PDF elaborado pela Datajuris Processo nº 1/2004 Acórdão de: 02-12-2010 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório AA e mulher BB, intentaram, a 5 de Janeiro de 2004, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra - CC; e - DD, pedindo que: - se declare que são donos do prédio misto de que faz parte o prédio urbano correspondente à sua habitação; - se reconheça que a obra de colocação e aplicação do soalho foi da responsabilidade dos réus e que, ao nível do 1º piso, esse soalho padece de vícios ou defeitos que, em concreto, desvalorizam e impedem a sua normal utilização para o fim a que é destinado, mormente por via de se encontrar podre devido às infiltrações de humidade a que foi sujeito; - se reconheça que a habitação mandada construir deveria estar isenta de vícios ou defeitos que a desvalorizassem, diminuíssem ou impedissem os fins a que é destinada, tendo sido mandada construir nesse pressuposto; - sejam os réus solidariamente condenados a procederem à execução de todas as obras que se venham a mostrar necessárias para a aplicação de um soalho novo em substituição do actual, ao nível do 1º piso, repondo, a final, os interiores no estado em que estariam caso tais vícios não tivessem existido, fixando-se um prazo para execução de tais obras por parte dos réus; - sejam os réus solidariamente condenados a indemnizarem os autores pelos danos morais por estes sofridos, no montante de 2.000€; - e igualmente condenados, solidariamente, a indemnizarem-nos por todos os prejuízos que os defeitos já lhes causaram e ainda lhes venham a causar, bem como por aqueles que lhes venham a causar em virtude da execução das referidas obras, a apurar em liquidação posterior. Em fundamento desta sua pretensão alegam, em síntese, ter contratado com o réu DD a concepção da obra de construção de uma moradia e sua direcção técnica. Só que o soalho de madeira colocado pelo réu CC no 1º piso da casa se encontra apodrecido, sem que o director técnico da obra e o carpinteiro tenham resolvido esse problema, apesar de lhe terem denunciado a anomalia e o réu DD a ter reconhecido. Alegam ainda que esta situação lhes provocou sofrimento psicológico, além de danos de natureza patrimonial. Contestou o réu CC começando por invocar a sua ilegitimidade para a acção e alegando ainda que se limitou a assentar o soalho e que a deficiência apresentada se deve à má preparação da laje para o receber, facto a que é alheio. Em sua contestação, o réu DD, por sua vez, invoca a sua ilegitimidade, bem como a caducidade do direito dos autores, alegando, por fim, que o co-réu CC não cumpriu as directivas que lhe transmitiu quanto ao modo de preparação da caixa de ar para recebimento do soalho, tendo-o advertido dessa deficiência, deficiência que ele recusou suprir. E assim conclui pela exclusiva responsabilidade deste co-réu pelos defeitos do soalho. Replicaram os autores pronunciando-se pela improcedência das excepções invocadas pelos réus. E requereram a intervenção principal de CONSTRUÇÕES EE, LDª, com o fundamento de ser responsável pelos defeitos de construção da obra, concretamente da laje em que assentou o soalho. Admitida a intervenção, contestou a chamada invocando a caducidade do direito dos autores e alegando ser estranha à execução dos trabalhos de carpintaria relacionados com a colocação do soalho, não abrangendo o contrato de empreitada que celebrou com os autores esses trabalhos. Conclui não poder ser responsabilizada pelos defeitos do soalho aplicado pelo réu CC. Replicaram os autores para defenderem a tempestividade do exercício do seu direito e alegarem que a laje apresentava deficiências que também contribuíram para o humedecimento do soalho. No despacho saneador foram julgadas improcedentes as arguidas excepções de ilegitimidade e relegou-se para final o conhecimento da invocada excepção de caducidade, após o que se procedeu à selecção da matéria de facto, com fixação dos factos tidos por assentes e dos controvertidos. Prosseguiu o processo para julgamento e na sentença, subsequentemente proferida, foi julgada improcedente a invocada excepção de caducidade e a acção parcialmente procedente e a ré Construções EE condenada: - a reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do aludido prédio misto; - a reconhecer que a habitação por si edificada apresenta, ao nível do soalho do primeiro piso, defeitos que a desvalorizam e impedem a sua utilização para o fim a que se destina, por se encontrar podre em consequência das infiltrações de humidade que sofreu; - a executar, no prazo de sessenta dias, todas as obras aludidas nas alínea j) e aj) dos factos provados, tidas por necessárias para reposição do soalho e dos interiores da casa no estado em que estariam caso os vícios não tivessem ocorrido; - a pagar aos autores a quantia de 1.500 €, a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência dos vícios de execução da obra. E julgada improcedente quanto ao demais peticionado. Inconformada com o assim decidido apelou a ré Construções EE, e com sucesso, porquanto o Tribunal da Relação do Porto, na procedência da apelação, absolveu-a de todos os pedidos formulados. Irresignados com o teor do acórdão é a vez de recorrem agora os autores de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela sua revogação. Não foram apresentadas contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir II. Âmbito do recurso A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo dos recorrentes radica, em síntese, no seguinte: 1- Entre os recorrentes e a recorrida foi celebrado um contrato de empreitada, incumbindo ao dono da obra apenas fazer a prova do defeito para que o empreiteiro fique onerado, se quiser afastar a sua responsabilidade, com a demonstração de que, afinal, o defeito não lhe é imputável. 2- A matéria de facto dado como provada foi fixada pelo Tribunal de 1ª instância e não foi alterada, resultando desses factos que o apodrecimento do soalho se deveu a uma deficiente execução de actos inerentes à arte de pedreiro. 3- Mesmo que se considerasse que os defeitos não são imputáveis à arte de pedreiro – o que não foi o caso – a aqui recorrida sempre teria de provar que o defeito não padece de culpa sua por violação das legis artis, o que também não se verificou. 4- À recorrida, enquanto empreiteira, exigia-se a preparação do solo com os requisitos exigíveis em termos de impermeabilização de modo a evitar infiltrações e, consequentemente, apodrecimento do soalho. 5- Os factos em que o Tribunal da Relação suporta a sua decisão de revogação da decisão de 1ª instância são factos novos que não constam da matéria provada e, como tal, sob pena de violação dos art°s. 3°, n°3, 3°- A, 264°, 265°, 659°, n° 3 e 664° todos do CPC, não podem ser considerados. 6- O Tribunal da Relação refere no acórdão que a porosidade era uma “ligeira porosidade” e que “na certeza de que o nível de porosidade a humidades que se veio o verificar na laje é perfeitamente compatível com soluções de pavimentos ordinárias, correntes, salubres e cómodas”, bem como “não é alegado por quem quer que seja que a chamada sabia à partida, ou em tempo útil anterior à preparação do solo subjacente e à edificação da laje do piso de rés-do-chão, que sobre tal laje iria assentar soalho em madeira”. 7- Porém, estes factos não são alegados pelos partes, nem se encontram provados pelo que não poderia o Tribunal ter-se pronunciado socorrendo-se de tais factos que viciaram a decisão. 8- Houve um erro de interpretação e determinação das normas aplicáveis e erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, ofendendo expressamente os art°s 799°, 1208º 1221° e 1223° do CC, bem como os art°s 3°, n° 3, 3°-A, 264°, 265°, 515º, 659°, n° 3 e 664° do CPC. B- Face ao teor das conclusões formuladas, delimitativas do âmbito do recurso, são duas as questões controvertidas que se colocam e que se reconduzem, no essencial: - a ponderação indevida de matéria de facto; - se dos factos provados decorre a responsabilidade da recorrida pelos defeitos da obra. III. Fundamentação A- Os factos Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos: 1. Existe um prédio misto sito no lugar de ............., freguesia de Santa Maria de .........., concelho de P..., do qual faz parte um prédio urbano, omisso na matriz e descrito na Conservatória de Registo Predial de P... sob o n.º 000000000, composto por casa de habitação de dois pavimentos, com área coberta de 919 m2, registado a favor dos autores. 2. Os autores negociaram com o réu DD os seus serviços técnicos de arquitectura, incluindo a concepção da obra e sua direcção técnica, por forma a terem uma habitação limpa, asseada, agradável e isenta de vícios que a desvalorizassem e que diminuíssem a realização do seu fim. 3. Naquele prédio urbano, o réu CC colocou, nos dois pisos da habitação, um soalho macheado maciço em madeira de Pau Marfim. 4. De fls. 52 consta documento correspondente a carta datada e remetida em 24/2/2003 pelo autor ao réu DD de onde consta, designadamente, que o soalho da referida habitação, nomeadamente no rés-do-chão, se encontra em estado deplorável. 5. Os 1º e 2° réus constataram a existência destes vícios, mas não procederam à sua eliminação, nem substituíram o soalho podre por outro igual e da mesma qualidade. 6. Do fax junto a fls. 47, remetido pelo réu DD ao autor, em 10 de Março de 2003, consta, além do mais, o seguinte: “Para esclarecer V. Exª posso afirmar que sempre, e nas funções de Director Técnico da execução da empreitada de construção da habitação do SC, dei instruções precisas relativamente ao modo de aplicação do soalho em questão, tendo alertado o carpinteiro para a inexactidão do trabalho efectuado aquando da construção da referida habitação. Posteriormente, e aquando do aparecimento das primeiras manifestações de humidade no soalho na zona da sala, tendo-se verificado então que, contrariamente às indicações dadas, a parte correspondente à caixa do ar que deveria estar completamente preenchida com aglomerado negro de cortiça só parcialmente se encontrava preenchido, possibilitando assim e devido à diferenciação térmica que se produz no inverno com o aquecimento central em acção, a formação de películas de água de ressoamento na superfície inferior do soalho, sendo esta absorvida pelo soalho e resultando na possibilidade de apodrecimento do mesmo, conforme se veio mais tarde a verificar (…) O carpinteiro assumiu a reposição parcial do soalho, teimando no entanto que o procedimento adoptado não seria o mais correcto. Apontei por várias vezes as razões de facto da aplicação correcta desta tecnologia, tendo encontrado sempre alguma relutância na aplicação apontada por parte do carpinteiro. 7. Após a conclusão da obra, o réu CC repôs parcialmente o soalho por uma outra vez. 8. Em 25 de Março de 2003, através do fax junto aos autos a fls. 24/26, o 2º réu enviou ao mandatário dos autores um parecer técnico que concluiu que o isolamento do espaço de ar – ou seja a caixa de ar – referente à caixa de soalho, feito com preenchimento de granulado de cortiça tem como objectivo a estabilidade térmica e a eliminação de ressonâncias, não possuindo assim as características de impermeabilidade. 9. A fls. 57/59 encontra-se junto um documento emitido pela sociedade “S...- Decorações e Revestimentos, Lda., em 3/12/2003, do qual consta, designadamente, o seguinte: “Fornecimento e aplicação de soalho macheado maciço em madeira de Pau de Marfim Imperial, com a espessura de 22 mm. 1. Aplicação de massa betuminosa em 2 camadas, para isolamento capilar de condensações, funcionamento como a 1ª barreira de vapor. A aplicação será feita sobre as mestras de cimento existentes e toda a restante laje, onde se encontra aplicado o soalho de madeira. 2. Aplicação de manta de polietileno em manga dupla. Esta aplicação é feita em duas camadas cruzadas e coladas entre si, nas sucessivas camadas. Esta operação será 2ª barreira de vapor e irá canalizar as condensações e humidade existente para as paredes exteriores. 3. Abertura de furos de diâmetro a determinar, nas paredes exteriores com caixa-de-ar de forma a permitir uma maior evaporação e mais rápida, pela acção do movimento do ar, que circula na caixa-de-ar. 4. Aplicação de regranulado negro de cortiça tratado, em toda a área a assoalhar, para isolamento térmico e acústico. 5. Aplicação de soalho macheado maciço em madeira de Pau Marfim Imperial, com pregagem ao barrotamento existente. 6. Raspagem, lixagem e envernizamento de soalho macheado, com aplicação de três demãos de verniz extra-duro, vitrificado da marca CIN, refª Durocin Cera dois componentes”. 10. Os autores contrataram com a chamada Construções EE, Lda., com sede em F..., P..., parte da execução da obra do prédio aludido em 1, a qual se iniciou em Maio de 1998 e foi entregue e aceite em Outubro de 2000. 11. A fls. 181 encontra-se uma carta datada de 24/2/2003, remetida pelo advogado dos autores à chamada Construções EE, Lda., de onde consta como assunto “reclamação de danos e interpelação. 12. A fls. 183 encontra-se uma carta remetida em 6/3/2003 pela chamada Construções EE, Ldª, ao advogado dos autores, de onde consta, designadamente, que declinava “qualquer responsabilidade pelos serviços de carpintaria incluindo o fornecimento, preparação, colocação e execução do soalho, uma vez que estes serviços não fazem parte do contrato entre o Sr. AA e esta firma” . 13. A presente acção deu entrada em 5 de Janeiro de 2004. 14. Os autores são donos e legítimos possuidores do prédio aludido em 1. 15. O soalho do 1º andar do prédio referido em 1 encontra-se apodrecido numa área aproximada de 130 m2. 16. O apodrecimento do soalho também se ficou a dever à ausência de isolamento na laje e ao facto de a madeira estar desprotegida à acção de humidades. 17. Para eliminar os vícios aludidos em 15 é também necessário retirar o soalho podre e colocar um novo, de acordo com o expresso em 9, com uma espessura de 22 mm. 18. Por causa dos vícios aludidos em 15 os autores vêem-se constrangidos em convidar amigos e familiares para sua casa, atenta a falta de sossego e conforto decorrentes das humidades por eles causadas. 19. O estado do soalho é perigoso para a circulação de pessoas em geral e do filho dos autores de 5 anos. 20. E os autores e o seu filho sentem-se envergonhados e retraídos em receber em sua casa amigos e familiares, porque sentem que não têm uma casa agradável e sentem-se tristes, envergonhados, angustiados e revoltados. 21. O réu CC procedeu apenas à encomenda do soalho e ao seu assentamento. 22. Quando executou estes trabalhos, o réu CC estava convicto de que poderia assentar o soalho porque o grau de humidade apresentado no chão assim o permitia. 23. O réu CC constatou mais tarde que inexistia preparação da obra para receber o soalho. 24. Os defeitos referidos em 15 ficaram a dever-se também à falta de drenagem do solo e da sua impermeabilização. 25. Aquando da substituição parcial do soalho a que se refere em 7, foram feitos encanamentos para drenagem em redor do alpendre da casa, existindo, nessa data, humidade no 1º piso, num vestíbulo em comunicação directa com o terraço exterior. 26. O réu CC colocou uma camada de granulado de cortiça no espaço entre as ripas do soalho da caixa-de-ar, não a preenchendo completamente. 27. Isso foi verificado quando se procedeu ao levantamento do piso, que se encontrava enegrecido e apodrecido, após a entrega e do aceite da obra pelos autores, tendo o réu CC procedido à substituição parcial do pavimento do soalho a que se refere em 7. 28. Apesar das instruções que lhe foram dadas nessa altura pelo réu DD para que preenchesse toda a restante caixa-de-ar com o referido granulado de cortiça, o réu CC não o fez. 29. Parte do soalho enegreceu e apodreceu. 30. A aplicação de granulado de cortiça destina-se a obter estabilidade térmica do soalho e a eliminar ressonâncias e não a impermeabilizar a caixa-de-ar. 31. A impermeabilização do soalho é assegurada pela execução de uma placa de pavimento, separada do assentamento no solo por uma caixa-de-ar ventilada, que é reforçada com a utilização de hidrófugos que impossibilita a migração por capilaridade da humidade para o interior da habitação. 32. O soalho referido em 3 foi assente sobre laje de pavimento de betão, sobrelevada em relação ao terreno subjacente, com uma segunda câmara-de-ar entre esse terreno e a laje, na qual existem aberturas nas paredes limites que comunicam com o exterior. 33. A câmara-de-ar existente entre o soalho e a laje do pavimento levou apenas uma camada de granulado de cortiça, sem ter sido completamente preenchida com aquele granulado. 34. Os autores denunciaram os defeitos aludidos em 15 à chamada Construções EE pela carta aludida em 11, a que esta respondeu através da carta referida em 12. 35. O contrato a que alude em 10, realizado entre os autores e a chamada Construções EE, Lda., não inclui a execução dos trabalhos de carpintaria e as condições de aplicação do soalho. 36. Os autores contrataram com o réu CC a colocação por sua conta e risco de todo o soalho dos dois pavimentos da habitação do prédio identificado em 1. B- O direito 1. ponderação da matéria de facto Embora o juiz não esteja sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, já só pode, em regra, socorrer-se dos factos alegados pelas partes (art.664º C.Pr.Civil), sendo esta uma emanação do princípio dispositivo que domina a nossa lei processual. Equivale isto por dizer que o juiz é livre na aplicação das regras de direito, estando já limitado, quanto a essa aplicação, aos factos que as partes hajam articulado no processo. Para além disso, é permitido ao julgador extrair ilações de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º C.Civil). Estas ilações, presunções judiciais, mais não são que meios lógicos firmados em regras da experiência, traduzindo um juízo de facto. As instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas. Mas essas deduções hão-de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes. Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida. Por isso mesmo exige-se, como se refere no ac. STJ, de 2004/03/25 (1), que a base da presunção esteja provada, que os factos dela integradores sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as provas podem proporcionar. Trata-se, evidentemente, de uma exigência garantística elementar, sem a qual a actividade jurisdicional correria o risco de se volver em puro arbítrio. Nessas circunstâncias a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no citado art. 349º e, como tal, é passível de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça na conformidade do estatuído no nº 2 do art. 722º C.Pr.Civil. O que vem verdadeiramente questionado pelos recorrentes é precisamente a indevida ilação factual de que a Relação lançou mão, servindo-se de factos como base dessa ilação que ou não foram alegados ou não se mostravam provados. Dos factos dados como assentes, com relevância para aquilatar da responsabilidade da sociedade recorrida nos defeitos da obra, temos expressamente que: 15. O soalho do 1º andar do prédio referido em 1 encontra-se apodrecido numa área aproximada de 130 m2. 16. O apodrecimento do soalho também se ficou a dever à ausência de isolamento na laje e ao facto de a madeira estar desprotegida à acção de humidades. 21. O réu CC procedeu apenas à encomenda do soalho e ao seu assentamento. 24. Os defeitos referidos em 15 ficaram a dever-se também à falta de drenagem do solo e da sua impermeabilização. 35. O contrato … realizado entre os autores e a chamada Construções EE, Lda., não inclui a execução dos trabalhos de carpintaria e as condições de aplicação do soalho. No acórdão recorrido assinala-se que a porosidade da laje a fenómenos de humidade ascendente não chega a ser defeito no contexto que resulta provado, sendo a porosidade em causa compatível com muitas, muitíssimas soluções construtivas de acabamento do piso que facultariam aos autores o uso de uma habitação limpa, asseada, agradável e isenta de vícios que a desvalorizassem ou que diminuíssem a realização do seu fim. Para seguidamente afirmar que a porosidade da laje de rés-do-chão, mesmo nos períodos do ano em que o nível freático no solo térreo subjacente é elevado, conciliada que fosse com soluções construtivas no acabamento do pavimento, correntes e perfeitamente ordinárias, facultaria uma utilização salubre e confortável das divisões do rés-do-chão. E avançando conclui que a ligeira porosidade da laje à ascensão de vapor e à infiltração de humidade por osmose não infringe requisitos específicos de conformidade da obra com o projecto e não passa de inconveniente que não chega a ser defeito, mantendo o valor da obra na especialidade de pedreiro e trolha e facultando as utilidades ordinárias, dentro de fase de semi-acabamento, que a obra de pedreiro e trolha normalmente têm. Com base nesta dedução factual afasta a Relação a responsabilidade da sociedade recorrida pelos problemas de humidade que afectam o soalho do rés-do-chão. Porém, esta ilação extraída pela Relação conflitua frontalmente com os factos dados como assentes. Na verdade, está expressamente provado que o apodrecimento do soalho também se ficou a dever à ausência de isolamento na laje e ao facto de a madeira estar desprotegida à acção de humidades (nº 16 da matéria de facto assente) e que o apodrecimento do soalho se ficou a dever também à falta de drenagem do solo e da sua impermeabilização (nº 24). Daqui decorre linearmente que a falta de drenagem do solo e de impermeabilização da laje do rés-do-chão da habitação concorreram para o aparecimento de humidades e, consequentemente, para o apodrecimento do soalho. E carece de suporte factual, quer por não se estribar em factos provados quer por nem sequer ter sido alegado no processo, a afirmação de que uma boa técnica de aplicação do soalho afastaria esta deficiente impermeabilização da laje, ou seja, a existência de humidades a nível do soalho. Aliás, questionando-se no ponto controvertido nº 2 da base instrutória se à eliminação do apodrecimento do soalho bastava que ele fosse colocado de acordo com as regras apropriadas a este tipo de soalho, respondeu-se restritivamente dizendo-se que para eliminar esses vícios é também necessário retirar o soalho podre e colocar um novo de acordo com aquelas técnicas. A ilação extraída pela Relação, não só não se apresenta como o desenvolvimento lógico e natural dos factos assentes como, por outro lado, não se suporta em factos que tenham sido dados como provados ou sequer alegados. Logo, os factos presumidos e, como tal, integrantes da matéria de facto não se podem considerar provados e, enquanto tal, fundamentarem a solução jurídica a alcançar. 2. responsabilidade da recorrida pelos defeitos da obra De acordo com a factualidade apurada, os autores contrataram com a ora recorrida Construções EE parte da execução da obra do seu prédio de habitação. Porque o rés-dochão apresentava infiltrações de humidades, foi a sua reparação reclamada pelos autores, tendo, porém, a sociedade declinado qualquer responsabilidade nessas deficiências Entre autores e sociedade Construções EE foi celebrado um contrato de empreitada, tal como decorre do estatuído no art.1207º C.Civil. O principal direito do dono da obra é que ela seja realizada, no prazo estabelecido, segundo os moldes convencionados -art. 1208º C.Civil e, concomitantemente, o principal dever do empreiteiro é a realização da obra, em conformidade com o acordado e sem vícios. Se o empreiteiro deixa de efectuar a sua prestação em termos adequados, dá-se o inadimplemento da obrigação com a sua consequente responsabilidade. O não cumprimento ou o cumprimento defeituoso das obrigações a que o empreiteiro está adstrito, as mencionadas no art. 1208º, dá lugar a várias sanções: pode ser compelido à eliminação dos defeitos - art. 1221º-, ou ficar sujeito à redução do preço ou à resolução do contrato – art. 1222º, e/ou a indemnização pelos danos causados – arts. 1223º e 1225º. Da factualidade assente decorre que o solo sob a placa do rés-do-chão não foi drenado nem impermeabilizado, assim como a laje não foi isolada. Tudo isso contribuiu e continua a contribuir para o apodrecimento do soalho colocado a nível desse piso. É um facto notório que qualquer construção, e principalmente uma construção destinada a habitação, deve ser feita de modo a proporcionar o devido conforto aos seus ocupantes, desde logo sem infiltrações de humidades. Se uma habitação é permeável a humidades não assegura o bem-estar e comodidade exigíveis, tornando-a desconfortável e sem a qualidade de utilização que lhe tem de estar associada. Esta deficiência na estrutura da obra, acarretando uma sua utilização menos satisfatória, diminui a sua aptidão enquanto habitação. Vale isto por dizer que esta deficiência integra indubitavelmente um defeito da obra construída pela sociedade recorrida, que não usou presuntivamente (nº 1 do art. 799º C.Civil) das correctas técnicas de construção para obstar a estas infiltrações. Ora, segundo o disposto no nº 1 do art. 1221º C.Civil assiste ao dono da obra o direito preferencial à eliminação deste defeito, o que já reclamou da recorrida, mas que ela se recusou a satisfazer, apesar de a tal estar obrigada. Assente que a obra foi executada com defeitos, impõe-se seguidamente determinar a extensão dos defeitos da responsabilidade da recorrida, sabendo-se que a falta de drenagem e de impermeabilização do solo, bem como o não isolamento da placa apenas foram uma das causas do apodrecimento do soalho, a par da incorrecta preparação da caixa-de-ar para aplicação desse mesmo soalho e que a prestação da recorrida não incluía a execução dos trabalhos de carpintaria e as condições de aplicação do soalho. Estando comprovado que, no âmbito do contrato de empreitada celebrado com a recorrida, não se incluíam os trabalhos de carpintaria e de aplicação do soalho e que a deficiente preparação da caixa-de-ar para aplicação do soalho também contribuiu para o apodrecimento deste, é evidente que a recorrida não pode ser responsabilizada por esta deficiência e sua consequente reparação, já que de obra autónoma e distinta da por si contratada e realizada se trata. A deficiência da obra realizada pela recorrida, com repercussões no apodrecimento do soalho, é a que se prende apenas e tão-somente com a falta ou indevida drenagem e impermeabilização do solo e isolamento da laje do rés-do-chão. Este o defeito que a obra feita pela recorrida apresentava e que há que eliminar. E sendo estas obras necessárias, e a efectuar previamente, à aplicação de um novo soalho em substituição do actual, cabem perfeitamente no pedido formulado pelos recorrentes, em sua petição, afigurando-se ainda aceitável o prazo de sessenta dias fixado na sentença da 1ª instância para a sua realização. Assistia ainda aos autores o direito a serem ressarcidos dos danos que esta actuação da recorrida lhes possa ter causado -art.1223º C.Civil. Este ressarcimento, e a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, foilhes arbitrado na sentença da 1ª instância, mas afastada no acórdão recorrido. Ainda que a absolvição deste pedido tenha sido uma decorrência do entendimento de que a recorrida não executou a obra com defeitos, o certo é que os autores recorrentes, em suas conclusões de recurso, não atacam este segmento absolutório do acórdão. Por isso, tem de se concluir que deixaram cair esta sua pretensão, não se podendo agora já apreciá-la e, consequentemente, ressarci-los desses eventuais danos. IV. Decisão Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se, na parcial procedência da revista, em condenar a recorrente Construções EE, Ldª: - a reconhecer que a habitação por si edificada apresenta, ao nível do soalho do primeiro piso, defeitos que a desvalorizam e impedem a sua utilização para o fim a que se destina, por se encontrar podre em consequência das infiltrações de humidade que sofreu; - a executar, no prazo de sessenta dias, as obras de drenagem e impermeabilização do solo e isolamento da laje do rés-do-chão, obras necessárias e prévias à reposição do soalho e dos interiores da casa no estado em que estariam caso os vícios não tivessem ocorrido; - manter, no mais, o decidido no acórdão recorrido; - condenar nas custas recorrentes e recorrida, na proporção de metade. Lisboa, 02 de Dezembro de 2010 Alberto Sobrinho (Relato) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Lopes do Rego ______________________ (1) in RLJ, 135º, pág. 113