanhamento. Mas o velho não come. Masca, masca, mastiga. Chupa a carne malpassada e devolve com a boca ao prato, como gomos esmagados de laranja. Come feito um gato velho, agachado, não usa garfo ou faca, só a boca. Até os garções se viram para não assistir. (JOÃO ANTÔNIO, p. 55) O comportamento de Batistão revela seu caráter de velho asqueroso e de otário e este fica ainda mais evidente no costume de beber uísque com água. O enfraquecimento da bebida denota bem o caráter moleirão do velho, que é mascado até o último centavo por Guiomar; ela o masca, mas não o larga. A prostituta tinha nojo de Batistão, a quem ela chamava de “bunda mole” e em quem ela, inclusive, batia. Guiomar, ainda, levava-o, mesmo urinado, para casa após as noites de boemia, mas não o largava, porque ele a sustentava. Joãozinho reconhece que é impotente diante da figura de Batistão, é apenas um leão-de-chácara. Sua vingança contra o coronel fica apenas na fantasia e no seu discurso cheio de ódio. Sua condição inferior fica evidenciada na comparação, feita por ele, entre os calibres das suas, respectivas, armas de fogo. Fosse um cabra sarado, um boiquira, um ponta-firme e tirava essa mulata da vida. Encarava Batistão, enfrentava, e daí? A mulher é minha, qu’eu tomei. Tem mais: em vida de marido e mulher ninguém mete a colher. Quer guerra? A sua é mauser, o meu é 38. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 70) O desejo de matar Batistão e de levar Guiomar para morar em uma casa no subúrbio é alimentado pelo desejo que Guiomar tem de ser protegida pelo malandro “– o neguinho não toma conta de mim” e, ao mesmo tempo, é reprimido pela falta de coragem. Por estar, realmente, apaixonado por Guiomar, não queria apenas explorá-la, queria manter um relacionamento mais estável com a prostituta, mas, em contrapartida, não queria largar a mulher que morava em Madureira. Falta-lhe coragem. Mesmo no momento de revolta após ver a foto e a notícia da morte da prostituta no jornal, não consegue ter forças suficientes para denunciar 93 Batistão à polícia, mesmo tendo certeza de que o velho assassinara Guiomar, em um acesso de ciúmes. Joãozinho da Babilônia nutre sentimentos mais legítimos com relação à Guiomar, diferentemente de Bacanaço, que espanca Marli para tirar todo o dinheiro ganho pela prostituta. “Uma trouxa que mal o merecia, malandro maduro e fino.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 144) Joãozinho ganha dinheiro de Guiomar, mas para o malandro os dengos de Guiomar são coisas de criança, e a ela dá conselhos para se cuidar diante do que pode fazer o enciumado Batistão. “Quando Joãozinho quer, cuida como princesa.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p.65) Para Bacanaço, Marli é, somente, mais um elemento a ser explorado por ele nas suas andanças noturnas. O malandro espera que ela lhe proporcione uma vida mais regalada, se a prostituta não satisfaz os desejos de Bacanaço, este pode, simplesmente, preteri-la para buscar em outra prostituta mais experiente, mais esperta e com clientes mais endinheirados sua fonte de recursos. Diferentemente, Guiomar é quem movimenta os pensamentos de Joãozinho e ela quem dita o ritmo da sua aflitiva narrativa. Desde o início, o relato de Joãozinho é marcado pelo forte envolvimento afetivo entre ele e sua amante. Por se envolver afetivamente com a mulher que deveria ser explorada até o último centavo, Joãozinho da Babilônia mostra sua face mais humana, mais frágil e pode ser considerado como um otário, pois é impotente diante da figura de Batistão, mesmo tendo a certeza de que o velho cometeu o assassínio contra Guiomar. Nesse triângulo amoroso, quem parecia tirar mais vantagens, era Guiomar, pois a prostituta explorava financeiramente o velho asqueroso e emocionalmente o malandro Joãozinho. Este não usurpava o dinheiro da prostituta, apenas aceitava o que ela lhe ofertava; e mais uma vez rompe com o “estatuto da malandragem”. Um malandro apaixonado que não explora, efetivamente, a prostituta e ainda lhe dá conselhos cheios de carinho. Nesse triângulo amoroso, podemos perceber o caráter reversível das personagens. Batistão, de otário a assassino; Joãozinho, de malandro experiente a malandro apaixonado e impotente e Guiomar prostituta exploradora e explorada, por vontade própria. Sobre o caráter reversível das personagens nos contos de João Antônio, Antonio Hohlfeldt assevera: 94 [...] o executivo, uma vez na noite, transform-se em potencial otário tanto da prostituta quanto dos demais malandros e bandidos que pululam pelo ambiente boêmio. O otário, ainda, pode ser inclusive aquele mesmo malandro ou bandido, quer entre si mesmos, quer em relação a outros segmentos, dependendo tudo de uma situação contextual que só os textos vão definindo com maior clareza. (2001, p. 10) A alternância de papéis é uma constante nos contos de João Antônio e ao notarmos essa característica, pensamos em explorá-la em nossa dissertação, fato que implicou na escolha do título da mesma. As personagens do autor vivem em condições existenciais e matérias precárias, o que as leva a buscar nas ruas e nos bares uma solução para os seus problemas. As personagens se equilibram entre a ordem e a desordem, entre a condição de malandros e a condição de otários. O estudo das mulheres [e das personagens em geral] na obra de João Antônio traz de novo o contista com suas artes: uma exploração da condição humana em estado de miséria e de inocência; uma arqueologia dos significados da grande cidade, cuja semântica o ficcionista procura apanhar, com a demarcação dos lugares cibernéticos, aqueles pontos de encontro das personagens estratégicas; um estudo de ambientes em fase de desagregação por motivo das leis do progresso; uma gramática de vagabundos, pilantras, malandros, piranhas e marginais; enfim, um levantamento da poesia do agreste humano. (LUCAS, 1999, p. 92) A condição agreste da alma das personagens é bem representada pelo protagonista do conto “Três cunhadas – natal de 1960”, onde um homem é obrigado por sua mulher a comprar presentes natalinos para suas cunhadas. O conto está presente no livro Leão-de chácara, no qual é o único conto que não recebe o nome ou a função social do personagem principal como título. Esse fato confere à personagem uma condição de anonimato maior do que os protagonistas dos outros contos da obra. O homem perambula pelo centro do Rio de Janeiro refletido sua condição de trabalhador explorado pelo patrão e pela mulher. Também a mulher não o devia aporrinhar com aquelas ocupações domésticas. Diacho. A mulher bem poderia ter comprado os presentes para as irmãs, dado logo um tiro naquilo. Ele, não. Não entendia dessa coisa de presentes. E o pior seria quando começasse o mês, no comecinho do novo ano, a mensalidade da geladeira e do liquidificador. Que ele nunca sabia a quantas andava. Amassou o cigarro e os olhos baixaram. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 34) Esse trecho evidencia sua condição “merduncha”, não tem dinheiro para comprar os presentes das cunhadas, mas, cumpre as ordens da mulher. Anda cabisbaixo 95 pela cidade, sem nenhuma possibilidade de mudar o quadro, sua única alternativa é refugiar-se nas bebidas alcoólicas. A relação do contínuo com sua mulher é pautada pela exploração, não só material como também emocional, pois o pequeno funcionário tem seus desejos reprimidos pela sanha da mulher em agradar as irmãs. Sua frustração é estampada em todas as páginas do conto com uma dicção que demonstra a vida resignada que leva e é cristalizada pela sua falta de coragem de negar os pedidos absurdos da sua esposa e de mudar o rumo da sua vida. O protagonista em nenhum momento da narrativa se mostra como um malandro, ele é sempre um otário, pois faz aquilo que não deseja, não vive em liberdade, como todo malandro, está preso a convenções sociais que não mais deseja e que são reforçadas pela mulher como uma maneira de oprimi-lo. Seu sonho é voltar no tempo e refazer a vida de maneira a se livrar daquelas ocupações que tanto o atormentam. Em “Três cunhadas – natal de 1960”, João Antônio revela que a relação do otário com a mulher é de opressão. Um homem estagnado profissionalmente e sem perspectivas de melhoras e que carrega consigo o peso das opções de vida, que agora se apresentam como erradas para ele. Analisadas as relações dos malandros e dos otários com as mulheres, passaremos ao estudo da relação da criança com as personagens do sexo feminino. No conto “Meninão do caixote”, encontramos a narrativa de como um menino transformouse em um grande e respeitado jogador de sinuca. No início da narrativa, o menino relata que possui grande admiração pelo pai, que é caminhoneiro e vive sempre ausente de casa, e se lembra com carinho das poucas vezes em que o pai está presente. Sua admiração é projetada no caminhão do pai; o menino descreve o veículo como bonito e possante. “Um G.M.C. novo, enorme, azul, roncava mesmo. E a carroceria era um tanque para transportar óleo.” E remenda a si próprio para reafirmar a grandeza do veículo e daquele que o pilota, para tanto se apropria das palavras do pai, de maneira a conferir mais importância a sua profissão “Não era caminhão simples não. Era carro-tanque e G.M.C.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 83) Sobre a mãe, o menino relata a beleza e, principalmente, o rigor com que a dona-de-casa tratara da educação do filho. Todavia, o menino reclama a devida atenção para que não pudesse cair no mundo da sinuca, queria que lhe fosse dispensado mais 96 carinho ao invés das ausências do pai, sempre viajando, e da mãe sempre trabalhando na máquina de costura. Ambos, pai e mãe tentavam educar o filho ao seu modo, a mãe dava-lhe surras para corrigir alguns erros do menino e o pai, para tentar suprir sua ausência, fazia-lhe todas as vontades. A gente em casa apanhava, que nossas mães não eram sopa e com mãe havia sempre uma complicação. A camisa meio molhada, os cabelos voltavam encharcados, difícil disfarçar e a gente acabava apanhando. Apanhava, apanhava, mais valia. Puxa vida a gente tirava a roupa inteirinha e “tchibum” – baque gostoso do corpo na água. Caía aqui, saía lá, quatro-cinco metros adiante. Ô gostosura que era a gente debaixo da água num mergulhão demorado. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 82) O trecho acima é um relato das sensações corpóreas do menino, um misto de prazer e de dor. As surras, no entendimento da mãe, servem como corretivo físico e moral do menino. A prática educativa da mãe terá um efeito inverso, pois, em lugar de corrigir, impulsionará o menino, ao primeiro sinal de afeto do malandro Vitorino, a frequentar as mesas de sinuca. Podemos afirmar que o conto “Meninão do caixote” é a representação da ausência, seja ela física ou afetiva. A ausência da mãe é refletida na ausência de diálogos entre ela e seu filho e este rememora, com mais intensidade, as surras levadas e o constante trabalho da mãe na máquina de costura do que as relações afetivas que só vai encontrar nas mesa de sinuca e na figura de Vitorino. Assim como a personagem Joana do romance de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, o menino relembra em uma linguagem infantil que o mundo dos adultos (leia-se trabalho excessivo) não contempla o pensamento e o comportamento lúdico das crianças e esse fato torna-se algo traumático para aqueles que reclamam atenção. “Os pés da mamãe na máquina de costura não paravam.” 15 (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 87) A falta de afetividade impulsionou o menino paras as mesas de sinuca, para o mundo da malandragem. Da sua primeira tacada à fama de bom jogador, o menino não levou muito tempo; rapidamente estava rodando a cidade na companhia de Vitorino. Jogava escondido da mãe e, sempre que o pai viajava, passava as madrugadas 15 O romance de Clarice Lispector começa desta maneira: “A máquina do papai batia tac-tac... tac-tactac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. [...]” A autora mostra que a falta de comunicação entre pai e filha é algo traumático para a personagem Joana que, mesmo adulta, utiliza a linguagem infantil como forma de entender o que ocorrera com ela na sua infância e que reverbera até a sua vida adulta. (LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rocco, s/d. Rio de Janeiro.) 97 no jogo. “E papai estando fora, eu já fazia madrugada, resvalando, sorrateiro.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 92) A mãe diante do quadro sentia-se impotente e, resignadamente, esperava o filho chegar, mas fingia não vê-lo entrar em casa, ia chorando ajeitar as cobertas. Essa situação causava um sentimento misto de constrangimento e de consternação no menino que tentava deixar de jogar, mas Vitorino não permitia, sempre conseguia jogos e impedia de o menino abandonar as mesas. O menino teria pela frente um dos maiores jogadores de sinuca de São Paulo, Tiririca, que ganhou o apelido, por ficar enraivecido quando perdia alguma partida. Meninão jogou e ganhou de Tiririca. Após a vitória decidiu abandonar de vez as mesas de sinuca, mas, pelas regras do jogo, o perdedor tinha direito a revanche e, apesar de estar resoluto em sua decisão, a insistência malandra de Vitorino e a vaidade de estar sendo procurado por Tiririca, fez o menino ceder. Logo estava marcada a nova partida. Meninão saiu de casa com a certeza de que aquela seria sua última partida, qualquer que fosse o resultado, pois, estava decidido a largar o taco. Durante as partidas é tomado por um sentimento de angústia e pela vontade de terminar logo a partida e voltar para casa. “Como aquilo era dolorido!” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 96) Todavia, o menino não interrompe a partida e vai jogando e ganhando. O sentimento de angústia cedera lugar ao de raiva contra seu adversário, Tiririca. “Estourei num entusiasmo bruto, que a curriola se espantou. Minha mão se fechou no ar e o indicador quase espetava o peito de Tiririca. – Vou te quebrar moço. Vou te roubar depressinha.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 97) E a raiva transformou-se em vontade de ganhar, e então o menino em um rompante de técnica e de força derrubou seu adversário sem permitir a ele esboçar nenhuma reação. Duas bolas na mesa – o seis e o sete. Dei de olhos na colocação da branca, nas caçapas, nas tabelas e me atirei. Duas vezes meti o seis e o sete meti duas vezes. Fechei a partida com noventa pontos; foram vinte minutos embocando bolas, um bárbaro, embocando, contando pontos e Tiririca não teve chance. Ali, parado, olhando o taco na mão. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 97) É neste momento que se opera mais efetivamente a força da afetividade. A narrativa mostra a transformação do menino em um sujeito afamado e respeitado no mundo da sinuca, de um simples menino que por acaso entra em uma venda para se 98 abrigar da chuva até o jogador afamado “meninão do caixote” que derrota e se impõe diante de adversários mais experientes. Não obstante a fama, ainda é o mesmo menino carente de afetos que ao se deparar com a figura materna em uma crescente aparição que é representada pelo uso dos gerúndios. “Vinha chorosa de fazer dó. Mamãe surgindo na cortina verde, vinha miudinha, encolhida, trazendo uma marmita. Não disse uma palavra, me pôs a marmita na mão.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 98) Sua mãe, ao notar a impossibilidade de modificar o destino do filho com surras, mostra-se resignada diante da situação e leva o almoço para o filho no bar. A cena é digna de comoção. – O seu almoço. Um frio nas pernas, uma necessidade enorme de me sentar. E uma coisa me crescendo na garganta, crescendo, a boca não aguentava mais, senti que não aguentava. Ninguém no meu lugar aguentaria mais. Ia chorar, não tinha jeito. (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 98) A cena revela que o amor da mãe redime ambas as personagens, e o distanciamento de casa fez o menino amadurecer emocionalmente e o fez ver na mãe a figura redentora para deixar o mundo da malandragem. O convívio na malandragem não embrutecera o menino, pois no final percebeu que seria melhor a volta para o convívio familiar e que a proteção encontrada na figura do malandro Vitorino era falsa. Sua “desfiliação” do mundo da malandragem também serviu para se vingar de Vitorino, que o explorava nos jogos e não o permitia tomar suas decisões próprias. “Fui o fim de Vitorino. Sem meninão do caixote, Vitorino não aguentava. [...] E assim, o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho. Foi sumindo. Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 81) A aparição da mãe, no final do conto, é a representação da ordem. Ao levar a marmita, a mãe busca, à sua maneira, reintegrar o menino, novamente, ao mundo familiar. Seu nome, no meio da malandragem, aponta para ser ele apenas um menino crescido, “meninão”, carente de afeto e de alguém que lhe indicasse o caminho a ser percorrido. No final do conto, João Antônio, com muita sensibilidade, descreve a fragilidade do menino, quando este chora, diante da resignação da mãe. O final revela o 99 abandono do mundo da desordem e a reconciliação com o mundo da ordem no momento em que as mãos das personagens se encontram e se unem. Os dois em um movimento ascensional abandonam um mundo ao qual não pertencem mais, denotando que o boteco, onde se desenrolavam as mais duras pelejas, é parte bastante representativa do submundo. “Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos subindo a rua.” (JOÃO ANTÔNIO, 1987, p. 98) 100 4- NOS (DES) CAMINHOS DA MALANDRAGEM Mas nas minhas perambulagens aprendi a ver as coisas. (Paulinho Perna Torta) “Paulinho Perna Torta” é o conto que encerra a obra Leão-de-chácara, publicada em 1975. O conto narra a formação da personalidade de um malandro desde a sua infância até o momento em que se encontra no extremo da marginalidade. João Antônio mostra todo o processo pelo qual passou o protagonista revelando o seu aprendizado nas ruas. O conto se inicia com o protagonista revelando que o encurtamento do seu nome – o malandro prefere Paulinho duma Perna Torta – é o indício de que sua fama de grande marginal está se acabando e os jornalistas estão mudando seu nome como uma forma de deboche e de mostrar o fim do seu reinado. Paulinho Perna Torta rememora, em um monólogo narrado, os fatos mais importantes da sua vida até o momento em que completa 31 anos de idade, momento em que se mostra cansado e desiludido com a própria vida no crime. A gente pensa que está subindo muito nos pontos de uma carreira, mas apenas está se chegando para mais perto do fim. E como percebo, de repente, quanto estou sozinho! Uma parada sem jeito, ô encabulação! Agora a briga não é com ninguém, não. O pior de tudo, o espeto é que eu mesmo estou me desacatando e me dando um esporro. E é o maior enrosco! Eu acho que estou muito cansado. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 126) O conto se subdivide em três partes, a saber: Moleque de rua, Zona e De 53 para cá. Em cada um é descrita fases importantes para sua formação. Na primeira, sua infância é revisada até o momento em que encontra aquele que viria a ser seu padrinho, Laércio Arrudão. Na segunda, é narrada a sua entrada no mundo da malandragem e sua transformação em marginal até chegar à casa de detenção. Na terceira, Paulinho lamenta o declínio da marginalidade. Neste conto, juntamente, com “Dedo-duro”, João Antônio não retrata somente a malandragem e o jogo como formas de sobrevivência, vai além, problematiza a condição limítrofe do malandro que vive na condição ambígua da marginalidade. Paulinho não se limitou a viver de pequenos golpes como enganar os clientes colocando 101 água em suas bebidas, entrou no mundo da exploração de mulheres e no tráfico de drogas. Na narrativa, os hábitos malandros e até de certa maneira ingênuos vão cedendo espaço a relatos de tráfico de drogas, cafetinagem e a vida dentro da detenção. No que diz respeito à exploração de mulheres, João Antônio, em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, trabalhou a questão na relação entre Bacanaço e Marli. Todavia, o malandro explorava apenas uma prostituta e pensava até em largá-la e explorar outra que considerava mais experiente e bonita. Paulinho, ao contrário, começou com uma só, Ivete, até ter uma rede de prostituição. O conto “Paulinho Perna Torta” recebeu elogios de Antonio Candido no ensaio “A nova narrativa”. O crítico exalta a qualidades de João Antônio na elaboração do conto e afirma que: João Antônio publicou em 1963 a vigorosa coletânea Malagueta, Perus e Bacanaço; mas a sua obra-prima (e obra-prima em nossa ficção) é o longo conto “Paulinho PernaTorta”, de 1965. Nele parece realizar-se de maneira privilegiada a aspiração a uma prosa aderente a todos os níveis de realidade, graças ao fluxo do monólogo, à gíria, à abolição das diferenças entre falado e escrito, ao ritmo galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a vida do crime e da prostituição. (2011, p. 255) (grifos do autor) Sobre João Antônio, Candido ainda assevera que, juntamente com Rubem Fonseca, o autor é representante de um realismo feroz no final da década de 70. O crítico afirma que essa modalidade de realismo se impôs, pois corresponde e retrata a era da violência urbana, da marginalidade econômica e social e de um consumo desenfreado, em que a dificuldade de satisfazer as necessidades impostas devido ao quadro social e econômico é inerente, dessa forma concluímos que tal situação é, portanto, propiciadora da ascensão da criminalidade. No conto “Paulinho Perna Torta”, João Antônio narra o início da vida do protagonista na malandragem, e sua, posterior, inserção no universo da marginalidade. O conto é revelador de um tema constante na obra de João Antônio: a carência material e afetiva que impulsiona as crianças ao convívio com seres os mais sórdidos possíveis. Assim como Nego, do conto “Frio”, Perus, do conto “Malagueta, Perus e Bacanaço” e o protagonista do conto “Meninão do caixote”, Paulinho Perna Torta teve na aridez afetiva da sua infância o impulso para viver de pequenos biscates nas ruas da grande São Paulo até o apadrinhamento de um malandro ou de um bandido mais experiente que o inseriram no mundo da malandragem. 102 Dei duro enfrentei. Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malandro, ganhar. Como todo infeliz começa. Já cedinho batucava. Vai um brilho, moço? (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 79) O início da vida de Paulinho nas ruas é marcado pela exploração por um jornaleiro, que era dono das bancas de jornal e das caixas de engraxar. Paulinho tinha consciência de que lhe faltava experiência para lidar com os infortúnios que a rua proporciona. “Eu era um trouxinha que não sabia mandar o dinheiro do alheio.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 86) Todos os fatos são, para Paulinho, oportunidades para um aprendizado, por exemplo, em um momento de rebeldia tenta roubar um cliente que, ao descobrir, bate em sua cara. Após levar o tapa, Paulinho, meio tonto, foge do freguês e do jornaleiro, que se aproximou para evitar que o menino escapasse, porém, com ginga, Paulinho consegue sair da estação de trem. Fui e vim, rebolando. O gordo estatelado, os olhos me comendo. Na terceira ginga, o homem entrou na minha, avançou, tombou para a direita. Então, fintei o freguês pela esquerda e me voei de enfiada pelo portão de saída da Júlio Prestes. Dei no pé, dei, me arrancando ganhei os lados da Santa Efigênia. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 87) O trecho acima demonstra que Paulinho é diferente de outras personagens infantis de João Antônio, por exemplo, Perus, Nego e Meninão do caixote. Estes são retratados como sendo portadores de uma aparente ingenuidade que vai, aos poucos, cedendo lugar à malandragem. Paulinho Perna Torta, não, entende que é explorado e que, na primeira oportunidade, roubará qualquer um para se vingar da situação em que vive. João Antônio descreve o aprendizado de Paulinho e o que o impele a trabalhar em qualquer coisa. Uma espécie de pedagogia da fome. A gente caía na rua. Catava um jeito de se arrumar. Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete, calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fuça atrás de comida. [...] Porque isso de engraxar é uma viração muito direitinha. Não é frescura não. A gente vai lá, ao trambique da graxa e do pano, porque anda com a faminta apertando. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 80-81) 103 Paulinho afirma que sua ocupação de engraxate proporcionava sua alimentação e um lugar para dormir, a pensão de Triunfo, onde conheceu dona Catarina, “professora de acharques, de manha e lerolero” (JOÂO ANTÔNIO, 1976, p. 82), que o explorava e que também seria como uma espécie de protetora que o levava para cuidar da saúde com um farmacêutico e com um dentista. O que há de comum na formação do caráter das personagens de João Antônio é a ausência de cuidado, de amor e de carinho paternais. Paulinho é órfão e vai, gradualmente, sendo inserido no mundo da malandragem e, posteriormente, no da bandidagem. É importante lembrarmos que João Antônio sempre dedicou um espaço em suas obras para consagrar a influência de seu mestre, Lima Barreto. Para Antônio Arnoni Prado (1999, p. 147), a aproximação entre os dois escritores se dá em “transformar em projeto literário a mania ambulatória e a convivência com os deserdados [...]” Interessante, pois, seria traçarmos um cotejo das trajetórias de Paulinho Perna Torta e de Cassi Jones, personagem do romance Clara dos Anjos16, de Lima Barreto, tendo em vista que entre as duas personagens podemos notar aproximações e distanciamentos no comportamento de ambas. Diferentemente de Paulinho Perna Torta, Cassi Jones, não é órfão, tampouco humilde, pelo contrário é de uma família com uma condição financeira razoável. Apesar do distanciamento do pai, devido ao seu extenuante trabalho, o que mais fixa em seu caráter a maldade, é o fato de sua mãe ser conivente com seus atos espúrios e, por “seu quase congênito embotamento moral” (BARRETO, 2010, P. 72), como afirma o narrador do romance. Devido a esse “embotamento moral” Cassi Jones não sente nenhum remorso por ter assassinado Marramaque, padrinho da sua vítima Clara dos Anjos, a quem tentava alertar sobre o malandro aconselhando o pai da menina a afastá-la das garras do rufião. Lê as notícias nos jornais e não se abala, diversamente, de seu comparsa no crime, Arnaldo, que ao ouvir todas as censuras, assustou-se com a dimensão do crime que cometera, o que despertou a atenção de Cassi que passou a acompanhar os passos e as falas de seu cúmplice, que passara a embebedar-se para arrefecer seu sentimento de culpa. 16 Obra que pesquisamos neste trabalho, no capítulo “Os caminhos da malandragem”, pois é notória a grande admiração de João Antônio por Lima Barreto, sobre quem escreveu, inclusive, uma biografia literária: Calvários e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. 104 Nos botequins não entrava um freguês, que Arnaldo não examinasse meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos. Às vezes, não se continha e apontava: – Cassi, aquele é agente do décimo oitavo... O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade repreendia-o – Estás doido! Queres nos pôr no “x”, pelo resto da vida. No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o fizesse denunciá-los; mas, bem cedo percebeu que a sua bebedeira tomava uma feição choramingas, efusiva, dava para abraçar todos e, com voz de mágoa íntima, repetia de onde em onde, sem nada entender do que se dizia ao redor: “Eu não sou mau...” “Eu sou um bom rapaz...” “Nunca fiz mal a ninguém”, etc. (BARRETO, 2010, p. 145) Arnaldo, depois de sair do necrotério, onde vira o defunto, correu ao encontro de Cassi em um bar para dar-lhe notícias do estado do corpo de Marramaque. Todavia, Cassi o repreendeu, pois não queria que todos no bar soubessem que eles tinham cometido o bárbaro crime; não queria que sua má reputação fosse amplificada ainda mais. Paulinho Perna Torta, todavia, é um bandido que não tem como esconder sua fama, seu nome está sempre estampado nos jornais – o que de certa maneira o desagrada, pois publicam seu nome encurtando de Paulinho duma Perna Torta para Paulinho Perna Torta. Esse encurtamento do seu nome denota, para o marginal, a representação do seu declínio como bandido e, como resposta, afirma aos repórteres que estes terão que estampar a morte de um rei. Paulinho, para suportar a decadência, consome drogas exageradamente, não pode mais fugir do confronto com a polícia, pois está fortemente comprometido com a vida no mundo do crime. A análise da sua vida no crime o conscientiza de que o seu fim não fugirá ao de outros bandidos: ser assassinado pela polícia. “Eu só posso continuar. Até que um dia desses, na crocodilagem, a polícia me dê mancada, me embosque como fez a tantos outros. E me apague. E, nesse dia, os jornais digam que o crime perdeu um rei.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 130) O que aproxima Cassi Jones de Paulinho Perna Torta é a postura arrivista de ambos. O pensamento de Paulinho é revelador, “sempre gostei do melhor que é dos outros e cobiçando tomei quanto pude”. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 125) Este pensamento se coaduna com a atitude de Cassi que não mede esforços até conquistar Clara dos Anjos, inclusive assassina o padrinho da menina, Marramaque, por entender que este era um obstáculo aos seus objetivos. Para Lima Barreto, Cassi Jones nasceu malandro feito e se aproveita da sua condição e da conivência da mãe para aplicar seus golpes. Paulinho, por sua vez, afirma 105 ter vivido com certa ingenuidade (o que veremos mais a frente não ser verdade) até os quinze anos, quando conheceu o malandro Laércio Arrudão e este o introduziu no universo da malandragem. “[...] Eu ainda era um trouxinha. Cadê picardia? Uma criança que não conhecia o resto do balangolé – cadeia, maconha furto, jogo, mulher. Pois. Assim, até os quinze anos, quando Laércio Arrudão e eu nos topamos.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 88) Acontece que em João Antônio, muito mais que em Lima Barreto, o olhar do narrador é um aliado do olhar do bandido, quando não é a própria alma do bandido, como na biografia do pilantra aprendiz Paulinho Pena Torta, discípulo dileto do meliante Laércio Arrudão. Aqui, o humor que às vezes retorna para compor a aliança num quadro irônico que desqualifica a ordem dos bempostos no melhor estilo de Lima Barreto, entra apenas de relance, como no flagrante do conluio entre a polícia e os marginais (entre estes o narrador), digna das melhores páginas dos Bruzundangas [...] (PRADO, 1999, p. 160) (grifos do autor) Lima Barreto e João Antônio, duas vozes reveladoras do estado de coisas da marginalidade, sendo que, obviamente, cada um a seu tempo. Entendemos o termo marginal como duas acepções, a primeira: aquele que se encontra na extremidade, que não está no centro. Essas são todas as suas personagens, a quem João Antônio denominou “merdunchos”. A segunda acepção é a do indivíduo fora da lei, aquele que pratica atividades criminais, criminoso, ou seja, bandido, nesse caso, mais precisamente, a personagem Paulinho Perna Torta. Esse narrador (de João Antônio), que não perde a linha por igualar-se ao bandido, é ao lado do pobre e do marginal um dos bichos que reviram o lixo da cidade, para — ao contrário de Lima Barreto — sair da miséria e chegar ao luxo. Como protagonista, vende tóxicos, mata, explora mulheres, estabelece-se em apartamentos luxuosos e testemunha a decadência dos que outrora foram abonados, flagrando, assim, o lado trágico da luta de classes nas sociedades periféricas. Na sua trajetória, o subúrbio ficou longe, trocado pela cobertura na Boca do Luxo com jardim de inverno, televisão, telefone, carro e ar refrigerado. (PRADO, 1999, p. 161) Acerca da transformação do malandro em bandido, encontramos No texto Guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a dialética da marginalidade17, onde 17 http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r32/revista32_2.pdf. Acesso em 20/8/2013. O autor nesse ensaio propõe que as ideias contidas no ensaio de Antonio Candido, “Dialética da malandragem” foram superadas por uma “dialética da marginalidade”, que preconiza a substituição do jeitinho e da conciliação pelo confronto e pela exposição da violência ao invés do seu ocultamento. Para o autor, há duas vertentes de pensamentos sobre nossa formação social. A primeira privilegia a desigualdade social e a concentração de riquezas nas mãos de uma elite e que não deixa o poder, mesmo, com convulsões sociais; esta vertente é por ele denominada de “arqueologia da ausência”. A segunda vertente se inspira nas ideias de Gilberto Freyre, na medida em que este se apoia na miscigenação do povo brasileiro para explicar o caráter conciliador do nosso povo. Entretanto, João Cezar promove uma nova abordagem, que pudesse englobar ambas, contudo sem reconciliá-las, pois, não consegue ver nos 106 João Cezar de Castro Rocha afirma que a redução de conflitos sociais por meio da ginga e da malandragem seriam superadas pelo confronto direto, em vez de serem pautados pela ideologia da conciliação. O malandro, para o crítico, não tem como ideologia a transformação social ou pessoal, quer apenas tirar vantagem das situações com a ginga e com seu charme. O período em que foi escrita a obra Paulinho Perna Torta, 1965, um ano após o golpe militar, foi um período de grandes transformações sociais. A população brasileira sofria as consequências do processo de desenvolvimento econômico, implantado em anos anteriores, tais como o inchaço populacional das grandes cidades, que acarretou um conflito entre classes sociais distintas e, consequentemente, o aumento dos índices de criminalidade. As transformações da sociedade vivenciadas por Paulinho Perna Torta que acarretaram na maneira de as personagens se relacionarem entre e com o meio remetem às décadas de 50 e de 60 do século passado e é nesse período, pois, como afirma Michel Misse (1999, p. 7), que se dá “o crescimento dos mercados ilícitos das mercadorias do prazer e das sensações, particularmente as drogas” 18. Tais fatos não poderiam fugir à atenção de João Antônio, tendo em vista que foi através de suas andanças e de sua agudeza de espírito, que o autor vivenciou e representou literariamente as transformações de seu tempo. Seu posicionamento contrário às mudanças decorridas da modernidade é encontrado, também, no conto “Abraçado ao meu rancor”, um conto considerado de dois pensamentos distintos e unilaterais uma saída para entender nossa complexa formação social. O antropólogo pretende, pois, explorar ao máximo as diferenças entre as duas vertentes. 18 http://www.necvu.ifcs.ufrj.br/images/tese%20michel.pdf. Acesso em 20/8/2013. Tese em que o autor propõe uma espécie de arqueologia da criminalidade na cidade de Rio de Janeiro. O autor considera as origens, a continuidade e as transformações das práticas das criminosas desde os anos de 1950. Interessou-nos, principalmente, o capítulo 5 “Malandros, marginais e vagabundos”, no qual, o autor, a partir de uma entrevista com um ex-marginal, Broto, historia o aumento da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro. Essa tese é muito interessante no que dia respeito ao caráter memorialístico de depoimento de Broto que assim como, a personagem Paulinho Perna Torta, viveu nas ruas, abandonou a escola, foi interno do S. A. M (serviço de amparo ao menor), aplicou alguns golpes, inclusive nas forças armadas para fugir ao serviço obrigatório. Ao analisar as páginas dos jornais que noticiaram a prisão de Broto, Misse percebe que há uma alternância entre os vocábulos malandro e marginal para se referir ao bandido, fato que, para o sociólogo, é bastante coerente, no que diz respeito à conduta do entrevistado, pois este se comporta de maneira ambivalente, dependendo das circunstâncias. Nesse capítulo, Michel Misse analisa, também, como Lima Barreto criou o malandro Cassi Jones, de Clara dos Anjos e compara a personagem à letras de sambas de Noel Rosa, Ismael Silva, Geraldo Pereira e Wilson Baptista, chegando a conclusão que “Nos sambas de Noel, Ismael, Geraldo Pereira e Wilson Baptista, o malandro aparece principalmente sob um registro mais boêmio, mulherengo, orgiástico. [...] Já é o ‘malandro de morro’, que se atenua agora como sambista e que começa a se opor positivamente ao negativo ‘malandro’ suburbano de Lima Barreto, herdeiro das maltas e do clientelismo político do antigo regime.” 107 cunho mais autobiográfico por seus críticos. Entretanto, em “Paulinho Perna Torta”, o autor aponta que a alternativa para o malandro garantir sua sobrevivência com o fim da malandragem é entrar pelo caminho da marginalidade. João Antônio, ao fazer uma literatura “de bandido para bandido” 19 , humaniza a figura do delinquente social e muda a perspectiva pela qual a sociedade encara essas figuras. O tratamento dado ao tema, de maneira alguma, confere à personagem ares pitorescos ou o coloca como um coitado que sucumbiu às vicissitudes da vida; Paulinho Perna Torta, ao narrar sua vida, é consciente de que é um ser vencido, como afirma Ieda Maria Magri (2010, p. 76) em sua tese: O autor lhe dá o poder de figurar como agente da sua própria história, mudando, assim, o ponto de vista que domina o senso comum do que seja a malandragem e mesmo a criminalidade no Brasil que, de praxe, apreende o bandido como um ser sem humanidade, merecedor dos maus tratos da polícia e do confinamento social e mesmo da morte. João Antônio faz retroceder essa imagem cristalizada dizendo ao leitor, através de seu conto, que há sempre um lado da história que não é noticiado ou que se não quer mostrar e que é justamente esse que lhe interessa. A malandragem e a sua posterior entrada no mundo da bandidagem se configuram para Paulinho Perna Torta como uma opção frente à alternativa do trabalho assalariado. Paulinho, desde menino, encara os trabalhadores como otários. A passagem na qual o menino reflete sobre a condição dos trabalhadores assalariados é semelhante à descrita por Bacanaço, quando este, na porta do bar analisa ironicamente a movimentação dos trabalhadores, chamando-os de trouxas, otários e coiós. Descidos dos trens, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal. Mas que largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concreto, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o agrião, o pinhão. O positivo, o algum, o dinheiro. Aquele um de que eu precisava para me agüentar nas pernas sujas, almoçando banana, pastéis, sanduíches. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 82) O trecho acima é bem representativo do seu ponto de vista malandro, os trabalhadores são chamados de marmiteiros. O termo encerra uma metonímia que estabelece uma relação de contiguidade entre o objeto que contém a refeição diária e o sujeito que a carrega. O vocábulo é derivado do substantivo marmita adicionado do sufixo -eiro, este acrescenta ao termo uma uma ideia de agente, nesse caso de portador do objeto. No entanto, além desta função o sufixo carrega consigo, na maioria das 19 Como afirma o autor no ensaio “Corpo-a-corpo com a vida”. 108 vezes, um caráter ideológico que agrega à palavra derivada um tom pejorativo e pouco respeitável. Mais adiante o tom irônico se torna mais ácido, pois ao caracterizar os trabalhadores que apesar da aparência (usar gravata) também se incluem no grupo dos otários. Paulinho Perna Torta, antes de receber o célebre e lapidar conselho20 de Laércio Arrudão, possuía o sentimento de que só o dinheiro interessa e é positivo, para tanto desfiou uma grande quantidade de sinônimos para a palavra dinheiro de maneira a externar a intensidade do seu desejo pelo capital. No trecho, fica evidenciada a sua opção em levar vantagem sobre os trabalhadores assalariados. Apesar de em outro trecho afirmar que “isso de engraxar é uma viração muito direitinha. Não é frescura não. A gente vai lá no trambique da graxa e do pano, porque anda com a faminta apertando.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 81) o trecho denota que sua atividade deve ser levada a sério, todavia os termos21 (viração e trambique) que usa para se referir à sua ocupação cristalizam sua escolha pela malandragem. Na segunda parte do conto, intitulada de Zona, Paulinho relata sua entrada no mundo da marginalidade. Esse processo se inicia, primeiramente, ao conhecer Laércio Arrudão e este lhe mostrar os caminhos que deveria traçar. Para conhecer a prostituta Ivete, teve que ser com um empurrão de seu padrinho. Tamanha era sua falta de experiência que seu primeiro pedido a prostituta foi uma singela bicicleta. O malandro não estava disposto a pedir o presente à prostituta por medo, mas influenciado por Laércio Arrudão que o mandara pedir porque, com a sua experiência, tinha a certeza que ela daria o presente por estar apaixonada. “Pede, meu. Ela dá a grana. Mulher gamada dá tudo. Parte pra qualquer negócio.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 95) O objeto com o qual corta as ruas de São Paulo com habilidade é, para o malandro, uma forma de sentir-se livre. Vou pedalando muito tranchã, esta magra em que pedalo de camisa aberta, pondo o peito pra frente, o queixo quase-quase no guidão, fazendo curvas e fincando disparadas por estas ruas de São Paulo, tirando minhas finas entre postes e carros, avançando contramão, tirando as mãos do guidão e guiando só com os pés, na gostosura maior 20 O conselho é tão importante para interpretarmos o pensamento de Paulinho Perna Torta que serviu, inclusive, de epígrafe para o conto. O trecho que é revelador da sua ideologia é o seguinte: “Laércio começava a me escolar que quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas o dinheiro é positivo. O resto são frescuras do coração.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 99) 21 Na sua agenda-dicionário, publicada pela Cosac & Naify, encontramos os verbetes trambiqueiro e virador. Para o primeiro segue a definição, aquele que faz trambiques; virador, e, para o segundo, aquele que tem expedientes de malandragem. 109 dessa vida... De quando em quando, me dando à fantasia de ir pelas ruas desertas, curvando sempre, de calçada em calçada, como se estivesse dançando uma valsa vienense... (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 95) Após conhecer Ivete é que seu nome começa a correr a zona de prostituição. Ivete passou a enaltecer o nome de Paulinho, porém, sempre com a intenção de mostrar para as outras prostitutas, suas rivais que Paulinho tinha dona. As cenas de ciúme protagonizadas pela francesa chegavam a levá-la a arranhar o malandro. As coisas só mudariam após Paulinho pedir conselhos a Laércio Arrudão sobre o que tinha de fazer para poder reverter a situação. Os ensinamentos do velho elucidaram o malandro sobre como deve ser a conduta de um cafetão com relação às prostitutas que explora. [...] Quem bate é o homem. E manda surra a toda hora e fala pouco. Quem chega tarde é o homem – a mulher só tem um homem. Quem vive bem é ele – para tanto, a mulher trabalha, se vira e arruma a grana. Quem impõe vontades, nove-horas, cocorecos, bicosde-pato e lero-leros é o macho. Homem grita, manda e desmanda, exige, dispõe, põe cara feia e pede pressa. A mulher ouve e não diz um a, nem sim, nem não, rabo entre as pernas. Mulher só serve para dar dinheiro ao seu malandro. Todo o dinheiro. Por isso, entre os malandros da baixa e da alta, as mulheres se chamam minas. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 98) Depois dessas aulas de Laércio Arrudão, Paulinho Perna Torta começa a encarar a vida por outro ponto de vista, ganha nome de malandro perverso, cresce na malandragem. Ivete passa a respeitá-lo como um malandro formado e não como um “cadelinho”, como costumava chamá-lo antes de começar a ser surrada sistematicamente. “E belisco e mordo, cobiçando e tomando as coisas dos outros, como é do ensino de Laércio Arrudão.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 110) Na terceira parte do conto, de 53 para cá, Paulinho Perna Torta não é mais um malandreco explorador de mulheres, durante sua experiência na zona de prostituição, ganhou experiência, passou a assaltar, foi preso pelo menos cinco vezes, passa a fazer tratos escusos com a polícia. O início da última parte é revelador da transformação que sofrera o protagonista. “A casa de detenção é a maior escola que um malandro tem. Na detenção, um malandro fica malandro dos malandros.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 117) Os ensinamentos não vêm mais da boca de seu “padrinho” Laércio Arrudão, que dispensava a ele os mais variados ensinamentos e que lhe dava um tratamento quase “paternal”. 110 A dura realidade de estar praticamente sozinho em uma detenção transformou o universo interior de Paulinho, influenciando dessa maneira a sua narrativa. Nas duas primeiras partes, a narrativa segue em um tom de euforia, pois o malandro vive um período de descobertas em sua vida. O malandro vai conseguindo sobreviver e, apesar das dificuldades, segue sempre experimentando os sabores e os dissabores da vida. A escalada de Paulinho vai de menino de rua a malandro feito; conhece a primeira mulher e, posteriormente, passa a explorá-la, torna-se um malandro conhecido na zona de prostituição, torna-se um dos grandes nomes dentro da zona. “Sou um nome. Laércio Arrudão me aprova a conduta. E atiça.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 111) Na terceira parte, é narrado o início do declínio de Paulinho, portanto, João Antônio revela na mudança de dicção que o tom de euforia, decorrente das descobertas do garoto Paulinho cede lugar a um ritmo angustiante, onde prevalecerá o tom de frustração e de rancor. Dois sentimentos que estabelecem uma relação de contiguidade na alma do malandro, pois, no pensamento de Paulinho, sua vida no mundo da bandidagem não teria um fim tão rápido. Esses sentimentos aparecem, ainda, no final da segunda parte como um prenúncio do que ocorreria na terceira. Quando os boatos de que o governo de São Paulo iria fechar a zona, Paulinho sente-se, ainda, mais desiludido com a vagabundagem que passa a pagar propina para a polícia. Para Paulinho, a “curriola” não deveria aceitar esse tipo de negócio, deveria se unir e, malandramente, despistar a polícia. Todavia, o sentimento de frustração de Paulinho não o permite perceber que não há mais saída ou se faz o acordo, ou foge ou vai para a detenção, o que ocorre com o malandro. Será que não mancaram? Que negócio bom seria fintar a polícia, partindo para um gelo, para uma onda de calma? Não, não. Essa cambada de vagabundos não tem a menor asa de barata de picardia. Uns covardões. Uns apavoradões, uns coiós-sem-sorte! (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 113) A respeito da frustração de ver o desaparecimento da malandragem, a voz de Paulinho se irmana a voz do narrador do conto “Abraçado ao meu rancor”. Neste, a frustração cede lugar ao ódio contra os profissionais da propaganda, que mascaram a cidade, a qual o narrador não reconhece mais, forçando a malandragem a refugiar-se. Em “Paulinho Perna Torta”, a frustração com a postura da malandragem se cristaliza em 111 ódio declarado à imprensa. Para Paulinho, a imprensa reforça junto à população as ações coercitivas da polícia. E os jornais, querendo fazer uma presença para as famílias da cidade, tocam confete na polícia. E tudo se entorta. Pudera... Pegam o pé da gente de acordo. Dão de pau, nos dão a maior prensa. Que eles são a força e vêm com gana. Também... a gente por aí, nas letras dos jornais, está mais sujo do que pau de galinheiro. (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 113) Na detenção, Paulinho, apesar de ser o juiz da sua cela, não depende somente de seus esforços; depois da morte de Ivete, o malandro passou a explorar a prostituta Valquíria, a quem exige que transporte dinheiro e drogas para ele. A prostituta, também, leva notícias do mundo fora da cadeia e avisa que as coisas estão melhorando depois da volta de Laércio Arrudão e de seus irmãos para a cidade. Para poder ser solto, Paulinho recorre ao advogado Aniz Issara e a um artifício que considera ser a mais pura malandragem: comportar-se na detenção. “Eu me comporto muito direitinhamente como reza Aniz Issara.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, 120) Todavia só consegue sair da detenção quando seu padrinho Laércio Arrudão surge dois anos e meio depois com o dinheiro para o alvará de soltura. O malandro narra sua saída da detenção em terceira pessoa, simulando as notícias que apareceriam nos jornais no dia seguinte. Note-se que não encurta seu nome e se enaltece demonstrando o desejo de como queria ser retratado pela imprensa. “Paulinho duma Perna Torta pisa o meio-fio da Avenida Tiradentes e é fotografado. Mas não liga aos tontos da crônica policial que estão à sua roda. Espera um táxi. Está com grana, saiu de casa com a cobiça raiada.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 120) A própria narração da sua saída é uma revanche contra a imprensa e o tom o enche de forças para a vida fora da detenção pensa em conquistar todo o estado de São Paulo. Na sequência Paulinho juntamente com seu padrinho e o malandreco Frangão volta a estabelecer-se, novamente, no mundo da marginalidade e volta mais perigoso e ganancioso do que antes da casa de detenção, passa a lidar com jogos, prostituição drogas e comete seus primeiros assassinatos como demonstração de força e de poder. Laércio Arrudão introduziu Paulinho Perna Torta mais uma vez nas ruas. O relato da sua volta é permeado pela frase “E vou” que demonstra que o malandro está cheio de esperanças e de vontade de se reerguer. Essa fase dura até o momento em que faz uma revisão da própria vida e percebe que está só e cansado. “A gente pensa que está subindo muito nos pontos de uma carreira, mas apenas está se chegando mais perto 112 do fim. E como percebo, de repente, quanto estou sozinho.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 125) Os relatos, a partir desse momento, são permeados pela frase “a rua está ruim” e são reflexos da transformação no espírito de Paulinho Perna Torta, a fase de esperanças cede lugar a das reflexões existenciais plena de melancolia e de dúvidas. Recorre à macumba de Zião da Gameleira, antigo conhecido da casa de detenção de onde Paulinho o ajudara a sair, mas não encontra solução, antes, suas incertezas se acentuam. “Não fossem as prosas da crioulada de Zião da Gameleira, e eu não estaria aqui agora, me azucrinando com estes pensamentos bestas.” (JOÃO ANTÔNIO, 1976, p. 130) Sem esperanças, Paulinho sabe que não suporta mais a vida no mundo do crime, está solitário, a polícia está mais violenta, a imprensa está contra, sempre noticiando suas façanhas. Sem alternativa, encontra solução no vício de tóxicos e na resignação de que sua vida às vésperas dos trinta e um anos poderá chegar ao fim a qualquer momento. João Antônio encontrou em Paulinho Perna Torta um símbolo para a decadência da malandragem que se habituara a conviver e a retratar em seus contos. A narrativa aponta um caminho sem volta, ao entrar no mundo do crime, o malandro percebe que não consegue e não pode mais trilhar o caminho da conciliação, sua marca mais profunda. CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra de João Antônio é, pois, sempre associada à representação da figura do malandro, e como este consegue sobreviver através da sua astúcia e da sua 113 inteligência no que diz respeito à arte de enganar o outro. Apesar de este fato ser inegável, pudemos perceber, durante nosso estudo, que a galeria de personagens é muito mais extensa e não se limita somente a malandros e otários e a condição de reversibilidade existente entre ambos, sua obra é reveladora das condições em que a população de origens modestas sobrevive. A dissertação que ora concluímos teve como principais objetivos revelar o quanto as personagens de João Antônio são fascinantes em todas as suas possibilidades existenciais. As relações humanas representadas simbolicamente por malandros de toda a espécie, por mulheres ora exploradas, ora exploradoras, por otários simbioticamente ligados aos malandros que os ludibriam, por crianças que têm nos seus protetores, heróis a serem reverenciados ou rivais a serem vencidos, por trabalhadores, assalariados e espoliados, os “merdunchos” que são explorados pelos patrões, pelas suas mulheres e, obviamente pelos malandros. Como privilegiamos no corpus do trabalho seus contos, que classificamos como mais ficcionais, tentamos retirar os traços biográficos, salvo a sua predileção pelos mais humildes e encontramos uma obra rica em interpretações, devido ao seu apurado senso estético. Evidenciamos que a sua literatura é de extrema pujança no que diz respeito à postura coerente com que se imbricam obra e biografia, apesar de refutarmos que sua obra seja estritamente de cunho autobiográfico. Ora, qualquer escritor escolherá como tema das suas obras aquela matéria de que seja íntimo. O escritor poderá, também, privilegiar as experiências que, por vezes, tenha vivenciado na própria pele. As possibilidades são infinitas, pois poderá abordar, ainda, um tema que ainda não tenha vivido nem seja íntimo e, terá na literatura, uma maneira de tornar real tal experiência por meio da imaginação. Estas obras não serão, necessariamente, de cunho autobiográfico. Em “Abraçado ao meu rancor”, temos um vivo depoimento de um homem que não consegue encontrar aqueles elementos – sejam eles físicos ou humanos – que, anteriormente, convivera e que serviram de matriz para seus contos. Seus contosreportagem contribuíram, efetivamente, para a análise de seus contos mais ficcionais, por exemplo, o conto “Sinuca”. Estes contos, um hibrido entre literatura e jornalismo, acabaram por corroborar seu projeto literário, a partir da sua postura crítica diante da vida e da literatura. 114 Tendo em vista que em diversas situações procuramos trazer trechos da sua poética de corpo-a-corpo com a vida para cotejarmos com sua obra ficcional, pudemos observar a coerência com que o autor realiza sua prática literária. Sempre, preconizando uma aderência à realidade, o autor consegue através dos mais variados artifícios narrativos como, por exemplo, o monólogo narrado dar voz a um grande número de pessoas marginalizadas pelo sistema. Nas páginas dos seus livros, “merdunchos” giram e gritam pela cidade a sua condição precária, um menino explica o que o levou e o tirou do mundo da sinuca, o marginal explica suas origens, que vão do menino desamparado ao mundo do crime, para este a malandragem não bastou. Constatamos que seus contos trazem a dicção das ruas, que pressupomos, malandra, pois é envolvente com um linguajar próprio e plurissignificativo, cheios de malemolência, como pudemos verificar com o uso ostensivo das gradações a que classificamos, também, como malandra, visto que entendemos que a agilidade e a habilidade com as palavras e com os gestos são uma especialidade desta figura sempre surpreendente: o malandro. Encontramos em João Antônio, um exímio contista, que lapidou, com picardia, esse material colhido nas suas andanças gravando seus nomes com maestria e legando para a posteridade essas existência que passam despercebidas no canto das ruas e dentro dos botecos. Como afirmou Jorge Amado na apresentação da obra Dedo-duro. Vida por vezes suja, literatura que não se propõe às frases caprichadas, às palavras sonoras. João Antônio trabalha com o lixo da vida e com ele constrói beleza e poesia. Porque esse escritor soma ao talento e à experiência, o amor, a paixão pela gente que povoa seus livros admiráveis. (JOÃO ANTÔNIO, 1988, p. 10) É, dessa maneira, que João Antônio minimiza e, por vezes, elimina a distância entre literatura e o povo, pois, o autor tem “um compromisso com a coisa brasileira, sem retoques, imposturas e embelecos mentais.” (JOÃO ANTÔNIO, 1975, p. 144) Podemos ressaltar que da análise mais apurada da obra de João Antônio, inclusive das suas cartas e de seus depoimentos, encontramos um escritor, extremamente, afeito ao estudo dos aspectos da cultura brasileira e um combativo crítico da condição em que se encontrava o escritor em seu tempo. 115 Esperamos, portanto, ter contribuído significativamente para os estudos da obra de João Antônio, assim como, para o estudo de literatura de um modo geral, como apontamos na introdução deste trabalho. Temos a ciência de não termos esgotado o assunto, pois, em se tratando de literatura, a obra de cada autor é um manancial inesgotável de possibilidades de interpretação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS a) Do Autor ANTÔNIO, João. 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