UM DIA DE BENEDITO,
OU,
SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO COME
Texto de
Calixto de Inhamuns
criado a partir de cenas e improvisações dos atores do
Grupo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo.
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Cena 0 – Onde se arma uma isca para os passantes com a organização do trabalho e algumas músicas do nosso folclore
Em uma praça, ou entroncamento, ou lugar onde se cruzam pessoas, um
grupo de atores está aprontando o espaço, ordenando as coisas, afinando os instrumentos. Depois formam um coral, como se formam todos os
corais, com gravidade e seriedade, e começam a cantar a congada “Vem,
meu povo vem”, trazida pelo Grupo de Congada Filhos de N'Zambi, de
São José dos Campos.
ATORES:
(Cantam.)
Vem meu povo vem
Não se acanhe não
Chegue mais perto
Para ouvir o som
Na segunda música, a congada “Passarinho avoou”, encontrada em uma
apresentação do grupo Congada Batalhão de Nossa Senhora de Aparecida, de Mogi das Cruzes, já tem um começo de movimento, alguns já saem
da formação.
ATORES:
(Cantam.)
Passarim avoou, passarim avoou,
Bateu asas, foi embora
E nunca mais voltou
Na terceira música, “O Jangadeiro”, trazida pelo Grupo de Congada Filhos de N'Zambi, de São José dos Campos, onde já se fala de São Benedito, alguns atores já estão no meio do público.
ATORES:
(Cantam.)
Ô Jangadeiro, Jangadeiro
Ôooo
Olha o Balanço do mar
Aaaa
Como velho marinheiro
Quando vê o nevoeiro
Toca o barco Devagar
Vou pedir São Benedito
Que ajude os aflitos
Atravessar o alto mar
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Quando termina a terceira música os atores já estão fora da roda que está
se formando. Um locutor começa a falar. Os atores param de cantar, mas
continuam com os instrumentos com menos força, mas com a mesma
alegria e intensidade.
Cena 01 – Uma festa de São Benedito onde se canta e fala das agruras e das alegrias de um povo
LOCUTOR:
Sejam muito bem vindos senhoras e senhores à 74ª festa de
São Benedito! Todos sejam bem vindos! Entreguem-se a
alegria das nossas tradições e da nossa cultura!... Ela é
nossa!... Nasce nos grotões, nas periferias, na alma do nosso Povo... É sacra, é profana e recebe de braços abertos todos que buscam a alegria e a fé!... Não só os que buscam
alegria e fé, mas, principalmente, aqueles que procuram um
norte para compreenderem as mazelas do nosso mundo... E
vamos que vamos, minha gente, arregaça a viola, violeiro...
(A viola se destaca.) Arrebenta os couros dos tambores,
batuqueiros!... (Aumenta a força dos tambores.) E Viva
São Benedito! (Os atores entram com as bandeiras e cantando a congada “É hora de nós chegar”, encontrada em
uma apresentação do Grupo Congada Raizeiro de Pindamonhangaba.)
ATORES:
(Cantam.)
Rainha pega a bandeira
É hora de nós chegar
Eu que não faço nada
Sem meu capitão mandar
Os tambores baixam, mas continuam tocando.
LOCUTOR:
Isso é festa, gente boa! A peteca não pode cair e nem os
couros afrouxarem. Arrepia, pessoal!
Volta a intensidade dos tambores e os atores cantam a congada “Esmoreço não”, trazida pelo Grupo de Congada Filhos de N'Zambi, de São José
dos Campos.
ATORES:
(Cantam.)
Esmoreço não
O meu Santo é forte
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Com a minha congada
Sigo em frente
Deus me socorre
E não tem tristeza
É só alegria
As dificuldades todos sabem
É do dia a dia
Os tambores baixam.
LOCUTOR:
E viva São Benedito, pessoal!
ATORES:
(Repicando nos tambores.) Viva!
LOCUTOR:
Essa é a Radio KY, aquela que facilita a sua vida... E temos
aqui uma mensagem de amor... É pra aquele rapaz que está
em tal lugar, de roupa assim e assado... Aquele bonitão...
Alguém manda a seguinte mensagem pra você, meu lindo!...
Olha que romantismo... “Estou de olho em você... Quero você em mim e estou na sua pista... Quem te quer muito...
RP.” Hum, quero você em mim!... Ah, quem será essa misteriosa RP?... Quem sabe?
BÊBADO:
A Rádio Patrulha! RP, Rádio Patrulha!
LOCUTOR:
Meus Deus do Céu! A Rádio Patrulha tá apaixonada por você, lindo! Se cuida! Pede por São Benedito que ele é o protetor dos pobres e dos oprimidos. (Sobem os tambores.) E
vamos que vamos! Esquenta o couro minha gente!
Os atores cantam a congada “Compadre São Benedito”, trazida pelo Grupo de Congada Filhos de N'Zambi , de São José dos Campos. O Ator que
faz o pai sai da roda.
ATORES:
(Cantam.)
Compadre São Benedito
Vê se de nóis alembra
Compadre São Benedito
Vê se de nóis alembra
Alembra, alembra, alembra
Ô meu cumpadre alembra
Alembra, alembra, alembra
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Ô meu cumpadre alembra
Pra chegar até aqui, festejar São Benedito
Ô meu cumpadre Alembra
Mas olha quem vem lá:
É São Benedito que vem trabalhar
Mas olha quem vem lá:
É São Benedito que vem trabalhar
Chegou , olhou, abençoou quem trabalhou
Chegou , olhou, abençoou quem trabalhou
São Benito Santo
Filho da virgem Maria
São Benito Santo
Filho da virgem Maria
Hoje é sua festa ô meu rei
Hoje é nosso dia
Hoje é sua festa ô meu rei
Hoje é nosso dia
Mas olha quem vem lá:
É São Benedito que vem trabalhar
Chegou , olhou, abençoou quem trabalhou
Chegou , olhou, abençoou quem trabalhou.
Enquanto o resto dos atores cantava, no meio do público, o Pai, montou
seu muro, sobe e começa a balançar em cima, cai não cai. Quanto a música termina um ator grita.
HOMEM 1:
Olha lá! Um homem tá se jogando do viaduto.
Cena 02 – A vida é um rio de lágrimas e um homem resolve se jogar
na correnteza.
TODOS:
Sai daí, moço! Vai cair! Cuidado! Não faz isso!
BÊBADO:
Pode se jogar! Fala shazan que você voa! Vai, fala e se joga!
MULHER:
Cala a boca, idiota! Moço, o que você tá fazendo?
MULHER 2:
Cuidado!
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MULHER:
Num faz isso!
HOMEM 1:
Cê vai morrer, meu senhor!
PAI:
É isso que eu quero mesmo, morrer!
MULHER 2:
Saí daí!
HOMEM 2:
Num faz isso, meu amigo! É pecado tirar a vida.
PAI:
Pecado, moço, é viver essa vida miserável.
BÊBADO:
É isso ai, moço! Fui no médico e ele me proibiu cachaça,
comida e mulher! Viver pra quê! Tô contigo, moço, se joga
de cabeça, vai!
MULHER 1:
Por que você não se mata no lugar dele, pau d’água?
BÊBADO:
Porque eu num obedeci ao médico, ora.
HOMEM 1:
Por que esse desespero, meu senhor, e a sua família?
PAI:
A cidade tá acabando com a milha família... Ontem enterrei
minha mulher... Morreu abandonada, como um bicho qualquer, na calçada de um hospital... Meu filho morreu baleado
pela polícia... E eu, sem trabalho, sou só um estorvo pra minha filha. Digam pra ela, por favor, que eu amo muito ela.
(Balança no viaduto, ameaçando se jogar.)
TODOS:
Não!
MULHER 2:
Não faz isso, moço! Tirar a vida é pecado!
MULHER 1:
Não faz essa loucura! O senhor vai pagar por esse pecado
no Inferno.
MULHER 2:
Não se desgrace, meu senhor.
PAI:
O inferno é aqui, minha senhora, nada pode ser pior do que
isso.
DIABO:
(Off.) Tem razão, meu prezado... Pode se jogar! ... Sua vida
vai melhorar e muito!
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Num plano elevado, com pernas de pau pequenas, o Diabo, vestido de
forma elegante igual a um homem comum, mas com um chapéu na cabeça, aparece. Todos se voltam para ele.
Cena 03. O Diabo, favorecido pelas atuais condições do Brasil, aparece falando das vantagens da sua empresa, o Inferno.
DIABO:
A bíblia estava certa quando falou que depois da morte sua
vida ia melhorar! Ela falou do lugar errado, mas depois da
morte você terá uma vida melhor! Muito melhor!
BÊBADO:
Fala lá, pastor, me engana que eu gosto!
DIABO:
Não sou pastor, meu prezado, não prometo o que não posso! E eu prometo uma vida melhor do que esta que todos
vocês vivem por aqui! Prometo e cumpro!
BÊBADO:
É vereador!
HOMEM 1:
Deve ser um gato! O senhor tá oferecendo emprego?
DIABO:
Que vereador, que gato, que emprego? O que eu ofereço é
uma vida melhor! (Para o Pai.) Pode se jogar, meu prezado!
Se jogue e saia dessa vida de humilhação, de exploração e
de desrespeito! Venha pra uma vida eterna e melhor!
MULHER 1:
É Cristo! Ele voltou!
MULHER 2:
Ele tá trazendo o Paraíso!
DIABO:
Não sou Cristo! E se ele aparecer por aqui, depois deste
mundo que ele deu, onde vocês onde tem que ganhar a vida
com o próprio suor, vai ser crucificado novamente! E eu,
também, não ofereço o paraíso! Ofereço um lugar quente e
acolhedor: o inferno! (Tira o chapéu e embaixo tem dois
chifres. Todos se assustam, gritam.) Sou Lúcifer! Mefistófeles Tinhoso Lúcifer! (Para o Pai.) É isso que ofereço a você, meu prezado, o inferno! Vamos, se jogue, e garanta seu
lugar no inferno!
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PAI:
(Fazendo o sinal da cruz com o dedo.) Vai de retro, Satanás!
DIABO:
Se jogue, meu prezado! Se livre da vida miserável que você
leva! Diga adeus às filas do SUS; ao desemprego ou a seu
salário mixuruca; aos trens, metrôs ou ônibus lotados; à miséria da aposentadora; de ser maltratado nos bancos, enganados por políticos e explorados por seus patrões! Lá, eu
garanto, todos terão casa própria, pois o inferno é de todos!
Diga adeus a essa vida de miséria e exploração e venha esquentar sua vida no inferno! O inferno é melhor do que a vida que vocês levam! Venham!
BÊBADO:
Se tiver goró na faixa, chifrudo, tô nessa! Onde me inscrevo?
Onde me inscrevo!
DIABO:
Você se inscreve desistindo da vida! (Para o Pai.) Vamos,
meu prezado, sai dessa vida de sofrimento e venha para o
inferno!
MULHER 1:
Não faz isso, meu senhor, não faz isso. O senhor vai queimar no inferno, não faz isso.
DIABO:
Se as pessoas queimassem no inferno, minha prezada, ele
estaria vazio e com cheiro de fritura. Isso é fofoca da oposição! Salte, prezado, salte para a morte e entre em uma nova
vida.
FILHA:
(Fora.) Pai, que loucura é essa?
A filha entra entre o Diabo e o Pai.
Cena 04. Tem alguma coisa mais no mundo além do Diabo e da vida
indigna
FILHA:
Desce daí, pai! Por que o senhor está fazendo isso?
PAI:
Desculpa, filha, não sirvo mais pra nada... Vou ser sempre
um estorvo pra você.
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BÊBADO:
Tá sendo um estorvo pra todo mundo... Tá um tempão aí em
cima e nós aqui esperando... Se joga logo, cara, se joga e
aceita a oferta do nosso amigo Fedegoso!
FILHA:
Deixa de ser idiota, bêbado! Desce daí, pai, por favor.
DIABO:
Quero propor um negócio ao seu pai, minha prezada.
FILHA:
Quem é o senhor?
DIABO:
Lúcifer. Mefistófeles Tinhoso Lúcifer! Sou o senhor do Inferno e estou propondo ao seu pai que se jogue deste viaduto,
se livre da vida miserável que vive e venha para o inferno. É
uma escolha: sair da opressão, da infelicidade, e entrar em
um novo mundo!
FILHA:
A vida não é um fla-flu, capeta dos infernos! Ninguém é obrigado a escolher entre a miséria que nos vivemos e o teu inferno! Tem outra opção que é a gente construir o nosso
mundo! Desce daí, pai, se é pra morrer, vamos morrer brigando por algo nosso!
PAI:
O que eu posso fazer, filha? Sou só um velho, segue sua
vida.
FILHA:
Você sempre foi meu caminho, pai... Sempre segui o senhor... Se for preciso, vou ser o caminho do senhor! Desce,
vamos pra casa descansar e a gente decide, juntos, o que
vamos fazer.
DIABO:
Gosto dos jovens confiantes, minha prezada, e quero propor
algo... Eu passo diante de todos a história de sua família e a
gente pede pro público presente decidir se ela é melhor que
o inferno, ou se essa terceira via é possível.
FILHA:
Não faço acordo com o capeta, nem com belzebu e nem
com você Mefistófeles. Não tenho medo de você.
DIABO:
Não me desafie, minha jovem, não me desfie. Eu sou aquele
que foi expulso do céu por se rebelar contra seu próprio Pai.
O anjo querubim que representa as labaredas vermelhas do
fogo do inferno. Eu sou a serpente que seduziu Eva. Fui eu
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quem tentou o Messias nas dunas de um deserto. Sou o
herdeiro do Hades. Eu tenho, no conforto das profundidades,
o seu irmão! Vamos contar a história da sua família e se
eles, esses todos que estão aqui, acharem que você tem outra saída liberto seu irmão, se não, levo você e seu pai.
FILHA:
Quem faz acordo com o diabo, entrega a alma pra ele.
BÊBADO:
A menina tá se cagando toda.
PAI:
Se é pra trazer de volta o meu filho, eu concordo! Pode contar minha história, Tinhoso.
FILHA:
Não faz isso, pai... Ninguém tem o controle da vida e da
morte... O preço do acordo com o diabo é alto, ninguém sai
impune, não faz isso.
PAI:
Eu confio em você, filha, deve existir uma saída nossa! Que
o povo julgue a nossa vida que é a vida de muitos que estão
aqui! Vai lazarento, você dá as cartas! Vamos começar o jogo.
DIABO:
(Como locutor.) E repiquem a caixa! (A caixa entra baixo.
Os atores se preparam enquanto isso.) E a festa de São
Benedito continua minha gente, mas agora sobre o meu comando, Lúcifer! Mefistófeles Tinhoso Lúcifer! E vocês vão
decidir se esse homem estará melhor no inferno ou aqui
nesse mundo de calamidade pública de vocês. Mas a gente
começa com alegria... É interior, é roça, é festa! Viva o samba de Lenço!
Cena 05 – Uma família é expulsa da sua vida e vai atrás de uma vida
melhor
Os atores cantam o Samba de Lenço “Pinica a lima pra laranja madurar”,
tirada de uma apresentação do Samba de Lenço, de Mauá, SP.
HOMEM 1:
É isso aí, minha gente, pinica a lima pra laranja madurar.
ATORES:
(Cantam.)
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
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Fui panhá laranja
Laranja caiu
Eu olhei pra cima morena
Sabiá fugiu
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Dona Luzia, é uma nêga boa
Ela faz um samba lá na casa da patroa
Mas eu não vou nesse samba com você
Porque a polícia tá querendo me prender
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Os atores vão cantando e vão entrando no meio do público. A ideia é que
a roda seja quebrada naturalmente de forma que se crie uma convenção.
Enquanto as caixas continuam tocando, o ator que faz o filho, que já largou o seu instrumento, não muito próximo dos que tocam, começa a gritar. Os outros atores que formam a família, também largam os instrumentos. Os diálogos, no início, são feitos à distância, não é uma cena realista,
não tem olho no olho.
FILHO:
Pai! Ô pai! Paiê! Onde tá o senhor, pai?
MÃE:
Que foi, moleque?
FILHO:
Cadê o pai, mãe?
FILHA:
Que tá gritando aí, abobado?
FILHO:
Cê sabia que o pai vendeu a nossa casa? Que a gente vai
se mudar pra São Paulo.
FILHA:
É verdade, mãe?
MÃE:
Não está certo ainda, filha, mas acontece que...
PAI:
(Cortando, de longe, num plano mais elevado.) Tá certo
sim, mulher... A gente vai pra São Paulo... Eu vendi a casa,
uma ninharia, mas dá pra gente chegar até lá... A gente vai
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ficar na casa da sua tia no começo, Ticiano... Depois, arrumo trabalho e uma casa pra gente.
FILHO:
Não pode fazer isso, pai!... Meus amigos?... Minha vida tá
aqui, pô!... Eu não vou.
FILHA:
Que seus amigos, Ticiano? Todo mundo sem trabalho...
Quem não tá virando religioso, tá virando bêbado!
MÃE:
(Quase ao mesmo tempo, da filha.) Não fala assim com
seu pai, Ticiano! No meu tempo, se alguém falasse assim
com o pai, levava uma bofetada.
PAI:
Deixe ele falar, Consolação... No nosso tempo, também, um
pai não deixava faltar nada em casa.
MÃE:
Nunca falou comida aqui em casa, Ditinho! Tá certo que a
gente num tem mais um pedaço de terra pra plantar nossas
coisas, que a gente vive apertado, mas vive.
FILHA:
Eu vou com o senhor, pai. Cortar cana, catar laranja, agora é
coisa de máquina, não é mais emprego de ninguém, tá cada
vez mais difícil.
FILHO:
Eu vou fazer um curso pra operar máquina de cortar cana...
Eu ajudo o senhor.
FILHA:
Que curso pra operar máquina, Ticiano? Você nem terminou
o ginásio! Entenda a situação do pai... Aqui só tem fazenda,
empresa agrícola, não tem mais lugar pra nós.
FILHO:
Você que ir, Gabi, porque seu namorado foi pra lá... Foi,
nunca mais deu notícia e você quer ir atrás dele.
PAI:
Chega! O que a gente não precisa agora é de uma guerra na
família. Desculpa, filho, mas gente tem que ir.
FILHO:
Por que a gente tem que ir, pai? Lá vai ser tão, ou mais difícil, do que aqui.
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PAI:
Sua mãe tá precisando de cuidados, filho... Essa dormência
que ela sente nas mãos e nos pés, o médico falou que pode
ser grave.
A partir desse momento, o pai desce do lugar mais elevado e todos vão
lentamente se aproximando.
FILHA:
É neuropatia tóxica, Ticiano... Os agrotóxicos que jogam nas
lavouras.
FILHO:
A mãe nunca trabalhou na lavoura.
FILHA:
É o veneno que jogavam no laranjal... A nossa casa é ao lado do laranjal... Além de matar as pragas iam matando todos
nós.
Entra a caixa. O pai fala acima, como se falasse com todo o seu sertão.
PAI:
Adeus meus campos de vida... Adeus meus amigos fraternos de bar, de igreja, da alegria e das tristezas... Vou ganhar
a vida, ganhar dinheiro e volto pra junto de vocês. Eu quero
morrer pescando no Tietê lambaris, corimbas, piavas... Quero morrer cantando a música dos meus avôs, bisavôs... Vou,
mas volto!
ATORES:
(Cantam.)
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Dá na cabeça do boi
Dá na cabeça do boi
Pelo jeito que eu to vendo
O negócio é com nós dois
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
Uá uê, uê uá pinica lima pra laranja madurar
DIABO:
E a radio KY, aquela que facilita a sua vida, vai se despedindo do interior... Vão anotando, prestando atenção em tudo...
Pra adiantar, eles foram morar na periferia da periferia... Onde são jogados os deserdados desse grande Brasil... Vida
dura, como vocês vão ver... Procura de emprego.
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O Diabo, a partir desta cena, vira o patrão, o empregador. A família, em
vários lugares, procura emprego. Eles estão em volta do Diabo e quando
chegar sua hora se aproximam ou, então, o Diabo faz isso.
Cena 06 – O sonho da cidade grande começa como pesadelo na hora que todos começam a acordar
PAI:
Tem emprego?
DIABO:
Tem experiência?
PAI:
Na lavoura...
DIABO:
Escolaridade?
PAI:
Escolari?...
DIABO:
Sim... Sabe ler, escrever, tem o ginásio, o colégio?
PAI:
Eu... Sei ler e assinar o nome...
DIABO:
Tão precisando de plaqueiro pra comprar ouro na Rua Barão
de Itapetininga... Procura o Souza... Na esquina com a Rua
Dom José Gaspar.
FILHO:
Tem emprego?
DIABO:
Tem experiência?
FILHO:
Catei laranja... Cortei cana...
DIABO:
Escolaridade?
FILHO:
Não terminei o ginásio, mas sei ler e escrever.
DIABO:
Não tem nada por enquanto... Volta outro dia.
FILHA:
Tem emprego?
DIABO:
Já trabalhou com Call Center?
FILHA:
Call Center?
DIABO:
Central de Atendimento... Telefone?
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FILHA:
Ah, já trabalhei! Já atendi telefone na fazenda... Todo mundo
elogiava como eu falava com as pessoas.
DIABO:
Escolaridade?
FILHA:
Terminei o Ensino Médio. Quero trabalhar pra pagar uma faculdade, quero ser professora.
DIABO:
Faculdade diurna ou noturna?
FILHA:
A que o senhor quiser.
DIABO:
Como assim o que eu quiser, menina?
FILHA:
Cheguei do interior faz três meses... Vou ainda me matricular... Se o senhor quiser pode ser de manhã ou à noite.
DIABO:
(Entregando um cartão.) Vá até esse endereço... O salário
inicial é baixo, mas tem plano de carreira.
FILHA:
Plano do quê?
DIABO:
De carreira... Você começa por baixo e vai subindo, subindo,
e se cair nas graças do supervisor, pode até virar gerente,
entendeu?
FILHA:
Ah, entendi... Obrigado, moço.
DIABO:
(Falando com o público.) Entendeu coisa nenhuma... Se tivesse entendido nem ia aparecer por lá... Mas fazer o quê?
Ir pra onde, sair por onde ou pedir ajuda aonde? (Entra a
caixa ou um chocalho. Fala rindo, não canta, em cima da
música, mas em um gênero diferente, próximo do Samba de Bumbo, mas urbano.) É um beco sem saída, / não
tem pra onde correr, / Se fugir o bicho pega / se ficar vai te
comer.
O Bumbo vai sempre, como nas danças populares, fazer entrar e sair as
pessoas de cena. A mãe entra empurrada pelo Bumbo e cantando um
Samba de Bumbo, criado a partir de audições de várias músicas do gênero.
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Cena 07 – A vida é uma luta onde temos que lutar pra não morrer
MÃE:
(Canta.)
Quero viver, ai, quero viver
Quero viver, aí, quero viver
ATORES:
(Cantam.)
Vou pelo mundo
Lutando pra não morrer.
Os atores entram em oposição ao Bumbo e, dançando, o levam para fora
da cena.
ATORES:
(Cantam.)
Quero viver, aí, quero viver
Vou pelo mundo
Lutando pra não morrer.
A mãe diante de um atendente das Unidades Básicas de Saúde (UBS) que
está num plano elevado.
MÃE:
Eu queria passar no médico.
ATENDENTE:
A senhora tem a carteirinha dos SUS?
MÃE:
(Feliz por estar sendo atendida.) Fiz o mês passado... Fiquei seis horas na fila, mas fiz... Hoje cheguei ontem, mas,
diferente dos outros dias, graças a Deus, consegui... É que
eu preciso de tratamento... Tenho formigamento nas mãos e
nos pés... E tá aumentando, moço.
ATENDENTE:
Quem vai falar o que a senhora tem é o clínico geral... Tem
que passar por ele antes... Ele examina a senhora e vai lhe
encaminhar para um especialista.
MÃE:
Ah, que bom... Passo por ele então, ora.
ATENDENTE:
Ok. (Vendo uma caderneta.) Bem... Daqui a quatro meses.
MÃE:
Daqui quatro meses? Num pode, moço, num pode! Demorei
três meses pra chegar até aqui, moço!... Minha filha viu na
internet, eu tô envenenada... Veneno da roça... Pode atacar
o coração.
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ATENDENTE:
Nem a internet e nem a sua filha são médicas, minha senhora... O clínico geral é que vai encaminhar a senhora para
exames e, depois, para um especialista. Olha aqui sua ficha,
daqui a quatro meses.
MÃE:
Minha filha falou que eu posso até morrer, moço.
ATENDENTE:
Sua filha além de médica é médium também?
MÃE:
Médium?
Entra a caixa ou um chocalho.
ATENDENTE:
(Já perdendo a paciência.) Médium, minha senhora, ou
melhor, deus, pra adivinhar a morte das pessoas... Por favor,
daqui a quatro meses... (A Mãe continua olhando para
ele.) Dá licença, minha senhora, dá licença! O próximo! O
próximo.
Entra o bumbo colocando os outros atores para a cena, a mãe entra no
grupo e todos cantam se relacionando com o bumbo. O pai, com uma
placa de “Compra-se ouro” vai passando e olhando tudo.
ATORES:
(Cantam.)
Quero viver, aí, quero viver
Vou pelo mundo
Lutando pra não morrer.
Enquanto os atores, cantando, vão saindo o pai fica em cena e vai falando
enquanto a música vai se distanciando.
Cena 08. Um homem tenta comprar ouro para os outros para matar
sua fome.
PAI:
Ouro! Compra-se ouro! Compra-se ouro. Paga-se muito
bem! Pode ser a aliança, meu senhor e minha senhora! Por
que ficar com uma recordação daquele ingrato ou daquela
ingrata? Pode ser joia quebrada! Compra-se ouro.
O Pai vai saindo por um canto e, fora da roda, do outro lado, está o Filho
com uma banqueta portátil, vendendo CD e DVD piratas de jogos e programas de computador. Na banqueta, só as capas dos CDS e DVDS.
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Cena 09 – Um emprego que parecia fácil, mas que se mostrou perigoso
FILHO:
Olha aqui, pessoal, se aproximem... Venham, venham!...
Windows 8.1, Corel Draws Grafhics Suite X7, Autocad 2014,
todos full, em português... E tem crack para desbloquear...
Pera aí, meu amigo, não é o crack que você tá pensando,
que é isso? É um programinha que quebra qualquer sistema
de segurança... Você instala o programa ou jogo no seu
computador, craqueia e usa a vontade... É tudo livre, os melhores programas... Um CD, dez reais, dois CDS, quinze reais... Jogos: The Sims 4, Wolfensteín, Fifa 15... Um CD, dez
reais, dois CDS, quinze reais!... (Um homem se aproxima.
A aí doutor, vai levar? Últimos lançamentos, saíram agora
nos estates.
CLIENTE:
Você tem o Pinnacle Studio 17 ultimate?
FILHO:
(Procurando no meio dos CDS.) Tá aqui, doutor! Esse é
DVD, quinze reais.
CLIENTE:
Cadê o DVD? Só tem a capa.
FILHO:
É por causa dos homens... Eles tão de olho... O senhor vai
levar?
CLIENTE:
Vou levar sim. Está aonde?
FILHO:
Tá no segundo andar. Dá um tempinho, vou buscar, é pra já.
CLIENTE:
É cópia boa? Quem faz?
FILHO:
Os chinas, doutor... E tem troca, deu defeito leva outro ou o
dinheiro de volta... Aqui num é como nas lojas que dá defeito
e os caras enrolam... Aqui é pirataria doutor, de confiança.
CLIENTE:
(Entregando quinze reais.) Posso subir com você?
FILHO:
(Recusando o dinheiro.) Não, doutor, dinheiro depois e,
subir, não pode, esquema dos chinas... Vou, trago o DVD e
o senhor me paga...
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CLIENTE:
Acho que não quero não... É fria... No segundo andar só tem
oficinas, conheço.
FILHO:
Não e oficina, doutor é um fábrica... Tem mais de quatro
computadores... Sala cinco... Dá um tempo. (Quando vai
saindo, é agarrado pelo cliente.)
CLIENTE:
Polícia, moleque! Pessoal, no segundo andar, sala cinco!
Tem uma saída no fundo!... Cerca tudo.
FILHO:
Pelo amor de Deus, doutor!... Minha mãe tá doente!
CLIENTE:
E a minha já morreu, moleque, nem por isso tô vendendo
CD pirata. (Dá um tapa nele.) Vamos logo, tá preso.
O diabo que estava assistindo a tudo de fora da roda fala com o policial.
DIABO:
Que é isso seu polícia, não judie demais do menino! A vida
dele já é um inferno, não exagerem! (Falando com o público.) Não se preocupem, meus amigos! Vão só dar um susto
nele, nada demais... Umas tapas na orelha, uns chutes na
bunda, umas cusparadas e só... Depois os homens se acertam com o China e tudo bem. Claro que ele também vai levar umas tapas dos chineses e ser mandado embora pela
bobeira de entregar o lugar. Humilhação total. Para família
não ficar sabendo, não vai falar nada, vai ficar pelas ruas
procurando bicos. A vida da filha, aquela que disse que vai
achar uma terceira via – lembram, no começo? – não está
nada fácil... Seis meses em uma Central de Atendimento Telefônico, terceirizada, não é fácil. Vejam, escutem e depois
me digam se isso é melhor que o inferno!
Duas meninas atendendo telefone, a Filha e a Outra. Os outros atores espalhados em volta fazem clientes. Todos falam ao mesmo tempo, rápidos,
com interferências de tambores, apitos, ruídos, uma torre de babel. As
atendentes até a hora da explosão, ao contrário dos clientes, mantêm um
tom entre a apatia, a indiferença e a frieza.
19
Cena 10 – Um emprego que deixa a atendente e a cliente doidas.
FILHA:
Calma, minha senhora, vou transferir para o setor que vai
resolver seu problema. (Desliga o telefone.)
CLIENTE 1:
Alô! Alô! Desgraçada, desligou!
CLIENTE 3:
Já paguei essa conta!
OUTRA:
Nome, CIC, RG, nome do pai e da mãe...
CLIENTE 2:
Já falei meu nome mais de 20 vezes!
FILHA:
Sei que a senhora já falou, mas é para sua segurança...
CLIENTE 1:
Vocês tão cobrando um serviço que não entregaram!
OUTRA:
Vou encaminhar o senhor para a área técnica!
CLIENTE 3:
Você me mandou pra lá e eles me devolveram, carai!
FILHA:
Essa gravação está sendo gravada, por favor, sem palavrões!
CLIENTE 2:
A gente fala, fala e ninguém resolve.
OUTRA:
Dá para o senhor repetir, pausadamente.
CLIENTE 3:
É bandidagem! Vocês são bandidos!
OUTRA:
Obrigada, tenha um bom dia.
CLIENTE 2:
Polícia! Polícia!
FILHA:
Calma, meu senhor, calma!
OUTRA:
(Grita.) Chega! Chega! Chega! (Param as falas e as interferências.) Deixa tocar! Deixa tocar! Deixa esses demônios
esperarem, não atende!
FILHA:
Não dá pra não atender... A gente tem que bater a meta... A
equipe precisa de nós.
20
OUTRA:
E eu preciso de um tempo... O meu braço tá doendo... A cabeça estourando... Dois anos!... Tô sem dormir, meus braços
doem, minha cabeça dói... Não aguento mais.
FILHA:
A gente pode perder o emprego, amiga... Tô pagando minha
faculdade... Faltam vinte minutos pro descanso.
OUTRA:
Descanso? Cinco minutos pra ir ao banheiro?... Se demorar
10, 12 minutos, suspensão...
FILHA:
Você nunca foi suspensa...
OUTRA:
Não fui suspensa porque dei pro nojento do supervisor...
Agora ele tá a fim de você... Dá pra ele, quem sabe você sobe aqui dentro.
FILHA:
Que é isso? Você tá nervosa... Vamos trabalhar...
Aparece o supervisor, o Diabo.
SUPERVISOR:
O que tá acontecendo? Que moleza é essa?
OUTRA:
Não estou me sentindo bem... Estou com dor de cabeça.
SUPERVISOR:
Dor de cabeça a senhora vai ter é se não cumprir a meta... A
senhora não tem batido nem 1/3 da meta da equipe. Olha
que o patrão tá com os cornos virados... Suspendeu todo o
turno da manhã por não cumprimento da meta.
FILHA:
Ela está sentindo muitas dores... Tendinite... Nem tá conseguindo dormir.
SUPERVISOR:
Ah, tá com dores?... O patrão também está muito preocupado com isso. (Para a Outra.) Você vai conseguir o descanso
merecido, minha linda... Um belo descanso... Tá despedida.
Vá até o escritório e fale com Recursos Humanos.
OUTRA:
Você não pode fazer isso comigo! Vou procurar meus direitos. Vou mover um processo por Assédio Moral... E sexual...
Todo mundo aqui sabe que a gente saiu.
SUPERVISOR:
Vai procurar seus direitos, vai... Mas arruma um bom advogado se não é processada por calúnia... Arrumo dez teste21
munhas que aqui dentro que você dava pra todo mundo...
Cai fora, vai! Vai!
A Outra sai.
FILHA:
O senhor não pode fazer isso com ela... A família dela precisa deste emprego...
SUPERVISOR:
E a sua família precisa do seu?
FILHA:
Claro... Trabalho pra ajudar minha família e pagar os meus
estudos.
SUPERVISOR:
Então, meu amor, não deixe faltar nada pra sua família e garanta sua faculdadezinha, fica na sua.
FILHA:
Não é justo... Ela tá esgotada... Tem hora que parece escravidão... Não tem um descanso... Desculpa, chefe, mas é
muito pesado... Reconsidera, por favor!
SUPERVISOR:
Entenda uma coisa, Gabi... Posso chamar de Gabi, não?...
Então, o nosso patrão, realmente, está querendo melhorar
as condições, mas pra isso precisa de gente mais preparada
pra colocar como supervisora... Como você, por exemplo,
estudante, bonita, educada... Vamos fazer o seguinte, na hora do almoço, coloco alguém no seu lugar, nós saímos, vamos almoçar fora e passamos a tarde falando de sua promoção... Que tal?
FILHA:
E a minha amiga?
SUPERVISOR:
Uma ignorante!... Esquece... Pense em você... Hoje a tarde
a gente conversa tranquilamente.
FILHA:
Que bom... Mas depois do almoço a gente vai conversar
aonde?
SUPERVISOR:
Tenho um lugar ótimo... Música... Hidromassagem... Você
vai adorar.
FILHA:
Sua mãe gostou de lá?
SUPERVISOR:
O quê? Minha mãe?
22
FILHA:
Um calhorda como você é capaz de convidar até sua mãe
pra dar uma saidinha como essa, não é? Então, ela gostou
de transar com um porco como você?
SUPERVISOR:
Eu mando você embora!
FILHA:
Manda! Prefiro limpar chão de madame do que trabalhar
com um verme nojento como você.
SUPERVISOR:
Tá despedida... Cai fora.
FILHA:
Mas antes, como você se acha um comedor e gosta de mostrar, vou ajudar a aumentar a sua fama. (Começa a gritar
como louca, se descabela, arma a maior confusão.) Socorro! O supervisor tá me atacando! Tarado! Socorro! Tarado!
Entra o Samba de Bumbo tema da mãe.
SUPERVISOR:
Para com isso, para!
FILHA:
(Abre a parte de cima do vestido.) Socorro! O Supervisor
tá me estuprando! Socorro! Tarado!
A filha sai e dá de encontro com o Bumbo que já vem trazendo a Mãe para
a cena. As duas cantam, com raiva.
Cena 11 – O cerco se fecha, mas a alma começa a resistir no coração da guerreira.
AS DUAS:
(Cantam.)
Quero viver, aí, quero viver
Quero viver, ai, quero viver
Vou pelo mundo
Lutando pra não morrer.
Fazem uma ida e uma volta, depois, a Mãe fala com o atendente do Hospital que está em um plano mais alto.
MÃE:
Moço, tenho uma consulta com o especialista... Me falaram
na triagem que ele não veio...
ATENDENTE:
Coitado, está doente... Vamos remarcar.
23
MÃE:
Remarcar pra quando, moço?
ATENDENTE:
Logo, logo... Alguns exames precisam ser refeitos... A senhora está com todos aí? Alguns têm validade de seis meses, outros de três.
MÃE:
Minha pressão tá alta, moço... Não pode marcar com outro?
ATENDENTE:
Infelizmente, minha senhora, tem uma ordem, uma fila... Se
a pressão da senhora subir muito, vai num pronto socorro.
MÃE:
Fui, moço, deram uns remédios, falaram que não era urgente e me encaminharam pra cá.
ATENDENTE:
Deixa-me ver, minha senhora... (Consulta a caderneta.) É...
Vai ter que fazer outros exames... Só daqui a quatro meses.
FILHA:
O senhor está pensando que nós somos trouxas? Que pode
fazer o que quiser com a gente? Desrespeitar, tratar como
bicho?
ATENDENTE:
Você quem é?
MÃE:
É a minha filha!
ATENDENTE:
Ah, sua filha! Aquela que é médica, médium e que agora resolveu faltar com o respeito a um funcionário público, é? Isso
dá cadeia.
FILHA:
Quem está faltando com o respeito aqui é o senhor... Chama
a policia, chama.
ATENDENTE:
Desacatar funcionário público no exercício da função ou em
razão dela... Art. 331, do Código Penal Brasileiro, detenção
de seis meses a dois anos, ou multa.
FILHA:
Minha mãe está buscando ajuda médica faz mais de um
ano... Desrespeito ao consumidor, artigo 39 a 41, do Código
Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor. Chama a
polícia, chama.
24
ATENDENTE:
(Para fora.) Guarda! Polícia! (Entra um policial.) Essa mal
educada e sua mãe que não lhe deu educação, estão me
desacatando, fazendo ameaças.
MÃE:
Ele que desrespeitou a gente, seu guarda... Minha filha tá só
reclamando.
FILHA:
Está na constituição, a saúde é um direito do cidadão. Somos cidadãs...
GUARDA:
(Cortando.) Sem discurso, garota, aqui é um hospital, vamos manter a ordem.
FILHA:
Minha mãe veio aqui exigir os seus direitos... Ela tá doente,
precisa ser tratada. Nesse país só quem é rico tem direito a
tratamento médico? O povo fica dependendo de uma saúde
pública que não funciona.
ATENDENTE:
Minha senhora o SUS é uma referência na América Latina.
MÃE:
E o senhor acha normal um sistema que é uma referência
não funcionar?
ATENDENTE:
Minha senhora, por favor, não posso fazer nada.
FILHA:
Se não é com você então é com quem que eu tenho que falar? Com seu supervisor, com os políticos, com o papa? E o
senhor, seu policial, sua função não é defender o povo?
GUARDA:
Minha função é manter a ordem.
FILHA:
O senhor é um lacaio dos poderosos, dos corruptos, dos ladrões.
Entra o Samba de Bumbo.
GUARDA:
Você tá presa, moleca!
MÃE:
Encosta a mão nela que furo seus olhos, desgraçado. (O
Guarda tenta segurar a mãe.)
FILHA:
Tira as mãos de milha mãe!
25
ATORES:
(Cantam.)
Quero viver, aí, quero viver
Quero viver, ai, quero viver
Vou pelo mundo
Lutando pra não morrer.
O Bumbo entra e vai tirando todos de cena. Todos vão uma vez, voltam e
depois saem cantando. Em outro lugar ainda em cima da música, o Filho,
com alguns pares de meias nas mãos grita para o público.
Cena 12 – O ouro era de tolo e virou chão duro pra receber o corpo
que buscava o céu.
FILHO:
Meias! Meias! São as últimas! Cinco reais uma, três por dez!
Vai levar, mano? Coisa de primeira! Uma por cinco, três por
dez!
Do outro lado da roda aparece, Tavinho, um amigo do interior de Ticiano.
Está bem vestido, com joias e um relógio imenso.
TAVINHO:
Ticiano! (O Filho fica olhando sem reconhecer.) O Tavinho, cara, seu cunhado!
FILHO:
Tavinho! Quanto tempo, rapaz! Tá parecendo um artista de
cinema. Ganhou na loteria?
TAVINHO:
Que ganhou na loteria, cara? Não falei que vinha pra São
Paulo pra ficar rico? E a gostosa da sua irmã?
FILHO:
Respeita minha irmã, Tavinho!
TAVINHO:
Não é gostosa mesmo? Como tá ela?
FILHO:
Tá fazendo faculdade... Passou um aperto aí, mas agora
conseguiu uma substituição em uma escola... Tá brava, como sempre... Cê sabe, né?
TAVINHO:
Gosto dela, cara... Tava esperando melhorar de vida e voltar
pra lá, mas sabe... As coisas vão dando certo...
FILHO:
E esquece dos amigos, né Tavinho.
26
TAVINHO:
Que é isso, cara, são os compromissos do trabalho... Vocês
estão aqui, no lado direito. Mas quando vocês vieram?
FILHO:
Quase dois anos.
TAVINHO:
E você vendendo bugiganga, cara?
FILHO:
Tá difícil... Comecei vendendo CDs pros chinas, mas os homens me pegaram... Agora uns amigos camelôs me passam
essas meias, uns bonés e vou me virando. Mas, e você, o
que você faz pra tá bonito assim?
TAVINHO:
No começo enfrentei uns perrengues, mas depois, descobri
a única profissão que pode fazer um brasileiro se dar bem.
FILHO:
E não tem como você arrumar uma boca nesse seu trabalho? Me dá uma força, Tavinho! Até estágio, sem ganhar nada, aceito.
TAVINHO:
Não é um trabalho normal, tem alguns riscos.
FILHO:
Do jeito que eu tô, aceito qualquer trabalho... Minha mãe tá
precisando de tratamento.
TAVINHO:
O que ela tem?
FILHO:
Dizem que é veneno da lavoura... Jogavam na laranja e caia
na minha casa... Em hospital público tá difícil... Há quatro
meses a Gabi foi com ela no hospital, terminaram na polícia... Dá uma força, Tavinho, tenho que ganhar mais.
TAVINHO:
Conhecendo a Gabi ela não vai aprovar esse trabalho...
FILHO:
E eu tenho que dar satisfação pra Gabi? Precisa ter experiência? Tudo que procuro precisa de experiência, então, fico
fora.
TAVINHO:
Quando comecei não tinha experiência, e você, vai contar
com minha orientação... Vou te dar uma chance.
FILHO:
Você é mais que um irmão... É um Brother!... Qual e o serviço.
27
TAVINHO:
Roubo... Assalto.
FILHO:
O quê?
TAVINHO:
Roubo, assalto, ser ladrão.
FILHO:
Ladrão?
TAVINHO:
Fala baixo.
FILHO:
Você tá brincando, né Tavinho?
TAVINHO:
Que brincando, cara? Ser ladrão no Brasil e coisa de bacana. Aqui em São Paulo, por exemplo, tem mais de cinquenta
bilionários... Como você acha que eles ganharam esses bilhões? Vendendo meia? Os políticos gastam fortunas nas
campanhas, têm conta no exterior, são donos de rádios...
Você acha que foi presente da mãe deles? Não, cara, foi
mão leve, tudo ladrão. No começo é meio difícil, mas depois
você domina a tecnologia e pronto... Sossego!
FILHO:
É... Você tem razão, mas a Gabi vai me matar... Imagina,
Tavinho, se minha família fica sabendo.
TAVINHO:
Depois que você ficar na boa eles vão aceitar... Roubar faz
parte da economia criativa... Empreendedorismo, saca?... E
além do mais você diz adeus a exploração, vira patrão e
começa a roubar legalmente. Você abre uma empresa, cobra dos funcionários, mas não paga impostos... Vira um capitalista, cara... E se você tiver uma boa área de recursos
humanos ainda vai ser adorado pela peãozada.
FILHO:
Não posso, Tavinho, não posso. Fui preso outro dia e não
falei nada, com vergonha.
TAVINHO:
Sem forçar a barra, cara, sem forçar a barra. Tá bom... Arrumo outro emprego pra você... Sou amigo de um vereador,
e como você não estudou, vou ver se consigo uma vaga de
vigia numa empresa terceirizada que trabalha pra prefeitura.
FILHO:
Vigia de empresa terceirizada que trabalha pra prefeitura? O
cara vai roubar do que ganho pra ele e pro político que indi28
cou ele. É fria. Você disse que, na carreira de ladrão, tinha
um plano de carreira, qual é?
TAVINHO:
Você começa como pé de chinelo na corporação... Depois
entra na distribuição de drogas... Vira braço direito do chefe
do tráfico... Se for cabeça, defende os pobres que tão esquecidos na periferia... Aí, se candidata a vereador, depois
deputado, prefeito, vira um grande capitalista, e se for bom
mesmo, vira banqueiro... Esse rouba você, ainda passa por
salvador da pátria e você agradece.
FILHO:
E eu aqui trabalhando de auxiliar de camelô, que trouxa!
Vamos logo começar esses assaltos que eu não vejo a hora
de ser um profissional como você!
TAVINHO:
(Entrega um revolver de brinquedo.) Usa esse revolver...
É de brinquedo... Depois que você evoluir, usa uma metraca.
Pode escolher alguém.
FILHO:
Aquele lá!
TAVINHO:
Aquele é idoso... É pior que matar passarinho, prisão sem fiança.
FILHO:
Aquele!
TAVINHO:
Igi! Não, cara! Tem cara de pobre, deve ter um celular merreca e nem um puto no bolso.
FILHO:
Aquele! (Aponta um ator que vem passando.)
TAVINHO:
Aquele sim, parece um trabalhado... Vai, vai!
FILHO:
Assalto! Passa o telefone... Digo o celular... E a grana!
ATOR:
(Desmunheca e faz um escândalo.) Aí, tô sendo assaltada... Socorro!...
FILHO:
Para de gritar, por favor, ou atiro em você.
ATOR:
Ele vai me estuprar! Polícia! Socorro! Polícia!
29
Entra a polícia e junto barulhos de tambor, reco-reco, barulho dos tiros,
os diabos. O Filho levanta o revólver na direção da polícia que atiram e o
acertam. Ele corre para o meio do público onde está montada a escada.
Ele sobe e se ajoelha.
FILHO:
Por favor, não atirem, por favor.
Um polícia atira a queima roupa. Grande barulho de tiro. Faz silêncio e o
Filho vai se curvando e deitando na escada. Entra uma viola chorosa.
Tempo. Entram o Pai, a Mãe e a Filha. Eles cantam uma adaptação feita a
partir da congada Passarim avoou, apresentada pela Congada Batalhão
Nossa Senhora Aparecida.
Cena 13 – O primeiro velório no mundo que é pior que o inferno,
mas onde as pessoas ainda sonham.
FAMÍLIA:
(Canta.)
Passarim avoou, passarim avoou
Passarim avoou, passarim avoou
A viola continua enquanto eles conversam. Eles, cada um olhando para
um lado, falam para o mundo, sem se olhar. Durante as falas deles o Filho
se ergue e fica girando e olhando o público.
PAI:
Vamos deixar esse mundo de cão, vamos voltar pra nossa
roça.
FILHA:
Nossa roça não exista mais, pai.
MÃE:
Nosso filho vai ser enterrado aqui... Daqui não saio mais...
Quero ser enterrada ao lado dele.
FILHA:
Foi o desgraçado do Tavinho que jogou ele nessa vida... É
do crime organizado... Desgraçado.
MÃE:
Não filha, foi a vida miserável que a gente vive.
Em cima da viola entra os instrumentos do Batuque Paulista.
PAI:
Se vocês não quiserem voltar, eu volto... Pode não ter mais
a minha terra, mas tem o meu passado e nele, um dia, eu fui
gente. Eu vou voltar.
30
MÃE:
Você volta sozinho.
Mãe, enquanto o pai fala, sobe em cima da escada, deita o filho no colo e
canta um batuque paulista encontrado no documentário criado para o Futura, por Antonio Nobrega e Rosane de Almeida.
MÃE:
(Canta.)
"Ai meu Deus, já amei bastante,
Ai meu Deus, eu já chorei demais,
Chega de tanta tristeza,
Chega de tanta lembrança
Você não é mais mocinho,
Eu já não sou criança."
DIABO:
Não se emocionem, endureçam os seus corações... Isso
acontece todos os dias e vai aumentar... Esses não voltarão
nunca mais para sua roça... No lugar deles tem máquinas
poderosas... Dizem que fazem o trabalho de cem homens...
Cem homens que serão expulsos dos campos e jogados nas
periferias das metrópoles... Com esses cem virão mulheres
e filhos... Até vocês vão querer ir para o inferno ao invés de
ficar aqui... Mas continuem vendo, ouvindo e decidam se o
inferno não é melhor lugar para essa família.
Entram uns meninos e meninos fazendo acrobacias onde se simula uma
luta. Após um salto mortal um menino atira e outro dá um salto mortal reverso e cai morto no chão. Uma menina vai e o abraça fingindo chorar.
Entra a Filha, uma professora, e fala com todos. O ritmo durante as falas
em setissílabos é uma espécie de calango, ou então, prosa mesmo, mas,
nos versos finais, os dodecassílabos, algo como um jongo hip-hopado,
pois, no final da cena, entra um jongo.
Cena 13 – A escola é a casa da educação, a casa de ensinar as coisas e a vida ou de aprender com elas.
FILHA:
Vocês estão se matando?
Por que esta confusão?
ALUNO 2:
Nós estamos só brincando
de polícia e de ladrão.
31
ALUNO 1:
Matei ele professora
como mata a policia,
quando tá de uniforme,
ou na pele da milícia.
FILHA:
Para já com a conversa
e apresenta a lição!
(Falando com Aluno 2.)
Que coisa feia é essa
Que está em sua mão?
ALUNO 2
É o meu caderno, mestra!
FILHA:
Mas tá todo amassado!
Caderno assim não presta
tem é que tomar cuidado!
ALUNO 2:
Faço a lição na cama,
se serve como defesa...
FILHA:
Não me venha fazer drama
lição se faz é na mesa!
ALUNO 2:
Não tem mesa lá em casa
ou é na cama ou no chão...
Quando todo mundo vasa
eu faço a minha lição.
ALUNA 1:
A casa tem um cômodo
E só duas camas, prô.
Dormem juntos, tempo todo,
cheiram a xixi e cocô!
ALUNO 2:
Tua mãe que é fedida
porque deu pra todo mundo!
FILHA:
Parem já com essa briga!
(Falando com a Aluna 2.)
Ei, você aí do fundo,
veio pra escola dormir?
32
ALUNA 2:
Dormi um sono profundo,
pois não pude resistir.
Minha mãe foi despejada
e morada não tem mais...
Na rua ando largada,
como vivem os animais.
ALUNA 1:
(Apontando o Aluno 1.)
Ele engoliu o meu brinco!
FILHA:
Cê pegou o brinco dela?
ALUNO 2:
Já tentou engolir cinco,
mas não passa na goela.
ALUNA 2:
Mete a mão na boca dele
ou bate que ele cospe!
ALUNO 2:
Vamos lá, ladrão, engole
e o teu traseiro entope!
FILHO:
Muita calma nessa hora!
(Indo na direção do aluno 1.)
Abre a boca, vamos ver!
Quando ela vai tentar abrir a boca do Aluno 1, entra a diretora.
DIRETORA:
A polícia está lá fora!
(Aponta para o Aluno 2.)
Veio este aluno prender.
ALUNO 2:
Não fiz nada professora,
estou limpo, pode crer.
DIRETORA:
Seu vizinho diz que viu
você roubou o armazém!
ALUNO 2:
Sempre ele me perseguiu
e inventa coisas também!
FILHA:
Diz então para a polícia,
que ele vai se apresentar.
33
DIRETORA:
Os pms são da milícia
ou levam ou vão matar!
A Filha abre os braços com se estivesse cercada por todos os lados e vigiando a aproximação dos policiais. Os alunos durante a fala seguinte,
caminham cantando na direção da Filha, de costas para ela, lentamente e,
no final, formam uma roda no centro.
FILHA:
Então, não entrarão, não vamos deixar passar,
é a casa da educação, a casa de estudar!
Fechem janelas e porta, aqui só entra o saber,
mesmo sendo vida torta, vamos a vida defender!
ALUNOS:
Aqui não entrarão, não vamos deixar passar,
é a casa da educação, é a casa de estudar!
FILHA:
O que é esse mundo onde nada vale a vida?
A gente já tá no fundo é a hora da subida...
Não a toda esta opressão! Pelo saber e a arte!
É a hora de dizer não, vamos fazer nossa parte!
TODOS:
Aqui não entrarão, não vamos deixar passar,
é a casa da educação, é a casa de estudar!
A professora e os alunos estão no centro da roda.
FILHA:
Fiquem juntos! (Entra a chamada dos tambores do jongo.)
Essa é a nossa escola, a casa onde se encontramos todos
os dias. Ela é nossa! Ninguém vai tomar da gente!
FILHA:
(Canta.)
Condê, condê, condê, condê,
Eu não tô pra fazer roça
Pro boi dos outros comê.
Entram os tambores do Jongo. Começam forte, todos cantam um jongo
pesquisado no folclore do Vale do Paraíba e, depois, lentamente, vão
amenizando o cantar.
ALUNOS:
(Cantam.)
Condê, condê, condê, condê,
Eu não tô pra fazer roça
Pro boi dos outros comê.
34
Todos vão se espalhando, dançando. O Diabo começa a falar antes dos
tambores se calarem.
Cena 14 – Alguns começam a gostar de uma mulher decidida, apesar dos contratempos.
DIABO:
(Falando ironicamente, mas nos ritmo dos tambores que
vão baixando até sumir.) Eu não tô pra fazer roça pro boi
dos outros comê... Condê, condê... (Normal.) Será? Muito
bonito tudo isso, muito bonito... A menina, a filha, foi presa...
Se não tem saída pra ela, não tem saída pra vocês... Pra
onde se virarem, tem um buraco ou o pau come... Estamos
quase terminando a história desta família e – lembrem, lembrem! – vocês vão ter que decidir se é melhor o pai se suicidar e ir comigo para o inferno ou acreditar na sua filha e ficar
se debatendo nesse mundo sem saída.
BÊBADO:
(Fala de longe do Diabo.) Fedegoso! Ô fedegoso!
DIABO:
Olha, lá! Um exemplo que serve pra mostrar a merda de
mundo que vocês vivem! (Para o bêbado.) Que é, ô borracho? E o meu nome não é Fedegoso, é Lúcifer! Mefistófeles
Tinhoso Lúcifer!
BÊBADO:
Pois é, seu Lúcifer Fedegoso, eu tô começando a gostar
dessa menina... (Para o público.) Arretada, né?... Será que
ela não tem razão?
DIABO:
Não deem ouvidos a esse infeliz!
BÊBADO:
Infeliz é a tua mãe, fedegoso, que além de um filho feio como o demônio, coitada, ainda deve ter chifres!
DIABO:
Ser insignificante, não me desafie, pois sou o caminho e a
salvação! (Para o público.) Os bairros pobres das vossas
cidades, as periferias das periferias, estão cheios de desgraçados como esse, cujos filhos choram diante do prato vazio... Abrem cem vagas de emprego, aparecem mil... Não
têm pra onde vocês correrem... Olhem e escutem como termina a história dessa infeliz família. (Apontando para a
35
mãe que está saindo da roda.) Olhem lá, a mãe, saindo em
surdina da sua casa.
O pai aparece em um plano mais elevado.
Cena 15 – Perdido por perdido, truco!, ou, vamos se mexer ou a
gente vira pedra.
PAI:
Aonde você tá indo, Consolação? (A Mãe para, mas não
responde.) Que loucura é essa, mulher? Não chega a filha,
enlouquecer, você quer fazer o mesmo? Você é uma pessoa
doente.
Entram as caixas do Samba de Bumbo.
MÃE:
Sou doente, Ditinho, mas ainda tô viva... E enquanto estiver
viva, enquanto minhas pernas não bambearem e meu coração não estourar, não vou desistir. Não dá pra ficar morando
de favor na casa dos outros.
PAI:
É loucura esse negócio de ocupação, mulher... A polícia pode aparecer!
MÃE:
A polícia tá sempre aparecendo na vida da gente, Ditinho...
Quem sabe num é a hora da gente aparecer na vida dela?
Ficar parada esperando a morte num dá, meu marido. (O
Bumbo entra e a empurra para o centro da roda.)
(Canta.)
Quero viver, ai, quero viver
Quero viver, aí, quero viver
ATORES:
(Cantam.)
Vou pelo mundo
Lutando pra não morrer.
O Bumbo fica empurrando os atores enquanto a mãe sai da roda, sobe
num plano elevado no meio do público e deita nele. Todos cantam mais
uma vez e saem empurrando o Bumbo. De fora, um ator grita.
36
Cena 16 – Na porta de um hospital uma mulher morre por falta de
atendimento.
MULHER:
Enfermeiro! Enfermeiro! (Entra na roda.) Enfermeiro! (Aparece um enfermeiro. Aponta para a mulher que fora da
roda.) Tem uma mulher morrendo na porta do hospital.
ENFERMEIRO:
Deve estar bêbada.
MULHER:
Não... Ela passou mal na lotação... O motorista deixou ali, na
calçada... Fiquei pra pedir ajuda... Busca uma maca.
ENFERMEIRO:
(Olhando de longe.) Ela tem plano de saúde?
MULHER:
Tem a carteirinha do SUS... Já liguei para um telefone que
ela me passou... A filha dela tá vindo.
MÃE:
(Gritando.) Pelo amor de Deus, me ajudem!
ENFERMEIRO:
A gente não pode atender uma pessoa deixada na calçada,
não dá pra atender todos os moradores de rua.
MULHER:
Não é moradora de rua... É uma mãe... Tem família, filhos.
MÃE:
Ai, socorro!
Entra outro enfermeiro.
ENFERMEIRO 2: O que tá acontecendo?
ENFERMEIRO:
O motorista de uma lotação deixou aquela mulher na calçada. Não tem convênio. Parece mendiga, deve estar bêbada.
MÃE:
Pelo amor de Deus, meu peito tá doendo, socorro.
MULHER:
Isso é omissão de socorro... Vou chamar a polícia.
ENFERMEIRO:
Isto é um hospital particular... Por que vocês não a levaram
para um hospital público?
MÃE:
A gente não escolhe o lugar de passar mal, meu senhor...
Os senhores tem a obrigação de atender!
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ENFERMEIRO 2: Nossa obrigação é atender quem aparece no hospital, não
quem está na rua! (Para o outo enfermeiro.) Vamos entrar,
não temos nada com isso... (O outro reluta.) Vamos!
Os dois saem da roda.
MULHER:
(Gritando para o lugar onde eles saíram.) Ela não é bicho!
Vou chamar a polícia! (Falando com umas pessoas do
público.) Por favor, me ajudem, vamos entrar com ela no
hospital! Eles vão ter que negar o atendimento lá dentro! Por
favor, me ajudem, por favor! (Convencer uma pessoa, ou
duas, ou três.) Vamos... Me ajudem! (A atriz que faz a mulher, a ausculta e grita.) Tá morta! Morreu!
Do lado contrário de onde está a mãe chegam a Filha e o Pai.
FILHA:
Mãe!
Os dois correm pelo meio do público e chegam ao local onde a mãe está.
A filha sobe e fica examinando a mãe: pulsação, respiração.
Cena 17 – Uma filha chora a morte de mãe e lamenta pelo mundo indiferente onde todos estão vivendo.
PAI:
(Tentando acordar a Mãe.) Consolação! Consolação!
MULHER:
Ela tá morta, meu senhor.
PAI:
Acorda ela, Gabi! É culpa minha.
FILHA:
Não é culpa do senhor, pai, mas, por favor, não chore. (Levanta e fala com o público.) Por favor, todos vocês, por favor! Não quero que ninguém fique triste, quero que fiquem
com raiva... Tenho vontade de não enterrar a minha mãe e
deixar o corpo dela aqui como um testemunho das muitas
mortes que acontecem todos os dias por causa da nossa indiferença... Sim, nossa indiferença... E nossa indiferença
nasce deste mundo onde é preciso endurecer o coração pra
não enlouquecer... A gente olha para os desvalidos, para os
caídos na sarjeta, para esse mundo medusa e ele vai aos
pouco nos fazendo pedra...
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DIABO:
(Cortando, de longe.) Pare! Sem discursos. Enterre sua
mãe como deve ser feito. Cuide do corpo que da alma nós
cuidaremos.
A filha desce do local onde está a mãe e durante as falas seguintes alguns atores levam a mãe para o centro da roda.
BÊBADO:
Pera ai, Fedegoso! Tire o olho grande, pois essa mãe morreu brigando por seus filhos, num é pro seu bico, chifrudo.
DIABO:
Quem matou essa mulher, como ela mesma dizia, foi a vida
que vocês levam.
FILHA:
Você tem razão, Lúcifer, quem matou minha mãe foram as
coisas da vida... O trabalho matou a minha mãe aos poucos.
O veneno da lavoura comeu o seu pulmão. A falta de comida
comeu o seu estomago. A falta de colchão comeu as suas
costas. (Para o público.) É, a falta comeu a sua vida, mas
essa falta que nos consome pode ser vencida, só depende
de nós.
BÊBADO:
Tô contigo e não abro, menina!
FILHA:
Nós vivemos em tempos sombrios, onde conversar com o
vizinho, sair com os filhos pra passear, cuidar de uma pessoa ferida na rua, são coisas perigosas... Fiquem em casa!...
Tomem cuidado!... Cuidem de sua vida!... Eles pregam o
discurso do impossível, do que nada é possível, que a gente
tem que desistir. A gente tem que dizer não!... Acreditar no
próximo, que o próximo e de carne e osso como a gente e
se juntar a esse próximo. (Fala com o Pai que, neste momento, está no mesmo local do começo.) Pai! Vem pra
vida, pai! Não devemos cair na armadilha de escolher entre
o inferno e o mundo que eles nos oferecem.
BÊBADO:
É tudo igual, meu senhor, o Fedegoso é igual aos que infernizam nossa vida por aqui... É farinha do mesmo saco.
DIABO:
É chegada a sua hora de decidir, Benedito, eu ofereço o seu
filho de volta e você se joga deste viaduto e vem comigo.
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MULHER:
Mas não tá certo... O filho vem pra esse mundo e ele vai para o inferno? Qual a vantagem?
DIABO:
Ele pode ficar na terra, só quando morrer sua alma será minha.
HOMEM:
Todo aquele que vende a alma ao diabo passa a viver no inferno.
DIABO:
Você nunca terá fome, Benedito, será dono de riquezas e
fortunas.
FILHA:
(Para o Pai.) Não acredite em promessas, pai... Os poderosos, deste e de outros reinos, sempre oferecem tudo, mas
em troca da sua liberdade... Não tenha medo de decidir,
pai!... O homem só é livre quando é dono do seu destino.
BÊBADO:
É isso mesmo, mocinha! Eu, por exemplo, sou dono do meu
destino... Todo mundo fala: larga a cachaça, larga! Não largo! Quero mostrar que quem manda em mim sou eu mesmo.
DIABO:
E o povo quem vai decidir... Vocês assistiram a apresentação da vida destes miseráveis... Decidam!... Com que esse
homem deve ficar? Comigo ou com essa vida miserável que
ele vive? Ou, então, é possível a utopia dos sonhadores, essa terceira via? Decidam!
PAI:
Ninguém vai decidir sobre a minha vida... Eu fico com a minha vida onde vou viver lutando por meu viver... (Entra os
instrumentos leves da congada, baixos.) Eu quero ser livre e quero passear no meu rio Tietê limpo aonde nadem
lambaris, corimbas e piavas... Eu fico com o sonho da minha
filha, eu fico com a vida.
BÊBADO:
Eu tô com você, velho! Quem tá com Diabo, fique com o Diabo! Quem tá com a vida grita comigo: Viva Benedito!
TODOS:
(Os atores gritam vivas e tentam puxar o público.) Viva!
FILHA:
E viva todos os pais que lutam pra criar seus filhos e os filhos que são orgulhos de seus pais!
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TODOS:
Viva!
Final: Onde volta a Festa de São Benedito e tudo termina em cantoria.
Cantam a congada “Pai, pai, pai, pai meu”, encontrada em uma apresentação do Grupo Congada Raizeiro de Pindamonhangaba.
FILHA:
(Canta.)
Pai, pai, pai, pai meu
Todo mundo tem um pai
Mas não é igual ao meu.
Benedito é nosso pai
Ditinho é o pai meu
Todo mundo tem um pai
Mas não é igual ao meu.
Entram os tambores, pesados.
TODOS:
(Cantam.)
Pai, pai, pai, pai meu
Todo mundo tem um pai
Mas não é igual ao meu.
Benedito é nosso pai
Ditinho é o pai meu
Todo mundo tem um pai
Mas não é igual ao meu.
LOCUTOR:
(Param de cantar e ele fala em cima dos instrumentos.) E
continua à 74ª festa de São Benedito! Essa é a Radio KY,
aquela que facilita a sua vida... Vamos lá que atrás vem gente e com olho torto! Esquenta o couro minha gente! Sobe o
tom da viola que hoje é dia de festa. E Viva a Cultura Popular!
TODOS:
Viva!
LOCUTOR:
Nenhum povo vive sem sua cultura! E foi nela que nasceram
as nossas poesias, danças e músicas que apresentamos hoje pra vocês! Mas ninguém vive de barriga vazia, minha gente!... Vejam o nosso tocador de zabumba como tá magri41
nho!...Então, meus senhores e senhoras presentes, pelo
amor de São Benedito, e pelo amor dos nossos filhinhos, vai
ter agora uma das maiores tradições do Teatro de Rua: a
corrida do chapéu! Colaborem com o leite dos nossos filhinhos – só eu, que sou ignorante, tenho mais de dez! – colaborem. Todos cantando enquanto arrancam um dinheirinho
destes pães-duros!
BÊBADO:
E uns trocadinhos pra molhar a garganta, gente boa!
LOCUTOR:
Cachaça, não, vamos comprar leite pra você, cidadão!
BÊBADO:
(Engasgando.) Eita cão! Sai azar!
Cantam a congada “Eu vou me embora, não quero ver ninguém chorar”,
encontrada em uma apresentação do Grupo Congada Raizeiro de Pindamonhangaba.
LOCUTOR:
(Canta.)
Eu vou me embora
Não quero ver ninguém chorar.
Eu vou me embora
Não quero ver ninguém chorar
Porque o ano que vem
Os congueiros vão voltar.
Entram os tambores pesados e todos repetem a congada “Eu vou embora
não quero ver ninguém chorar”, do Grupo Congada Raizeiro de Pindamonhangaba.
FIM
São Paulo, 29 de agosto de 2014.
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UM DIA DE BENEDITO, OU, SE CORRER O BICHO PEGA, SE