OS MUNICÍPIOS DOS NO PORTUGAL MODERNO FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Colecção: BIBLIOTECA – ESTUDOS & COLÓQUIOS (Direcção: CIDEHUS.UE) 1. Diplomacia & Guerra: Política Externa e Política de Defesa em Portugal. Do final da Monarquia ao Marcelismo – Actas do I Ciclo de Conferências FERNANDO MARTINS (ed.) 2. Elites e Redes Clientelares na Idade Média: Problemas Metodológicos FILIPE THEMUDO BARATA (ed.) 3. Indústria e Conflito no Meio Rural: Os Mineiros Alentejanos (1858-1938) PAULO GUIMARÃES 4. Causas de Morte no Século XX: A transição da mortalidade e estruturas de causa de morte em Portugal Continental MARIA DA GRAÇA DAVID DE MORAIS 5. Concepções de História e de Ensino de História – Um Estudo no Alentejo OLGA MAGALHÃES 6. Elites e Poder. A Crise do Sistema Liberal em Portugal e Espanha (1918-1931) = = Elites y Poder. La Crisis del Sistema Liberal en Portugal y España (1918-1931) MANUEL BAIÔA (ed.) 7. D. Pedro de Meneses e a construção da Casa de Vila Real (1415-1437) NUNO SILVA CAMPOS 8. História e Relações Internacionais. Temas e debates LUÍS NUNO RODRIGUES e FERNANDO MARTINS (ED.) 9. Igreja, Caridade e Assistência na Península Ibérica (Sécs. XVI-XVIII) LAURINDA ABREU (ed.) 10. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos à reformas liberais MAFALDA SOARES DA CUNHA e TERESA FONSECA (ed.) Colecção: FONTES & INVENTÁRIOS (Direcção: CIDEHUS.UE) I. Série GAZETAS (Direcção: CHC-UNL e CIDEHUS.UE) 1. Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. Vol. I (1729-1731) JOÃO LUÍS LISBOA; TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA; FERNANDA OLIVAL 2. Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. Vol. II (1732-1734) JOÃO LUÍS LISBOA; TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA; FERNANDA OLIVAL II. Série GERAL (Direcção: CIDEHUS.UE) 1. António Henriques da Silveira e as «Memórias analíticas da vila de Estremoz» TERESA FONSECA Mafalda Soares da Cunha Teresa Fonseca (Ed.) OS MUNICÍPIOS DOS NO PORTUGAL MODERNO FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Edições Colibri • CIDEHUS / UE – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora BIBLIOTECA NACIONAL – CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Os municípios no Portugal Moderno : dos forais manuelinos às reformas liberais. - ed. Mafalda Soares da Cunha, Teresa Fonseca. - (Biblioteca - estudos & colóquios ; 10) ISBN 972-772-526-0 I - Cunha, Mafalda Soares da, 1960II - Fonseca, Teresa, 1950CDU 352 94(469)"15/17"(042.3) TÍTULO ED. Os Municípios no Portugal Moderno: Dos forais manuelinos às reformas liberais Mafalda Soares da Cunha e Teresa Fonseca EDITOR Fernando Mão de Ferro EDIÇÃO Edições Colibri e CIDEHUS-UE PAGINAÇÃO CAPA Albertino Calamote TVM Designers DEP. LEGAL 220 656/05 Lisboa Maio 2005 Índice Introdução .................................................................................... 7 Francisco Ribeiro da Silva (FL-UP) Historiografia dos municípios portugueses (séculos XVI e XVII) .......... 9 José Viriato Capela (Univ. Minho) Administração local e municipal portuguesa do século XVIII às reformas liberais (Alguns tópicos da sua historiografia e nova História) .... 39 Nuno Gonçalo Monteiro (ICS-UL) Sociologia das elites locais (séculos XVII-XVIII). Uma breve reflexão historiográfica ................................................................................ 59 Teresa Fonseca (CIDEHUS.UE) O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas administrativas .............................................................................. 73 Mafalda Soares da Cunha (CIDEHUS.UE) Relações de poder, patrocínio e conflitualidade. Senhorios e municípios (século XVI-1640) ................................................................... 87 Fernanda Olival (CIDEHUS.UE) As Ordens Militares e o poder local: problemas e perspectivas de estudo ............................................................................................ 109 Laurinda Abreu (CIDEHUS.UE) Câmaras e Misericórdias. Relações políticas e institucionais ............... 127 Rute Pardal (CIDEHUS.UE) As relações entre as Câmaras e as Misericórdias: exemplos de comunicação política e institucional ........................................................ 139 Margarida Sobral Neto (FL-UC) Senhorios e concelhos na época moderna: relações entre dois poderes concorrentes ................................................................................... 149 Pedro Cardim (FCSH-UNL) Entre o centro e as periferias. A assembleia de Cortes e a dinâmica política da época moderna .............................................................. 167 6 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS José Manuel Subtil (Inst. Politécnico Viana do Castelo/UAL) As relações entre o centro e a periferia no discurso do Desembargo do Paço (Sécs. XVII-XVIII) .............................................................. 243 Rui Santos (FCSH-UNL) Balanço final: Questões para uma sociologia histórica das instituições municipais ..................................................................................... 263 Introdução O colóquio Os municípios no Portugal Moderno. Dos Forais Manuelinos às Reformas Liberais ocorrido na cidade de Montemor-o-Novo a 6 e 7 de Novembro de 2003, constituiu uma iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora. A sua realização revestiu-se de particular significado para Montemor-o-Novo, que nesse ano comemorou em simultâneo os 800 anos da concessão do foral de D. Sancho I e os 500 anos da atribuição do foral de D. Manuel I. E para o CIDEHUS, a colaboração com a autarquia montemorense representou uma possibilidade de realização de um evento de particular interesse científico fora do âmbito académico, abarcando deste modo um auditório mais vasto e diversificado. O evento afirmou-se ainda como uma excelente oportunidade de reflexão sobre o municipalismo português. Permitiu efectuar o ponto da situação da historiografia relativa ao tema, através de abordagens respeitantes às suas diversas vertentes. E o confronto de perspectivas de análise e dos diferentes casos estudados, possibilitou a caracterização da sociologia e das práticas político-administrativas em diferentes contextos espaciais, contribuindo assim para aprofundar o conhecimento das especificidades regionais, nomeadamente as do Sul do país. Historiografia dos Municípios Portugueses (séculos XVI e XVII) FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA (Universidade do Porto – Faculdade de Letras) Introdução O desafio que me foi proposto pela Prof.ª Teresa Fonseca – o de fazer o ponto da situação da bibliografia portuguesa sobre concelhos e administração municipal referente aos séculos XVI e XVII – é muito mais difícil do que o que parece. Para ser executado cabalmente, para além da pesquisa em catálogos de bibliotecas, em listas bibliográficas contidas nas obras da especialidade e na web, deveria ter-me levado às Faculdades e Institutos de investigação para fazer o levantamento das teses de mestrado e outros trabalhos que têm sido escritos, foram defendidos em provas públicas e permanecem inéditos. Para tal não dispus de tempo e, por isso, provavelmente vão ficar fora das minhas considerações estudos e trabalhos dos quais não tive notícia. Posta em causa a inventariação total por ser praticamente impossível, a matéria que me foi dada para estudo pode ser tratada e encarada sob diversas perspectivas e ângulos de observação. Entendi dividir o tratamento dos trabalhos conhecidos em três grandes pacotes: no primeiro, ensaiarei uma resenha das fontes publicadas; no segundo, considerarei os trabalhos sobre forais manuelinos; no terceiro tentarei um ponto da situação dos estudos sobre concelhos e administração municipal. I – Fontes Publicadas Num primeiro desenvolvimento pareceu-me oportuno fazer uma digressão pelo panorama das fontes impressas. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 9-37. 10 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS É sempre importante para quem se inicia nos segredos de Clio saber que, embora mais dia menos dia se torne indispensável aprender e calcorrear assiduamente os caminhos dos Arquivos, é possível recorrer a bons materiais que outros investigadores foram pondo à disposição dos vindouros em letra de imprensa. É uma dívida de gratidão para com esses beneméritos que nunca é demais realçar. Mas as dificuldades para uma inventariação útil e completa são muitas. Antes de mais, é necessário distinguir os tipos de fontes e a sua diversa natureza. Uma coisa são as leis ou normas gerais como as Ordenações do Reino, os regimentos régios, os alvarás válidos para todo o espaço nacional, outra as provisões e cartas régias que não abrangem senão uma cidade, uma vila ou um concelho. Uma coisa são as Actas de uma determinada Câmara, outra as correições ou sentenças relativas a um certo Concelho, outra ainda os capítulos particulares e gerais levados a Cortes, a correspondência ou os forais, antigos e novos. Não será temerário da minha parte tentar um inventário? É com toda a certeza. Mesmo assim arriscarei na esperança de que a minha lista seja o começo de uma recolha que irá engrossar com o contributo de outros até se tornar exaustiva. Quem sabe se de imediato as sugestões dos presentes não a irão completar? Numa primeira análise de fundo geográfico, farei referência às fontes que alcançam todo o Reino. São sobretudo as normas, códigos e leis. Para além das Ordenações Manuelinas e Filipinas, lembraremos as colecções de legislação, de que destacámos: Para o século XVI – Duarte Nunes de Leão, Leis Extravagantes collegidas e relatadas pelo licenciado ... per mandado do muito alto e muito poderoso Rei Dom Sebastião Nosso Senhor, Lisboa, 1569 Para o século XVII – José Justino de Andrade e Silva, Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, Lisboa, 1854-56. – França, F. da C., Collecção Chronologica de leis extravagantes, compiladas por...., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1819. – Leys e provisões que el-rei Dom Sebastião nosso Senhor fez depois que começou a governar, Lisboa, Francisco Correa, 1570. Foram-me úteis e por isso aqui deixo notícia do: – Regimento dos oficiais das cidades, vilas e lugares destes reinos, em edição facsimilada do texto impresso por Valentim Fernandes em 1504, aparecida em Lisboa em 1955 por iniciativa do professor Marcelo Caetano sob os auspícios da Fundação da Casa de Bragança. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 11 – Manoel Fernandes Thomaz, Repertorio Geral, ou Indice Alphabetico das Leis extravagantes do Reino de Portugal, publicadas depois das Ordenações..., 2 tomos, Coimbra, 1815. – Manuel Borges Carneiro, Mappa chronologico das leis e mais disposições de direito portuguez, publicadas desde 1603 ate 1817, com um suplemento, Lisboa, 1818. – E já agora (perdoe-se a publicidade) de Francisco Ribeiro da Silva, Filipe II de Espanha Rei de Portugal (Colecção de documentos filipinos guardados em Arquivos Portugueses), 2 vols., Zamora, Fundação Rei Afonso Henriques, s/d. Poderíamos incluir aqui os muitos Regimentos que foram publicados em colectâneas ou isoladamente. Para além das fontes impressas de abrangência geral, há que referir as fontes dirigidas às localidades (que, às vezes inesperadamente ultrapassam a dimensão local). As terras que dispõem de fontes históricas impressas (para o nosso período) são imensas: Sobre Lisboa – Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, interessam-nos os vol.s 1 a 4, Lisboa, 1882-1889. – Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa, Livros de Reis, VI, Lisboa, 1962 – Góis, Damião de, Lisboa de Quinhentos. Descrição de Lisboa, trad. de Raul Machado, Lisboa, Livraria Avelar Machado, 1937. – Livro do lançamento e serviço (1565), Lisboa, Câmara Municipal, 1947-1948. – Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sempre leal cidade de Lixboa (1572), ed. de Virgílio Correia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926. Sobre o Porto – Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium. Dizem respeito à época aqui considerada os vol.s III a V, cujos títulos são respectivamente os seguintes: Livro da Contenda entre a Cidade e o Conde de Penaguiam, Porto, 1914-1915 Livro 1.º das Chapas, Porto,1938-1952 Livro 2.º das Chapas, Porto, 1953-1961 Privilégios dos cidadãos da cidade do Porto, Porto, 1878 12 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – Guimarães, Fernando, O Porto na Restauração. Subsídios para a sua História, Porto, 1941. – Cruz, António Augusto Ferreira da, O Porto seiscentista. Subsídios para a sua História, Porto, Câmara Municipal, 1943. (Capítulos de Cortes) Sobre Coimbra – José Branquinho de Carvalho, Livro 2.º da Correia (Cartas, provisões e alvarás régios registados na Câmara de Coimbra 1275-1754), Coimbra, 1955. Sobre Évora – Gabriel Pereira, Documentos Históricos da Cidade de Évora, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998 Sobre Braga – Frei António do Rosário, «Acordos e Vreações da Câmara de Braga no Episcopado de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, 1559/82» in Bracara Augusta, vol.s XX-XL Braga, 1970-1990. Sobre Portalegre – Sotto Maior, Diogo Pereira, Tratado da cidade de Portalegre, int. de Leonel Cardoso Martins, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. Sobre Guimarães – Alberto Vieira Braga, Administração Seiscentista do Município Vimaranense, Guimarães, Câmara Municipal, 1953. (Na verdade, esta obra em rigor não é uma publicação de fontes, mas sendo constituída por resumos de actas e de outros documentos municipais que, embora elaborados com mérito pelo seu Autor, permanecem muito próximos dos originais, decidimos metê-la aqui, sem prejuízo de abaixo poder ser retomada). Sobre Viseu (Do mesmo modo e por maioria de razão entendemos colocar neste elenco os trabalhos que seguem) – Alexandre de Lucena e Vale, Um século de administração municipal. Viseu. 1605-1692, Viseu, 1955. – Alexandre de Lucena e Vale, O livro dos Acordos de 1534, Viseu, 1956 – Alexandre de Lucena e Vale, Índice do livro dos acordos do séc. XVI, Viseu, 1948 Sobre Aveiro – Madail, A.G. da Rocha, Notícia e índice do livro de registos da Câmara de Aveiro 1581-1792 in «Arquivo do Distrito de Aveiro», vol. XXIII, Aveiro, 1967. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 13 – Neves, Francisco Ferreira, Livro dos Acordos da Câmara de Aveiro de 1580. Subsídio para o estudo da vida municipal e nacional portuguesa, Aveiro, 1971. Sobre Esposende – Manuel Albino Penteado Neiva, Posturas municipais de Esposende – séculos XVII a XIX, Esposende, s.n, 1987. Sobre Bragança e Trás-os-Montes – Alves, Francisco Manuel, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-históricas do Distrito de Bragança, ed. revista, Porto, Afrontamento, 2000. – Barros, Doutor João de, Geografia d’antre Douro e Minho e Trás-os-Montes, Porto, Biblioteca Pública Municipal, 1919. Sobre Loulé, – Duarte, Luís Miguel e Machado, João Alberto, Actas das Vereações de Loulé, Loulé, Câmara Municipal, 1984 Sobre o Algarve em geral – Guedes, Lívio da Costa, Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII. A descrição de Alexandre Massaii (1621), Lisboa, Boletim do Arquivo Histórico Militar, 1988. Sobre as Ilhas – Funchal – José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal – primeira metade do século XVI, Funchal, CEHA, 1998 – José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal – segunda metade do século XVI, Funchal, CEHA, 2002 – Luís Francisco Cardoso de Sousa Mello publicou um Tombo do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal na «Arquivo Histórico da Madeira», vol.s XV-XVIII, 1972-1974. Haverá por certo outros volumes contendo fontes. Para além destas, é bom não esquecer que muitos historiadores e estudiosos conservam o bom hábito de publicar documentos em anexo aos seus trabalhos. Mas desses nunca será possível uma memória exaustiva. Por outro lado, convém não perder de vista certos textos de narrativa histórica que, pela sua antiguidade, acabaram por se converter em fontes. Estão neste caso, por exemplo, o Catálogo e História dos Bispos do Porto de D. Rodrigo da Cunha; o Anacrisis historial de Manuel Pereira de Novais ou as descrições de viagens como o livro de João Baptista Lavanha, Viagem da Catholica Real Magestade del-Rey D. Filipe II, N. S. ao Reyno de Portugal. Ou os escritos de Manuel Severim de Faria, etc. 14 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Como em tudo, o historiador terá que ter bem apurado o seu sentido crítico para se dar conta de que uns autores merecem mais crédito do que outros. II – Forais É sabido que os concelhos se ufanam muito dos seus forais e quase se pode dizer que está na moda a sua publicação. A questão é esta: fará algum sentido introduzir o tema dos forais numa comunicação sobre a historiografia do municipalismo português? Julgamos que sim, apesar de não ignorar que muitos deles não foram dados a concelhos mas a territórios mais amplos a que se chamava Terras, que englobavam ou podiam englobar mais que um concelho: exemplos terra da Feira ou de Ovar. Mas mesmo que apenas os concelhos em sentido estrito tivessem sido contemplados, precisamos estar de sobreaviso. É que, ao contrário do que se possa pensar, a relação entre os forais manuelinos (é a esses que nos reportamos) e os concelhos é marcada mais por ambiguidades do que por cumplicidades aprofundadas. Com efeito, os concelhos não são chamados para arbitrarem o que quer que seja nas matérias a introduzir nos forais manuelinos, mas apenas a apoiar logisticamente as inquirições preparatórias e a servirem de guardiães e fiéis depositários do documento final. Os forais de D. Manuel nem na letra nem no espírito tocam nas estruturas tradicionais da administração concelhia nem mexem nas competências governativas dos oficiais municipais. Mais do que confirmar ou reafirmar expressamente capacidades de intervenção das autoridades concelhias, os forais manuelinos pressupõem-nas. Dito de outra forma: D. Manuel não aproveitou a reforma dos forais para reforçar os poderes concelhios. Longe disso. Vejamos: a questão da reforma dos forais punha-se no objectivo e no propósito de resolver bem uma relação triangular que se mostrava progressivamente mais difícil entre os lavradores e foreiros de um lado, os donatários e senhores das terras por outro e o Rei-árbitro no cume do processo. Onde é que entravam os concelhos? No seguinte: é que os lavradores e foreiros, embora trabalhassem a terra individualmente ou em família, agrupavam-se em comunidades pequenas ou grandes inseridas e integradas em concelhos (ou elas próprias eram concelhos) cujos oficiais eram os porta-vozes das queixas e os Paços do Concelho a câmara de ressonância das mesmas. Foi às Cortes quatrocentistas e quinhentistas que, através dos Procuradores dos Concelhos, chegaram as reclamações e protestos dos HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 15 lavradores explorados. E quando Fernão de Pina vai pelo Reino recolher elementos para proceder à correcta reforma dos forais, faz as suas inquirições encontrando-se com a população em quadro municipal porque não havia outro com força representativa e capacidade de mobilização das pessoas. A Igreja quando estava presente fazia mais o papel de senhorio do que o de porta-voz dos foreiros. E quando chegava o momento da decisão, era o Rei que surgia através de peritos de grande competência e prestígio institucional por ele próprio nomeados. E depois de elaborado e escrito o foral, mantém-se o triângulo na sua distribuição ou encaminhamento: um exemplar é entregue ao senhorio, outro fica na posse do poder central, guardando-se no sítio próprio que era a Torre do Tombo e como era impensável fornecer um exemplar a cada foreiro, o terceiro confiava-se à guarda do Concelho, competindo aos Juízes e Vereadores conservá-lo em bom estado, sob pena de repreensão ou mesmo de punição por parte do Corregedor na sua correição anual. Daí que os estudos sobre os forais se possam inserir numa visão genérica da historiografia municipal. Terminava aqui a relação do Concelho com o Foral? Não, porque o mesmo foral previa mecanismos de punição do senhorio que abusasse ou levasse mais direitos do que os consagrados no diploma. E quem é que aplicava essas penas? São exactamente oficiais locais de eleição ou confirmação concelhia: juízes, vintaneiros ou até quadrilheiros. Resta saber se oficiais rudes e analfabetos, como seriam estes em grande percentagem, teriam coragem e força para punir senhorios todos poderosos como, por exemplo, os Condes da Feira! Mas essa é outra questão, embora seja a pensar nessa circunstância que acima caracterizei de ambígua a relação entre os forais e os concelhos. Outra razão para tal é que os forais podem fornecer elementos subsidiários para o estudo das relações de poder dentro de um determinado espaço, para além de conservarem informações preciosas sobre toponímia, antroponímia, direitos e costumes tradicionais. Posto isto, pode dizer-se que nos últimos tempos o estudos dos forais tem merecido a assinalada atenção dos historiadores que podemos caracterizar e fasear, ainda que um pouco artificialmente, do seguinte modo: A – Um primeiro tempo de análise da reforma dos forais no conjunto da governação de D. Manuel. Situo nesse enquadramento o ensaio de Marcelo Caetano, Os Forais de Évora, publicado no Boletim Cultural da Junta Distrital de Évora, n.º 8, Évora, 1967. Embora muito desfasado no tempo, enquadro nesta lógica de interpretação global o tão breve quanto perspicaz ponto de vista 16 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS assinado por Margarida Sobral Neto no vol. III da História de Portugal dirigida por José Mattoso. (III, pp. 171-174) Essa tradição remonta ao século XIX tendo expressão nos textos de – João Pedro Ribeiro, Dissertação histórica, jurídica e económica sobre a reforma dos forais no reinado do senhor D. Manuel, Lisboa, Imprensa régia, 1812, e de – Francisco Nunes Franklin, Memoria para servir de índice dos foraes das terras do Reino de Portugal e seus domínios, 2.ª ed., Lisboa, Academia das Ciências, 1825. B – A um tempo de análise sucedeu o tempo de publicação dos textos dos forais. A primeira fase remonta ao clima de exaltação patriótica que se viveu nos inícios da década de 40 do século XX. Enquadro nesse contexto os trabalhos de J. Pinto Loureiro, Forais de Coimbra, Coimbra, Biblioteca Municipal, 1940 e António Augusto Ferreira da Cruz, Forais manuelinos da cidade e termo do Porto existentes no Arquivo Municipal, Porto, Câmara Municipal, 1940, Mais tarde, entre 1961 e 1965, ainda que não sob o mesmo impulso, surgiu o trabalho gigantesco de Luís Fernando de Carvalho Dias, Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 5 vols., s.l., edição do autor, 1961-1965. C – Sucedeu-se, se não cronológica ao menos logicamente, um tempo que é simultaneamente de enquadramento histórico, de análise interna e de publicação textual facsimilada, normalmente com o apoio e o interesse das Câmaras Municipais. Creio ser esse o tempo em que nos encontrámos o qual remonta aos fins da década de oitenta do século passado. Eis a bibliografia que pude coligir. Provavelmente haverá omissões, apesar do esforço desenvolvido para que tal não aconteça. – Chorão, Maria José Mexia Bigotte, Os forais manuelinos – 1497-1520, Lisboa, IANTT, 1990. – Fonseca, Jorge, O Foral Manuelino de Arraiolos, estudo e transcrição de..., Câmara Municipal de Arraiolos, 2000. – Forais de Silves, introd. de Maria Filomena Andrade, estudo histórico de Manuela Santos Silva, Silves, Câmara Municipal, 1993. – Forais e foros da Guarda, direcção, direcção introd. e revisão científica de Maria Helena Cruz Coelho, glossário de Maria do Rosário Morujão, Guarda, Câmara Municipal, 1999. – Foral (O) da Ericeira no arquivo-museu, coord. de Margarida Garcez Ventura, Lisboa, Colibri, 1993. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 17 – Foral concedido a Abrantes por D. Manuel em 10 de Abril de 1518, ed. de Eduardo Campos, Abrantes, Câmara Municipal, 1991. – Foral de Besteiros, ed. fac-similada, transcrição de Maria Teresa Nobre Veloso, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1992. – Foral de Coimbra de 1516, ed. de Carlos Santarém Andrade, Coimbra, Câmara Municipal, 1998. – Foral de Colares, ed. fac-similada, Sintra, Câmara Municipal, 2001. – Foral de Guimarães-1517, Guimarães, Sociedade Martins Sarmento, 1989. – Foral manuelino de Lisboa, apresentação de Maria Calado, introd. de Inês Morais Viegas, estudo de Nuno Campos, Lisboa, Câmara Municipal, 2000. – Marques, José, Os forais da Póvoa de Varzim e de Rates, ed. de..., Póvoa de Varzim, Câmara Municipal, 1991 – Marques, José, Os Forais de Barcelos, introdução, transcrição e notas de..., Barcelos, Câmara Municipal, 1998. – Marques, José, Os Forais de Melgaço, introdução, transcrição e notas de..., Melgaço, Câmara Municipal, 2003. – Martins, Manuela Alcina Oliveira e Mata, Joel Silva Ferreira, «Os forais manuelinos da Comarca da Estremadura» in Revista de Ciências Históricas, Porto, vol. IV (1989) pp. 195-222, vol. V, 1990, pp.71-90 e vol. VI, 1991, pp. 161-186. – Monteiro, Nuno Gonçalo, Forais e regime senhorial. Os contrastes regionais segundo o inquérito de 1824, Lisboa, ISCTE, 1986 (mimeo). – Neto, Margarida Sobral da Silva, «O foral manuelino de Ansião» in Actas do II Colóquio sobre História de Leiria e da sua região, II vol., Leiria, Câmara Municipal, 1995, pp. 255-267. – Santos, Cláudia Valle/Fonseca, Jorge/Branco, Manuel, Montemor-o-Novo Quinhentista e o foral manuelino, Montemor-o-Novo, Câmara Municipal, 2003. – Silva, Filomeno, Os Forais do Burgo e de Arouca. As cartas de Couto do Mosteiro de Arouca, Arouca, 1994. – Silva, Francisco Ribeiro da e Garcia, José Manuel, Os forais manuelinos do Porto e do seu termo, Lisboa, INAPA, 2001. – Silva, Francisco Ribeiro da, «O Foral manuelino da Terra de Paiva: uma preciosidade patrimonial» in Poligrafia, n.º 3, Arouca, 1994. – Silva, Francisco Ribeiro da, «O Foral de Cambra e a Reforma manuelina dos forais» in Revista da Faculdade de Letras. História, II série, vol. VI, Porto, 1989. 18 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – Silva, Francisco Ribeiro da, «O Foral manuelino de Felgueiras: um marco histórico da identidade da Terra e das Gentes» in Felgueiras – Cidade, Felgueiras, ano 2, n.º 6, Dezembro 1994. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral dado por D. Manuel I à Vila da Feira e Terra de Santa Maria a 10 de Fevereiro de 1514, ed. facsimilada do original, introdução e estudo de…, Santa Maria da Feira, Câmara Municipal, 1989. – Silva, Francisco Ribeiro da, Os Forais manuelinos da Terra de Ovar e do Concelho de Pereira Jusã, estudo comparado e leitura, Ovar, Câmara Municipal, 2000. – Valério, João António, Os forais manuelinos de Alvito e Vila Nova da Baronia, Alvito, Câmara Municipal, 1996 Que temas em concreto é possível colher e apreender nestas publicações? Aspectos históricos e histórico-jurídicos dos forais; estrutura formal e divisões internas; os foros e o seu significado económicosocial; a propriedade e o uso da terra; as regras de uso e partilha dos meios de produção; forais e senhorialismo, as relações foraleiras entre lavradores e senhorios; notas sobre antroponímia e toponímia; glossário dos termos utilizados, etc. Mas são possíveis e desejáveis estudos transversais.. Eu próprio ensaiei, senão com sucesso ao menos com grande autosatisfação, uma matéria que atravessa muitos forais manuelinos, de que resultou um artigo a que chamei A pesca e os pescadores na rede dos forais manuelinos e foi publicado na revista «Oceanos», n.º 47/48, Lisboa, Julho-Dezembro 2001, pp. 8-28. Foi necessário examinar todos, não só os do litoral onde era suposto encontrar as informações que procurava mas também os do interior, sobretudo das terras banhadas por rios. Apliquei a mesma metodologia ao estudo sobre o peso do sal nos forais manuelinos. D – Há ainda um quarto momento que foi inaugurado por Maria Olinda Rodrigues Santana, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro que em 1998 defendeu uma tese de doutoramento (de que tive a honra de ser co-orientador), Livro dos foraes novos da comarqua de Trallos Montes. Edição, enquadramento histórico e análise estatístico-linguística, 4 vols, UTAD (policopiado) 1998. publicado em parte pelo Editor de Mirandela, João Azevedo, em 1999. Como o título indica, tratou-se de combinar e cruzar cientificamente o estudo da história e do direito foraleiro com o tratamento linguístico do texto. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 19 III – Estudos sobre os Concelhos e a Administração Municipal Não são muito numerosos os estudos directos e exclusivos sobre os concelhos portugueses nos séculos XVI e XVII, sendo bastante mais abundantes os dedicados ao século XVIII e aos finais do Antigo Regime. Provavelmente esta será uma tendência geral da historiografia portuguesa e não apenas da historiografia sobre o municipalismo. As pesquisas que levamos a cabo na web, sítio da Biblioteca Nacional, utilizando palavras-chave lógicas tais como «concelhos», «administração», «município», «municipal» ou «elites» indicaram-nos cerca de 30 títulos, alguns de conteúdo muito vago face ao tema que nos foi sugerido. Por outro lado, as Actas do Congresso sobre o Município no Mundo Português realizado na Madeira em Outubro de 1998 que reuniu a maior parte dos investigadores que em Portugal (e no Brasil) se dedicam a estes temas, revelam-nos que sendo 39 o número total das comunicações publicadas, apenas 10 se dedicaram em todo ou em parte aos séculos referidos. De qualquer modo, é possível apresentar aqui um ponto da situação que pode ser também uma espécie de balanço. Gostaria antes de mais de começar esse balanço por duas ou três notas que nascem da observação da realidade actual do panorama lusitano: 1 – A sensibilização do Ensino Superior para estas matérias Começarei por constatar uma realidade e me congratular com ela: todos os cursos de História das Faculdades de Letras têm dedicado atenção e inserido os estudos sobre História Local e Regional nas suas ofertas de pós-graduação, nomeadamente ao nível dos mestrados e até dos doutoramentos nos quais o tema do municipalismo é assíduo, directa ou indirectamente. De norte a sul têm sido elaboradas, discutidas e às vezes publicadas teses, algumas de grande mérito e utilidade, umas quantas sobre os séculos XVI e XVII. De uma ou outra tive eu próprio oportunidade de ser arguente ou orientador. O caso mais recente de arguição foi precisamente na Universidade de Évora, onde tive oportunidade de apreciar o trabalho de Rute Maria Lopes Pardal, As elites de Évora ao tempo da dominação filipina: estratégias de controle do poder local (1580-1640), orientado por Laurinda Abreu. E não só nas Faculdades de Letras e não apenas nas Universidades Públicas. Sinal do renovado interesse pelos estudos locais e regionais e talvez do desaparecimento do preconceito de que a História Local era um assunto menor, mais próprio para amadores desocupados do que para universitários. Como se pudesse haver verdadeira e séria História Nacional ou Geral sem o contributo das monografias dos espaços mais 20 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS pequenos e das micro-instituições ou como se entre uma e outras se pudessem estabelecer diferenças abissais de metodologia e de objecto. Um outro dado a reter (ao qual não é a primeira vez que faço menção) é o progressivo interesse das Câmaras pelos estudos municipais, como se pode concluir dos repetidos colóquios e congressos sobre o poder local que têm patrocinado, com o suporte científico das Universidades e, aqui e ali, pelo apoio que têm dado a publicações sobre a terra. O exemplo dos forais acima lembrado é elucidativo. Nem sempre o que move os autarcas é o puro e desinteressado interesse científico. Nem tem que ser. Por isso, não serei eu a criticar quando da convergência dos interesses dos historiadores e estudiosos e dos governantes dessa terra resultam jornadas de divulgação e edições de livros. Também por esta via pode ser frutuosa a colaboração das Universidades com as Câmaras Municipais. Assuntos estudados Quanto aos assuntos estudados, distinguirei por um lado os estudos de âmbito geral, nos quais incluo as Histórias de Portugal e outros estudos de síntese e por outro as monografias e estudos locais e regionais específicos. Quanto às Histórias de Portugal, começando pela de A.H. de Oliveira Marques (a de 1972 e a «Breve» mais recente) – embora não se demorando muito no que toca à administração municipal neste período, tem o mérito de chamar a atenção para a importância da implantação dos concelhos nas Ilhas Atlânticas e nas «conquistas» ultramarinas, especialmente no Brasil onde as Câmaras adquiriram enorme importância, em contraste com a metrópole onde, segundo aquele eminente historiador, mostravam sinais de decadência. Quanto à História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão, em cada um dos 3 volumes que, no conjunto, tocam os séculos XVI e XVII, são consagradas algumas páginas aos concelhos e ao «país profundo» de que destaco os seguintes aspectos: evolução relativa das áreas regionais, promoção de vilas a cidades, dialéctica entre a centralização e as pretensões autonómicas dos concelhos, funções administrativas dos mesmos, representação dos Concelhos em Cortes, lugar que cada um dos concelhos ocupava na hierarquia dos bancos de Cortes, força progressiva dos mesteres, incidência da legislação central sobre a vida quotidiana dos municípios. A História de Portugal dirigida por Hermano José Saraiva no seu vol. 4, (Lisboa, Alfa,1983), em capítulo assinado por J. A. Nogueira dedica pouco mais de meia página ao assunto da divisão administrativa do Reino. A única nota que vale a pena realçar é a afirmação, algo enigmática, do desaparecimento das particularidades locais no período que nos ocupa. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 21 A História de Portugal dirigida por José Mattoso, no volume dedicado ao Alvorecer da Modernidade, coordenado por Joaquim Romero de Magalhães, consagra 10 páginas aos Concelhos, integradas num longo capítulo sobre os equilíbrios sociais do poder. Em concreto, Romero de Magalhães parte de D. Manuel cuja política interna analisa, discorre sobre o binómio poder central/poder local, sobre competências próprias e delegações de poderes, sobre o processo eleitoral e, tal como Oliveira Marques, consagra algumas linhas aos Concelhos ultramarinos. Duas ideias fortes de Romero de Magalhães devem ser destacadas, sem que isso signifique concordância ou discordância da nossa parte: a primeira é a de que cada unidade administrativa era completamente independente em relação às vizinhas; a segunda é a de que o poder em Portugal é a-regional e anti-regional. Por sua vez, no volume seguinte, sobre o Antigo Regime, coordenado por António Manuel Hespanha, dedica-se um subcapítulo de 30 páginas aos Concelhos e às Comunidades, num longo desenvolvimento sobre a Arquitectura dos Poderes que, pelo que se indica no título genérico do volume, abrange um período que vai de 1620 a 1807. O autor, Nuno Gonçalo Monteiro, procura sintetizar nessas três dezenas de páginas os estudos publicados em Portugal sobre administração municipal. A obrigação de síntese a que os Autores são constrangidos e provavelmente o plano geral do Coordenador leva-os a seleccionarem, de entre a bibliografia disponível, os aspectos que mais substantivos lhes parecem. Mesmo resumida, a matéria dos concelhos nesta História é relativamente abundante, oferecendo-se uma série de temas sugestivos que poderão proporcionar inspiração para ulteriores desenvolvimentos: – Instituições e poderes locais – Câmaras e ordenanças – centro e periferia – instrumentos de fiscalização do centro – A hipotética viragem da segunda metade do século XVIII – As repúblicas municipais – governo económico local e finanças locais – poderes municipais e elites locais – entre oligarquia e comunidade A Nova História de Portugal (direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques – vol. V coordenado por João Alves Dias, Lisboa, 1998), para além de alusões avulsas aos concelhos ao longo do volume, dedica algumas páginas às instituições concelhias e ao seu governo, na pressuposição já referida de Romero de Magalhães de que «o poder em Portugal é arregional ou anti-regional» e que o papel principal pertenceu à oligarquia dos homens bons (texto de José Adelino Maltez, pp. 406-412). O vol. VII da mesma Nova História de Portugal (Lisboa, 2001) coordenado por Avelino de Freitas de Meneses, consagra 8 páginas (pp. 56-68) ao tema dos concelhos, assinadas por Maria Paula Marçal Lourenço. Nelas 22 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS a autora, utilizando com habilidade e originalidade boa parte da bibliografia conhecida, fazendo alarde de boa capacidade de síntese, desenvolve dois itens: a «administração central periférica e os poderes delegados» e ainda «o poder absoluto e as cortes». O vol. VIII da mesma Nova História de Portugal – em vias de publicação, coordenado por Luís A de Oliveira Ramos, dedicado aos finais do Antigo Regime no subcapítulo escrito por mim próprio – tratará da administração municipal numa perspectiva predominantemente institucional: – As divisões do território e o seu significado – As leis reformistas dos finais da época moderna e a sua incidência na administração municipal – A importância dos Provedores, dos Corregedores das Comarcas e dos Juízes de Fora e a problemática da centralização versus autonomia. A progressiva influência do Corregedor em prejuízo das outras duas magistraturas (Juízes de Fora e Provedores). – Estruturas fundamentais da administração municipal e funções dos oficiais camarários e dos magistrados régios em relação aos serviços prestados e ao correcto ordenamento da vida quotidiana – Os oficiais das freguesias e aldeias. Quanto a trabalhos gerais sobre o Municipalismo na época moderna, sublinharemos o interesse da História dos Municípios e do Poder Local. (Dos finais da Idade Média à União Europeia),dir. de César de Oliveira, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996. Há algum desequilíbrio entre o espaço concedido ao Antigo Regime (isto é, séc.s XV-XIX – cerca de 175 páginas) e o conferido aos séculos XIX e XX (mais de 400 páginas). Compreende-se que assim seja não só pelo número potencial de leitores interessados como também pela bibliografia disponível: muito mais abundante para os séc.s XIX e XX do que para o Antigo Regime. Além disso, não é fácil estabelecer ao certo a percentagem de páginas que, na 1.ª parte, Nuno Gonçalo Monteiro, coordenador e principal autor1 dedica aos séculos XVI e XVII. Nem isso é importante e se aludo aqui a tal é apenas porque a minha comunicação trata dos séculos XVI e XVII. Embora se encontre nesta obra alguma coisa de comum com o capítulo que o Autor escreveu na História de Portugal, na minha opinião, nesta obra, é muito mais profundo, sugestivo e inovador. Basta lembrar os títulos dos principais capítulos para evocar os conteúdos: 1 Com a colaboração pontual de Isabel dos Guimarães Sá, José Vicente Serrão, Ana Cristina Nogueira da Silva, Paulo Jorge Fernandes, Paulo Silveira e Sousa e Mafalda Soares da Cunha). HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 23 – A sociedade local e os seus protagonistas em que louvavelmente desce até às paróquias – O central, o local e o inexistente regional – O espaço político e social local. Esta obra constitui, portanto, uma referência obrigatória para quem estuda o municipalismo em Portugal. Dentro das obras de âmbito geral, não poderemos deixar de lado uma tese de doutoramento que justamente tem constituído uma trabalho sempre citado. Refiro-me a António Manuel Hespanha e à sua obra As vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político (Coimbra, Almedina, 1994). E de entre o conjunto do trabalho emerge para nós, pela inovação que introduz, o longo capítulo da Arqueologia do Poder e a sua visão integrada do poder político-administrativo em Portugal na época moderna, na qual desempenha papel de relevo o que ele chama a administração periférica da Coroa. Não deverei passar à frente sem uma breve alusão a um texto-síntese muito citado e esgotadíssimo – O Poder concelhio das origens às Cortes Constituintes. Notas de história social, de Maria Helena Coelho e Joaquim Romero de Magalhães (Coimbra, CEFA, 1986). Depois e para além disso, há todo um acervo de obras de índole local no seu objectivo imediato ainda que possam conter sugestões metodológicas de largo alcance e até de valor universal. Em Portugal continental, pode dizer-se que existem trabalhos valiosos dedicados a muitas cidades, especialmente àquelas onde existem Estudos Superiores: (continuo a ater-me aos séculos XVI e XVII). Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Braga, Guimarães, Santarém, Viseu, Aveiro, Viana do Castelo têm sido objecto de vários estudos, uns artigos e ensaios de ambição moderada, outros teses e obras de maior fôlego. Mas não apenas relativos a essas cidades: também Portimão, Esposende, Vila do Conde, Lousã, Ponte de Lima, e quantas outras... Há também que dar a devida importância ao incremento dos estudos sobre o municipalismo nas Ilhas, tanto dos Açores como da Madeira, através de instituições de investigação como o Instituto Histórico da Ilha Terceira ou o Centro de Estudos de História do Atlântico que nos últimos anos promoveu dois Congressos sobre o municipalismo e já prepara o terceiro. Em ambos os arquipélagos a apetência por estas matérias está em crescendo. Não me parece que deva enveredar aqui pela análise de pormenor dos textos que se debruçaram sobre terras determinadas. No entanto, há uma que me marcou desde muito cedo. Refiro-me a António de Oliveira, A vida económica e social de Coimbra de 1537 a 1640, 2 vols., Coimbra, 1972. 24 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Rasgou caminhos e incentivou trabalhos de outros. Como o título indica não foram propriamente as matérias de governo local que preocuparam o Autor mas antes os problemas da economia e da sociedade. No tempo em que o Prof. António de Oliveira começou a investigar, o primado da história económica e social era indiscutível e intocável. Mas há dois aspectos que me parece de justiça enfatizar neste apanhado: o primeiro é o facto de, ao ter escolhido uma cidade e o seu aro como objecto da sua dissertação de doutoramento, ter aberto caminhos com futuro para a história local e regional. Por outro lado, e esse é o segundo aspecto, embora não fosse seu interesse imediato assumido o enquadramento institucional e administrativo ele não podia ser ignorado. Basta ler o seu primeiro longo capítulo sobre circunscrições administrativas e jurisdição municipal para se perceber o alcance destas matérias no conjunto do seu excelente e pioneiro trabalho. Parece, por conseguinte, mais interessante e útil revisitar os conteúdos dos trabalhos académicos que ultimamente têm sido publicados. Começando pelas grandes áreas temáticas estudadas, dividiria assim as matérias: • A das infra-estruturas: aspectos geográficos, demografia, recenseamento dos moradores, actividades económicas, profissões, propriedade da terra. • A da estrutura, diversificação e funcionamento das instituições e seus suportes materiais como os edifícios dos Paços do Concelho e Arquivo, etc. • A das pessoas envolvidas e as estratégias do poder e das relações interfamiliares na perspectiva do acesso e do exercício do poder. As representações públicas do poder. Festas e cerimónias rituais locais comemorativas de nascimento de príncipes e da morte de membros da família real. • A dos serviços: obras públicas, abastecimento de alimentos, de água, de bens de consumo; questões de saúde e da higiene, organização da defesa. As ordenanças. Os tempos de lazer e as festas na perspectiva dos que delas usufruem. • As actividades mesteirais e o controlo possível exercido pelas administrações municipais. • A das finanças: receitas e despesas. O património municipal. Sistemas de organização fiscal e pessoal envolvido. A • participação cívica dos cidadãos e da plebe. Têm tido lugar aqui os estudos sobre movimentos sociais e tumultos, quantas vezes atribuídos pelo poder central à inércia das Câmaras. O problema da ordem pública. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 25 • A das relações com o poder central e as chancelarias régias. Entram aqui os estudos sobre o papel e atribuições dos agentes régios, tais como o Corregedor da Comarca, o Provedor ou o Juiz de Fora. • A da conflitualidade no interior do concelho e o choque com outras entidades eclesiásticas ou civis. • A religiosidade e a influência dos Mosteiros no aro concelhio. As práticas religiosas privadas e públicas. As procissões, em especial a do Corpo de Deus. As confrarias e as práticas de sociabilidade. • Os diversos aspectos da vida quotidiana, tais como alimentação, higiene, questões de segurança. • A geografia do poder e a importância e sacralização de certos espaços públicos. Outro tema que se tem revelado extremamente fecundo é o da formação das elites e das oligarquias locais, sua múltipla caracterização, estratégias de poder, mobilidade social. É claro que mais uma vez se impõe referir o nome do Prof. Nuno Gonçalo Monteiro. Impressionou-me fortemente o ensaio publicado na «Análise Social», (n.º 141, 4.ª série, vol. XXXII, 1997) – Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime – não só por constituir uma excelente síntese de tudo (ou quase tudo) quanto se escreveu ultimamente entre nós sobre o assunto mas também por oferecer uma quase completa bibliografia dos títulos publicados sobre o nosso tema – municipalismo na época moderna. Ligado a este, têm-se retomado em Portugal há uns anos a esta parte os estudos sobre as Misericórdias, analisando as Irmandades não apenas nos seus aspectos organizacionais internos e na lógica da assistência mas procurando situá-las e inseri-las nas redes e estratégias de poder local. Na verdade, o poder municipal exercido no âmbito concelhio e o poder feito de honra e de prestígio no seio das confrarias eram de natureza diferente, ainda que o serviço público fosse a razão de ser de ambos. Não deixa de ser relevante que os nomes de topo das elites municipais se repitam nas listas dos nomes dos principais dirigentes das Misericórdias. Câmara e Misericórdias cruzam-se e complementam-se. Este novo enfoque interpretado por jovens historiadoras e historiadores parece-me muito promissor e justifica que se revisitem e provavelmente se reescrevam numerosas monografias sobre as Misericórdias portuguesas. Outro provável caminho do futuro creio que poderá ser o do estudo comparado dos concelhos de Portugal e dos países colonizados por Portugal, nomeadamente o Brasil não só na época colonial como no período pós-independência. História comparada dos Concelhos. Outra pista a desenvolver será a do estudo da organização paroquial, das freguesias e das suas relações com a cabeça do Concelho. Há ou não 26 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS um espaço de autonomia para as freguesias, houve ou não reivindicações neste domínio? Os concelhos foram espaço de coesão interna ou antes de conflitualidades e clivagens? Para além destes áreas, perdoar-me-ão a imodéstia de lembrar alguns pequenos temas que tratei em artigos e ensaios que me pareceram interessantes e que podem ser desenvolvidos a nível municipal: – em primeiro lugar, os temas da alfabetização e a sua relação com o exercício de cargos municipais. O meu posto de observação tem sido o Porto e daí talvez a provável sobreavaliação das capacidades de literacia dos investidos no poder municipal que, aliás, me pareceu ainda mais favorável em Braga no tempo de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Os livros das chancelarias régias fornecem muitos exemplos de contratação pelas Câmaras de Mestres de Ler e de Gramática que não têm sido aproveitados sistematicamente; – o tema da venalidade e da hereditariedade dos ofícios públicos parece-me sugestivo na medida em que sou levado a concluir que essa prática, além de funcionar sobretudo a nível local e concelhio, e sobretudo nos séculos XVI e XVII, desempenhou papel importante como factor de mobilidade social ascendente; – outro tema que gostei de ter tratado foi o das relações entre o poder central e o poder local na perspectiva da participação dos concelhos nas Cortes. Como é sabido, por cada convocatória, as Câmaras redigiam Capítulos gerais e particulares, que eram ora pontos de vista e reclamações que se destinavam ora a ser discutidos pelo Terceiro Estado, ora a ser apresentados ao Rei na expectativa de uma resposta favorável. Sobre que incidiam esses capítulos e qual o seu encaminhamento na perspectiva do diálogo institucional entre a Corte e os concelhos parece-me um problema interessante e que poderá revelar que as indicações de governo não eram de sentido único – do centro para a periferia – mas provavelmente também da periferia para o centro. Contudo, não podemos esquecer que a partir de 1697 não há mais Cortes em Portugal. Para além de tudo isso, o que estudar mais dentro da história do municipalismo? Eu diria «tudo», se tal fosse possível! A história total é o objectivo teórico final do historiador. Mas que é isso de tudo e de total? A mim parece-me algo simultaneamente desejável e inatingível. Devo confessar que comecei por estudar as instituições municipais, como se fosse um jurista, recorrendo antes de mais às normas, às leis que as estruturaram e lhes fixaram as regras de funcionamento. Um exemplo: HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 27 a leitura do tit. 66 do Livro 1.º das Ordenações Filipinas (sobre os vereadores) foi importante como norma e como fonte para a fixação do perfil e do modelo institucional desses oficiais municipais tão típicos dos municípios lusitanos. Mas um historiador depressa se dá conta que a realidade vivida é algo muito mais complicado que a realidade sonhada ou programada a qual às vezes tem pouco a ver com as normas. Muito cedo interiorizei a frase de Jaime Vicens Vives – «a História das Instituições não é História propriamente dita»! Mas as instituições são feitas por homens e para pessoas concretas. Se nós conseguirmos ligar as pessoas concretas que serviram as instituições às pessoas concretas a quem se dirigia a sua acção, então talvez a história das instituições possa ser história propriamente dita. Neste processo, veio em meu auxílio um historiador catalão, Pedro Molas Ribalta2 que me seduziu com a sua teoria da História Social da Administração. Ou seja, mais do que fazer história das instituições, talvez fosse melhor tentar a história social da administração. Como? Indagando as relações entre a instituição e os grupos sociais, tentando perceber a «estrutura efectiva do poder» inserida na comunidade até chegar ao reconhecimento da importância do exercício do poder como elemento determinante da estrutura interna dos estados e dos grupos. A História da Administração bem entendida tem que resultar da confluência da História do Direito, da História Política, da História Económica e Social, da História das Mentalidades, das atitudes, dos comportamentos. A História Social do Poder tenderá então a ser uma espécie de biografia colectiva. Ou seja, apurando-se as circunstâncias económicas, sociais, culturais, religiosas, e outras dos indivíduos que povoaram e deram vida às instituições do poder local e regional e exerceram efectivamente esse mesmo poder, chegaremos ao conhecimento das circunstâncias profundas da sedução e da conquista do poder e do seu exercício. Foi esse objectivo que me moveu em grande parte na preparação do meu doutoramento e em vários trabalhos posteriores e mesmo em teses de mestrado que tive o gosto de orientar. A mesma preocupação esteve presente na minha Lição das provas de Agregação quanto aos Procuradores do Porto às Cortes do século XVII. Quem eram afinal esses senhores Procuradores? Quando esperávamos que todos fossem fidalgos provavelmente de tradições bem alicerçadas e antigas, surge a surpresa: alguns afinal eram netos de oficiais mecânicos e, por essa razão viram adiado ( por 2 MOLAS RIBALTA, Pedro, La Historia Social de la Administración in Historia Social de la Administración Española. Estudios sobre los siglos XVII y XVIII, Barcelona, 1980. 28 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS algum tempo) o seu requerimento, a sua habilitação para serem admitidos ao Hábito da Ordem de Cristo. Tal metodologia implicou que na Tese de Doutoramento tal como foi publicada, tenha utilizado 43 páginas com os «nomes das pessoas que animaram as Instituições». É óbvio que os nomes sem mais são meras indicações, como que esqueletos sem carne, e não valerão muito se não os situarmos na sua realidade existencial e institucional e na sua rede de relações. Conclusão Há que concluir. Os estudos sobre os concelhos e o municipalismo foram suficientemente atractivos para ocuparem historiadores de excelência no passado de que basta lembrar o exemplo de Alexandre Herculano. As circunstâncias do tempo presente pautadas pela ideia de globalização aparentemente privilegiam o universal e secundarizam o regional e o local. Mas, paradoxalmente, é num mundo globalizado que o interesse real pelo que é que local e regional se vem acentuando. Não só porque de repente o que é vivido à escala local, em virtude e por força das novas tecnologias, pode adquirir e adquire valor global mas porque a vida real das pessoas, de cada pessoa, decorre normalmente em cenário local. A Europa que se está a construir poderá esbater ainda mais as ditas soberanias nacionais. Mas o que não pode nem deseja é apagar as regiões e as multímodas diversidades regionais Por isso, e para que não se percam as identidades e o gosto pela diversidade, parece de incentivar os estudos locais e regionais. Não só os de fundo histórico. Não só nem sequer principalmente das instituições. Mas das pessoas concretas na sua inserção social e comunitária, do modo como as famílias e os grupos se organizaram e que tipos de redes de relacionamento e que vias de desenvolvimento e de progresso conseguiram estabelecer. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 29 Anexo Subsídios para uma bibliografia sobre a história dos Concelhos e do Municipalismo em Portugal (sécs. XVI-XVII) – Abreu, Laurinda, Memórias da alma e do corpo – A Misericórdia de Setúbal na Modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999. – Abreu, Laurinda, A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e 1755. Aspectos da sociabilidade e do poder, Setúbal, Santa Casa da Misericórdia, 1990. – Abreu, Laurinda, «Misericórdias e poder local» in O Poder local em tempo de globalização, Coimbra, – Actas das Jornadas sobre o Município na Península Ibérica (sécs. XII a XIX), Santo Tirso, Câmara Municipal, 1988. – Alves, Vítor Fernandes da Silva, Sazes de Lorvão de 1660 a 1760: espaço, sociabilidade e poderes numa paróquia rural, Coimbra, FLUC, 1989 (polic.). – Andrade, António Alberto Banha de, Montemor-o-Novo, vila realenga: ensaio de história da administração local, 2 vols., Lisboa, Grupo dos amigos de Montemor-o-Novo, Academia Portuguesa da História, 1976-1979. – Andrade, António Alberto Banha de, Conspecto socioeconomico de uma vila no Renascimento. Montemor-o-Novo no século XVI, Lisboa, Academia da História, 1979. – Araújo, Jorge Filipe Pereira de, A administração municipal do Porto 1508-1511, Porto, 2001 (Faculdade de Letras do Porto, policopiado). – Araújo, Maria Marta Lobo de, Dar aos pobres e emprestar a Deus: as misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (sécs. XVI-XVIII), Ponte de Lima, Santa Casa da Misericórdia, 2000. – Arqueologia do Estado. Actas das 1.as Jornadas sobre formas de organização e exercício do poder na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, 2 vols., Lisboa, 1988. – Barreira, Manuel de Oliveira, A Santa Casa da Misericórdia de Aveiro. Pobreza e Solidariedade, Coimbra, FLUC, 1995 ( dissert. de Mestrado). – Basto, Artur de Magalhães, Estudos Portuenses, 2 vols., 2.ª edição, Porto, Biblioteca Pública Municipal, 1990. – Basto, Artur de Magalhães, História da Santa Casa da Misericórdia do Porto, 2 vols., 2.ª edição, Porto, Santa Casa da Misericórdia, 1997-1999. 30 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – Beirante, Maria Ângela, Santarém Quinhentista, Lisboa, Liv. Portugal, 1981 – Braga, Alberto Vieira, Administração Seiscentista do Município Vimaranense, Guimarães, Câmara Municipal, 1953. – Brito, António Pedro, Patriciado urbano quinhentista: as famílias dominantes do Porto (1500-1580), Porto, Arquivo Histórico Municipal, 1997. – Brito, A da Rocha de, «As finanças quinhentistas do município coimbrão» in Arquivo Coimbrão, vol. VII, Coimbra, 1943. – Câmara, Teresa Maria Bettencourt da, Óbidos. Arquitectura e Urbanismo. Séculos XVI e XVII, Óbidos, 1990. – Capela, José Viriato, «Tensões Sociais na região de Entre Douro e Minho I. O Couto de Rendufe e o concelho de Entre Homem e Cávado (1640-1750)», in O Distrito de Braga, vol. III, Braga, 1978. – Capela, José Viriato e outros (Coord.), O Município Português na História na Cultura e no desenvolvimento Regional, Braga, Universidade do Minho, 1998. – Cardim, Pedro, «Cortes e Procuradores do reinado de D. João IV» in Penélope. Fazer e Desfazer a História, Lisboa, nº 9/10, 1993, pp. 63-71. – Carneiro, Virgílio de Oliveira, A freguesia de Requião do concelho de Vila Nova de Famalicão em meados do séc. XVII: ensaio de demografia histórica, Porto, edição do Autor,1972. – Castro, Armando de, A estrutura dominial portuguesa dos séculos XVI a XIX (1834), Lisboa, Editorial caminho, 1992. – Coelho, Maria Helena e Magalhães, Joaquim Romero de, O Poder concelhio das origens às Cortes Constituintes. Notas de história social, Coimbra, CEFA, 1986. – Costa, M.M. da Silva, «Esposende na era de Seiscentos. Dez anos de administração municipal» in Boletim Cultural de Esposende, n.º 6, Esposende, 1984, pp. 7-48. – Crespo, Albertino, Várzea da Rainha: subsídios para o estudo de um latifúndio no concelho de Óbidos (sécs. XVI-XIX), Bombarral, s. n, 1982. – Cruz, António, Algumas observações sobre a vida económica e social da cidade do Porto nas vésperas de Alcácer-Quibir, Porto, Biblioteca Municipal,1967. – Cruz, António Augusto Ferreira da, O Porto seiscentista. Subsídios para a sua História, Porto, Câmara Municipal,1943. – Cunha, Mafalda Soares da, A Casa de Bragança (1560-1640).Práticas Senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Editorial Estampa, 2000. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 31 – Curto, Diogo Ramada, «Descrições e representações de Lisboa 1600-1650» in O Imaginário da Cidade, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. – Dias, João José Alves, A comunicação entre o poder central e o poder local: a difusão de uma lei no século XVI, s.l./ s. d, 1989 ( Sep. de Actas das Jornadas sobre o Município da Península Ibérica (séc. XII a XIX). – Duas cidades ao serviço de Portugal. Subsídios para o estudo das relações de Lisboa e Porto durante oito séculos, Porto, Câmara Municipal, 1947. – Ferreira, Ana Maria Pereira, «Algumas despesas do Município portuense nos inícios do século XVI:1509-1510» in Actas das Jornadas sobre o município na Península Ibérica (sécs. XII-XIX), Santo Tirso, Câmara Municipal, 1988, pp. 189-205. – Ferreira, Ana Maria, Algumas despesas do município portuense no início do século XVI, s.l./ s. n., 1989 ( Sep. de Actas das Jornadas sobre o Município na Península Ibérica (séc. XII a XIX). – Ferreira, Cristina Isabel de Oliveira Gomes, A Vereação da Cidade do Porto (1512-1514), Porto, FLUP, 1997 (dissert. de mestrado). – Ferro, João Pedro, Para a história da administração pública na Lisboa seiscentista, Lisboa, Planeta Editora, 1996. – Garcia, João Carlos, «A percepção do espaço numa corografia seiscentista do reino do Algarve» in Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 5ª série, nº 6, 1986. – Gomes, Fátima Freitas, Machico. A vila e o termo. Formas do exercício do poder municipal (fins do século XVII a 1750), Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 2002. – Hespanha, António Manuel, As vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político, Coimbra, Almedina, 1994. – Hespanha, António Manuel, «Centro e Periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime» in Ler História, Lisboa, n.º 8, 1986, – Lalanda, Maria Margarida de Sá Nogueira, A administração do concelho de Vila Franca do campo nos anos de 1683-1686: subsídios para o seu estudo, Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983. – Langhans, Franz-Paul de Almeida, Estudos de Direito Municipal. As posturas, Lisboa, 1937. – Langhans, Franz-Paul de Almeida, A Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1948. – Loureiro, J. Pinto, Administração coimbrã no século XVI. Elementos para a sua história, Coimbra, Biblioteca Municipal, 1942. 32 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – Lourenço, Maria Paula Marçal, A Casa e o Estado do Infantado 1654-1706, Lisboa, 1995. – Lousada, Maria Alexandre, «As divisões administrativas de Portugal do Antigo Regime às Reformas Liberais» in V Colóquio Ibérico de Geografia, Léon, 1989. – Machado, Maria de Fátima, O Central e o Local (A Vereação do Porto de D. Manuel a D. João III, Porto, Edições Afrontamento, 2003. – Magalhães, Joaquim Romero de, «Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira» in Revista de História Económica e Social, Lisboa, n.º 16, 1985, pp. 17-30. – Magalhães, Joaquim Romero de, «Algumas notas sobre o poder municipal no Império português durante o século XVI» in Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 25-26, 1988. – Matos, Álvaro, e Rasgas, Raúl, (coord.), Primeiras Jornadas de História Local e Regional (Faculdade de Letras de Lisboa), Lisboa, Edições Colibri, 1993. – Menezes, Avelino de Freitas de, Os Açores e o domínio filipino (1580-1590), Angra do Heroismo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1987. – Menezes, Avelino de Freitas de, Rodrigues, Vitor Luís Gaspar e Vieira, Alberto, «O Município do Funchal (1550-1650). Administração, Economia e Sociedade. Alguns elementos para o seu estudo» in Actas do 1.º Colóquio Internacional de História da Madeira, Vol. II, Funchal, 1990. – Monteiro, Nuno Gonçalo, «Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime» in Análise Social, Lisboa, n.º 141, 4.ª série, vol. XXXII, 1997. – Monteiro, Nuno Gonçalo, Elites e Poder. Entre o antigo regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003. – Monteiro, Nuno Gonçalo, «Poderes municipais e elites locais (séculos XVII-XVIII). Estado da questão» in Município (O) no Mundo Português. Seminário Internacional, Funchal, CEHA, 1998, pp. 79-89. – Moreira, Manuel António Fernandes, O Município e os forais de Viana do Castelo, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1986. – Moreno, Humberto Baquero, Os municípios portugueses nos séculos XIII a XVI, Lisboa, Presença, 1986. – Município (O) de Lisboa e a dinâmica urbana (séculos XVI-XX). Actas das sessões, Lisboa, Câmara Municipal, 1997. – Município (O) no Mundo Português. Seminário Internacional, Funchal, CEHA, 1998. (Entre as pp. 696 e 703 publica uma resenha bibliográfica abundante sobre o tema). HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 33 – Neto, Maria Margarida Sobral, «Barcelos e a Casa de Bragança no século XVII» in Actas do Congresso Barcelos Terra Condal, Barcelos, Câmara Municipal, 1999, pp. 429-444. – Neto, Maria Margarida Sobral, «Regime senhorial em Ansião. O foral manuelino e seus problemas nos séculos XVII e XVIII» in Revista Portuguesa de História, tomo XXVIII, Coimbra, 1993. – Neto, Maria Margarida Sobral, «A vida económica e social de Gouveia na época moderna» in Revista Portuguesa de História, tomo XXXV, Coimbra, 2001/2002, pp. 247-271. – Neves, Francisco Ferreira, Livro dos Acordos da Câmara de Aveiro de 1580. Subsídio para o estudo da vida municipal e nacional portuguesa, Aveiro, 1971. – Olival, Fernanda, As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, Mercê e Venalidade (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001. – Oliveira, António de, A vida económica e social de Coimbra de 1537 a 1640, 2 vols., Coimbra, 1972. – Oliveira, Aurélio de, A Abadia de Tibães 1630-1680–1813. Propriedade, Exploração e Produção agrícola no vale do Cávado durante o Antigo regime, 2 vols., Porto, 1979 (policopiado). – Oliveira, Aurélio de, «Aristocracias Locais e poder central. O exemplo bracarense» in Revista de História, vol., VIII, Porto, 1988. – Oliveira, Aurélio de, «Municipalismo e integração económica. Braga e Guimarães na primeira metade de seiscentos» in Bracara Augusta, Braga, 1988. – Oliveira, César de, História dos Municípios e do Poder Local. (Dos finais da Idade Média à União Europeia),direcção de, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996. (ampla resenha bibliográfica – pp, 519-531. – Oliveira, João Nunes de, A produção agrícola de Viseu entre 1550 e 1700, Viseu, Câmara Municipal, 1990. – Oliveira, J.M. Pereira de, O espaço urbano do Porto. Condições naturais e desenvolvimento, Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1973. – Pardal, Rute Maria Lopes, As elites de Évora ao tempo da dominação filipina: estratégias de controle do poder local (1580-1640, Évora, 2002 (tese de mestrado , policopiada). – Pereira, António dos Santos, A administração municipal na Vila das Velas na segunda metade do século XVI, Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983. – Pereira, António Santos, A Ilha de S. Jorge nos séculos XV-XVII. Contribuição para o seu estudo, Ponta Delgada, 1984. 34 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – Pestana, Manuel Inácio, «Pautas municipais de Lamas de Orelhão de 1657 a 1680» in Raízes e Memórias, n.º 5, 1984. – Pinto, Maria Helena Barbosa, A Vereação Municipal do Porto em 1545, Porto, 2001, (Faculdade de Letras do Porto, policopiado. – Ramos, Carla Susana Barbas dos, A administração municipal e as Vereações do Porto de 1500 a 1504, Porto, FLUP, 1997. – Rodrigues, José Damião, Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no século XVII, Ponta Delgada, s/n, 1994. – Rodrigues, Miguel Jasmins, Organização dos poderes e estrutura social. A Madeira 1460-1521, Lisboa, Universidade Nova, FCSH, 1995. – Rodrigues, Vítor Luís Gaspar, A administração do Concelho de Ponta Delgada na década de 1639-1649, Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983; – Rosa, Alberto de Sousa Amorim, Anais do Município de Tomar, Tomar, 1969 e 1971. – Rosa, José António Pinheiro e, Faro no século XVII: a «urbe» e a «civitas», Faro, s.n., 1980 (Sep.»anais do Município de Faro). – Sá, Isabel dos Guimarães, A assistência aos expostos no Porto. Aspectos institucionais (1519-1838), Porto, FLUP, 1987 (Dissertação de Mestrado). – Santos, João Marinho dos, Os Açores nos séculos XV e XVI, 2 vol.s,, Ponta Delgada, Secretaria Regional de Educação e Cultura,1989. – Silva, Armando Carneiro da, Sisa de 1567, Coimbra, Câmara Municipal, 1970. – Silva, Armando Carneiro da, Sisa de 1599, Coimbra, Câmara Municipal, 1973. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino da Terra de Paiva – uma preciosidade patrimonial in «Poligrafia», nº 3, Arouca, 1994. – Silva, Francisco Ribeiro da, A Alfabetização no Antigo Regime (1580-1650). O caso do Porto e da sua região– tese complementar de doutoramento in «Revista da Faculdade de Letras. História», II série, vol. III, Porto, 1986, pp. 101-163. – Silva, Francisco Ribeiro da, A cidade do Porto e a Restauração in «Revista da Faculdade de Letras– História», II série, vol. XI. Porto, 1994 – Silva, Francisco Ribeiro da, A estrutura administrativa do Condado da Feira no século XVII in «Revista de Ciências Históricas», n.º 4, Porto, 1989. – Silva, Francisco Ribeiro da, A intervenção do Povo no governo municipal do Porto durante o Antigo Regime in «O Tripeiro», 7.ª série, ano XI/ n.º 2, Porto, 1992. HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 35 – Silva, Francisco Ribeiro da, A Misericórdia do Porto na Centúria de Quinhentos in A Santa Casa da Misericórdia do Porto e o Voluntariado em Saúde, Porto, Santa Casa da Misericórdia, 2002, pp. 29-42. – Silva, Francisco Ribeiro da, A participação do Porto nas Cortes de Lisboa de 1619 in «Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto», 2.ª série, vol. I, Porto, 1983. – Silva, Francisco Ribeiro da, As Cortes seiscentistas e o seu significado nas relações entre os Concelhos e o Poder central in Anais – I Colóquio de Estudos Históricos Brasil e Portugal, Belo Horizonte, 1994. – Silva, Francisco Ribeiro da, As Elites portuenses no século XVII, Porto, Universidade Moderna, 2001, 23 pp. (n.º 1 da Colecção Registos da História). – Silva, Francisco Ribeiro da, Autonomia Municipal e centralização do Poder no período da união ibérica in «Revista da Faculdade de Letras. História», 2.ª série, vol. IV, Porto, 1987. – Silva, Francisco Ribeiro da, Historiografia Municipal Portuguesa in O Município Português na História na Cultura e no Desenvolvimento Regional, Actas, Braga, Universidade do Minho,1999, pp. 57-70. – Silva, Francisco Ribeiro da, Les «cidadãos» de Porto au XVII. ème siècle: caractérisation sociale et voies d` accès in Hidalgos y Hidalguía dans l’Espagne des XVIe -XVIIIe siècles, Paris, CNRS, 1989. – Silva, Francisco Ribeiro da, Mecanismos do poder e articulações institucionais entre Centro e Periferia no Portugal dos fins do Antigo Regime in Articulation des Territoires dans la Péninsule Ibérique (textes éunis et presentés par François Guichard, Bordeaux, Maison des Pays Ibériques, 2001, pp. 181-192 (IV.es Journées d’Études Nord du Portugal – Aquitaine (CENPA), Talence, 19-21 de Novembro de 1998). – Silva, Francisco Ribeiro da, Níveis de Alfabetização dos Oficiais Administrativos e Judiciais do Concelho de Refojos de Riba d´Ave e da Maia na primeira metade do século XVII in Actas do Colóquio de História Local e Regional, Santo Tirso, 1981. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Concelho de Gaia na primeira metade do século XVII: instituições e níveis de alfabetização dos funcionários in «Gaya», vol. II, Vila Nova de Gaia, 1984. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral de Cambra e a Reforma manuelina dos forais in «Revista da Faculdade de Letras. História», II série, vol. VI, Porto, 1989. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino da Feira e Terra de Santa Maria in «Revista de História», vol. XI, Porto, CHUP, 1991. 36 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino da Terra e Concelho de Gouveia: um exemplo insólito de contratação colectiva entre enfiteutas e senhorio in Amarante – Congresso Histórico 98», Amarante, Actas, vol. IV, Amarante, 2001, pp. 125-138. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino de Felgueiras: um marco histórico da identidade da Terra e das Gentes in «Felgueiras-Cidade», Felgueiras, ano 2, n.º 6, Dezembro 1994. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Porto e as Cortes do século XVII ou os Concelhos e o Poder Central em tempos de Absolutismo in «Revista da Faculdade de Letras. História», II série, vol. X, Porto, 1993. – Silva, Francisco Ribeiro da, O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens, as Instituições e o Poder, 2 vols., Porto, Arquivo Histórico, 1988. – Silva, Francisco Ribeiro da, Os Concelhos e as Cortes seiscentistas portuguesas: representação e intervenção dos Concelhos (O caso do Porto), in O Município no Mundo Português. Seminário Internacional, Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, pp. 63-77. – Silva, Francisco Ribeiro da, “Paços de Ferreira na época moderna”, in Paços de Ferreira – Estudos Monográficos, 2 vols., Paços de Ferreira, 1986. – Silva, Francisco Ribeiro da, Senhorio e municipalismo em Braga ao tempo de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, in IX Centenário da dedicação da Sé de Braga. Congresso Internacional. Actas, vol. II/2, Braga, 1990. – Silva, Francisco Ribeiro da, Tempos Modernos, in História do Porto, dir. de Luís A. de Oliveira Ramos, 3.ª ediç., Porto, Porto Editora, 2000. – Silva, Francisco Ribeiro da, Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em Portugal no século XVII. Alguns aspectos, in « Revista de História», vol. VIII, Porto, 1988. – Silva, Francisco Ribeiro da, Vila do Conde no contexto das reformas administrativas de D. Manuel I, in A igreja nova que hora mamdamos fazer…» 500 anos da Igreja Matriz de Vila do Conde, Vila do Conde, Câmara Municipal, 2002, pp. 40- 59. – Silva, Maria Amélia Polónia da, Vila do Conde no século XVI: reflexões sobre alguns índices de desenvolvimento urbano, Vila do Conde, 1994 (Sep. de »Boletim Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde). – Silveira, Luís Espinha da, (Coord.), Poder central, poder regional, poder local. Uma perspectiva histórica, Lisboa, Edições Cosmos, 1997. – Soares, Edite Rute dos Santos Bentos, O Concelho portuense em 1551, Porto, 2001 (Faculdade de Letras do Porto – policopiado). HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII) 37 – Soares, Fraquelim Neiva, «A freguesia de Sant’Iago da Sé na visitação capitular de 1562», in Bracara Augusta, Braga, vol. XL, 1990. – Soares, José Guerra Soares, O Barreiro e a expansão portuguesa: imagens do concelho dos séculos XV a XVII, Coord. de, Barreiro, Câmara Municipal, 1992. – Soares, Sérgio da Cunha, «A Câmara de Coimbra e a Universidade nos séculos XVII e XVIII», in O Município Português na História na Cultura e no desenvolvimento Regional, Braga, Universidade do Minho, 1998, pp. 117-138. – Soares, Sérgio da Cunha, «Os Vereadores da Universidade na Câmara de Coimbra (1640-1777)» in Revista Portuguesa de História, Coimbra, tomo XXVI, 1991. – Vale, Alexandre de Lucena e, Um século de administração municipal. Viseu. 1605-1692, Viseu, 1955. – Veríssimo, Nelson, «Poder municipal e vida quotidiana: Machico no século XVII», in O Município no Mundo Português, Seminário Internacional, Funchal, CEHA, 1998, pp. 291-299. – Veríssimo, Nelson, Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 2000. – Vieira, Alberto, A dinâmica municipal no Atlântico Insular (Madeira, Açores, Canárias) séculos XV a XVII, Lisboa, História e Crítica, 1988 (Sep. de Arqueologia do Estado). – Vieira, Alberto, «As Posturas Municipais da Madeira e Açores dos séculos XV a XVII», in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. XLVIII-XLXIX, Angra do Heroismo,1993-1994. – Vieira, Alberto e Rodrigues, Víctor, «Ponta do Sol. Um século de vida municipal (1594-1700)», in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1003, pp. 265-280. Administração local e municipal portuguesa do século XVIII às reformas liberais (Alguns tópicos da sua Historiografia e nova História) JOSÉ VIRIATO CAPELA (Universidade do Minho – Dept. de História/Instituto de Ciências Sociais) 1. A Historiografia da administração local. Breve perspectiva histórica 1.1. O município como objecto por excelência dos estudos de História da Administração local A História Municipal e através dela a História da Administração Municipal é, sem dúvida, um dos ramos da Historiografia Portuguesa que mais se desenvolveu nos tempos mais recentes. Concentrou-se sobretudo na História Municipal da 2.ª metade do século XVIII em diante, Pombalismo, Pós-Pombalismo, crise do Estado de Antigo Regime. Desenvolveu-se em forte articulação com a problemática da construção e reforço do Estado Moderno ou da sua crise e da Sociedade de Antigo Regime, para que aliás veio dar contributos essenciais pelo novo prisma de abordagem da questão, e ao qual se apresenta aliás no plano das realizações como instrumento, de reforma ou mesmo alternativa. A abordagem da questão municipal está já largamente presente nos textos dos reformistas e ilustrados do século XVIII e seus finais, ainda que a partir de um discurso mais político do que histórico. É em geral um discurso muito crítico ao papel e lugar que o Município tem no bloqueamento aos desenvolvimentos e reformas necessárias da Sociedade, Administração Pública e Economia Portuguesa. Alguns tem mesmo sobre ele posições radicais ao ponto de afastar o Município do rol das instituições que propõem para a nova ordenação da nossa administração pública e territorial. Esta posição inviabilizaria, na prática, fraco desenvolvimento da investigação histórica sobre o município português, porque não estava em causa a sua legitimação e continuidade histórica. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 39-58. 40 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS É verdadeiramente o século XIX – em particular da sua 1ª metade – que verá florescer a História do Município e emergir mesmo o ideário Municipalista. Com A. Herculano, e em grande medida como reacção aos excessos da Centralização promovida pela dinâmica das novas instituições liberais – a Divisão dos Poderes e o Código de 1842 – é a solução do municipalismo que se apresenta como alternativa global que emergirá em grande força no mito historiográfico do município medieval. Mas será com Félix Nogueira, H. Lopes de Mendonça, Rodrigues Sampaio quando o municipio se inserir mais realisticamente no jogo e na acção político-social dos equilíbrios e harmonias necessárias entre a centralização e a descentralização, que a História do Município fará novos avanços, ultrapassando de vez o «enclausuramento» romântico medieval e fixando mais desenvolvidamente a sua acção e adaptação dos Tempos Modernos, do Centralismo e Absolutismo Monárquico. Deste modo, se são esparsos os estudos históricos sobre o municipalismo dos Tempos Modernos em Herculano – que o Absolutismo segundo ele matara – com H. Félix Nogueira e seus continuadores emergirão finalmente com grande desenvolvimento, os estudos do Município português em tempos da Monarquia Absoluta, que depois se continuarão. Com significativo espaço na obra de políticos, economistas, ensaístas e sobretudo de administrativistas, não tem porém lugar autónomo nas Histórias de Portugal de Oitocentos. A Reforma descentralizadora de Rodrigues Sampaio (1875-1890) promoverá sem dúvida um dos mais profundos desenvolvimentos das coordenadas da vida municipal portuguesa e também da História do Municipalismo. O ideário republicano, socialista, consubstanciado por H. F. Nogueira no seu Município Novo teria por então uma das suas primeiras grandes aplicações – interrompida com a crise financeira de 1890 – e que a República intentará de novo retomar, repondo o Código descentralizador de R. Sampaio. Intenta-se então também a elaboração de monografias sobre os concelhos e os municípios e obras de conjunto sobre a temática. A República (1910-1926), manter-se-á nas peugadas doutrinárias legadas pelos ideários de Oitocentos, fazendo também seu o programa da descentralização e municipalização da administração e território. Neste último ponto sem grande sucesso, quer no plano prático quer até no historiográfico. Nas origens do Estado Novo, o ideário corporativo anti-liberal e antidemocrático, haveria de trazer um novo fôlego e novos horizontes às investigações sobre o Município pela intensa reflexão histórica sobre as origens e natureza da instituição municipal – designadamente a sua anterioridade ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 41 ou filiação no Estado Português – em correlação com a fundamentação das raízes e natureza corporativa da Sociedade e do Estado, envolvendo-se no estudo histórico das corporações de ofícios medievais e também da “corporação” municipal. Mas muitos deles alargar-se-iam também ao estudo das corporações dos ofícios nos Tempos Modernos e em relação com eles também dos concelhos e até ao fim do Antigo Regime do trabalho mesteiral e oficinal. Este é um período de grandes evocações de História Municipal, com particular incidência no campo doutrinário mais do que no campo historiográfico. Deste resultará em particular o enorme trabalho de estudo e publicação das fontes e fundos da produção administrativa camarária. Pela 1.ª vez, de um modo sistemático, a História do Município Moderno é estudada a partir das suas próprias fontes, o que faz desenvolver particularmente os estudos posteriores ao século XV, quando se localizam os fundos mais completos e desenvolvidos da vida municipal. E pela descoberta e exploração destes fundos, revelar-se-ia com muito mais pormenor a vida de outras instituições locais muito articuladas aos Municípios e que aí deixaram muitas marcas e registos nos fundos arquivisticos. Esta ideologia de base corporativa não deixaria ainda de se fazer sentir nos estudos de História municipal que se desenvolveram entre nós, pelos anos 30 e 40 do século XX em correlação com os programas de desenvolvimento regional que pretende suportar e fazer assentar no município (e outras instituições históricas) programa desenvolvimentista a que então se prendem as elites locais portuguesas municipais e distritais para tirar a Província do seu letargo e abatimento e por eles regenerar o país. Tais programas tiveram eco nas discussões à volta do Código Administrativo de 1936 do Estado Novo, tendo vingado a solução centralizadora do Regime contra as alternativas mais descentralizadoras de municipalistas e autarcas. Na prática esse é também um período de grande discussão sobre a administração local autárquica no tocante a matérias que se referem a: problemáticas da centralização/descentralização, o sistema e os problemas da administração local em si e em correlação com a descentralização e a intervenção e coordenação dos serviços técnicos e administrativos do Estado, o desenvolvimento dos serviços municipalizados. Tal estará na origem de um novo reforço da análise da História e evolução histórica do Município, com um alargamento das temáticas que as novas questões a resolver exigiam. (Problemas de Administração Local – Centro de Estudos Político-Sociais. Lisboa, 1957). A Historiografia municipal para os Tempos Modernos sofrerá no pós 25 de Abril de 1974 um extraordinário desenvolvimento. Ela está certamente em relação com a emergência da figura do poder local no nosso 42 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS ordenamento político-administrativo revolucionário – que rompe com o conceito vindo do Estado Novo da administração local autárquica – e também com o seu particular desenvolvimento assente na mobilização social e política de que foi alvo, permitida e sustentada pelos 3 novos pilares constitutivos do seu desenvolvimento: a lei da autonomia, das finanças locais, da separação dos sectores. Tal desenvolvimento continua as linhas de rumo tradicionais da historiografia municipal portuguesa, a que genericamente se vem apelidando de estadualista que privilegia o estudo do município nas suas relações e mútuas adaptações ao Estado; e agora, com mais força e vigor, a que lhe contrapõe o modelo corporativo, próprio à organização da Sociedade de Antigo Regime. Para a renovação da historiografia municipal concorreram poderosamente novos domínios de investigação historiográfica que lhe foram aplicados: a História Económica, com desenvolvimentos particularmente notórios na História económica da administração municipal, na História financeira e da contabilidade municipal, mercados e formação de preços, no funcionamento das almotaçarias, mas também do papel das posturas e regimentos locais no desenvolvimento e enquadramento económico mais geral. Mais decisivos ainda foram os desenvolvimentos da História Institucional, que iniciando-se pelo estudo da História Social da Administração Municipal – com contributos decisivos para a configuração social dos diferentes orgãos municipais – receberia contributos fundamentais do novo campo da História Social, das Elites e também à História da Mobilidade Social e dos Sistemas Eleitorais. A matriz e a base de História económica e social com que se renovou a historiografia municipal mais recente, essa entronca já na referida renovação do papel do município como autarquia local na administração pública e territorial portuguesa das décadas de 50 e 60, mas também, em correlação com ela, os novos horizontes da Historiografia económica europeia do Pós-Guerra e da História Económica e Social dos Annales. Desta etapa histórica sai particularmente beneficiado o estudo histórico do município português na Época Moderna, o Metropolitano e logo também o Ultramarino, com importantes estudos monográficos dirigidos aos grandes municípios portugueses nos seus quadros institucionais, mas também nos seus territórios e até «regiões». Nestes estudos, certamente também pelo seu marcado cunho institucional, sai particularmente beneficiada a perspectiva estadualista, que estuda os mecanismos do reforço dos elementos da articulação económica e financeira dos municípios à Coroa e Fazenda Pública, os mecanismos sociais no ordenamento social local e sua articulação com a Sociedade de Corte e nos elementos e agentes de articulação política pelo estudo do papel e acção dos magistrados régios para o governo da periferia, que ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 43 prestam atenção para além da acção dos juízes de fora, também a dos corregedores, provedores e as novas «instituições políticas» do Estado Moderno, do Absolutismo e do Despotismo. Menos consequências teve a nosso ver, para a História municipal deste período, a perspectiva da Historiografia e do paradigma Corporativo, a mais antiga (do Estado Novo) e a mais recente. Se em geral forneceu novos enquadramentos e fixou outras coordenadas de abordagem e de percepção da chamada «estadualização» ou «politização» da Sociedade, e contribui para ajudar a definir um outro e novo modelo municipal, não contribui tão decisivamente como parece dever ser o seu papel, para a abordagem social da História e vida do Município, designadamente para o estudo daquelas perspectivas que tão descuradas tem sido pela Historiografia Política e Institucional Municipal, a saber, a História da Administração, vista e vivida pelo lado dos administrados. História e perspectiva esta que já R. Mousnier nos estudos integrados em La Plume, les Faucille et le Marteau (Paris, P. U. F, 1970) aconselha a fazer adentro do quadro analítico conhecido que é o da construção do Estado Moderno e seus limites e constrangimentos, sobretudo sociais. E que Jorge Borges de Macedo aconselhou e seguiu no artigo “Absolutismo” do Dicionário de História de Portugal (dir. de Joel Serrão, 1971) mas sem grandes consequências futuras. Perspectiva e abordagem sem as quais nunca formaremos uma visão completa da História Municipal e muito menos da emergência das suas Reformas, designadamente a territorial, a eleitoral e da nova configuração dos poderes, para cuja abordagem se tem recorrido sobretudo e quasi em exclusivo à perspectiva da História do Estado e da Administração, que é unilateral e insuficiente. 1.2. Para além dos Municípios. A História e historiografia da paróquia O estudo histórico da administração territorial portuguesa tem sido configurado e reduzido à História Municipal, naturalmente pela força e dimensão que a instituição municipal mas também o ideário municipal ganhou na Sociedade e Cultura Portuguesa, ao longo dos tempos. Mas, apesar disso, não se pode perder de vista, no plano institucional e das realizações, o estudo dos outros domínios da administração do território, a saber, os campos, os poderes e as instituições para a administração régia, a senhorial, a vincular e sobretudo a paroquial e a eclesiástica, neles incluindo também os outros campos do exercício dos poderes sociais mais informais ou sem base territorial, designadamente o das comunidades confraternais, profissionais ou religiosas, dos baldios, dos usos e costumes comunitários. Mas também no plano dos ideários, o das correntes anti- 44 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS -municipalistas ou o dos críticos de soluções político-administrativas assentes na exclusiva solução municipal, a propor soluções alternativas ao município e a desenvolver ou propor outras soluções político-institucionais. Com efeito a particular concentração e desenvolvimento da Historiografia dirigida ao estudo do Município face às outras instituições locais tem feito passar a ideia de que o Município e o seu território de jurisdição são as instituições exclusivas ou por excelência da administração local portuguesa neste século XVIII e finais do Antigo Regime, e assim o foram sempre na História local portuguesa e o devem continuar a ser para o futuro. Ou a crer definitivamente que a solução municipal é originária e matricial à nossa constituição político-social ou uma dádiva divina e portanto perenes e inquestionáveis e por eles a subalternizar as doutrinas e os ideários político-administrativos que não priviligiam ou não entram em linha de conta com a instituição e solução municipal. E nesse sentido os estudos demasiado configurados nas fontes e administração municipal e no estudo de casos onde a dimensão institucional, o papel político e administrativo da acção municipal ganharam particular vitalidade e envolvimento e apagaram, reduziram ou subalternizaram mais fortemente o papel e a acção das outras instituições, induziram e configuraram mesmo tal opinião. Para o que concorrerá também, por outro lado, o estatuto e a força da argumentação do ideário e propaganda municipalista dos seus grandes e importantes doutrinadores e ideólogos que não deixaram de reduzir a força e o plano de actuação de outras correntes e doutrinas. Porém a realidade é mais variada e complexa, como se comprova pelo papel desempenhado pelas outras instituições que no território do município exercem a sua actividade, delimitando bem os espaços de actuação e concorrenciando-o inclusive. Como se comprova também pelos testemunhos recolhidos junto das populações paroquiais designadamente nas Memórias Paroquiais do século XVIII (1758) onde a presença e domínio da instituição municipal aparece aí descrita de um modo ténue e esparsa, contestada, alheia ou mesmo estranha e desconhecida. E naturalmente também por uma atenção mais cuidada à força e continuidade da doutrina e argumentação das soluções que não as municipais e municipalistas, designadamente com a acentuação no reforço da paróquia ou freguesia, ou crítica dos abusos e excessos da concentração municipalista da doutrinação e programa descentralizador ou regionalizador. Só uma visão e acercamento mais amplo destas realidades dos poderes, das suas legitimações incluindo a historiográfica e dos seus assentimentos, é que nos permitirá avaliar a importância e predominância relativa das instituições que disputam o exercício dos campos do poder local. Tal reflexão é possível e ainda mais necessária no período de forte emergência do poder e ordem municipal, que em geral, sob a ordem e a ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 45 batuta do alargamento do Poder Real Absolutista e do Despotismo Esclarecido no século XVIII, e utilizando em particular os maiores municípios portugueses, vem nesta etapa conquistando e alargando os seus poderes no território, circunscrevendo e limitando os outros poderes e jurisdições. Tal realizou-se, naturalmente, com profundas consequências para a instituição municipal que nos aparece no final desenvolvimento deste processo histórico – de profunda articulação e modelação com a ordem régia e os objectivos régios para o governo do território – com substancial limitação dos seus poderes “autónomos” e fortemente configurada ao exercício das tarefas que a Monarquia lhe impõe e distribui para o governo do território. Que prefiguram nos casos mais desenvolvidos, a mais completa tutela e configuração político-administrativa que o Liberalismo lhe dará no quadro do novo Centralismo burocrático e da nova Divisão dos Poderes. Ora tal desenvolvimento não apaga a outra realidade institucional que ela mantém, segrega até, e em grande medida “desautorará” politicamente. Com efeito subsiste ainda, em certa escala para largos espaços do território nacional, a outra realidade municipal à margem destes desenvolvimentos: municípios que pela sua reduzida dimensão, desenvolvimento orgânico e funcional, posição no território permanecerão no todo ou em parte ainda arredados destes mecanismos de Centralização e desenvolvimento institucional uniformizador induzido pelos progressos da Monarquia e do Estado, nalguns casos autênticas ilhas no mar de um profundo localismo e isolamento político e social. E não apaga também, antes pelo contrário, reforça a crítica político-social e também doutrinária, vinda dos sectores contestatários a esta estadualização municipal, mas também a esta “miniaturização” e irrelevância de municípios rurais, sobretudo quando ela é feita em proveito dos estratos que suportam o Estado fidalgo e aristocrático que se contesta ou são incapazes de suportar qualquer projecto de desenvolvimento. É este o caso das críticas da Ilustração a este Municipalismo Histórico. Que é uma crítica violentíssima ao seu pequeno papel para o desenvolvimento dos povos e do território, máquinas e estruturas do poder ao serviço das velhas aristocracias e fidalguias, no fim de contas da Sociedade e Estado com que as gentes das Luzes pretendem romper por finais do século XVIII. Ora, é este ideário das Luzes, em grande parte fortemente crítico do poder e organização municipal, umas vezes “reformista” outras vezes “abolicionista” que sem dúvida lançara as bases e os fundamentos da grande amputação e reforma concelhia de 1832-36, mas também as bases de soluções locais paroquiais e regionais que são tão pouco conhecidas. Sem este conhecimento não é possível seguir a emergência de outras soluções presentes no nosso pré-liberalismo e primeira vigência do regime liberal e suas soluções para a governação do território e seu enquadramento políti- 46 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS co-social e também a emergência do 1.º ideário municipalista do século XIX (Herculano). Com a crítica do município e seu fraco envolvimento e integração das comunidades locais emerge a vontade de valorização e afirmação política e administrativa da paróquia ou freguesia. E é deste contexto do movimento das Luzes que se reforça a ideia da paróquia civil ou freguesia que só muito mais tarde vingará. Depois no contexto da construção do ideário municipalista houve também quem pretendesse associar a freguesia ao concelho, isto é considerá-la na sua matriz histórica originária, também um concelho. A ideia é pois, em consonância com a importância política e social da paróquia, valorizar esta instância local do enquadramento dos povos. Mas não se nota qualquer movimento de legitimação historiográfica desta instituição que permitisse fazer vingar a freguesia ao lado do concelho ou município como instituição autárquica para a administração e governo civil do território. E contudo e certamente por via disso, como a historiografia mais recente tem vindo a sublinhar, este é um quadro muito activo no enquadramento e organização comunitário local. Só com Alberto Sampaio, no século XIX, a História paroquial ganhará também cidadania no panorama dos estudos locais portugueses. Na paróquia viu A. Sampaio as bases e a matriz da nossa constituição social que arranca e se articula às villae romanas. Reforçar e revigorar a vida social com base na freguesia é o caminho a seguir para regenerar a política e a sociedade portuguesa, morta pelo Centralismo liberal de que os concelhos – sobretudo os das vilas e cidades – foram também agentes e suportes. Em paralelo da historiografia civil, desenvolver-se-á também com a historiografia eclesiástica o estudo da paróquia. Também para esta historiografia, ao modo de Alberto Sampaio, está presente a valorização da paróquia religiosa na conformação e origens da sociedade portuguesa. E para o padre Miguel de Oliveira, a paróquia terá ainda um papel mais forte no enquadramento da vida das populações que os concelhos, pois que em seu entender na paróquia se unem «vínculos quasi tão estreitos como os da família» e «sob o aspecto social excede em importância as instituições municipais». O Padre Miguel de Oliveira bateu-se pela produção de monografias paroquiais, que fizessem o contraponto às monografias concelhias que por então também promovia M. Caetano, administrativista e historiador estado-novista do Município medieval. Depois, bem mais atentas ao estudo científico e positivo das comunidades de limites paroquiais estiveram por outro lado as demais Ciências Humanas, desde as suas origens no século XIX, a Sociologia, a Antropologia, a Geografia Humana. A História paroquial continuaria, no pós 25 de Abril de 1974 a ser a parente pobre da investigação historiográfica sobre o poder e administra- ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 47 ção local. Não pôde como o município beneficiar da larga tradição de investigação e doutrinação sobre a História Municipal e o Municipalismo e também – e por via disso – a freguesia continuaria a desempenhar um papel subalterno na nossa administração, agora ainda mais subalternizado dados os investimentos políticos e financeiros do 25 de Abril na administração municipal. A investigação sobre a freguesia – paróquia do Antigo Regime, apesar de escassa, continuaria a fazer-se, na senda dos estudos anteriores, na tradição dos estudos sobre a paróquia civil, na continuidade das abordagens de A. Sampaio e a sociologia histórica (entre outros) e a paróquia eclesiástica, esta em estudos mais atentos às origens e papel da ordem religiosa e eclesiástica. 2. Em busca de novas abordagens da História da Administração Local: o Município no Território 2.1. Centralização, hierarquização político-administrativa do território e propostas de novas divisões administrativas. Adaptações municipais A força dos vectores da centralização e mais ainda do paradigma da estadualização aplicado ao estudo da História Municipal Moderna tem privilegiado e acentuado sobretudo o estudo dos mecanismos da sua integração na ordem pública, por via da uniformização institucional com a aplicação do modelo e da ordem legal régia e da acção corregedora e integradora dos magistrados régios à periferia. É uma análise e uma perspectiva que sai reforçada, também, pelo facto de se ter estudado particularmente a evolução política e institucional dos maiores municípios, urbanos ou de vilas de maior dimensão, mais desenvolvidos organicamente e onde sedeiam os principais organismos e magistrados da Coroa para a administração e governo do território, isto é, da comarca, da provedoria, da Província. E que para além de estudos individuais destes casos, tem também por via deles, concentrado os estudos nas manchas do território mais percorridos e articulados pelo processo centralizador, seja ele marcado pela construção da rede político-administrativa (Judicial, Militar, da Fazenda), pela rede social de articulação à Sociedade de Corte, ou pelos suportes político-económicos da construção do Estado Nacional Mercantilista. A abordagem e o estudo dos casos dos pequenos municípios rurais, de juízes ordinários, integrantes de vastas áreas à margem ou só marginalmente integradas no “território” do domínio régio ou em zonas de forte domínio ou concorrência do domínio senhorial, de áreas menos importantes ou contribuintes para a construção do Estado Moderno, certamente contribuiria para conferir ao município uma realidade bastante dife- 48 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS rente, com desfasamentos significativos relativamente ao novo modelo e paradigma do “município régio”. Por isso é necessário estudar o município no seu território, situá-lo nos “círculos” diferenciados da sua situação e centrifugação política e também no dos diferentes níveis do desenvolvimento social e institucional. O estudo do Município no território permitirá fugir ao espartilho da explicação monista da modelação institucional realizada tão só do topo para a base, resultado de um Absolutismo e Centralismo como factor exógeno às instituições e territórios neles envolvidos, mas seguir as dinâmicas próprias induzidas e até construídas pelo Território e pela Sociedade que naturalmente são em última instância os agentes e suportes destas realizações e nova construção política e ordenamento territorial. O percurso deste outro caminho, que tem de passar por um maior esforço de caracterização do município, para além da conformação institucional – por regra tão só orgânico-oficial – permitirá seguir os termos da sua configuração com o Território, a Sociedade onde se insere. E não só a do quadro e termo municipal – que tem sido tentada – mas também e muitas vezes sobretudo, a do quadro mais vasto, «regional» ou provincial. Tal obriga necessariamente romper com um outro lugar comum que se fixou mais recentemente na historiografia municipal, o conceito de que o Município Moderno é a-regional e mesmo anti-regional. Tal conceito, decorrente do paradigma estadualista e do município dominador do seu território, teve como consequência esquecer ou secundarizar as dinâmicas estruturais de carácter geográfico-político que sobre ele se exercem e que o continuam a modelar profundamente. O município fortemente arreigado e enraizado no seu território, sofre as vicissitudes que o próprio território vai sofrendo nas suas dinâmicas de aproximação ou afastamento político aos marcos territoriais e políticos mais activos e dinâmicos da construção do Estado, neles se exprimindo de forma diferenciada as dinâmicas desta modelação mais geral. Se se pretende, com efeito, uma apreciação mais ajustada dos níveis e patamares de modelação e integração do Município ao Estado e Ordem Pública Nacional é necessário seguir-lhe, em primeiro lugar, os passos da sua modelação regional – comarcã e provincial. A comarca volver-se-á, de facto, progressivamente, o quadro por excelência da ordenação política do território, a quem desde 1790 se pretende conferir maior desenvolvimento e racionalidade administrativa para nela reorganizar o quadro da divisão e administração concelhia. Muito mais do que a partir dos concelhos é a partir do quadro comarcão que o Estado e o governo comarcão quer olhar e governar o território. O governo monárquico do século XVIII, decisivamente com Pombal e os governantes de D. Maria desde 1790-92 ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 49 – adentro do mesmo espírito anterior – reforçam o papel dos corregedores e outros magistrados régios e com eles o quadro de unificação e racionalidade comarcã. O concelho cabeça da comarca virá por isso a ser o pivot e ponto de partida e referência do novo referencial “autárquico” e regional. O corregedor do século XVIII promoverá num constante deambular pela comarca, a uniformização e a unificação legal e administrativa do território da sua comarca. Os problemas e petições concelhias serão conduzidos ao Rei e seus Tribunais superiores pela voz do corregedor. Há muito que ele substituíra os braços dos concelhos... as vozes dissonantes dos concelhos e dos seus diferentes membros nas Cortes... O município e desde logo o município cabeça de comarca, volver-se-á neste contexto, e em particular nesta etapa decisiva no reforço do Centralismo e Absolutismo e logo do Reformismo pré-liberal, o principal suporte da nova organização do território que promoverá, como é sabido, uma forte articulação e hierarquia do território, incluindo na sua base espacial. No período pombalino este processo seguirá sobretudo na senda de reformas políticas, de reforço e alargamento do poder e hierarquia de concelhos estrategicamente posicionados no território, e organização político-estadual, para proceder ao reforço do poder em mais vastos territórios “regionais” e articulá-los por seu intermédio mais fortemente ao Estado. Tal passa naturalmente por reforço sobretudo do papel dos municípios maiores onde a administração periférica do “Estado” está já mais desenvolvida, não tendo tocado nas bases e divisão territorial. Sobre as políticas é fundamental salientar algumas reformas pombalinas que embora não dirigidas directamente ao Município, nele acabaram de produzir efeitos fundamentais, que promovendo a forte hierarquização política nacional das instituições e por ela a sua mais forte integração institucional e territorial, nela envolveriam fortemente o Município, suporte de muitas delas. Entre essas reformas é de referir as da Justiça – com a afirmação do Direito e Lei Régia sobre os demais direitos a extinguir os donatários nas ilhas – a promover a mais forte integração dos concelhos de juízes ordinários nos de juízes de fora e de um modo geral a afirmar a supremacia e a tutela dos concelhos régios sobre os concelhos e coutos senhoriais, em especial os eclesiásticos; a Reforma da Fazenda, das Alfândegas, das Superintendências fiscais (das Sisas e Décimas) a produzir movimentos do mesmo sentido de centralização (regional), racionalização e uniformização institucional. E a constituição de largos Privilégios em grandes municípios de centros urbanos que lhe concederam forte relevância e tutela regional sobre os outros territórios e municípios. É o caso dos concedidos à cidade do Porto, com a criação da Companhia de Vinhas do Alto Douro neste caso de alcance Provincial que lhe concedeu os suportes do largo domínio regional às 3 Províncias do Norte de Portugal, na continuidade aliás da criação do 50 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Tribunal da Relação ao tempo dos Filipes e que agora se manifestará particularmente activo a conduzir a si todos os processos de apelação e agravo de todos os Tribunais e em particular dos eclesiásticos (vg da Relação Eclesiástica de Braga). Mas como não avocar aqui também o papel da Companhia das Lezírias para o Ribatejo (entre outras) e até a entrega do monopólio do Ensino Público à Universidade de Coimbra com a expulsão dos Jesuítas que faz conduzir para a cidade do Mondego os professores e estudantes e faz a Universidade e a cidade beneficiária de contribuições públicas gerais assentes nas Superintendências das Sisas do Reino com que pagam professores, cadeiras, a ponte e outras obras do rio e da cidade. E até outros grandes projectos de desenvolvimento regional promovidos pelo Estado, em particular as obras nas barras dos maiores rios, a sua canalização e navegabilidade que para estas obras faz contribuir os concelhos e terras limítrofes, mas de que os principais e grandes beneficiários são os portos ou os cofres das vilas ou cidades da respectiva embocadura, seus concelhos, munícipes e oficiais, ainda que os projectos e programas fossem definidos numa escala “regional” neste caso o das regiões hidrográficas. Avanços para um programa de nova “divisão” administrativa do território só se realizará porém nos finais do século XVIII, desencadeados com as leis de 1790/92. Pretende-se redimensionar os concelhos para os adequar ao nível das exigências e tarefas agora colocadas pelo Estado e reforçar a comarca, como instância político-administrativa mais actuante e presente em todo o território (com a extinção das Ouvidorias). Esse programa é activamente impulsionado pelos reformistas e ilustrados do século XVIII, em particular pela geração de 1790 que produz a mais acérrima crítica ao papel e acção do município e o consideram em geral factor de bloqueio social, político e económico ao desenvolvimento da Sociedade portuguesa e de uma adequada administração régia para o território. Essas críticas sustentam em grande medida o programa de reformas a que as leis de 1790/92 querem dar seguimento. Elas terão sua origem em particular na Sociedade ilustrada dos economistas em luta pela livre formação dos preços, alargamento dos mercados, liberdade da terra que permita o mais lato desenvolvimento económico; dos letrados e magistrados régios em luta pela mais larga afirmação do Direito régio e pátrio, em particular no domínio público, que limite as jurisdições e poderes do direito senhorial e eclesiástico; das elites ilustradas locais que se querem impor nas governanças locais às velhas elites nobiliárquicas e fidalgas e colocar o município ao serviço da Pública administração e do Bem Comum e Felicidade dos Povos, tirando-o dos interesses privados e particulares das velhas governanças. Da acção e directrizes dos juízes demarcantes de 1790 resultou essencialmente a proposta de um novo desenho das comarcas e dos concelhos. ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 51 Relativamente a estes procurou-se o seu redimensionamento territorial. Mas outras propostas de ilustrados pretendem também tocar no poder “absoluto” dos concelhos, propondo a constituição ao lado ou por sobre os concelhos, as Intendências (da agricultura, da polícia, entre outros), que prefiguram os futuros serviços públicos gerais, iniciando mesmo a “desautoração” do poder municipal e uma primeira separação e/ou hierarquização dos poderes que prefigurariam em muitos casos uma primeira Divisão dos Poderes do Liberalismo e do Constitucionalismo, retirando desde logo poderes judiciais aos municípios de juízes iletrados (isto desde Pombal) diminuindo ou apagando em definitivo o poder das câmaras nestas matérias. Há até propostas da nova divisão administrativa do território, como a do Ministro Rodrigo de Sousa Coutinho do círculo da Ilustração governamental que faz tábua rasa do município enquanto orgão de divisão administrativa e o apaga da sua proposta da divisão administrativa territorial do Estado, que do plano da paróquia salta para o da Província, sem plano e estrutura intermédia que sempre foi e pretendeu ser preenchida pelo município. Deste horizonte da crítica e das propostas de reformas ilustradas do século XVIII (desde Pombal e de novo activamente desde 1790/92) se configurarão o sentido e a matriz das reformas do século XIX e do Liberalismo, fortemente centralizadoras e esvasiadoras da instituição municipal, que é preciso abordar neste desenvolvimento longo. O novo concelho, inscrito numa comarca reforçada é um programa régio, é certo. Mas conta e nele se envolveram as novas forças sociais locais, articuladas com os projectos e programas reformistas do Estado e com ele em luta por novos concelhos inserido numa mais vasta região, onde se possam realizar mais intensa e extensivamente o programa do desenvolvimento económico e social e colocar as instituições ao serviço da Felicidade e Prosperidade Pública. 2.2. A força da coesão territorial e a modelação regional do município Mas para além das dinâmicas políticas e territoriais induzidas pela construção do Estado Moderno, é preciso também atentar nas condicionantes territoriais de assentamento dos municípios que os aproximam e modelam em conjunto nas suas bases sociais, económicas e até instituições e incluindo a organização do espaço, que sofrendo é certo a modelação político-institucional da construção do Estado, são em última análise o resultado da sua adaptação e envolvimento nas dinâmicas e coordenadas próprias do seu território, ainda bastante “marginal”. Hoje a produção de elevado número de estudos de História municipal para amplos espaços regionais, permite entrever e destacar essas dinâmicas e aproximações 52 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS territoriais. E se não permitem configurar um município regional – pela forte e precoce construção em Portugal do Estado Central e Mercantilista que promoveu uma acentuada uniformização política e institucional do Município Português – conferem-lhe pelo menos uma forte modelação regional que os anima e articula, produzindo por vezes até nesse quadro, um certo “esboço” de divisão municipal de certas tarefas. Tal é patente desde logo na constituição das receitas próprias com base nas quais é possível fazer distinções ou aproximações de base territorial. Deixaremos, de lado, naturalmente, a principal separação ou distinção que neste domínio, induzem os mercados na formação das rendas dos municípios que obrigam necessariamente desde logo à grande distinção nas estruturas político-administrativas e na base social das elites políticas entre municípios urbanos e municípios rurais sem núcleos ou pequenos núcleos urbanos. Para além disso, a análise comparativa da estrutura e natureza das receitas municipais, permite aproximar municípios como os do Alentejo, da Beira, e até o transmontano, onde o peso das receitas provenientes de herdades e bens próprios agrários é muito importante e por isso lhe induzem comportamentos muito próximos dos dos senhorios fundiários; e também um conjunto de municípios de vastos termos rurais que vieram a constituir importantes rendas sobre os foros dos baldios (como aconteceu um tanto por todo o lado, mas em particular no Minho), a induzir também comportamentos típicos de senhorios foreiros e donatariais. Configuração singular virão, também em assumir os municípios de áreas fronteiras a rios de grande valor económico, piscatório e transitário que vieram a constituir para as câmaras (como para outros senhorios), importantes rendas sobre barcos de passagem, moagens e pisões, pescarias e direitos sobre usos de água. Particular configuração e aproximação na sua base económica e natureza de rendas veio também a constituir o município das regiões de fronteira (terrestre e sobretudo marítima e fluvial) a realizar importantes receitas sobre as sisas mercantis (ou sobejos das sisas régias) e também rendas alfandegárias. Idêntica natureza, dimensão e origem das rendas municipais está naturalmente na origem e na base do relativo desenvolvimento e aproximação das estruturas institucionais municipais, da apetência social e das elites ao acesso e governo das câmaras e da sua integração na orgânica estadual por interesses mútuos, da governação central e das elites governantes. Que se exprime na definição de um sistema e regime municipal muito aproximado. Mas a acentuação do “tonus regional” afirma-se também nas diversificadas funções que os municípios são chamados a exercer em função da sua posição no território e corpo político da Nação. Tal é desde logo patente, numa relativa militarização dos cargos políticos das vereações dos municípios de fronteira onde por força da estadia de regimentos, praças e fortale- ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 53 zas e papel militar e defensivo das terras, a aristocracia militar local e regional estende o seu papel às câmaras e que se revigorou nos tempos de conflitos militares e guerras internacionais. E também nas diferentes modelações que toma a presença das elites locais na câmara, em função, naturalmente, do desenvolvimento político e social das terras, mas também demográfico, urbano, territorial, expressas no diferenciado recrutamento social das elites políticas tradicionais: nobreza, magistratura e Sociedade de Corte quando o município está poderosamente integrado na Coroa, exercendo um recrutamento que pode extravasar o concelho; nobreza e aristocracias locais ditas de campanário, quando o afastamento é acentuado. Ou na diferenciada presença ou concorrência aos cargos políticos do governo camarário de outros ou novos grupos que a eles pretendem ascender, as burguesias mercantis e os letrados locais, que dos seus locais próprios do governo camarário (procurador, escrivães, meirinhos, almotaçarias) pretendem ascender às vereações, como se verifica de um modo geral nos municípios de mais forte envolvimento político e conjuntural nas revoluções políticas e sociais do Estado na passagem do Absolutismo ao Despotismo e deste à Revolução e Liberalismo. Relativamente aos grandes municípios urbanos (mas não só) é ainda possível proceder a algumas aproximações, mas agora já sem especial continuidade geográfica, que tem a ver com o da presença e representação dos mesteres na câmara, cuja geografia da representação em câmaras e vicissitudes da sua aproximação ou afastamento das vereações, é necessário seguir em relação com a evolução da conjuntura política e social mais geral e a do município e sua estrutura sócio-profissional em particular. Se de um modo geral o Pombalismo poderia ser favorável à presença dos mesteres em câmara em correlação aliás com as coordenadas do alargamento da representação social e popular da Ilustração – como se verificou em Espanha com a criação e entrada da magistratura popular do síndico personero para as câmaras – a sua envolvência no Motim do Porto (1757) quebrou tais expectativas. E posteriormente o reforço e vontade do revigoramento das elites aristocráticas e fidalgas nos municípios ao longo do 3.º quartel do século XVIII ser-lhe-á totalmente desfavorável. Como seria também bem ilustrativo seguir a sua ligação às câmaras nas crises políticas e sociais do tempo das invasões francesas, do vintismo, que poder-lhe-ão ser favoráveis e permitir passagens e acessos breves às vereações ou outros orgãos de poder político municipal. Ou aos militares e sua mais forte entrada e participação nos governos municipais em tempos de guerra, ou mesmo, de um modo geral homens de Direito e letrados, por virtude da afirmação do Direito Pátrio, da Lei da Boa Razão (1769) e no consequente afastamento do direito costumeiro e das práticas orais sem proces- 54 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS so escrito, a afastar da administração camarária e da sua Justiça, os honoráveis locais, juízes iletrados. É possível seguir ainda nas diferentes configurações orgânicas-institucionais que assumem os municípios modernos, expressões dessa acentuada diferenciação regional, que adopta ainda perfis e figurinos diferenciados em relação com os níveis mais ou menos acentuados de integração política e social no Reino, que se fez de modo diverso pelos diferentes manchas do território, naturalmente em relação muito directa com diferentes serviços públicos aí instalados e seu desenvolvimento e complexidade (justiça maior, alfândegas, organização militar, ensino, saúde...) As aproximações de organização institucional fazem-se entre municípios de idêntica dignidade e hierarquia, separados desde logo, num 1.º nível, em dois grandes conjuntos, a saber, os municípios de juíz de fora, por um lado, por outro, os de juíz ordinário que são construídos em dois modelos eleitorais também distintos, o de pautas e o de pelouros. As aproximações são cada vez maiores entre os municípios de juíz de fora, ainda que à medida que se progride para os grandes municípios urbanos, cabeças de comarca – com Porto e Lisboa à parte – as diferenças se acentuem. Nos pequenos e minúsculos municípios as singularidades ainda são muitas, onde é frequente não existirem em alguns concelhos alguns ofícios ou corpos como a almotaçaria, procuradores dos concelhos, tesoureiros e às vezes mesmo vereadores. Muitas vezes os eleitos – vereadores e os juízes servem todas as tarefas, servidos muitas vezes por escrivães vindos de outros concelhos. Os seus orgãos mal se distinguem dos das paróquias/freguesias. Nestes municípios mais pequenos e inorgânicos não se verifica sequer qualquer intervenção do poder real, o que exprime de facto a sua irrelevância política. O município adapta-se aí às possibilidades e necessidades públicas e comunitárias da terra. Ainda mais forte adaptação às realidades político-sociais do território é o que se pode observar com o município insular e colonial-ultramarino, que é o testemunho da sua enorme “plasticidade”. As situações podem ser as mais dispersas: nalguns casos onde é forte o poder real (sobretudo pela Fazenda) ou o poder donatarial (sobretudo o militar) estes assumem poderes que retiram aos concelhos; o inverso também se verifica, onde os concelhos assumem totalmente os poderes régios e públicos, em regra como se verifica nos municípios metropolitanos distribuídos por outras instâncias territoriais e magistrados. ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 55 3. Em busca de novas abordagens da História Municipal da Administração Local: a administração vista pelos «administrados». A paróquia Os estudos da História Municipal, não tem com efeito estudado a História da Administração Municipal do lado dos administrados, de modo a confrontá-la com os seus críticos e sectores da população particularmente vexada com esta administração. É um estudo que deve saber explorar de novos ângulos as fontes documentais da instituição municipal, de modo a permitir seguir os campos de oposição, da resistência, da crítica aos poderes municipais, em especial naqueles domínios e esferas de actuação que mais podem afrontar as populações: no domínio do exercício e aplicação da justiça, das condenações fiscais, do lançamento dos serviços públicos e municipais forçados, do lançamento e cobrança dos impostos régios e municipais, enfim, da condução e colocação da instituição municipal ao serviço do Estado, dos camaristas, dos ricos e poderosos locais. A perspectiva dos administrados permite desde logo fixar mais claramente a conformação senhorial que adopta a generalidade dos municípios portugueses de Antigo Regime em meio urbano e sobretudo em meio rural e se exprime em particular, na expropriação dos baldios e no sistema e rateação dos impostos em especial sobre as populações rurais e seguir as resistências e oposições dos grupos e territórios mais afectados. Como permite também fixar os termos da protecção e particular privilégio que o Município promove relativamente ao território urbano – sede de concelho – suas elites políticas e sociais urbanas, do território e termos rurais. Pela sua natureza, o poder e a organização municipal, em especial nos municípios de assentamento urbano, estabelece uma absoluta separação entre o espaço urbano e o seu território rural do termo concelhio. A vila é o território das elites sociais e políticas e dos privilegiados desta ordem social e espacial municipal; o termo e as aldeias é o território dos devassos, dos colonos. A política municipal, sobretudo a fiscal, mas também a “coimeira” é aí profundamente gravosa para os termos do concelho e suas populações rurais e faz-se em proveito das vilas e sua população política. Por isso esta estrutura municipal, urbana e senhorial, estabelece um conflito estrutural básico com as populações rústicas do termo. É pois de um modo geral “violenta” a relação do poder municipal com esta população devassa dos termos concelhios. Daí decorre de um modo geral a dificuldade dos municípios levar e afirmar o seu poder e jurisdição nas aldeias. Às dificuldades decorrentes de natureza da estrutura do poder municipal – de carácter político-senhorial e fiscal – acresce o forte enquadramento e tutela da ordem religiosa sobre as paróquias, que circunscreve ainda mais as relações entre aquelas ordens políticas administrativas, a 56 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS civil dos concelhos e a religiosa nas paróquias. Esta realidade, esta organização concelhia e esta organização paroquial, criam dificuldades intransponíveis à aproximação da Coroa e Municípios régios e da administração pública às populações. A Coroa no seu afã de aproximação e controlo de todas as esferas e espaços da Sociedade intentou as reformas necessárias para colocar os concelhos ao serviço de uma ordem pública, por um lado, e por outro a criar um poder civil na paróquia que se integrasse no ordenamento político geral, ou a fazer submeter os poderes próprios da paróquia ao ordenamento geral do Reino, directamente ou indirectamente pela sua mais forte articulação e dependência dos concelhos. Com Pombal para além das reformas dos concelhos para os configurar no ordenamento régio houve um esforço para valorizar socialmente o exercício dos cargos municipais nas paróquias. Sem grande sucesso. Pouco sucesso teriam também os Zeladores de Polícia instalados pós 1790 que o Estado pretendeu estabelecer para impor a ordem pública às terras, em grande parte por sobre a estrutura municipal. É por isso necessário seguir melhor os modelos e as estruturas de aproximação das câmaras aos concelhos, em particular aos termos rurais das paróquias ou freguesias para avaliar melhor as formas de articulação entre ambos os territórios e suas instituições político-administrativas. Por outro lado é preciso atentar na organização autónoma das paróquias que no Norte, pelo menos, se arroga o direito de representar as comunidades fazendo frente ou condicionando fortemente o poder municipal ou seus representantes na paróquia. Ora a paróquia é, como se pode seguir pelas Memórias Paroquiais de 1758, um poder muito forte sobre a comunidade; o poder municipal é aí descrito muito periférico, pouco envolvente, pouco influente. É até muito desclassificado pelo papel dos seus juízes e rendeiros. Como se pode seguir pelo rol das coimas e volume e montante das coimas, o clima de resistência de aldeias às ordens camarárias e municipal é enorme. Mas também pela resistência a vir-se empossar às câmaras. Nas terras do Sul, onde a organização paroquial é menor e menos forte, surgem os “concelhinhos” e governos de freguesias com uma estrutura muito aproximada à dos concelhos – a que tão só faltam às vezes os vereadores – e se avençam e contratam com os seus municípios para fugir aos excessos e violências dos maiores municípios. Contratos de moradores dos termos com os municípios – para fugir à violência dos impostos, das fintas, das prestações de serviços, dos aforamentos e partilha indiscriminada dos baldios – são muito frequentes por todo o território. Eles são também a expressão do carácter opressivo desta organização, sem qualquer significado para os povos. Com efeito apesar dos esforços, poucos avanços se produziram na aproximação das paróquias e comunidades inscritas no aro concelhio aos con- ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS 57 celhos e às câmaras. O termo do concelho dificilmente constitui com os moradores de sede e vila uma comunidade de vizinhos. O concelho está fortemente dividido entre a comunidade dos eleitos e dos privilegiados, da vila, contra a dos moradores devassos das paróquias do termo rural concelhio. O poder real, em especial desde meados do século XVIII, com Pombal intentará ir o mais longe possível neste afã de controlar e integrar todo o território, ao pretender instalar-se no seio da comunidade paroquial, aí onde o próprio poder municipal, mais próximo mal entrara. Aqui porém as dificuldades foram maiores. Com efeito a comunidade paroquial vinha de uma longa evolução de reforço dos seus suportes demográficos, económicos, sociais e sobretudo administrativos, e religiosos, alicerçados na construção de equipamentos religiosos e sobretudo de uma muito viva e activa organização sócio-religiosa à volta da constituição de importantes confrarias ou irmandades para o governo material e espiritual da igreja, da paróquia e dos paroquianos e na fixação de uma tutela e vigilância muito activa das autoridades diocesanas sobre a comunidade paroquial e de fiéis. Por meados do século XVIII, a comunidade paroquial atinge o pleno do seu reforço, expresso designadamente na construção e embelezamento das suas igrejas e da animação da vida paroquial à volta da missa conventual, com a instalação dos sacrários e sobretudo da constituição em regra, de 3 importantes confrarias que congregarão os esforços e os sentimentos religiosos da comunidade a saber, a das Almas, do Subsino e do Rosário. Para além da confraria do Subsino ou do Nome de Deus, que governam toda a paróquia no civil e eclesiástico. A paróquia é assim um quadro de extraordinária vitalidade, afirmação e autonomia, relativamente à qual os outros poderes e jurisdições tem uma acção totalmente periférica. O assalto à fortaleza de paróquia é realmente uma das tarefas a que a Monarquia e a Administração civil se envolverá activamente ao longo da etapa histórica. O Regalismo é sem dúvida o enquadramento privilegiado para tal submissão da ordem religiosa à civil na prossecução dos objectivos da Monarquia Cristianíssima. Mas a articulação social e política das comunidades à régia administração e poder municipal é uma tarefa localmente encomendada às câmaras. No Pombalismo fizeram-se avanços neste domínio, como se fizeram no neo-pombalismo (pós 1790-92) sob o signo do regalismo e do alargamento do direito régio, altura em que os juízes das paróquias, sejam eles do subsino ou de vintena, se articulam mais poderosamente com o poder camarário e de algum modo se dignificam as suas tarefas. Mas tal foi sempre a excepção. Em regra as paróquias e seus oficiais mantém relativamente às câmaras uma atitude de hostilidade, indiferença, porque efectivamente não há continuidade de interesses entre esta ordem municipal tradicionalmente construída ao serviço das governanças, das elites e do 58 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS marco urbano que se constrói e reforça com base no domínio sobre as populações rurais dos termos. Momentos críticos houve, nesta etapa, em que se revoltariam mesmo em conjunto contra a prepotência dos senhores das câmaras e das vilas. Aumentam, com efeito, ao longo do século XVIII as razões de queixa das populações paroquiais contra as câmaras, particularmente vexadas com o processo de aforamento dos baldios – particularmente activo pós 1790 – do agravamento fiscal sobre a população não privilegiada dos termos, dos excessos dos rendeiros e coimeiros municipais, da violência do recurso aos serviços a prestar nas obras e arranjos das vilas, suas ruas, calçadas, praças e equipamentos. Múltiplos são os testemunhos por onde se podem seguir estas “violências” e “vexações” da administração municipal. A leitura atenta dos registos camarários permite entrevê-los; o estudo quantitativo e diferenciado dos actos e decisões das vereações, dos juízes gerais, das coimas e condenações de câmaras, almotaçarias, vintenas permite quantificá-las, seguir a sua evolução temporal e distribuição geográfica. Os aforamentos e os aforantes, as tabelas de preços, os regimes das terças, a distribuição da renda municipal, com salários, propinas e emolumentos e demais gastos festivos e propagandísticos, os regulamentos e posturas e outros ordenamentos e deliberações permitem claramente seguir os destinatários e os beneficiários desta administração, governo e ordem municipal que a constituição social dos orgãos de governo – câmaras, almotaçarias, juízos fiscais, rendeiros – apresenta em toda a sua nudez nos verdadeiros beneficiários, utentes e destinatários desta instituição. E há também uma importante literatura que é particularmente rica de informações sobre esta matéria e onde é possível seguir, em particular, a crítica política à instituição. E em particular a literatura Memorialística vinda do seio da Ilustração, em especial daqueles ilustrados que seguem de perto a actuação do governo e instituição municipal. Que ganha particular expressão na etapa pombalina (propugnando sobretudo pelo seu enquadramento na ordem e Direito Público) e depois na fase posterior a 1789 em especial a 1790/92 (propugnando também agora pela sua colocação ao serviço do desenvolvimento e felicidade dos povos) assumindo a partir daqui por vezes um cunho particularmente crítico sobre o lugar e papel histórico e moderno do governo e instituição municipal ao ponto de alguns propugnarem pela sua abolição, porque politicamente retrógrada e incapaz de regeneração. Em grande medida o radicalismo da reforma dos concelhos em 1836 – que extingue cerca de metade dos concelhos portugueses – e lhes reduz os poderes e competências – designadamente retirando-lhe o judicial, espaço da nobreza mas também de muitas violências – exprime e mede de certo modo também, os radicalismos e as violências com que vem sendo avaliado e criticado o nosso município desde o tempo da Ilustração, em particular a mais radical e revolucionária. Sociologia das elites locais (séculos XVII-XVIII) Uma breve reflexão historiográfica NUNO GONÇALO MONTEIRO (Universidade de Lisboa / Instituto de Ciências Sociais) Ao longo das duas últimas décadas, o estudo das elites municipais tem constituído um dos principais temas de investigação da historiografia portuguesa e objecto de diversas sínteses1. Mais recentemente, outras instituições locais (em especial, as misericórdias) vêm recebendo a atenção dos estudiosos2. A imensa informação recolhida permite que se façam novos pontos da situação e que se renovem as reflexões sobre o tema. Mas não deixa de revelar alguns impasses. Ou seja, para que a acumulação de nova informação alargue o horizonte das pesquisas e se não limite a fornecer mais um estudo de caso que ratifica tudo aquilo que se conhece, parece necessário propor e discutir novas questões e as metodologias adequadas para se lhes dar resposta. O objecto deste breve texto, retomado de uma comunicação oral, será, assim, o de debater algumas vias complementares para o estudo das elites locais, na linha de alguns textos já antes publicados, tentando apresentar, 1 Para uma bibliografia mais detalhada, remeto para Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social em Portugal no Antigo Regime», in Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, 2003, pp. 37-81. Outros trabalhos sobre o tema têm surgido que aí não se encontram referenciados, entre os quais destacaria: Nelson Veríssimo, Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Lisboa, Dis. Dout., mimeo., 1998; António Ventura dos Santos Pinto, Vila do Conde (1785-1800) : as gentes e o Governo Municipal, Porto, Dis. Mest. mimeo., 2000; Nuno Pouzinho, A Elite Municipal de Castelo Branco entre 1792 e 1878, Lisboa, Dis, Mes. mimeo., 2001; Teresa Fonseca, Absolutismo e municipalismo. Évora 1750-1820, Lisboa, 2002 e José Damião Rodrigues, São Miguel no século XVIII. Casa, elites e poder, 2 vols., Ponta Delgada, 2003. 2 Cf. síntese recente de Isabel dos Guimarães Sá, As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel a Pombal, Lisboa, 2001. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 59-72. 60 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS novos tópicos de análise. A ideia central é alargar o campo de inquirição das leituras institucionais (como sejam as que pontificavam nas câmaras e misericórdias) para outros terrenos. 1. Os escassos estudos sobre elites locais na longa duração A primeira questão que se quer levantar parte de uma constatação: apesar de existirem algumas excepções parciais (o Porto3, Coimbra4 e, sob alguns aspectos o Algarve5 e Ponta Delgada6), são escassos os estudos na longa duração sobre elites locais. Acresce que as ilações que deles se podem tirar não são unívocas. Ora, por um lado, contra uma imagem demasiado decalcada do século XVII tardio e do século XVIII (a da municipalização do espaço político local), é bem provável que as formas de exercício dos poderes nas províncias no século XVI e no início do seguinte não fossem as mesmas. E, por outro lado, apesar da tendência apontada há muito por Romero Magalhães para a crescente elitização da vida política local7, a verdade é que a continuidade das elites locais ao longo da época moderna carece ainda de confirmação empírica. Um aspecto que parece fundamental ponderar são as modificações da arquitectura dos poderes locais resultantes da erosão do poder senhorial no decurso do século XVII, tendência que se aprofunda na centúria subsequente. Com efeito, diversos trabalhos recentes, em particular os de Mafalda Soares da Cunha, sugerem que até às primeiras décadas de seis3 Cruzando informação de: Pedro Brito, Patriciado urbano quinhentista: famílias dominantes do Porto (1500-1580), Porto, 1997; Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu termo (1580-1640), Porto, 1988, idem, «Os tempos modernos», in L. O. Ramos (dir.), História do Porto, Porto, 1995; e Ana S. A. de Oliveira Nunes, História Social da Administração do Porto (1700-1750), Porto, 1999. 4 Cf. Sérgio Cunha Soares, O município de Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Poder e poderosos na Idade Moderna, 2 vol., Coimbra, Dis. dout. Mimeo, 1995. 5 Cf. Joaquim Romero Magalhães, O Algarve económico 1600-1773, Lisboa, 1988. 6 Cf. José Damião Rodrigues, Poder municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no século XVII, Ponta Delgada, 1994 e Idem, São Miguel no século XVIII…, cit. 7 Cf., entre outros, Joaquim Romero Magalhães, «Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial portuguesa», Revista de História Económica e Social, n.º16, 1986; Idem, «A sociedade portuguesa, séculos XVII e XVIII», in M.E..C. Ferreira (coord.), Reflexões sobre a história e a cultura portuguesas, Lisboa, 1986; Maria Helena Coelho e Joaquim Romero Magalhães, O poder concelhio: das origens às cortes constituintes, Coimbra, 1986; e J. Romero Magalhães, «As estruturas sociais de enquadramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos», in Notas económicas, n.º 4, 1994. SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII) 61 centos os poderes senhoriais eram geograficamente muito amplos8 e efectivamente exercidos, que havia muitos fidalgos principais residentes nas províncias9 e que, finalmente, as redes clientelares destes tinham uma efectiva vitalidade e influência10. Ou seja, que o cenário era distinto do que encontramos no século XVIII, quando quase toda a primeira nobreza do reino residia na corte e quando o número de terras sujeitas a jurisdição senhorial e, eventualmente, a efectividade do exercício das respectivas prerrogativas por parte dos senhores parecem ter recuado sem apelo11. A Restauração de 1640 constituiu, neste como em outros terrenos, uma viragem importante. Se admitirmos que essa evolução representou uma efectiva mutação institucional12, então coloca-se a questão de avaliar até que ponto antes e depois as lógicas de estruturação dos equilíbrios e dos poderes locais eram diversas, com evidentes implicações nos destinos individuais e familiares. Independentemente da legislação restritiva do século XVII sobre a elegibilidade para os ofícios locais, este elemento pode ter pesado também na composição dos grupos que nelas pontificavam. A migração por alturas de 1640 de muitas famílias principais para a corte, a gradual distensão dos laços clientelares que estas podiam estabelecer com as províncias pode ter dado lugar à emergência de novos protagonistas. Por outro lado, os poucos estudos disponíveis não são concludentes sobre a continuidade ou descontinuidade multissecular das famílias. A esse respeito um bom referente comparativo é nos fornecido pelos trabalhos sobre as elites locais dos territórios da coroa de Castela. O caso andaluz de Córdova, exemplarmente estudado por Enrique Soria Mesa, constitui uma excelente ilustração. É certo que a venda de ofícios locais e de mercês supe- 8 Cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oliveira (dir.), História dos Municípios e do poder local, Lisboa, 1996, pp. 49-54. 9 Cf. Nuno Gonçalo F. Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A casa e o património da aristocracia em Portugal (1755-1832), Lisboa, 1998, pp. 425-427; António de Oliveira, Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580-1640), Lisboa, 1990, sobretudo pp.234-235; Fernando Bouza Álvarez, «A nobreza portuguesa e a corte de Madrid», in Portugal no tempo dos filipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668), Lisboa, 2000, pp. 207-256; e A.A. Dória, nota D, in Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, nova ed., Porto, s.d., pp. 488-489. 10 Cf. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, 2000. 11 Cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oliveira (dir.), História dos Municípios…, pp. 49-54 e 153-161. 12 Ideia desenvolvida em Nuno G. Monteiro, «Poderes e circulação das elites em Portugal, 1640-1820», in Elites e poder..., pp.105-138. 62 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS riores (senhorios e até títulos) introduzem uma componente que não tem paralelo no caso português. Em todo o caso a comparação é legítima e possível. O que designou por «el cambio inmóvil», traduziu-se no facto de «en la Monarquia Española, de forma general, y en la Córdoba de los siglos XVI al XVIII, en particular, se transformaron muchas cosas, cambio sustancialmente la composición social de la élite gobernante, alcanzaron el poder grupos oficialmente excluidos de los honores y las dignidades», «habrá transformaciones, nueva sangre en las élites, pero se mantendrá la ficción de que nada puede cambiar (...) para eso están los genealogistas»13. Em Córdova, «seguramente, la ciudad más aristocratizada de España en la Edad Moderna»14, «las élites tradicionales, los antiguós linajes, empiezaron a abandonar el municipio (...) las grandes Casas nobiliarias cordobesas (...) ya en le siglo XVI (...) las Casas medianas (...) a finales del XVII»15; em seu lugar foram ascendendo outras, muitas com sangue converso, mas sempre com uma «ficção de provas» e de genealogias que lhes asseguravam uma antiguidade e fidalguia, em larga medida inventadas, mas necessárias para lhes conferir o estatuto de membro de pleno direito do restrito grupo dirigente local. E, apesar das diferenças, o caso de Madrid não parece ser radicalmente diferente daquele que se acaba de apresentar16. O exemplo sumariamente descrito parece muito sugestivo. É certo que as fontes portuguesas (designadamente, os arrolamentos da nobreza das terras) só se tornam profusas para finais do Antigo Regime, o que em parte explica a abundância de estudos centrados nessa etapa tardia17. Também é verdade que muitos dos trabalhos já efectuados abrangendo centros urbanos de alguma relevância nesse período (grosso modo, segunda metade de setecentos e início de oitocentos) indicam que a governança era controlada por um núcleo muito reduzido de famílias, as quais procuravam limitar de várias maneiras o acesso dos adventícios aos respectivos ofícios. No entanto, não apenas conhecemos, apesar disso, muitas histórias de ascensão bem sucedidas18, quase sempre antecedidas por uma etapa de acumulação de capital económico no terreno mercantil ou outro, 13 Enrique Soria Mesa, El cambio inmóvil. Transformaciones y permanências en una elite de poder (Córdoba, ss XVI-XVIII), Córdoba, 2000, p.13 14 Idem, ibidem, p.15 15 Idem, ibidem, p.101-103 16 Cf. Mauro Hernández, A la sombra de la corona. Poder y oligarquia urbana (Madrid, 1606-1808), Madrid, 1996. 17 Na verdade, é só depois de 1755 que os arrolamentos se tornam frequentes no Desembargo do Paço, para onde eram remetidos os das terras da coroa. 18 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social…», pp.66 e seg. SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII) 63 como parece indispensável estabelecer, em cada contexto, a cronologia e os ciclos na longa duração de maior estabilidade e de maior renovação das elites municipais. Gostaria de acrescentar que, já depois de elaborada a versão inicial deste texto, me foi dado consultar uma investigação sobre o Algarve que mostra bem as virtualidades dos estudos na longa duração19. O seu autor, cruzando relações de vereações camarárias20 com o estudo do acesso de naturais do Algarve a cartas de brasões de armas e outras distinções da monarquia, modificou significativamente as perspectivas até agora prevalecentes sobre a evolução da elites locais na referida província, dita reino. Aí se constata que «é de verdadeira nobreza a maioria das famílias que detêm o poder nos concelhos urbanos do Algarve até ao século XVII, com um máximo percentual de 64% no século XVI»; até ao século XVII, portanto, «quando inicia a sua ruralização e decadência», «o Algarve foi um espaço característico da nobreza de sangue». Nos séculos XVIII e inícios do XIX «(a)ssiste-se à inversão da base sociológica do grupo dos vereadores nas principais câmaras do Algarve (…) o poder radica agora numa nobreza de função, que ascendeu graças à riqueza acumulada no trato mercantil», representando a nobreza de sangue nos mesmos concelhos principais antes recenseados apenas 19% do total dos vereadores . Em síntese, contrariando a imagem da afirmação gradual de uma nobreza camarária sem raízes fidalgas numa província onde a nobreza de sangue teria sido sempre muito minoritária, o autor mostra-nos que esse processo foi a sequência da regressão das antigas famílias da fidalguia local dominantes nos séculos XV e XVII, associada à ruralização e decadência económica seiscentista, para a qual Romero Magalhães chamou há muito a atenção. 19 Cf.: Miguel Maria Telles Moniz Corte-Real, «Para o estudo das elites do Algarve no antigo Regime. Fidalgos Nobres e demais privilegiados no poder concelhio», Tabardo, n.º 2, 2003, pp.51-110; e idem, Fidalgos de cota de armas do Algarve, Camarate, 2003. 20 O autor afirma, certamente com fundamento, que no texto «Elites locais e mobilidade social…» fui induzido em engano no que ao Algarve se refere, ao usar os róis de vereadores por causa das «omissões» desse tipo de fontes (cf. «Para o estudo…», p. 53, nota (3)). Sem pretender refutar a crítica, gostaria, no entanto, de sublinhar duas questões: desde logo, o facto de o uso desse tipo de fontes constituir, no estado actual da investigação, a única forma de comparar um grande número de municípios de distintas regiões; e, depois, que as minhas conclusões acerca da escassa presença da fidalguia de sangue nas vereações algarvias no início do século XIX foram, no fim de contas, corroboradas pelas investigações muito mais aprofundadas do próprio autor. 64 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 2. A história das famílias constitui um terreno ainda em larga medida por explorar Tal como já tive muitas vezes oportunidade de destacar, ao invés da polarização entre nobres e não nobres (ou nobres e mecânicos), que só tem relevância a certos níveis, aquilo com que nos defrontamos em Portugal é com uma miríade de distinções e hierarquias e com a extrema dificuldade em definir uma hierarquia nobiliárquica abrangendo todo o espaço geográfico e social da monarquia. De resto, a legislação, frequentemente contraditória, está longe de nos resolver inteiramente o problema. Poderíamos, muito sumariamente, a partir de finais do século XVII, distinguir entre simples nobres, fidalgos e primeira nobreza de corte21, mas as coisas são quase sempre mais complexas. A ascensão na hierarquia nobiliárquica podia fazer-se, até certo patamar, pela riqueza – nesta se podendo incluir as alianças matrimoniais, para os efeitos agora considerados, como uma forma de acumulação de capital económico – e pelo modo de vida. Mas, daí para cima e de forma progressivamente mais apertada, quase só pelo serviço ao rei. Em geral, são mesmo dois momentos distintos nas trajectórias das famílias ao longo de várias gerações. Neste ponto, as diferenças com Castela são muito relevantes. A monarquia vizinha vendia, não só outras distinções nobiliárquicas inferiores, mas ainda ofícios locais nobilitantes, senhorios e até títulos. Desta forma, a riqueza, consagrada pelo tempo, podia chegar a abrir o topo da pirâmide nobiliárquica. Nada de semelhante se verificava em Portugal. Como eloquentemente demonstrou Fernanda Olival22, foi sempre possível comprar hábitos a quem já tinha recebido a respectiva mercê da coroa, mas, pelo menos depois de meados de seiscentos, não consta que se comprassem comendas; tal como os senhorios que antes se transaccionaram, não consta que se vendessem senão em casos excepcionais depois de 1640; nem tão pouco os títulos nobiliárquicos, de resto sempre em número de cerca de meia centena até 1790. Em resumo, ao contrário do modelo castelhano, não se podiam comprar as distinções superiores da monarquia, as quais só se alcançavam pelo real serviço. Só que o serviço ao rei tinha inexoráveis condicionalismos. 21 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Notas sobre nobreza, fidalguia e titulares nos finais do Antigo Regime», in Ler História, n.º 10, 1987, pp. 15-51. 22 Cf. Fernanda Olival, Honra, mercê e venalidade: as Ordens Militares e o Estado Moderno, Lisboa, 2001, pp. 237 e seg. SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII) 65 De facto, e esta é uma ideia forte que importa de reafirmar, a Restauração representou, pelo menos a prazo (depois do fim da Guerra, 1668), uma imensa ruptura no equilíbrio entre grupos nobiliárquicos. Não tanto porque se criassem instituições novas (matrículas da casa real, morgadios, comendas, senhorios, títulos, etc., tudo vinha de trás), quanto pelas novas apropriações sociais e institucionais que se fizeram das instituições existentes. Em termos muito sumários, pode afirmar-se que o acesso aos ofícios e aos serviços que permitiam receber as tais mercês superiores da monarquia, se foi tornando cada vez mais difícil, porque tendencialmente monopolizado pela «primeira nobreza de corte». Deste ponto de vista, e ao invés de Castela, a ascensão das elites locais em Portugal desde finais de seiscentos encontrava-se limitada pelas dificuldades que encontravam em aceder aos ofícios e às mercês do centro23. No puzzle das instituições locais e centrais disponíveis, parece que estas últimas só dificilmente estiveram ao alcance das famílias provinciais, porque em larga medida apropriadas pelas da corte24. Uma das formas de apreender essas apropriações e, mais globalmente, as lógicas de reprodução social, são os estudos de reconstituição de famílias ao longo de períodos razoavelmente dilatados no tempo. Para além de só estes permitirem medir a difusão ou não do padrão da primogenitura (o que se pode designar de «modelo reprodutivo vincular», que constituía em si mesmo um signo de capital social25), habilitam-nos a medir até que ponto determinadas elites se enquistavam nas instituições locais ou se alargavam a espaços mais amplos, tanto em termo de produção de serviços à coroa ou de acumulação de capital económico, como no plano das alianças matrimoniais. Há algumas aproximações a este tipo de abordagem – por exemplo, no trabalho modelar de Pedro Brito26, no livro de Mafalda Soares da Cunha27, e, mais recentemente, no de José Damião 23 Cf. chamada de atenção para o problema em António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal – séc. XVII, 2 vols., Lisboa, 1986. 24 O serviço no exército e, sobretudo, no governo das conquistas foi uma das portas possíveis, embora com limitações inexoráveis, pois também aí pesava, e muito, a qualidade de nascimento; cf. Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, «Governadores e capitães-mores do império Atlântico português nos séculos XVII e XVIII», in Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime, Lisboa (no prelo). 25 Cf. Nuno G. F. Monteiro, «Trajectórias sociais e formas familiares: o modelo de sucessão vincular», in Francisco Chácon Jiménez e Juan Hernandez Franco (eds.), Familia, poderosos y oligarquías, Murcia, Univ. de Murcia, 2001, pp. 17-37. 26 Op. cit. 27 Op. cit. 66 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Rodrigues28 –, nas não ainda uma utilização sistemática desta metodologia clássica. Ora, existe um fantástico fundo de produção de genealogias que facilita muito o trabalho, pelo menos para quem se ocupe de grupos fidalgos (mas não só)29. Não se ignoram muitas objecções que se podem colocar a esta escolha. A maior dificuldade é, evidentemente, o ponto de partida. Qual a base para a escolha? Qual o critério a eleger para reconstituir as famílias? A opção não é fácil e supõe sempre uma definição de critérios de hierarquização nobiliárquica, acerca dos quais já antes se destacaram as dificuldades que levantam, matéria à qual se regressará. Menos substantivas parecem as reservas sobre a informação conjuntural que se perde ou sobre as virtudes das análises de redes. Uma boa base de reconstituição de famílias permite muitos tipos de tratamento. Apesar das limitações apontadas, o estudo das elites locais a partir das famílias e das casas tem inequívocas potencialidades. Uma das quais é, sem sombra de dúvidas, o de emancipar este território de pesquisa de um excessivo enquistamento nas instituições municipais, as quais estavam longe de constituir o único centro de interesse para as principais famílias locais. O livro recente de José Damião Rodrigues constitui, a esse propósito, um bom exemplo: estuda as famílias principais enquanto «oligarquias municipais», mas depois procede também à sua análise detalhada do ponto de vista das casas, das famílias e das respectivas estratégias de reprodução social30. O quadro que desenha fica assim muito mais completo e matizado. 3. Geografia da nobreza e fidalguia e construção de casas nobres Nas mais de oito centenas de municípios do reino, aos quais se poderiam acrescentar os das ilhas e até das conquistas, a famílias principais e as «elites camarárias» nunca constituíram uma categoria social uniforme. Existia, com efeito, uma geografia diferencial das elites provinciais. Em trabalho anterior, esboçou-se uma geografia dos níveis de riqueza e de nobreza das elites locais. Ir-se-ão resumir esses dados para depois discutir uma outra dimensão da questão. O exercício de comparação de arrolamentos camarários em finais do Antigo Regime permite concluir que genericamente as elites locais eram 28 S.Miguel…, cit. Os historiadores académicos pouco têm explorado as potencialidades dos fantásticos fundos de produção genealógica da época estudada, bem como outros ulteriores. 30 Op. Cit. 29 SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS 67 XVII-XVIII) mais ricas nas mesmas terras onde eram também mais fidalgas, acabando as duas dimensões por tender a coincidir. Globalmente, eram mais ricas e mais fidalgas no Minho, na Beira Alta, no Douro próximo da região demarcada do vinho do Porto, encontrando-se aí dispersas por muitas povoações e até termos concelhios. Também, mas agora concentradas em centros urbanos, em apenas cerca de meia dúzia de terras do Alentejo; de resto, em muitas povoações alentejanas não havia um único fidalgo reconhecido. No centro, as povoações sede de comarca do litoral (Aveiro, Coimbra, Leiria, Torres Vedras) tinham claramente menos importância, nesta matéria, do que as do interior (Lamego e Viseu). De acordo com a informação recolhida, que está longe de ser muito completa, as câmaras mais ricas e mais fidalgas não traduziam linearmente a presença de uma fidalguia muito antiga mas sim a confluência de uma herança de fidalguia anterior (dos seus símbolos e modos de vida, menos presente no Sul do que no Centro e no Norte) com a maior riqueza e alguma mobilidade social (muito dinheiro do Brasil foi parar às casas do vale do Lima, por exemplo), embora nunca demasiado rápida e abrangendo quase sempre apenas certas famílias ou casas31. O estudo das casas armoriadas no território do continente português edificadas ou restauradas dos séculos XVII e XVIII fornece um indicador da vitalidade e da densidade das fidalguias provinciais, ao mesmo tempo que sugere as dificuldade que estas tinham em aceder ao centro. Num exercício efectuado a partir de uma amostra escassa (apenas 223 casas) sobre a distribuição geográfica desse património edificado no território português do continente32, verifica-se que, principiando por retomar a divisão distrital actual (18 distritos do continente), os resultados apurados33 destacam, como seria de esperar, o peso esmagador da antiga província do Entre-Douro-e-Minho, com 99 casas, quase 44% do total. Mas 31 32 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social…», cit. Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «A patrimonialização do espaço social rural e o património edificado. Algumas notas», in José Portela e João Castro Caldas (ed.), Portugal Chão, Oeiras, 2003, pp. 217-230. Distribuição de casas por distritos actuais 33 Braga Porto Viana 40 31 28 Évora Aveiro Bragança Viseu 28 Guarda 18 14 Coimbra 13 12 10 Faro Vila Real Lisboa 4 4 3 Leiria 6 Setúbal 3 Castelo 5 Portalegre 2 Beja 4 Santarém 1 68 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS depois vem claramente a Beira Interior, muito à frente do Centro Litoral e do Sul. Se, diversamente, retomarmos a geografia em comarcas existente em 1825, quando existiam 48 comarcas, torna-se possível esclarecer algumas dimensões suplementares: verificamos que, apesar de tudo, num total de 226 casas, 123 ficavam em comarcas «do interior»34. Uma vez mais, apesar da subavaliação do Sul e de todas as limitações das fontes, as comarcas da Beira interior aparecem à frente do Centro Litoral. Embora a coincidência não seja perfeita, é possível, partindo dos elementos recolhidos, detectar uma apreciável correlação positiva entre as zonas e as localidades nas quais detectámos elites locais mais ricas e com signos nobiliárquicos mais destacados e aquelas nas quais se detectam também maior número de casas armoriadas, de acordo com as fontes consultadas. As duas coisas parecem coincidir. Por razões várias, que aqui não cabe detalhar, será muito difícil identificar alguma vez todas as casas armoriadas ou inequivocamente fidalgas que existiram no continente português durante o Antigo Regime. No entanto, quer as tentativas de aproximação de conjunto, quer os estudos monográficos35 que se prendem com o tema que estudaremos de seguida, têm inequívocas potencialidades, só parcialmente exploradas no caso português. Acresce que, em larga medida, a história casas-edifícios confunde-se com a das famílias e das «casas e morgados», no sentido antes referido de «modelo reprodutivo vincular». Uma vez mais, trata-se de uma via de investigação alternativa à análise centrada na instituição municipal, cujas virtualidades importa explorar. 4. A hierarquia da nobreza das províncias Existia, portanto, uma hierarquia nas nobrezas provinciais, de resto, como se acaba de constatar, bem espelhada no espaço. Para além da referida distinção entre nobres e fidalgos (explicita, de resto, em regimentos 34 As 16 comarcas de Antigo Regime com maior número de casas Viana Guimarães Viseu Coimbra 27 23 17 16 Porto Barcelos Braga Évora 15 13 13 10 Lamego Guarda Trancoso Feira 10 8 7 6 Penafiel Castelo B. Miranda Vila Viço. 6 5 5 5 NOTA: Os territórios encravados da comarca de Barcelos foram incluídos naquelas com as quais tinham contiguidade territorial. 35 Cf., por exemplo, Armando Malheiro da Silva, Luís Pimenta de Castro Damásio et al., Casas armoriadas do concelho de Arcos de Valdevez. Subsídios para o estudo da nobreza arcoense, 5 vols, Arcos de Valdevez, 1989-2004. SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII) 69 como os da câmara de Goa36), é possível, apesar das dificuldades apontadas, tentar esboçar outros limiares, tendo como referência sobretudo o século XVIII. Desde logo, importa recordar duas questões sobre as quais muito se tem insistido. Em primeiro lugar, como antes se disse, no divórcio que se foi cavando cada vez mais entre as elites da corte e as das províncias. Existiam na província seguramente mais de uma, talvez mais de duas dezenas de casas com um rendimento equivalente ao das menos afortunadas casas na primeira nobreza da corte. No entanto, foram raríssimos os fidalgos de província que casaram os seus filhos ou filhas sucessoras com a prole dos Grandes do reino desde finais do século XVII a inícios do XIX, embora muitas explicitamente o tivessem pretendido. Por outro lado, a pertença a um mesmo rol de elegíveis para a governança de um município não servia para criar uma identidade social comum. Poder-se-iam retomar muitas histórias. Uma exemplar é a da impugnação que em 1786 João do Carvalhal Esmeraldo da Ilha da Madeira, Fidalgo da Casa Real e o primeiro arrolado para a Câmara do Funchal, de cujas listas já constavam os seus antepassados pelo menos século e meio antes37, fez ao matrimónio da sua quinta filha com outro fidalgo arrolado na mesma lista e acabado de fazer sargento-mor, «pelo motivo de desigualdade em qualidades»38. Entre outros argumentos, o pai da desejada noiva alegava que, ao contrário do pretendido noivo, ele era e tinham sido «seus Avós Paternos, e Maternos, Fidalgos muito distintos», descendendo pelo lado paterno do (único) Conde de Vila Pouca de Aguiar, e sendo, pelo lado materno, «aparentado com as casas de Unhão, de Belmonte, dos Mellos, e da Cova, o que não desconheciam, assim como muitas outras da Primeira Nobreza»; que, além da casa que herdara de seu pai, era imediato sucessor da grande casa que fora do avô materno e que administrava uma tia, pelo que «a antiga Nobreza destas duas casas (...) unidas no suplicante, ou em seu filho, avultariam mais de cem mil cruzados por ano, e o 36 Cf. Charles Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, Madison, 1965. 37 Cf. Nelson Veríssimo, Op. cit.. 38 Francisco Roque de Freitas de Albuquerque da dita ilha pretendia contrair matrimónio com uma filha do personagem antes citado, D. Joana Teresa do Carvalhal Esmeraldo Atouguia e Câmara. No arrolamento dos elegíveis para vereador da câmara do Funchal em 1787 João Carvalhal Esmeraldo aparece em primeiro lugar, é «fidalgo cavaleiro» (da casa real), tem 53 anos e é reputado «rico»; Francisco Roque de Albuquerque também surge na mesma lista, mas em quadragésimo segundo lugar e apenas com «bens suficientes», tendo então 36 anos (IAN/TT, Desembargo do Paço, Corte, maço n.º 1661). 70 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS intitulavam a pretender nobres e distintas alianças, principalmente para o seu filho mais Velho, a quem algumas das mais distintas, e titulares famílias deste Reino, não duvidariam dar uma filha», mas essa declarada pretensão seria dificultada pela aliança em causa. Curiosamente, o saldo da história não fugiu à expectativa: a filha acabou por casar como pretendia, e o pai não conseguiu o que queria, pois o único filho sobrevivente, que veio a ser o 1.º Conde do Carvalhal feito em 1835, morreu solteiro39. É difícil, como disse, estabelecer uma hierarquia das nobrezas abaixo dos Grandes e da primeira nobreza de corte. Curiosamente, a fronteira entre a nobreza antiga de pelourinho e a fidalguia de linhagem não é fácil de definir, até pela consabida falta de controlo no acesso e uso das cartas de Brasão de Armas. As lutas pelo acesso às vereações e aos arrolamentos de nobres recentes contra presuntivos fidalgos, mais antigos e que usavam armas nas fachadas das suas casas, não nos deve fazer esquecer que no século XVIII cada vez mais as instituições centrais tenderam a fazer equivaler a fidalguia às matriculas da casa real. Isso é claro, num sentido ainda mais restritivo, pois apenas se reportando aos que tivessem o foro de «moço fidalgo e daí para cima», na regulação do acesso ao Colégio dos Nobres ou na lei dos casamentos de 1775 (há muito poucos moços fidalgos fora da corte)40. Mas também nas habilitações da Ordem de Malta se tendia a fazer equivaler a fidalguia imemorial às matriculas da casa real. Embora a variação dos critérios locais não se possa perder de vista (e a regra tenha, por isso excepções) existiriam nas províncias do reino algumas centenas de fidalgos da casa real que delimitavam um segmento superior das nobrezas locais. É importante destacar, no entanto, que se pode circunscrever uma categoria ainda mais restrita que podemos definir como a da principal fidalguia das províncias. Fosse pela qualidade dos imputados ascendentes, fosse pelo rendimento respectivo, estas casas tinham uma geografia das suas alianças matrimoniais que se estendia a todo o reino e aspiravam a servir a monarquia em lugares de algum destaque, o que algumas vezes conseguiram (designadamente no exército e nas conquistas no século XVIII)41. Um indicador indirecto, mas significativo, pode encontrar-se no recrutamento dos cavaleiros da Ordem de Malta, a única ordem efectivamente 39 Retomado da investigação em curso: Trinta Casamentos contrariados e outras histórias. Litigiosidade inter-familiar e noções de nobreza em Portugal (1750-1832), ICS. 40 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social…», cit. 41 Cf. Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, «Governadores e capitães-mores do império Atlântico português nos séculos XVII e XVIII», cit. SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII) 71 fidalga, militar e religiosa (destinava-se a secundogénitos) existente em Portugal, que foi estudada recentemente por Inês Versos42. Ao todo, para o período compreendido entre 1691 e 1826, dispomos de informações para 174 cavaleiros. Destes, 92 (ou seja, 52%), não pertenciam à nobreza da corte, mas à fidalguia das províncias. É claro que não se trata de uma imagem de conjunto da primeira fidalguia das províncias porque a Ordem de Malta era uma questão de casas e famílias, no sentido de que algumas casas nela criaram raízes e foram fornecendo recorrentemente maltezes (chegou a haver 5 irmãos maltezes!). Os 92 indivíduos reduzem-se assim a 70 casas ou famílias ou até a menos (56) se considerarmos os laços de parentesco em primeiro ou segundo grau. A Ordem de Malta não fornece, portanto, uma relação de todas as casas da primeira nobreza das províncias. Mas dá uma excelente amostra do conjunto. Desde logo, no plano geográfico: dos 92 referidos maltezes, 43 provinham da Beira, quase só do que hoje chamamos Beira interior (sobretudo comarcas de Lamego, Guarda, Trancoso e Viseu) e 18 do Minho. Ou seja, das mesmas zonas onde detectámos mais casas armoriadas! Entre os maltezes vemos filhos segundos de muitas das mais destacadas casas da primeira fidalguia provincial, como, os Pintos de Lamego (que deram um Grão-Mestre e depois o Secretário de Estado e Visconde de Balsemão), os Pais do Amaral de Mangualde, os Pereiras Coutinho de Penedono ou os Silva da Fonseca de Alcobaça. De resto, estas casas e famílias casavam muitas vezes fora das províncias de origem. Em síntese, nem mesmo as poucas centenas de fidalgos da casa real existentes nas províncias chegavam a definir uma categoria social uniforme. E, dentro deste segmento mais restrito da fidalguia principais das províncias, vamos encontrar precisamente muitos daqueles que mais buscavam fugir aos ofícios locais, servir a monarquia e, por fim, aceder à corte. 5. Nota final Nas páginas anteriores percorreram-se alguns temas da historiografia recente sobre as elites locais em Portugal no Antigo Regime. Procurou-se, em particular, sugerir vias possíveis de renovação de um território muito explorado nos últimos anos. Na época estudada, existia um pressuposto fundamental bem conhecido, que constitui, ao mesmo tempo, uma dimensão axial da questão e uma 42 Cf. Maria Inês Versos, Os cavaleiros da Ordem de S.João de Malta em Portugal de finais do Antigo Regime ao Liberalismo, Lisboa, Dis. Mest. Mimeo., 2003, pp. 324 e seg. 72 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS fonte quase perpétua de ambivalência: a cultura política prevalecente e a generalidade das intervenções legislativas da monarquia pretendiam que o governo local, a todos os níveis, repousasse nas mãos dos mais nobre das terras, das «pessoas da melhor nobreza, cristandade e desinteresse» (Alv. de 18 de Out. 1709). Esse modelo do que numa terminologia weberiana chamaríamos uma administração de honoratiores, procurava, assim, que as «elites políticas» locais fossem recrutadas nas «elites sociais» locais (para retomar uma outra terminologia), identificadas pelo seu grau de nobreza, partindo do postulado de que estas seriam as mais desinteressadas e também aquelas cuja autoridade seria mais facilmente acatada. Os dois planos confundiam-se, portanto, nas próprias disposições normativas da época. No entanto, não coincidiam necessariamente. Para os grupos em processo de acumulação de capital económico, o acesso à elite local podia ser a forma decisiva de serem reconhecidos como membros da elite social, na qual não tinham nascido. Inversamente, as famílias mais nobres e antigas podiam não estar interessadas no acesso aos ofícios locais, nos quais os seus antepassados pontificavam há muitas gerações. Em síntese, o que em larga medida se propôs nas páginas anteriores foi que se desloque o centro da análise dos grupos dominantes locais das «elites políticas» para as «elites sociais». Alguns dos exemplos apontados nessa direcção parecem corroborar as suas indiscutíveis virtualidades. O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas administrativas TERESA FONSECA (CIDEHUS) O funcionalismo camarário constituiu um dos pilares da administração local do Antigo Regime, auxiliando os seus agentes nas mais variadas tarefas da governação e assegurando o quotidiano camarário nos intervalos, mais ou menos longos e irregulares, das reuniões de vereação. A designação, as funções, os vencimentos, o modo de provimento e até a origem social, divergiam consoante os concelhos, reflectindo as especificidades administrativas concelhias da época. O seu número era também variável, consoante a categoria políticoadministrativa, a extensão e os habitantes dos municípios. Em qualquer dos casos, mantinha-se consideravelmente inferior ao actual, reflectindo a escassez de quadros técnicos, mais evidente no interior do país e fora dos grandes centros urbanos, mas também a debilidade burocrática da época1. Lisboa, de longe a maior e mais populosa cidade do Reino, dotada de um sistema administrativo excepcional no conjunto dos municípios portugueses, possuía, entre a segunda metade do século XVII e o primeiro vinténio do século XVIII, um montante de funcionários excepcionalmente elevado: cerca de 6802. No entanto, a média nacional do pessoal camarário nos municípios com juiz de fora não passava de sete elementos3. Nas vilas de Caminha e de Montemor-o-Novo era este precisamente o seu 1Este 2 3 reduzido aparelho administrativo era, no entanto, compensado pela imposição, aos munícipes, de um elevado número de funções, como a repartição e cobrança de impostos, o transporte de presos, a função de guias e caminheiros, a colaboração com materiais e mão de obra nas obras municipais e muitas outras, gradualmente organizadas, a partir da época liberal, em serviços públicos. João Pedro FERRO, Para a história da administração pública na Lisboa seiscentista, Lisboa, Planeta, 1996, p. 43-48. José Viriato CAPELA, Entre-Douro e Minho, 1750-1830. Finanças, administração e bloqueamentos estruturais no Portugal Moderno (tese dout. polic.), vol. I, Braga, 1987, p. 373. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 73-86. 74 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS número4. Mas Chaves e Arraiolos possuiam quatro5, Borba três6 e Vila Nova de Cerveira apenas dois7. Nas localidades com categoria de sede de comarca, o montante subia consideravelmente: 31 em Braga8, 37 em Vila Real9, aproximadamente o mesmo no Porto10 e 14 em Évora11. Estremoz, o segundo mais importante município da comarca de Évora e também sede da sua própria comarca até finais do século XVI, possuía 812. Nos municípios presididos por juizes ordinários o seu número, embora inferior, era também variável. Na região de Entre-Douro e Minho, constituíam uma média de doze para um conjunto de treze câmaras, sendo as principais funções exercidas por oficiais dos concelhos vizinhos13. Mas a sul do Tejo o montante crescia, em virtude da maior extensão destas circunscrições administrativas e das distâncias entre as diferentes localidades, 4 Para Caminha veja-se J. V. CAPELA, Entre-Douro e Minho ... , p. 253 e 254. E para Montemor, Teresa FONSECA, Relações de poder no Antigo Regime. A administração municipal em Montemor-o-Novo (1777-1820), Montemor-o-Novo, Câmara Municipal, 1995, p. 77. 5 Para Chaves veja-se Rogério Capelo Pereira BORRALHEIRO, O município de Chaves entre o absolutismo e o liberalismo (1790-1834), Braga, ed. a., 1997, p. 86-87. E para Arraiolos, A.H.M.A. (Arquivo Histórico Municipal de Arraiolos), C.M.A. (Câmara Municipal de Arraiolos), / E / 001 / Lv.037, Receita e Despesa (1800-1812), f. 3, 8, 9, 11, 27, 46, 48 e 52. E Lv.038, Receita e Despesa (1813-1838), f. 25. 6 A.D.E. (Arquivo Distrital de Évora) / C.M.B. (Câmara Municipal de Borba), Cx. 24 (1775-1814). 7 José Viriato CAPELA, Vila Nova de Cerveira. Elites, poder e governo municipal, Braga, Universidade do Minho, 2000, p. 210. 8 J. V. CAPELA, Entre-Douro e Minho ... , vol. I, p. 339. 9 José Viriato CAPELA, Entre-Douro e Minho..., vol. I, p. 372. Excluímos o juiz de fora, incluído nesta contagem do autor. Desconhecemos, no entanto, se integrou neste cômputo outros magistrados régios sediados na cidade. 10 Francisco Ribeiro da SILVA, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder, vol. II, Porto, Câmara Municipal, 1988, p. 595-689. 11 Teresa FONSECA, Absolutismo e municipalismo. Évora. 1750-1820, Lisboa, Colibri, 2002, p. 271. Incluímos apenas os funcionários com ordenado pago pela edilidade, que no entanto provia ainda um elevado número de funcionários, cujo ordenado provinha ou das receitas próprias dos serviços ou de entidades exteriores à câmara. Estão no primeiro caso os funcionários da almotaçaria, do terreiro do pão, os aferidores dos pesos e medidas e o escrivão do real da água; e no segundo, os que dependiam do juízo do geral ou do juízo dos órfãos. 12 Arquivo Histórico Municipal de Estremoz (A.H.M.E.), Câmara de Estremoz (C.E.), Receita e Despesa (1809-1817). Sobre a questão da comarca de Estremoz, veja-se António Henriques da Silveira, “Memorias annaliticas da Villa de Estremoz”, p. 528-532, in Teresa FONSECA, António Henriques da Silveira e as «Memórias analíticas da vila de Estremoz», Lisboa, Colibri, 2003, pp. 155-156. 13 J. V. CAPELA, Entre-Douro e Minho..., vol. I, p. 373. O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME 75 factores que inviabilizavam o aproveitamento de recursos humanos verificado a norte. Eram, assim, cinco em Évoramonte e no Vimieiro14, quatro em Almada e em Cabrela15 e três em Lavre e em Cacela16. Na impossibilidade de abordarmos exaustivamente esta complexa e diversificada rede de funcionários, seleccionámos os mais significativos do ponto de vista político-administrativo, que por isso mesmo se encontravam presentes na maioria das municípalidades, incluindo as presididas por juizes ordinários. No topo da hierarquia situava-se o escrivão da câmara. Embora formalmente excluído do governo municipal, desempenhava nele um papel imprescindível. A importância do ofício patenteava-se no lugar de destaque ocupado em funções e cerimónias públicas e nos avultados ordenados e chorudas propinas auferidos nos grandes e médios concelhos, em regra superiores aos do juiz de fora e muitas vezes também ao da totalidade dos restantes funcionários17. Em Lisboa, partilhava a Mesa do Senado da Câmara com o presidente, os vereadores e os procuradores da cidade e dos mesteres18. No Porto, sentava-se em cadeiras da vereação, em situação equiparada à dos membros da governança19. Na vila de Santarém, desfilava a seguir ao procurador do concelho e ao alferes da câmara20. Em Évora, no cortejo da cerimónia da quebra dos escudos efectuada pela morte de D. José a 17 de Março de 14 Para Évoramonte veja-se A.H.M.E. / Évoramonte, Receita e Despesa (1810-1819). E para O Vimieiro, A.H.M.A. / C.M.V. (Câmara Municipal do Vimieiro), / E / 001 / Lv 023 Receita e Despesa (1811-1825). Id., B / 001 / Vereações Lv. 035, (1779-81), Lv. 036, (1782-87), e Lv. 038 (1791-1803). Évoramonte pertence actualmente ao concelho de Estremoz e o Vimieiro ao concelho de Arraiolos. 15 Para Almada veja-se Aires dos Passos VIEIRA, Almada no tempo dos Filipes. Administração, sociedade, economia e cultura (1580-1640), Almada, Câmara Municipal, 1995, p. 103-108. E para Cabrela veja-se A.H.M.M.N. (Arquivo Histórico Municipal de Montemor-o-Novo) / C. C. (Câmara de Cabrela), E1 D1 Receita e Despesa (1797-1806), f. 2v., 10v. e 11 v. O antigo concelho de Cabrela faz hoje parte do de Montemor-o-Novo. 16 A.H.M.M.N. / C. L. (Câmara de Lavre), F1 D4, Receita e Despesa (1782-1800), f. 6, 12 e 13. E para Cacela, Hugo CAVACO, Cacela no século XVII (Dez anos de governo autárquico), Vila Real de Santo António, Câmara Municipal, 1990, p. 42-43. O antigo concelho de Lavre encontra-se presentemente integrado no de Montemor-o-Novo. 17 José Viriato CAPELA, O Minho e os seus municípios. Estudos económico-administrativos sobre o município português nos horizontes da reforma liberal, Braga, Universidade do Minho, 1995, p. 145. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 387-388. 18 João Pedro FERRO, Para a história da administração..., p. 41-42. 19 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 483. 20 Maria Virgínia Aníbal COELHO, Perfil de um poder concelhio. Santarém durante o reinado de D. José, diss de doutoramento (polic.), Lisboa, F.C.S.U. / U.N.L., 1993, p. 25. 76 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 1777, caminhou imediatamente a seguir aos vereadores e juiz, antecedendo não só o tesoureiro, mas o próprio procurador do concelho21. Este prestigiado cargo era geralmente atribuído a pessoas nobres, embora de recursos modestos22, como pudemos constatar no Porto23, em Almada24, Chaves25, Ponta Delgada26, Coimbra27, Gouveia28, Cuba29, Seda 30, Terena31 e Évora32. 21 Arquivo Distrital de Évora (A.D.E.) / Arquivo da Câmara de Évora (A.C.E.), livº 143, Livro 9º de Registos (1769-1828), “Forma por que se fés o quebramento dos Escudos nesta Cidade de Evora a 17 de Março de 1777, pela morte do Senhor rei D. José Iº”, f. 26-26v. 22 Maria Helena da Cruz COELHO e Joaquim Romero de MAGALHÃES, O poder concelhio. Das origens às cortes constituintes, Coimbra, Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, p. 49. 23 No Porto no período filipino, foi exercido por cidadãos de precária condição económica, nomeadamente um escudeiro fidalgo da Casa Real, dois criados do Rei, o filho de um procurador da cidade e um vereador no período posterior à Restauração. Veja-se Francisco Ribeiro da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 493-494. 24 Em Almada, no mesmo período, os seus detentores eram homens de confiança do rei, sendo um cavaleiro fidalgo e outro moço de câmara. Veja-se A. dos P. VIEIRA, Almada no tempo dos Filipes ..., p. 104-106. 25 Os de Chaves pertenciam, ainda nos finais do Antigo Regime, à aristocracia local, sendo até incluídos nos róis de elegíveis. Cf. R. C. P. BORRALHEIRO, O município de Chaves ... , p. 87. 26 Em Ponta Delgada, no século XVII, o lugar esteve nas mãos de “notáveis locais”, seis dos quais chegaram a servir de vereadores e de procuradores. Cf. José Damião RODRIGUES, Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no século XVII, Ponta Delgada, Instituto Cultural, 1994, p.79. 27 Em Coimbra, entre a Restauração e o Pombalismo, foi sempre atribuído a indivíduos incluídos na categoria de cidadãos. Veja-se Sérgio da Cunha SOARES, O município de Coimbra da Restauração ao pombalismo. Poder e poderosos na Idade Moderna 2 vols., diss. de doutoramento (polic.), Coimbra, Faculdade de Letras, 1995, vol. I, p. 499. 28 Em Gouveia, entre 1770 e 1800, o único proprietário do cargo foi um fidalgo. Cf. Eduardo MOTA, Administração municipal em Gouveia em finais de setecentos, Gouveia, Publicações Gaudela, 1990, p. 58. 29 Na vila de Cuba, elevada à categoria de município em 1782, o segundo e o terceiro proprietários do ofício, pai e filho, eram elementos da nobreza local, eleitos diversas vezes almotacés. Cf. Emília Salvado BORGES, Homens, fazenda e poder no Alentejo de setecentos, Lisboa, Colibri, 2000, p. 19 e 323. 30 O de Seda (comarca de Avis), nos finais de setecentos, era da nobreza da vila e os seus parentes estavam “sempre na vereação”. T.T. (Torre do Tombo) D.P. (Desembargo do Paço), J.D.M. (Repartição das Justiças e Despachos da Mesa), Maço 1525, Provisões, sentenças e alvarás (1795), provisão de 16-4-1795. 31 O escrivão da câmara de Terena afirmava, em 1812, ter já por diversas vezes “servido na governança” da mesma vila. Cf. T.T./D.P., A.-A., Maço 634, Doc. 4. 32 Os de Évora, entre 1750 e 1820, pertenceram todos a uma única família da pequena nobreza da cidade. Cf. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 228. O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME 77 A forma de provimento do ofício era variável. Podia efectuar-se trienalmente, mediante proposta camarária, pelo Desembargo do Paço, nos municípios directamente dependentes da coroa; ou pelo donatário, nas terras de domínio senhorial33. Em Évora, durante grande parte do século XVI, em Viseu, na centúria seguinte e em Elvas, Terena, Campo Maior e Loulé até ao fim do Antigo Regime, vinha incluído anualmente na pauta régia, juntamente com os membros da edilidade34. Mas na maioria das localidades, incluindo Gouveia35, Santarém36, Abrantes37, Coimbra38, Tomar39, Montemor-o-Novo40, Estremoz41 e Évora (a partir de finais de quinhentos)42 era de nomeação vitalícia, que na prática se tornava, geralmente, hereditária. As funções do escrivão da câmara vinham estabelecidas nas Ordenações. Assentava, em livro próprio, as receitas e as despesas do concelho. Registava todos os mandatos, acordos, alvarás, termos de obrigação ou de fiança e outros similares. Anotava o movimento do gado e passava certidão dos requerimentos formulados aos membros da edilidade. Redigia as actas das eleições trienais dos agentes do governo local. Registava os processos 33 Maria Helena da Cruz COELHO e Joaquim Romero de MAGALHÃES, O poder con- celhio..., p. 49. No município de Lavre o provimento competiu ao marquês de Gouveia, até à extinção da donataria, em 1759. Cf. A.H.M.M.N. / C. L. F1 B2, Vereações (1753-1770). 34 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 228-229. 35 E. MOTA, Administração municipal..., p. 58. 36 Maria Virgínia Aníbal COELHO, Perfil de um poder..., p. 25. 37 Os cinco proprietários do ofício dos sessenta anos de dominação filipina, pertenceram a três gerações da mesma família. Cf. Joaquim Candeias da SILVA, Abrantes – a vila e o seu termo no tempo dos Filipes (1580-1640), Lisboa, Colibri, 2000, p. 147-149. 38 Em Coimbra, nos séculos XVII e XVIII, existiu igualmente, uma “poderosa dinastia” de escrivães. Cf. S. da C. SOARES, O município de Coimbra..., vol. I, p. 535. 39 Em Tomar, entre a primeira metade do século XVII e a segunda metade do século XVIII, os detentores do cargo pertenceram a seis gerações da mesma família. Alberto de Sousa Amorim Rosa, Anais do município de Tomar, VI. 1771-1800, p. 174, cit. por Luís VIDIGAL, Câmara, nobreza e povo. Poder e sociedade em Vila Nova de Portimão (1755-1834), Portimão, Câmara Municipal, 1993, p. 123. 40 Entre 1777 e 1816, o lugar foi ocupado sucessivamente por pai e filho, respectivamente Teotónio Manuel de Melo e João Joaquim de Melo. Veja-se T. FONSECA, Relações de poder..., p. 77. 41 A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1778-1787) e (1809-1817); id., Vereações (1815-1820). 42 Entre 1733 e 1820, o ofício conheceu apenas três proprietários, todos pertencentes à mesma família da pequena nobreza local.T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 228. 78 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS de injúrias verbais despachados em câmara. Na primeira vereação de cada mês, devia ler aos oficiais da edilidade e almotacés os respectivos regimentos. Competia-lhe ainda a posse de uma das chaves da arca do concelho, onde se guardavam as escrituras, forais, tombos, privilégios e outra documentação importante43. Porém, na prática, as suas tarefas ultrapassavam largamente as estabelecidas na lei geral. Com efeito, competia-lhes ainda a elaboração das actas das reuniões camarárias e de outros actos públicos em que participassem os membros da governança, como entradas régias ou de prelados, e cerimónias festivas ou de quebra dos escudos. Redigiam os termos da tomada de posse dos oficiais e funcionários camarários e dos juizes e escrivães, tanto de vintena como dos ofícios mecânicos. Copiavam ordens, alvarás e provisões emanados das instâncias superiores do poder, bem como a correspondência endereçada à municipalidade, tanto por particulares como pelas mais diversas instituições. Actualizavam o tombo dos bens concelhios. Elaboravam as escrituras notariais de arrendamento, compra ou venda de bens do município. Organizavam os processos de aforamento dos baldios. Registavam os actos de arrematação, tanto da cobrança das rendas régias e camarárias, como do fornecimento de carne, azeite, vinho e outros produtos ao concelho. Passavam a escrito todo o tipo de determinações municipais, como posturas, regimentos e tabelas de taxas, preços e salários. Procediam a inquéritos para fins diversos, principalmente de natureza económica e militar. Passavam aos munícipes as cartas, licenças e termos de juramento, necessários ao exercício de certas actividades profissionais. Redigiam proclamações, avisos, convocatórias, notificações e editais, ordenando a sua afixação em locais próprios. Participavam nas correições camarárias, redigindo as respectivas actas. Elaboravam os manifestos do gado, pão, trigo, carne e outros produtos, passando as respectivas guias e certidões. E secretariavam as vistorias e outras visitas de inspecção promovidas pelos camaristas44. Para cumprir eficazmente tão amplas obrigações, tinham a possibilidade de requerer ao Desembargo do Paço a nomeação de um escrevente ou ajudante, que os auxiliassem nas tarefas não abrangidas por segredo de justiça ou outra matéria sigilosa. Tal privilégio foi atribuído aos escrivães de Évora45, do Porto46, de Aldeia Galega (actual Montijo)47, de Valença 43 O.F. (Ordenações Filipinas), L. 1, T. 71. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 229-230. J. V. CAPELA, O Minho e os seus municípios ..., p. 140. 45 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 230. 46 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 487-488; e 500-501. 47 T.T. / D.P., T.D.M., Maço 1523, Provisões, sentenças e alvarás (1793), provisão de 7-9-1793. 44 T. O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME 79 do Minho48 e provavelmente de todos os concelhos onde se justificou a sua existência. A categoria sócio-profissional destes escriturários confirma-nos o prestígio do cargo de escrivão. Dos três nomeados para assessorar, entre 1750 e 1820, estes oficiais camarários na capital alentejana, dois foram procuradores da cidade e o terceiro era tabelião do judicial49. Os escrivães exerciam frequentemente outros cargos públicos. Nos pequenos concelhos, as razões mais invocadas nos pedidos de acumulação eram a falta de pessoas capazes, o pouco trabalho dos ofícios e o seu baixo rendimento económico. No século XVIII, o escrivão da câmara de Lavre servia simultaneamente os ofícios de tabelião de notas e os de escrivão da almotaçaria, do juizo do geral e das armas50. Em 1793, o escrivão da câmara de Pereira, comarca de Coimbra, já então também escrivão da almotaçaria e distribuidor, contador e inquiridor dos órfãos, obteve provisão régia para juntar aos três ofícios o de recebedor dos direitos reais da mesma vila. E no mesmo mês e ano, o escrivão da câmara, dos órfãos e das sisas de Vila Nova da Erra, comarca de Santarém, foi investido no ofício de tabelião do judicial e notas51. Mas as acumulações ocorriam também nos municípios de superior dimensão e categoria, onde os cargos eram mais trabalhosos e havia mais gente capaz de os exercer. Em Lamego, o escrivão da câmara era-o também do judicial e notas. O seu congénere de Aldeia Galega, exercia funções idênticas relativamente às sisas e aos direitos reais, juntando ainda a estes três cargos o de contador e distribuidor na mesma vila. O de Alcácer do Sal era igualmente escrivão do celeiro comum52. E o de Évora, além de escrivão do subsídio militar da décima da cidade e do termo escriturava também os reais da água da carne e do peixe53. Porém, nestes concelhos importantes, as acumulações eram não apenas dispensáveis, mas até nefastas ao eficaz exercício das funções, o que levava frequentemente à nomeação dos escriturários acima referidos. Eram, assim, atribuídas não por qualquer razão prática, mas antes em virtude do prestígio do cargo de escrivão, dispensando até a justificação prévia exigi48 Id., Maço 1527, Provisões, sentenças e alvarás (1797), provisão de 29-5-1797. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 230. 50 A.H.M.M.N., / C.L., F1 B2, Vereações (1753-1770), vereações de 10-10-1753, f. 4v. e de 12-11-1754, f. 13 – 13v. 51 T.T. / D.P., T.D.M., Maço 1523, Provisões, sentenças e alvarás (1793), provisões de 8-8-1793 e 17-8-1793. 52 Id., Maço 1523, Provisões, sentenças e alvarás (1793), provisões de 5-7-1794 e de 7-9-1793. Id., Maço 1525, Provisões... (1794), provisão de 29-7-1794. 53 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 231. 49 T. 80 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS da aos pequenos concelhos, numa evidente manifestação da sobreposição do critério do privilégio sobre o da racionalidade administrativa. Vejamos apenas alguns exemplos da influência dos escrivães na vida municipal. Em 1793, o advogado José António Xavier da Silva Sintrão, na altura procurador do concelho de Évora, considerava que o então detentor daquele cargo, Francisco José Guedes de Melo, era, na câmara, “quem tudo governa”. A sua “autoridade (...) e dispotismo” sobrepunha-se a “todas as Leys e Ordenações”. Nas reuniões do senado, enquanto lia as petições dos munícipes, acrescentava a sua opinião, influenciando antecipadamente as deliberações do corpo camarário, quando, no entender do procurador, se devia limitar a redigir o que lhe era ordenado pela vereação54. Tal ascendente é, no entanto, compreensível, se considerarmos que nas sete décadas decorridas entre a entronização de D. José e a revolução vintista, o lugar foi ocupado apenas por três proprietários pertencentes à mesma família55. A maioria das edilidades açorianas da mesma época, delegava nestes oficiais prerrogativas excepcionais, permitindo-lhes assim assegurar o normal funcionamento administrativo sem ter de reunir, durante longos períodos de tempo, o plenário camarário56. Em 1804, o escrivão da câmara do Redondo, mais habituado a mandar que a obedecer, foi preso pelo jovem e recém chegado juiz de fora, por não cumprir uma ordem sua e lhe responder com arrogância57. E em 1816, o congénere de Estremoz, baseado num alvará seiscentista considerado, pelos magistrados da comarca, já ultrapassado, redigiu uma nota no livro da receita e despesa camarária desse ano, contrária a um provimento do provedor, registado pouco antes no mesmo livro58. Elementos de estabilidade, eram os escrivães quem estabelecia a ligação entre as sucessivas vereações, ajudando provavelmente os próprios juizes de fora, quando chegavam de novo a uma terra, a familiarizarem-se com a realidade local. A assistência, em muitos casos durante décadas, às vereações e outros actos administrativos, proporcionava-lhes um perfeito conhecimento dos assuntos municipais, tornando-os os principais depositários da memória camarária. Por isso, eram naturalmente auscultados pelas 54 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 231. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 232. 56 A.F. de MENESES, Os Açores..., vol. I, p. 159-160. 57 T.T./D.P., A.-A., Maço 574, Doc. 88. 58 A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1809-1817), f. 156. 55 T. O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME 81 autoridades locais, particularmente em situações de especial complexidade. Autores, ou pelo menos responsáveis pela escrituração camarária, a eles devemos uma boa parte do que hoje conhecemos da administração municipal do Antigo Regime. Usufruindo de uma situação privilegiada, ultrapassavam frequentemente as suas competências legais, cometendo até excessos e arbitrariedades. No entanto, em épocas de crise administrativa local e nos períodos conturbados da vida política nacional, asseguraram, com discrição e alguma eficácia, a gestão dos assuntos correntes, evitando situações eventualmente caóticas ou de ruptura. O tesoureiro tinha a seu cargo a actividade financeira do município. Competia-lhe receber as rendas do concelho e pagar as despesas ordenadas pelos vereadores, responsáveis, em última instância, pela administração dos dinheiros públicos. Também arrecadava a terça régia, não a podendo dispender em coisa alguma, mesmo se para tal recebesse ordens dos ministros da comarca ou dos membros da edilidade “sob pena de a pagarem de suas casas”59. Até ao século XVI, as suas funções eram, em regra, exercidas pelo procurador do concelho, confundindo-se, nestes casos, com as do próprio governo camarário. Mas na centúria seguinte, a maior parte dos municípios designava já uma pessoa para o desempenho específico do cargo, embora o tradicional sistema tivesse subsistido em diversas localidades, como Gouveia60, Guimarães61, Évoramonte62, Lavre63, Albufeira64 e ainda nos Açores65. O processo de nomeação do tesoureiro variava consoante as terras. No Porto66, em Viseu67, Alverca, Lagos, Albufeira e nas localidades alenteja59 O.F., L. 1, T. 70. E. MOTA, Administração municipal..., p. 46. 61 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 503. 62 A.H.M.E. / Évoramonte, Receita e Despesa (1810-1819). 63 Em Lavre, apenas se nomeava um tesoureiro em situações excepcionais, como sucedeu em 1769, “por ser o procurador muito ocupado em andar por fora” . A.H.M.M.N. / C.L., F1 B2, Vereações (1753-1770), vereação de 31-12-1769, f. 225. 64 T.T./D.P. – A.-A., Maço 831, Doc. 40. 65 Designadamente na Praia, S. Sebastião, Horta, Velas, Topo, Calhete, Madalena, Lajes e Santa Cruz. Avelino de Freitas de MENESES, Os Açores nas encruzilhadas de setecentos (1740-1770) – I – Poderes e instituições, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993, p. 146-148. 66 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 503. Ana Sílvia Albuquerque de Oliveira NUNES, História social da administração do Porto (1700-1750), Porto, Universidade Portucalense, 1999, p. 211. 67 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 504. 60 82 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS nas de Portalegre, Odemira, Viana, Estremoz e Montemor-o-Novo, vinha anualmente incluído na pauta68. Em Évora, o mesmo sistema vigorou até 1501, passando a partir de então a ser de nomeação régia, mediante prévia apresentação da câmara; no século XVII, o provimento efectuou-se tanto trienalmente como vitaliciamente, sendo este último regime adoptado definitivamente a partir da centúria seguinte69. O perfil mais comum dos detentores deste cargo durante a Época Moderna havia já sido enunciado em 1501 por D. Manuel, quando referia as características adequadas ao tesoureiro eborense: “um oficial dos que andam nos Mesteres, rico, e para o tal cargo e ofício mais apto”70. De facto eram, nos grandes e médios concelhos, burgueses enriquecidos pelo comércio, geralmente associado à usura, à exploração fundiária e à produção artesanal ou manufactureira. Quando arrolados nas pautas, o corregedor acrescentava-lhes ao nome o presumível valor do património ou do rendimento, ou simplesmente as expressões “he abonado” ou “bastante abonado”. A precária situação financeira da maioria das câmaras, agravada nas últimas décadas do Antigo Regime pela sobrecarga de tarefas e encargos fiscais impostos pelo poder central, exigia deste oficial abastança suficiente para compensar, da sua fazenda, os défices camarários, tanto mais elevados quanto mais importante era o município. O cargo de tesoureiro, pouco apetecido nas pequenas localidades, era cobiçado nas de maior dimensão, não obstante a responsabilidade que envolvia. Além de conferir prestígio e possibilitar a almejada ascensão social da burguesia endinheirada, proporcionava aos seus detentores a preferência na arrematação das rendas camarárias, na cobrança dos impostos régios, no fornecimento de carne e outros bens essenciais, no arrendamento de herdades e mais bens concelhios ou em outros negócios, cujos lucros compensariam largamente o prejuízo inerente a uma função aparentemente ingrata71. Como a escrituração da contabilidade camarária constituía matéria da competência do escrivão, verifica-se geralmente uma certa cumplicidade entre estes dois oficiais, extensiva aos próprios vereadores. O referido procurador Xavier Sintrão, denunciava o facto de as contas do município eborense constituírem “segredo, que fica só entre (...) o vereador mais velho, e Escrivão da Camara e Thezoureiro ...”72. Com efeito, os provedores 68 T.T. / D.P. – A.-A., Maço 831, Doc. 32 e 40. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 233. 70 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 235. 71 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 236-238; e 394-399. 72 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 231. 69 T. O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME 83 corresponsabilizavam frequentemente escrivães, tesoureiros e eleitos locais pelas irregularidades cometidas na gestão financeira dos municípios, contando-se, entre as mais vulgares: a utilização de métodos contabilísticos ultrapassados; a imprecisão do registo das receitas e sobretudo das despesas; o pagamento de propinas sem a correspondente provisão régia; a ocultação de ingressos paralelos; a retenção, total ou parcial, do dinheiro dos impostos régios ou das verbas da comparticipação nos ordenados dos funcionários da administração central. Deste modo, a relutância dos dois funcionários em aceitar interferências nos seus tradicionais métodos de trabalho, conjugada e reforçada com o empenhamento dos dirigentes locais na defesa dos seus privilégios, constituiu, em muitos concelhos, um obstáculo relativamente eficaz aos esforços dos magistrados régios, no sentido do cabal cumprimento das determinações do poder central em matéria de finanças locais. O porteiro da câmara exercia funções similares às consignadas nas Ordenações para o guarda-mor da Casa da Suplicação ou da Relação73, salvaguardando naturalmente a diferença institucional dos cargos. Apregoava, nos locais públicos habituais, as decisões camarárias cujo conteúdo se entendia necessário divulgar aos munícipes. Anunciava, do mesmo modo, os diversos concursos e arrematações. Afixava editais. Procedia ao inventário do património municipal. Efectuava, em nome da câmara, convocatórias, notificações e embargos. Enviava recados a casa dos oficiais camarários. Superintendia na arrumação da sala das reuniões e no transporte de cadeiras, dos paços do concelho para outros locais onde tivessem lugar cerimónias a que assistisse a vereação. Colocava luminárias nas janelas e varandas dos edifícios municipais, por ocasião de festas e comemorações. Armava as igrejas para as cerimónias religiosas da iniciativa da câmara. Efectuava diversas compras por ordem dos camaristas. Preparava a aposentadoria dos ministros da comarca e da provedoria, quando se deslocavam às localidades em serviço de correição. Assistia, do exterior da sala, às sessões camarárias, anunciando e encaminhando os munícipes que compareciam a prestar juramento perante a vereação ou para apresentar qualquer questão74. De origem sócio-económica modesta, este oficial subalterno tinha, pelo menos, de saber ler e escrever. Tal atributo, associado à importância e visibilidade das suas funções, conferia-lhe algum prestígio. Como sucedia na generalidade dos ofícios públicos, o cargo era vulgarmente transmitido de 73 74 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. II, p. 619-620. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 271-272. F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. II, p. 619-622. A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1809-1817). 84 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS pais para filhos, ao longo de várias gerações. Sendo de provimento camarário, embora sujeito a confirmação régia, era atribuído a membros do grupo clientelar das famílias protegidas pelas oligarquias locais. Nas municipalidades de maior relevo, o porteiro da câmara possuía como coadjuvantes outros funcionários hierarquicamente inferiores, como se infere pelo mais baixo montante dos seus ordenados. Lisboa tinha, já nos finais da Idade Média, mais de vinte porteiros; o Porto, no século XVI, contava com sete75; o da câmara de Évora, em meados do século XVII, era ajudado por cinco “porteiros do geral”, reduzidos na centúria seguinte a um “contínuo” e a um “porteiro do juízo do geral”76. E os congéneres das câmaras de Estremoz e Montemor-o-Novo eram auxiliados respectivamente pelo contínuo77 e pelo porteiro do geral78. Dada a abrangência do poder camarário, muitos municípios possuíam um ou vários oficiais menores cuja acção incluía as áreas da justiça e do policiamento, não devendo, porém, ser confundidos com os funcionários judiciais. Os mais frequentes eram o carcereiro e o alcaide da vara. O primeiro era, segundo as Ordenações, o responsável pela cadeia, sujeitando-se a pesadas penas se deixasse fugir os presos. Não podia soltá-los sem um mandato judicial, devendo no entanto libertá-los imediatamente se tal lhe fosse ordenado79. Em muitas localidades, este cargo era também vitalício e hereditário80. O segundo, frequentemente designado por alcaide pequeno81 ou simplesmente por alcaide, exercia funções de policiamento e fiscalização semelhantes às do meirinho82. Competia-lhe zelar pela ordem pública, 75 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. II, p. 623. Entre 1750 e 1820, estes dois subalternos colaboraram com o porteiro principal em numerosas actividades: assinavam o termo de juramento das mulheres, quase sempre analfabetas, cuja profissão as obrigava a prestar juramento, como era o caso das medideiras do terreiro do pão, das padeiras, das peixeiras e das parteiras; participavam, em simultâneo, na arrematação das rendas régias e camarárias, assinando o respectivo auto; e colaboravam em todo o tipo de serviços correntes de apoio à administração municipal. Cf. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 271-272. 77 A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1778-1787) e (1809-1817); id., Vereações (1815-1820). 78 T. FONSECA, Relações de poder..., p. 82. 79 O.F., L. 1, T. 77. 80 Como por exemplo em Montemor-o-Novo e em Évora, embora nesta cidade o carcereiro dependesse orgânicamente do corregedor da comarca, não podendo por isso considerar-se um funcionário municipal. 81 Sobretudo nas terras onde havia um alcaide-mor. 82 O meirinho, como funcionário judicial, fica excluído deste trabalho. 76 O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME 85 tanto de dia como de noite, contando, para o efeito, com ajudantes nomeados pela câmara, vulgarmente conhecidos por quadrilheiros. Podia prender infractores em flagrante delito e até, na ausência do juiz, efectuar outro tipo de prisões. Conduzia os cativos perante o juiz nos dias de julgamento e assegurava a manutenção da ordem no decorrer das audiências. Protegia as autoridades municipais, especialmente os almotacés, frequentemente vítimas da contestação e até das ameaças dos comerciantes. E montava guarda aos locais mais vulneráveis ao desencadear de conflitos, como os açougues da carne e do peixe. Levava ainda presos para localidades vizinhas e quando necessário transportava o dinheiro dos impostos régios cobrados no respectivo concelho para a sede da comarca83. Nos municípios com um diminuto número de funcionários, exercia ainda outras actividades: no Vimieiro, tocava o sino de recolher e cuidava das aposentadorias dos ministros da comarca e da provedoria, do aboletamento dos exércitos e da manutenção do relógio, funcionando como uma espécie de ajudante do porteiro84; e em Cabrela acompanhava a vereação nas visitas de correição85. A semelhança de funções do alcaide e do carcereiro explica o facto de em Lavre e em Estremoz os dois ofícios se concentrarem na mesma pessoa86. A patrimonialização dos ofícios da burocracia camarária conferia aos seus detentores um poder e autonomia difíceis de combater, favorecendo ainda o enraizamento de práticas anacrónicas incapazes de dar resposta às novas necessidades e exigências crescentes do reformismo estatal. No exercício da sua actividade, estes funcionários procuravam, prioritariamente, servir a elite dirigente local, a quem deviam, não apenas o lugar, a respectiva transmissão familiar e o prestígio social decorrente do seu exercício, mas ainda o acesso a outras ocupações públicas remuneradas ou a preferência em lucrativos negócios que envolviam a municipalidade. A coroa procurou, a partir do pombalismo, minimizar os obstáculos que a natureza de tais ofícios constituía para o processo de modernização administrativa, através da carta de lei de 23 de Novembro de 1770. Este diploma decretava a abolição da hereditariedade dos cargos públicos, pra- 83 O. F., L.1, T. 75. T. FONSECA, Relações de poder... , p. 80. F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo ..., p. 669-672. 84 A.H.M.A. / C.M.V., / E / 001 / Lv 023 Receita e Despesa (1811-1825). Id., B / 001 / Vereações Lv. 035, (1779-81), Lv. 036, (1782-87), e Lv. 038 (1791-1803). 85 A.H.M.M.N. / C.C., E1 D1 Receita e Despesa (1797-1806). 86 Para Lavre veja-se A.H.M.M.N. / C.L., F1B2, Vereações (1753-1770), vereação de 6-7-1757, f. 46. E para Estremoz, A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1809-1817), f. 57 e 76. 86 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS ticada desde o reinado de D. Afonso V e considerada pelos legisladores esclarecidos uma introdução abusiva na lei e costumes nacionais e como tal atentatória da soberania régia. Não obstante, a velha prática subsistiria, bastando para a sua concretização a formulação de um requerimento ao Desembargo do Paço, acompanhado da atestação, pelos órgãos competentes, da idoneidade e adequada preparação do candidato. Os ministros territoriais tentaram, por sua vez (embora com variável empenhamento) secundar os esforços do poder central, no respeitante ao modo de exercício dos mesmos ofícios. Nas correições, efectuadas com progressiva regularidade e a partir de 1790 num número sempre crescente de concelhos, corregedores e provedores ameaçavam directamente os oficiais incumpridores ou no mínimo hostis às intromissões do reformismo estatal na sua actividade; e ao mesmo tempo, responsabilizavam as autoridades camarárias pela sua condescendência para com os abusos e omissões destes funcionários, entre os quais se destacavam: a falta de rigor e transparência na escrituração camarária, nomeadamente na redacção das actas, no registo das coimas, na inventariação do património concelhio ou no lançamento contabilístico; os atrasos na cobrança dos foros municipais e na transferência da terça régia e de outras verbas pertencentes à Fazenda Real; as demoras na execução de determinações emanadas das instâncias superiores; os conluios com os grandes negociantes e outros poderosos; e as exacções e arbitrariedades exercidas sobre os munícipes mais vulneráveis. No entanto, a acção do poder central e dos seus delegados na periferia arrostou sempre com a cumplicidade entre os agentes do poder camarário e esta sua fiel clientela. Tal aliança determinou em boa parte o cariz predominantemente tradicionalista, rotineiro, moroso e iníquo da gestão concelhia do Antigo Regime, convertendo os municípios em um dos mais influentes focos de resistência à implementação da política de absolutismo esclarecido. Relações de poder, patrocínio e conflitualidade Senhorios e municípios (século XVI-1640) MAFALDA SOARES DA CUNHA (Universidade de Évora – Dept. de História /CIDEHUS) Temas e lacunas historiográficas Sendo o objectivo do encontro a reflexão alargada sobre os municípios na época moderna e o tema deste texto as relações entre os donatários e os poderes locais, impõe-se, antes de mais, um breve ponto da situação historiográfica relativamente ao estado da situação dos estudos sobre os municípios senhoriais e sobre o grupo nobiliárquico primo-moderno. É de todos conhecido que o tema do poder municipal não é novo, podendo mesmo afirmar-se que para a primeira fase da época moderna acolheu, de há duas ou três décadas a esta parte, contributos marcantes de historiadores como Joaquim Romero Magalhães, Francisco Ribeiro da Silva, António de Oliveira e António Manuel Hespanha, bem como a atenção de alguns estudantes de doutoramento e mestrado e de estudiosos locais. Pesem embora estes trabalhos, que se revestem, de resto, de desigual interesse1, é importante sublinhar que os séculos XVI e XVII têm sido subalternizados em relação, sobretudo, ao século XVIII. As razões são bastante óbvias e prendem-se com a maior escassez da documentação. Não tornam, no entanto, a tarefa impossível. Requerem, em meu entender, uma investigação mais esforçada, empenhada em cruzar informação de proveniência institucional variada, a fim de complementar as falhas das séries disponíveis. Assim, uma das principais lacunas da história do poder local em geral prende-se com a caracterização sociológica dos diferentes actores. A sua identificação tem sido feita de forma sumária, através dos apelidos e de breves apontamentos relativos ao estatuto social em que pontuam os títu1 Cf. Mafalda Soares da Cunha, “Poderes locais nas áreas senhoriais (séculos XVI-1640)”, Coimbra, 2005 (no prelo). Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 87-108. 88 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS los dos foros da Casa Real ou os graus académicos que auferiram. E, na generalidade dos casos, circunscrita aos membros das vereações, excluindo a ampla panóplia do restante funcionalismo municipal. Não possibilitam, por isso, mais do que aproximações muito vagas relativamente aos níveis de reprodução endogâmica dos grupos familiares dominantes ou à tendência para a monopolização do poder por parte das elites locais. De fora ficam cronologias mais finas desses processos e até a confirmação dessas interpretações que são, em muitos casos, repetidas sem suficientes evidências empíricas. Proveitoso seria, então, complementar esses indicadores superficiais com incursões micro-analíticas através da reconstituição das trajectórias vitais e das redes de parentela e dependência do conjunto do oficialato local, elaborada a partir da documentação dos registos paroquiais e notariais. Nela recolhem-se dados importantes relativamente à sua inserção familiar, laços de parentesco, compadrio e até amizade, o que permite uma análise apoiada da evolução dos patrimónios, opções de investimento familiar e económico, mobilidade geográfica e ainda das relações interpessoais desenvolvidas ao longo da vida. Este tipo de abordagem permitiria também um esclarecimento mais cabal das fissuras e clivagens nos grupos de poder locais, bem como das estratégias desenvolvidas para a ascensão, consolidação ou renovação. E, neste âmbito seria ainda fundamental compreender de que modo as relações verticais, seja com a Coroa ou os seus agentes periféricos, seja com os donatários das terras, influíram nesses processos. Neste contexto concreto cumpre, de resto, destacar a quase ausência de trabalhos que evidenciem as especificidades das relações entre os poderes locais e os poderes senhoriais face às terras realengas. Diz-se habitualmente que os povos preferiam a tutela régia à tutela senhorial, fundando essas afirmações na descricionariedade dos abusos dos donatários e dos seus aparelhos administrativos sobre as populações. Chega mesmo a referir-se a existência de uma reacção senhorial ou até refeudalização para o século XVII. O apoio empírico é, no entanto, frágil. Escuda-se a mais das vezes em um ou outro caso, faltando os enquadramentos gerais que permitiriam avaliar a representatividade dos fenómenos estudados. Estas falhas decorrem, em boa medida, da falta de estudos sobre senhorios concretos e, ainda mais, de monografias que abordem a questão das práticas políticas dos donatários. Não será, por isso, de estranhar que os estudos sobre senhorios ultramarinos sejam também tão escassos, não obstante o estudo global elaborado há já alguns anos por António Vasconcelos Saldanha2. E são também estas lacunas que condicionam 2 António Vasconcelos de Saldanha, As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenómeno atlântico, Lisboa, CNCDP, 2000. RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 89 decisamente a possibilidade de elaboração de trabalhos gerais sobre o próprio grupo nobiliárquico. Na verdade, as afirmações que se fazem sobre a evolução, atitudes e papel político do grupo nobiliárquico em Portugal reduzem-se a uns quantos chavões, não só muito fortemente marcados pelos impactos da gesta expansionista, como pelas ideias sobre a centralidade da Monarquia na organização social dos diferentes poderes. As reflexões de natureza geral que se têm proferido tomam, assim, como referentes os já existentes estudos de síntese para a Alta Idade Média3, para a fase final do Antigo Regime4 e as considerações gerais sobre outras realidades europeias, com particular destaque para o caso da Monarquia Hispânica5. Ou ainda os resultados de abordagens de síntese sobre a evolução do peso das jurisdições senhoriais no conjunto do território português6. A amplitude das jurisdições senhoriais Comecemos por este último ponto. Em trabalho já referido, Nuno G. Monteiro demonstrou que em 1527-1532, 54,6% do total das câmaras do país estavam sob a jurisdição senhorial (leiga e eclesiástica), e que esse número crescia ligeiramente para 57,6% em 16407. Um débil aumento, portanto. No entanto, só estes valores (mais de metade dos concelhos) seriam suficientes para conferir primordial importância ao tema que aqui trago e até reflectir sobre a importância que as funções jurisdicionais exerciam no sistema de classificações dentro do grupo nobiliárquico. No que a este último tópico diz respeito, sabe-se que conferiam preeminência 3 José Mattoso, Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. A Nobreza Medieval Portuguesa nos Séculos XI e XII, 2.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1985 e Idem, A Nobreza Medieval Portuguesa. A Família e o Poder, Lisboa, Editorial Estampa, 1981. 4 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património da Aristocracia em Portugal (1750-1832), Lisboa, Imprensa Nacional, 1998. 5 Antonio Dominguez Ortiz, La Sociedad Española en el Siglo XVII, 2 vols., Granada, Universidade de Granada, 1992 (facsímile da ed. de 1963); Idem, Las Classes Privilegiadas en la España del Antiguo Régimen, Madrid, Istmo, 1973; Bartolomé Yun Casalilla, La Gestión del Poder. Corona y Economías Aristocráticas en Castilla (Siglos XVI-XVIII), Madrid, Ediciones Akal, 2002. 6 Nuno G. Monteiro (coord.), «Os poderes locais no Antigo Regime», in César de Oliveira (dir.), História dos Municípios e do Poder Local, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 17-175, especialmente pp. 49-55. 7 Idem, ibidem, p. 52. Todavia, se incluirmos neste cômputo, os senhorios das ordens militares que só incompletamente estavam sob dependência da Coroa, o valor crescerá para cerca de 70%. 90 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS simbólica e direitos de representação política pela pertença, por inerência, ao braço da nobreza em cortes. Mas significavam também um conjunto de funções políticas, militares e capacidade fiscal sobre o território cujos contornos estão expressos nas Ordenações e foram já analisados por Hespanha8 e pelo próprio Nuno Monteiro. Já retomaremos a questão. Deve, entretanto, dizer-se que a posse de jurisdições era determinante na definição das hierarquias dentro do grupo nobiliárquico e que, nestas épocas, o cume da pirâmide só incluía donatários. Não se conhece, todavia, a distribuição das jurisdições pelos seus membros, pelo que temos apenas uma ideia muito imprecisa sobre a configuração geográfica de cada um dos senhorios e a sua importância relativa, quer em termos económicos, quer demográficos. Existem listas coevas – muitas delas datadas do período da Monarquia Dual – que apontam valores globais dos rendimentos das casas9. Não nos elucidam, porém, relativamente à composição desses rendimentos, o mesmo é dizer, à percentagem que cabia à extracção fiscal decorrente dos direitos senhoriais sobre bens da Coroa, às mercês, tenças e assentamentos doados pela Monarquia ou às diversas formas de exploração dos bens patrimoniais. Ora estes vectores são relevantes do ponto de vista da avaliação da importância de cada um dos senhorios e são decisivos para compreender a importância que o controlo político sobre as terras e as gentes detinha para cada uma das casas. De igual modo, a contiguidade ou dispersão geográfica do senhorio pode ser significativa relativamente à eficácia da administração senhorial. Um senhorio disperso tinha custos económicos superiores e propiciava gestões absentistas o que normalmente favorecia níveis de controlo senhoriais menos eficientes. Já o veremos com maior pormenor. No que toca às jurisdições pode, todavia, começar a aprofundar-se um pouco mais o nível de análise, a partir do tipo de direitos e privilégios transferidos pela Coroa. É que as jurisdições senhoriais não eram todas idênticas. Se as doações genéricas criavam um ambiente comum, as competências formais dos senhores sobre as terras e populações podiam ser extraordinariamente ampliadas pelas doações expressas. O princípio a que 8 António M. Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna, Coimbra, Livraria Almedina, 1982. 9 Alguns exemplos: a) 1520 in João Cordeiro Pereira, “A Estrutura Social e o seu Devir”, in Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, coord. João José Alves Dias, vol. V, Nova História de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. De Oliveira Marques, Lisboa, Editorial Presença, 1998, p. 319; b) 1577 - BL, Additionals, 48.026, fls. 247v-249; c) 1587 - BL, Additionals, 48.026, fls. 273-276; d) 1615 - Luís Augusto Rebello da Silva, História de Portugal nos Séculos XVII e XVIII, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867 (reimp. de 1967), pp. 497, 499, 503-504. RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 91 estas obedeciam está globalmente exposto no preâmbulo do tit. XLV das Ordenações Filipinas. Dizia-se “Como entre as pessoas de grande stado e dignidade e as outras, he razão que se faça differença, assi nas doações e privilegios, concedidos ás tais pessoas, costumaram os Reys pôr mais exuberantes clausulas, e de maiores prerrogativas, para se mostrar a maior affeição e amor, que lhes tinham”. Chega depois a afirmar-se que nos casos das doações às rainhas, aos infantes e a alguns senhores de terras a Coroa “não reservara para si parte alguma da dita jurisdição”, excepto “que fique reservada ao Rey a mais alta superioridade e Real Senhorio”. Ora esta disparidade de funções jurisdicionais criava, desde logo, níveis bastante diferenciados de poder dos senhores sobre as terras, com evidentes implicações nos níveis de autonomia dos concelhos. Refere Hespanha que aqueles que tinham jurisdições exuberantes eram o arcebispo de Braga, as casas da Rainha, as de Bragança e de Aveiro e as freiras de Arouca10. Não creio, todavia, que esgotem o universo dos principais beneficiados e este era um outro tópico que carecia melhor averiguação, o que pode, de resto, fazer-se através da análise das cartas de doação contidas nas chancelarias régias. O tipo de privilégios jurisdicionais a que me refiro pode ser melhor explicitado a partir do caso brigantino. O quadro anexo demonstra que a casa de Bragança usufruía de um conjunto muito amplo de privilégios. Pode mesmo dizer-se que correspondia praticamente ao caso de transferência total de jurisdição a que as Ordenações aludem. Eram, em grande medida, o resultado de uma acumulação secular, não imputável especificamente a um ou outro soberano ou a um ou outro duque. Ou seja, pode afirmar-se de forma esquemática que tinha a ver com a combinação das qualidades de sangue e o capital de serviços prestados. Esta questão é importante porque explica a própria manutenção destes privilégios excepcionais, já que as Ordenações Filipinas acautelavam bastante este ponto, explicitando que as doações expressas perdiam validade quando não eram confirmadas e renovadas pelos sucessivos reis e que essas cláusulas perdiam validade quando a terra era doada de novo. A preocupação régia era, pois, de aferir a validade dos direitos extraordinários em uso, impondo, sempre que possível, limites ao seu usufruto. Relativamente a este ponto concreto haveria que apurar alguns dados que permitissem uma base de sustentação mais informada para algumas imagens historiográficas que se estabeleceram e para as quais seria importante estabelecer uma cronologia mais fina do peso do senhorialismo. 10 António M. Hespanha, História das instituições…, p. 296-7 92 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Alguns privilégios jurisdicionais extraordinários da Casa de Bragança Duques de Bragança «Possa ter chancellaria de sua Casa e de suas terras, e leuar os direitos della» (alvará de 02/10/1617) «Os offiçiaes das mesmas terras se chamem por elle na forma da lej noua» (alvará de 02/10/1617) Que seus ouuidores passem cartas de seguro (alvará de 02/10/1617) «Possa prouer os offiçios de escriuães dos orfãos, taballiães, escriuaes das camara e Porteiros dellas e assj os que ouuerem de seruir ante os juizes de fora como ordinarios con declaração que os nam podera prouer sendo os ditos offiçios da apresentação e prouimento das camaras» (alvará de 02/10/1617) «Que possa em suas terras jsentar dos encargos dos conçelhos as pessoas que lhe parecer e isto per mandado e nam por priuillegio» (alvará de 02/10/1617) «Que faça escudeiros as pessoas que lhe parecer sendo Vassalos seus das suas terras posto que autoalmente não estejão no seruiço de sua casa» (alvará de 02/10/1617) Juizes de fora em: Bragança, Chaves e Barcelos (carta régia (c.r.) de 15/05/1549); Portel (c.r. de 24/06/1549); Vila Viçosa (c.r. de 09/04/1551); Monsaraz (c.r. de 30/03/1566); Arraiolos, Borba e Alter do Chão (c.r. de 03/01/1567); Vila do Conde (c.r. de 19/06/1608); Montalegre (c.r. de confirmação de 28/09/1627) Poder para por meirinho: Portel (c.r. 06/03/1567); Monforte (c.r. de 21/05/1579) Dízimas novas do pescado de: Vila Franca, Castanheira, Povos, Azambuja, Benavente, Samora Correia, Alcochete, Alhos Vedros, Lavradio e Barreiro (c.r. de 12/02/1530) Cobrar e despender as terças dos concelhos em todas as suas terras (c.r. de 01/10/1544) 11 Ordenações Filipinas11 «(...) não levarão ... Chancellaria alguma das cartas e sentenças, que passarem» a) «E não se chamarão Senhores das terras, nem os Juizes e Tabelliães se chamarão por elles» a) Prerrogativa régia (Hespanha, 285) Tabeliães – por norma são providos por carta régia e depois de examinados pelo Desembargo Paçoa)12 «(...) que não dêem Cartas nem Alvarás de privilegios à pessoas algumas, per que os hajam por privilegiados e escussos dos encarregos e servidões dos Concelhos (...)»a) «(...) [não] dará Cartas de Scudeiro a outras algumas pessoas, salvo, aqueles, que criarem, e verdadeiramente tiverem por scudeiros, trazendoos a cavallo em sua casa» a) «(...) defendemos a todos os Senhores de terras que não ponham nellas Juizes de fora e deixem os concelhos usar de suas eleições (...)»a) «(...) que não ponham em suas terras, nem em algua dellas, Meirinho (...)»a) Dízima novas do pescado não costumam ser doadas4 Não podiam ser doadas13 Ordenações Filipinas, Livro II, Tit. XLV, citado no quadro como a) António M. Hespanha, História das instituições…, p. 302 refere que este privilégio no séc. XVII era detido pelos condes de S. João, Castelo Melhor, Faro, Linhares, Miranda, Vale de Reis, Unhão, Calheta, marquês de Castelo Rodrigo e duques de Aveiro, Torres Novas e Vila Hermosa. 13 António M. Hespanha, História das instituições…, p. 294 12 RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 93 Exponho uma hipótese, apoiada num caso. Quanto à hipótese são conhecidas as assunções de que o período da Monarquia Dual teria compensado a nobreza portuguesa do afastamento da corte com o reforço do seu poder a nível local14. O que concorda com o já aludido aumento da área de jurisdicionalismo senhorial no Reino e também com outra imagem fixada pela historiografia que é a da proliferação de mercês régias como meio de persuasão do grupo nobiliárquico, em 1580. Todavia não se estudaram as posteriores práticas dos Habsburgo relativamente a esta matéria, que permitiriam avaliar a consistência de tais ideias e os ritmos evolutivos. Sabe-se que a Casa de Bragança manteve o essencial dos seus direitos, mas só após bem sucedidas demandas com a Coroa15, havendo outros dados que sugerem que a Coroa levou a cabo uma política de fiscalização estreita, tendendo a restringir os privilégios em uso pelos donatários, sempre que as provas apresentadas eram duvidosas e até a promulgar legislação geral mais restritiva. O caso concreto refere-se à Casa de Aveiro que desde a década de 1580 viu uma série de alegados privilégios anteriores serem postos em dúvida pelos tribunais régios. Em 1 de Setembro de 1590 dizia-se que se viram as doações e privilégios que tinha e usava o 3.º duque de Aveiro, D. Álvaro, e que por eles se demonstrava poder o duque usar dos privilégios e doações concedidas ao 2.º duque, D. Jorge e este dos concedidos ao 1.º duque, D. João. Dessa forma, parecia que não havia dúvida que o duque D. Álvaro podia gozar do privilégio que se questionava e que era o de deverem ir as apelações dos seus almoxarifados ao oficial da sua Casa que fosse juiz da sua fazenda e depois disso voltar à casa do Porto ou ir à Casa da Suplicação. De qualquer modo e dada a importância do caso, mandava-se que se revissem os papeis16. O pleito que ainda corria em 1621, mas se iniciara muito antes, bem como a consulta de 1589 são outros exemplos do afã de controlo que a monarquia dos Habsburgo desenvolveu. Desta feita, revelador do signifi14 Jorge Borges de Macedo, «Nobreza na Época Moderna», in Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão, 2.ª ed. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, vol. IV, p. 388. Esta tese foi acolhida por Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquia Hispanica (1580-1640). Filipe II, Las Cortes de Tomar y la Genesis del Portugal Católico, Madrid, Universidad Complutense, 1987, vol. I, pp. 481-522. 15 Podem citar-se a este propósito a carta régia de 18 de Novembro de 1615 e o alvará de Lisboa, 2 de Outubro de 1617 (que abaixo se extracta) e que põem fim às demandas entre a Casa de Bragança e o Procurador da Coroa, publicados em Collecção Chronologica da Legislação Portuguesa …, pp. 183 e 258-259. 16 Biblioteca da Ajuda (BA), 44-XIV-4, fl. 59v. 94 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS cado político da dada de ofícios e que creio que tem uma incidência que transcende a casa ducal de Aveiro17. Com efeito, o duque de Aveiro mantinha há algum tempo um contencioso com a Coroa sobre a extensão dos direitos nas suas terras. Na primeira situação18 estava em causa o facto de embora estando em posse do direito de prover as serventias de todos os ofícios de suas terras por si e pelos duques seus antecessores (ao abrigo das suas doações como constava da sentença), o monarca ter mandado proibir que os donatários as provessem. O duque entendia que ele não se devia incluir nessa determinação “por razão da dita posse em que estaua”. Mas essa alegação foi indeferida. Ora, adiantava o Aveiro, depois dessa proibição, o rei tinha concedido ao duque de Bragança, ao marquês de Alenquer19, ao marquês de Castelo Rodrigo e ao conde de Lumiares (filho deste) poder para prover serventes dos ofícios de justiça das suas terras, como constava dos traslados e alvarás que anexava ao processo. E entre essas provas estava o traslado da carta régia de 2 de Outubro de 1617 em que se concediam amplos poderes ao duque de Bragança que se extracta “avendo respeito a mo pedir por sua carta o duque de Bragança meu muito amado e prezado primo e a seus serviços e muitos merecimentos de sua casa, e por lhe fazer merçe ej por bem que elle possa ter chancellaria de sua Casa e de suas terras, e leuar os direitos della e que os offiçiaes das mesmas terras se chamem por elle na forma da lej noua e que seus ouuidores passem cartas de seguro nos casos em que os corregedores das comarcas as podem passar na forma da ordenação e que possa prouer os offiçios de escriuães dos orfãos, taballiães, escriuaes das camara e Porteiros dellas e assj os que ouuerem de seruir ante os juizes de fora como ordinarios con declaração que os nam podera prouer sendo os ditos offiçios da apresentação e prouimento das camaras, e que possa em suas terras jsentar dos encargos dos conçelhos as pessoas que lhe parecer e isto per mandado e nam por priuillegio, e que proueja nas mesmas suas terras os offi17 Um outro exemplo de fiscalização da extensão das jurisdições surpreende-se na consulta do Desembargo do Paço sobre a correição feita na vila de Alhandra para verificar o direito da jurisdição e dada de ofícios do arcebispo de Lisboa, em finais da década de 1580. Não conseguindo este apresentar documentos comprovativos desses direitos, rei decidiu contra ele, baseando-se na ausência de títulos e no facto de, dado as Ordenações haverem sido impressas 70 anos antes, não haver lugar a alegar “posse imemorial” como o arcebispo fizera, BA, 44-XIV-4, fls. 113-115. 18 British Library (BL), Egerton, 1136. 19 A afirmação era verdadeira como se comprova pelo conteúdo da carta régia de doação da jurisdição de Alenquer de Madrid, 30 de Novembro de 1616 transcrita em Claude Gaillard, Le Portugal sous Philippe III d’Espagne. L’action de Diego de Silva y Mendoza, Grenoble, Université de Langues et Lettres de Grenoble, 1982, pp. 395-396. RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 95 çios de Procuradores do numero em pessoas aptas e sufficientes não excedendo nisto o numero que delles costuma aver Os quaes serão primeiro abellitados per mjm ou pello meu desembargo do paço, e que das duas partes dos Rendimentos dos conçelhos das suas terras possa mandar despender o que lhe parecer nas obras do bem publico dellas com declaração que as obras serão somente pontes, fontes, calçadas, estradas publicas e outras desta callidade // e que proueja as seruentias dos offiçios de justiça das suas terras assj e da maneira que seus antepassados o fizeram e que faça escudeiros as pessoas que lhe parecer sendo Vassalos seus das suas terras posto que autoalmente não estejão no seruiço de sua casa, e assj ey por bem que conforme a isto cesse a demanda que o Procurador de minha Coroa tem movido ao Duque o que tudo assj me praz sem embargo de quaesquer leis e ordenações que em contrario aya e mando as justiças offiçiaes e pessoas a que o isto pertençer cumprão…”20. bem como o traslado da sentença da Relação de 15 de Fevereiro de 1603 em como se tinha achado por bem provida a serventia que o duque de Aveiro fizera de um ofício por estar em posse por si e por seus antepassados. Requeria, por isso, privilégio idêntico ao dos citados senhores. O segundo caso dizia respeito ao provimento de ofícios por renúncia do anterior titular. A descrição do episódio é longa, mas importante pelo teor contraditório das alegações dos juristas do Desembargo do Paço chamados a depor. Dizia respeito a um caso concreto e fora suscitado pelo pedido de confirmação régia do cargo de tabelião do público e judicial da cidade de Coimbra outorgado pelo duque de Aveiro, após a renúncia que um outro oficial fizera nas mãos do duque. Antes de proceder à emissão da provisão, o rei mandou que se vissem as cláusulas das doações do duque para certificar se ele detinha poderes para prover por renúncia. Ora o caso oferecia dúvidas, porque pelas doações parecia que não o podia fazer; mandou-se, por isso, para análise pelo Procurador da Coroa que foi de parecer que não podia. O duque objectou, “alegando muitas coisas e razões, por onde diz que pode prover por renunciação, e que neste costume e posse estavam os Duques seus antecessores”. Visto na Mesa do Desembargo, três desembargadores sustentaram que não, excepto quando os ofícios vagassem por morte, ou que renunciando o proprietário nas mãos do rei, este lhe aceitasse tal renúncia e houvesse então o rei o tal ofício por vago, como se fosse por morte. Nesta última hipótese, o duque poderia apresentar o dito ofício, mas tal não ocorria no caso em apreço. A outro desembargador, porém, pareceu que o duque donatário podia apresentar os ofícios de tabeliães que estivessem vagos tanto por morte, 20 Alvará de Lisboa, 2 de Outubro de 1617, BL, Egerton, 1136, fls. 8-8v. Como já se referiu José Justino de Andrade e Silva transcreve-o na íntegra em Collecção…, pp. 258-259. 96 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS como por renúncia, porque isso parecia conceder-se na doação antiga que se oferecia interpretada e declarada pelo costume que se usou sempre nas ditas apresentações como constava das certidões que se ofereceram e, também, porque em direito se igualava o poder de apresentar benefícios ao que se tinha no apresentar ofícios. E no que referia aos benefícios, quem tinha poder para apresentar ou colar os vagos o fazia quer fossem vagos por morte ou por renúncia. E acrescentava: “e que os inconvenientes que se apontam que intervêm na apresentação do dito ofício vago por renúncia se são todos se mostrar licença de Sua Magestade para se fazer tal renúncia, pois já o donatário não faz mais que apresentar no ofício que Sua Magestade há por bem que vague com efeito por renuncia do proprietário, nem parece em contra isto dizer-se as ditas certidões seriam acaso passadas, porque em negócios de tanta importância, não é de crer que os desembargadores do paço antigos dessem aos reis passados seu parecer sem muita consideração, nem parecia que o contrário disto foi julgado na Relação porque se fez muita diligência sem se achar feito em que houvesse sentença em contra disto, antes se afirma por oficiais do juízo dos feitos da coroa que num feito que trouxe Francisco de Sampaio com o Procurador da Coroa se julgou que podia o donatário apresentar o ofício vago quer fosse por morte quer por renúncia, precedendo para ela licença de Sua Magestade”. Pese embora esta longa alegação o caso foi indeferido pelo monarca que aceitou o parecer maioritário do Desembargo do Paço21. Outra questão onde a disciplina régia se fazia sentir com acuidade era a da criação de novos ofícios. Por carta régia de Novembro de 1603, ordenava-se que fossem extintos os ofícios que o duque de Aveiro criara de novo em suas terras e dera de serventia a várias pessoas22. As Ordenações fixaram este direito real e tinha valia mesmo nas donatarias ultramarinas, onde o constante esforço de ocupação e desenvolvimento das terras o justificaria com maior pertinência23. Parece assim que a análise na longa duração é indispensável, embora seja, claro está, trabalhosa. Como disse antes, exigiria a análise dos privilégios e clausulado das novas doações e das confirmações régias feitas aos senhores de terras. Tal avaliação poderia sugerir uma tentativa de limitar o tipo de territorialização do poder nobiliárquico, como aquela a que 21 BA, 44-XIV-4 (n.º28), fl. 19. Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias Provinciales, cód. 1487, fls. 41-42v apud Boletim da Filmoteca Ultramarina. 23 António Vasconcelos de Saldanha, As capitanias do Brasil…, pp. 189-191. 22 RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 97 aludi relativamente à casa de Aveiro. Igualmente relevante neste ponto seria apurar a tendência para a maior ou menor dispersão na titularidade de senhorios. Ou seja, mais senhores de terras, mas com base territorial mais diminuta e menos poderes sobre as mesmas. Administração senhorial. Paternalismo e conflitualidade O segundo ponto, e ao qual já fizemos uma breve referência, refere-se à importância da governação presencial para promover o maior controlo político sobre as terras. No caso dos duques de Bragança sabemo-los sediados em Vila Viçosa, a partir de onde controlavam uma extensa, mas dispersa área territorial. Que não governavam presencialmente. A sua gestão era, por isso, mediada por agentes administrativos próprios, num organigrama que não se distinguia particularmente do da Coroa. Utilizavam a mesma matriz formal, com lógicas bastante similares, num modelo semelhante ao da administração régia, tal como, de resto, ocorria nos demais reinos peninsulares24. Muitos dos privilégios recebidos diziam justamente respeito à gestão dos espaços senhoriais, tanto no que respeita à nomeação de pessoas, quanto à aplicação da justiça e à capacidade tributária. É verdade que a Casa ducal de Bragança detinha privilégios que lhe asseguravam a nomeação directa não apenas dos ofícios locais como também de ofícios de justiça e fazenda destinados a intermediar os assuntos das terras com o centro do senhorio. Se esse fenómeno lhe assegurava os recursos humanos necessários para o exercício do poder, também há que destacar que a estratégia de integração de membros de parentelas de elites locais na corte ducal em foros de moradores foi a este título absolutamente decisiva. Esses elementos agilizaram a comunicação entre o paço e as terras e ajudaram a amortizar tensões com a sede do senhorio. Os diferentes tipos de mercês dispensados pela casa foram estratégicos nesse processo. Exercitava-se a liberalidade para harmonizar relações interpessoais através de jogos de compensações, de trocas e de negociação dos diferentes interesses em presença. É o que se verificava na confirmação das câmaras, no patrocínio às misericórdias, confrarias e conventos, na dada de ofícios locais, na concessão de tenças, de benefícios eclesiásticos, de dotes, de esmolas, nos apoios financeiros ao estudo, a deslocações, a compra de bens. De tudo um pouco. E é quase certo que exemplos similares se podem estender a outras casas senhoriais. 24 David García Hernán, Aristocracia y señorío en la España de Filipe II. La Casa de Arcos, Granada, Universidad de Granada / Ayuntamiento de San Fernando / Ayuntamiento de Marchena, 1999. 98 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Será, por isso mesmo, natural esperar que os agentes senhoriais e o funcionalismo local de nomeação dos donatários tivessem maior capacidade negocial para, junto das populações, aquietar más vontades, comportamentos indisciplinados ou contrários aos interesses da casa. Um exemplo expressivo é o do meio utilizado pelo duque D. João II (futuro D. João IV) para sossegar os motins no Alentejo, por ocasião dos levantamentos anti-fiscais. Em carta enviada para Sousel em Setembro de 1637, o duque pedia a intervenção do seu procurador do concelho, Gonçalo Soeiro de Azevedo, para mobilizar os seus parentes a fim de apaziguar os tumultos «cada dia me disem que ha nessa Vila motins ou esperanças de os aver e que o pouo trata de soltar presos e queimar cartorios liuros e papeis da Camara naõ sendo cousa de que elles possaõ alcanssar bem nenhum particular nem o pouo utilidade algua e por me paresser que so vos com vossos parentes podereis ser o meo para isso se aquietar vos quis escreuer esta...»25. Mas outra situação possível, e contraditória com o exemplo acima exposto, era a de a dada de ofícios ser utilizada pelos senhores para recompensar serviços prestados à casa senhorial, sem atender à naturalidade das pessoas em causa. Com esta outra estratégia procurava-se garantir uma gestão dos recursos locais favorável ao donatário porque isenta das solidariedades de raiz local. E que se assemelha à figura dos juízes de fora, diga-se. Neste último caso privilegiavam-se factores propiciadores do exercício da autoridade, correndo embora o risco de produzir relações mais tensas nas terras. Podem ser adiantados exemplos para o século XVI para as casas de D. Jorge, depois duques de Aveiro, dos marqueses de Vila Real ou mesmo do infante D. Luís, um pouco na linha do trabalho sobre o governo de D. Jorge, em que Cristina Pimenta revela como os ofícios locais das terras das ordens de Santiago e de Avis eram muito frequentemente atribuídos a criadagem da sua casa senhorial ou a cavaleiros das ordens, sem cuidar da sua naturalidade ou local de residência26. Numa abordagem um pouco distinta, mas talvez ainda mais interessante, verificamos como no século XVI podia ser a própria Coroa a reforçar a influência política das casas nos respectivos senhorios, pois a análise da chancelaria de D. Manuel demonstra que os ofícios das terras do marquês de Vila Real que eram da dada régia foram providos em criados do 25 José Mendes da Cunha Saraiva, Cartas do Duque de Bragança a Gonçalo Soeiro de Azevedo (1632-1640), sep. Publicações do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Lisboa, 1942, p.16. 26 Maria Cristina Gomes Pimenta, As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média. O governo de D. Jorge, GEsOS / Câmara Municipal de Palmela, Palmela, 2002. RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 99 marquesado numerosas vezes. Talvez por isso, um século mais tarde (1622), por ocasião de uma das suas partidas para o governo de Ceuta, o 1.º duque de Caminha não hesitava em afirmar que “todos los caballeros y personas principales de la ciudad de Leyria [era o seu local de residência, mas sobre a qual não tinha jurisdição] son criados y paniguados suios, y todos quedan para seruiço de la duqueza”27. Seria então importante conhecer qual destes comportamentos era dominante nas relações entre as casas e os respectivos senhorios e avaliar depois se haveria modelos senhoriais mais e menos paternalista a fim de medir o impacto dessas diferentes atitudes na conflitualidade com as terras e os vassalos. Em todo o caso, a correspondência que as terras mantinham com os donatários é indiciadora de fluxos regulares de informação, fosse para pedir instruções, acatar ordens, confirmar negócios. Para a Casa de Bragança conhecem-se numerosas situações28 que denotam o elevado nível de conhecimento que os duques tinham das suas terras. Um bom exemplo disso, neste caso associado às sociabilidades locais, está de resto evidenciado na necessidade de obter em 1627 a confirmação régia do privilégio para que, quando constasse ao duque que as pessoas de Vila Viçosa conversavam e se comunicavam como amigos, fossem impedidas de servir juntas nos ofícios e cargos dos concelhos quando fossem eleitos, não obstante terem cartas de inimizade uns com os outros29. Mas a existência de canais de comunicação eficazes ocorria igualmente em outros senhorios. As cartas do infante D. Duarte para a câmara de Vila do Conde, dos duques de Aveiro para a de Aveiro30, a proximidade do arcebispo de Braga relativamente aos assuntos desse município31 são exemplos possíveis. Muitos outros existiriam seguramente e revelam de forma muito clara o elevado nível de controlo político dos senhores sobre os assuntos locais e também a importância da intermediação senhorial na obtenção de privilégios ou na solução de questões com a Coroa. Vejam-se 27 BL, Egerton, ms. 1136, fl. 43. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança. 1560-1640. Práticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, pp. 243-245. 29 Arquivo da Casa de Bragança (ACB), ms. 17, fl. 31v. 30 Francisco Ferreira Neves, A Casa e Ducado de Aveiro. Sua origem, evolução e extinção, Aveiro, 1972. 31 Acordos e vreações da Câmara de Braga no Senhorio de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, 1566 (VIII)-1567, Braga, Câmara Municipal, 1979 e Acordos e vereações da Câmara de Braga nos dois últimos anos do Senhorio de D. Frei Bartolomeu dos Mártires:1580-1582, Braga, Câmara Municipal, 1973. 28 100 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS as numerosas cartas de privilégio a terras de senhores contidas nas chancelarias onde se faz expressa menção que a mercê foi concedida pela intercessão, ou para fazer mercê a este ou aquele senhor. Ou ainda, e usando as palavras do próprio duque de Aveiro na carta que em 1572 dirigiu ao juiz, vereadores e procurador do concelho da sua vila de Aveiro, “quanto ao que me dizeis (…), eu falarei logo niso a elRey meu senhor (…), mas porque todas estas cousas Requerem algum vagar quis fazer esta [carta] por que saibais que me he dado vosa carta E que trabalharei por fazer o que me pedis”32. Estas práticas paternalistas, que muitos autores espanhóis também constataram existir nos reinos vizinhos33, amorteciam muitas vezes os descontentamentos, mas deve assinalar-se que tinham menos eficácia quando o mal-estar era provocado pelo rigor na cobrança dos direitos senhoriais. Diga-se a este propósito, reiterando as constatações feitas por Nuno G. Monteiro há alguns anos34 e no já citado trabalho meu sobre a casa de Bragança35, que os maiores focos de conflitualidade entre os donatários e as populações se reportavam às relações económicas. O que é interessante constatar é o quase sistemático recurso aos tribunais para resolução dos diferendos inconciliáveis por vias informais, afastado de vez que estava o uso medieval da coação física36. Introduzia-se assim um mediador, teoricamente imparcial, destinado a avaliar a pertinência e validade jurídica dos argumentos em confronto, sentenciando depois em conformidade. Julgo, todavia, importante sublinhar que o que se verificava em muitos destes casos era a reacção dos povos contra direitos efectivos dos donatários e não abusos na sua cobrança por parte destes. A prová-lo estão as numerosas sentenças e despachos régios com fundamentação clara que deram razão aos senhores. Veja-se um caso claramente difícil que opunha 32 Francisco Ferreira Neves, A Casa e Ducado de Aveiro…, p. 30. Ignacio Atienza Hernández, «El Señor Avisado: Programas Paternalistas y Control Social en la Castilla del Siglo XVII», Manuscrits, n.º 9, pp. 155-204; Idem, «Pater Familias, Señor y Patrón: Oeconómica, Clientelismo y Patronazgo en el Antiguo Régimen» in Reyna Pastor (comp.), Relaciones de Poder, de Producción y Parentesco en la Edad Media y Moderna, Madrid, CSIC, 1990, pp. 411-458; David García Hernán, Aristocracia y señorío en la España de Filipe II…. 34 Nuno G. F. Monteiro, «Lavradores, frades e forais: Revolução Liberal e regime senhorial na comarca de Alcobaça (1820-1824)» in Elites e Poder Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003, pp. 215-299 (primeiro editado em 1985 e 1986). 35 Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança… 36 Mafalda Soares da Cunha, “Poderes locais nas áreas senhoriais…” (no prelo). 33 RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 101 o duque de Aveiro à cidade de Coimbra sobre a arrecadação das jugadas. O demorado diferendo sobre a matéria fora resolvido entre as partes por um contrato perpétuo, mas que não estava confirmado pelo rei. Em 20 de Julho de 1591, colocava-se a questão de o confirmar ou não, até porque o duque mudara de ideias. Os pareceres dos desembargadores do Paço dividiram-se: a) dois achavam que o rei devia confirmar “por ser em euidente proueito dos Bens da Coroa, em grande quietação da dita cidade e Pouo della”, tanto mais que ambas as partes o requeriam “e se auerem com isso de escusar as grandes oppresões e molestias que o Pouo de aquella cidade padecia nas execuções que se fazião pellos rendeiros das ditas jugadas com grande desordem e violensia, e que com isso auer effeito fica ao donatario aquella renda de melhor condição que todas as de seu estado, sendo atée aggora a que pior se arrecadaua, e com mais clamor do Pouo, e se lhe dá muito mais do que nunca rendeo e parese que o Duque deue ser pago conforme ao dito contrato”; b) outros dois alegavam desfavoravelmente, pois “não he justo impedir sse ao Duque a arrecadação dos dereitos de jugadas que lhe são deuidos e que assim os deue Pedir e arrecadar ordinariamente e se a Cidade tiuer algua duuida, ou embargo a não pagar podera otrosj requerer sua justiça como lhe pareser e quanto a confirmação que a cidade Pede do concerto e contrato que fez com o governador do Duque de aveiro por o Duque aggora não consente antes antes o contradiz pareçe se lhe não deue confirmar espeçialmente pello dito contrato ser nullo sendo feito sem liceça e authoridade de Sua Magestade, e Posto que fora valido, enquanto não há confirmação de sua Magestade se pode o Duque apartar delle”37. O que talvez este tipo de comportamento indicie é atitudes de maior rigor na gestão dos direitos senhoriais que pesavam, então, mais aos povos, dando azo a oposições e conflitos. Tal ocorreria, sobretudo em épocas de maiores dificuldades económicas. Talvez também porque havia regiões onde os direitos que estavam estipulados eram de facto pesados, ou mesmo muito pesados para os povos (penso no terço, quarto ou até oitavo da produção que eram cobrados nalgumas áreas). O que nesse caso configurava um sistema opressivo. Não se tratavam, porém, de abusos que se pudessem imputar aos donatários ou mesmo ao rei. Ora, a questão colocada nestes termos pode, talvez reorientar, a análise mais aprofundada destes tópicos, que admito carecerem de estudos globais, ou seja, trabalhos com quadros geográficos alargados à escala do reino e que permitam, portanto, avaliações mais precisas do impacto dos diversos tipos de direitos senhoriais no desenvolvimento agrário e na paz social. 37 BA, 44-XIV-4, fls. 187v-188. 102 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS É, no entanto, verdade que não se encontram registos de queixas contra senhorios muito numerosos. Na realidade, tenho topado mais com registos de conflitos inter-senhoriais38, entre os senhores e os procuradores da Coroa, inter-municípios e inter-instituições locais ou até entre municípios e a administração periférica da Coroa39 do que com queixas de municípios e de vassalos das casas senhoriais contra os seus donatários. Já o disse em anterior trabalho e creio dever reiterá-lo, não obstante a existência de algumas excepções significativas40. Os elementos explicativos dessa escassez reivindicativa podem assentar na eficácia desta gestão paternalista, embora se não devam descartar dois outros factores que, embora de natureza distinta, podem colaborar na ocultação dos conflitos. Um primeiro está associado ao preço da justiça. Sabe-se que a litigância tinha custos económicos elevados, sobretudo se os processos se prolongavam com embargos e recursos sucessivos. A capacidade financeira para assegurar a sua continuidade era desigual, beneficiando claramente os donatários, sobretudo aqueles que disponham já de uma estrutura judicial própria. Penso, por exemplo, nos solicitadores e advogados das casas senhoriais sediados junto dos tribunais centrais. As possibilidades de influência também jogavam a favor dos senhores, quer pela capacidade de dissuasão de testemunhas menos favoráveis, quer pelas 38 Alguns exemplos avulsos num tema que mereceria atenção e uma tipologia de análise, pois enquanto muitos conflitos inter-senhoriais decorrem de partilhas, outros prendem-se com rivalidades locais, outros com disputas de preeminências: António Dias Miguel, António Pereira Marramaque, senhor de Basto. Subsídios para o estudo da sua vida e da sua obra, sep. Arquivo do Centro Cultural Português, vol. XV, Paris, 1980; Pleito entre o duque de Pastrana e o marquês de Alenquer sobre Chamusca e Ulme, BL, Egerton, 1136, fls. 50-90 que correu pelo menos entre a década de 1590 e a de 1620. 39 Dois exemplos a partir de consultas do Desembargo do Paço (BA, 44-XIV-4): 1) Após queixa da câmara de Pinhel justificada por uma provisão de dada por D. Sebastião em que se dizia que os corregedores da comarca lá deviam residir seis meses e outros seis meses em Trancoso, o que não ocorria, ficando eles muito mais tempo em Trancoso, o rei decide que a provisão era antiga e já desadequada, mas que o corregedor devia atender ao caso, procurando residir o maior tempo possível em Pinhel. (1689/09/23), fls. 26v-27; 2) Queixa, desta vez da câmara de Abrantes, por os julgadores que faziam a residência ao corregedor e provedor de Tomar obrigarem os moradores de Abrantes a deslocar-se a Tomar para testemunharem, pelo que sugere que os sindicantes sediassem quinze dias em Abrantes. O argumento colheu, pelo que desembargadores opinaram que um terço do tempo das residências fosse passado em Abrantes. O rei deu então despacho favorável (1590/11/27), fl. 103. 40 Cf., em particular, António de Oliveira, «A violência do poder dos cavaleiros de S. João no período filipino» in Estudos e Ensaios em homenagem a Vitorino Magalhães Godinho, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1988, pp. 263-276. RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 103 pressões junto do corpo de juristas dos tribunais. O que gerava casos de suspeições e os necessários pedidos de substituição dos juizes ou desembargadores, com as demoras e custos inerentes. Há casos conhecidos que o revelam com amarga clareza. Citamos três. Um associado à casa de Aveiro, outro à casa de Bragança e outro à de Alenquer: No já citado processo analisado no Desembargo do Paço por causa dos direitos do duque de Aveiro a prover um ofício por renúncia, o duque objectara das alegações apresentadas pelo Procurador da Coroa. Na carta régia de 8 de Outubro de 1589 que deu despacho ao caso, o rei acrescentava um alerta relativo à irregularidade que se havia cometido no Desembargo do Paço ao dar vista dos papeis do Procurador da Coroa ao duque de Aveiro e mandava, por isso, “advertir disto os desembargadores do Paço pera que não aião nunca as partes uista das informações que se fiserem sobre suas pertenções”41. O argumento expresso por um desconfiado litigante contra os duques de Bragança, algures entre 1596 e 1605, é também particularmente impressivo. Dizia que tinha fundadas suspeições, visto o autor da queixa (duque de Bragança) ser senhor das vilas de Vila Viçosa, Arraiolos e Evoramonte onde deveria decorrer o inquérito e onde «elle daua os officiais e os aprezentaua e lhe fazia delles merce e erão todos seus vaçalos e escriuaes e Almoxarifes juizes e mais pessoas da dita vila e todos lhe obedecião e fazião tudo o que elle lhes mandaua e era seruido»42. Quanto ao outro queixava-se o povo de Alenquer do Marquês, acusando-o de, através do seu advogado, utilizar todos os estratagemas jurídicos possíveis e imaginários “excepciones, peremptorias, declinatorias, dilatorias, y embargos” para atrasar a justiça. O negócio já fora interrompido três vezes e queria o marquês interromper mais uma. Ora, havia cinco anos e sete meses que o povo perseverantemente requeria justiça, no que já gastara muitos mil ducados, contribuindo nisso os pobres trabalhadores que deixavam de comer. Pediam, por isso, particular atenção por esse dinheiro ser ganho com o suor do rosto e sangue de mãos, invocando ainda o amor de vassalos que tinham para com Sua Magestade43. O segundo argumento, ou melhor, advertência, está associado à escassez da documentação de natureza judicial disponível para estas épocas. Esta situação torna difícil a avaliação dos níveis e tipo de litigância exis- 41 BA, 44-XIV-4, fl. 19. iniciado em 1596 com sentença favorável à Casa em 1605 no processo contra um tal Bento Fernandes Bota e sua mulher, reguengueiros de Evoramonte, ACB, ms. 19, fl. 37v. 43 BL, Egerton, 1135, fls. 338. 42Processo 104 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS tente, mas deve dizer-se que, apesar de tudo, sobreviveram alguns códices do Desembargo do Paço (sobretudo relativos ao Período da Monarquia Dual e aos quais, de resto, já fiz algumas referências), e que o Arquivo Geral de Simancas contém abundante e riquíssima informação relativa às decisões da Monarquia e dos seus conselhos. O que significa que a análise de processos é possível, como se disse, e o que deles sobressai não é a litigância entre senhores e terras ou vassalos, mas uma conflitualidade muito mais plural e multifacetada44. Territorialização do poder senhorial e sociologia das elites políticas locais O terceiro e último ponto prende-se com o perfil social dos titulares dos ofícios locais. Camaristas e não só. É uma chamada de atenção que reforça o que atrás se disse e um pouco no sentido do que Nuno G. Monteiro e Teresa Fonseca referiram nos textos que integram este livro e que, a meu ver, se articula também com o tema da territorialização do poder senhorial. Viu-se que os níveis de conhecimento das terras (recursos económicos e pessoas) que os donatários mais antigos e com maior amplitude de privilégios jurisdicionais detinham, complementados com o enquadramento privilegiado que a Coroa lhes proporcionara, confirmam as ideias de um poder nobiliárquico muito territorializado que, pelo menos até meados do século XVII, se apoiava em redes sociais locais e que lhes permitia transformá-las facilmente em redes de criaturas suas. Clientelas pode dizer-se. Esta territorialização do poder senhorial verificada no continente e até nos arquipélagos da Madeira e Açores não ocorreu, porém, nos senhorios ultramarinos, ou melhor nas capitanias-donatarias. Sem pretensão de acrescentar quaisquer novos dados a este tema, parece-me, no entanto, pertinente chamar a atenção para esta questão, até porque os temas do Império têm sido demasiadas vezes tratados de forma desligada dos do reino de Portugal continental. No já referido estudo de Saldanha, explica-se demorada e detalhadamente os fundamentos jurídicos, práticas políticas e a evolução histórica das capitanias, tomando-as como um fenómeno atlântico. O que aqui importa trazer é que, pese embora a extensa transferência de jurisdições por parte da Coroa, raramente os seus senhores aí residiram, caracterizan- 44 António de Oliveira, Poder e Oposição Política em Portugal no Período Filipino (1580-1640), Lisboa, Difel, 1991, pp. 43-44 lista-nos uma série de confrontos e reivindicações lideradas por populares de muito variado cariz e com variados oponentes, em que avultam as queixas fiscais, seja contra senhores, seja contra os oficiais da Coroa. RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 105 do-se a administração senhorial por um quase total absentismo. O exercício dos poderes judicial e fiscal, bem como a gestão corrente dos territórios, eram subdelegados em agentes senhoriais, nomeados pelos capitães-donatários – os capitães loco-tenentes. Os poderes de nomeação do oficialato local e de confirmação das câmaras constituíram-se, por isso, em instrumentos que reforçavam os poderes destes loco-tenentes, embora estivessem sempre sujeitos a sindicância por parte das justiças do Reino. Na verdade, para além das razões económicas, a posse dos títulos dos senhorios pouco mais interesse despertava junto dos capitães-donatários. As suas relações com os vassalos eram quase sempre mediadas pelos capitães loco-tenentes, sem que estes últimos dispusessem, todavia, da autoridade social que caracterizava os donatários. Eram na maior parte dos casos gente com origens sociais modestas, que se havia distinguido na guerra com os índios ou com os invasores franceses e holandeses e tinham acumulado património fundiário. Transformados em senhores de engenho, formavam as elites locais e foi à sua sombra que se constituíram importantes redes clientelares (de parentela, compadrio, vizinhança, etc.), que às vezes transcendiam até os limites das próprias capitanias. Há relatos de comportamentos bastante arbitrários de bandos de parentelas suas, ofensivos do direito e das instituições reinícolas, e que deram muitas vezes azo a reivindicações, confrontos e revoltas, sendo conhecidos numerosíssimos episódios de protestos armados das populações contra os loco-tenentes que conduziram até a bem sucedidas deposições do posto. Percebe-se então que estes senhorios ultramarinos só importavam aos donatários em função dos rendimentos que deles se podiam retirar. E, na realidade, a própria estrutura de delegação de poderes e de exploração do território tornou muitas dessas donatarias em negócios verdadeiramente ruinosos. É que os rendimentos mais significativos não provinham da cobrança de direitos jurisdicionais, mas sim da exploração fundiária, mineração e comércio de escravos e o absentismo senhorial dificultava a exploração eficaz dessas oportunidades. Daí o abandono a que os seus titulares votavam essas capitanias e até o interesse em se desfazerem delas. Existiam excepções, todavia, que respeitavam, sobretudo, a capitanias nos arquipélagos do Atlântico Norte e algumas do Brasil. Nesses poucos casos (em que se complementavam normalmente as jurisdições com as actividades mais rentáveis atrás referidas) os altos proventos serviram de meio para promoção e ascensão no Reino, apesar de, em boa verdade, tal só se verificar com as fortunas brasileiras (e não foram mais que dois ou três casos) na segunda metade do século XVII. Tal quadro não era exactamente análogo, porém, ao da posse das capitanias hereditárias nas praças do Norte de África. Embora com rigor estas não configurem senhorios jurisdicionais, o certo é que a natureza dos poderes regimentais dos capitães-mores, associada às doações desses cargos 106 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS em propriedade ou em vidas, permitia práticas políticas muito semelhantes. E estas, do ponto de vista formal, podiam até ser abusivas, mas não deixam de traduzir a extensão dos poderes efectivamente exercidos e a importância que os capitães hereditários lhes conferiam. Demonstro-o com uma situação muito expressiva. D. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, nomeado para ocupar o cargo de capitão-mor de Ceuta em 1624, explicava ao rei por carta de 23 de Abril de 1625 que os fundamentos dos conflitos ocorridos durante a sua administração da praça eram o de ter tentado cercear as irregularidades cometidas pelo duque de Caminha ao que este reagira mal, levantando-lhe, logo no primeiro ano de funções, vários pleitos judiciais. Dizia “foi acudir eu pela jurisdição real de Vossa Magestade que ele tinha usurpado e fazer eu conhecer a Vossa Magestade por senhor dessa força fazendo guardar as provisões reais de Vossa Magestade e não as do duque”. Dava como exemplos o caso de um capitão de Infantaria que tinha provisão ducal e régia para servir, mas que usava sempre a do duque, pelo que D. Fernando fizera rasgar essa, pondo-o a servir pela provisão régia, e outros similares relativos aos tabeliães do público, judicial, órfãos e notas. Acrescentava que Diogo Nabo, adail, quisera servir pela provisão do rei e não do duque e “o duque lhe o encontrou de modo que correu a demanda na relação de Lisboa aonde se deve sentença por Vossa Magestade e com isto ser tão claro, o tem o duque hoje embaraçado de maneira que a pessoa que hoje serve esses ofícios é por data do duque e não tam somente os serve por provisão sua, mas tem alvará de lembrança para os poder vender. E destes alvarás tem o duque passado muitos não podendo porque isso só toca a Vossa Magestade em resolução”. Mais dizia “que o duque se havia de maneira que dos moradores desta praça foi tido até agora por rei e senhor dela, e porque eu lhe tenho feito entender que em Espanha não há mais rei que Vossa Magestade me tem o duque capitulado com opróbrios alheios de meu procedimento”. Concluía, por isso “pretendo com isto que Vossa Magestade me tire desta força antes dos três anos e lhe conceda a ele vir a ela, quiça não com tenções de servir a Vossa Magestade senão de tornar a pregar e fazer crer a estes cavaleiros e soldados esta falsa seita em que viviam”. Referia depois serem estas práticas habituais nos capitães hereditários de Ceuta e que os reis passados já tinham tido que se confrontar com elas: “lembrando mais a Vossa Magestade que por outras semelhantes a estas, sendo o marquês de Vila Real pai do dito duque que hoje chegado a esta força com sua mulher e família de mui poucos dias o mandou elrei D. Sebastião que Deus haja ir daqui para Portugal e o veio tirar Dom Lionis Pereira e não mais tornou a esta praça” 45. 45 BN, Ms. 206, fl. 264. Esta carta está transcrita em Isabel M. R. Mendes Drumond RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE 107 É claro que, diversamente das capitanias-donatarias, nas praças do Norte de África a raiz dos seus poderes era militar e, talvez por isso mesmo, tais funções geravam muito prestígio social e político no Reino. A reputação que a posse desses cargos hereditários conferia equiparava-se quase à posse de senhorios jurisdicionais no continente. Permitia, para mais, acumulação de fortunas através dos direitos sobre as razias, resgates e até pirataria, bem como a estruturação de redes clientelares relevantes. De gente que aí servia momentaneamente hábitos ou comendas das ordens militares, mas também de grupos familiares enraizados localmente e que de há muito ocupavam os ofícios principais das praças. Com efeito, o esforço para tutelar e controlar a acção desses oficiais era evidente e está quase de certeza associado ao governo das praças durante os períodos de ausência do capitão hereditário no Reino e, portanto, da gestão de outros capitães-governadores como é o caso com o conde da Torre. Se estas situações são claras em Ceuta com os Meneses, julgo serem seguramente extensível a outros casos. Queria, por isso, chamar a atenção para a necessidade de investigar o tópico da territorialização do poder senhorial mais detalhadamente, não apenas para avaliar a importância (ou não) dos donatários, dos loco-tenentes e dos capitães e governadores na composição e mobilidade social dos grupos de poder locais, como para apurar o impacto ao nível do controlo político sobre as terras. Referi anteriormente que esta questão também pode estar dependente da própria configuração física dos senhorios, uma vez que a descontinuidade territorial podia fomentar uma administração menos presencial e, portanto, mais autónoma dos controlo directo dos senhores. O pedido que em finais da década de 1580 o conde de Sabugal formulou ao Desembargo do Paço espelhava-o e não constituía de forma alguma uma excepção. Solicitava o dito conde que fosse ouvidor de suas terras o corregedor que ficasse mais perto de seus lugares, uma vez que eles estavam muito distantes uns dos outros, em diferentes comarcas, e um só ouvidor não poderia administrar justiça em todas elas. E argumentava: “E se em cada lugar houver de fazer um ouvidor não pode achar tantos letrados em que seguramente desencarregue sua consciência”, chamando a atenção que tal pedido era em proveito evidente das partes46. Parece de facto óbvio Braga e Paulo Drumond Braga, Ceuta Portuguesa (1415-1656), Ceuta, Instituto de Estudios Ceutíes, 1998, pp. 220-221. Diga-se, de resto, que o apêndice documental contém documentação muito interessante que lamentavelmente os autores pouco exploram no corpo da obra. 46 BA, 44-XIV-3 (n.º299), fl. 256. 108 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS que a sindicância ao ser efectuada por um corregedor da Coroa poderia estar menos enfeudada aos interesses directos do donatário, reduzindo assim a pressão que estes podiam exercer sobre os denunciantes e as testemunhas. Igualmente relevante seria apurar o destino social dessas clientelas com a redução da territorialização do poder que vai progressivamente ocorrendo. Como se desfaziam as conexões, que efeitos sociais e políticos a nível local produziam ou se haveria algum mecanismo informal que mantivesse certo tipo de relacionamento entre essas periferias senhoriais e os donatários já transformados em cortesãos. Outra área a carecer de maior investimento de estudos são os casos em que os donatários detinham poderes jurisdicionais menos exuberantes. A hipótese que apoio é a da possibilidade de maior conflitualidade com maior autonomia. Resta confirmar. Conclusão Em síntese, julgo importante sublinhar que sob a aparente capa de uniformidade institucional, os municípios ocultavam uma imensa diversidade de realidades políticas e sociais. Algumas delas têm de há uns anos a esta parte vindo a ser sublinhadas pelos estudiosos. É o caso da dimensão física, do peso demográfico, da importância económica. Não se tem, todavia, atendido suficientemente aos impactos que a diversidade de tutelas quase forçosamente gerava, sobretudo do ponto de vista da história social dos poderes. Ora este tipo de abordagens permite, como espero ter demonstrado, oferecer visões bem mais complexas, dinâmicas e matizadas das realidades sociais e das práticas políticas municipais. As Ordens Militares e o poder local: problemas e perspectivas de estudo FERNANDA OLIVAL (Universidade de Évora – Dept. de História /CIDEHUS) 1. Quando, em 1551, os Mestrados das Ordens de Avis, Cristo e Santiago foram perpetuamente unidos à Coroa, a nível local ainda era relativamente fácil identificar as jurisdições destas Ordens. Se o quadro destas não está traçado, deve-se apenas à falta de investimento em estudos com esse objectivo. Restam, todavia, nos arquivos portugueses materiais que o permitem fazer de forma aproximada, nomeadamente para as Ordens de Avis e Santiago. A doação medieval das terras é um ponto de partida importante, bem como as mercês de jurisdições feitas posteriormente. O numeramento de 1527-32, as visitações, as chancelarias das Ordens, os tombos de comendas e as Memórias Paroquiais de 1758 oferecem também contributos essenciais para os séculos XVI, XVII e XVIII, que devem ser explorados de forma crítica e comparada. Desde logo um dado fundamental a ter presente é que uma comenda nem sempre implicava a jurisdição da terra. Só em poucos casos seria assim. Há até descrições de várias épocas que apontam para tantas comendas e determinadas vilas sob a tutela de uma Ordem. Assim, acontecia, por exemplo, nas Notícias de Portugal de Manuel Severim de Faria. A Ordem de Avis é referida nos seguintes moldes: “(...) ajudando a lançar fora os Árabes desde Coruche, até Alandroal, e Juromenha; em gratificação do qual [serviço] lhe deram os Reis 18 vilas, que são Cabeção, Mora, Juromenha, Alandroal, Noudar, Veiros, o Cano, Fronteira, Figueira, Cabeça de Vide, Avis, Galveias, Alter Pedroso, Seda, Albufeira, a vila de Coruche, o Concelho de Serpa1, Alcanede, e 48 Comendas, que rendem passante 1 Não parece correcta esta referência a Serpa. Cf. sobre a jurisdição da Vila, J. M. Graça Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 109-126. 110 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS de 23 contos”2. Relativamente a Santiago, indicavam-se 47 vilas e lugares e 150 comendas3; a Ordem de Cristo teria recebido 21 vilas e lugares e 454 comendas. A Ordem de Malta teria em Portugal 21 vilas “e lugares” e 24 comendas4. Claro que algumas destas povoações constituíam uma ou mais comendas das mencionadas. Nalgumas localidades, como Elvas, havia comendas de mais do que uma Ordem Militar. Neste caso, de todas, incluindo Malta, mas nenhuma detinha a tutela do concelho, elevado a cidade em 1513. Uma comenda era antes de mais um rendimento com tal título que permitia ao encartado na mesma designar-se comendador. Havia comendas compostas por apenas dízimos, outras apenas por bens rústicos de diferente natureza ou por rústicos e urbanos. Na Ordem de Santiago havia até comendas que equivaliam ao rendimento de fornos (quase todos de pão e um de olarias)5, outras ao rendimento de transporte naval (Barca de Tróia, em Setúbal, e o Batel de Santa Ana, em Alcácer do Sal) e outras equivalentes à renda dos tabeliães. Outros casos igualmente atípicos eram as comendas que se traduziam apenas por uma tença em dinheiro, como era o caso de várias na Ordem de Cristo, nomeadamente das três comendas estabelecidas na Casa da Índia. Não faltavam também exemplos de comendas que aglutinavam recursos diversificados, como era o caso da comenda espatária de Mouguelas, que além de bens rústicos, de bens urbanos e de uma parcelas de certos dízimos, tinha um padrão de juro de 22.000 réis, assente no almoxarifado da Távola Real da Vila de Setúbal6. As situações eram, por conseguinte, Affreixo, Memória historico-económica do Concelho de Serpa, 3.ª ed. fac-similada, Serpa, Câmara Municipal, 1993 (1.ª ed. 1884), pp. 29-62. Faltava, todavia, a Vila de Benavente, que era da Ordem. 2 Ed. com introd., actualização e notas de Francisco A. Lourenço Vaz, Lisboa, Colibri / Escola Sec. Severim de Faria, 2003 (1.ª ed. 1655), Disc. 2, § 17. 3 Seria este um número muito irreal. A Ordem de Santiago em 1611 teria cerca de 85 comendas, não incluindo nestas as da Mesa Mestral - cf. BA, 49-IV-31, fl. 407-456 e Luiz de Figueiredo Falcão, Livro em que se contém toda a Fazenda e Real Patrimonio dos Reinos de Portugal, India e Ilhas Adjacentes e outras particularidades, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, pp. 250-263. 4 Manuel Severm de Faria, Op. cit., Disc.2, § 17. 5 Cf. Francis A. Dutra, “Os fornos da Ordem de Santiago e seus comendadores, 1550-1777”, in Ordens Militares: guerra, religião, poder e cultura: actas do III Encontro sobre Ordens Militares, coord. de Isabel Cristina Fernandes, Vol. I, Lisboa, Colibri - Câmara Municipal de Palmela, 1999, pp. 179-183. 6 Cf. ANTT, Tombos de comendas, n.º de ordem 344-345; ANTT, Conselho da Fazenda Vedoria e Repartição do Reino e Assentamento - Decretos, Mç. 3 (decreto régio de 20 de Setembro de 1762). AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 111 muito variadas. Do ponto de vista territorial, havia também comendas fortemente descontínuas. Não só porque em geral os bens estavam dispersos por diferentes freguesias de um mesmo concelho, quanto, por vezes, as distâncias eram consideráveis, pois não se situavam num só município ou zona. Retome-se de novo a comenda de Santa Maria de Mouguelas: reunia bens no termo de Setúbal (Mouguelas), em Óbidos e um ramo “aprestemado na comenda dalhos Vedros que vale quorenta mill reis”, segundo se escrevia em 15657, além do juro. Assim se mantinha na segunda metade do século XVIII. No caso da Ordem de Cristo, o número de comendas aumentou muito no reinado de D. Manuel, quando foram criadas as “comendas novas” e quando foram instituídas as ditas “comendas da Casa de Bragança”. O primeiro processo iniciou-se em 1514; o segundo em 1517-1519. No entanto, quer num caso, quer no outro, as comendas não abrangiam as jurisdições das terras implicadas. Assim, na Ordem tomarense tal situação abarcava apenas algumas comendas que vinham da época dos Templários, as chamadas comendas “velhas”. 2. Com base no numeramento demográfico mandado fazer por D. João III, é possível ter uma ideia tendencialmente clara das jurisdições das Ordens de Avis e Santiago a Sul do Tejo (com excepção do Algarve). Em 1532, descreveram-se 14 vilas da Ordem de Avis e 30 de Santiago, indicando de quem era a jurisdição e as rendas, além de terras da Ordem de Cristo e de Malta no Alentejo. É possível observar que os rendimentos das Vilas dos dois Mestrados nas mãos de D. Jorge de Lencastre eram em geral partilhados entre a Coroa, a Ordem, o comendador de cada uma e por vezes o Cardeal D. Afonso (na qualidade de Bispo de Évora) e o Cabido eborense. Estas duas últimas figuras marcavam maior presença nas comendas de Avis. Quanto ao senhorio jurisdicional, pertencia sempre à Ordem. A milícia espatária dispõe de um excelente conjunto de visitações para a primeira metade do século XVI. Quer nestas, quer nas de Avis da mesma época referia-se quase sempre a jurisdição do lugar, quando pertencia à Ordem. Em relação à Vila de Cabeço de Vide, em 1538, escrevia-se: “a Jurdição do cyvell e cryme da dita vylla he da ordem e a eleyção dos Juyzes e ofycyaes se faz pelo ouvydor do mestrado e os Juyzes ordenayros são comfyrmados pelo mestre noSo senhor a quall eleyção se faz de tres em 7 ANTT, Ordem de Santiago – Convento de Palmela, L.º 203, fl. 3. 112 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS tres años e asy he o custume em todo mestrado”8. Seguia-se a enumeração dos oficiais postos pela Ordem e a indicação das rendas da mesma (geralmente dízimos) e o elencar das propriedades. Em 1565, relativamente à comenda de Sesimbra, sabe-se que cabia ao comendador, o Duque de Aveiro, a confirmação dos juízes ordinários. Eram eleitos seis, dos quais quem detinha a comenda ratificava 3. Destes, um servia na Vila de Sesimbra e os outros dois em Azeitão (um deles em Coina, de acordo com uma composição feita com o Mosteiro de Santos)9. A apresentação dos oficiais (escrivão da câmara; escrivão da almotaçaria; 3 tabeliães do judicial e notas; contador, distribuidor e inquiridor; juiz dos órfãos; escrivão dos órfãos; partidor e avaliador dos órfãos) à Ordem pertencia também ao poder do comendador10. Esta modalidade do povo apresentar seis juízes seria corrente noutras comendas de Santiago da primeira metade de Quinhentos. Nem sempre, porém, seria o comendador a fazer a escolha seguinte11. Só por concessão do Mestre, como aconteceu com o Duque de Aveiro12, ou com o prior-mor do convento palmelense em relação à Câmara de Cabrela, a partir de 154713, entre outros exemplos citáveis. 8 ANTT, Ordem de Avis, L.º 14, fl. 65v. 9 Cf. ANTT, Mesa da Consciência – Ordem de Santiago/Convento de Palmela, n.º de ordem 163, fl. 76v (visitação de 1516); Bernardo Sá-Nogueira, “Memórias sobre a Ordem de Santiago no tombo velho da Vila de Sesimbra: a jurisdição de Coina (1330-1363), in As Ordens Militares em Portugal: actas do 1.º Encontro sobre Ordens Militares, Palmela, Câmara Municipal, 1991, pp.33-36. 10 Cf. ANTT, Mesa da Consciência – Ordem de Santiago/Convento de Palmela, n.º de ordem 205, fl. 38v-39v; ibidem, L.º 18, fl. 45v-46v. 11 No caso da comenda de Alhos Vedros, na visitação de 1523, fixava-se a regra: “A jurdiçam do ciuel e crime da dita Villa e seus termos he da Ordem, e a eleiçam dos juízes e ofeciaes se faz pell nosso Ouujdor ou quem nos pera jso ordenámos. E os juizes ordenairos sam comfirmados per nós ou pello Comendador que nosso poder tem e pera ello ho povo dar em cada huum anno seis juizes eleitos e nós escolhemos delles dous ou o dito Comendador que confirmámos ou o dito Comendador comfirma e tal he o custume da dita Villa e Mestrado”, Ana de Sousa Leal, Fernando Pires, Alhos Vedros nas visitações da Ordem de Santiago, Alhos Vedros, Comissão organizadora das Comemorações do 480.º Aniversário do Foral de Alhos Vedros, 1994, p.43. 12 Cf. Maria Cristina Gomes Pimenta, As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média: o governo de D. Jorge, Palmela, GESOS – Câmara Municipal de Palmela, 2002, p.157. 13 Cf. ANTT, Mesa da Consciência - Ordens Militares - Papéis Diversos, Mç 24, doc. 176. O prior-mor podia também apresentar os restantes oficiais da Câmara que eram providos por carta da Ordem. Estes poderes são-lhe reconhecidos por uma provisão de 1627. Em 1641, com base nestes poderes, o Prior-mor ainda conseguia apresentar a própria alcaidaria-mor de Cabrela, um lugar que numa consulta da Mesa da Consciência desse ano se considerava que “deve tocar a VMgde., como as das mais villas dos mestrados das ordens melitares”. AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 113 No caso da Ordem de Avis, mesmo no tempo de D. Jorge († 1550), o normal parecia ser o Mestre dar a comenda a alguém, mas o senhorio jurisdicional permanecer nas suas mãos, o mesmo será dizer na Ordem. A possibilidade do comendador apresentar outros oficiais da comenda (tabeliães, escrivães da câmara e dos órfãos, etc.) também seria escassas vezes atribuída. Como, aliás, também acontecia em Santiago14. Relativamente ao período posterior a 1551, as melhores fontes que restam nos arquivos são documentos que foram produzidos pela Ordem de Avis ou que a ela pertenceram. Era das Ordens ligadas à Coroa a que tinha menos comendas, no entanto, equivaliam às mais rendíveis dos três Mestrados. Os estatutos desta milícia, impressos em 1631, resultantes dos definitórios de 1619-1620, foram cuidadosamente preparados. Uma a uma inventariaram as comendas, indicando se a jurisdição estava incluída “no Mestrado” ou “fora dele” (ver mapa). Assim se designava se a comenda estava sujeita ao Ouvidor do Mestrado ou aos corregedores da Coroa, ou, eventualmente a outra entidade. Pelo frequência com a qual se insistia neste ponto, seria um tópico ao qual a Ordem dava muito relevo no início de Seiscentos. A mesma atenção mereciam os diferentes tipos de benefícios eclesiásticos que tutelava. Quanto à jurisdição específica de cada uma das terras, nada era dito - o que não deixava de ser um silêncio inquietante. Seria um dado adquirido? O que se destacava como significativo era a possibilidade de controlo mais global, através do Ouvidor. Era este poder que havia que acautelar em 1619-20. Seria através dele que se fazia a defesa da jurisdição da Ordem15. 14 Cf. 15 Cristina Gomes Pimenta, Op. cit., p. 163. Em sentido inverso, a preocupação com os corregedores seria grande por parte da Coroa, nos inícios do século XVII. Tenha-se presente o seguinte: em 1600, o Conselho de Portugal discutia uma petição do Conde de Ficalho. Em razão do seu título nobiliárquico solicitava a jurisdição da vila, recém criada pelo monarca. E pedia nos seguintes termos: “a dada dos offiçios que nella ha de haver, E se houverem de Criar de novo na forma, E da maneira que tem estas jurisdições, E dadas em suas terras os Marquezes de Villareal, E CastelRodrigo, E outros titulos do Reino, E isto de Juro conforme a Ley mental, assi Como tem a propriedade da dita villa antes de ella o ser”. A resolução a esta consulta, com a letra e rubrica de Pedro Álvares Pereira foi a seguinte e com a qual esteve de acordo o rei: “Pareçeo que se lhe de a jurisdição de ficalho de juro conforme a ley mental com a dada dos officios de escrivães da camara almotacaria E orfãos E tabaliães das notas E possa dar per suas cartas com todas as mais preminençias com que estão dadas jurisdicoes a outras pessoas tirando o privilegio de não entrar corregedor por correição na dita villa por estar junto da raya de castella E ter tam pouca povoação que se não for visitada se pode recear que se acolhão a ella mal feitores de ambos Rejnos” (AGS, Secretarias Provinciales, L.º 1460, n.º 26). 114 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Os mesmos estatutos esclareciam que, no caso de Alcanede, Pernes, Alpedriz e Rio Maior entrava em 1631 o corregedor de Santarém como Ouvidor da Ordem16, uma situação que se manteve ao longo do tempo17. Nesta altura, cerca de 51% das comendas não estavam sob a tutela do Ouvidor do Mestrado, que residia habitualmente em Avis. A maioria destas equivaliam às mais distantes da sede da Ordem, como era o caso de todas as comendas do bispado de Coimbra e da Guarda, de uma situada na arquidiocese de Braga e da comenda algarvia de Albufeira, mas também as havia no Arcebispado de Évora (Freiria de Évora, Vila Viçosa, Estremoz, Borba, Sousel, Moura, Serpa, Beja e Mourão) e no bispado de Elvas (Olivença e Santa Maria da Alcáçova de Elvas). Só havia, portanto, um Ouvidor deste mestrado e assim foi ao longo do tempo. Nas outras terras, entrava o corregedor com poderes de ouvidor. O ouvidor de Avis, antes de exercer, jurava na Chancelaria da Ordem. Quanto ao mais, exercia o cargo durante três anos e em nada se diferenciava de outros magistrados da carreira de Letras da Coroa. Seria colocado do mesmo modo. A anexação das Ordens à Coroa facilitou a aproximação de jurisdições e de pessoas em actividades que deviam ser diferenciadas, mas que a pouco e pouco deixaram de o ser. Numa junta de reforma da Ordem de Cristo que encerrou em 1589, fez-se um balanço “da jurisdição secular que a Ordem tem em determinados locais”18. Nesta salientava-se que, em 1373, D. Fernando ampliara o senhorio jurisdicional da Ordem de Cristo em todas as vilas e lugares que lhe pretenciam, sem que pudessem tais poderes ser revogados posteriormente. A partir daí, a Ordem tomarense passava a usufruir do seguinte: – os tabeliães poderiam ser dados e confirmados por cartas do Mestre e da Ordem; – nos feitos cíveis, dos juízes ordinários apelava-se para o Mestre e para o seu ouvidor, mas deixava de se poder apelar desta instância para o rei, como era usual nos processos crimes; – os corregedores não podiam actuar nas terras do Mestrado, salvo se houvesse prévia denúncia ou querela contra o Mestre e o seu ouvidor. 16 Cf. Regra da Cavallaria e Ordem Militar de S. Bento de Avis, Lisboa, Yorge Royz, 1631, tít.I, cap. XII. 17 Em cartas passadas pela Chancelaria da Ordem de Avis chegava-se mesmo a dizer que determinado magistrado serviria de ouvidor nesta zona, apenas enquanto servisse de corregedor de Santarém - cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 37, fl. 206v (ano de 1753). 18 BN, Cód. 13216, fl. 114-118v. AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 115 Apontava-se, em 1589, que estas jurisdições, com maiores ou menores dificuldades, tinham sido mantidas até 1532. Nessa altura, a ouvidoria de Tomar foi dividida em duas, criando-se uma nova, com cabeça em Castelo Branco. Mais tarde, nas Cortes de Almeirim de 1544, na sequência de um pedido feito pela Vila de Tomar, limitaram-se os poderes do respectivo ouvidor do Mestrado. D. João III, como governador da Ordem de Cristo, circunscrevia as apelações que o Ouvidor podia receber às “que couberem em sua Alçada sòmente, e as outras que não couberem (...) irão a quem directamente pertencerem”19. Por isso, em 1589, protestava-se contra a perda destes poderes e contra a confusa e indistinta jurisdição da Coroa e das Ordens. Dizia-se que o corregedor de Tomar e o de Castelo Branco serviam também, e simultaneamente, de ouvidores do Mestrado. Deviam tirar duas cartas separadas no Desembargo do Paço: uma de corregedor, emitida em nome de Sua Majestade como rei; outra como ouvidor, passada pelo monarca na qualidade de Governador da Ordem e feita por um escrivão da Mesa da Consciência20. Como se afirmava na citada junta, os magistrados já só obtinham uma única carta de corregedores. Em períodos posteriores, conhecem-se, todavia, casos de duas cartas para a mesma pessoa21. O cargo de Ouvidor do Mestrado era, porém, exercido apenas enquanto o magistrado servisse de Corregedor da Comarca de Tomar. Nota-se, porém, pela escassa documentação camarária de Tomar disponível, que o Ouvidor teria um papel meramente secundário, em comparação com o Corregedor. 3. Nada se sabe sobre as eleições concelhias nas terras da Ordem de Cristo depois de 1551. Na Chancelaria da Ordem não foi emitido qualquer 19 Alberto de Sousa Amorim Rosa, Anais do Município de Tomar, Vol.VII, Tomar, Câmara Municipal de Tomar, 1971, pp. 256-257 (com um erro de data). Cf. sobre estes procedimentos, ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl. 108v. Tal queixume passou para os Definitório impressos, na sequência do Capítulo Geral de 1619, onde se afirmava textualmente que a Ordem fora “esbulhada de suas jurisdições cõtra direito, & com cargo da cõciencia de sua Magestade, cuja intenção não he que se tomem á Ordem suas terras legitimamente adquiridas por serviços”. Salientava-se que eram doações remuneratórias e como tal não podiam ser retiradas ao património da Ordem – Definicoens e Estatutos dos cavalleiros, e freires da Ordem de Nosso Senhor Iesu Christo com a Historia da Origem e principio della, Lisboa, Ioam da Costa, 1671(1.ª ed. 1628), Pte.III, tít. X. 21 Cf. Alberto de Sousa Amorim Rosa, Op. cit., Vol. IV, pp. 291 (1658), 358 (1679), 364 (1682). 20 116 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS diploma a confirmar oficiais camarários eleitos ou não eleitos. A única excepção até agora identificada reporta-se a um alvará, de 1623, passado em nome do comendador-mor da Ordem, D. Afonso de Lencastre. Por aquele diploma era-lhe feita mercê vitalícia da confirmação dos ofícios das vilas da Ega e Dornes, como a tiveram o seu progenitor e o seu avó, que o antecederam na dignidade. Tal documento, porém, encerrava com uma valiosa ressalva: “cõ declaracao que não UZará Nunca de Conservatorias Nem Cemsuras E Sendo lhe necessario algum Requerimento o fara nos tribunais Seculares”22. Sobre esta atribuição impõem-se dois comentários. Por um lado, ao delegar poderes no comendador, receava-se o efeito dos processos poderem eventualmente cair no alçada do foro privativo dos membros das Ordens Militares, com a consequente perda de competências dos tribunais régios. O reparo feito é muito claro a este propósito. Seria um dos problemas nos concelhos dependentes destes institutos. Por outro lado, em bom rigor não se sabe verdadeiramente quais eram os ofícios referidos. É provável que não incluísse os elementos da câmara propriamente dita. A julgar pelas aparências, não é de afastar a hipótese de muitas jurisdições terem sido assimiladas pela Coroa, através do Desembargo do Paço. Sobre este processo são muito esclarecedoras as palavras do Prior da Igreja Matriz de Mértola quando respondia, em 1758, à segunda pergunta do interrogatório, então enviado aos párocos. Apontava que a jurisdição de Mértola era da ordem de Santiago, nos seguintes moldes “e assim se conservou em sua posse a dita Ordem com todos os seos actos e provimento de justiça athé que encorporadas as ordens na Coroa lentamente se foram descahindo os exercicios da dita posse. Em forma que, como ninguem cuidava de os inteirar, com a separação do que hera Coroa, muitos estam confundidos, por deixados; mas ainda alguns officios, como he o Juiz dos Orphaons, o Juiz dos Direitos Riaes, e outros mais sam providos pella secretaria do Mestrado da dita Ordem, puchando sempre os Ministros de El Rey para excluirem de tudo a Ordem (...). E nestes termos he esta villa da Ordem de S.Tiago; mas em parte está da Coroa”23. Aliás, na Ordem de Santiago, a ingerência do Desembargo do Paço seria clara já no século XVII, talvez por volta de 1620, quando foi redigida a primeira versão dos definitórios impressos como estatutos da Ordem 22 ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, L.º 22, fl. 257v. terras, as serras, os rios: as memórias paroquiais de Mértola do ano de 1758, ed.lit. de Joaquim Ferreira Boiça e M.ª de Fátima Rombouts de Barros, Mértola, Campo Arqueológico, [D.L.1995], pp.59-60. 23 As AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 117 de Santiago. Nestes fez-se registar o seguinte: “Os Mestres tiverão sempre o poder, & jurisdicção nas terras do Mestrado, & provião os Ouvidores, Juizes de fòra, Tabeliões dos Officiaes, Enqueredores, Contadores, & todos os mais Officiaes de Justiça tocantes à sua jurisdicção, & assim os pilouros das eleyções dos Officiaes das Cameras se apuravaõ, & confirmavaõ por elles, & disto se naõ guardar se tem seguido perda à Ordem, & confusão na jurisdicção; pelo que diffinimos, & ordenamos que se peça a vossa Majestade mande que assi os provimentos, consultas, & datas, dos dittos officios como as eleyções dos Officiaes das Cameras, que costumaõ vir ao Desembargo do Paço, vão à Mesa das Ordens, & o Ouvidor confirme, & apure as outras como faz, & conheça das novas acções, & aggravos das terras do Mestrado, conforme a provisão que para isso hà, & se goarda por costume immemorial, & que nas terras da Ordem, que estão fòra do Mestrado, & dentro das comarcas dos Corregedores, não possão elles entrar sem provisão do Mestre, porque os faça seus Ouvidores, por do contrario se seguir alienação da jurisdicção da Ordem”24. No definitório em causa, chegou-se a propor que se a Ordem não nomeasse os juízes ordinários das terras do Mestrado, que ao menos pusesse em substituição destes um juiz de fora letrado com o mesmo estatuto. No que respeita às eleições camarárias das terras do Mestrado da Ordem de Cristo, vale a pena ponderar uma consulta do Desembargo do Paço sobre o assunto, datada de 1744. Pretendia o contador do mestrado25 confirmar as eleições das já apontadas comendas da Ega e de Dornes, “vagas” por morte do Infante D. Francisco, em 1742. Para solucionar o caso foi consultado o desembargador que servia de Procurador da Coroa. No parecer deste indicava-se que “o Comfiar as doaçõens das Camaras hé Regalia da Coroa, que nenhuma peSsoa nem ordem pode Competir, Sem expresa doação de Vmag.de Cujas doacoens Se expedem pello Desembargo do Paço”26. De acordo com a mesma opinião, embora D. Afonso VI, como Governador perpétuo da Ordem, tivesse permitido que o seu irmão D. Pedro usasse de tais poderes nestas comendas, tal facto não era era con- 24 Regra, estatutos, definição e reformação da Ordem e Cavalaria de Santiago de Espada, Lisboa, Miguel Manescal, 1694, Def. LXXVI. 25 O facto de se tratar da comenda-mor terá de longa data correspondido a uma situação especial. Num livro de notas de Lázaro Leitão Aranha registou-se: “O provimento dos Officiães da Vila da Ega, e de Dornes tocão ao Comendador môr, e em sua falta ao contador do Mestrado. 9 de Novembro 1624 e fl. 86” – ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl. 319v. 26 ANTT, Desembargo do Paço, L.º 69, fl. 300. 118 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS siderado grande argumento. Do mesmo poder dispôs o comendador seguinte: o Infante D. Francisco, mas, quando morreu, o Desembargo do Paço apropriou-se da regalia. Segundo historiava o procurador da Coroa, pela proeminência do Infante D. Pedro não fora feita oposição a este poder, mas apenas por isso. E este era considerado o ponto crucial. Nesta mesma consulta, distinguia-se claramente entre o poder de fazer as eleições, que se admitia pudesse ser delegado, mas não a confirmação dos eleitos: era competência, poder, do monarca. A situação na Ordem de Avis parece ser um pouco diferente. Desde logo, o ouvidor de Avis não acumulava funções. O mesmo parecia acontecer com os Setúbal e Messejana, na Ordem de Santiago27. Estes seriam os “verdadeiros ouvidores do Mestrado”, como se chegou a classificar no discurso da época. Logo após a anexação, a Ordem confirmava as câmaras de diversas terras, como se comprova pelo registo das cartas na respectiva Chancelaria, em 1552-1553. Mesmo municípios afastados do centro nevrálgico da Ordem, como os de Seixo do Ervedal e da comenda do Casal, ambas situadas nas Beiras28, marcavam presença neste registo. Até 1620 é fácil atestar a confirmação para a Câmara de Alpedriz, na Estremadura29. A partir de 1681 há pedidos regulares dos eleitos anualmente para este município30. Aberto o pelouro, os que saíam para os lugares de juiz, vereadores e procurador tratavam de ratificar na Mesa da Consciência tal facto. Nos anos de 1760 ainda se fazia o mesmo e é de crer que se continuou a fazer31. A Câmara de Alcanede e lugar de Pernes tinham idêntico comportamento. Nos séculos XVII e XVIII, as referidas são as únicas que aparecem a fazer confirmações das câmaras na Chancelaria da Ordem de Avis. Será que, noutros locais, seria o facto de disporem de um “verdadeiro ouvidor” que dispensava tal atitude? É uma pergunta para a qual não temos resposta. Havia, inclusive, eleitos em Alcanede e Alpedriz que pediam nas décadas de 50 e 60 do século XVIII para serem dispensados de servir, mesmo para o cargo de vereador32. Nestas casos, o diploma com a anuência do 27 Cf. ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl. 108v. confirmação de 1552, em ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 1, fl. 19v, 20. 29 Cf. Ibidem, L.º 11, fl. 148v, 236v, 244v. 30 Cf. Ibidem, L.º 17, fl. 255, 472. 31 Cf. Ibidem, L.º 39, fl.300v. 32 Cf. Ibidem, fl. 23v, 32-32v, 305-305v, passim. 28 Cf. AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 119 monarca, na figura de Mestre, indicava que se devia mandar fazer nova eleição, com os seguintes reparos: “cuja nova eleição virá a confirmar ao meu Tribunal da Mesa da Consciencia e Ordens, e Sem iSso não terá effeito. Pelo que mando aos officiaes da Camera do dito Lugar, e a quem mais tocar lhe cumprão e guardem esta Provisam Sendo paSsada pela Chancelaria da mesma Ordem”33. O que parecia estar em jogo em Alpedriz, no século XVII, eram problemas com os corregedores e outras autoridades de Leiria. O reforço da ligação ao Mestrado seria um hipotético ponto de fuga. Alegava-se, assim, com os privilégios daí decorrentes, privilégios que isentavam a Vila da jurisdição régia34. No século XVII, a confirmação dos eleitos para as câmaras pelo Governador perpétuo da Ordem seria um assunto por diversas vezes discutido e julgado favoravelmente no Juízo da Conservatória das Ordens Militares. A última das quais teria ocorrido em 20 de Março de 1680, uma observação que todas as cartas de confirmação de Alpedriz e Alcanede referiam a partir dos anos 80 do século XVII35. Como se perdeu a documentação do citado Juízo, não é possível esclarecer o problema. Também em Noudar, no tombo da comenda, feito em 1607, escrevia-se: “Achou o dito Juis do tombo que a Jurdicam da Justiça do crime E civel E governo da terra he do comemdador que he agora o comde de linhares E a teve tambem o duque daveiro Seu amtecesor porque esta comemda E terras dellas foram da igreiJa E da ordem de cystel E amtiguamente Sohya Ser E amtes delRey dom denis quãdo Eram de castella E vieram a Este Reino de portugal por virtude de hua demarquaçam”36. Alegava-se assim com a origem das terras para justificar a situação jurisdicional. Até que ponto a proximidade da fronteira e o facto de ter sido comenda do Duque de Aveiro também não terão contribuído para essa manutenção? Não se sabe, também, até quando se prolongou no tempo esta particularidade. Pondo de lado estes casos, é bem possível que muitas das comendas que implicavam a tutela das vilas tivessem pautas confirmadas pelo Desembargo do Paço. 33 Ibidem, fl. 305. Ibidem, L.º 12, fl. 427, L.º 17, fl. 255; ANTT, Mesa da Consciência, L.º 8, fl. 157. 35 Excepto em 1681. 36 ANTT, Tombos de Comendas, L.º 373, fl. 202v. 34 Cf. 120 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 4. No que respeita aos restantes ofícios das terras da ordem de Cristo e Avis, sabe-se um pouco mais. Sobre o que se terá passado na Ordem sedeada em Tomar, é importante atender à pretensões do 3.º Conde de Linhares († 1608), entre 1588 e 1591. Nessa altura estaria ele em necessidades, pois gastara muito na Jornada de Alcácer-Quibir. Vedor da Fazenda e partidário de Filipe II, teria solicitado à Coroa, entre outras mercês, “a dada E provimento dos offiçios dos lugares do mestrado de Christo que foi de seu pay aVoos E visavoo que os governadores que forão destes Reinos lhe derão Em Setuvel como diZ que consta de hu~a Certidão do Comde de Matosinhos que deu Em Elvas a V. Mde., E de que sabe dom christovão [de Moura]”37. A Coroa ao longo dos anos apontados reagiu-se sempre mal a este tipo de aspiração, e as justificações dadas são esclarecedoras. Primeiro, numa carta régia de Junho de 1588 dizia-se que era “cousa muy grande (...) que por ser de Jurdição foi sempre de tanta consideração neste Reino que sou informado que a Rainha que Deus tem largou á das suas terras a ElRej pera cõ isso se moverem pessoas particulares a fazer o mesmo”38. Não sabemos se o exemplo teria sido efectivamente imitado. Passado um mês nova carta régia insistia na negativa, nos seguintes termos: “E também pareçe que não ha que diffirir a dada, E provisão dos offiçios do Mestrado de Christo porque alem de ser isto cousa muy grande E que não he justo tirarsse da Coroa estando Ja nella, não pareçe que o Comde tem a isso aução porque sendo esta dada do Comde seu pay como ChançareL do dito mestrado dessistio delle cõ declaração que lhe ficasse em hua vida a dada dos ditos officios E se lhe derão em satisfação disso cõ çem mil réis de tença en sua vida, E por sua morte para seu filho mais velho os quaes elle açeitou, E por sua morte os ouve o dito Comde, E se lhe passou padrão delles pello que não tendo os Comdes seu avoo, E pay a dita dada senão como Chançareis da dita ordem, E tendo dissistido della cõ a dita satisfação que ora logra o Comde, não pareçe que ha aução para a pretender, pois se conçedeo a seu pay cõ declaração que a averia Em sua vida somente”39. Estas negociações ainda duraram mais três anos, sem que o Conde alcançasse o seu intento inicial. Resta, porém, a dúvida se estes documentos se reportavam aos postos das comendas da Mesa Mestral e não aos das restantes comendas, pois a palavra “Mestrado” raramente era 37 ANTT, Corpo Cronológico, Parte 1.ª, Mç. 112, doc. 84, fl. 4. fl. 4v. 39 Ibidem, fl.5. 38 Ibidem, AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 121 usada como sinónimo de “Ordem Militar”, como actualmente se tende a fazer. No caso da Ordem de Avis, as cartas de ofícios continuavam a ser emitidas pela Chancelaria da Ordem, mas os procedimentos só revelam o quanto as aparênciam por vezes iludem. Em 1690, porque fora provido um cristão-novo no lugar de juiz dos órfãos da Vila de Albufeira e o monarca terá pedido contas do sucedido, esclareceu-se a tramitação processual. Embora o provimento dos oficiais das terras das Ordens pertencesse à Mesa da Consciência, Sua Majestade mandara que o passasse a fazer o Desembargo do Paço. Não se sabe desde quando. Assim ocorria na data invocada. As cartas de provimento emitiam-se, todavia, em nome do rei como administrador do Mestrado, pelo escrivão da Câmara e Secretaria de Avis na Mesa da Consciência e assinava-as o Chanceler da Ordem. Cabia a este examinar o provido apenas na suficiência de ler, escrever e capacidades. Averiguar a qualidade do sangue era uma das responsabilidades do Desembargo do Paço, que também consultava sobre a atribuição do ofício. O diploma passava depois pela Chancelaria da Ordem, onde pagava os direitos, não prejudicando esta instituição40. Deste modo, apesar da carta figurar na Chancelaria e ser redigida pelo escrivão da Ordem, quem decidira o provimento fora o Desembargo do Paço. A Mesa da Consciência, e com ela as Ordens Militares, tinha perdido terreno, poder. E provavelmente na manutenção de alguns formalismos teriam contado muito os ajustes quanto aos emolumentos e imposições afins, como se comprova pela situação invocada Em qualquer das três Ordens Militares, num caso ou noutro, ter-se-ia concedido a apresentação ou a data dos ofícios a uma ou outra personagem. Assim se fez, por exemplo, cerca de 1731, com a Marquesa de Arronches, que podia nomear almoxarife nas suas comendas enquanto as administrasse41. Recebera também uma mercê idêntica para as “suas terras” que constituíam bens da Coroa. O cargo invocado tinha, todavia, apenas significado económico. Em termos globais, as atribuições mais exorbitantes que se conhecem são as da comenda das Galveias (Ordem de Avis), em 1664, e a de Fronteira na década seguinte. Nestes casos, ultrapassou-se largamente a questão da apresentação dos oficiais. Justificou-se a atribuição do senhorio das Galveias, apesar de ser terra de uma Ordem Militar, com o facto de Dinis de Melo e Castro (162440 Cf. 41 Cf. ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl.111-112. Ibidem, fl. 320. 122 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS -1709)42, então General da Cavalaria do Exército do Alentejo, ser capaz de a defender e fortificar no contexto da guerra que se vivia. Ficava com “sua Jurisdição, E datas de officios tudo Em sua vida, para que tenha sômente o Dominio Util, Rezervando o Dominio direito â mesma ordem, a Cuja meza mestral, pagara Dez Cruzados Cada anno por Reconhecimento, Com declaração Expressa que por isto senão Entenda fazerselho prazo Em que tenha Lugar Renovação, Mas sômente huma merce Em Vida, a qual se Entende, que ficara sendo Em utilidade da Ordem; para melhor Conservação da dita Sua Villa”43. Dinis de Melo e Castro ficava logo autorizado a impetrar diploma papal a corroborar a mercê. Na carta citada, esclarecia-se que a jurisdição delegada era a ordinária, com as prerrogativas que habitualmente podiam dispor os donatários da Coroa. Cabia também ao agraciado apresentar os ofícios, cujas cartas seriam passadas pela Mesa da Consciência. O facto na época suscitou eco e mal estar, pois alienavam-se bens de teor eclesiástico44. Em 1736, ainda o facto do II Conde das Galveias nomear as justiças da Vila causava problemas ao Ouvidor que as pretendia explusar dos lugares45. Já antes disso, pelos anos de 1620, se tentara dar a D. António Mascarenhas o título de Conde de Palma, que equivalia a uma quinta sua, em Alcácer do Sal, terra espatária. A Mesa conseguiu demover Filipe III de Portugal deste intento46. No caso da doação de Fronteira ao Marquês do mesmo título, em 1670, esclarecia-se perfeitamente que se incluía a data de todos os ofícios, excepto os das sisas e os de provimento da Câmara, para que não fosse prejudicada47. Apesar dos protestos iniciais da população que não queria passar para a tutela de um particular48, a doação foi sucessivamente reno42 Sobre este General, que em 1691 se tornaria no I Conde das Galveias, ver Julio de Mello de Castro, Historia panegyrica da vida de Dinis de Mello de Castro, primeyro Conde das Galveas, do Conselho de Estado e Guerra dos Serenissimos Reys D. Pedro II e D. João V, ed. fac-similada da de 1744, Lisboa, s.n., 1995 (1.ª ed. 1721). 43 ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 15, fl.142v. 44 Cf. Eduardo Brazão (apresentação e ed.), D. Afonso VI - segundo um manuscrito da Biblioteca da Ajuda, sôbre o seu reinado, Porto, Livraria Civilização, 1940, pp.179-180. 45 ANTT, Tombos de Comendas, L.º 245, fl. 62. 46 Cf. ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl.374v-375. 47 Cf. Manuscritos da Livraria, n.º 168, fl. 345. Ver também ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 16, fl. 122. 48 Segundo as Monstruosidades do tempo e da fortuna - diario de factos mais interessantes que succederam no Reino de 1662 a 1680, até hoje attribuido infundadamente ao benedictino Fr.Alexandre da Paixão (Lisboa, Typ. da viuva Sousa Neves - Ed., 1888, pp.128-129), nem a ameaça do uso da força fora suficiente para demover a população. AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO 123 vada na mesma família. A Ordem de Avis, porém, em 1727-1730, ainda confirmava alguns ofícios nomeados pelo donatário49. Em síntese, antes da tutela perpétua da Coroa sobre os três Mestrados, alguns municípios das Ordens Militares caracterizar-se-iam por apresentarem um duplo e hierárquico senhorio jurisdicional: o Mestre e abaixo dele, com poderes delegados, o comendador. No entanto, a anexação das Ordens à Monarquia facilitou que se confundissem as jurisdições locais das Ordens com as Coroa. O rei era o Mestre, mas não obstante tal facto, não houve verdadeira incorporação. Quanto mais não fosse, a emissão dos diplomas procurava assinalar a marca das Ordens Militares, se bem que em muitos casos quem tomara a decisão fora o Desembargo do Paço e não nenhuma instâncias dos três Mestrados. Fazer passar muitos poderes para as mãos dos comendadores era uma prática que suscitava receio ao centro político. No começo de Seiscentos, ainda se temia a raiz eclesiástica destes institutos e o seu foro privativo. Por parte dos seus membros, os ouvidores eram encarados na época como ministros essenciais na defesa da património de jurisdições locais das Ordens Militares. Resta, todavia, muito por esclarecer neste âmbito. Desde logo, importa aprofundar o problema da actuação concreta dos ouvidores, “verdadeiros” ou não. Os casos de Alpedriz e Alcanede merecem ser retomados. Em que medida constituiriam excepções? A Ordem de Santiago era aquela que dispunha de maior número de terras com jurisdição. Valerá a pena saber se o sucedido em Mértola teve paralelo em todas as vilas espatárias. Ou terá ocorrido apenas onde não havia “verdadeiro ouvidor”? Será fundamental analisar a documentação local das terras das Ordens e a efectiva composição das várias câmaras, pois nem todas seriam iguais. Não será também descabido comparar os poderes exercidos nestes municípios e nos senhoriais (no sentido dos administrados por donatários laicos ou religiosos), sobretudo nos século XVII e XVIII, quando os comendadores e os senhores eram absentistas nas suas terras, tendo em vista apurar o significado real do exercício de poderes deste teor a nível local. Seriam os municípios das Ordens diferentes? Note-se, que analisar as possíveis especificidades envolverá equacionar outras áreas, nomeadamente a religiosa e o direito de visitar igrejas e comendas, pois o poder local – designadamente no caso das Ordens Militares – não se circunscre- 49 Cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 27, fl. 301, L.º 28, fl. 92. 124 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS via apenas ao direito de confirmar as câmaras e os restantes oficiais concelhios. Por fim, convém pensar que a presença de uma comenda numa dada localidade, mesmo sem abarcar a jurisdição da vila, podia matizar a vivência local. Na realidade podia não ser um elemento inócuo, apesar do absentismo típico dos comendadores a partir do século XVI. Algumas comendas espatárias do Algarve, formadas essencialmente por dízimos, constituíam bons exemplos. Em anos de escassez frumentária, eram palco de conflitos porque a população e as câmaras impediam a saída dos cereais, obrigando os comendadores a vendê-los na zona. No século XVIII, apenas nos bons anos agrícolas, estavam autorizados a vender fora das terras de origem dois terços da receita50. Enfim, problemas que só a documentação local pode ajudar a aclarar. 50 Sobre estas questões, vide Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico: 1600-1773, Lisboa, Estampa, 1988, pp. 246-247. AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO Anexos Vilas onde a Ordem de Avis teria seguramente a jurisdição, em meados do século XVI Vila Alandroal Albufeira Alcanede Alpedriz Alter Pedroso Avis Benavente Cabeço de Vide Cano Casal Coruche Figueira Fronteira Galveias Juromenha Mora Noudar Seda Seixo do Ervedal Vieiros Observações Mesa Mestral em 1532 Mesa Mestral Mesa Mestral Mesa Mestral em 1532 Elevada a Vila em 1538 125 126 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Comendas da Ordem de Avis C. 1619-1631 FONTE: Regra da Cavallaria e Ordem Militar de S. Bento de Avis, Lisboa, Yorge Royz, 1631, tít.I, cap. XII. Câmaras e Misericórdias. Relações políticas e institucionais* LAURINDA ABREU (Universidade de Évora – Dept. de História /CIDEHUS) Apesar de a recente historiografia sobre caridade e assistência se mostrar empenhada na reabilitação das formas de apoio e inter-ajuda ditas informais, é ainda a assistência institucionalizada aquela que melhor se conhece e sobre a qual se possui informações mais consistentes. Nomeadamente, a que esteve a cargo da sociedade civil. Uma particularidade a que não será alheio o facto de, desde cedo, as atitudes e os discursos relativos à pobreza e à miséria terem transformado estas questões num fenómeno político, que os poderes se apressaram a gerir mais de acordo com os seus próprios interesses do que com as necessidades dos pobres. É aliás por esta razão que a análise das políticas assistenciais e de saúde pública requer o estudo prévio das estruturas do poder e das relações sociais estabelecidas entre as diferentes organizações que o detinham. Muito especificamente, as de âmbito local, já que se sabe que foi no seio das comunidades que se encontrou a maioria das respostas aos sucessivos problemas criados pela transformação da economia e da sociedade que o Ocidente viveu ao longo do período moderno. No contexto português, as atenções centram-se, como bem se sabe – sobretudo devido ao quase desconhecimento das reais dimensões do papel que a Igreja desempenhou neste sector1 –, nas Misericórdias e nas Câmaras. São precisamente estas duas instituições que constituem o objecto principal deste texto. Esclareça-se, contudo, que não é nossa intenção ava* Investigação realizada no âmbito do projecto POCTI/1999/HAR/33560: O papel das Misericórdias na sociedade portuguesa de Antigo Regime: o caso da Misericórdia de Évora. 1 Foi, aliás, este pressuposto que esteve na origem do Colóquio Ibérico, Bispos, Cabidos e Assistência na Península Ibérica (Séculos XVI-XVIII), realizado na Universidade de Évora em Junho de 2003, de que resultou o livro Igreja, caridade e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII), Laurinda Abreu (ed.), Edições Colibri e CIDHEUS-UE, Lisboa, 2004. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 127-138. 128 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS liar os fundamentos jurídicos das relações desenvolvidas entre as Santas Casas e os municípios, nem mesmo caracterizar os mecanismos político-institucionais que sustentaram a interdependência entre ambos e fortaleceram a sua capacidade de intervenção nas respectivas comunidades. Basicamente o que nos interessa é identificar as principais competências das duas entidades no que respeita à saúde e ao bem-estar das populações – num tempo em que estes serviços eram organizados localmente mas não municipalizados –, avaliando, dentro das limitações existentes, as implicações decorrentes de um modo de actuação cujas directrizes emanavam da Coroa que, em termos muito directos, condicionou, e nalguns casos controlou, a forma como o sistema evoluiu. Um trabalho que desenvolveremos a partir da identificação das linhas que orientaram a reforma da assistência iniciada em Portugal nos finais do século XV e dos objectivos políticos da actuação régia, para, finalmente, questionar as consequências sociais de tais decisões. Refira-se, todavia, o carácter meramente introdutório de todas as considerações realizadas, assumidas aqui como mero ponto de partida para uma investigação de maior envergadura. Expansão urbana e reorganização da caridade: as linhas de intervenção da Coroa portuguesa A partir da segunda metade do século XV o Ocidente viveu, como é do conhecimento geral, um longo período de profundas mudanças que não deixaram incólume nenhum grupo social, estrutura política ou sector económico. De entre as transformações registadas merecem destaque, pela oposição que as caracteriza, as tendências políticas – claramente centralizadoras – e a procura de soluções para os problemas sociais decorrentes das novas situações de pobreza, dos incontroláveis fluxos migratórios, da mendicidade, e, consequentemente, de saúde pública que as cidades enfrentaram – estas a cargo das autoridades locais. Foram as cidades, de facto, que, de forma mais ou menos organizada, experimentaram novas formas de assistência e novas políticas sanitárias, diversificaram a oferta em termos de institutos assistenciais apostando na sua especialização, e reforçaram o controlo da mendicidade, tornando mais violenta a legislação que, nalguns casos, acabou por a interditar2. 2 Das imensas obras que abordam esta questão, destaquem-se a de Bronislaw Geremek, A Piedade e a Forca - História da Miséria e da Caridade na Europa, Lisboa, 1995 e a de Robert Jütte, Poverty and Deviance in Early Modern Europe, 2nd ed., Cambridge, 1996. Especificamente para a realidade inglesa, vejam-se os trabalhos de P. A. Slack, sobretudo, Poverty and Policy in Tudor and Stuart England, London, 1988. CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS 129 Sendo esta uma forma de actuação comum à maioria dos Estados Europeus, ainda que marcada pelos particularismos locais, o processo teve em Portugal características próprias que o individualizaram dos restantes modelos. Não nos princípios ideológicos ou nos objectivos programáticos mas sim na forma como foi conduzido, uma vez que aqui as políticas “modernas” de assistência aos pobres emanaram da Coroa e tiveram uma dimensão nacional. Assim aconteceu com a reforma geral dos hospitais ordenada por D. Manuel I no início do seu reinado, que esteve na origem de vários Hospitais Gerais – uma reforma que foi precedida de inquéritos (1499 e 1501) que avaliaram o estado do património dos hospitais e demais institutos pios e aferiram do cumprimento da vontade dos seus instituidores –; com a fundação das Misericórdias – que o rei incentivou também em 1499, procurando dotar o país de uma rede de confrarias especialmente vocacionadas para o apoio aos presos e aos pobres, mas também com atribuições ao nível da repressão da mendicidade (diploma de 8 de Julho de 1503) –; e, ainda, com a assistência às crianças desprotegidas, que pela primeira vez viam reconhecido na lei (Ordenações Manuelinas) o seu direito à protecção3. Como temos vindo a defender já há algum tempo, tratou-se de uma reorganização das estruturas assistenciais e das suas competências de âmbito social alargado, que tinha a particularidade de ser centralizada e orientada a partir da Coroa, ao mesmo tempo que pretendia mobilizar os poderes locais para a sua execução. Com esse objectivo a monarquia convocou «os melhores das terras», as elites já representados nas Câmaras Municipais, que eram agora chamadas a associar-se a um projecto novo, o das Misericórdias, confrarias que nasciam com uma renovada dinâmica de intervenção social. Um elemento que seria matricial no processo a que agora se dava início era a não articulação entre as diferentes instituições detentoras de responsabilidades assistenciais e de saúde pública. O mesmo é dizer, ainda que os responsáveis pelas Misericórdias e pelas Câmaras pudessem ser os mesmos – frequentemente em sistema de rotatividade entre as duas instituições –, as suas incumbências institucionais eram diferentes conforme o lugar que ocupavam, distinção que os visados respeitavam muito particularmente quando as suas atitudes tinham repercussões económicas. Das linhas mestras da intervenção manuelina nos mecanismos de caridade e assistência apenas se alteraria a que conduziu a reorganização hos- 3 Cf. Laurinda Abreu, “A especificidade do sistema de assistência pública português: linhas estruturantes”, Arquipélago. História, 2ª série, VI, Ponta Delgada, 2002, pp. 420-421. 130 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS pitalar – que D. Manuel começou por separar das Misericórdias, numa orientação que de resto o próprio inflectiu acabando por reconhecer estas confrarias com vocação específica para a gestão dos hospitais4 – e a relativa ao combate à mendicidade e vagabundagem, competência que a Coroa já tinha recuperado no reinado de D. João III, quando se intensificou a promulgação de diplomas que as submetem a rigorosa regulamentação. Os dois governantes que depois de D. Manuel mais marcaram o rumo da assistência portuguesa no século XVI – o Cardeal D. Henrique e Filipe II – não só não se afastariam das orientações iniciais como reforçaram as intervenções centralizadoras verificadas no início do século. Recorde-se, por exemplo, que foi durante a regência de D. Henrique que o direito nacional incorporou o privilégio das Misericórdias como confrarias de tutela régia5, a que se seguiu a transferência, sistemática e continuada, dos hospitais para a sua administração6. Um movimento que se reveste de uma importância crucial dado o facto de ocorrer num momento em que, na Europa católica, a Igreja lutava pela recuperação do controle dos hospitais. Tendência que depois seria continuada pelo monarca espanhol que reforçou em Portugal as condições de intervenção da Coroa nos diversos ramos da assistência institucionalizada enquanto lançava em Castela o processo de centralização hospitalar7. Consequências da intervenção da Coroa nos mecanismos assistenciais Em termos de resultados sociais a avaliação da eficácia da actuação da monarquia portuguesa nas matérias referidas apresenta indicadores diferenciados consoante o ângulo de análise adoptado. Se este for estrita4 Conforme se pode concluir da leitura do alvará de 6 de Janeiro de 1518 pelo qual o rei retirou à confraria do Espírito Santo de Montemor-o-Novo o hospital que ela administrava entregando-o à Misericórdia com justificação de que a Santa Casa era a instituição melhor vocacionada para a administração do referido hospital . Cf. Almansor – Revista de Cultura, n.º 8, 1990, pp. 110-111. (Agradecemos ao Dr. Jorge Fonseca a indicação deste documento). 5 Cf. Laurinda Abreu, “Misericórdias: patrimonialização e controle régio (séculos XVI e XVII)”, Ler História, n.º 44, Lisboa, 2003, pp. 5-24. 6 Conforme chamámos pela primeira vez a atenção no nosso trabalho, A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal de 1500 a 1755: aspectos de sociabilidade e poder, Setúbal, Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, 1990, pp. 30-31. 7 Cf. Linda Martz, Poverty and welfare in Habsburgo Spain, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 64 e ss. E também Jon Arrizabalaga, “ Poor relief in Counter-Reformation Castille: An overview”, in Ole Peter Grell, Andrew Cunningham and Jon Arrizabalaga, (ed.) Health Care and Poor Relief in Counter-Reformation Europe, London and New York, 1999, pp. 151-176. CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS 131 mente político, e realizado numa perspectiva de longa duração, as opções da Coroa podem ser consideradas como uma solução de compromisso, mesmo conciliatória, entre a sociedade civil e a Igreja. Isto porque, se é verdade que o rei confiou aos leigos a responsabilidade por uma parte considerável da assistência institucionalizada à pobreza, também é certo que a manteve sob os princípios religiosos tradicionais, o mesmo é dizer, ligada à caridade, que escorava economicamente as instituições assistenciais. Paralelamente, a mesma provisão que reconhecia a tutela régia sobre as Misericórdias (2 de Março de 1568) reforçava a posição da Igreja na sociedade portuguesa8. Na nossa perspectiva, tratou-se de um jogo de equilíbrio de forças que foi capaz de evitar, por exemplo, as polémicas que o tema da assistência estava a suscitar no resto da Europa. Em Portugal, a acção centralizadora da Coroa conseguiu não só o apoio de alguns prelados como impediu, ao que cremos, o surgimento de conflitos liderados por leigos contra a aplicação das determinações do concílio de Trento, nomeadamente em relação à reforma dos hospitais e demais instituições caritativas. Os benefícios daqui recolhidos pela Coroa são evidentes. E, nesse sentido, os reis portugueses poderiam, com plena propriedade e menores custos políticos, tomar para si as palavras do monarca francês, que em 1586, respondia assim ao pedido que os estados gerais lhe haviam dirigido solicitando apoio económico para o combate ao problema da pobreza: “sua majestade não pode dar dinheiro algum para o sustento dos ditos pobres pois essa é uma questão que depende da caridade e da piedade que os bons cidadãos, como bons cristãos, devem exercer para bem do próximo”9. Dependente da caridade e piedade dos cidadãos sim, mas também, pelo menos em Portugal, da Santa Sé que permitiria aos hospitais a utilização dos bens deixados para a celebração das missas pelas almas do Purgatório para o financiamento das suas actividades assistenciais10. Relevam de uma ordem diferente, e bastante mais negativa, as consequências destas políticas ao nível das comunidades locais. Isto porque, ao centralizar nas Misericórdias a assistência a vastos sectores da sociedade e ao fazer depender da Coroa a legislação relativa à mendicidade, a monar- 8 Cf. Duarte Nunes do Lião, Leis Extravagantes e Reportório das Ordenações, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, parte I, tit. XVI, lei 2. 9 Citado por Bronislaw Geremek, A Piedade e a Forca - História da Miséria e da Caridade na Europa, pp. 177-178. 10 Assunto que iniciámos em Memórias da Alma e do Corpo – a Misericórdia de Setúbal na Modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999, pp. 153-171 e desenvolvemos em “A difícil gestão do Purgatório: os Breves de Redução de missas perpétuas do Arquivo da Nunciatura de Lisboa (séculos XVII-XIX)”, (a publicar na revista Penélope). 132 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS quia condicionou a actividade das autoridades municipais, cerceando-lhes quaisquer hipóteses de intervenção na escolha dos meios mais adequados à especificidade de cada espaço (como aconteceu em França, por exemplo). Além do mais, ao não financiar o sistema criado, e ao impedir a tributação específica para custear esse tipo de despesas – a não ser se os impostos se destinassem aos enjeitados – , os monarcas facilitaram a desresponsabilização dos municípios em relação a esta questão. As provas de que as câmaras procuraram não se envolver demasiado na organização da assistência pública são múltiplas e bastante elucidativas. É certo que a maioria mantinha à custa das rendas dos concelhos um médico, um sangrador – que quase sempre acumulava as funções de cirurgião –, uma parteira e uma sanguessugadeira. Contudo, a existência de tais profissionais não permite afirmar que as municipalidades administravam uma estrutura de assistência social minimamente consistente. Veja-se, a propósito, o caso da criação dos expostos que muitas câmaras transferiram para as Misericórdias assim que lhes surgiu a primeira oportunidade. Diferente era, no entanto, o seu papel em termos sanitários. Aqui sim, a actividade e intervenção dos centros urbanos faziam-se sentir, e de forma particularmente activa, perante situações de epidemia ou de ameaça de epidemia, quase sempre de peste. O receio do contágio e da propagação das doenças tornava importante a limpeza dos espaços públicos e a manutenção da salubridade das águas, temas recorrentes nas actas das sessões camarárias. Porém, para além da duvidosa eficácia da maioria das medidas tomadas11, o poder local tendia a esquecer, pelas razões aduzidas, a correlação directa que se estabelecia entre a pobreza e a dimensão das epidemias. Só para dar um exemplo, na maioria das cidades portuguesas a criação de hospitais temporários para os pestilentos foi fruto da iniciativa privada e da intervenção da Igreja12 e raramente dos municípios. O mesmo aconteceu com os hospitais para convalescentes, tão importantes em termos sociais e de saúde pública como os anteriores. Embora as edilidades reconhecessem a sua utilidade e necessidade e, no auge das crises, elaborassem planos para a sua construção, logo que a situação acalmava tais projectos eram abandonados13. A frágil situação financeira de muitos concelhos assim o determinava. 11 Para o caso de Évora, veja-se o nosso texto, “A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637”. Comunicação apresentada no VII Congreso ADEH, Granada, Abril de 2004. 12 Importantes informações sobre o assunto podem colher-se em Nicolau Agostinho, Rellaçam sumaria da vida do Illustrissimo senhor Dom Theotonio de Bragança, Évora, Francisco Simões, 1614. 13 A questão da hospitalização esteve longe de ser pacífica no tempo em estudo. Sobre CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS 133 Chegados a este ponto, uma questão bastante pertinente se impõe: porque é que não houve em Portugal, em termos de assistência pública, uma actuação concertada como ocorreu noutros espaços europeus? Não nos referimos, naturalmente, à realização de acordos prévios entre o poder político e o religioso – ainda que eles pudessem existir, como aconteceu em Évora –, mas à conjugação de esforços tendo em vista um fim que era do interesse da comunidade e dos seus líderes. Mormente, dos vereadores e dos mesários das confrarias, o que aqui quer dizer, das Câmaras e das Misericórdias, frequentemente governadas pelos mesmos homens. Do meu ponto de vista essa articulação não existiu por duas razões principais. Em primeiro lugar, e como já mencionámos, porque, por opção da monarquia, a assistência foi mantida demasiadamente ligada à «doutrina religiosa da caridade» que assumia a pobreza como uma questão ideológica. Como bem se sabe, eram caritativos os pressupostos em que assentavam as estruturas das principais instituições assistenciais e eram religiosos os princípios registados nos estatutos que as governavam. Em segundo lugar, e centrando-nos exclusivamente no caso das Misericórdias, porque sendo confrarias, estas instituições não tinham representação política. Ou seja, as suas reivindicações não tinham peso nas decisões camarárias. Não significa isto que os senados não respondessem aos pedidos de ajuda financeira que as Santas Casas lhes dirigiam ou que ignorassem completamente os problemas em análise. Todavia, regra geral, quando os atendiam, faziam-no a título de esmola e, quase sempre, depois de muito pressionados pelo poder central – que várias vezes obrigou as Câmaras a concederem esmolas às Misericórdias14 – e pelas próprias confrarias, muito especificamente quando os seus hospitais soçobravam ao peso dos surtos epidémicos15 ou, muito mais frequente, no caso da criação dos enjeitados, procurando que as municipalidades respeitassem os acordos financeiros estabelecidos tendo em vista a partilha das despesas16. este assunto, vide Jean-Noel Biraben, Les Hommes et la peste en France et dans les pays européens et méditerranéens, Mouton, 1975, p. 173. 14 São muitos os exemplos de alvarás régios encontrados nas Chancelarias Régias onde se ordena às Câmaras que concedessem determinadas esmolas às Misericórdias. Vejam-se alguns casos que arrolámos em “As Misericórdias portuguesas de Filipe I a D. João V”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa, Universidade Católica/União das Misericórdias Portuguesas, 2002, p. 63. 15 Como aconteceu em Lisboa e é abundantemente documentado por Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a história do município de Lisboa, Lisboa, Typographia Universal, tomos II e III, 1887 e 1888. 16 Os casos que melhor conhecemos são os de Setúbal e Lisboa mas muitos outros poderiam ser apresentados. 134 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS A bem da verdade, só em situações que poderiam ser consideradas de calamidade pública, como as que se viveram em Lisboa na passagem do século XVI para o século XVII, é que se assiste a acções harmonizadas entre a Coroa, a Câmara e a Misericórdia para, através da imposição de tributos às populações, se tentar controlar a miséria urbana e as elevadíssimas taxas de mortalidade hospitalar. Todavia, finda a crise, regressava a normalidade. As disposições eram provisórias e excepcionais e não alteravam o sistema instituído nem a forma como estava organizado17. O resultado destas duas circunstâncias (natureza caritativa da assistência e ausência de representação política por parte das Misericórdias) parece-nos previsível: as Câmaras não se consideravam economicamente responsáveis nem pela assistência hospitalar nem pelas demais valências assistenciais asseguradas pelas Misericórdias ou pela Igreja, libertando as suas receitas, quase sempre reduzidas, desse ónus. São inúmeros os exemplos que o documentam. E alguns deles verdadeiramente extraordinários, como os que recolhemos da documentação que neste momento estamos a tratar para Lisboa18. O financiamento da assistência pública é, de resto, pelo menos no meu entender, o cerne da questão. Na verdade, não parece terem existido em Portugal conflitos jurisdicionais a propósito da assistência como houve em outros pontos da Europa. Houve-os sim, e graves, entre as autoridades municipais e as Santas Casas por questões económicas e de gestão patrimonial. E nesta imbricada relação institucional entre as Câmaras e as Misericórdias nem sequer se pode falar na existência de contradições. Isto porque, quando estavam nas Câmaras, os notáveis locais agiam como políticos, com responsabilidades específicas, e estas não privilegiavam a assistência. Enquanto mesários, esperava-se que actuassem como “bons cristãos, para bem do próximo”, para voltar a utilizar a expressão atribuída a Henrique III. Sempre que possível, colhendo os benefícios que a lei lhes concedia por exercerem tão importantes funções. E, não raras vezes, ultrapassando o permitido e o eticamente correcto, como claramente se infere do diploma filipino de 6 de Dezembro de 1603 – que junta vereadores e responsáveis pelas Misericórdias na mesma acusação de usurpadores dos bens das referidas instituições, em prejuízo do bem público19. Sem 17 Cf. “As Misericórdias portuguesas de Filipe I a D. João V”, pp. 47-77. A partir da obra de Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a história do município de Lisboa, cit. 19 Um diploma praticamente esquecido dos historiadores mas que contêm importante informação para o problema em análise. Do “Alvará em que se determinou que os provedores e officiaes da Mesa da Misericordia e hospitaes não podessem arrematar para 18 CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS 135 esquecer o manancial de informações sobre as irregularidades de gestão patrimonial cometidas pelos irmãos que nos são transmitidas pelas actas e contabilidade de muitas Santas Casas20. Para concluir, na minha opinião, os centros urbanos portugueses não tiveram ao longo do Antigo Regime uma política estruturada de assistência aos pobres ou mesmo de saúde pública. As formas institucionais de apoio que existiram nas duas áreas pautaram-se pela desorganização e ineficácia, devendo as responsabilidades serem acometidas, em simultâneo, à Coroa e às elites locais. A primeira porque cerceou a capacidade de intervenção das autarquias, e estas, por sua vez, porque não reclamaram poderes neste campo a não ser em tempos de crise ou em questões de índole sanitária. Por outro lado, a ideologia que estava subjacente ao sistema criado, ao defender o direito da liberdade da esmola e da mendicidade, dificultava a gestão racional das capacidades assistenciais das Misericórdias e de outras instituições similares. A ausência de regulamentos que definissem prioridades assistenciais e, sobretudo, os alvos a atingir e os métodos a usar, em nada contribuiu para a excelência desse mesmo sistema. Todavia, faltam-nos estudos comparativos que nos permitam avaliar se, em termos de resultados sociais, a realidade portuguesa foi efectivamente mais negativa que a de outros países onde se desenvolveram formas de organização e de financiamento da assistência que a tornaram mais profissional e menos permeável às contingências das doações particulares. si cousa alguma”, atente-se, pelo menos, no seu preâmbulo: «Eu ElRei faço saber aos que este alvará virem que sou informado que os vereadores e officiaes das camaras de muitas cidades, villas e lugares deste reino repartem entre si e as pessoas que costumão andar na governança, as propriedades do concelho, dando-as uns aos outros com título de arrendamento, pagando pouco ou nada ao concelho; e que tomão sobre si as rendas das correntes, e os sobejos dellas gastão sem ordem alguma. E que outrosi os provedores e officiaes das confrarias da Misericordia, dos lugares aonde a ha, trazem usurpadas as mais propriedades da Misericordia, repartindo-as entre si e seus parentes, de que resulta mui grande prejuizo ás rendas dos concelhos e obrigações das ditas confrarias da Misericordia, que são de minha protecção, o que he causa de faltar sempre dinheiro para as cousas necessárias, assi para as despesas da Misericordia e hospitaes, como para as dos concelhos (…)», Collecção Chronologica de Leis Extravagantes posteriores á nova compilação do reino das Ordenações do Reino, publicadas em 1603, Tomo I, Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1819, pp. 17-18. 20 Conhecemos vários exemplos desta situação, ainda que mais em pormenor o da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, conforme demonstrámos em trabalhos anteriores. Dezenas de documentos das Chancelarias Régias atestam situações semelhantes registadas um pouco por todo o país. 136 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Aparentemente parece-nos que sim. Mas as generalizações são potencialmente perigosas e comportam riscos demasiado elevados. Por exemplo, quando nos centramos em Évora, detectamos que, pelo menos durante três ou quatro décadas, a cidade cumpriu um projecto assistencial que, se não contou com a participação do município, beneficiou, pelo menos, da existência de relações institucionais minimamente organizadas, com consequente partilha de responsabilidades entre a Igreja e a comunidade, melhor dizendo, entre o arcebispado e a Misericórdia. O seu principal mentor foi o Arcebispo D. Teotónio de Bragança (1578-1602), autor de várias reformas no domínio da assistência que dotaram a cidade de estruturas com algum grau de especialização ao nível da assistência às raparigas de elevado estatuto social – Recolhimento de S. Manços21 –; às prostitutas – Recolhimento da Madalena22 e aos pobres e mendigos – Hospício e Irmandade da Piedade (1587)23. A necessidade de separar competências foi, na verdade, uma preocupação recorrente nos escritos de D. Teotónio de Bragança, que a deixou registada de uma forma clara nos Estatutos da Piedade: ao Hospício cabia o acolhimento temporário dos pobres, peregrinos e convalescentes. Nunca doentes «de qualquer infermidade das que em o dito hospital costumão curar; porque o intento desta hospedaria he remediar as necessidades dos saos, e não curar as infirmidades dos doentes, que tenhão pera isso hospitaes»24. O seu objectivo não era, contudo, demarcar esferas de influência ou afirmação de poderes, mas, pelo contrário, potenciar resultados. A existência do Hospício da Piedade permitiu, por exemplo, que o Hospital do Espírito Santo, administrado pela Misericórdia, se dedicasse mais especificamente ao tratamento dos doentes e perdesse durante algum tempo a 21 Sobre as vicissitudes inerentes a este Recolhimento leia-se Marco Liberato, “Trento, a mulher e controlo social: o colégio de S. Manços”, Igreja, caridade e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII), pp. 275-289. 22 Continuamos à procura da documentação deste instituto que complemente as dispersas informações que sobre ele possuímos. 23 Cf. Laurinda Abreu, “Reclusão e controle dos pobres: o lado desconhecido da assistência em Portugal”, “Revista Portuguesa de História”, Tomo XXXVI, vol. I, Coimbra, 2002/2003, pp.527-540. 24 Arquivo do Cabido de Évora, Cec. 5-VIII – Livro dos estatutos desta casa, e hospedaria dos pobres de Nossa Senhora da Piedade da cidade de euora, in Instituicoes e regimentos que pertencem ao padroado do arcebispado de Évora mandados collegir pelos senhores Deão e Cabido sede vacante em Junho de mil e seiscentos e trinta e quatro annos. Transcrição apresentada no nosso texto “O hospício e irmandade da Piedade, em Évora – uma experiência de reclusão e controle de pobres em Portugal”, em publicação no volume de homenagem ao Professor José Marques, Faculdade de Letras, Universidade do Porto. CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS 137 valência de albergue para pobres, conforme se conclui da análise dos registos de entradas no referido hospital nos anos que se seguiram à criação do hospício25. Os inúmeros registos de “doentes da Piedade” que se encontram no hospital e as referências a “convalescentes da Misericórdia” existentes na documentação da Piedade mostram bem até que ponto foram cumpridos os propósitos dos mentores deste projecto. Ainda que analisada à escala local, podemos afirmar que a intervenção de D. Teotónio contribuiu para a fixação de um sistema, chamemos-lhe, ainda que com algum anacronismo, de assistência social institucionalizada, assente em três realidades de certa forma distintas ainda que complementares. A primeira de cariz educacional, pedagógica e moralizadora, circunscrita a um pequeno grupo de naturais de Évora26, era assegurada pela Igreja e ministrada nos Recolhimentos da Piedade27, São Manços e Madalena e, desde 1649, no Colégio dos Órfãos, fundado pelo cónego Manuel de Faria Severim. Uma segunda, mais material, cobria um vasto leque da população e estava a cargo da Misericórdia. O seu propósito era procurar garantir a sobrevivência dos seus pobres: os milhares de migrantes sazonais que anualmente acorriam ao Hospital do Espírito Santo, as crianças que eram depositadas no Hospital de S. Lázaro, as mulheres sozinhas que eram subvencionadas regularmente, as órfãs dotadas para casamento, os presos ou os doentes das quadrelas28. E, finalmente, uma terceira, da responsabilidade da Câmara Municipal, centrada nas questões de saúde pública, particularmente interventora em tempos de desordem do quotidiano, ou seja, em tempos de peste29. A estas vertentes da assistência acrescia ainda a questão da mendicidade e da vagabundagem, problemas de maior importância para as urbes, mas que estava quase exclusivamente sob o controle da Coroa. 25 Cf. o nosso texto, “The Hospital do Espírito Santo, in Évora, and its relationship with the city”, comunicação apresentada ao I Encuentro de Demografía Historica de la Europa Meridional, Menorca, Maio de 2003. 26 Conforme os dados que já coligimos para os recolhimentos da Piedade, Colégio dos Órfãos e Colégio de S. Manços. 27 Algumas informações sobre esta instituição já exclusivamente com funções de recolhimento para raparigas pobres podem encontrar-se em Sílvia Mestre e Marco Loja, “O recolhimento de Nossa Senhora da Piedade de Évora: uma instituição de assistência pós-Tridentina”, Igreja, caridade e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII), pp. 291-298. 28 Basicamente tratava-se de um sistema de apoio domiciliário em que a cidade era dividida em “quadrelas”, cada uma delas entregue a uma equipa constituída por um médico, um cirurgião e um sangrador. 138 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Este trabalho de reconstituição das estruturas assistenciais da Évora moderna, ainda em curso, permitiu-nos dar fundamento documental à tese que temos vindo a defender segundo a qual as medidas de carácter centralizador tomadas pela monarquia portuguesa durante o século XVI foram determinantes para a forma como o sistema evoluiu ao longo dos dois séculos seguintes. E se é verdade que poucas cidades terão beneficiado de uma intervenção tão dinâmica e abrangente como aquela que D. Teotónio protagonizou em Évora nas décadas finais de Quinhentos, também não é menos correcto que as linhas mestras que enquadraram a sua actuação tinham sido definidas pelo governo central. É certo que a capacidade de a Coroa impor as suas políticas a todo o país era bastante limitada e, não só por razões financeiras. Ou seja, também para as questões da assistência o rei estava dependente do bom desempenho das elites locais30. Já representadas nas Câmaras, elas seriam igualmente chamadas a gerir os destinos das Misericórdias. Com relativa autonomia, é indiscutível, mas sem capacidade para procederem a mudanças estruturais, como bem demonstram as sucessivas interferências régias no quotidiano de muitas Misericórdias, o que conduziu, nalguns casos, à imposição dos próprios provedores, como aconteceu frequentemente desde o início do século XVIII31. Neste sentido, o não incentivo à partilha de responsabilidades assistenciais entre os dois principais órgãos do poder local não pode deixar de ser visto como uma afirmação de poder por parte da monarquia. O que se repetia quando, durante os surtos de peste, anulava as deliberações camarárias, muitas vezes sem consultar os vereadores. 29 Como escrevemos, e justificámos, em “A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637”, cit. 30 Para o caso especifico de Évora consultem-se os trabalhos de Rute Pardal, nomeadamente, “O relacionamento do Arcebispado com a Misericórdia de Évora entre 1552 e 1643”, Igreja, caridade e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII), pp. 225-237. 31 Veja-se uma síntese da evolução da legislação relativa a esta questão em “As Misericórdias portuguesas de Filipe I a D. João V”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, pp. 49-51. As relações entre as Câmaras e as Misericórdias: exemplos de comunicação política e institucional RUTE PARDAL (CIDEHUS) 1. Se são bem conhecidas as relações institucionais entre as Câmaras e as Misericórdias, também sabemos que as duas instituições partilhavam características semelhantes, nomeadamente a nível administrativo/jurídico, financeiro, dos processos eleitorais, e da base de recrutamento social dos seus órgãos directivos. Isto apesar das diferenças óbvias entre ambas, por exemplo, as Misericórdias são, em termos jurídicos e jurisdicionais, um universo muito mais restrito que o das edilidades, que abrange nesses dois domínios toda a população residente1. 2. Nesta linha de pensamento, quando nos referimos às similitudes entre Câmaras e Misericórdias, ao nível administrativo/jurídico e financeiro, referimo-nos, naturalmente, à autonomia que ambas gozaram – embora esta fosse tutelada pelo rei, e por isso relativa. Comecemos, pois, pelas Câmaras. Em termos administrativos, o que mais se destacava era a capacidade legislativa que possuíam, consubstanciada na liberdade de promulgação das posturas ou acórdãos de cariz organizativo da realidade local. A importância desta competência revelou-se na irrevogabilidade das suas decisões quer por parte do representante local do rei – o Corregedor2 –, quer por parte do próprio rei. 1 Cf. Rute Pardal, As elites de Évora ao tempo da dominação filipina: estratégias de controle do poder local (1580/1640), Évora, Universidade de Évora, (dissertação de mestrado policopiada), 2003, p. 34. 2 Assim se infere da leitura das Ordenações. Cf. Ordenações Afonsinas, Livro I, Título Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 139-148. 140 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS O âmbito desta autonomia dos concelhos foi, sem ir mais longe, a regulamentação do quotidiano, regra geral, em matérias agrícolas, sanitárias e de policiamento. Ou seja, em sectores vitais para a comunidade, nomeadamente o importante sector do abastecimento3. De facto, cabia à vereação providenciar de modo a fornecer a população dos bens alimentares e manufactureiros. Em termos práticos seriam os Almotacés que tomariam contacto diário com os vendedores de todos esses produtos, e acabavam por taxar praticamente todos os géneros alimentares, reservando-se normalmente para as posturas a fixação do custo das obras dos mesteres4. Ainda no domínio agrícola, a acção das Câmaras alargava-se à tributação e ao tabelamento dos produtos cerealíferos e, entre outros, das carnes e do peixe, assim como de todas as manufacturas produzidas pelos artífices5. Por outro lado, a alçada do concelho estendia-se àquilo que definiríamos como «sector das obras públicas»: ou seja, os arranjos das calçadas e arruamentos, estradas e pontes, chafarizes e fontes6. Competia-lhe também zelar pela higiene e saúde pública, preocupações maiores para comunidades demograficamente carentes e financeiramente debilitadas. Daí a preocupação dos concelhos em lançar posturas e vigiar o seu efectivo cumprimento. A nível urbano, a acção concentrava-se, prioritariamente, sobre o despejo de detritos nas ruas devido às consequências que tais actos poderiam ter em termos de propagação das doenças, especialmente temidas em tempos de peste. Todavia, a tarefa não era fácil uma vez que se, por um lado, a falta de hábitos de higiene era generalizada, por outro, a fragilidade ou mesmo inexistência de um sistema de saneamento público não só dificultava o trabalho legislativo, como também a obrigação do cumprimento das posturas por parte dos oficiais concelhios7. XXVII, §16. Ordenações Manuelinas, Livro I, Título XLVI, § 9. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXVI, § 28. 3 O assunto já foi referido por vários autores: Entre eles, vide José Viriato Capela, O Minho e os seus municípios, Braga, Universidade do Minho, 1995. E, ainda, Teresa Fonseca, Absolutismo e Municipalismo em Évora: 1750-1820, Lisboa, Edições Colibri, 2002. 4 Cf. Joaquim Romero Magalhães, «Os concelhos», História de Portugal, (José Mattoso dir.), vol.III, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 179. 5 Apesar de alguns destes aspectos já estarem conformados nos forais, as especificidades das situações e o subsequente desajuste dos mesmos exigia um constante preceituar regulamentador. 6 Cf. Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu termo (1580 – 1640). Os homens, as instituições e poder, documentos para a História do Porto, XLVI, Porto, Arquivo Histórico, Câmara Municipal do Porto, 1988, pp. 629-630. 7 No caso de Évora, temos a evidência dessa mesma dificuldade em vigiar cabalmente a limpeza da cidade. Na sessão de vereação de 5 de Janeiro de 1618, Belchior da Maia foi RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS 141 Sobre outro domínio, ainda da saúde pública, ou se quisermos da assistência, os concelhos tiveram competências importantes, nomeadamente no que respeita à criação dos enjeitados. Na verdade, foi nas Ordenações Manuelinas – a primeira vez que em Portugal se legislou sobre esta matéria –, que os concelhos foram chamados a intervir a favor das crianças desprotegidas8. Paulatinamente, e quase sempre associada ao movimento de anexação dos hospitais às Santas Casas da Misericórdia, a criação dos expostos seria transferida para a alçada destas últimas9. Em Évora, por exemplo, o cuidado dos expostos foi entregue à sua Misericórdia em 1568, juntamente com a administração do Hospital de São Lázaro10, e aí ficaria até 1586, ano em que regressou novamente para a alçada da Câmara11. Em 1618 retornou à Santa Casa, que ficaria com esse serviço até que a legislação liberal lho tirou. Mas a autonomia administrativa dos concelhos seguia lado a lado com a autonomia financeira. Esta consubstanciava-se na faculdade dos próprios admoestado por se constar que as ruas da cidade estavam muito sujas. (Cf. Arquivo Distrital de Évora, Arquivo da Câmara Municipal de Évora (doravante ADE, ACME), Livro 9.º das actas da Câmara, fls. 21-22). 8 Nestas Ordenações estabeleceu-se uma espécie de hierarquização de responsabilidades relativamente à criação dos enjeitados. Esta seria, em primeiro lugar, obrigação dos pais e, na sua ausência, seriam responsabilizados, por ordem de prioridade, os parentes, os hospitais ou albergarias, e os concelhos. (Cf. Ordenações Manuelinas, Livro I, Título CXVII, § 10). 9 Apesar da responsabilidade dos enjeitados ter passado para as Misericórdias, pouco depois da sua criação, alguns concelhos acordaram em comparticipar nas despesas com as crianças, o que incluía a assistência médica, que abrangia as respectivas amas. Todavia, nem sempre o dito acordo foi cumprido. (Cf. Laurinda Abreu, «The Évora foundlings between the 16th and 19th centuries: the Portuguese public welfare system in analysis», European Association for the History of Medicine and Health – 5th Conference, Health and Child Care and Culture in History, Geneva Medical School, September 13th-16th, 2001. Idem, A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal de 1500 a 1755: aspectos de sociabilidade e poder, Setúbal, Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, 1990, p. 77. E, ainda, Isabel Guimarães dos Sá, A circulação de crianças na Europa do sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, JNICT, 1995, pp. 55-66. 10 Apesar das tentativas de embargo por parte do reitor do mosteiro de São João, antigo Provedor do dito Hospital. Cf. ADE, Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Évora (doravante ADE, ASCME), Livro dos Privilégios do Hospital, n.º 47, fl. 54-55). 11 O rei respondeu, desta forma, à missiva da Misericórdia, que pedia «que lhe desse renda» para que pudesse criar os enjeitados comodamente, ou, em alternativa lhe retirasse o encargo da criação. Por outro lado, a Câmara também teria demonstrado anteriormente que estava interessada em assumir novamente a administração do Hospital de São Lázaro e a criação dos enjeitados. (Cf. ADE, ASCME, Livro dos Privilégios do Hospital, n.º 47, fl. 679). 142 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS municípios arrecadarem as suas receitas para fazerem face às despesas, não dependendo de nenhuma outra instituição para fazer aprovar o seu orçamento. Mas no seio dos concelhos existiam ainda outros domínios relativamente autónomos, como por exemplo, o judicial. Como é do conhecimento geral, a Coroa só muito tardiamente conseguiu estender uma rede de Juízes de Fora a grande parte do país. Por isso, a justiça, em muitos dos municípios era executada por indivíduos eleitos localmente, ou seja, os Juízes Ordinários12. Apesar disso, o conteúdo da sua influência restringia-se apenas aos feitos cíveis que envolvessem bens móveis e imóveis. Como referimos, ainda que não abrangessem um universo social tão vasto quanto o das Câmaras, as Misericórdias também usufruíram de uma apreciável autonomia, em grande medida resultante da imediata protecção régia, que lhes conferia variados privilégios em diversos domínios. Assim sendo, no plano jurisdicional interno, ou de autonomia jurisdicional, o privilégio fundamental era o de poder aceitar e excluir irmãos sem dar satisfação a quaisquer tipos de justiças e oficiais13. Por outro lado, a autonomia administrativa das Misericórdias também decorria da faculdade de serem as próprias, à semelhança das Câmaras, a cobrar as receitas, o que, no essencial, limitava a actuação dos Provedores das comarcas14. Para além disso, e ainda no domínio das rendas, em pri12 Enquadrando-se a matéria da sua acção na matéria da autonomia judicial de que os concelhos dispunham, as suas competências eram semelhantes às dos Juízes de Fora. (Cf. Ordenações Manuelinas, Livro I, Título XLIV. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXV). (Cf. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXV). É de facto, com base nas Ordenações Filipinas que António Espanha corrobora as semelhanças nas atribuições dos Juízes de Fora e Juízes Ordinários. Todavia este autor, menciona que subsistem algumas diferenças, nomeadamente no que se refere à eleição. Os Juízes de Fora eram nomeados pelo rei, depois de aprovados pelo Desembargo do Paço, tinham jurisdição privativa em relação aos Corregedores e maior alçada que os Juízes da terra. Pelo contrário, estes últimos eram eleitos localmente e eram inspeccionados pelos Corregedores, facto que, em última análise, os colocava sob a tutela régia. (Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – século XVII, 2 vols., Lisboa, s.n., 1986). 13 Tal como o demonstra, por exemplo, o alvará régio de 24 de Janeiro de 1582, em favor da Misericórdia de Lisboa, onde de se refere que, “ o mesmo poderão fazer e farão no que tocar a receber irmãos ou os despedir quando lhes parecer sem serem obrigados a dar conta nem rezão aos que assi despedirem nem a nenhumas minhas justiças nem oficiais (...) ”. (Cf. ADE, ASCME, Livro de privilégios da Santa Casa da Misericórdia de Évora, n.º48, fl. 36). 14 Todavia, esta prerrogativa, não foi nem permanente nem definitiva, quando a actuação régia se pautou pela ambiguidade, ora outorgando competências fiscalizadoras aos Provedores das comarcas, ora cerceando-lhas. Para uma visão mais aprofundada sobre esta questão veja-se Rute Pardal, As elites de Évora... cit., pp. 67-68. RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS 143 meiro lugar, as Misericórdias podiam dispor, de um Juiz privativo como executor das suas rendas e esmolas. Em segundo lugar, e apesar de não ser um movimento simultâneo em todas as Misericórdias15, elas tinham a possibilidade de arrecadar as suas dívidas via executiva, ou seja, da mesma maneira que os almoxarifados e recebedores do rei arrecadavam a fazenda real. Mas, os pontos de contacto entre estas duas instituições não se ficaram pelos aspectos administrativos, jurídicos e financeiros, eles passaram também pelos processos eleitorais. Neste ponto, o mais importante a reter parece-nos ser o facto de, apesar do plano de actuação das Câmaras e Misericórdias ser diferente, o processo de escolha dos seus dirigentes mais importantes ser feita de forma colegial, ou seja, de forma indirecta e não de modo a permitir a participação alargada dos irmãos ou dos munícipes. Não obstante, se o processo de afunilamento da escolha dos oficiais camarários remontou, em Portugal, aos finais da Idade Média16, nas Misericórdias ele foi contemplado logo de início no compromisso de 151617 da Misericórdia de Lisboa – que serviria, tal como os seguintes, de modelo paras restantes Santas Casas. Ainda no campo eleitoral, tanto os municípios como as Santas Casas tinham liberdade de escolha dos seus magistrados e oficiais. Uma liberdade condicionada nas Câmaras pelo facto de essas escolhas terem de ser sancionadas pelo rei ou pelo donatário. As Misericórdias também não estariam isentas da tutela e da intervenção régia, essencialmente quando havia suspeitas de distúrbios, ou incumprimento dos processos eleitorais18. Não obstante, não tinham a obrigação de verem aprovadas as pautas das eleições que anualmente faziam. 15 Com efeito este foi um privilégio que as Misericórdias foram solicitando ao rei, com base na sua obtenção por parte da Misericórdia de Lisboa, em Maio de 1558. (Cf. Victor Ribeiro, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: subsídios para a sua História, Lisboa, Tipographia da Academia Real das Sciencias, 1902, p. 321). 16 Por isso, não podemos deixar de parte o empenho que, desde D. João I, os monarcas puseram na clarificação do processo eleitoral das magistraturas municipais. Este rei estabeleceu, através do alvará de 12 de Junho de 1391, que a eleição dos oficiais concelhios se fizesse pela maneira dos pelouros. Neste documento dá-se a entender nitidamente que a eleição dos oficiais locais não era de modo nenhum pacífica, e, por isso se procedeu à restrição do número dos considerados capacitados a intervir no processo. (Cf. Joaquim Romero Magalhães, Maria Helena da Cruz Coelho, O poder concelhio das origens às cortes constituintes, Coimbra, Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, anexo IX, p. 129). 17 Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de História, Lisboa, Livros Horizonte/Misericórdia de Lisboa, 1998, p. 598 e passim. 18 Tal como aconteceu em Setúbal e Évora, (cf. Laurinda Abreu, Memórias da alma e do corpo: a Misericórdia de Setúbal na modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999, 144 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 3. A identificação destas características, que são do domínio comum, parece-nos importante porque cremos que foram elas que facilitaram aquele que sabemos ter sido um comportamento habitual ao longo do Antigo Regime, ou seja, a circulação de indivíduos entre as duas instituições, um factor que nos pode remeter para a formação de oligarquias locais19. O mesmo é dizer, grupos formados por um número restrito de indivíduos, que, regra geral, controlavam o poder nas Câmaras e nas Misericórdias, com o objectivo explícito de se autoperpetuarem na governação de ambas as instituições20. Esta é uma situação recorrente, válida para todo o Antigo Regime e para todos os espaços até agora estudados – com oscilações locais, como é óbvio. Os primeiros estudos sobre esta problemática surgem já na década de sessenta do século XX, mas seria apenas em finais dos anos 80 que ele seria quantificado no estudo sobre a misericórdia de Setúbal21. Nele ficava bem vincada a rotatividade entre os cargos concelhios e da Santa Casa, mas também entre outros ofícios régios e da ordem de Santiago22. Este estudo teve continuidade nos últimos anos, tendo surgido vários trabalhos que demonstram que a maior parte dos irmãos das Misericórdias pp. 333-338. Rute Pardal, As elites de Évora … cit, p. 81. Vejam-se ainda os exemplos apontados em Isabel dos Guimarães Sá, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império português – 1500/1800, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp.25-50). 19 Sem pretender-mos entrar em conceptualizações, é importante referir que, ao utilizarmos o termo oligarquias estamos conscientes dos recentes debates que tem suscitado o seu uso. É certo que a denominação “oligarquias municipais” tende a conferir uma identidade social a uma categoria institucional «a dos vereadores camarários» cuja existência como grupo social carece de demonstração”. (Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites Locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime», Análise Social, vol. XXXII, 1997, p. 341). Sobre estas questões veja-se, entre outros, Rui Santos, «Senhores da terra, senhores da vila: elites e poderes locais em Mértola no século XVIII», Análise Social, vol. XXVIII (121), 1993 (2.º), pp. 345-369. Contudo, quando aqui nos referimos a oligarquias, ou oligarquização, pretendemos fazê-lo no sentido estrito da palavra, isto é: governo de poucos e predomínio de um pequeno grupo de pessoas e famílias. 20 Sobre a essência da perpetuação nos cargos por parte das elites locais, veja-se Joaquim Romero Magalhães, Maria Helena da Cruz Coelho, O poder concelhio … cit., pp.50-51. E ainda, Nuno Gonçalo Monteiro, «Os concelhos e as comunidades, História de Portugal, vol.IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 324-325. Idem, «Elites e mobilidade social … cit.», pp.339-345. 21 Cf. Laurinda Abreu, A Santa Casa da Misericórdia cit …, pp. 143-150. 22 Ibidem, pp. 143-150. RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS 145 ocuparam cargos nas Câmaras, em percentagens que chegam a atingir os 75% em Montemor-o-Velho23, os 71,1% em Ponta Delgada24 e os 71% em Évora25. Já os trabalhos sobre as Misericórdias de Vila Viçosa26 e Guimarães27, apesar de não fornecerem dados percentuais sobre esta estreita ligação, reiteram o facto de a maior parte dos irmãos das respectivas Santas Casas estarem quase sempre em maioria na ocupação dos cargos na “República”. O mesmo se verificou no caso do Porto, onde cerca de metade dos mesários eram também oficiais camarários28. 4. Como já referimos, a rotatividade entre estas duas instituições constituía, em última análise, um dos elementos que permitiam a autoperpetuação daqueles que controlavam estes órgãos do poder local. Na verdade, as estratégias de controlo alargavam-se a variados campos, onde a endogamia, o sistema de reprodução vincular e as redes clientelares exerciam um papel determinante. Assuntos que, pela sua complexidade, não podemos desenvolver aqui29. Parece-nos, no entanto importante abordar o sistema eleitoral enquanto factor que contribuiu para manutenção do poder local e para a elitização, tão característicos da sociedade de Antigo Regime30. 23 Cf. Mário José da Costa Silva, A Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Velho, espa- ço de sociabilidade, poder e conflito (1546-1803), Coimbra, Faculdade de Letras, (dissertação de mestrado policopiada) 1996, p. 130. 24 José Damião Rodrigues, Poder Municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no século XVII, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada., 1994, p. 177. 25 Rute Pardal, As elites de Évora … cit., p. 138. 26 Apesar do caso de Vila Viçosa ser específico, devido à influência da Casa de Bragança no panorama político local. (Cf. Maria Marta Lobo de Araújo, Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e de Ponte de Lima, s.l., Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa, e de Ponte de Lima, 2000, pp.111-128. Ainda para Vila Viçosa, vejam-se os dados indicados em Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança – 1560/1640: práticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, pp. 370-382. 27 Américo Fernando da Silva Costa, Poder e conflito. A Santa Casa da Misericórdia de Guimarães (1650-1800), Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, (dissertação de mestrado policopiada), 1997, pp. 77-85. 28 Cf. Ana Sílvia Albuquerque de Oliveira Nunes, História social da administração do Porto (1700/1750), Porto Universidade Portucalense, 1999, pp. 236-244. 29 Sobre este assunto veja-se Nuno Gonçalo Monteiro, O crepúsculo dos grandes (1750-1832), Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, pp. 57-199. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança … cit.. Maria de Lurdes Rosa, O morgadio em Portugal, (séculos XIV-XV). Modelos e práticas de comportamento linhagístico, Lisboa, Estampa, 1995. 30 Este processo de elitização percorreu não somente as Câmaras e as Misericórdias, mas 146 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Nas Câmaras a regulamentação da eleição dos seus oficiais encontrava-se definida desde as Ordenações Afonsinas31. Um processo que se foi complexificando até chegar às Ordenações Filipinas32, que reiteravam que a eleição se devia fazer pelo método dos pelouros de forma colegial, ou seja, de entre os homens bons do concelho. Anos mais tarde o rei restringia ainda mais o universo de elegíveis. Com efeito, o alvará e regimento de 12 de Novembro de 161133, estabelecia regras mais rigorosas no apuramento das magistraturas municipais. Exigia o dito alvará que os elegíveis no futuro fossem “ (...) pessoas naturaes da terra, e da governança della, ou houvessem sido seus pais e avós, de idade conveniente, sem raça alguma (...) ”34, sendo o Corregedor, ou o Ouvidor, obrigado, em primeiro lugar e antes de apurar o colégio eleitoral, a tirar informações junto de duas ou três pessoas “das mais antigas e honradas”35. À semelhança dos municípios, também as Misericórdias seleccionavam os seus membros. Em primeiro lugar, porque se constituíam como irmandades cujo número de irmãos estava delimitado nos compromissos. Em segundo lugar porque a evolução destes textos normativos nos indica que houve uma a progressiva elitização dos seus cargos administrativos. Se o compromisso de 151636 não era ainda muito claro em termos de definição da qualidade dos seus membros – requerendo apenas que o Provedor fosse nobre, e que os demais mesários, 6 fossem oficiais e 6 de outra condição –, o compromisso de 1577 já apertava a malha de recrutamento social, doravante restrita a cristãos-velhos37. Ao mesmo tempo, determitambém outras instituições da sociedade do Antigo Regime, como por exemplo, as corporações de ofícios. Sobre este assunto, veja-se José Viriato Capela, «Estudo prévio», Construction d’un gouvernement municipal: élites, élections et pouvoir à Guimarães entre absolutisme et libéralisme (1753-1834), Braga, Universidade do Minho, 2000, pp. 24-25. 31 Cf. Ordenações Afonsinas, Livro I, Título LXVII. 32 Ainda que estas constituam, neste particular, mais a confirmação da legislação Manuelina, do que propriamente uma inovação sobre o tema. (Cf. Ordenações Manuelinas, Livro I, Título XLV. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXVII). 33 Cf. José Justino de Andrade e Silva, Colecção chronologica da legislação portuguesa – 1603-1612, Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 314-316. 34 Ibidem, p. 315. 35 Ibidem, p. 314. 36 Joaquim Veríssimo Serrão, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa … cit., pp. 598-599. 37 Todavia, existiam algumas excepções no que se refere à admissão de cristãos-novos, que estavam proibidos de participar nos órgãos administrativos e nos actos religiosos públicos das Misericórdias, mas que gozavam dos restantes privilégios materiais e espirituais. Veja-se sobre esta temática Laurinda Abreu, «As Misericórdias portuguesas de RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS 147 nava que o Provedor fosse fidalgo, sendo que, ao Escrivão e ao Tesoureiro exigia que fossem honrados, com autoridade e virtude. Já no compromisso de 1618 ao Escrivão e ao Tesoureiro exigir-se-lhes-ia que fossem nobres38. Desta maneira verificamos que, aqueles que controlavam o poder nas Câmaras e as Misericórdias pertenciam ao estamento social da nobreza. Todavia, a composição social desta nobreza variava de lugar para lugar, segundo a tessitura social e económica do meio. Como Francisco Ribeiro da Silva afirma, não eram raros os casos de mesteirais que eram tidos como gente nobre na cidade do Porto. Aqui, a pertença social daqueles que conduziam os destinos municipais situava-se na esfera da aristocracia de projecção local, ainda que, as suas origens, não muito remotas ao século XVII, estivessem em ocupações como as de mesteirais e comerciantes39. Em Setúbal, por exemplo, já eram essencialmente donos de marinhas, proprietários de ofícios da ordem de Santiago, ou ainda homens que se tinham nobilitado pelas armas40. As mesmas armas que, a partir do século XVIII, serviriam, em Vila Viçosa41, para controlar a Câmara e a Misericórdia. Mas sobre Vila Viçosa pairava a Casa de Bragança. Com efeito, nas duas instituições, os eleitos eram fidalgos oriundos das mais antigas linhagens ao serviço da casa de Bragança42. Uma situação semelhante, no que ao exército concerne, se terá passado em Ponta Delgada no século XVII43. Isto sem esquecer que em Setúbal e Aveiro o mar, o sal, e todas as actividades mercantis, foram determinantes para a configuração das suas elites locais44. O que já não acontecia em Évora, onde tivemos oportunidade de verificar que os ocupantes dos cargos da vereação e das mesas da Misericórdia Filipe I a D. João V», Portugaliae Monumenta Misericordiarum: fazer a História das Misericórdias, vol. I, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, p.53. 38 Fernando Calapêz Corrêa, Elementos para a História da Misericórdia de Lagos, Lagos, Santa Casa da Misericórdia de Lagos, 1998, pp. 86, 88. 39 Cf. Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu termo … cit., p. 428. 40 Cf. Laurinda Abreu, A Santa Casa da Misericórdia … cit., p. 150. 41 Cf. Maria Marta Lobo de Araújo, Dar aos pobres e emprestar a Deus … cit., pp. 116-118. 42 Cf. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança … cit., p. 377. 43 Cf. José Damião Rodrigues, Poder municipal e oligarquias … cit., p. 188. 44 Cf. Manuel de Oliveira Barreira, A Santa Casa da Misericórdia de Aveiro: pobreza e solidariedade (1600-1750), Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (dissertação de mestrado policopiada), 1995, p. 78. 148 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS – entre 1580 e 1640 – provinham de antigas famílias de proprietários fundiários, fixando-se na região após a crise de 1383/138545. Em suma, estas comunicações entre as Câmaras e as Misericórdias surgem como uma característica marcante na sociedade do Antigo Regime. Sugerem ainda, a vontade do poder central em uniformizar sistemas institucionais e políticos. Pelas semelhanças com as estruturas camarárias, que apresentámos atrás, as Santas Casas constituíram um desses campos. Todavia, foi a partir da segunda metade do século XVI que as relações entre as duas instituições se intensificaram, essencialmente devido ao crescendo simbólico, económico e político que o poder central conferiu às confrarias. Um facto que atraiu o interesse das elites locais por estas instituições – apesar de tudo emergentes –, protagonizando doravante a característica mais destacada deste relacionamento, isto é, a circulação entre os cargos da vereação e os cargos administrativos nas Misericórdias. 45 Cf. Rute Pardal, As elites de Évora … cit., p. 133. Senhorios e concelhos na época moderna: relações entre dois poderes concorrentes MARGARIDA SOBRAL NETO (Univ. Coimbra – Fac. Letras / Centro de História da Sociedade e da Cultura) Na época moderna, o território português estava coberto por uma rede de concelhos, dotados de uma estrutura administrativa e judicial, que exercia o governo das terras em múltiplas áreas – economia, justiça, saúde, instrução – constituindo-se também como intermediária entre o poder central e as populações1. Sobrepondo-se e imbricando-se nesta rede concelhia encontramos uma rede de senhorios, constituída por casas nobres e eclesiásticas2. 1 Sobre as competências das câmaras vide, para além dos estudos monográficos, as seguin- 2 tes obras de síntese: Maria Helena da Cruz Coelho, Joaquim Romero Magalhães – O poder concelhio. Das Origens às Constituintes, Coimbra, CEFA, 1986; Monteiro, Nuno Gonçalo, “O espaço político e social local”, in César de Oliveira (dir.) – História dos Municípios e do poder local. Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 121-135. Os senhorios eram constituídos por um conjunto de bens e direitos, exercidos num determinado território. Os bens podiam ser de natureza patrimonial, adquiridos através de doações de particulares, compras ou trocas, ou de natureza régia, provenientes de doações concedidas pelos monarcas. Quanto aos direitos de natureza tributária tinham origem em doações régias, os denominados direitos reais, consignados em doações régias e forais, ou em contratos realizados entre as entidades senhoriais e as pessoas que assumiam o compromisso de exploração agrícola das terras ou a posse de casas ou de outros bens. Os direitos podiam ainda ser de natureza jurisdicional, cível ou crime. Estes bens e direitos constituíram a base material de sustentação, enquanto fontes de renda e de poder, de entidades nobres e eclesiásticas ao longo das épocas medieval e moderna. Sobre os senhorios portugueses ver as sínteses elaboradas por: A. H. de Oliveira Marques – “Regime senhorial”, Dicionário de História de Portugal, volume III, Lisboa, 1971; António Hespanha – As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal -séc. XVII, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 380-438; Armando Castro – A Estrutura Dominial Portuguesa dos séculos XVI a XIX (1834), Lisboa, Editorial Caminho, 1992; Nuno Gonçalo Monteiro – “Poder senhorial, Estatuto nobiliárquico Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 149-165. 150 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Senhorios e concelhos foram, na época moderna, os dois mais importantes corpos do “sistema tradicional de poder” a nível local, concorrentes, no entanto, no exercício do poder e na apropriação de recursos dos espaços em que dominavam. O domínio senhorial sobre a vida concelhia terá assumido formas muito diversificadas, de acordo com os titulares dos senhorios, os conteúdos dos seus poderes, bem como com os instrumentos ao dispor dos donatários e que lhes permitiam ser mais ou menos eficazes no exercício do poder senhorial. Propomo-nos nesta comunicação reflectir sobre os condicionamentos, ou os bloqueios, ao exercício do poder concelhio decorrentes das presenças senhoriais nos territórios concelhios. Os monarcas dotaram, ao longo do tempo, mas com particular incidência na Idade Média, algumas casas senhoriais de instrumentos de natureza jurisdicional susceptíveis de lhes assegurarem o controlo político e social das comunidades locais que tutelavam3. Esses instrumentos consistiam no privilégio de nomearem juízes de fora4, ouvidores, que exerciam funções similares às dos corregedores, de apresentarem, confirmarem ou apurarem os elencos dos governos concelhios – os juízes, os vereadores e os procuradores – bem como de apresentarem ou nomearem diversos oficiais que exerciam funções no seio dos concelhos – tabeliães, escrivães, juízes dos órfãos, almoxarifes, alcaides, etc.5 De acordo com o estabelecido nas Ordenações, e em regimentos publicados posteriormente, competia aos corregedores, aos juízes de fora ou aos ordinários a condução e supervisão dos processos eleitorais. Em algumas terras senhoriais essas funções eram asseguradas pelos donatários, ouvidoe aristocracia”, in História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 333-357; Idem, Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o liberalismo, Lisboa, ICS, 2003. 3 Maria Helena da Cruz Coelho – “Concelhos”, in Nova História de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. III (Portugal em definição de fronteiras. Do condado portucalense à crise do século XIV, coord. de Armando Luís de Carvalho Homem e Maria Helena da Cruz Coelho), Lisboa, 1996, pp. 554 – 584. Marreiros, Maria Rosa Ferreira – “Senhorios”, in Nova História de Portugal, Op. cit., pp. 584-602. 4 Em 1640, 16% dos juizes de fora eram nomeados pela Casa de Bragança. Neste, como em outros casos, os oficiais periféricos da coroa tornavam-se agentes de donatários (Nuno Gonçalo Monteiro – As Câmaras no equilíbrio dos poderes: funções sociais e dinâmicas locais, in César de Oliveira ( dir.) – “História dos Municípios e do poder local”, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 150-151). 5 António Hespanha – As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal-séc. XVII, Op.cit., pp. 380-438; Mafalda Soares da Cunha – Práticas do poder senhorial à escala local e regional (fins do século XV a 1640), in César de Oliveira ( dir.) – “História dos Municípios e do poder local”, Op.cit., pp. 143-153. SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 151 res ou por juízes, de fora ou ordinários, nomeados pela entidade senhorial, circunstância que podia interferir na selecção das pessoas que eram integradas em pauta. A intervenção senhorial na escolha dos elencos camarários decorria, igualmente, do seu poder de apresentar, confirmar ou apurar os oficiais das governanças. Estes instrumentos estão há muito identificados pela historiografia construída com base em fontes legislativas e doutrinárias, bem como em documentos que enunciam os poderes senhoriais. O que importa saber é, no entanto, como é que os senhores utilizaram os instrumentos de que dispunham, e saber igualmente se esses instrumentos geraram “sujeições e obediências”, favoráveis à prossecução dos seus interesses. O regimento para a eleição dos vereadores de 1611, regimento aplicável às terras cujas pautas não iam apurar ao Desembargo do Paço, apresentava como principal objectivo impedir “subornos e desordens” ocorridos nos processos eleitorais, nomeadamente o facto de se colocarem no governo das terras pessoas que não tinham as “qualidades para servirem”6. Na prática este regimento aplicou às terras senhoriais, ou às integradas nos termos dos concelhos, o processo eleitoral em vigor nas terras da Coroa, inserindo-se assim num processo de uniformização de práticas judiciais e administrativas locais. De notar, no entanto que, nas terras da Casa de Bragança o processo eleitoral não seguia o modelo das terras régias e senhoriais. Com efeito, nos concelhos cujas pautas eram apuradas pela chancelaria desta casa, as eleições não eram feitas por pelouros, mas por favas, método que, segundo Rogério Borralheiro, conferia uma “forte autonomia ao Duque face ao Rei”, bem como atribuía um papel mais interveniente da vereação cessante na escolha da nova vereação7. Como bem observou Rui Santos, a legislação que regulava os processos eleitorais, bem como a forma como esses processos decorriam, fazia com que o sistema de escolha das vereações fosse auto-reprodutivo8. A forma como se processavam as eleições nas terras da Casa de Bragança reforçava essa característica do sistema, tornando muito mais difícil a penetração de novos membros no seio das oligarquias fiéis às casas senhoriais. 6 Maria Helena da Cruz Coelho, Joaquim Romero Magalhães – O poder concelhio. Das Origens às Constituintes, Op. cit, pp. 141-144.. 7 Rogério Capelo Pereira Borralheiro – O Município de Chaves Entre o Absolutismo e o Liberalismo (1790-1834). Administração, Sociedade e Economia. Braga, ed. do autor, 1997. 8 Rui Santos – Senhores da terra, Senhores da vila: elites e poderes locais em Mértola no século XVIII, “Análise Social”, XXVIII (121), 1993 (2.º), pp. 345-369. 152 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Outro caso em que se evidencia um forte controlo senhorial dos governos concelhios é o do município da Lousã, concelho integrado na ouvidoria de Montemor-o-Velho, dependente da Casa de Aveiro. Sérgio Soares num estudo referente a este município concluiu que o governo concelhio era exercido pelo oficialato local provido pelo Duque de Aveiro que se comportava como uma clientela na estreita dependência da casa senhorial9. Por sua vez, o confronto entre as listas das pessoas nomeadas em pauta, e enviadas à casa de Aveiro, com as confirmadas por esta Casa levaram o mesmo autor a concluir que o Duque não se limitava a confirmar as listas decorrentes dos processos eleitorais locais. Com efeito, exerceram o cargo de vereadores, na Lousã, na primeira metade do século XVIII, pessoas indicadas pelo donatário que não constavam das pautas, o que evidencia a intervenção directa da casa senhorial na selecção dos elencos camarários10. A intervenção do poder senhorial nas eleições foi, por vezes, considerada abusiva, suscitando a contestação das comunidades. Em 1718, os moradores do couto de Tibães denunciaram as intromissões do donatário nas eleições. Afirmavam “que as eleições deveriam ser feitas só pelos povos e o mosteiro abusando mandava a ellas presidir dois religiosos e nellas faziam votar as pessoas que os ditos religiosos lhe parecia sahindo eleitos todos os seus afilhados”11. A acção dos donatários não se confinava, porém, à intervenção na escolha das elites concelhias. Alguns acompanharam muito de perto as práticas de governo. 9 Sérgio Soares – O ducado de Aveiro e a vila da Lousã no século XVIII (1732-1759), “ARUNCE”, n.º 11-12, p. 58 10 De notar ainda que, neste município, a passagem do domínio da Casa de Aveiro para o da Coroa levou a uma reconfiguração social das vereações. Com efeito, a partir de meados do século XVIII verificou-se um processo de elitização dos elencos camarários. As pessoas “principais da terra”, detentoras de propriedades vinculadas em morgadio, substituíram o oficialato local na governança da terra (Maria do Rosário Castiço de Campos – Redes de Sociabilidade e Poder. Lousã no século XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2003, dissertação de doutoramento policopiada). 11 Neste couto o juiz era escolhido com base em dois nomes eleitos pela população. A cerimónia de investidura realizava-se na Abadia, devendo o juiz fazer oferta ao mosteiro de 4 leitões, quatro carneiros e 12 galinhas. Na sua dependência, ficavam os vereadores, o procurador e outros oficiais concelhios. Por sua vez, o escrivão do couto Brito Aranha era “ o mais grosso detentor de terras arrendadas” ( Aurélio de Oliveira – A Abadia de Tibães, 1630/80-1813. Propriedade, exploração e produção agrícola no Vale do Cávado durante o Antigo Regime, policopiada., 2 vols., Porto, 1979, pp. 160-165). SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 153 O conhecimento histórico sobre as relações entre donatários e câmaras é ainda escasso. Aguardam-se os estudos monográficos que permitam esclarecer a forma como interactuaram estes dois poderes, ao longo da época moderna, nos diversos municípios com tutela senhorial12. As investigações já realizadas revelam-nos, entretanto, diversas articulações entre poder senhorial e concelhio. Os estudos de Jorge Fonseca sobre Montemor-o-Novo no século XV13, de Aurélio de Oliveira acerca dos coutos beneditinos de Tibães na época moderna14 e o estudo de Teresa da Fonseca relativo à administração senhorial no concelho de Vimieiro na segunda metade do século XVIII15, testemunham um “efectivo domínio das instituições concelhias por parte de donatários”16. No século XV, a jurisdição em Montemor-o-Novo foi exercida por entidades senhoriais. Um dos donatários, D. João de Bragança, desempenhou todos os direitos inerentes à jurisdição cível e crime, nomeando ouvidores, juízes ordinários, tabeliães e dando posse às vereações e outros oficiais. Para além da fruição de prerrogativas concedidas pelo monarca, este senhor ultrapassou os limites do seu poder, facto que motivou um pedido do concelho ao monarca no sentido de o manter “em sua antyga liberdade” quando se conseguiu libertar da tutela senhorial17. Por sua vez, os abades de Tibães, a partir dos finais do século XVII, exerceram um controlo apertado sobre as governanças concelhias do couto, substituindo-se às justiças locais na decisão de matérias de interesse para o senhorio – caso da gestão dos espaços incultos18. Neste couto, o 12 Para a época medieval vide Maria Helena da Cruz Coelho – Entre poderes – Análise de alguns casos na centúria de quatrocentos, Separata da “Revista da Faculdade de Letras”, II série, vol. VI, Porto, 1989, pp. 103-135. 13 Jorge Fonseca – Montemor-o-Novo no século XV, Montemor-o-Novo, Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1998. 14 Aurélio de Oliveira – A Abadia de Tibães, 1630/80-1813. Propriedade, exploração e produção agrícola no Vale do Cávado durante o Antigo Regime, Op.cit. 15 FONSECA, Teresa – Administração senhorial e relações de poder no concelho do Vimieiro (1750-1801), Arraiolos, Câmara Municipal de Arraiolos, 1998. 16 Idem, p. 64. 17 Jorge Fonseca – Montemor-o-Novo no século XV, Op.cit., p. 67. 18 Em 1718 os moradores do couto afirmavam que “a Abbadia se intrometia nas correições que a camara fazia 2 vezes por anno mandando juntamente um religiozo[...] de modo que quem julgava era o frade e os officiais viam-se metidos a testemunhas” (Op.cit., p. 166). Por sua vez, em capítulo realizado em 1770, os frades determinaram que não se deixasse “abrir monte sem licença de quem presidir no Mosteiro e de nenhuma sorte se conceder licença a Camara do Couto para os abrir” (Op. cit., p. 168). 154 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS donatário deixava para a câmara apenas as matérias relativas à regulamentação do comércio local. Assumindo posição idêntica aos abades de Tibães, os donatários do Vimieiro apropriaram-se das funções administrativas da câmara esvaziando-a das competências exercidas por outros municípios. A intervenção senhorial na governação concelhia foi, no entanto, algumas vezes requerida pelos próprios vereadores vimieirenses em matérias que lhes suscitavam dúvidas ou naquelas em que era difícil obter consensos. Teresa Fonseca defende ainda que as práticas esclarecidas de exercício do poder dos senhores de Vimieiro se caracterizaram pelo respeito pelo poder régio e pelo empenhamento no cumprimento das leis. Segundo a mesma autora, a atitude “vigilante e autoritária” do conde D. Sancho de Faro e Sousa conferiu “alguma regularidade e disciplina à administração municipal”19. A perda de autonomia municipal terá sido, neste caso, favorável às boas práticas da governação concelhia e à prossecução do bem comum. O controlo apertado da actuação das vereações e a “usurpação” das suas competências foi possível, nos casos atrás enunciados, devido à proximidade física dos donatários das terras que dominavam. Com efeito, como acontecia com o poder régio, a distância terá condicionado o exercício do poder senhorial. Outro tipo de relação entre donatário e concelhos é o evidenciado no estudo de Francisco Ribeiro da Silva sobre a “Estrutura administrativa do condado da Feira”. Com efeito, este autor considera ter existido “compatibilidade entre o domínio senhorial e o municipalismo” e “que a dinâmica municipal pôde processar-se na dependência directa de um senhor de vassalos sem que as instituições concelhias fossem bloqueadas”20. Neste condado, o exercício do poder senhorial foi desempenhado pelo ouvidor que acompanhou “muito de perto a acção governativa” da câmara, “denunciando ilegalidades, impondo a observância da lei, defendendo a jurisdição do Donatário e os direitos dos vassalos”21. Os ouvidores deste senhorio revelaram um particular empenhamento na defesa dos interesses das populações, atitude que motivou, por vezes, uma intervenção autoritária nas práticas de governo concelhio, tendo sido os vereadores ameaçados com penas pecuniárias e de prisão se não executassem as ordens do ouvidor. 19 Op. cit., p. 65. Francisco Ribeiro da Silva – “Estrutura administrativa do condado da Feira no século XVII”, Revista de Ciências Históricas, vol. IV, 1989, pp. 255-271. 21 Idem, p. 260 20 SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 155 Como decorre do atrás exposto, as atitudes do donatário do Vimieiro e dos ouvidores do condado da feira actuaram no sentido da aplicação das leis e ordens régias, convergindo, assim, o poder senhorial com o poder régio na submissão do poder concelhio. Nesta matéria, o comportamento dos donatários podia, no entanto, variar em função da conjuntura e dos seus interesses pessoais. José Viriato Capela demonstra que, no reinado de D. João V, o Arcebispo de Braga, D. José de Mascarenhas, governou “o senhorio temporal da cidade e seus coutos com poder soberano e postura de príncipe, defendendo as suas jurisdições contra as investidas das justiças régias”. Por sua vez, o seu sucessor, Dom Gaspar, já exerceu o seu poder em articulação com a “política nacional”, comportando-se os ouvidores-provedores nomeados pelo donatário como magistrados régios22. Para além do papel mais ou menos interveniente dos donatários e dos oficiais por eles providos, caso dos ouvidores, na escolha dos elencos camarários, convinha apurar se as práticas dos governos concelhios que passavam pelo crivo da selecção das casas senhoriais se pautaram ou não pela defesa dos interesses dessas casas. Sérgio Soares, em estudo relativo à Lousã, concluiu que o grupo de oficiais que estava dependente da distribuição dos “recursos senhoriais” da casa de Aveiro se constituía como um núcleo de “obediências e fidelidades senhoriais”23. Compreende-se que assim fosse se tivermos em conta que o bom desempenho das clientelas senhoriais no exercício do governo concelhio, bem como no cumprimento de outras funções, podia condicionar a prossecução das suas próprias carreiras, bem como a obtenção de outros recursos senhoriais. Referindo-se aos juízes de fora providos pelo duque de Bragança, Mafalda Sousa Soares afirma que “a maioria ascendia a ouvidores depois de exercer o cargo de juiz de fora em vários concelhos do senhorio. Percursos bem sucedidos podiam mesmo conduzir ao cargo de desembargador da Casa”24. Ora um percurso bem sucedido de ouvidor podia decorrer, na casa de Bragança, de um bom desempenho na cobrança de rendas, função que recorrentemente assumiram25. De notar ainda que mesmo a 22 O Município de Braga de 1750 a 1834. O Governo e a administração económica e financeira, Braga, 1991, pp. 9 e 15. 23 Cit., p.59. 24 Mafalda Soares da Cunha – A Casa de Bragança (1500-1640). Práticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, p. 291. 25 Tomé de Mesquita, ouvidor das comarcas de Barcelos e Bragança, recebeu, em 1587, 20 mil réis “pelos arrendamentos que fez a favor do Duque”. Em 1589, seria novamente recompensado com a quantia de 12 mil réis pelos arrendamentos feitos na Comarca de 156 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS carreira dos oficiais régios podia ser afectada pela forma como desempenhavam determinados serviços às casas senhoriais. A Universidade de Coimbra possuía o privilégio de poder recorrer aos juízes de fora e corregedores para executar os seus devedores. Devido a esta circunstância, considerava que devia ser ouvida quando se avaliava o desempenho desses oficiais no momento do apuramento das residências. De acordo com este entendimento, em 11 de Novembro de 1786, os deputados da Junta da Fazenda protestaram contra a nomeação do juiz de fora de Viseu para o exercício do mesmo cargo em Lamego, pelo facto de este não ter tido um bom desempenho na execução das dívidas da Universidade. As “obediências e fidelidades senhoriais” podiam, ainda, decorrer do relacionamento pessoal entre as vereações e os donatários. José Damião Rodrigues demonstra que “o compadrio e o clientelismo” são factores a ter em conta na compreensão das relações entre poder senhorial e poder municipal em Ponta Delgada no século XVII26. A atitude das vereações concelhias, relativamente à defesa dos interesses das casas senhoriais de que estavam dependentes, seria naturalmente condicionada pelos recursos que estas tinham para distribuir, recursos que seriam significativos nas vilas e cidades; de menor monta nos pequenos concelhos. Nestes, o exercício do governo concelhio ao longo do século XVIII deixou de ser, em muitos casos, um beneficio para se constituir como um pesado encargo a que muitos tentavam fugir, situação que se revelaria propícia à desobediência às entidades senhoriais das quais estavam dependentes. Nuno Monteiro invocando o comportamento dos oficiais concelhios nas terras do mosteiro de Alcobaça, nos finais do Antigo Regime, concluiu que as casas senhoriais não tinham capacidade de controlo sobre os governos das terras27. De facto, muitas câmaras assumiram no movimento de contestação anti-senhorial a defesa dos interesses das comunidades que governavam – interesses que, sublinhe-se, eram também os seus, enquanto vereadores, e enquanto pagadores de direitos senhoriais – em detrimento das instituições que os tutelavam. Bragança (cf. Manuel Inácio Pestana – Barcelos nos Arquivos da Casa de Bragança. Mercês do Duque D. Teodósio I. Separata de “Barcellos-Revista”, 1(2) 1983, p. 46. 26 José Damião Rodrigues – Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no séc. XVII, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994, pp. 274-318. 27 Nuno Gonçalo Monteiro – O espaço político e social local, cit., p. 159; Nuno Gonçalo Monteiro - Lavradores, Frades e Forais: Revolução Liberal e Regime Senhorial na Comarca de Alcobaça (1820-1824), em “Ler História”, n.º 4, Lisboa,1985, pp. 31-87. SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 157 Uma análise detalhada das atitudes das governanças, dos pequenos concelhos, ao longo dos conflitos, leva-nos, entretanto, a introduzir alguns matizes no comportamento dos diversos membros das vereações, bem como a identificar algumas variações na atitude que manifestaram durante os processos de contestação. Os estudos que tenho elaborado sobre esta matéria levam-me a concluir que os procuradores dos concelhos, pessoas que por norma tinham uma condição social inferior à dos vereadores, se revelaram mais rebeldes assumindo protagonismo em alguns movimentos. Já os juízes ordinários se manifestaram, por norma, mais prudentes no apoio explícito às populações28. De notar ainda que são muito frequentes, por parte dos membros da vereação, assim como de outros poderosos locais, as desistências da contestação, e consequentes proclamações de obediência, quando se apercebiam que não conseguiam atingir os seus objectivos, tentando, assim, salvaguardar-se das represálias motivadas pela desobediência às casas senhoriais, como era, por exemplo a perda das terras que agricultavam ou o pagamento de indemnizações às casas senhoriais ou custas de processos29. Em momentos de contestação, sobretudo aqueles que seguiam as vias judiciais, a posição dos senhorios era, por norma, mais forte do que a dos concelhos, pelo menos dos pequenos concelhos, porque se podia apoiar em múltiplos argumentos jurídicos. Um deles era o que registava os “reconhecimentos” feitos pelos oficiais concelhios no momento da elaboração dos tombos. Com efeito, aquando da realização dos tombos os oficiais concelhios eram chamados a reconhecer o domínio das casas senhoriais, bem como os direitos que lhe eram devidos, alguns consagrados em forais. Não era, portanto difícil, confrontar uma vereação concelhia “rebelde” com um documento em que vereações anteriores tinham reconhecido 28 Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Viseu, Palimage Editores, 1997, pp. 179-320. 29 Por terem recusado reconhecer o mosteiro de Celas (Coimbra) como donatário de Eiras, no momento da realização de um tombo, alguns moradores foram condenados, em 7 de Janeiro de 1749, pelo tribunal da Relação do Porto, ao pagamento de uma indemnização ao convento (Ana Isabel Sacramento Sampaio Ribeiro, Estruturas, redes e dinâmicas sociais. A comunidade de Eiras nos finais do século XVIII, Coimbra, Faculdade de Letras, 2003, tese de mestrado policopiada, pp. 21-30). O mesmo tribunal condenaria, em 9 de Julho de 1814, os moradores de S. João do Monte ao pagamento das custas de um processo judicial, originado pela recusa de pagamento de direitos senhoriais e contestação de domínio directo do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Licínio Gomes Neves – A comunidade rural de S.João do Monte: propriedade e relações sociais (1786-1820), Coimbra, Faculdade de Letras, 2003, tese de mestrado policopiada, pp. 177-183. 158 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS a obrigação de satisfazer ao senhor tributos, e outras “opressões”, que eram objecto da sua contestação. A posse alicerçada na tradição imemorial, por vezes reconhecida pelas câmaras, foi um poderoso argumento invocado pelas casas senhoriais em momentos de conflito com as comunidades locais, argumento que lhes ditou muitas sentenças favoráveis. Atitudes mais radicais das vereações ocorreram, entretanto, quando um concelho em luta contra uma casa senhorial, contava com o apoio de outro senhor. A partir do momento em que Ansião, um dos lugares do termo de Coimbra, foi desmembrado deste concelho para assumir o estatuto de vila, doada a Dom Luís de Meneses, a contestação ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, senhorio territorial deste lugar, intensificou-se, assumindo a vereação um evidente protagonismo30. A concorrência, e consequentes conflitos, entre casas senhoriais e câmaras, foi particularmente evidentes nos termos das vilas e das cidades em que a sede concelhia estava na dependência régia, exercendo os senhorios, em alguns lugares do termo, a jurisdição cível e/ou crime. António de Oliveira e Sérgio Soares, nos estudos que realizaram sobre o município de Coimbra, evidenciaram os múltiplos problemas com que a vereação coimbrã se deparou nos lugares do termo em que exercia apenas a jurisdição crime. Problemas que se materializaram na tentativa de apropriação da jurisdição crime por parte dos donatários que apenas detinham a cível, ou na dificuldade em cobrar impostos municipais nas áreas em que detinha apenas jurisdição cível31. A vereação de Montemor-o-Velho, concelho em cujo termo senhoreavam também vários senhores leigos e eclesiásticos, confrontou-se ao longo do século XVIII com idêntico problema. De facto, na maioria dos concelhos do termo apenas exercia jurisdição crime, situação que provocava frequentes conflitos de jurisdição32. Conflitos de jurisdição ocorreram igualmente entre a câmara do Porto e os donatários que senhoreavam no termo da cidade33. 30 Margarida Sobral Neto – Regime senhorial em Ansião. O foral manuelino e seus problemas nos séculos XVII e XVIII, “Revista Portuguesa de História”, Coimbra, 28, 1993, pp. 59-94. 31 António de Oliveira – A vida económica e social de Coimbra, Coimbra, Faculdade de Letras, 1971, vol. I; Sérgio Cunha Soares – O Município de Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Poder e poderosos. Coimbra, Faculdade de Letras, 1995, tese de doutoramento policopiada, vol.I. 32 Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Op.cit. 33 Francisco Ribeiro da Silva – O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens , as instituições e o poder, Porto, 1985, vol. I; Um dos conflitos ocorreu com o mosteiro de Grijó (Inês Amorim, O mosteiro de Grijó. Senhorio e propriedade: 1520-1720 (formação, estrutura e exploração do seu domínio), Braga, 1997, pp. 89-95. SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 159 O facto de os juízes de primeira instância das localidades do termo concelhio não serem confirmados pelas vereação da sede concelhia, mas serem investidos pelos donatários, ou pelos seus representantes, traduzia-se numa perda efectiva de controlo e de capacidade de dominação sobre o governo dos termos concelhios, facto que se repercutia muito negativamente no exercício do poder concelhio. De notar que as vereações das sedes concelhias dispunham de instrumentos de coacção das justiças dos concelhos do termo, por elas confirmadas, que podiam ir até à prisão de juízes ordinários em casos de clara desobediência34. Mas os concelhos não foram condicionados apenas pelas entidades que detinha direitos jurisdicionais nos seus territórios. Os senhorios não jurisdicionais possuíam outros instrumentos, conferidos pelos monarcas, que poderiam ser accionados contra quem contestasse o seu poder. Entre eles destaca-se a prerrogativa de possuir juiz privativo35. Nos finais do século XVIII, na região de Coimbra, várias são as queixas contra o conservador da Universidade, juiz privativo de várias casas senhoriais, que julgava, por norma, em desfavor das populações. Acrescente-se ainda que o conservador da Universidade chegou a contradizer posições assumidas pelo ouvidor da mesma instituição, anulando assim funções de controlo do exercício do poder senhorial assumidas por aquele36. As instituições senhoriais sediadas sobretudo nas cidades usufruíam de outros privilégios que colidiam com o exercício das competências das câmaras. Entre eles destacam-se as regalias em matéria de abastecimento de carne, peixe e água. As pastagens de animais pertencentes a comunidades religiosas suscitaram também frequentes conflitos37. Outro poderoso instrumento que detinham algumas casas senhoriais, “subtraindo-o” às câmaras, e que podia condicionar o jogo de forças a nível local, era a capacidade de intervenção na escolha de oficiais das orde- 34 35 36 37 Em 1724 estava preso, na cadeia de Coimbra, o procurador do concelho de Algaça, por ser “cabeça de motim em os juizos das sete varas de Poiares se levantarem contra a jurisdisam do Senado da Camara”. Por sua vez, em 1750, foram presos o procurador do concelho de Algaça e os juizes do concelho de Canedo e Hombres (Cf. Sérgio Cunha Soares – O município de Coimbra da Restauração ao pombalismo. Poder e Poderosos na Idade Moderna, Op., cit., vol. I, p. 62.) Nuno Gonçalo Monteiro – O poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia, in “História de Portugal”, Op. cit., pp. 352-353. Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Op. cit., pp. 121-124. Sobre o relacionamento entre a câmara de Évora e outras instituições da cidade cf. Teresa Fonseca, Absolutismo e municipalismo. Évora 1750-1820, Op.cit., pp. 341-351. 160 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS nanças, cargos muito requeridos a nível local pelo prestígio que conferiam e também pela capacidade de domínio sobre as populações38. Nuno Monteiro invocando o papel de liderança dos capitães de ordenanças no movimento de contestação anti-senhorial afirmou que o facto de o cargo ser vitalício conferia aos capitães uma margem de liberdade relativamente às entidades que os tinham nomeado. Argumento pertinente. Mas no movimento de contestação anti-senhorial os capitães de ordenanças assumiram atitudes diversas. Um dos principais alvos de contestação das populações foram os cobradores de rendas das casas senhoriais, as mãos do poder senhorial que invadiam os campos, os celeiros e os lagares esbulhando os camponeses de uma parte substancial do produto do seu trabalho. Ora, em tempos de instabilidade, os capitães de ordenança efectuaram a cobrança de rendas assegurando, deste modo, as receitas que alimentavam as casas senhoriais. Nestes casos, assumiram-se como zelosos defensores dos interesses dos senhorios (que eram também os seus) contra os das comunidades. Um exemplo paradigmático é revelado por Nuno Monteiro: o caso de um capitão-mor, rendeiro do Marquês de Marialva, que se distinguiu pela sua capacidade de vencer a resistência da população e da câmara de Cantanhede ao pagamento dos pesados direitos senhoriais. O excesso do zelo com que pautou a sua acção, em defesa dos interesses do donatário, levaria, entretanto, o próprio Marquês de Marialva a afastá-lo do exercício da actividade de rendeiro39. Na verdade, o excesso de zelo, ou a avidez, de alguns agentes senhoriais rompiam equilíbrios que os donatários queriam preservar. Com efeito, se o conflito marcou muitas vezes o relacionamento entre poderes concelhios e senhoriais, pensamos que a situação de conflito não seria a desejada por instituições que viviam num sistema marcado pela coexistência de múltiplos corpos e poderes. Como já afirmámos, os poderes jurisdicionais, bem como outros privilégios de que os monarcas dotaram as casas senhoriais, revelaram-se como instrumentos favoráveis à apropriação de recursos nas áreas con38 Sobre os poderes e a organização das ordenanças, cf. Maria Helena da Cruz Coelho, Joaquim Romero Magalhães – O poder concelhio. Das Origens às Constituintes, pp. 31-32; Teresa Fonseca – Relações de Poder no Antigo Regime. A administração municipal em Montemor-o-Novo (1777-1816, Montemor-o-Novo, Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1995, pp. 152-163; Rodrigues, José Damião – Orgânica militar e estruturação social: companhias e oficiais de ordenança em São Jorge (séculos XVI-XVIII), separata de “O Faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX”, Horta, 1998. 39 Nuno Gonçalo Monteiro – “Os Poderes Locais no Antigo Regime”, in César de Oliveira (dir.) – História dos Municípios e do poder local, Op. cit., p. 352. SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 161 celhias. Foi em matéria de captação de proventos económicos que a concorrência senhorial foi particularmente evidente, em manifesto prejuízo do governança concelhia. Como é sabido, cabia às câmaras a gestão corrente da vida das comunidades, em múltiplas áreas. Esta gestão pressupunha a existência de uma máquina administrativa que para funcionar necessitava de financiamento. Este financiamento provinha de recursos gerados pela riqueza que se produzia no seio das comunidades. Constituíam fontes de receitas das câmaras tributos, municipais ou sobejos de tributos régios, caso das sisas, rendimentos provenientes da gestão dos bens dos concelhos, coimas decorrentes de transgressões, nomeadamente as praticadas contra a legislação municipal40. Os historiadores que se têm dedicado ao estudo das finanças concelhias são unânimes em concluir que as dificuldades financeiras das câmaras foram um fenómeno estrutural no Antigo regime, constituindo-se como um factor de bloqueio ao desenvolvimento das políticas concelhias, nomeadamente no que concerne à realização de infra-estruturas: construção de estradas, pontes, reparação de edifícios camarários ou de cadeias. Podem ser invocadas diversas explicações para os problemas financeiros das câmaras, mas um deles, e talvez o de maior peso, nas áreas de domínio de senhorios, foi a concorrência feita por estes na apropriação de recursos. Os privilégios senhoriais, para além do seu peso político e simbólico, assumiam-se como instrumentos favoráveis à apropriação de recursos económicos das comunidades, diminuindo a matéria colectável dos concelhos, o que se reflectia negativamente nas finanças concelhias. Esta concorrência podia assumir diversas formas que passarei a explicitar. A sociedade de Antigo Regime estruturava-se no privilégio, condição de diferenciação social transversal aos diversos grupos sociais. Uma das estratégias utilizadas pelos senhores, na Idade Média, para atrair gentes aos seus territórios foi a concessão de privilégios aos seus “caseiros”. Alguns destes traduziam-se num conjunto de isenções relativas às obrigações concelhias: isenção do exercício de cargos concelhios, de participação em trabalhos exigidos pelas câmaras, e de pagamento de coimas e de tributos. Entre as dificuldades económicas das câmaras, destacava-se a de custear a reparação ou construção de caminhos, estradas, pontes ou fontes. Por 40 José Viriato Capela – O Minho e os seus municípios. Estudos económico-administrativos sobre o município português nos horizontes da reforma liberal, Braga, Universidade do Minho, 1995; Teresa Fonseca – Relações de Poder no Antigo Regime. A administração municipal em Montemor-o-Novo (1777-1816, Op. cit., pp. 106-151; Luís Nuno Rodrigues – Um século de Finanças Municipais: Caldas da Rainha (1720-1820), “Penélope”, n.º 7, 1992. 162 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS este motivo, tentavam obrigar os habitantes da comunidade que viviam do seu trabalho, jornaleiros ou lavradores, a prestar serviços gratuitos. Ora do universo dos potenciais prestadores de trabalho gratuito excluíam-se, à partida, as pessoas que possuíam o domínio útil de terras das casas senhoriais. Este privilégio, que era ciosamente guardado por aqueles que o usufruíam, bem como pelas casas senhoriais que lho haviam concedido, traduzia-se num forte constrangimento da acção camarária, principalmente nas zonas onde se concentravam muitas casas senhoriais, como era por exemplo a região centro41. Outro dos privilégios dos foreiros das casas senhoriais era a isenção de coimas. Muitas destas eram aplicadas às pessoas que transgrediam os regulamentos concelhios de utilização de áreas incultas, nomeadamente as áreas de pastagem. Ora os senhorios reivindicavam por norma o domínio directo sobre toda a área cultivada e inculta situada nas suas áreas de domínio, o que podia confinar a área do património concelhio a escassas terras42. A apropriação dos recursos das áreas incultas constituiu um dos principais motivos de confronto entre senhorios, sobretudo eclesiásticos, e câmaras43. Um conflito em que por norma saíam vencedores os senhores, obrigando, por vezes, as câmaras a realizar contratos de aforamento de terras incultas para preservar áreas de utilização comunitária, susceptíveis também de gerar receitas para os municípios. Nos conflitos entre senhores e câmaras motivados pela posse de áreas incultas – alguns deram origem a longos processos judiciais – estavam em causas motivações de natureza política, ou jurisdicional, e de natureza económica. Com efeito, as áreas incultas cobriam percentagens sig- 41 A existência de privilegiados, abarcando agora um leque mais amplo, reflectia-se no quotidiano das comunidades, mas também no país. Em 1618, o procurador da Câmara de Coimbra invocava a existência de muitos privilegiados na cidade para se eximir ao pagamento de uma finta para as obras do Reino (Aires de Campo – Questões forenses..., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858, vol. 2, p.186). 42 Margarida Sobral Neto - Uma Provisão sobre Foros e Baldios: problemas referentes a terras de logradouro comum na região de Coimbra, no Séc. XVIII, “Revista de História Económica e Social”, Lisboa, 14, Julho-Dezembro,1984, pp. 91-101. 43 José Viriato Capela – Tensões Sociais na Região de Entre-Douro e Minho, “O Distrito de Braga”, volume III da 2.ª série (VII), 1978; Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Op.cit.; Salvador Mota –O senhorio cisterciense de Sta Maria de Bouro: património, propriedade, exploração e produção agrícola (1570-1834), Porto, 2000 (dissertação de doutoramento policopiada), pp. 587-631; Ana Isabel Ribeiro – Um conflito entre poderes na Gândara da Bunhosa no início do século XVII, “Revista Portuguesa de História”, t. XXXII, pp. 183-223. SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 163 nificativas dos territórios concelhios, situando-se parte delas nas zonas fronteiriças entre concelhos. Ora a impossibilidade de controlar os usos dessas áreas acarretava uma perda efectiva de poder sobre o território concelhio. Mas os prejuízos mais visíveis eram de facto os de natureza económica: a impossibilidade de utilizar as terras incultas como fonte de receita significava uma enorme perda para as receitas municipais. Em muitos casos, o domínio das casas senhoriais sobre os incultos era abusivo, contrariando, aliás, o que estava disposto na lei. Muitos forais manuelinos que reconheciam o domínio senhorial sobre as terras incultas, determinavam que a sua alienação fosse feita “em camera”, isto é, após a consulta das vereações, enquanto entidades a quem competia salvaguardar o bem comum. As casas senhoriais comportavam-se, no entanto, como senhoras absolutas do que consideravam os seus domínios, alienando os espaços incultos sem consultar as vereações. Tendo em conta a complementaridade existente entre áreas cultivadas e incultas as alienações destas, por parte dos senhorios, e também das câmaras, provocaram um desequilíbrio susceptível de afectar a produção e produtividade agrícola bem como a criação de gado. Este facto repercutia-se negativamente no exercício de uma das principais competências dos concelhos: o governo económico, sector no qual o abastecimento se assumia como principal preocupação. Com efeito, num tempo em que a renovação da fertilidade da terra passava pela utilização de adubos vegetais e animais a subtracção de terras que eram o suporte para a criação desses fertilizantes afectava os níveis de produção e de produtividade com repercussões directas no abastecimento em cereais, base da alimentação das populações. Por sua vez, a diminuição das áreas de pastagem provocava uma diminuição da criação de gado o que interferia igualmente no abastecimento. Em articulação com as políticas de abastecimento, que se pautavam pela auto-suficiência, as câmaras para além de intervirem na agricultura, intervinham, também, no comércio de géneros alimentares, no sentido de evitar a saída de produtos necessários ao consumo do concelho. Ora, também, nesta área as políticas concelhias podiam ser afectadas pelos interesses dos senhores. Com efeito, uma parte significativa da produção agrícola destinava-se ao pagamento de diversos direitos às casas senhoriais. Estas eram assim detentoras de produtos agrícolas para consumo nas próprias casas, destinando-se, no entanto, o grosso a ser comercializado. Este pagamento não era feito, por norma, directamente aos senhorios. A cobrança era intermediada através de contratadores de rendas que, como afirmou Aurélio de Oliveira, seriam os grandes negociantes de pro- 164 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS dutos agrícolas, pelo menos na zona de Entre Douro e Minho44. Ora, de acordo com o estabelecido nas Ordenações um terço da produção teria que ficar sempre no concelho em que era produzido. Mas teriam os contratadores de rendas respeitado sempre esse princípio? Esta é uma pergunta que eu venho a colocar aos documentos há já algum tempo, mas para a qual não tenho encontrado muitas respostas45. Com efeito, o sistema de cobrança de rendas utilizado pela maioria das casas senhoriais poderia contrariar a política de autarcia económica prosseguida pelos municípios. Com a mesma política colidiam os monopólios senhoriais de fabrico de azeite, vinho ou pão, privilégios ciosamente preservados pelos senhores, apesar dos protestos das populações e das câmaras46. Mas o problema não residia apenas no eventual desvio de produtos necessários ao abastecimento local, com as necessárias consequências negativas para alguns estratos da população, nomeadamente os decorrentes da subida de preços, provocada pela diminuição da oferta; o principal problema residia no excessivo peso da tributação senhorial que asfixiava a vida económica local. Alguns estudos sobre rendas agrícolas, bem como o movimento de contestação anti-senhorial, atestam bem esta realidade. Ora, o facto de uma parte significativa da riqueza produzida numa comunidade ser canalizada para as casas senhoriais, não se verificando retorno em investimento, comprometeu a vida económica das comunidades e consequentemente as políticas concelhias. Nuno Monteiro observou que a “questão senhorial”, tal como ela se exprimiu de uma forma particular nos finais do século XVIII, “se confundia com a cobrança de direitos e não com as jurisdições”47. E observou ainda que “tanto para os donatários leigos como para os eclesiásticos o 44 Aurélio de Oliveira – A renda agrícola em Portugal durante o Antigo Regime (Séculos XVII-XVIII). Alguns aspectos e problemas, “Revista de História Económica e Social”, n.º 6, Julho-Dezembro de 1980, pp. 1-56. 45 Conhecem-se casos de câmaras que mandaram colocar cadeados em celeiros dos senhores para impedir o desvio de cereais em tempos de carestia. Em 1483, o concelho de Montemor-o-Novo solicitou a D. João II “que lhe permitisse tomar posse de certa quantidade de cereal, pertencente ao município, de que o marquês se tinha apoderado”( Jorge Fonseca – Montemor-o-Novo no século XV, p. 67). 46 A população de Eiras e o mosteiro de Celas confrontaram-se, ao longo do século XVIII, por causa do exclusivo senhorial do fabrico do azeite (Ana Isabel Sacramento Sampaio Ribeiro, Estruturas, redes e dinâmicas sociais. A comunidade de Eiras nos finais do século XVIII, Op.cit). 47 Nuno Gonçalo Monteiro – O poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia, in “História de Portugal”, p. 357. SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA 165 número de concelhos em que recebiam direitos com jurisdição era idêntico ao daqueles em que cobravam direitos sem jurisdição”48. No quotidiano da vida das comunidades o poder senhorial mais sentido pelas populações era, de facto, o desempenhado pelos cobradores de rendas ou pelos executores das casas senhoriais. Consideramos que o atrás exposto pode sustentar a tese de que o exercício do poder concelhio foi fortemente condicionado pelo poder senhorial com quem teve de partilhar jurisdições, poder, e sobretudo recursos. Com efeito, o exercício dos poderes senhoriais constitui-se como um factor limitador da autonomia das câmaras e fortemente condicionante do exercício das políticas concelhias. Esta situação explica a conflitualidade que, ao longo da época moderna, se gerou entre senhorios e municípios, que se intensificou na época pombalina decorrente das políticas, promovidas pelas vereações, tendentes a libertarem-se das presenças senhoriais nos territórios concelhios, políticas que foram coadjuvadas pelos oficiais periféricos da Coroa, nomeadamente provedores e corregedores49. A força do poder senhorial resistirá, entretanto, à aplicação integral da legislação que, na última década do séc. XVIII aboliu os direitos jurisdicionais concedidos aos donatários. A libertação dos municípios da tutela senhorial ocorrerá apenas na sequência da revolução liberal, no momento em que a autonomia dos concelhos, agora reduzidos em número, será cerceada pelo poder central50. 48 Idem, pp. 356-357. Margarida Sobral Neto – Poder central e poderes locais na época pombalina, in “Origens do Estado Moderno (Revista Século XVIII)”, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 2000. 50 Sobre as transformações ocorridas na vida municipal no período liberal vide, Luís Nuno Espinha da Silveira – Estado liberal e centralização. Reexame de um tema, in “Poder central, poder regional, poder local. Uma perspectiva histórica”, Lisboa, Cosmos, 1997, pp. 65-84; Paulo Jorge da Silva Fernandes – Elites e finanças municipais em Montemor-o-Novo. Do Antigo Regime à Regeneração (1816-1851), Câmara Municipal de Montemor- o-Novo, 1999. 49 Entre o centro e as periferias. A assembleia de Cortes e a dinâmica política da época moderna* PEDRO CARDIM (Universidade Nova de Lisboa – Dept. de História) Após duas décadas de significativos desenvolvimentos historiográficos, hoje dispomos de um conhecimento bastante razoável acerca as assembleias representativas da época moderna. Grande parte dos estudos que foram realizados incidiu nas instituições representativas dos reinos ibéricos que integraram a Monarquia Hispânica. Assim, e no que toca às Cortes de Castela-Leão, são hoje uma referência obrigatória os trabalhos de Pablo Fernández Albaladejo1, de José Ignacio Fortea Pérez2, de I. A. A. Thompson3, de J. M. Carretero Zamora4, de Luis González Antón5, de Juan Luis Castellano6, de Charles Jago7, de José Manuel de Bernardo Ares8 ou de Juan E. Gelabert9. Trata-se de investigações que muito contribuíram para esclarecer o papel político desempenhado pelas assembleias de Cortes. Os órgãos representativos de Aragão e da Catalunha também mereceram alguma atenção, destacando-se, entre os muitos estudos que poderiam ser citados, os trabalhos de Luis González Antón, de Xavier Gil Pujol10, mas também as investigações de Ernest Belenguer Cebrià11, de Angel Casals12, de Oriol Oleart i Piquet13 ou de Joan Lluis Palos Peñarroya14. Acerca das instituições representativas de Navarra, veja-se os estudos de Fernando de Arvizu y Galarraga15, e para o País Basco os trabalhos de Jon Arrieta Alberdi16; por fim, para a Galiza cumpre ter em conta as investigações de Manuel Artaza Montero17 e de María del Cármen Saavedra Vázquez18. Convém frisar que o interesse pelas assembleias representativas não é exclusivo dos historiadores que trabalham sobre a Península Ibérica19. Em Inglaterra, por exemplo, assistiu-se também ao surgimento de uma série Notas no final do trabalho. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 167-242. 168 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS de obras dedicadas ao Parlamento dos séculos XVI e XVII20, assinadas por historiadores como Blair Worden21, Mark Kishlansky22 e, sobretudo, Conrad Russell23. As instituições representativas de outras partes da Europa moderna, como a França24, os Estados Italianos25, a Flandres26 ou o Sacro Império27, também foram objecto de aturado estudo, de que resultou uma volumosa bibliografia, demasiado vasta para ser aqui apresentada. A historiografia portuguesa participou, ainda que indirectamente, neste renovado interesse pelas Cortes da época moderna. Tirando partido das questões levantadas em trabalhos pioneiros – como os de João Pedro Ribeiro28 ou do Visconde de Santarém29, e, posteriormente, dos estudos de Henrique da Gama Barros30, de Eduardo Freire de Oliveira31, de Paulo Merêa32 ou de Marcelo Caetano33 –, a recente historiografia manifestou algum interesse pelo estudo das assembleias representativas do Portugal da época moderna. Todavia, e ao contrário do que sucede para as Cortes da Idade Média – período para o qual dispomos dos trabalhos de José Mattoso34, de Armindo de Sousa35, de Maria Helena da Cruz Coelho36, de Amélia Aguiar Andrade e de Rita Costa Gomes37 –, ainda não existem estudos abrangentes sobre o conjunto das reuniões dos séculos XVI e XVII. Seja como for, algumas das mais importantes investigações sobre a história política e administrativa do Portugal Moderno contribuíram para uma compreensão aprofundada do lugar das Cortes no sistema político, em particular enquanto espaço de articulação entre os poderes locais e a Coroa. Pensamos, antes de mais, nos contributos de Joaquim Romero Magalhães38, de Fernando Bouza Álvarez39, de António de Oliveira40, de Luís Reis Torgal41, de António Manuel Hespanha42, de Francisco Ribeiro da Silva43, de Fernanda Olival44, de Pedro Cardim45 ou de Ângela Barreto Xavier46. Todavia, e a despeito do trabalho que foi realizado, não há dúvida de que muito subsiste por estudar. As Cortes do século XVI, nomeadamente, continuam à espera de um estudo aprofundado, na linha daquele que foi efectuado por Fernando Bouza para a assembleia de 158147. No que toca às reuniões celebradas no período Seiscentista, está por fazer a análise, caso a caso, do contexto em que cada uma delas se realizou, dos seus participantes, dos debates desenvolvidos, das decisões tomadas, etc. Por outro lado, urge levar a cabo o estudo comparativo, à escala ibérica, das reuniões de Cortes, tendo em vista captar a percepção que os povos peninsulares tinham das assembleias representativas realizadas nos reinos vizinhos. Importa aprofundar, também, a compreensão do papel desempenhado pelas Cortes no conjunto da administração central da Coroa. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 169 Cada uma das actas das sessões, por seu turno, seria merecedora de um “estudo de caso” altamente contextualizado, de molde a reconstituir o sentido das intervenções dos participantes, o funcionamento das sessões, os processos de decisão, etc. É igualmente imprescindível dedicar alguma atenção à articulação entre as Cortes e o mundo local, a fim de se perceber, por exemplo, os processos de selecção e o estatuto dos procuradores, assim como o impacto das suas decisões no mundo político das periferias48. Urge efectuar, também, abordagens na linha da história das ideias políticas, tendo em vista compreender a relação entre as sucessivas configurações do discurso político e o maior ou menor protagonismo das Cortes. Fundamental será, igualmente, a realização de investigações sobre a história da fiscalidade, temática largamente negligenciada pelos historiadores portugueses e de cujo estudo depende a compreensão cabal do significado político das Cortes da época moderna49. A participação do «estado da nobreza» e do «estado eclesiástico» nas sucessivas reuniões de Cortes é outro tema que ainda não foi objecto de um estudo sistemático, o mesmo se podendo dizer de questões como a hierarquia entre as cidades e vilas com voto em Cortes, ou do papel de Lisboa como «cabeça» do reino. Questão importante é, também, a da influência das autoridades senhoriais no comportamento dos procuradores oriundos de vilas situadas nos seus senhorios. Quanto ao vasto conjunto de petições existente nos arquivos portugueses, trata-se de um corpus que continua à espera de uma análise de conjunto. Falta, igualmente, uma iniciativa sistematizada de publicação da documentação produzida pelas Cortes do século XVII50, e cumpre estudar, igualmente, as várias alusões à «assembleia dos três estados» nos reinados de D. João V e de D. José I. Por último, urge avaliar o verdadeiro significado do debate sobre as Cortes na segunda metade de Setecentos. Como se pode verificar nesta breve enumeração, está por cumprir toda uma vasta agenda de investigação sobre as Cortes do Portugal da época moderna. As Cortes no ambiente político do Antigo Regime A fim de compreender o papel político das Cortes no quadro das relações entre o centro e as periferias, é indispensável ter em conta que se trata de uma assembleia que operava num quadro comunitário eminentemente corporativo, e num contexto social onde coexistiam distintos sentimentos de pertença à comunidade política. Trata-se de um universo político onde o principal quadro de referência não era a divisão administrativa implementada pela Coroa, mas sim o laço de pertença que resultava do próprio 170 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS tecido social em que cada pessoa estava integrada. Convém não esquecer que a sociedade da época moderna assentava em corpos de todo o tipo, cada um deles titular de uma diversa gama de poderes, em especial o de administração da justiça, como se sabe um atributo essencial, estruturante, do conceito de autoridade no Antigo Regime51. Nesse quadro, a comunidade local era o elemento que precedia as demais unidades políticas, e a cidade ou vila onde se residia constituía o núcleo central da sociabilidade. A urbe, por sua vez, era tida como uma comunidade de famílias, e o reino como uma comunidade de cidades, escalonadas segundo uma ordem fortemente hierárquica, ordem essa que atribuía a cada uma das instituições locais um lugar preciso na escala de dignidade política. Em termos administrativos, as principais instituições actuantes sobre o terreno eram os senhorios – eclesiásticos e seculares – e os municípios. Tanto uns como os outros formavam comunidades tendencialmente completas, pequenas «repúblicas» virtualmente auto-governadas. No que respeita às divisões administrativas da Coroa, também elas estavam presentes, embora a sua entrada em cena seja posterior à das divisões que acabámos de referir. A malha administrativa da Coroa desenvolveu-se mais lentamente, e fê-lo, num primeiro momento, adaptando-se à realidade social e jurisdicional que a precedia. O quadro de referência da Coroa era o «reino», a comunidade territorial de ordem superior que englobava, no seu seio, e com combinações de natureza bastante diversa, toda uma série de comunidades locais, assim como os variados corpos em que estava estruturada a sociedade. Cada um dos «reinos» que povoava a paisagem da época moderna era, assim, um conjunto político plural, resultante da progressiva incorporação e agregação de territórios. Todos esses territórios estavam sob a égide de um rei, o qual lhes concedia uma margem de autonomia mais ou menos ampla. Nas palavras do jurista João Salgado de Araújo, «el Rey, y el Reyno hazen un cuerpo mixtico, el cabeça, y los vassallos miembros, y como en el cuerpo phisico ay correspondência de amor, entre cabeça y miembros, assi la deue auer en el mixtico de la Republica, entre el Rey y sus vassallos…»52. Os princípios fundamentais que regiam a coexistência no espaço do «reino» eram a partilha recíproca – entre o rei e o reino – de direitos e de deveres. O rei surgia, assim, como a cabeça de um conjunto de territórios, territórios esses que apresentavam perfis e estatutos bastante diversos. Tal heterogeneidade, de resto, encontrava-se bem expressa na titulatura régia, onde sempre se enumerava, segundo uma escrupulosa ordem hierárquica, todos os domínios que estavam sob a alçada do soberano. Apesar dos inevitáveis contrastes regionais, era este o cenário que caracterizava toda a Península Ibérica53. Estamos, por conseguinte, perante um ambiente de pluralidade de pertenças e de identidades políticas, as ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 171 quais não eram necessariamente contraditórias, mas sim complementares. Pertencia-se, primeiro, a uma família, depois a uma aldeia, a uma vila ou a um bairro; de seguida, era-se habitante de uma cidade; a partir daí pertencia-se a uma cidade-província; depois, a um reino; por último, podia-se também fazer parte de uma monarquia ou, até, de um império. A par destas pertenças, avultava, igualmente, a inserção em corpos como o estado social ou o grupo sócio-profissional. Por fim, todos estes quadros de pertença estavam englobados naquele que era o elemento identitário por excelência: a inserção na Respublica Christiana. No ambiente político do Antigo Regime a assembleia das Cortes era o momento em que estas várias partes que compunham a comunidade se reuniam com o rei, e em que o «reino» se tornava momentaneamente visível enquanto enquadramento de pertença comum a todos os diversificados membros que o integravam. No decurso das «reuniões dos três estados» eram invocados sentimentos de pertença a um corpo político a que se dava o nome de «reino», falando-se em «bem comum do reino» e em direitos, mas também em obrigações inerentes à condição de parte integrante da comunidade reinícola54. Contudo, importa ter em conta que as obrigações inerentes à pertença ao «reino» estavam longe de possuir a força que caracteriza os actuais deveres de cidadania. No cenário político do Antigo Regime, as obrigações associadas à condição de parte integrante do «reino» eram pouco consensuais e pouco mobilizadoras, sobretudo quando comparadas com os deveres para com a família, para com a comunidade onde se residia, ou para com a entidade corporativa de que se fazia parte. Faltava uma base para o surgimento de obrigações comuns, de uma solidariedade geral, porque predominava um sentimento de pertença eminentemente orgânico e particularista, que não favorecia o desenvolvimento espontâneo de deveres para com organizações políticas mais vastas e de natureza artificial. Todavia, no século XVI, com a expansão das monarquias, reuniram-se as condições para a reconfiguração dos laços de associação política. As várias casas reais procuraram forjar outro tipo de vinculações e de sentimentos de pertença, adicionando-os aos pré-existentes laços de natureza orgânica e de cariz particularista. Verificou-se que os sentimentos de ligação à comunidade local já não eram completamente compatíveis com a realidade cada vez mais extensa de entidades como a Coroa Portuguesa, a qual por essa altura se assumiu como a cabeça de um império pluricontinental. O mesmo se poderia dizer da Coroa de Castela, também ela senhora de vastos domínios, tanto na Europa como fora dela55. Quanto aos reis, D. João III e D. Sebastião I em Portugal, Carlos I e Filipe II nos domínios dos Habsburgo, bem se esforçaram por aprofundar o significado da pertença a unidades políticas mais vastas. Fizeram-no 172 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS desenvolvendo uma pujante acção mecenática, onde as obrigações inerentes à pertença a esses espaços políticos surgiam cada vez mais associadas às causas comuns da Cristandade. Fizeram-no, também, incrementando o seu dispositivo administrativo, a fim de conferir mais homogeneidade à acção da Coroa. Todavia, os sentimentos particularistas de que atrás falámos revelaram-se muito resistentes, e vários territórios resistiram a esta dinâmica. Assim, numerosos foram os castelhanos que manifestaram reservas face aos propósitos imperiais de Carlos I e de Filipe II56. Em Portugal, o projecto de conversão da Coroa lusitana na cabeça de um grande império também não se revelou consensual e, como é sabido, muitos questionaram as grandiloquentes visões régias de conversão do Reino lusitano na cabeça de um potentado pluricontinental. Cumpre não esquecer que a família real de Portugal – a Casa de Avis – acalentou planos dinásticos, e os seus membros também fomentaram projectos de constituição de unidades políticas de carácter mais vasto. Como se sabe, D. Manuel levou muito a sério a hipótese de liderar um projecto de união com Castela e Aragão sob a égide da Coroa portuguesa. Nos derradeiros anos de Quatrocentos, as movimentações em torno do príncipe D. Miguel da Paz são reveladoras da hipótese de entrada de Portugal para uma união com Castela e Aragão. Curiosamente, nessa ocasião um segmento da sociedade portuguesa não escondeu o seu temor perante as consequências que poderiam advir da entrada do reino lusitano para uma unidade política tão vasta57. A orgânica das Cortes Qual foi o papel desempenhado pelas assembleias de Cortes nesse período em que os líderes políticos do ocidente Europeu apelaram aos seus vassalos, de forma cada vez mais insistente, para que tivessem em conta não só o seu «bem particular», mas também o «bem comum do reino»? Convém lembrar que as Cortes começam por ser uma forma alargada de conselho régio, congregando, no início, apenas as figuras mais proeminentes do reino. Em Castela, os representantes das cidades começaram a ser chamados às Cortes a partir de meados do século XIII. Em Portugal, a primeira assembleia que contou com a presença de procuradores das cidades parece ter sido a que se realizou em 1254. Seja como for, na primeira fase do seu percurso histórico as Cortes funcionaram sobretudo como o espaço de articulação entre a Coroa e a elite nobiliárquica, e durante muito tempo essa assembleia foi dominada pela nobreza, secular e eclesiástica. Aliás, cumpre referir que, em certos momentos, os nobres foram o único dos «três estados» a comparecer na ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 173 reunião. Porém, com o desenvolvimento dos vários órgãos da administração da Coroa e com a afirmação da corte régia como palco principal da política58, as Cortes foram-se tornando menos relevantes para o grupo nobiliárquico, o qual, de resto, desenvolveu outros canais para estabelecer a sua interacção com a Coroa, designadamente os emergentes conselhos palatinos e alguns sectores da cada vez mais desenvolvida administração da Coroa. Paralelamente, e ao contrário do que sucedia com o clero e com a nobreza, a assembleia representativa foi-se tornando mais importante para as corporações urbanas, sobretudo enquanto espaço de comunicação política com o rei. É fundamental não esquecer, portanto, que as Cortes começaram por ser compostas, apenas, pelos membros dos grupos privilegiados, e que só mais tarde esta assembleia abriu as suas portas ao chamado «terceiro estado». Nessa fase as Cortes eram, fundamentalmente, uma modalidade alargada de conselho régio, podendo, por isso mesmo, intervir, no processo governativo. E à semelhança do que se passava com todos os órgãos administrativos da época, também as Cortes actuavam segundo uma matriz jurisdicionalista. Por outras palavras, os representantes do reino pensavam-se a si mesmos não só como conselheiros, mas sobretudo como uma espécie de instância judicial, como um tribunal. Assim, uma vez reunidas as Cortes, todos os presentes assumiam a posição de autoridades imparciais chamadas a verificar a admissibilidade jurídica de pretensões e de contra-pretensões, tendo como principal finalidade a manutenção dos equilíbrios pré-existentes. Enquanto órgão dotado de uma matriz judicial, as Cortes actuavam segundo uma técnica que estava pensada não tanto para evitar que a desordem se registasse, mas sim para repor a ordem depois de rompida a natural disposição das coisas. Nas Cortes deparamos, assim, com uma prática de governo (e uma correlativa teoria) que tendia a conceber o poder antes de mais como instrumento para a conservação da ordem, natural, mas também jurídica. Não devemos esquecer que, nesse período, a missão primordial do poder político consistia em reconhecer a ordem e garantir um equilíbrio inscrito na natureza das coisas. Assim, em vez de exercer uma jurisdição eminentemente voluntária, a assembleia instava os vassalos a apresentar problemas, actuando o rei a pedido dos vassalos. Esses pedidos eram formulados em dois principais tipos de documentos: os «capítulos particulares», os quais, como o seu próprio nome indica, faziam eco dos problemas «particulares» de cada comunidade local; e os «capítulos gerais», produzidos pelos «três estados» na fase inicial de cada assembleia, e que incluíam questões de alcance mais geral, desde reivindicações corporativas até advertências acerca de temas da actualidade do reino. Nesses pedidos gerais a visão particularista surgia, sem dúvida, mais esbatida. 174 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS De acordo com o costume, só o rei em pessoa podia chamar e presidir às Cortes. A prerrogativa de convocar os «três estados» era vista como uma marca de soberania, o que fazia com que, em princípio, não fosse delegável59. Todavia, enquanto que em Portugal este princípio foi sempre respeitado, no espaço da Monarquia Hispânica, durante os séculos XVI e XVII, deparamos com alguns territórios cujas assembleias representativas foram frequentemente convocadas pelos representantes locais do monarca: nas possessões hispânicas de Itália60, por exemplo, os vice-reis presidiam a Cortes napolitanas e sicilianas, e o mesmo se terá passado em juntas de cidades da América Espanhola61. Seja como for, as Cortes eram encaradas como o encontro, por excelência, entre o rei e os seus vassalos, e era precisamente essa proximidade física face ao monarca que fazia com que a assembleia fosse tão valorizada pela sensibilidade coetânea. É certo que o encontro físico entre o monarca e os «estados» do reino só tinha lugar na sessão de abertura solene e nas cerimónias de juramento que eventualmente tivessem lugar. De qualquer modo, o costume mandava que o rei deveria permanecer na localidade onde decorriam as Cortes até ao final dos trabalhos. A finalidade era «tornar presente» o reino ao rei, a fim de renovar o compromisso entre a Coroa e o reino, assim como resolver problemas governativos que estivessem pendentes. Todavia, importa referir que a situação constitucional das Cortes não era completamente clara. Trata-se de uma indefinição que remonta ao período medieval, pois, já nessa altura, para alguns o rei tinha a obrigação de chamar a assembleia representativa antes de tomar qualquer decisão governativa de maior importância, enquanto que, para outros, pelo contrário, a consulta das Cortes era como que um acto de «graça», dependente do arbítrio régio. Vários chegavam mesmo a alegar que o parecer do conselho régio podia substituir o diálogo com as Cortes. Esta indefinição marcará todo o percurso histórico da assembleia62. Como sugerimos atrás, a partir de meados do século XIV o perfil dos órgãos representativos sofreu uma importante mudança, sobretudo em Castela, reino onde o clero e a aristocracia, aos poucos, foram deixando de comparecer nas reuniões de Cortes. Os únicos que continuaram a marcar presença foram os representantes das cidades. No fundo, estava em curso um processo de gradual afastamento dos magnates da nobreza em relação às Cortes, fruto da situação atrás mencionada: a aristocracia encontrara outros canais de influência e de articulação com a Coroa. Assim, e como notou I. A. A. Thompson63, desde a segunda metade do século XIV os únicos nobres e clérigos que participavam na reunião eram aqueles que desempenhavam algum cargo na corte régia ou que, por ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 175 acaso, se encontravam nas proximidades do local onde se realizava a reunião. Por isso, em 1480 as Cortes de Castela eram já, oficiosamente, uma instituição dotada de uma só câmara, ou seja, aquela que reunia os representantes das cidades. No tocante a Portugal, foi em 1254 que os procuradores das cidades e vilas participaram pela primeira vez nas Cortes, na reunião celebrada em Leiria. A partir da assembleia de 1331 os diversos «estados» passaram a reunir separadamente64, e em 1477 surgiram as chamadas «comissões de definidores», ou seja, grupos restritos de procuradores constituídos por iniciativa dos oficiais régios e que ficariam incumbidos de assegurar o andamento dos trabalhos. Trata-se de uma solução que tinha em vista agilizar os processos de decisão. No que respeita ao afastamento dos grupos privilegiados, pode dizer-se que, em Portugal, as Cortes evoluíram no mesmo sentido dos demais reinos ibéricos, embora o distanciamento da nobreza e do clero seja menos pronunciado. Os trabalhos de Armindo de Sousa sugerem que, também em terras lusitanas, os representantes dos núcleos urbanos costumavam ser os mais entusiastas na afluência às Cortes. De acordo com A. Sousa, a nobreza compareceu em apenas 23 das 44 reuniões realizadas entre 1385 e 1490, enquanto que o clero marcou presença em 24 reuniões. Quanto ao «estado do povo», as Cortes portuguesas de finais da Idade Média terão contado com a participação regular de representantes de cerca de oito dezenas de cidades e vilas65. Além disso, entre as cidades registaram-se conflitos de precedência relacionados com o lugar em que participavam na «assembleia dos três estados», facto que aponta no mesmo sentido da valorização da importância da assembleia. Acresce que as Cortes portuguesas continuaram a decidir sobre matérias de “alta política”, sendo sistematicamente chamadas para intervir em certas áreas fulcrais do governo do reino como o juramento do rei ou a fiscalidade régia66. Para além disso, a assembleia representativa desenvolveu uma considerável actividade de produção normativa, no quadro da resposta às petições, ao mesmo tempo que interveio na política local, sobretudo em áreas como a fiscalidade (cobrança, controlo administrativo), o recrutamento militar, a gestão das clientelas locais, etc. Assim, no período tardo-medieval, embora se registe um certo desinteresse dos grupos nobiliárquicos, podemos afirmar que as Cortes de Portugal mantêm o seu perfil de assembleia com «três braços». Um outro indicador a ter em conta é o elevado ritmo das suas convocatórias: na centúria de Quatrocentos realizaram-se mais de quatro dezenas de reuniões67, um valor muito superior ao que se registou no século posterior, altura em que as convocatórias se tornaram muito menos numerosas. 176 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS No que concerne a Castela, e como notou I. A. A. Thompson, em 1538 Carlos V tomou uma decisão marcante: exortou a nobreza e o clero a comparecer nas Cortes. O imperador desejava que esses grupos sociais tomassem parte, de facto, na assembleia, e ao fazê-lo estava de algum modo a reeditar um modelo de reunião que, à data, estava a cair em desuso naquele reino. Como dissemos, a nobreza, mas também o clero, vinham-se desinteressando das Cortes desde meados do século XV. Em 1538, a resposta da aristocracia castelhana ao apelo do Imperador foi muito expressiva: 80% dos titulares e do alto clero responderam à chamada. Todavia, em vez de apoiar os projectos de Carlos V, a assembleia tornou-se no principal pólo de oposição aos novos impostos que a Coroa desejava introduzir. Aliás, cumpre assinalar que essa foi uma das raras ocasiões em que os «três braços» actuaram de forma concertada contra a fiscalidade régia, e terá sido esse o motivo que levou o imperador a ordenar a sua dissolução, a 1 de Fevereiro de 153968. A dissolução das Cortes, por Carlos V, marcou o fim da convocatória dos nobres e do «estado eclesiástico» para a assembleia castelhana. Até ao último chamamento das Cortes de Castela durante o século XVII (registado em 1664), essa assembleia jamais contaria com o «braço da nobreza» formalmente reunido, facto que deve ser visto não só como uma forma de a Coroa evitar uma oposição mais concertada entre os «três braços», mas também como uma opção da aristocracia e do clero, os quais, como dissemos, encontraram canais alternativos para exercer a sua influência política e para defender os seus interesses económicos. Como assinalámos, para a nobreza as Cortes tinham-se tornado pouco relevantes. E com o abandono da aristocracia, em 1539, as Cortes de Castela converteram-se numa assembleia de procuradores de cidades e vilas, razão pela qual a sua função consultiva diminuiu consideravelmente, o mesmo se podendo dizer da sua capacidade de intervenção em questões da alta política69. Uma coisa é certa: a não comparência da nobreza retirou alguma força às Cortes de Castela. As formas de representação política nas Cortes Enquanto órgão representativo, as Cortes activaram, ao longo da sua história, formas razoavelmente diversas de representação política70. I. A. A. Thompson71 e José Ignacio Fortea Pérez72 assinalaram que, no período medieval, a representação possuía, sobretudo, um carácter senhorial. Tanto os nobres como os clérigos, e também as cidades, participavam na reunião enquanto entidades que administravam territórios habitados por uma população mais ou menos significativa. Assim, esses dignitários par- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 177 ticipavam nas Cortes não só como membros do «estado eclesiástico» ou do «estado da nobreza», mas também como senhores de terras, ou seja, como figuras que detinham uma margem de autoridade administrativa sobre parcelas significativas do território e sobre conjuntos populacionais nada desprezíveis73. Além disso, não era claro se os nobres, quando compareciam nas Cortes, representavam a nobreza enquanto corpo. De facto, os membros do «estado da nobreza» não eram eleitos nem recebiam qualquer procuração, razão pela qual, em princípio, não podiam falar pelo conjunto do «estado da nobreza». António M. Hespanha notou, a propósito deste tema, que o entendimento atomista de representação prevaleceu até ao final do Antigo Regime: em questões de política global do reino, parece que as Cortes se assumiam como uma assembleia que representava o conjunto do reino; em questões como pedidos ou «serviços», permaneceu a ideia de que cada participante se representava a si mesmo, e em seu nome concordava ou não com o que lhe era pedido74. Seja como for, a questão jamais reuniu consenso, e ao longo de toda a existência das Cortes discutiu-se até que ponto os juramentos ou os votos nas assembleias obrigavam aqueles que não estavam presentes75. Discutiu-se, também, se o voto da maioria dos membros do «estado da nobreza» obrigava aqueles que tinham decidido noutro sentido76. A nobreza e o clero, para além disso, costumavam vincar que participavam nas Cortes não tanto por obrigação para com o rei, mas sim como um direito que lhes assistia, o que, entre outras coisas, fazia com que os seus processos decisórios fossem algo diversos daqueles que vigoravam no «terceiro estado». Enquanto que no «estado da nobreza» e do clero o princípio da maioria suscitou algumas reservas, no «terceiro estado», apesar da resistência de alguns procuradores, esse princípio parece implantar-se: «o que se assenta e vence pela maior parte se assina e segue pela menor, e he cousa que não padeseo numqua de comtrouersia», escreve D. João IV em Fevereiro de 1646, respondendo a alguns procuradores que, tendo perdido uma votação sobre questões fiscais, se recusavam a acatar a decisão maioritária77. No que respeita ao «terceiro estado», vimos atrás que, após 1539, as instituições urbanas passaram a ser o único «braço» chamado às Cortes de Castela, comparecendo um total de dezoito cidades, as quais assumiram a tarefa de representação do conjunto da Coroa de Castela. O caminho percorrido até se chegar a essa situação tinha sido longo. Como dissemos, só a partir de finais do século XIII é que as comunidades urbanas começaram a ser chamadas, com regularidade, às Cortes. No caso da assembleia de Castela-Leão, chegou a integrar mais de uma centena de urbes, tanto cidades de grandes dimensões como vilas e, até, pequenos lugarejos. No entanto, 178 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS com o passar do tempo o número de municípios representados nas Cortes de Castela foi claramente diminuindo: das 101 cidades presentes em 1315 passou-se para 17 em 1435. Refira-se que, de um modo geral, a opção por não comparecer foi tomada pelas próprias localidades, as quais, tal como os nobres, encararam a assembleia como uma instituição pouco relevante para a protecção dos seus direitos78. Desse modo, coube a dezoito cidades falar em nome do conjunto da Coroa de Castela. A distribuição geográfica das urbes com voto em Cortes é também reveladora de que a representação política activada nessas reuniões não reflectia um critério de proporcionalidade geográfica ou demográfica. José Ignacio Fortea Pérez79 notou que mais de metade dessas cidades se concentravam no interior de Castela: nove em torno da bacia do rio Douro (Burgos, Valhadolide, León, Zamora, Salamanca, Toro, Ávila, Segóvia, Sória), quatro em terras de La Mancha (Madrid, Toledo, Cuenca e Guadalajara), quatro no reino andaluz (Jaén, Córdova, Sevilha e Granada), e uma no reino de Múrcia (Múrcia). Leão, Castela-a-Velha e Castela-la-Mancha eram, pois, as áreas melhor representadas nas Cortes de Castela-Leão. Desse modo, e como assinala o mesmo J. I. Fortea Pérez, vastos territórios ficavam privados de representação nas Cortes, entre os quais avultavam as províncias bascas (que contavam com a sua própria estrutura representativa, nas juntas específicas completamente independentes das Cortes de Castela), assim como os territórios das Ordens Militares. Para além destas regiões, o norte peninsular carecia também de representação na assembleia castelhana, situação compensada pelo facto de o município de Burgos representar oficiosamente a zona Cantábrica, então conhecia por «La Montaña»; a cidade de León desempenhava idêntico papel para o Principado de Astúrias. Quanto ao reino da Galiza, dependia de Zamora, enquanto que Salamanca falava por toda a Extremadura80. À semelhança do que sucede nas demais Cortes ibéricas, em Portugal a procedência geográfica dos procuradores também não obedece a nenhum critério de proporcionalidade aritmética. A região mais densamente povoada do reino – Entre-Doutro e Minho – estava sub-representada, enquanto que regiões muito menos povoadas, como o Alentejo, contavam com um grande número de assentos em Cortes. Para Luís Miguel Duarte, a força do regime senhorial a norte do Mondego explica esta disparidade, tendo sido esse o factor que ditou a fraca participação, nas Cortes, dos concelhos das regiões situadas a norte do rio Mondego81. Por outro lado, há também a registar a presença de um número considerável de procuradores enviados por cidades e vilas situadas na proximidade da fronteira. De um modo geral, o factor que motivava a participação das cidades nas Cortes era a forte tradição de governo participativo que existia em toda ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 179 a Península Ibérica. Desde tempos ancestrais os municípios vinham desenvolvendo formas colegiais de decisão, e a situação de auto-governo em que viveram, durante séculos, ainda mais contribuiu para enraizar tais processos de decisão. Acresce que as concepções políticas predominantes no mundo ibérico apontavam muito mais para um exercício do poder partilhado, do que para modalidades decisórias mais individualistas, facto que também terá contribuído para consolidar a presença das cidades nas Cortes. Era, pois, no quadro deste imaginário político que a Coroa concedia a certas cidades a «honra» de tomar parte nas assembleias. E ao mesmo tempo que se desenvolvia esta tradição de governo participado, as autoridades municipais reforçavam a sua identidade e constituíam-se como pequenas repúblicas locais, garantindo à população que estava sob a sua égide toda uma série de liberdades e imunidades. Formavam-se, desse modo, verdadeiras «comunidades de privilégios» (T. Herzog82), e em muitos momentos as Cortes assumiram-se como um dos principais momentos de defesa desses privilégios ante as investidas da Coroa. A influência de Itália e do chamado «humanismo cívico», por seu turno, com toda a sua exaltação do governo republicano, dos valores cívicos e do individualismo, também desempenhou o seu papel na persistência dessa tradição participativa. Segundo Xavier Gil Pujol, é possível escutar ecos deste ideário em alguns momentos da história ibérica do século XVI, como por exemplo no movimento das Comunidades de Castela83. Todavia, após a derrota dos comuneros a linha doutrinal de sentido regalista ganhou novo alento, e o ideário «republicano» teve menos espaço para se desenvolver84. É muito significativo que os escritos de teoria política em circulação a partir desse período retratem as Cortes como um mero fórum de debate, desprovido de competências decisórias de maior alcance. Quanto aos monarcas, empenhados no processo de consolidação das bases do seu poderio, manifestaram uma menor disposição para convocar um órgão que, no fundo, lembrava que a pessoa régia não estava sozinha na decisão sobre questões governativas. No entanto, é interessante verificar que o facto de a cultura política ibérica ser intrinsecamente regalista não foi necessariamente incompatível com o reconhecimento de que as Cortes tinham um determinado lugar na relação entre o rei e os seus vassalos. De facto, o exercício da autoridade régia era visto como parte de um sistema de poderes e de contra-poderes que se equilibravam. Para além disso, uma série de autores lembrava insistentemente que o povo – e não o rei – era o depositário do poder originário de Deus85, persistindo uma forte tradição discursiva que insistia na importância incontornável do consensus populi, doutrina acolhida nas obras dos principais teólogos e juristas daqueles anos86. 180 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Assim, e ao contrário do que seria de supor, a afirmação do projecto político da Coroa não teve como consequência imediata o desaparecimento das Cortes, bem pelo contrário: o maior voluntarismo da Coroa traduziu-se na intensificação da comunicação política entre o rei e o reino, e uma parte significativa dessa comunicação acabou por ter como palco a assembleia representativa. Na verdade, os diversos reis aperceberam-se de que as Cortes poderiam desempenhar um papel importante enquanto espaço de inculcação de sentimentos de pertença ao «reino», essa comunidade política alargada que comportava uma nova gama de obrigações e de sacrifícios. Aperceberam-se, também, de que a aprovação, em Cortes, de medidas impopulares – como os novos impostos – poderia contribuir para tornar mais aceitáveis esses sacrifícios. Quanto aos vários grupos sociais, viram na assembleia representativa um bom palco para zelarem pelos seus direitos e pelas suas liberdades face ao crescente voluntarismo régio. Foi assim que, a partir de meados de Quinhentos, as assembleias representativas voltaram a desempenhar um papel mais interventivo na política. O facto de reinos como Aragão, Nápoles ou Sicília integrarem os domínios dos Habsburgo também contribuiu para vincar o papel político das Cortes. Na realidade, perante a afirmação da Coroa de Castela no conjunto da Monarquia, as elites aragonesas, napolitanas, sicilianas e, mais tarde, portuguesas, recorreram a alguns elementos do ideário republicano para potenciarem a defesa dos foros reinícolas e para amplificarem os seus protestos sempre que consideravam que tais foros estavam a ser postos em causa pelo centro político. Pode então dizer-se que a pertença à Monarquia Hispânica também contribuiu para que as Cortes assumissem um maior protagonismo, desta feita como uma espécie de símbolo dos foros de cada uma das partes desse conjunto político compósito. Esta tendência manteve-se no século XVII, altura em que se acentuou a faceta das Cortes como verdadeiros bastiões dos foros reinícolas e como pólos de obstrução à política régia, política essa que cada vez mais exigia o contributo de todos para o esforço conjunto da Monarquia. O aumento das solicitações dos Habsburgo incidiu sobretudo no terreno fiscal, facto que favoreceu o discurso que via nas Cortes a única sede com legitimidade para aprovar novos tributos. Nas diversas partes dos domínios dos Habsburgo os apelos régios para que se aumentasse o contributo fiscal tiveram o condão de fomentar o desenvolvimento de um discurso que vincava a natureza auto-governada das várias partes da Monarquia, assim como a sua ancestral autonomia decisória87. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 181 Os procuradores. Formas de selecção e poderes O número de procuradores enviado por cada cidade variou ao longo da existência histórica das Cortes. No início, os municípios começaram por contar com apenas um representante, passando depois para dois procuradores por cidade. Em Castela, é a partir do século XV que se regista a tendência para a generalização da regra de dois representantes por urbe88, o mesmo sucedendo em Portugal, reino onde a assembleia representativa continuou a ter uma afluência bastante numerosa de procuradores. De facto, até ao final de Seiscentos as Cortes lusas contaram com a participação de representantes de cerca de uma centena de cidades e vilas. No que respeita aos processos de escolha dos procuradores, o primeiro dado a assinalar é o facto de não existir uma normativa geral que definisse o modo de proceder na sua selecção. Cada cidade tinha os seus costumes electivos, e a Coroa limitava-se a fazer recomendações gerais, impondo algumas regras também elas bastante vagas: as eleições deveriam ser realizadas da forma costumeira, observando o que estava disposto nas Ordenações e abrangendo apenas os residentes na localidade que iria enviar os procuradores; o eleito deveria ser escolhido entre a «gente da governança» e de forma pública, ou seja, com o conhecimento de todos os residentes; o escolhido deveria possuir o perfil moral adequado ao desempenho de um ofício, para além de um certo património; no contexto castelhano, existia uma norma que impedia que um mesmo regidor exercesse a função representativa em duas Cortes seguidas89. Quanto ao reino português, a procuração tinha de obedecer a certos requisitos formais, devendo incluir o nome daqueles que haviam participado na escolha do representante, ser avalizada pelo juiz de fora, e conter a afirmação de que o procurador fora investido de «poderes bastantes» para decidir sobre a matéria que motivara a convocatória das Cortes. Importa referir que as eleições nem sempre eram pacíficas, até porque a escolha do procurador era um processo que costumava extremar posições entre «parcialidades» locais ou «bandos» rivais. Além disso, apesar de sabermos muito pouco acerca da interferência da Coroa portuguesa na escolha dos procuradores, a documentação de que dispomos sugere que os oficiais régios procuravam garantir que os representantes das principais cidades seriam coniventes com os projectos régios. Acerca do reino de Castela, Fortea Pérez afirma que a interferência régia nos processos de selecção dos representantes terá sido relativamente frequente até ao final século XV, tendo retrocedido a partir dessa data. O mesmo estudioso sustenta que as disputas em torno da selecção dos representantes aumentaram no século XVII, o que pode estar ligado a um crescente interesse das oligarquias castelhanas em estarem presentes nas 182 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Cortes, em parte para defender os direitos da cidade que os enviara, mas também como fonte de rendimento. Com efeito, o direito a participar na assembleia representativa podia ser rentabilizado, designadamente através da venda da procuração90. Por outro lado, é preciso ter em conta que a governança das principais cidades era frequentemente composta por aristocratas e por membros da nobreza de corte, o que significa que uma parte do chamado «terceiro estado» era muito pouco “popular”. Talvez resida aí uma parte da explicação para o facto de algumas cidades manifestarem pouca confiança nos seus representantes, encarando-os como figuras que, uma vez nas Cortes, passavam a estar mais ao serviço da Coroa do que da cidade que os enviara. Em Castela, a questão do controlo que as cidades exerciam sobre os seus procuradores suscitou bastantes discussões, e as autoridades urbanas mostraram-se sempre relutantes em conceder aos seus representantes o «voto decisório», ficando-se, de um modo geral, pelo «voto consultivo». Em finais de Quinhentos, e tendo em vista superar a representação atomista de que atrás falámos, a Coroa tentou transferir do voto decisivo para as Cortes, medida que se inscrevia num esforço mais vasto de reestruturação da administração fiscal. Contudo, tal proposta levantou problemas não só no terreno das relações com as cidades, mas também porque acabou por não garantir à Coroa a docilidade da assembleia representativa. Tentou-se impor, no mesmo sentido, que os procuradores votassem não propriamente por cidades, mas sim individualmente, proposta que também enfrentou forte resistência91. Nas Cortes portuguesas, as cidades «dos primeiros bancos» – com destaque para Lisboa, Porto, Coimbra e Évora – também costumavam contar com uma representação bastante selecta em termos de estatuto social, enquanto que as demais cidades e vilas com assento em Cortes tinham representantes de muito menor qualidade de nascimento. Esta disparidade repercutia-se no desenrolar das sessões, pois as principais cidades eram frequentemente olhadas com desconfiança por parte das demais. Quanto ao limite decisório dos procuradores, trata-se de uma questão que jamais foi debatia com o calor que caracterizou a polémica castelhana92. Todavia, a matéria nem sempre se revelou pacífica. Assim, e a título de exemplo, convém recordar que, depois da entrada de Portugal para a Monarquia Hispânica, os Habsburgo tentaram limitar o âmbito de intervenção das Cortes, designadamente através de uma restrição explícita dos poderes dos procuradores. D. Filipe I, na carta de convocatória para as Cortes de 1583, especificou que os procuradores deveriam trazer, apenas, «poderes bastantes para jurar o príncipe». Desejoso de partir para Castela quanto antes, o monarca procurava, desse modo, reduzir a reunião a esse assunto ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 183 e evitar debates sobre outras matérias, tendo em vista converter as Cortes numa assembleia muito mais ágil e rápida. A decisão foi mal acolhida, e vários foram os núcleos urbanos que manifestaram o seu descontentamento por essa «novidade». Por último, uma referência aos chamados «Procuradores dos Mesteres». Algumas cidades com maior tradição mesteiral tinham o direito de enviar às reuniões de Cortes, para além dos procuradores do concelho, os chamados «procuradores dos mesteres», os quais também podiam apresentar petições ao rei. Tais petições versavam, habitualmente, sobre matérias especificamente relacionadas com o quotidiano das corporações mecânicas, e nelas é possível encontrar, com grande frequência, a expressão do protesto dos mesteres, por exemplo, pelo facto de as principais decisões locais serem tomadas pela Câmara sem que eles tenham sido consultados93. Em quase todas as petições mesteirais advinha-se um ambiente tenso entre as corporações artesanais e a chamada «gente da governança». As reuniões das Cortes de Portugal no século XVI Apesar do ritmo de convocatórias ter baixado, durante o século XVI as Cortes continuaram a reunir com uma certa assiduidade: em Castela, no reinado de Carlos I, celebraram-se 15 assembleias, e no tempo de Filipe II registaram-se 11 reuniões. Em Aragão e na Catalunha, pelo contrário, deparamos com longos intervalos entre as convocatórias de Cortes, fenómeno que se deveu, antes mais, ao facto de o monarca estar cada vez mais tempo ausente desses reinos. Segundo Xavier Gil Pujol, esses hiatos contribuíram para o enfraquecimento do potencial político das assembleias representativas, e o mesmo estudioso nota, com toda a pertinência, que é muito significativo que o aragonês Fadrique Furió Ceriol, autor de um dos mais importantes tratados sobre o governo e os conselheiros (El Concejo i consejeros del Príncipe…, Antuérpia, 1599) praticamente não se refira às Cortes. Tal silêncio é provavelmente o resultado do número diminuto de reuniões então realizadas, mas também do facto de, naquela altura, caber cada vez mais ao Conselho de Aragão o principal papel representativo e de defesa dos foros reinícolas94. No que concerne às Cortes de Portugal, para além da decisiva reunião de 148295, outro momento importante foi a assembleia que se celebrou na cidade de Lisboa, corria o ano de 1499. Nessa ocasião foi dada a oportunidade, aos «três estados», de discutir uma matéria da mais alta transcendência política: a entrada de Portugal para uma união dinástica com Castela e Aragão. Das negociações que tiveram como palco essa reunião resultaram os «Artigos de Lisboa de 1499», ou «Capítulos de el rey Dom 184 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Manuel», uma série de garantias acertadas com os «estados» antes do juramento do príncipe D. Miguel, o qual já era herdeiro jurado das Coroas de Aragão e Castela96. Tal evento representou o reconhecimento, da parte dos círculos régios, do papel que cabia aos «três estados» na decisão sobre matérias que tinham a ver com a sucessão na Coroa e com o «bem comum do reino». No século XVI as Cortes de Portugal reuniram 9 vezes, o que representou, em termos quantitativos, uma quebra em relação ao ritmo anteriormente registado, já que no período de Quatrocentos tinham-se realizado mais de quatro dezenas de reuniões. Reuniões das Cortes de Portugal no século XVI 1502 - Cortes de Lisboa 1525 - Cortes de Torres Novas 1535 - Cortes de Évora 1544 - Cortes de Almeirim 1562 - Cortes de Lisboa 1579 - Cortes de Lisboa 1580 - Cortes de Almeirim 1581 - Cortes de Tomar 1583 - Cortes de Lisboa Um dos dados que ressalta da trajectória das Cortes de Portugal, no século XVI, é o facto de o juramento do príncipe herdeiro, pelos «três estados», ter voltado a estar muito associado à assembleia representativa97. Além disso, assistiu-se, também, a um gradual incremento do número de petições – «gerais» e «particulares» – enviadas pelas autoridades urbanas, o que aponta para a já referida maior intensidade da comunicação política entre centro e periferias. Outro indicador da importância das Cortes é toda a atenção concedida ao seu cerimonial. Na verdade, os séculos XVI e XVII legaram-nos vasta documentação que atesta a preocupação dos coetâneos em definir, com minúcia, o cerimonial mais correcto para as diversas solenidades ocorridas no decurso das Cortes98. Na mesma linha, a partir desta altura qualquer alteração ao cerimonial tendeu a ser encarada como um agravo e como uma ofensa aos direitos de cada um dos participantes no evento. Um último indicador da importância desta reunião tem a ver com o facto de ela se realizar, com maior frequência, em Lisboa. Tal opção era motivada por vários factores: antes de mais, a dimensão da cida- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 185 de, que a habilitava a receber o grande número de pessoas que participava na reunião. Depois, o facto de Lisboa se assumir cada vez mais, como «cabeça do reino» – o seu procurador falava em nome dos «três estados» na abertura solene das Cortes, e o costume mandava que os procuradores lisboetas presidissem às sessões do «terceiro estado». Finalmente, mas não menos importante, a opção por realizar as Cortes em Lisboa era a forma de o rei demonstrar aos «três estados» que era o reino que ia ter com a Coroa, e não o contrário. Assim, em 1502 D. Manuel I reuniu as Cortes, em Lisboa (nos Paços do Castelo), especificamente para o juramento do príncipe D. João como herdeiro da Coroa de Portugal, aproveitando a ocasião para negociar mais um serviço fiscal99. Até ao final do seu reinado D. Manuel I não voltaria a chamar a assembleia representativa. Quanto ao monarca que se seguiu – D. João III –, o cronista António de Castilho lembra que por três vezes convocou os «três estados». Castilho assevera que D. João III, antes de lançar novos impostos, teve sempre o cuidado de fazer «pesar» os tributos pelas Cortes100. De facto, as Cortes de Torres Novas (1525) reuniram fundamentalmente para tratar de um serviço fiscal a conceder, pelo reino, à Coroa. Frei Luís de Sousa, nos seus Anais de D. João III relata que o rei decidiu chamar os «três estados», para o Verão de 1525, devido aos gastos crescentes da sua casa, e também para custear a vinda da rainha D. Catarina de Áustria101. O mesmo cronista recorda-nos que só treze anos mais tarde se deu resposta aos muitos pedidos apresentados nessa assembleia, inclusive depois da realização das outras Cortes que o mesmo rei convocou para Évora, corria o ano de 1535, tendo uma vez mais em vista solicitar apoio financeiro ao reino. As petições entregues nesta assembleia, assim como as leis delas resultantes, foram impressas, gesto inédito até essa data, e que voltaria a ser repetido em algumas reuniões subsequentes102. É também por esta altura que se começa a difundir a ideia de que as leis resultantes de debates realizados nas Cortes tinham uma força especial, só podendo ser revogadas em nova reunião da assembleia. As Cortes voltariam a ser chamadas anos mais tarde, em 1544, uma vez mais motivadas pelas necessidades financeiras da Coroa. Depois desta reunião, D. João III não voltaria a convocar os representantes dos «três estados». Paralelamente, o dispositivo governativo da Coroa foi adquirindo uma maior institucionalização, acabando por desempenhar muitas das funções representativas, consultivas e decisórias que antes cabiam às Cortes. E no que respeita ao controle da actuação governativa do monarca e à protecção dos direitos dos vassalos face a decisões da Coroa, esse papel foi sendo desempenhado pelo cada vez mais desenvolvido sistema judicial. 186 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Aquando da morte de D. João III, a 11 de Junho de 1557, D. Catarina manobrou para que as Cortes não reunissem para a aclamação do jovem D. Sebastião. De acordo com a documentação da época, a rainha D. Catarina terá chamado ao Paço Real alguns dignitários da nobreza e da Igreja103, e nessa ocasião o secretário de estado Pedro de Alcáçova Carneiro terá afirmado que o rei, antes de falecer, tinha manifestado a intenção de que o governo fosse confiado a D. Catarina enquanto D. Sebastião não atingisse a maioridade. Nessa reunião estavam também presentes os vereadores da câmara de Lisboa, de algum modo a representar o conjunto dos poderes urbanos do reino. Instados a dar a sua opinião, também eles votaram a favor da entrega do governo a D. Catarina, acrescentando, porém, que tinham de reunir o Senado para saber qual seria a vontade do povo, e que tal reunião se celebraria no dia seguinte. Todavia, a reunião na câmara foi mais agitada do que se previa, e alguns dos que nela participaram manifestaram a sua oposição a D. Catarina, alegando a sua naturalidade castelhana. Ao cabo de uma longa discussão, a pretensão da rainha acabou por ser aceite, e nessa mesma tarde celebrou-se, no Paço da Ribeira, a cerimónia que formalizava a constituição da regência. Evitava-se, assim, a convocatória das Cortes num período sempre delicado: a menoridade do rei. A rainha D. Catarina voltou a reunir as Cortes em 1562104, durante as quais anunciou a sua disposição de renunciar ao governo. Depois de longos debates acerca do modo de transmissão do poder, as Cortes voltavam a ter uma intervenção na mais alta política: a entrega da regência do reino ao Cardeal D. Henrique. Além disso, discutiram mais um serviço de 100 mil cruzados à Coroa, para além de terem estabelecido uma série de condições que deveriam ser observadas pelo novo governante do reino105. Nesta assembleia foi produzido um significativo conjunto de «capítulos gerais», incluindo recomendações sobre temas como o governo geral do reino, o modo de organizar a administração central e a casa real, os casamentos da família régia, a reforma dos principais tribunais, etc. Para além disso, foram também entregues numerosos «capítulos particulares», e os procuradores, empenhados em obter a resposta régia a esses pedidos, declararam que só concederiam um novo serviço fiscal depois de o rei ter respondido às suas petições. Ao tomarem essa decisão, os representantes do «terceiro estado» procuravam evitar algo que até aí vinha acontecendo de uma forma mais ou menos sistemática – o atraso da Coroa na resposta aos pedidos entregues nas Cortes106. Quanto a D. Sebastião I, assumiu as rédeas do governo a 20 de Janeiro de 1568, e até ao final do seu reinado jamais convocou as Cortes. Não tivesse este reinado conhecido o desfecho trágico que todos conhecemos, e talvez as Cortes de Portugal acabassem então por cair no esquecimento, devido à sua crescente marginalização da alta política. Todavia, algo de ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 187 diverso aconteceu: a crise sucessória provocada pela morte prematura do monarca contribuiu para relançar o papel político das Cortes. Assim, em 1579, aos «três estados» reunidos em Almeirim foi novamente dada a oportunidade de se pronunciarem sobre uma matéria crucial: a sucessão no trono. Como dissemos, no seu conjunto a crise sucessória de 1578-80 contribuiu para potenciar do papel das Cortes de Portugal. Mafalda Soares da Cunha reconstituiu, com grande clareza, a disputa suscitada pela crise dinástica, assinalando que a coexistência de vários regimes sucessórios dificultou a avaliação dos fundamentos jurídicos invocados pelos vários candidatos ao trono português. Para além da mobilização de um complexo argumentário jurídico, os diversos candidatos em presença – com destaque para Filipe de Habsburgo, D. Catarina de Bragança e D. António, Prior do Crato – socorreram-se, cada um à sua maneira, da tese da eleição do rei pelas Cortes, lembrando episódios do passado português em que os «três estados», em contextos de crise sucessória, tinham intervindo. Conta Fernando Bouza Álvarez107 que, entre os finais de 1578 e boa parte de 1579, vários foram os oficiais de Filipe II que estiveram ocupados com a preparação das várias alegações e pareceres jurídicos para sustentar a candidatura do Habsburgo ao trono português. Segundo Bouza Álvarez, em Setembro de 1578 Filipe II escreveu a Cristóvão de Moura pedindo-lhe que procurasse na Torre do Tombo papéis que provassem «como y cuándo», em Portugal, podia «el pueblo eligir Rey»108. Nesse contexto, foram recordados alguns precedentes da história portuguesa: o caso de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal; o episódio em que o rei D. Sancho II fora declarado rex inutilis e substituído pelo seu irmão D. Afonso III109; as Cortes de 1385, nas quais D. João, mestre de Avis, fora aclamado rei. O mesmo Fernando Bouza assinala que, em Outubro de 1578, Cristóvão de Moura encontrou um documento importante no arquivo da Câmara de Lisboa: os «Artigos de Lisboa de 1499» ou «Capítulos del rey Dom Manuel». Trata-se de uma série de garantias que tinham sido estabelecidas nas Cortes de Lisboa de 1499, aquando do juramento do príncipe D. Miguel. No essencial, tal documento reforçava a tese de que as Cortes de Portugal tinham exercitado, em certos momentos da história do reino, a sua faculdade decisória em matérias sucessórias. Porém, a despeito destas revelações, e como assinala Mafalda Soares da Cunha, os «três estados» – convocados por D. Henrique I para Lisboa, e reunidos entre Abril e Junho de 1579 – nunca se decidiram, de uma forma taxativa, no sentido de levar por diante a eleição, tanto mais que os teólogos de Salamanca e de Alcalá que tinham sido consultados sobre a 188 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS matéria haviam declarado que as Cortes não tinham o poder para eleger reis110. Pela mesma altura, outros juristas alegaram que só havia lugar para a intervenção das Cortes em última instância, ou seja, no caso de o trono estar vago, de não existirem candidatos e de a «república» se encontrar em necessidade extrema111. Enquanto decorriam estas indagações, os acontecimentos precipitaram-se. Já bastante debilitado e muito pressionado pelos vários pretendentes ao trono português, em finais de 1579 o rei convocou os «três estados» para uma reunião em Almeirim. A abertura solene das Cortes realizou-se a 11 de Janeiro de 1580, contando com a comparência do monarca. Nas sessões que se seguiram os «estados» debateram, fundamentalmente, a questão sucessória, e uma parte dos presentes manifestou-se a favor da capacidade electiva das Cortes – solução que, nesta fase, Filipe de Habsburgo desejava evitar, por estar na posse de informações de que os demais pretendentes contavam com muitos apoiantes no seio do «braço do povo». D. Henrique, entretanto, falecia a 31 de Janeiro, depois de vários dias de agonia, deixando o reino entregue a cinco Governadores, o que não impediu que as Cortes continuassem reunidas até 15 de Março, mantendo uma acalorada discussão sobre o futuro da Coroa. E num contexto em que era cada vez mais evidente que Filipe de Habsburgo pretendia dar início à intervenção militar sobre Portugal, a 30 de Abril de 1580 os cinco Governadores voltaram a convocar o «reino» para Santarém, um gesto que visava transferir para os «três estados» a responsabilidade de uma decisão tão melindrosa. Em meados de Junho estava já em Santarém um número considerável de procuradores, e terá sido nessa altura que D. António, prior do Crato e um dos pretendentes ao trono português, decidiu precipitar os acontecimentos, fazendo-se aclamar – numa cerimónia atípica, a que alguns deram a denominação de «Cortes» – a 19 de Junho de 1580112. Apesar de se tratar de uma reunião que congregava apenas uma parte dos representantes do terceiro estado e que contava com uma reduzida representação do clero e da nobreza, esse evento atemorizou bastante Filipe II e os seus apoiantes, pois foi um exemplo concreto de voluntarismo do «reino», exercido fora do controle da Coroa. Aqueles que estiveram presentes no evento de Santarém manifestaram a sua vontade, escolhendo um dos candidatos e colocando de parte os demais113. Este acontecimento preocupou Filipe II e terá precipitado a acção militar que culminaria na derrota das forças apoiantes de D. António. Na sequência destes eventos, Filipe de Habsburgo fez a sua entrada em Portugal, e pouco tempo depois convocou as Cortes para a localidade de Tomar, cidade onde se situava a sede da prestigiada Ordem de Cristo. Ao optar por realizar o seu primeiro encontro com os «três estados» portu- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 189 gueses nesta localidade, Filipe de Habsburgo procurava transmitir um sinal de continuidade face à dinastia cessante, bem como tirar partido da força simbólica do Convento de Cristo, local de onde emanava uma intensa memória do passado português. A carta que enviou aos «três estados», datada de Janeiro de 1581, especificava o motivo da convocatória: «Pera me jurarem por verdadeiro Rey e senhor destes Reynos e senhorios delles, como o suo, e me fazerem preito e menagem de vassalagem, fidelidade e obediencia em forma de direito, e assy ao Principe Dom Diogo, meu sobre todo muito amado e muito prezado filho primogenito, como a meu verdadeiro e legitimo suçessor...»114. A convocatória dos «três estados» surpreendeu alguns observadores coetâneos, pois era para todos evidente que os portugueses – ou pelo menos parte deles – tinham pegado em armas contra Filipe II e, na sequência disso, haviam sido derrotados. Tal significava que o monarca Habsburgo tivera a oportunidade de aplicar a Portugal o direito de conquista e de fazer tábua rasa dos privilégios reinícolas da Coroa portuguesa. Contudo, ao invés de seguir por esse caminho, Filipe de Habsburgo optou por negociar, convocando as Cortes. Através desse gesto Filipe II procurou atingir dois objectivos: pretendeu mostrar que actuava já como rei de Portugal, uma vez que, como assinalámos no início, em terras lusas as Cortes só eram legítimas desde que fossem convocadas pelo rei. Para além disso, ao optar por chamar os «três estados», Filipe de Habsburgo dava a indicação aos seus novos vassalos portugueses de que não pretendia tratar Portugal como uma simples conquista, mas sim como mais um reino a agregar àqueles que já faziam parte dos seus domínios115. Como é evidente, semelhante opção envolveu uma cedência, a saber: o reconhecimento, por Filipe II, do estatuto reinícola de Portugal e dos seus correlativos foros. É isso, de resto, o que está consagrado no «Estatuto de Tomar» de 1581, um articulado onde ficou estabelecido o status de Portugal como reino agregado à Monarquia Hispânica, em termos que permitiram aos lusos preservar a sua dignidade reinícola, os seus costumes, as suas leis, as suas instituições, o seu espaço jurisdicional, a sua língua, etc.116 Quanto à manutenção da assembleia representativa portuguesa, o artigo 2.º do «Estatuto» era muito claro: «Que quando ubieren de hazer Cortes tocantes a estos Reynos sean dentro de Portogal y que en otras qualesquier que ouieren fuera dellas no se pueda proponer, tratar ni determinar cosa alguna que toque a los dichos Reynos»117. A resistência antoniana dera a Filipe II a oportunidade de aplicar o direito de conquista a Portugal, de fazer tábua rasa dos foros portugueses e de implementar um novo modelo de governo. No entanto, o «rei prudente» optou pela via do compromisso, pela solução pactuada, pela nego- 190 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS ciação e pela cedência de contrapartidas aos seus novos vassalos portugueses. Todavia, é importante frisar que Filipe II, ao mesmo tempo que apostou numa solução de continuidade, quis deixar bem claro que o «Estatuto de Tomar» era algo que decorria da «graça real», e não de uma obrigação régia de respeitar os foros portugueses. Como assinalou Fernando Bouza, Filipe II procurou apresentar o “seu” Portugal como a continuação do «modo y manera» que D. Manuel havia idealizado para o seu filho D. Miguel, embora frisando que tal correspondia a uma decisão sua, e não ao eminente direito ou vontade dos portugueses118. No que respeita ao lugar constitucional das Cortes, como vimos a crise sucessória acabou por ser algo ambivalente. Por um lado, ao convocar as Cortes para sancionar a sua entrada em Portugal, Filipe II de alguma maneira concedeu a essa assembleia um protagonismo que ela tinha perdido durante o governo de D. Sebastião I. Esse relançamento das Cortes, associado às atribulações dos anos de 1579 e 1580, poderia até ter dado o mote para um movimento que visasse reequacionar o papel constitucional da assembleia, por exemplo consagrando a sua capacidade para vigiar, de forma permanente, a actuação do rei no que concerne ao respeito pelo estatuto reinícola de Portugal. Todavia, não foi isso o que aconteceu. Na verdade, ao mesmo tempo que concedeu esse protagonismo aos «três estados», Filipe de Habsburgo frisou que a intervenção das Cortes em matérias tão transcendentes como a sucessão no trono ou o estatuto de Portugal no seio da Monarquia Hispânica era limitada e circunscrita àquela ocasião excepcional. Aliás, convém não esquecer que as Cortes de Tomar foram, essencialmente, um evento cerimonial, uma vez que o fundamental da negociação se realizou previamente. Além disso, pouco depois de efectuado o juramento, Filipe II manifestou pouco empenho em que as reuniões de trabalho prosseguissem, revelando mais preocupação por seguir para Lisboa, onde, já na qualidade de soberano jurado pelos «três estados» portugueses, iria ser recebido com grande solenidade119. Além disso, importa ter presente que o monarca, até ao final do seu reinado, só por uma ocasião voltou a convocar as Cortes de Portugal, e fê-lo numa altura em que se preparava para deixar as terras lusas. Trata-se da reunião de 1583, especificamente pensada para que os portugueses jurassem o príncipe D. Filipe como novo herdeiro, e que teve como principal particularidade o facto de os procuradores terem sido chamados única e exclusivamente para jurar o príncipe. O rei tencionava partir, quanto antes, para Castela, razão pela qual desejava umas Cortes rápidas. Por isso, e como recordaria, anos mais tarde, o conde de Salinas, as cartas de convocatória para a cerimónia de 1583 incluíam a seguinte indicação: ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 191 «Embiaréis vuestros procuradores con poder bastante para que juren al Príncipe Don Phelipe, mi hijo mayor, por Rey y Señor destos Reinos después de mis dias»120 – ou seja, a carta de convocatória circunscrevia o âmbito das matérias a debater na assembleia, um gesto pouco comum na tradição das Cortes de Portugal121. Depois desta reunião, Filipe II partiu para Castela e não voltou a visitar Portugal até ao final do seu reinado. Como consequência, até 1598 as Cortes portuguesas não voltaram a reunir. Ainda assim, cada vez que o monarca católico tomou a iniciativa de introduzir um novo imposto ou de repor uma taxa que tinha sido levantada – caso dos portos secos, abolidos em 1581 mas repostos em 1592 –, os descontentes fizeram-se ouvir, apresentando as Cortes como a instância competente para decidir sobre essa matéria122. Convém notar que estas e outras queixas similares continuaram a ser escutadas nas décadas subsequentes. Mais do que a expressão de um confronto “nacional”, eram, antes de mais, a reacção de uma sensibilidade política eminentemente jurisdicionalista, a qual não escondia a sua repugnância por modalidades decisórias mais voluntaristas e que não passavam pelos canais costumeiros. As Cortes nos finais do século XVI e na primeira metade do século XVII A partir de finais do século XVI os monarcas hispânicos cada vez menos se ausentaram de Castela. Em parte por causa disso, o número de reuniões das Cortes castelhanas aumentou, realizando-se aproximadamente de três em três anos: Filipe III convocou as Cortes por 6 vezes; quanto a Filipe IV, reuniu a assembleia representativa por 8 ocasiões. Importa frisar que quase todas as reuniões então efectuadas incidiram sobre a problemática fiscal. Viviam-se tempos em que as dificuldades financeiras da Coroa eram cada vez maiores, facto que levou o rei a optar por abandonar a fiscalidade directa-pessoal, adoptando, como substituição, a fiscalidade indirecta, através de impostos sobre o consumo. Assim, em Castela os servicios estagnaram, ao mesmo tempo que se dava um crescimento significativo das alcavalas e dos millones123. Tal opção fez com que as Cortes de Castela se tornassem num dos principais espaços de negociação da política fiscal. Como sugerimos atrás, a partir de meados do século XVI a Coroa tirou partido das reuniões de Cortes para incutir, nos representantes dos «três estados», novos sentimentos de pertença. Aproveitando a circunstância de estarem presentes representantes de todas as partes do corpo político, os oficiais régios lembraram que o facto de pertencerem à entidade política «reino» comportava obrigações e até mesmo sacrifícios – como por exem- 192 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS plo o pagamento de impostos, o recrutamento militar, o apoio logístico às forças militares, etc. – que deveriam ser aceites sem qualquer questionamento. A estes apelos os representantes deram uma resposta plural. No que toca ao desempenho dos procuradores no decurso das reuniões, J. I. Fortea Pérez sublinha que, no quadro das Cortes de Castela, é evidente um forte contraste entre, por um lado, a perspectiva mais geral, à escala do reino, patenteada pelos oficiais régios e, por outro, a visão localista dos procuradores. Aliás, o facto de os custos inerentes à participação nas Cortes terem sido sempre suportados pelas finanças locais contribuía, certamente, para manter este apego dos procuradores às suas questões «particulares». Segundo J. I. Fortea Pérez124, esta distinção jamais foi superada, tendendo até a acentuar-se a partir do momento em que a Coroa procurou elevar o estatuto das Cortes de Castela e convertê-las num órgão superior (e autónomo) face às cidades. Tal sucedeu no final do século XVI, e nessa ocasião as cidades esforçaram-se por impedir que essa proposta régia fosse posta em prática. Terá sido precisamente neste contexto que se tornou mais visível a ambiguidade no modo como eram entendidas as relações entre o rei e o reino, e o papel que cabia às Cortes desempenhar. Para alguns o reino era contemplado como uma comunidade integrada, superior e distinta da soma das suas partes. Nesse âmbito, as Cortes eram vistas como o órgão de representação institucional, e a prioridade seria concentrar processos de tomada de decisão e homogeneizar procedimentos, através de uma assembleia única. Para outros, pelo contrário, o reino era visto como um agregado de comunidades autónomas, sendo as Cortes tidas como uma mera junta de cidades. Neste quadro as atribuições das cidades saíam claramente fortalecidas, uma vez que previa o controle, pelos poderes urbanos, das principais funções administrativas. De acordo com Fortea Pérez125, a Coroa castelhana, a fim de evitar o poderio das cidades e a sua estratégia de bloqueio da política fiscal, procurou potenciar as Cortes e colocá-las numa posição intermédia entre o rei e as cidades, mas em qualquer caso acima destas últimas. O objectivo era autonomizar as Cortes e libertá-las da obrigação de conferirem com as cidades cada uma das decisões que era necessário tomar. Paralelamente, os ministros régios actuaram no sentido de captar o favor dos procuradores e de dificultar a comunicação destes com as cidades de onde eram oriundos. No fundo, aquilo que interessava à Coroa era que os procuradores (e as Cortes) falassem em nome do conjunto do reino, e não como meros representantes dos seus lugares de procedência. Segundo A. M. Hespanha, foi esse o momento em que se começou a adquirir a ideia de que o reino era algo de diferente do conjunto das partes, caminhando-se para a representação do conjunto do corpo político por apenas alguns126. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 193 O debate em torno desta questão conheceu o seu auge nos últimos anos do século XVI e na primeira metade de Seiscentos, altura em que a Coroa – e alguns procuradores – tentaram instaurar uma maior distância entre as Cortes e as cidades. Porém, e como seria de prever, as urbes moveram uma tenaz resistência a estas medidas. De qualquer modo, o resultado esperado não se concretizou, pois apesar de mais potenciadas e independentes face às cidades, as Cortes de Filipe III e de Filipe IV revelaram-se morosas e difíceis de gerir por parte dos ministros da Coroa. Além disso, a transferência do «voto decisivo» das cidades para as Cortes, em 1632, não livrou a Coroa de negociações muito árduas com os procuradores127. Acresce que algumas urbes castelhanas encetaram processos de negociação em paralelo às Cortes. Na verdade, várias cidades preferiram negociar directamente com a Coroa em vez de o fazerem na assembleia representativa, pois, por essa via, alcançavam acordos bilaterais, evitando desse modo os pactos estabelecidos entre a Coroa e a maioria das cidades. Outro fenómeno que importa destacar é o facto de, em pleno período de Seiscentos, os aristocratas voltarem a manifestar um certo interesse pelas Cortes. Os nobres, em especial os de ascensão mais recente, verificaram que a assembleia podia ser usada como uma forma de captar oportunidades de serviço ao rei, assim como para consolidar a sua influência na corte régia. Dignitários poderosos como o duque de Lerma, o condeduque de Olivares ou D. Luis de Haro, por exemplo, tiveram lugares nas Cortes enquanto representantes de cidades. Contudo, este regresso dos aristocratas voltou a gerar tensões, pois determinadas cidades eram hostis a membros da nobreza que desempenhavam a função de procuradores128. Algo de semelhante se passava nas Cortes portuguesas, onde, como dissemos, foi sempre notória uma clivagem entre, por um lado, as cidades do primeiro banco, representadas em geral por membros da nobreza de corte que detinham um fácil acesso ao rei ou aos seus principais ministros, e, por outro, as restantes cidades. Com o acentuar da centralidade de Castela no quadro da Monarquia Hispânica, a corte régia permaneceu nesse reino por períodos cada vez mais longos, e os castelhanos assumiram, nessa fase, o papel de liderança dos territórios dos Habsburgo espanhóis129. Foi de Castela que partiram algumas das principais iniciativas de reforma, as quais visaram, fundamentalmente, inverter a tendência recessiva das décadas anteriores. O monarca hispânico efectuou muito menos visitas aos seus reinos, o que, consequentemente, levou à realização de um menor número de reuniões das Cortes de Aragão, de Portugal e da Catalunha, para já não falar das assembleias representativas dos reinos italianos que estavam na órbita dos Habsburgo. 194 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Como não podia deixar de ser, a dinâmica reformista que se viveu sob Filipe III e Filipe IV influenciou as relações entre o centro da Monarquia Hispânica e os demais reinos que integravam os domínios dos Habsburgo. Vários interesses estabelecidos foram afectados pelo voluntarismo político dos ministros régios, e os sinais de descontentamento não tardaram em surgir. No conjunto dos seus trabalhos, John H. Elliott demonstrou que, no quadro da cultura política do Antigo Regime, quando as pessoas se sentiam ameaçadas a típica atitude de defesa era o refúgio atrás de barreiras protectoras como os seus costumes, as suas leis, as suas instituições e as suas tradições. É precisamente nesse contexto que, em Aragão, em Portugal, na Catalunha e também nos territórios italianos da Monarquia, se procede a uma revalorização das Cortes enquanto símbolo dos foros reinícolas. Com efeito, no contexto da ofensiva fiscal da primeira metade de Seiscentos, as Cortes dos vice-reinados simbolizaram o estatuto reinícola e a defesa dos direitos dos vassalos contra os cada vez mais insistentes pedidos do rei para que aumentassem a sua contribuição fiscal. Por outras palavras, a maior agressividade da política fiscal da monarquia concorreu para que as Cortes – tanto as de Castela como as dos demais territórios da Monarquia – voltassem a estar no centro do debate político. Os portugueses também sentiram a nova dinâmica integradora das primeiras décadas de Seiscentos, e à semelhança do que se passou em outras partes da Península, os lusos também se voltaram para a assembleia de Cortes, encarando-a como o principal símbolo do estatuto reinícola de Portugal130. Aos apelos chegados da corte régia para que fossem mais solidários com a Monarquia, respondiam os lusos com o argumento de que Filipe III, enquanto rei, ainda não havia jurado os foros portugueses, e que as iniciativas fiscais que se anunciavam teriam necessariamente de passar pela aprovação das Cortes de Portugal, alegando que tal correspondia ao costume seguido no reino desde os tempos mais ancestrais. Quanto a Filipe III, rei mais voluntarista do que é costume pensar, deu a entender que só viajaria até Portugal para reunir as Cortes desde que os portugueses chegassem a acordo quanto ao montante da sua contribuição fiscal para a Monarquia131. A invocação das Cortes como argumento de resistência dos lusos contra as solicitações fiscais da Coroa dos Habsburgo tornou-se de tal modo insistente que, em Janeiro de 1613, D. Diego de Silva y Mendoza, conde de Salinas e figura proeminente no Conselho de Portugal132, apresentou ao rei um «memorial» sobre «las prerrogativas de la Corona y de las Cortes de Portugal». Trata-se de um parecer que se inscreve nos debates sobre a ida de Filipe III a Portugal para reunir as Cortes, e nele se discute não só ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 195 a conveniência da viagem, mas sobretudo até que ponto era o monarca obrigado a fazer essa jornada. A viagem esteve mesmo para ter lugar no início da segunda década do século XVII, ao ponto de, a pretexto da vinda de Filipe III, o Conselho de Portugal – o órgão que, na corte, representava os portugueses e a sua condição reinícola – ter sido temporariamente suspenso e substituído por uma junta restrita, na previsão de uma estadia mais ou menos próxima do rei em terras portuguesas. Contudo, o monarca e os seus ministros hesitaram quanto à oportunidade da jornada, sem que, durante esse período de indefinição, tivessem voltado a activar o Conselho de Portugal. Perante essa situação, alguns portugueses manifestaram o seu descontentamento pelo facto de Portugal não contar com um conselho próprio junto do rei, lacuna que, a prolongar-se, equivalia a uma despromoção do reino no quadro da Monarquia Hispânica. Foi neste ambiente que D. Diego de Silva y Mendoza produziu o seu parecer sobre as Cortes de Portugal. Devido à sua importância para o tema que estamos a analisar, este documento é merecedor de uma análise detalhada. No seu parecer, Salinas começa por afirmar que só se pode falar em «Reino», em Portugal, quando as Cortes são legitimamente convocadas, ou seja, quando é o rei quem convoca a assembleia, porque é a pessoa régia quem confere poder a «todas las personas que tienen voto en ellas, y con poderes bastantes suyos»133. Para Salinas, «todas las otras juntas que los pueblos hicieren, no se llaman Reino de Portugal, ni las pueden hazer, ni conuiene que las hagan, ni que por ningún camino tengan el nombre de Reino, sin preceder convocación y voluntad expresa de S. M., cuya soberanía en la Corona de Portugal es tan grande, que puede convocar generalmente, particulariçando los cassos para que comboca, y mandando que no se trate de otros». Para provar esta última afirmação, Salinas recorda a convocatória de 1583, quando Filipe II ordenara que se desse aos procuradores única e exclusivamente o poder para jurar o príncipe D. Filipe, futuro Filipe III. Salinas sustenta que, por causa desse precedente histórico, o rei não deveria ter qualquer dúvida de que havia sido jurado enquanto príncipe, e que, por isso mesmo, no início do seu reinado, não carecia de se deslocar a Portugal para ser jurado pelas Cortes deste reino, uma vez que o juramento de 1583 continuava perfeitamente válido. No seu interessantíssimo «memorial» Salinas critica também o desejo de protagonismo manifestado pela Câmara de Lisboa, em especial o facto de esta instituição ter insinuado que poderia jurar o príncipe Filipe (futuro Filipe IV) em sua ausência. Salinas critica o Senado de Lisboa, também, por esta instituição se ter apresentado como uma entidade que falava em nome do «Reino», o que – segundo o conde de Salinas – transcendia em 196 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS muito a jurisdição da dita câmara134. No fundo, a principal preocupação de D. Diego da Silva era negar a Lisboa a legitimidade de, voluntariamente e sem o prévio consentimento do monarca, assumir o título de «Reino em Cortes» e tomar decisões, de motu proprio, sobre matérias tão transcendentais como a sucessão na Coroa. Salinas afirma que Portugal não era uma dessas «coronas en que el Reyno se puede congregar por propia autoridad y sin mandato real...», acrescentando que a reunião de Cortes sem que a convocatória procedesse da vontade régia poderia ser equiparada a um gesto de rebelião. A esse respeito, Salinas relembra o caso de D. António e a assembleia que se reuniu, em 1580, no quadro da crise sucessória, sem que tivesse sido chamada por um rei legítimo – «Porque si el delito fué juntarse el Reino, sin convocación del Rey para eligir a Don Antonio, qué pena se pudo proporcionar a este delito, preueniendo de paso otros semejantes, más justa i más bien considerada que la que prohibe que semejantes juntas no pueden tener nombre de Reino, i que sólo le tenga el que fuere ligitimamente congregado por su Rey en Cortes?»135. Prosseguindo na sua digressão pelos acontecimentos de 1581, afirma Salinas que «los Reinos que toman armas contra sus Reys pierden, desde aquel punto, sus priuilegios; y quando se les restituyen, son solos los que la restitución y gracia declara». Ou seja, declara que Filipe II, ao reunir as Cortes e ao contemporizar com os portugueses, fê-lo não propriamente porque sobre ele pesava a obrigação de respeitar os foros portugueses, mas sim por «graça real», fora um gesto resultante da vontade régia e, logo, revogável em qualquer momento que o monarca assim o decidisse136. Em face desta questão, Salinas recorda que o privilégio de a população poder juntar-se com o nome de «Reino», sem convocatória régia, não estava previsto no juramento que Filipe II efectuara em Tomar, corria o ano de 1581. Com base nestes dados, Salinas manifesta a sua veemente oposição à ida do monarca hispânico a Portugal naquele momento tão delicado, defendendo, em vez disso, uma postura mais afirmativa do rei. De seguida, efectua uma análise muito sugestiva das implicações do juramento efectuado em Cortes. De acordo com D. Diego de Silva, nalguns reinos a «utilidade» do juramento era recíproca, por ser através dele que o rei via a sua situação legitimada, sendo também mediante essa cerimónia que o reino conseguia que os seus privilégios fossem jurados pelo monarca. Todavia, no que concerne a Portugal Salinas era da opinião de que a questão se colocava de uma maneira completamente diferente: «en Portugal, donde se prosupone que el heredero es Rey, sin que preceda juramento, viene a ser el juramento en mayor utilidad del Reyno que del Rey, pues para el heredero es cirimonia el juramento, y para el Reino, sustancia, que, con ocasión del juramento, aya quien le congregue, i congregado, le haga ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 197 parte para que pueda pedir al Rey que le jure sus preuilegios»137. Recorda, a propósito, o caso de França e o facto de os seus reis serem ungidos e jurados. Para Salinas, nesse reino, para um dignitário chegar a rei não bastava ser herdeiro, tornando-se também necessário ser jurado e ungido, acrescentando que, nestas duas últimas condições, os pretendentes dependiam dos vassalos. Em Portugal, pelo contrário, Salinas sustenta que bastava a condição de herdeiro para se ser rei, razão pela qual os monarcas não estavam tão limitados como em França pela vontade dos seus vassalos. A despeito destas observações, Filipe III acabou mesmo por viajar até Portugal, mas apenas em 1619, convocando, nessa ocasião, as Cortes. Foi a única vez que, no seu reinado, o monarca se juntou com os «três estados» portugueses, numa reunião praticamente reduzida à cerimónia do juramento do príncipe herdeiro e a uma rápida negociação sobre matérias fiscais, durante a qual os ministros régios tiveram de escutar uma série de queixas acerca da violação de algumas das condições do «Estatuto de Tomar»138. Talvez para evitar essas críticas, o monarca apressou-se a abandonar Portugal, o que inviabilizou o debate sobre outras questões governativas, impedindo, também, a resposta a muitas das petições que foram entregues nas Cortes139. Anos mais tarde, a falta de resposta às petições de 1619 será relembrada pela publicística apoiante do duque de Bragança, a qual viu nesse gesto um sinal do mau governo dos Habsburgo em Portugal. No reinado que se seguiu, como é bem sabido, Filipe IV e Olivares lançaram várias iniciativas fiscais sem consultarem as Cortes de Portugal, apoiando-se, em vez disso, em expedientes representativos mais ágeis – na linha, aliás, do que estava a suceder em outros pontos da P. Ibérica140. Como seria de prever, esse contexto de crescente voluntarismo régio reforçou um processo que já se vinha fazendo sentir: a identificação entre as Cortes de Portugal e a condição reinícola de Portugal. Na década de 1630, cada vez que surgiam planos de introdução de novos tributos, as instituições lusas (à semelhança do que se passava noutras partes da Península, incluindo Castela) lembravam que em Portugal existia o costume imemorial de os novos impostos não serem introduzidos sem o consentimento dos povos reunidos em Cortes. Tais apelos não parecem ter comovido o conde duque de Olivares e os seus ministros, bem pelo contrário. As Cortes não só não foram convocadas como, nos anos que se seguiram, floresceu um discurso de desvalorização da assembleia dos «três estados», plasmado em propostas, arbítrios e memoriais difundidos a partir de finais da década de 1620. Jean-Frédéric Schaub chamou recentemente a atenção para a importância do Memorial de la preferencia, que haze el Reyno de Portugal, y su Consejo, al de 198 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Aragon, y de las dos Sicilias (Lisboa, Geraldo de Vinha, 1627), um impresso da autoria de Pedro Barbosa de Luna e que surge no contexto da disputa de precedência entre a Coroa de Aragão e a Coroa de Portugal. Entre os muitos argumentos esgrimidos nesta obra há um que se relaciona directamente com a «assembleia dos três estados»: para provar a preeminência de Portugal, Barbosa de Luna afirma que em terras lusas o rei era «mais absoluto», pois fazia corpo imediatamente com a Coroa, sem necessidade das Cortes. Para o autor do Memorial..., o rei de Portugal podia revogar leis de Cortes sem reunir os «três estados», ao contrário do que se passava em Aragão, sustentando também que a Coroa lusa era mais «absoluta» do que a aragonesa, factor que conferia mais dignidade a Portugal no quadro da sua “competição” com os demais reinos que integravam a Monarquia Hispânica141. Este exemplo demonstra que, para alguns, a maior liberdade de manobra do monarca constituía um factor de preeminência para o reino. Durante o valimento de Olivares sucederam-se os escritos – boa parte deles assinados por portugueses – onde se expressava uma opinião desfavorável sobre as Cortes lusitanas e acerca do seu papel no sistema político. Para além do citado tratado de Barbosa de Luna, um outro bom exemplo do que acabámos de afirmar é um breve manuscrito de meados da década de 1620, da autoria de João Salgado de Araújo, onde se discute até que ponto era legítimo organizar, em Madrid, juntas ad hoc para despachar, de forma célere, os negócios de Portugal. Contrariando de uma forma flagrante o estabelecido pelo «Estatuto de Tomar», Salgado de Araújo defende a legitimidade dessas juntas. Pouco tempo depois, na obra Ley Regia de Portugal... (Madrd, Juan Delgado, 1627), o mesmo Salgado de Araújo volta a defender as juntas, encarando-as como um tribunal ad hoc, como um aperfeiçoamento pontual da administração da Coroa. Como não podia deixar de ser, estes escritos tiveram algum impacto em Portugal. Não tardou a correr o rumor de que se planeava a supressão das Cortes, o que foi interpretado como um indício seguro de que estava em curso um processo de despromoção do estatuto reinícola de Portugal. Assim se compreende os apelos à reunião de Cortes escutados durante a década de 1630, assim como a oportuna revelação das «actas» das Cortes de Lamego, um documento – apócrifo – que, entre outras coisas, proporcionava o aval histórico ao protagonismo político que muitos desejavam atribuir à «assembleia dos três estados», para além de ter funcionado como elemento galvanizador para todos aqueles que foram atingidos pelas iniciativas de Olivares142. Atribuídas ao período fundacional do reino, as «actas» da assembleia de Lamego alegadamente provavam que, desde as origens de Portugal como unidade política independente, os «três estados» tinham o direito a pronunciar-se sobre matérias governativas. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 199 Todavia, é importante ter em conta que o apelo à convocatória dos «três estados» podia servir vários propósitos. Para além de constituir um instrumento de defesa da condição reinícola do reino português, podia funcionar, também, como forma de resistência ao regime decisório eminentemente executivo instaurado pelo valido de Filipe IV. Convém não esquecer que se vivia uma conjuntura em que era cada vez mais forte a presença de Olivares e da sua clientela, e muitos daqueles que lutaram contra o seu estilo de governo – por se afastar do tradicional e muito mais consensual paradigma jurisdicionalista – usaram as Cortes como o símbolo da maneira consuetudinária de governar em Portugal. Importa não esquecer que a «assembleia dos três estados», para além do seu carácter ancestral, se auto-representava como um tribunal, como uma instância cuja actuação se inspirava no modelo judicial de gestão administrativa. Quanto à linha de actuação do valido de Filipe IV, rompia, em muitos aspectos, com essa lógica de actuação. A pressão fiscal do período de Olivares amplificou o ressentimento contra a sua pessoa e a sua clientela. Recorde-se que o conde-duque, para além de se ter recusado a reunir Cortes, implementou uma fiscalidade particularmente extensiva, afectando grupos – e respectivos privilégios – que até esse momento tinham sido poupados. Além disso, em matérias de governo o valido concentrou a faculdade decisória no seu círculo de confiança, delegando a aplicação das decisões num conjunto de oficiais régios de carácter comissarial e revestido de uma considerável margem de poder, com a consequente subalternização dos nobres e dos letrados até aí preponderantes. Terão sido estes, precisamente, os principais responsáveis pela agitação social que se registou ao longo de toda a década de 1630, e que atingiu o seu ponto culminante no ano de 1637143. Em meados de 1638, e na sequência das perturbações ocorridas no ano antecedente, o conde duque de Olivares decidiu convocar, para Madrid, uma espécie de reunião restrita das Cortes de Portugal. A reunião visava encontrar uma solução para a substituição da duquesa de Mântua, embora tivesse também a finalidade de encontrar uma forma de atenuar o descontentamento vivido em Portugal. Todavia, a junta realizada em Madrid acabou por não surtir o efeito desejado, já que muitos viram na decisão de Olivares de consultar os notáveis do reino fora de Portugal a confirmação de que o valido estava mesmo apostado na revogação do «Estatuto de Tomar» e na despromoção de Portugal. Como se não bastasse, pouco tempo depois Olivares decidiu levar a cabo uma medida ainda mais drástica: a dissolução do Conselho de Portugal, órgão que se assumira como um dos principais obstáculos à sua política fiscal em terras lusas. O valido de Filipe IV pretendia substituir esse conselho por um organismo con- 200 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS junto luso-castelhano e estreitamente controlado pela Coroa. Como facilmente se imagina, esta decisão foi tudo menos pacífica. Convém assinalar que esta não foi a única proposta de criação institucional onde os limites jurisdicionais entre Portugal e a restante Monarquia Hispânica surgiam algo esbatidos. Como assinalou Jean-Frédéric Schaub144, nos anos de 1638 e 1639 Olivares recebeu numerosas propostas – muitos delas da autoria de portugueses – que apontavam no sentido da reconfiguração do estatuto de Portugal no quadro da Monarquia Hispânica. Entre os vários escritos que então circularam, J.-F. Schaub destaca as sugestões que foram avançadas por Agostinho Manuel de Vasconcelos. Sobre as Cortes de Portugal, escreve Agostinho Manuel algumas palavras que vão claramente no sentido da desvalorização dessa assembleia: «es de advertir que la precision que los principes comunmente platican en las promesas que hacen en Cortes nunca es tan exacta ni tan indispensable que sobreviniendo en la ejecuccion inconvenientes no queden con libertad de emendar-las interpretar-las i aun derogar-las porque parece que siempre llevan la tacita condicion de que las cumplira no obstando al bien publico del imperio»145. Como J.-F. Schaub bem reconheceu, o que estava basicamente em jogo era afirmar que o monarca tinha o poder de alterar, de motu proprio, as decisões tomadas pelas Cortes. Todavia, Vasconcelos vai mais longe, chegando mesmo a propor a celebração de uma reunião de Cortes comum às duas Coroas – Castela e Portugal – em Madrid, uma espécie de États Généraux de França, ou então a convocação de uma vasta junta de personalidades portuguesas a realizar na corte régia146. Dessa forma, esperava-se conseguir fomentar um mais intenso sentimento de pertença entre as várias partes que compunham a Monarquia. Pretendia Olivares que as Cortes deixassem de ser símbolos do particularismo reinícola, e que se convertessem em órgãos fomentadores de sentimentos de pertença ao conjunto da Ibéria. Convém lembrar, a este respeito, que a proposta de convocatória de uma assembleia geral dos reinos da Península Ibérica não apareceu apenas em arbítrios que tinham a ver com matérias portuguesas. Xavier Gil Pujol recorda que, no contexto das grandes dificuldades financeiras de 1599, também se propôs a criação de uma grande assembleia de toda a Espanha, uma Junta General ou um Consejo Supremo. Contudo, nenhuma dessas propostas foi avante147. Voltando aos papéis sobre Portugal em circulação na corte régia no final da década de 1630, outro caso a reter são, sem dúvida, os escritos do português Diogo Manuel de Orta, estudados, sobretudo, por Fernando Bouza148. No «Discurso juridico-politico sobre el derecho que el Rey nuestro señor tiene en el reino de Portugal y union de su gobierno a la ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 201 Real Corona de Castilla»149, o argumento principal de Orta é que o contrato feito nas Cortes de Tomar, em 1581, não tinha qualquer validade, dado que o rei já era senhor do reino antes das Cortes. A acreditar em Orta, Portugal era um reino herdado, e a natureza separada do reino português desaparecia com a herança castelhana, o que levava o autor do «Discurso juridico-politico» a afirmar que as leis castelhanas podiam ser impostas em Portugal. Numa digressão pelo passado recente da Monarquia, Diogo Manuel de Orta aproveita para criticar Filipe II pelas concessões que havia feito e por ter sido demasiado contemporizador para com os lusos, os quais, convinha não esquecer, tinham resistido militarmente contra a entrada na Monarquia Hispânica. Além disso, lembra que os levantamentos de 1637 tinham de ser interpretados como uma revolta, devendo ser retiradas todas as consequências desse facto, ou seja, tais acontecimentos significavam a quebra unilateral do pacto entre os dois reinos, ficando Filipe IV livre de qualquer obrigação de respeitar os foros portugueses150. Como notou J.-F. Schaub, o que estava subjacente a este texto era a redução de Portugal à jurisdição da Coroa de Castela, ou seja, o desaparecimento da Coroa portuguesa enquanto entidade juridicamente separada da restante Monarquia Hispânica151. É importante não perder de vista que as iniciativas de Lerma e de Olivares têm lugar numa época em que, em termos da cultura política dominante, ainda não era socialmente aceitável a ideia de uma gestão governativa puramente executiva, tal como não era nada pacífica a actuação governativa que não estivesse confinada aos moldes da iurisdictio152. Assim, em Portugal, tal como noutras partes da Monarquia (incluindo Castela), boa parte dos apelos para que as Cortes fossem convocadas, no quadro da resistência a Lerma ou a Olivares, foram o resultado da repugnância pelas práticas governativas extra-judiciais e de sentido eminentemente executivo, e não propriamente o simples e espontâneo produto de factores nacionais. Muitos letrados demonstraram-se agravados com este estilo de governo, pois sentiam que os novos ministros favorecidos pelo valimento estavam a atropelar tanto a sua hierarquia profissional quanto o seu cursus honorum. Um número não negligenciável de disputas foi pois motivado por magistrados ciosos do seu ofício, os quais, dando corpo ao seu sentido de estrito cumprimento da jurisdição, reagiam contra intromissões jurisdicionais, independentemente da nacionalidade daquele que levava a cabo essa acção. Quanto à aristocracia, nestes anos também ela clamou a favor das Cortes, não só por ter sido relegada para segundo plano pela clientela do valido, mas também porque, do seu ponto de vista, a privança introduzia um grave desequilíbrio na «justiça distributiva»153. Um dado parece certo: 202 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS o acumular desses episódios de tensão fez com que, aos poucos, a ideia do pacto rei-comunidade deixasse de ser um assunto abstracto e só discutido por teólogos ou por juristas, para se tornar num tema de debate quotidiano, perdendo muita da sua conotação metafísica e adquirindo uma feição histórica cada vez mais nítida154. Foi assim que, aos poucos, ficou criado o ambiente propício para o deflagrar de uma ruptura política de grande alcance. As Cortes em Portugal sob a dinastia de Bragança Poucos dias depois da revolta de 1 de Dezembro de 1640, os apoiantes de D. João, duque de Bragança, decidiram convocar os «três estados». À semelhança do que acontecera noutras ocasiões, a assembleia representativa foi nessa conjuntura encarada como uma instância que poderia dar alguma legitimidade ao movimento português de secessão da Monarquia Hispânica. Assim, em Janeiro de 1641 as Cortes reuniram em Lisboa, juntando uma pequena parte do «estado da nobreza» e do clero, bem como um número significativo de procuradores em representação das cidades e das vilas do reino. A assembleia decorreu sem grandes sobressaltos, acabando por sancionar a escolha que já havia sido feita a 8 de Dezembro – o duque de Bragança foi aclamado rei D. João IV pelos «três estados», e o seu filho D. Teodósio foi jurado príncipe herdeiro. Numa altura em que o apoio à causa brigantina era incerta, recorria-se assim ao juramento como mais uma forma de vinculação, numa época em que o comprometimento moral, devido às suas implicações religiosas, tinha muito mais força obrigante do que os pactos, os contratos ou a lei positiva. A assembleia de 1641 foi um acontecimento ímpar na história portuguesa, pois representou o momentâneo potenciar da capacidade política das Cortes. De facto, nesses breves momentos reconheceu-se às Cortes uma série de atribuições: antes de mais, a capacidade para avaliar a governação do rei D. Filipe III. Por outras palavras, as Cortes comportaram-se como um tribunal, como uma instância judicial titular de uma jurisdição excepcionalmente ampla, tão ampla que habilitava os «três estados» a julgar o comportamento do rei. E como se tal não bastasse, a reunião de 1641 reconhecia ao «reino», reunido em Cortes mais duas outras excepcionais faculdades: a capacidade para se eximir voluntariamente da obediência a um soberano a quem tinha sido efectuado um juramento de fidelidade; e, além disso, reconhecia-se também aos «três estados» a capacidade para escolher, voluntariamente, um novo soberano. Como se pode facilmente imaginar, aqueles que se decidiram pela reunião de Cortes, em 1641, moveram-se num terreno altamente melindro- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 203 so. Antes de mais, porque era do conhecimento de todos que a quebra do juramento tinha seríssimas implicações morais e religiosas. Não devemos esquecer que muitos reprovaram a revolta de 1640 porque representava uma ruptura com um compromisso moral assumido nas Cortes de 1619, altura em que Filipe IV – à data príncipe herdeiro – havia sido jurado pelos portugueses. Como se pode ler numa instrução entregue ao embaixador de Filipe IV em Roma, logo após 1640, «[na rebelião portuguesa] se considera en primer lugar la transgression del juramento de obediencia y fidelidad, solemne y publicamente hecho a Dios por el mismo Duque de Bragança, y todos los tres Estados a favor del Rey Don Felipe, que le acetó en Cortes Generales de todo el Reyno ligitimamente convocadas...»155. Para além da quebra do juramento, o melindre da situação tinha também a ver com a situação interna da realeza. Com efeito, na sequência desse evento a Coroa brigantina ficava numa posição particularmente débil, porquanto admitir que os «povos» podiam romper com o soberano a quem tinham jurado fidelidade e escolher um outro líder representava, sem dúvida, um precedente muito perigoso, pois fragilizava bastante a posição dos futuros titulares da Coroa. A justificação doutrinal da revolta de 1 de Dezembro encarregou-se de frisar todas as implicações constitucionais do sucedido. Francisco Velasco de Gouveia, autor de uma das principais obras legitimadoras da revolta de 1640 – Ivsta acclamação do serenissimo Rey de Portvgal Dom Ioão o IV… (Lisboa, Lourenço de Anveres, 1644) – foi muito claro ao enunciar aquilo que estava em jogo: «Que Ainda que os Povos transferissem o poder nos Reys, lhes ficou habitualmente, & o podem reassumir, quando lhes for necessario para sua conservação»156. De seguida, Velasco de Gouveia analisa o caso português, alegando que a revolta de 1640 era justificada e legitimada pela inequívoca tirania de Filipe IV. Quanto à capacidade electiva das Cortes, Velasco de Gouveia defende-a apoiado em duas linhas argumentativas: por um lado, na ideia de soberania popular e no conceito de pactum subjectionis; por outro, numa argumentação histórico-jurídica fundada nas já citadas «actas» das Cortes de Lamego, bem como no precedente histórico das Cortes de Coimbra, realizadas em 1385. No que toca ao imaginário da soberania popular, António Barbas Homem157 assinalou recentemente que o conceito de pactum subjectionis está presente no Assento das Cortes de 1641, uma vez que os redactores deste texto – que constitui o documento que fixa e publicita as decisões tomadas na assembleia – aceitam a ideia de mediação popular na transmissão do poder político de Deus para os príncipes. Cumpre lembrar que desde, pelo menos, o século XVI, o conceito de pactum subjectionis era 204 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS mobilizado pelos juristas defensores do direito de defesa que assistia à comunidade face a uma governação mal exercida, classificada como «tirania». No quadro dessa leitura, a titularidade do poder pertencia ao povo, cabendo ao príncipe apenas o exercício desse poder. Uma vez aceite esse princípio, o povo, reunido em Cortes, ficava habilitado a exercer várias faculdades: avaliar a qualidade da governação; eximir-se da obediência devida ao seu Rei sem quebra do juramento, nos casos em que fosse dado como adquirido que o rei era tirano; e, em situações extremas, escolher – em sede de assembleia representativa – um novo soberano. Para além do imaginário da soberania popular, o Assento das Cortes de 1641 recorre, também, à argumentação histórico-jurídica, lembrando os princípios estabelecidos quer nas já referidas Cortes de Lamego158, quer nas Cortes de Coimbra de 1385, ocasião em que D. João, Mestre de Avis, fora aclamado rei de Portugal. O precedente histórico de 1385 foi sistematicamente invocado para justificar as opções de 1640, tendo-se também usado as apócrifas «actas» das Cortes de Lamego para consolidar essa pretensão. Este imaginário está presente na referida obra de Velasco de Gouveia, nela se apresentando a cerimónia inaugural do reinado como um pacto de atribuição do poder, como um pacto que tinha como objectivo não propriamente estabelecer a forma do governo, mas sim efectuar a transferência do poder do povo para o príncipe. E tal como sucede em qualquer transferência de poder, trata-se de um processo que envolve condições reciprocamente assumidas159. Além do livro de Velasco de Gouveia, a imagem das Cortes como «tribunal de reis» e como uma assembleia com capacidade electiva pode ser encontrada em boa parte da literatura favorável a D. João IV publicada nas décadas de 1640 e 1650, sobretudo porque a propaganda apostou nesse argumentário como forma de tornar legítima, tanto para o interior quanto para o exterior do reino, a ruptura de 1640. Procurava-se desse modo demonstrar que a separação da Monarquia Hispânica e a adesão a D. João IV eram sentimentos partilhados pela generalidade dos portugueses. Foi também por essa altura que se investiu na ideia de que a reunião de Cortes correspondia à forma como os reis portugueses, desde tempos imemoriais, costumavam tomar decisões governativas. Paralelamente, procedeu-se à demonização do governo de Filipe IV, recorrendo-se, de um modo bastante sistemático, ao tema da marginalização de que as Cortes haviam sido alvo. Fulgêncio Leitão, por exemplo, em Reduccion, Restituycion del Reyno de Portugal a la Serenissima Casa de Bragança en la Real Persona de D. Iuan IV… (Turim, Iuannetin Pennoto, 1648), relembra a década de 1630 e as várias fases da política fiscal de Filipe IV, denunciando os «acordos particulares» que a Coroa estabelecera com os povos no ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 205 campo tributário, sem que o reino junto em Cortes tivesse podido dizer uma palavra sobre esse assunto. Nos escritos de Fulgêncio Leitão, as Cortes são elevadas ao estatuto de único órgão autorizado para decidir sobre questões fiscais. Logo, a opção de não chamar as Cortes para decidir sobre fiscalidade era apresentada como um sinal inequívoco da tirania de Filipe IV e do seu valido160. É interessante verificar que o olhar de alguns estrangeiros sobre as Cortes de Portugal, durante a década de 1640, também sublinha o poder que esta assembleia momentaneamente adquiriu. Lívio Giotta, em Raggioni del Ré di Portogallo D. Giovanni IV… (Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1642), traça o seguinte retrato da assembleia representativa portuguesa: «Li tre Stati cioè gli Ecclesiastici la Nobiltà, e Popoli delli Regni di Portogallo ragunati nelle Corti doue rappresentano in vn corpo tutti li sudetti Regni, e tutta l’auttorità, e potere, ch’essi tengono, hanno risoluto per buon principio delle medesime Corti douersi con publica Scrittura da tutti sottoscritta decidere, estabilire, como il Ius d’essere Rè, e Signore loro spettaua, & spetta al potentissimo Rè Don Giouanni, il quarto di questo nome....». Acrescenta Giotta: «I supponendo per cosa chiara in Iure ch’al Regno, & alli tre Stati d’esso compete il giudicare, e dichiarare la legitima successione del medemo Regno, ogni volta che nasce qualche difficoltà, e dubbio trà i pretendenti per diffetto di descendenza dell’vltimo Rè possessore...»161. Quanto ao número de petições enviadas às Cortes realizadas após 1640, ele cresceu muitíssimo, e o monarca instruiu os seus oficiais para que respondessem, de forma diligente, a esses pedidos, tendo em vista demonstrar que, no que toca à comunicação com os seus vassalos, a dinastia de Bragança era fundamentalmente diferente dos Habsburgo, revelando uma constante disponibilidade para escutar as suas queixas e para os ajudar a resolver os seus problemas. O grande manancial de petições então apreciado proporcionou aos oficiais régios uma visão bastante detalhada da situação do reino, das suas localidades e dos seus habitantes162. Todavia, é curioso verificar que os oficiais régios tiveram dificuldade em interpretar essa informação, já que nalguns casos era nítido que os pedidos reflectiam a opinião generalizada da população que os enviara, enquanto que noutros casos era evidente que constituíam uma óbvia manobra para mobilizar os recursos régios a favor dos interesses de uma determinada parcialidade local163. Como sugerimos, D. João IV e os seus sequazes nutriam sentimentos ambivalentes face a toda esta ênfase na capacidade política das Cortes. Por um lado, partiu deles a opção de instrumentalizar a «assembleia dos três estados» e fomentar o uso propagandístico das Cortes enquanto instância legitimadora da mudança dinástica; por outro, ao potenciarem as facul- 206 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS dades políticas da assembleia, sabiam perfeitamente que corriam o risco de contribuir para o surgimento de um movimento de cariz “republicano”, ou pelo menos de uma tentativa de reequacionamento do lugar constitucional ocupado pelas Cortes. A situação tornava-se tanto mais delicada quanto era para todos claro que a Coroa, nessa fase, tinha uma margem muito reduzida para resistir a qualquer desafio interno164. Todavia, a verdade é que, a despeito de todo o ambiente que foi criado a favor das Cortes, acabou por não surgir qualquer movimento concertado que tivesse como finalidade atribuir, de uma forma sustentada, mais poder à assembleia representativa. Não devemos esquecer que o regime monárquico estava profundamente enraizado na cultura política, e na história lusa faltavam ingredientes que pudessem galvanizar um processo de afirmação pactista, como por exemplo uma pujante tradição histórica de ideias e de práticas republicanas165. Ao contrário do que se poderia prever, nem sequer as cidades mais poderosas enveredaram pelo caminho da afirmação da capacidade política das Cortes, revelando-se, em vez disso, muito mais preocupadas em preservar os seus privilégios e em travar as iniciativas da Coroa que violavam o seu espaço jurisdicional. As assembleias de Cortes que se seguiram à histórica reunião de 1641 confirmam esta tendência. À excepção de movimentos muito pontuais de contestação a certos aspectos da governação dos anos de 1640 e 1650, as Reuniões das Cortes de Portugal no século XVII Ano Reinado 1619 D. Filipe II 1641 D. João IV 1642 1645-46 1653-54 D. João IV D. João IV D. João IV 1667-68 D. Afonso VI 1673-74 1679-80 1697-98 D. Afonso VI (D. Pedro, regente) D. Afonso VI (D. Pedro, regente) D. Pedro II Motivo Juramento do príncipe D. Filipe Juramento e levantamento do duque de Bragança como rei de Portugal; juramento do príncipe D. Teodósio; contribuição fiscal para a guerra Contribuição fiscal Contribuição fiscal Juramento do príncipe D. Afonso; contribuição fiscal Juramento do infante D. Pedro como regente e governador do reino; contribuição fiscal Juramento da princesa D. Isabel Luísa Josefa; contribuição fiscal Dote para o casamento da princesa D. Isabel com o primogénito do duque de Sabóia Juramento do príncipe D. João; declaração ou derrogação da lei sucessória; contribuição fiscal ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 207 Cortes foram-se dedicando a um leque de questões cada vez mais restrito, acabando por ficar sobretudo associadas à política fiscal. Assim, a negociação sobre novas imposições fiscais acabou por monopolizar grande parte das assembleias de 1642-43, de 1645-46 e de 1653-54. Significativamente, em nenhuma dessas reuniões se vislumbrou qualquer esforço consistente para tirar partido do élan de 1641 tendo em vista reconfigurar, drasticamente, o regime de relações entre o rei e o reino. Tal não significa, no entanto, que a assembleia tenha perdido a sua relevância política. Pelo contrário, após 1640 reforçou-se a noção de que a decisão régia em conjunto com as Cortes correspondia à forma costumeira de tomar decisões governativas em Portugal. A consulta frequente dos «três estados» foi nestes anos retratada como a modalidade decisória que mais estava de acordo com os princípios constitucionais que regiam o reino. Tanto mais que, para vincar a diferença face à dinastia dos Habsburgo, D. João IV e os seus seguidores convocaram as Cortes com uma regularidade inusitada. Francisco Manuel de Melo, no seu Tácito Portuguez, foi um dos muitos que notou esta renovada disposição do rei em escutar o parecer dos povos sobre questões governativas: «Continuavão os Reys da Europa, e os de Portugal, com grande frequencia ouvir em publico a seus vassalos, que por papel lhe aprezentavão a informação de seus negocios, pedindo o remedio delles e como nos novos reynados os subditos tem mais confiança, e os Príncipes mayor paciencia, era sem número o número das petiçoens, que a El rey acodião, para cuja comprehensão, quanto mais despacho, não bastavão os dias inteyros…»166. Tal não significa, porém, que o rei reunia as Cortes sempre de bom grado. O aparente contentamento sentido por D. João IV em dialogar com os «três estados» é rotundamente desmentido, algumas décadas mais tarde, por D. João da Silva, 2.º marquês de Gouveia, numa carta enviada ao secretário de estado Francisco Correia de Lacerda. Nessa missiva, o marquês confidencia que D. João, sempre que convocara as Cortes, fizera-o «com grande repugnancia tanto assim que estando convocadas humas para Tomar, e elleytos Procuradores se não celebrarão.... [trata-se das cortes que deveriam ter reunido em 1649]». Acrescenta que «a resão a meu ver he manifesta: porque […] juntos os povos em Cortes parece que em certo modo fica algum tanto coarctada aquella soberania que os Príncipes tem no seu governo Monárquico…»167. A despeito destas dúvidas, é inegável que as Cortes continuaram a representar um momento importante de introspecção colectiva, de reflexão e de discussão sobre as medidas governativas, tendo funcionado, também, como um alfobre de decisões onde se vislumbra a emergência de um novo sentimento de pertença ao «reino», uma entidade politica que trans- 208 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS cendia os limites das comunidades locais ou corporativas e que impunha sacrifícios nem sempre fáceis de aceitar. Assim, nos debates das Cortes foram escutadas numerosas intervenções em defesa da igualdade fiscal, da uniformidade jurisdicional, da agilização dos procedimentos administrativos e, sobretudo, dos deveres inerentes à condição de membro dessa comunidade política “vasta” que era o «reino», deveres esses que o rei e os seus oficiais se esforçaram por colocar acima das obrigações intrínsecas à pertença familiar, local ou corporativa. A fim de tornar esses apelos mais consensuais, os oficiais régios costumavam associar a essas obrigações para com o «reino» todo um discurso com ressonâncias religiosas, fazendo identificar as intenções da Coroa com os desígnios de Deus168. É certo que, em muitos casos, tais apelos não tiveram qualquer acolhimento. De qualquer modo, não deixa de ser significativo que as sessões de Cortes tenham sido o palco desse tipo de afirmações. Outra valência política das Cortes decorria do simples facto de essa assembleia reunir um número considerável de dignitários – cerca de três centenas – e poder ser facilmente instrumentalizada, tendo em vista alcançar determinados objectivos. As manobras de influência junto das Cortes foram uma constante, e as várias entidades políticas em presença por diversas vezes tentaram utilizar, como forma de pressão, o alargado conjunto de pessoas que participava na assembleia. Como sugerimos, por vezes os oficiais régios viram nas Cortes uma boa oportunidade para fomentar a unanimidade face aos planos – sobretudo fiscais – da Coroa, procurando desse modo assegurar a colaboração das elites locais na implementação das decisões tomadas pela assembleia. Como acabámos de ver, fizeram-no não só através da repetição, até à exaustão, das necessidades em que se encontrava o reino, mas procurando associar o imaginário religioso aos sacrifícios que procuravam impor aos «três estados». Para isso, a Coroa procurou garantir que, durante o período em que as Cortes estavam reunidas, os pregadores que celebrassem missas na cidade onde a assembleia decorria profeririam sermões cujo conteúdo estaria orientado para convencer o auditório a ser conivente com os pedidos da Coroa. Quanto aos demais grupos sociais, também eles se aperceberam do potencial da reunião dos «três estados» como forma de pressão política. Em 1642, por exemplo, a contestação aos planos fiscais da Coroa tornou-se especialmente forte, e alguns procuradores queixaram-se, de um modo extremamente exaltado, de que só uma parte do reino pagava os impostos. Um grupo de representantes das câmaras tentou mobilizar as Cortes para exercer pressão sobre o monarca, a fim de que a Coroa abdicasse dos seus propósitos fiscais. Na sequência disso, gerou-se uma situação de pré- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 209 -motim que muito atemorizou a Coroa, razão pela qual os procuradores mais radicais não tardaram em ser presos. Noutros casos, podia suceder que as facções cortesãs usassem as Cortes como forma de pressão contra os seus inimigos – as manobras de descrédito movidas contra o secretário de estado Francisco de Lucena, em finais de 1642, são um excelente exemplo do que acabámos de dizer169. Uma questão que permaneceu em aberto, durante toda a segunda metade de Seiscentos, foi a da alegada obrigatoriedade do rei em consultar as Cortes sempre que tinha de tomar qualquer decisão na área fiscal170. Mais do que um assunto encerrado, esta matéria foi um pretexto para infindáveis debates entre a Coroa e os diversos grupos sociais. Da parte do reino, em princípio o «terceiro estado» era aquele que mais veementemente insistia na reunião com o rei para decidir sobre novas imposições fiscais, pois acreditava que essa seria a melhor forma de instaurar uma situação de relativa igualdade fiscal, ou seja, obrigar o clero e a nobreza a contribuir. Por esse motivo, os apelos mais sonoros para que a assembleia fosse convocada partiram, em geral, das autoridades urbanas, as quais costumavam alegar, em defesa da sua reivindicação, que alguns dos princípios constitucionais do reino seriam violados pelo monarca caso não consultasse os representantes do reino. É muito sintomático que os apelos para a convocatória de Cortes a fim de aprovar novos tributos raramente tenham sido lançados por membros do clero e da nobreza. Todavia, é curioso verificar que, em certos momentos, os representantes do «terceiro estado» foram os primeiros a opor-se à convocatória da assembleia, alegando motivos como o dispêndio inerente a cada nova reunião, a lentidão do processo decisório, etc. A Coroa também participava nesta exploração conjuntural do capital simbólico (e político) das Cortes. Como vimos, em determinadas conjunturas mostrou-se interessada em reunir a assembleia, na expectativa de que dela resultariam decisões que seriam socialmente muito mais consensuais. Noutros momentos, pelo contrário, demonstrou uma aberta relutância em chamar os «três estados», curiosamente invocando motivos aos quais os povos não eram indiferentes: lentidão dos processos decisórios, custos inerentes à reunião, risco de motim, receio de que os povos vissem na convocatória das Cortes um sinal de que a obrigatoriedade de pagar tributos tinha cessado, etc. Como sugerimos, de um modo geral estas manobras a favor ou contra as Cortes costumavam surgir em conjunturas de aprovação de novos impostos. Quando antevia dificuldades na negociação com as Cortes, a própria Coroa prescindia de dialogar com os «três estados» e optava por realizar consultas restritas às principais cidades, encarando-as – sobretudo à Câmara de Lisboa – como uma instância de mediação com o resto do 210 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS reino. A esse respeito, cumpre reconhecer que a dinastia de Bragança acabaria por ter uma actuação bastante semelhante à dos monarcas Habsburgo, tão duramente criticados pela propaganda pós-1640 precisamente por terem levado a cabo iniciativas fiscais sem a consulta prévia da assembleia representativa171. Após 1640 várias exacções fiscais foram introduzidas sem que as Cortes tivessem sido consultadas, registando-se, também, alguns casos em que os tributos foram automaticamente aprovados por mais três anos, invocando-se o facto de continuar presente o motivo que tinha justificado a sua imposição172. Na linha do que já vinha sucedendo desde meados de Quinhentos, o Senado de Lisboa continuou a assumir-se como interlocutor privilegiado do rei, chegando mesmo a arvorar-se em representante das restantes cidades do reino. Convém notar, no entanto, que esse papel de que se arrogou Lisboa nem sempre foi bem aceite pelas demais cidades e vilas com assento em Cortes, tanto mais que, muitas vezes, os procuradores lisboetas se revelaram mais próximos do interesse da Coroa do que dos interesses das comunidades que compunham o reino. Após a morte de D. João IV – em 1656 –, a situação pouco se alterou. A 22 de Novembro de 1657, o conde de Comminges (embaixador francês em Lisboa) relatava, numa das muitas cartas que enviou para a corte francesa, que a regente D. Luísa estava a esforçar-se para reunir o dinheiro pedido por Mazarin para aceitar uma aliança com Portugal. Acrescentava que «o povo não tinha relutância em contribuir, mas os fidalgos faziam tudo para fugir ao pagamento, e [a rainha] não se atrevia a pedir nada ao clero». A acreditar em Comminges, o «povo» desejava a convocação de Cortes e a rainha estava de acordo, mas «o clero a desfavorecia e os fidalgos e os ministros se esforçavam para impedi-la, porque os primeiros teriam de pagar e os segundos de responder pela sua administração»173. Nos anos de 1650 e 1660 assistiu-se ao aumento exponencial da pressão fiscal, recrudescendo, também, a discussão acerca da margem de manobra da Coroa em matérias tributárias. Como assinalámos, a atitude mais frequente era o apelo para que as Cortes fossem consultadas sempre que se planeasse a introdução de uma nova exacção. Todavia, em certos casos eram os próprios «estados» a lembrar ao rei que o motivo do imposto continuava presente, não havendo por isso necessidade de convocar os «três estados». No entanto, convém ter presente que a renovação trienal de impostos sem a consulta das Cortes nem sempre foi uma solução pacífica, e momentos houve em que gerou autênticas tempestades políticas. A par desta profusão de debates sobre a competência das Cortes na área da fiscalidade, a «assembleia dos três estados» continuou a intervir, pontualmente, em matérias sucessórias, marcando presença em alguns dos ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 211 momentos mais transcendentais para a Coroa, como por exemplo o levantamento de cada novo rei ou o juramento dos príncipes herdeiros. Os círculos régios condescenderam com esta pontual actuação da assembleia dos «três estados» nesse terreno tão importante, embora procurassem frisar que essa intervenção era circunscrita e localizada. Assim que o debate tocava em temas mais sensíveis, logo intervinham os oficiais régios, tudo fazendo para moderar as intervenções e para desmobilizar a discussão. Os próprios participantes nas Cortes parecem ter consciência de que havia certos temas que, pela sua delicadeza, não convinha discutir abertamente na assembleia portuguesa. Francisco Ferreira Rebelo, jurista e diplomata na agitada Londres da década de 1650, testemunhou as sucessivas reuniões do Parlamento inglês e as resoluções aí tomadas, e, nas cartas que enviou para Lisboa, observa que a assembleia representativa inglesa discutia matérias de grande transcendência político-constitucional, acrescentando que seria difícil ver as Cortes de Portugal debaterem, tão abertamente, temas tão sensíveis. Refere, a título de exemplo, a ampla discussão em torno do título que Oliver Cromwell deveria assumir174. É, em parte, verdade, que os debates nas Cortes portuguesas não costumavam ir tão longe. Seja como for, alguns anos depois de Ferreira Rebelo ter feito este comentário sobre o radicalismo das discussões que tinham lugar no Parlamento inglês, as Cortes de Portugal voltaram a tocar nesse transcendental tema que era a capacidade governativa do monarca. Tal sucedeu nas Cortes de 1667-68, reunidas em plena crise governativa motivada pelo descrédito em que a governação de D. Afonso VI tinha caído. Convocada numa altura em que estava já em curso o afastamento do rei e a sua substituição pelo seu irmão D. Pedro, a assembleia de 1667-68 constitui, sem dúvida, um momento ímpar, pois essa foi a ocasião em que as Cortes mais se envolveram na discussão sobre as questões do trono175. Tal como sucedera em 1641, em 1667 as Cortes foram convocadas tendo em vista sancionar uma situação que já estava praticamente consumada: o afastamento do rei D. Afonso VI. Os representantes dos «três estados» discutiram longa e acaloradamente a questão, apresentando diversas propostas para a resolução da crise. A par dos muitos debates que então tiveram lugar, circularam também vários pareceres de teólogos e de juristas acerca da aflitiva situação em que se encontrava a Coroa, o que ainda mais contribuiu para alargar o âmbito do debate. Exceptuando os contextos de ruptura dinástica, nunca antes se havia discutido, com tanta publicidade, matérias tão cruciais, e vários foram os oficiais régios que se aperceberam do melindre da situação. Depois de muitas hesitações, as Cortes acabaram por ser determinantes para sancionar a solução encontrada: D. Afonso VI 212 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS manteria o título de rei, mas seria dado como incapaz para o governo, sendo por isso mesmo substituído nessas funções pelo seu irmão, o qual, por sua vez, foi jurado pelos «três estados» como «regente e governador do reino». O aval das Cortes serviu, de novo, para tornar socialmente mais aceitável essa situação profundamente anómala e que roçava a imoralidade. Uma vez mais era dada a oportunidade aos «três estados» para se pronunciarem sobre matérias da mais alta política. Contudo, e à semelhança do que sucedeu após 1640, da reunião de 1667-68 também não resultou qualquer iniciativa de relançamento do papel das Cortes no sistema político português. Na assembleia que se seguiu – celebrada em 1673-74 – alguns procuradores ainda tentaram pronunciar-se sobre a situação política que se vivia no reino, embora sem grande êxito, uma vez que os oficiais régios rapidamente circunscreveram o debate. A assembleia realizou-se em Lisboa, num momento em que corriam rumores de que o embaixador espanhol congeminava uma conspiração, facto que contribuiu para exaltar os ânimos176. A reunião terminou abruptamente, por ordem de D. Pedro, numa altura em que os debates ameaçavam provocar um tumulto, sobretudo porque a juntar aos rumores de que estava em curso uma conjura, vários foram os procuradores que fizeram declarações inflamadas sobre a situação em que se encontrava o governo do reino, reclamando o regresso de D. Afonso VI. Tendo em conta estes acontecimentos, compreende-se facilmente porque é que, nos anos que se seguiram, a Coroa favoreceu a identificação entre a assembleia de Cortes e a problemática fiscal. Ao concentrarem a atenção dos «três estados» na questão dos tributos, os oficiais régios evitavam que os debates tocassem em matérias consideradas demasiado sensíveis para serem discutidas na “praça pública”. Para além disso, a Coroa tinha plena consciência de que o aval das Cortes poderia ser decisivo para tornar socialmente mais consensuais as propostas fiscais, assim como para garantir que os influentes locais colaborariam com a Coroa no seu esforço para arrecadar o produto fiscal. Ainda assim, e apesar de ficarem cada vez mais centrados na questão fiscal – algo que ia ao encontro dos desejos da Coroa após 1640 –, os debates ocorridos nas Cortes nem por isso deixaram de contar com intervenções mais acaloradas, nas quais os vassalos não hesitaram em lembrar aos governantes do reino as suas obrigações, chegando mesmo a acusá-los de mau governo. Seja como for, no último quartel de Seiscentos assistiu-se a um gradual esvaziamento da capacidade das Cortes para intervir em matérias de alta política, com a excepção da fiscalidade, área que praticamente monopolizou as discussões. Tal não significa, no entanto, que a «assembleia dos três ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 213 estados» se tivesse tornado na única instância competente nessas matérias. De facto, a par das Cortes, a Coroa foi explorando outras formas mais céleres de negociação fiscal. Assim, para além de ter confiado cada vez mais à Câmara de Lisboa o papel de principal interlocutor, favoreceu órgãos mais ágeis e politicamente mais controláveis pela Coroa – como a Junta dos Três Estados –, opção que acabou por ditar o esvaziamento de algumas das competências da «assembleia dos três estados». No que respeita à política tributária, convém ter presente que a grande questão se jogava no controle sobre a administração fiscal. Inicialmente, os municípios lograram manter nas suas mãos a gestão do fisco. Todavia, tal gerou numerosas situações de desvio de dinheiro e de cobrança fiscal muito abaixo das expectativas, o que levou à criação de uma série de órgãos vocacionados para o controlo da própria administração tributária da Coroa, de que um dos melhores exemplos é a referida Junta dos Três Estados, a qual desenvolveu uma tenaz luta com as câmaras das principais cidades do reino tendo em vista dominar os mecanismos de gestão dos impostos cobrados nessas urbes. Essa junta começou por ser composta por representantes dos «três estados», mas com o tempo foi deixando de contar com deputados directamente nomeados pelo «estado dos povos», o que suscitou algum descontentamento. O confronto entre as cidades do reino e a Junta dos Três Estados – órgão fundamental e que continua à espera de um estudo aprofundado – representa, afinal, o esforço da Coroa em penetrar nessas «comunidades de privilégios» que eram os núcleos urbanos. Os territórios ultramarinos e a sua representação no centro político Como é bem sabido, a tradição jurídica vigente na época moderna previa que a soberania sobre um reino poderia ser adquirida através das seguintes vias: por herança; por acordo de todos os representantes do reino, que livremente manifestavam a vontade, em sede de assembleia representativa, de se sujeitarem a um senhor, transferindo-se de um soberano para o outro; por casamento; por outorga do Papa; e, finalmente, por conquista. Cada uma destas formas de incorporação territorial previa determinadas consequências ao nível da dignidade e dos direitos políticos gozados pelas instituições que administravam as terras que eram objecto da incorporação. Vários destes mecanismos agregativos foram postos em prática pelas casas reais ibéricas, tanto na Europa, no quadro do processo de alargamento dos seus domínios, como fora dela, no âmbito do desenvolvimento dos seus impérios ultramarinos. Como começámos por sugerir, cada uma das unidades políticas mais “vastas” – como um reino, uma monarquia ou um império – era vista 214 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS como uma comunidade de comunidades, como um conjunto de corpos políticos agregados por laços de natureza diversa e escalonados segundo uma ordem fortemente hierárquica, ordem essa que conferia a cada uma das partes direitos políticos desiguais. Tal desigualdade era bem visível no interior da Península Ibérica, onde, como verificámos, prevalecia uma rigorosa hierarquia entre os vários reinos e, dentro destes, entre as diversas cidades. É essa hierarquia que explica o facto de apenas uma pequena parte das urbes ter assento nas Cortes. No que toca aos territórios extra-europeus das Coroas ibéricas, esse escalonamento hierárquico também marcou presença, não só ao nível das relações entre as várias cidades ultramarinas, mas também dos laços que estas mantinham com as suas congéneres peninsulares. Assim, na fase inicial da colonização das possessões ultramarinas, a dignidade das instituições situadas nessas terras era muito inferior à das comunidades peninsulares, realidade que, desde logo, tinha uma consequência bem visível na «assembleia dos três estados»: as cidades ultramarinas começaram por estar ausentes da reunião que congregava as principais urbes do reino. Importa não esquecer que os domínios extra-europeus das Coroas Ibéricas foram inicialmente tratados como «conquistas», termo que, de resto, surge frequentemente na documentação coetânea. Como assinalámos, o estatuto de «conquista» evocava o modo como esses territórios tinham ingressado nos domínios dos monarcas ibéricos, envolvendo sérias consequências quanto aos direitos políticos gozados pelas suas instituições e pelos seus habitantes: eram territórios escalonados numa posição inferior face aos domínios europeus das Coroas ibéricas, estando as suas populações desprovidas de alguns dos mais substantivos direitos políticos, como por exemplo a «honra» de tomar parte na assembleia de Cortes. Tal não significa, porém, que as instituições representativas estivessem ausentes dos domínios ultramarinos das Cortes ibéricas. No caso das possessões extra-europeias da Coroa de Castela, por exemplo, o seu ordenamento jurídico admitiu a realização de reuniões entre cidades da América para a resolução dos conflitos surgidos entre elas, estabelecendo-se uma hierarquia que, de alguma maneira, evoca aquela que existia nos reinos de Castela entre as urbes com assento em Cortes e as restantes povoações. Como assinalou Carlos Dias Rementeria a propósito da administração da América Espanhola177, já em Junho de 1530 se contemplava a possibilidade de se celebrarem congressos de cidades da Nova Espanha, de entre as quais a cidade do México teria o primeiro voto. Anos mais tarde, em Abril de 1540, estipulava-se a realização de reuniões similares no ViceReinado do Peru, considerando-se a cidade de Cuzco como a principal entre as que integravam essa circunscrição administrativa. Importa frisar, ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 215 contudo, que a estas reuniões jamais foi dada a denominação de «Cortes»; em vez desse termo, os coetâneos utilizavam, deliberadamente, a palavra «congresso», a qual denota uma assembleia de menor dignidade do que a reunião dos «três estados». À medida que as instituições urbanas do continente americano se consolidaram, as suas pretensões políticas alargaram-se consideravelmente, e algumas urbes chegaram mesmo a reivindicar o direito a tomar parte na assembleia representativa que reunia as cidades de Castela-Leão. Por vezes, a própria Coroa tomou a iniciativa de as chamar, tendo em vista reforçar o laço de ligação entre a metrópole e suas possessões ultramarinas. Assim aconteceu sob o valimento de Olivares: numa carta régia de Maio de 1635, dirigida ao Vice-rei da Nova Espanha, coloca-se a possibilidade de que quatro procuradores, sorteados entre as províncias integrantes desse Vice-Reinado, acorressem às reuniões das Cortes de Castela e Leão onde fossem jurados príncipes. Previa-se também que esses representantes aproveitassem a vinda à Europa para tratar de outros assuntos178. Como já foi referido, no quadro da «Unión de las Armas» a Coroa dirigiu insistentes apelos no sentido do aprofundamento da integração entre as distintas partes da Monarquia, tendo em vista envolver os territórios ultramarinos no esforço de defesa da Monarquia Hispânica179. O vice-rei do Peru, conde de Chinchón, foi um dos governantes incumbidos de pôr em prática essas medidas, e, numa das suas missivas que enviou ao Real Consejo de las Indias, assinala algo de muito interessante sobre a capacidade política das cidades americanas: «Si bien reconozco que en las Indias no hay Junta de Cortes, Brazos, Estamentos ni Parlamentos, y que así la potestad real de S. M. es libre y absoluta, todavía creo que lo que importa a su real servicio es, no sólo que se imponan los tributos, sino que se reciban y paguen por sus vassallos con obediencia y gusto. Y a esto será mucho provecho la esperanza en unos y certidumbre en otros de ser remunerados»180. Esta declaração do conde de Chinchón reveste-se de um grande interesse, pois nela o vice-rei constata a ausência de uma assembleia que servisse de fórum de negociação para estabelecer alguma concertação às iniciativas da Coroa em terras americanas. A resposta que o Consejo de las Indias deu ao Vice-Rei do Peru não é menos sugestiva, pois remete para a questão a que atrás aludimos: a diferença de hierarquia entre as cidades europeias e as urbes americanas. O Consejo de las Indias afirma que «las Indias son muy diferentes de los otros reinos, no sólo en el poder que los vasallos tienen en estos casos, sino en la calidad dellos. [sublinhado nosso] Que aunque hay caballeros de calidad, en quien caben todo este género de mercedes, suelen ser los que tienen menos mano en ayudar a estos arbitrios. Y se suele hallar más ayuda 216 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS en el consulado de los mercaderes y en otros hombres de trato. Y no hay votos en Cortes ni junta de ayuntamiento, sino que hacen los virreys juntas de ministros y llaman algunos vecinos, cuales les parece, y con aquellos acuerdos, y comunicándolo con los corregidores y los prelados, fácilmente se introduce la materia en los cabildos eclesiásticos y seglares, cuando conviene y se halla dispuesta»181. Dificilmente encontraríamos uma declaração mais taxativa da “menor qualidade” social, mas também política, dos territórios americanos, da sua população e das suas instituições. Algo de semelhante se passava no reino de Portugal e nas suas possessões ultramarinas. No caso português, o principal desafio consistiu em encontrar expedientes representativos que fossem capazes de espelhar os territórios cada vez mais vastos e as populações cada vez mais variadas que estavam sob o comando dos monarcas lusos182. No período de Quinhentos e de Seiscentos, com o contínuo processo de expansão territorial, este problema tornou-se especialmente premente, tendo sido necessário encontrar formas de tornar presentes, junto da Coroa, os interesses dos vários corpos sociais, tanto do reino como dos territórios extra-europeus sob a jurisdição dos monarcas portugueses183. Além disso, e tal como sucedia no império espanhol, também a Coroa portuguesa tinha consciência de que era necessário criar formas de participação das elites ultramarinas, como meio de as comprometer com o esforço conjunto do reino. Os trabalhos de Charles Boxer184 e de Evaldo Cabral de Mello185, entre outros, têm contribuído para esclarecer o modo como se processava a comunicação política entre a corte e os territórios ultramarinos. Assim, com a realeza comunicavam os titulares dos cargos governativos e administrativos das regiões ultramarinas, os quais eram, muitas vezes, portavozes das aspirações e das reivindicações dessas terras. Todavia, também as câmaras municipais desempenharam esse papel. Na verdade, os poderes municipais do ultramar foram relativamente céleres a adquirir uma identidade política mais vincada, assumindo-se como interlocutores com a Coroa. Para o Brasil de finais do século XVI e do século XVII, por exemplo, são muitas as petições assinadas por um conjunto de municípios, falando em nome dos habitantes que estavam sob a sua alçada e «representando» – tornando presente ao rei – os problemas que afectavam essas populações186. Tais textos vinham muitas vezes acompanhados de longos escritos onde se descrevia a história local, aludindo a lendas fundadoras e enaltecendo os serviços militares desempenhados pelas gentes que aí viviam. Eram escritos com um fundo reivindicativo muito marcado, pois reclamavam prerrogativas, direitos e liberdades-imunidades, concorrendo para fortalecer a identidade política local e para reafirmar a auto-suficiência das câmaras187. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 217 Além disso, importa ter em conta que algumas câmaras americanas, ao saberem que estava para breve a vinda de Filipe III a Portugal, manifestaram a vontade de participar nas Cortes convocadas para 1619188. E nas assembleias realizadas após 1640 há representantes de câmaras municipais da cidade de Goa, bem como da América Portuguesa. Convém notar que estes procuradores não só participaram na abertura solene, como assumiram um grande protagonismo na sessões de trabalho das Cortes, acompanhando o selecto grupo das cidades do primeiro banco que reunia, em privado, com o rei, para resolver os assuntos pendentes. Na assembleia de 1653, por exemplo, deparamos com Jerónimo Serrão de Paiva a actuar como «procurador do Brazil», chegando mesmo a ser nomeado «definidor», ou seja, membro da comissão incumbida de acompanhar a reunião até ao seu termo189. No que respeita à presença de representantes de cidades americanas nas Cortes portuguesas, os trabalhos de Fernanda Bicalho e de Fátima Gouvêa sugerem que este fenómeno tem de ser associado ao aparecimento do título de «Príncipe do Brasil», podendo indiciar uma mudança de estatuto desta possessão ultramarina190. A preocupação por manter a ligação entre a Coroa portuguesa e os territórios ultramarinos, numa época em que estes eram cobiçados por outras potências europeias, também explica esta camada das câmaras extra-europeias para as Cortes. A importante temática do estatuto de cada cidade – peninsular e ultramarina – carece ainda de um estudo aprofundado, o mesmo se podendo dizer da equiparação dos privilégios de alguns municípios ultramarinos àqueles que eram gozados pelos habitantes das principais cidades do reino (com a excepção de Lisboa, «cabeça do reino»). Seja como for, tudo indica que a “dignidade” das diversas partes do Império era algo de dinâmico e oscilante. Durante o período de Quinhentos os municípios da parte Oriental do Império – de que o melhor exemplo é Goa – desfrutaram de um estatuto claramente destacado, sobretudo quando comparados com a menor projecção dos poderes locais da América Portuguesa, muitos deles ainda em fase embrionária, e onde o único caso mais saliente era o da câmara da Bahia. Já no século XVII, outras cidades brasileiras vão ver o seu estatuto dignificado: em 1642 os cidadãos do Rio de Janeiro recebem os mesmos privilégios, honras e liberdades que tinham sido conferidos aos cidadãos do Porto em 1490, adquirindo, dessa forma, uma maior capacidade de comunicação com a Coroa. Após 1654 algo de semelhante terá ocorrido com algumas câmaras de Pernambuco e das capitanias limítrofes, devido ao papel por elas desempenhado na luta contra os neerlandeses. Trata-se de um tema importante, pois denuncia alguma mobilidade e algum voluntarismo, ao contrário do que era predominante no caso das câmaras do reino191. 218 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS O fim da convocatória das Cortes No final de Seiscentos, tornava-se cada vez mais evidente que tanto a Coroa como os vários grupos sociais estavam a desinvestir nas Cortes. A aristocracia cada vez menos viu na assembleia representativa o seu principal fórum de diálogo, enquanto corpo social, com a Coroa. Para os aristocratas de finais do século XVII a política jogava-se, sobretudo, na corte e nos conselhos palatinos192, e como bem notou I. A. A. Thompson, as principais instâncias de protecção da nobreza e de garantia dos seus direitos, nessa época, acabaram por ser os conselhos régios e as próprias instituições judiciais193. Assim se compreende porque é que os nobres castelhanos raramente escolheram as Cortes como principal espaço de confronto com a política da Coroa. Como assinala o mesmo Thompson, quando comparada com outros contextos europeus – como Inglaterra –, a oposição aristocrática no mundo ibérico tinha um cunho menos constitucional, era muito mais pessoal, traduzindo-se em reivindicações de carácter pontual, como por exemplo a exigência de que o rei fosse libertado da influência de um valido que se revelara mau ministro194, ou a recusa em aceitar a nomeação para um determinado cargo195. O afastamento entre a aristocracia e as Cortes contribuiu para desviar dessa assembleia o debate sobre uma série de matérias da alta política. Com o tempo, as reuniões dos «três estados» foram deixando de opinar sobre questões do governo geral do reino, sobre a política dinástica ou sobre as relações internacionais da Coroa, concentrando-se, como vimos, na negociação fiscal. Importa notar que os procuradores não se opuseram a esse processo, e de um modo geral aceitaram que essas questões, pela sua complexidade, cada vez menos faziam parte do seu elenco de tarefas. Quanto ao clero, as Cortes também estavam longe de ser o seu principal espaço de articulação com a Coroa, porquanto os diversos sectores do «estado eclesiástico» desenvolveram os seus próprios canais de influência e de comunicação com os círculos régios, prescindindo, cada vez mais, da «assembleia dos três estados». O fenómeno que acabámos de descrever é comum aos vários reinos da Península Ibérica, afectando, no seu conjunto, todas as suas assembleias representativas. É certo que o caso português se reveste de alguma especificidade, pois, ao contrário do que se passou em Aragão, na Catalunha, em Valência ou nos demais reinos peninsulares – com a óbvia excepção de Castela –, após 1640 Portugal passou a contar com um rei permanentemente residente no seu território, facto que, como vimos, favorecia a convocatória assídua das Cortes. Além disso, a comparência de uma parte considerável da aristocracia e do alto clero nas Cortes portuguesas, ao ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 219 longo de toda a segunda metade de Seiscentos, conferiu a este órgão alguma força e prestígio. Como assinalámos, a presença do «estado eclesiástico» e do «estado da nobreza» proporcionava às Cortes não só publicidade, mas também autoridade moral196 e, consequentemente, uma maior capacidade de pressão sobre a Coroa. Seja como for, e apesar disso, também em Portugal as Cortes foram perdendo protagonismo, deixando de exercer uma função consultiva e sendo paulatinamente substituídas, nessa função, pelo Conselho de Estado e pelos demais conselhos palatinos. Quanto à vigilância sobre o governo, em Portugal, tal como em Castela, o controle constitucional foi cada vez mais desempenhado pelos conselhos palatinos e, sobretudo, por um sistema jurisdicional bastante independente, ou seja, por um mecanismo de procedimento administrativo materializado nos diversos tribunais, órgãos que contavam, nas suas fileiras, tanto com figuras do «estado eclesiástico» como com elementos da nobreza. Acresce que a cultura política do tempo continuava a ter no seu centro o primado da justiça, o que, por si só, funcionava como factor de “resistência cultural” a iniciativas governativas mais voluntaristas e puramente executivas da Coroa, uma vez que também ela participava – e dependia – desse imaginário jurisdicionalista197. No que respeita à alegada competência legislativa das Cortes, J. I. Fortea Pérez reconhece que, através das petições, as Cortes lograram exercer uma assinalável influência sobre a legislação do reino. De qualquer modo, em todas as leis produzidas pelas Cortes era enunciado, de forma clara, que cabia ao monarca o mais eminente poder legislativo. Além diso, ao longo dos séculos XVI e XVII várias normas resultantes de Cortes acabaram por ser alteradas sem que os «três estados» tivessem podido pronunciar-se198. Acresce que os oficiais régios tenderam a ser cada vez mais relapsos na resposta às petições entregues nas Cortes, o que, indirectamente, contribuiu para que os municípios deixassem de acreditar na eficácia dessa assembleia para resolver os seus problemas199. Também isso contribuiu para que, a partir de finais de Seiscentos, as assembleias de Cortes tenham sido postas à margem do principal processo político200. Cumpre notar que as Cortes não foram as únicas instituições representativas a actuar nos diversos reinos ibéricos. Com efeito, ao lado destas assembleias foram surgindo, desde o século XVI, órgãos de natureza diversa, em geral desprovidos de um carácter parlamentar e com uma composição menos numerosa, facto que os tornava mais ágeis em termos de gestão dos assuntos governativos. Em Castela, por exemplo, Carlos V estabeleceu – em 1525 – uma Diputación del Reino, cuja função era velar pelo cumprimento dos acordos de Cortes e gerir, perante os conselhos e tribunais 220 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS régios, os problemas cuja resolução as cidades lhe confiavam201. Cabia à Diputación, entre outras atribuições, representar o reino nos períodos em que as Cortes não estavam reunidas. Já no início do século XVII, e também em Castela, foi criada a Comisión de Millones (1611), um órgão inicialmente composto apenas por comissários nomeados pelas cidades, e que em 1639 se converteria num tribunal supremo sobre matérias fiscais. Com o tempo, porém, os ministros régios conseguiram penetrar nesse órgão, e em 1658 a Comisión acabaria por ser integralmente absorvida pelo Consejo de Hacienda da Coroa de Castela. J. I. Fortea Pérez nota que, a partir da entrada em cena da Comisión de Millones, passou a existir uma duplicidade de órgãos representativos com competências na área fiscal202. Portugal também assistiu à paulatina criação de órgãos que desempenhavam funções representativas e que eram titulares de atribuições potencialmente esvaziadores das competências das Cortes. É esse o caso de alguns dos conselhos palatinos, das juntas restritas do tempo de Filipe III e de Olivares, e, também, da já referida Junta dos Três Estados (1643). As cidades, quando negociavam directamente com o rei, também concorriam com as Cortes, o mesmo se podendo dizer do município de Lisboa, sobretudo quando o seu Senado se apresentava como «cabeça do reino» e falava em nome das demais cidades. É importante frisar que a pluralidade de formas representativas a que temos vindo a fazer alusão estava intimamente relacionada com a heterogeneidade do espaço sócio-político dos séculos XVI e XVII. Na realidade, a pluralidade dos canais representativos coetâneos espelhava um ambiente profundamente heterogéneo em termos jurisdicionais, e profundamente hierarquizado no que toca ao estatuto de cada uma das partes que integrava o corpo político. Como sugerimos no início deste ensaio, lidamos com um espaço social não-homogéneo e não-uniforme, onde o princípio da igualdade pesava pouco, e onde o direito de representação tinha mais em conta a qualidade do que a proporcionalidade aritmética entre as partes que compunham o todo203. Por surgir num corpo social extremamente diversificado, o direito de representação não podia assentar num único expediente representativo, igual para todas as partes do corpo social. Tais partes eram muito diferentes entre si, e a pluralidade de órgãos representativos de que falámos reflectia, acima de tudo, essas diferenças. Como assinalou Giovanni Levi, a justiça distributiva das sociedades do Antigo Regime era governada por uma «igualdade geométrica», por uma justiça típica de uma sociedade aristocrática e hierárquica, onde cada um tinha direitos diferenciados e onde tudo o que era semelhante em status se devia unir e ser tratado com os seus semelhantes. A esta lógica se opõe, eviden- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 221 temente, a igualdade da proporção aritmética da sociedade democrática, que não aceita diferenças de status e que se baseia na justiça comutativa204. Não obstante a concorrência que sofreram, as Cortes não ficaram totalmente desprovidas de poder. John H. Elliott, demonstrou, de forma muito clara, que as assembleias, mesmo nesta fase de perda de protagonismo, não foram completamente inoperantes205. No caso de Castela, o controle do novo imposto dos millones tornou-as capazes de desenvolver uma oposição de cariz mais constitucional. Após a queda de Olivares, a abertura das Cortes de 1646 também foi acompanhada por disputas com a Coroa, por causa da concessão de plenos poderes aos procuradores. Em plena crise, no entanto, os procuradores acabaram por não levar até ao limite a sua acção, embora o confronto geral entre a Coroa e os poderes urbanos estivesse iminente em 1647, um ano muito difícil para a monarquia206. Quanto a Portugal, não há dúvida de que o facto de o clero e a nobreza continuarem a comparecer nas Cortes proporcionou força moral a esta assembleia. No entanto, e como assinalámos, estes dois grupos nunca encararam a assembleia como o seu principal palco de interacção com a Coroa. No que toca aos procuradores, vimos atrás que jamais manifestaram muito empenho em usar a reunião dos «três estados» como instrumento para reconfigurar o regime de relacionamento que mantinham com o monarca português, embora tivessem tido, pelo menos, duas excelentes oportunidades para o fazer: em 1640, quando da ruptura com a Monarquia Hispânica, momento em que foi concedido, conjunturalmente, um excepcional protagonismo político às Cortes; e em 1667-68, aquando do afastamento do rei D. Afonso VI e da afirmação do seu irmão D. Pedro. Seja como for, e ao contrário do que sucedeu com os Parlements de França, a verdade é que nenhuma das assembleias representativas ibéricas funcionou como um órgão que congregasse, de forma homogénea, determinados interesses de corpo207. Tal contribuiu, sem dúvida, para que as Cortes jamais se tivessem tornado no principal palco de defesa dos direitos de cada um dos grupos sociais face às investidas da Coroa. A luta pela preservação dos privilégios corporativos teve lugar em outros órgãos e em outros sectores da vida política. Os conselhos palatinos, os tribunais e, de uma forma geral, o conjunto do sistema administrativo-judicial, foram as instâncias que, em última análise, exerceram o principal papel de vigilância e de controle constitucional sobre a acção da Coroa. Para além do que acabou de ser mencionado, outros foram os motivos que concorreram para a marginalização das Cortes: a reunião dos «três estados» foi frequentemente substituída por conselhos (função consultiva e 222 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS executiva), por juntas (administração fiscal) e pela comunicação directa entre a Coroa a as cidades (negociação directa)208. A nobreza e o clero continuaram a responder à convocatória, mas a maioria dos seus membros acabava por participar, apenas, nos eventos cerimoniais que contavam com a participação do soberano, abandonando a reunião assim que podia. Quanto às contribuições fiscais estabelecidas em Cortes, ficaram sempre muito aquém do prometido, o que fez com que a Coroa olhasse para a assembleia como um órgão cada vez menos eficaz na criação de consenso em torno da fiscalidade. Talvez por causa disso, os oficiais régios tornaram-se mais relapsos na resposta às petições. As cidades e as vilas, por seu turno, cada vez mais encararam a participação nas Cortes como um dispêndio pouco compensador; para o clero a assembleia também foi perdendo peso no seu relacionamento com a Coroa, já que, aos poucos, o «estado eclesiástico» desenvolveu os seus próprios canais de influência; os reis e os seus ministros, da sua parte, mostraram-se cada vez mais relutantes em chamar as Cortes, preferindo investir em outros canais de comunicação política e em outras formas de fiscalidade mais fáceis de introduzir sem a aprovação das Cortes, caso das taxas alfandegárias. Perante tudo isto, compreende-se melhor a decisão tomada pela regente de Castela Mariana de Áustria, a 25 de Julho de 1667, de não reunir as Cortes que o falecido Filipe IV havia deixado convocadas. Nessa data decidiu-se não propriamente suprimir as Cortes, mas sim, e em vez disso, adiar sine die a sua convocatória. Da parte das cidades não se registou nenhuma reacção hostil a esta decisão, até porque, como vimos, a prática negocial com a Coroa à margem das Cortes estava já amplamente implantada. Por outro lado, a Coroa, para não suscitar reacções adversas, sempre que introduziu novas exacções recorreu ao argumento de que o que estava em jogo não eram novas contribuições mas sim, e em vez disso, a renovação das contribuições já existentes, facto que, para alguns, dispensava a convocatória da assembleia representativa. A par disso, a Coroa recorreu, com cada vez mais frequência, ao «donativo», um expediente fiscal que não carecia de aprovação das Cortes209. Por último, convém lembrar que a decisão de 1667 tem também a ver com a circunstância de Carlos II ser um rei menor e de se recear que a assembleia se pudesse converter num foco de oposição ou de desestabilização210. Em Portugal as últimas Cortes do Antigo Regime celebraram-se em 1697-98, reunião que praticamente se limitou a debater questões fiscais. Depois dessa data o monarca não voltou a convocar as Cortes, embora jamais tenha declarado que não voltaria a convocar os três estados. Seja como for, o certo é que os anos foram passando sem que as Cortes tives- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 223 sem sido chamadas, facto que, sintomaticamente, também não provocou qualquer escândalo. Na verdade, era para todos claro que, na viragem para o período Setecentista, os tribunais e o conjunto do sistema jurídico-administrativo eram garantias suficientemente fortes para resistir a iniciativas mais voluntaristas da Coroa. Como tal, a ausência de «assembleias dos três estados» não foi encarada como um atentado aos direitos dos vários corpos do reino, nem como uma situação que punha em risco o equilíbrio de forças entre o rei e os estados sociais. Como acabámos de dizer, no século XVIII as Cortes de Portugal jamais foram convocadas, nem sequer para a inauguração de cada novo reinado, embora se tenha falado dessa assembleia a propósito de algumas das novas exacções que a Coroa foi impondo. Todavia, à medida que se avançou no período de Setecentos, foi-se instalando um ambiente político mais regalista, no qual a convocatória dos «três estados» começou a ser encarada, pelos círculos régios, como uma cedência cada vez menos aceitável da parte de monarcas que se distinguiam por assumir, agora sim, uma atitude governativa mais abertamente voluntarista e executiva. Nesse contexto, as Cortes passam a ser apresentadas como uma assembleia que reunia por mera opção do rei, recusando-se a esse órgão qualquer veleidade de controle constitucional ou de limitação dos desígnios da Coroa. Seja como for, e não obstante todo o avanço das doutrinas regalistas, vários foram aqueles que continuaram a evocar as Cortes e a apresentá-las como um órgão que controlava a acção do monarca. A «assembleia dos três estados» voltou a estar no centro do debate político no final de Setecentos, no momento em que se projectou alterar o Livro II das Ordenações Filipinas, projecto esse que suscitou uma polémica pública sobre o «absolutismo» régio. Pascoal de Melo Freire, autor do Projecto de alteração do dito Livro II, postulava um conceito «absoluto» de realeza, ao passo que António Ribeiro dos Santos pugnava por um entendimento mais tradicional de monarquia, cujo poder era partilhado com os demais corpos sociais. Ribeiro dos Santos defendeu as Cortes, referindo-se às leis fundamentais e ao seu «carácter sagrado», encarando-as como repositório de elementos limitadores do poder régio. Pascoal de Melo Freire, por seu turno, sustentava que em Portugal nenhum órgão limitava o poder do rei. Depois de um longo debate, a doutrina de um poder régio moderado e alegadamente fiel à tradição portuguesa acabaria por vingar, facto que travou a aprovação da reforma211. No entanto, não foi só nesse momento que as Cortes voltaram a estar no centro do debate político-jurídico de finais de Setecentos e de início do século XIX. Bartolomé Clavero recordou que, na Espanha dos primeiros anos de Oitocentos, as Cortes do Antigo Regime voltaram a polarizar o debate político-constitucional. No contexto das revoluções liberais, foi 224 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS constituída uma Comissão que tinha como objectivo restabelecer a assembleia representativa212. Reunida a partir de 1809, essa comissão procurou reconstituir o modo como se processavam, desde tempos ancestrais, as sessões das Cortes. Ao analisarem as assembleias dos séculos antecedentes, os membros da dita comissão destacaram alguns dos aspectos que mais negativamente os impressionaram: antes de mais, a fraca representatividade das Cortes e a sua falta de liberdade na escolha dos representantes. Nas Cortes da época moderna prevalecia «una forma de vana representación y una sombra de libertad», afirmavam, acrescentando que os procuradores das cidades «nunca representaban la Nación»213. Além disso, os membros da dita comissão ficaram também impressionados com a ausência de um articulado escrito e de natureza constitucional que estabelecesse, de uma forma sólida e clara, o lugar das Cortes no sistema político do Antigo Regime. Para os membros da dita comissão, a debilidade das Cortes do Antigo Regime devia-se, em boa medida, à inexistência desse texto escrito. Era toda uma nova leitura da política – e dos princípios constitucionais – que estava a ganhar forma. NOTAS 1 Pablo Fernández Albaladejo, «Monarquia, Cortes y “cuestión constitucional” en Castilla durante la edad moderna», Revista de las Cortes Generales, 1 (1984) pp. 11-34; «Cortes y poder real: una perspectiva comparada» in AA. VV., Las Cortes de Castilla y León en la Edad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1989, pp. 477-499; «La resistencia en las Cortes» in John H. Elliott & A. García Sanz (orgs.), La España del Conde Duque de Olivares, Valhadolide, Universidad de Valladolid, 1990, pp. 317-337; de P. Fernández Albaladejo e J. A. Pardos «Castilla, territorio sin Cortes (siglos XV-XVII)», Revista de las Cortes Generales, 15 (III cuatrimestre, 1988) pp. 113-208. Veja-se, também, Fragmentos de Monarquía. Trabajos de Historia Política, Madrid, Alianza, 1992. 2 José Ignacio Fortea Pérez, Monarquía y Cortes en la corona de Castilla. Las ciudades y la política fiscal de Felipe II, Salamanca, Cortes de Castilla y León, 1990; «The Cortes of Castile and Philip II’s Fiscal Policy», Parliaments, Estates and Representation, 11 (1991) pp. 117–138; «Reino y Cortes: el servicio de milliones y la reestructuración del espacio fiscal en la corona de Castilla (1601-1621)» in J. I. Fortea López & Carmen M. Cremades Griñán (orgs.), Política y Hacienda en el Antiguo Régimen, vol. I, Múrcia, Universidad de Murcia, 1992, pp. 53-82; «Las Ciudades, las Cortes y el problema de la representación política en la Castilla Moderna» in Imágenes de la Diversidad. El Mundo Urbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII), Santander, Universidad de Cantabria, 1997, pp. 421-445; «Entre dos servicios. La crisis de la hacienda real a fines del siglo XVI. Las alternativas fiscales de una opción política (1590-1601)», Studia historica. Historia Moderna, Salamanca, 17 (1997) pp. 63-90; «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla» in José Alcalá-Zamora & Ernest Belenguer (orgs.), Calderón de la Barca y la España del Barroco, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales-SEENM, 2001, pp. 779-803; «Las Cortes de Castilla y su Diputación en el reinado de Carlos II. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 225 Historia de un largo sueño», Actas de las Juntas del Reino de Galicia, vol. XII: 1701-1704, (2003) pp. 63-98. 3 I.A.A. Thompson, War and Government in Habsburg Spain, Londres, Athlone Press, 1976; «Crown and Cortes in Castile, 1590-1665», Parliaments, Estates and Representation, vol. 2 (1982) pp. 29-45; «The rule of the law in Early Modern Castile», European History Quarterly, vol.14 (1984) pp. 221-234; «Cortes y Ciudades. Tipologia de los procuradores: extraccion social y representatividad» in AA. VV., Las Cortes de Castilla y León en la Edad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Valhadolide, Cortes de Castilla y Léon, 1989, pp. 191-248; War and Society in Habsburg Spain. Selected essays, Londres, Variorum, 1992; «Castile: Polity, Fiscality and Fiscal crises» in P. T. Hoffman & K. Norberg (orgs.), Fiscal Crises, Liberty and Representative Government, 1460-1789, Stanford, Stanford University Press, 1994; «Castile, Spain and the monarchy: the political community from ‘patria natural’ to ‘patria nacional’» in R. Kagan & G. Parker (orgs.), Spain, Europe and the Atlantic world. Essays in honour of John H. Elliott, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, pp. 125-159; «Patronato real e Integración Política en las ciudades Castellanas bajo los Austrias» in J. I. Fortea Pérez (org.), Imágenes de la Diversidad. El mundo urbano en la Corona de Castilla (s. XVIXVIII), Santander, Universidad de Cantabria, 1997, pp. 475-496; «Oposición política y juicio del gobierno en las Cortes de 1592-98», Studia Historica. Historia Moderna, 17 (1997) pp. 37-62; «La respuesta castellana ante la política internacional de Felipe II» in AA. VV., La monarquía de Felipe II a debate, Madrid, SECCFC, 2000, pp. 121-134. 4 José Manuel Carretero Zamora, Cortes, Monarquía, Ciudades. Las Cortes de Castilla a comienzos de la época moderna (1476-1515), Madrid, Siglo Veintiuno, 1988. 5 Luis González Antón, «La investigación sobre las primeras Cortes medievales: las Cortes aragonesas anteriores a 1350. Aproximación metodológica, problemas y posibilidades», Estudios de Edad Media de la Corona de Aragón, 10 (1975); Las Uniones Aragonesas y las Cortes del Reino, 2 vols., Saragoça, CSIC, 1975; «Las Cortes aragonesas en el reinado de Jaime II», Anuario de Historia del Derecho Español, XLVII (1977) pp. 523-682; Las Cortes de Aragón, Saragoça, Librería General, 1978; «La Corona de Aragón: régimen político y Cortes. Entre el mito y la revisión historiográfica», Anuario de Historia del Derecho Español, LVI (1986) pp. 1017-1041; Las Cortes de España en el Antiguo Régimen, Madrid, Siglo XXI, 1989; «Cortes de Aragón y Cortes de Castilla en el Antiguo Régimen» in AA.VV., Las Cortes de Castilla y León en la Edad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1989, pp. 633-676. 6 Juan Luis Castellano, Las Cortes de Castilla y su Diputación (1621-1789). Entre Pactismo y Absolutismo, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1990. 7 Charles Jago, «Habsburg Absolutism and the Cortes of Castile», The American Historical Review, LXXVI (1980) pp. 307-326; «Crisis sociales y oposición política: Cortes y Monarquía durante el reinado de Felipe II» in AA. VV., Las Cortes de Castilla y León. 1188-1988, Valhadolide, Cortes de Castilla y León, 1990; «Crown and Cortes in EarlyModern Spain (Review Essay)», Parliaments, Estates and Representation, 12 (1992) pp. 177–192; «Parliament, subsidies and constitutional change in Castile, 1601-1621», Parliaments, Estates & Representation, vol. 13, n. 2 (Dez. 1993) pp. 123-137. 8 José Manuel de Bernardo Ares, «Sources of the history of municipal assemblies under the Crown of Castile (XVI-XVIII Centuries)», Parliaments, Estates and Representation, 16 (1996) pp. 59-73; «The aristocratic assemblies under the Spanish monarchy (1680-1700)», Parliaments, Estates and Representation, 21 (2001) pp. 125-143. 226 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 9 Juan E. Gelabert, Castilla convulsa (1631-1652), Madrid, Marcial Pons, 2001, em especial pp. 67 segs. 10 Xavier Gil Pujol, «Las Cortes de Aragón en la edad moderna: comparación y reevaluacion», Revista de las Cortes Generales, 22 (1991) pp. 79-119; «Crown and Cortes in Early Modern Aragon: Reassessing Revisionisms», Parliaments, Estates and Representation, 13 (1993) pp. 109–122; «Ciudadanía, patria y humanismo cívico en el Aragón foral: Juan Costa», Manuscrits, 19 (2001) pp. 81-101; «Parliamentary Life in the Crown of Aragon: Cortes, Juntas de Brazos, and other Corporate Bodies», Journal of Early Modern History, 6 (2002) pp. 363-395; «Republican Politics in Early Modern Spain: the Castilian and Catalano-Aragonese Traditions» in Martin Van Gelderen & Quentin Skinner (orgs.), Republicanism. A Shared European Heritage, vol. I – Republicanism and Constitutionalism in Early Modern Europe, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, pp. 263-384. 11 Ernest Belenguer Cebrià, «La Monarquía Hispánica desde la perspectiva de Cataluña» in AA.VV., Idea de España en la Edad Moderna, Valência, Real Sociedad Económica de Amigos del País, 1998, pp. 11-35. 12 Angel Casals i Martinez, «Les Corts Catalanes de 1510-1520: una etapa d’irregularitats», Afers, 9 (1990) pp. 23-37; L’Emperador i els catalans. Catalunya a l’imperi de Carles V (1516-1543), Granollers, 2000. Acerca das Cortes da Catalunha cumpre consultar AA. VV., Les Corts a Catalunya. Actes del Congrés d’Historia Institucional, Barcelona, Departament de Cultura de la Generalitat Catalana, 1991. Para as Cortes de Valência, cfr. V. Giménez Chornet, «La representación política en la Valencia foral», Estudis. Revista de Historia Moderna, 18 (1992) pp. 7-28. 13 Oriol Oleart i Piquet, «Organització i atribucions de la cort general» in Les Corts de Catalunya. Congrés d’Historia Institucional, 1988, Barcelona, 1991. 14 Joan Lluis Palos Peñarroya, «The Habsburg Monarchy and the Catalan Corts: The Failure of a Relationship», Parliaments, Estates and Representation, 13 (1993) pp. 139-151; e Catalunya a l’imperi dels Austria: la práctica de govern (segles XVI i XVII), Lérida, Pagés, 1994. 15 Acerca das Cortes de Navarra, consulte-se, de Fernando de Arvizu y Galarraga, «Las Cortes de Navarra en la Edad Moderna (aspectos políticos y legislativos)», Cuadernos de la Sección de Derecho, 6 (1984) pp. 29-54; «Las Cortes de Navarra en la Edad Moderna (Estudio desde la perspectiva de la Corona)» in AA.VV., Las Cortes de Castilla y León en la Edad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científico sobre las Cortes de la historia de las Cortes de Castilla y León, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1989, pp. 593-632; «Las Cortes de Navarra en la Edad Moderna (aspectos políticos y legislativos)» in AA. VV., Jornadas sobre Cortes, Juntas y Parlamentos del pueblo vasco, historia y presente, Eusko Ikaskuntza-Sociedad de Estudios Vascos. Cuadernos de Sección: Derecho, 6 (1989) pp. 29-53. 16 Jon Arrieta Alberdi, «El Consejo de Aragón y las Cortes catalanas» in AA. VV., Les Corts a Catalunya. Actes del Congrés d’Història Institucional, Barcelona, Departament de Cultura de la Generalitat Catalana, 1991, pp. 245-255; El Consejo Supremo de la Corona de Aragón (1494-1707), Saragoça, Institución “Fernando el Católico”, 1994; «La Ideia de España entre los Vascos de la Edad Moderna» in AA.VV., Idea de España en la Edad Moderna, Valência, Real Sociedad Económica de Amigos del País, 1998, pp. 39-61; veja-se, também, de Jose María Portillo, Monarquia y gobierno provincial. Poder y constitucion en las provincias vascas (1760-1808), Madrid, CEC, 1991. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. 17 Manuel A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 227 Artaza Montero, A Xunta do Reino de Galicia no final do Antigo Réxime (17751834), Corunha, Real Academia Gallega, 1993; «Representación Política y Guerra Naval en la Galicia de los Austrias», Anuario de Historia del Derecho Español, tomo LXVI (1996) pp. 445-495; Rey, Reino y Representación. La Junta General del Reino de Galicia, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1998; «Regional political representation in the Spanish Monarchy during the Ancien Régime: the Junta General of the Kingdom of Galicia», Parliaments, Estates and Representation, 18 (1998) pp. 15-26. 18 Maria del Cármen Saavedra Vázquez, «Las Juntas del Reino en la época de Olivares (1621-1643). II. Los problemas interiores (1621-1643)», Actas de las Juntas del Reino de Galicia, vol. IV: 1640-1641 (1994) pp. 23-41; «Las Juntas del Reino en la época de Olivares (1621-1643). II. La escuadra de Galicia», Actas de las Juntas del Reino de Galicia, vol. IV: 1642-1647 (1995) pp. 63-83; «Las Juntas del Reino en la época de Olivares (1621-1643). I. La presión sobre el reino», Actas de las Juntas del Reino de Galicia, vol. III: 1636-1639 (1997) pp. 41-55. De Maria del Cármen Saavedra Vaázquez & Maria López Díaz cumpre consultar o recente «Historia política y de las instituciones del Antíguo Régimen en Galicia» in Roberto J. López & Domingo L. González Lopo (orgs.), Balance de la Historiografía Modernista. 1973-2001, Actas del VI Coloquio de Metodología Histórica Aplicada, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, pp. 125-143. 19 Tenha-se em conta a intensa actividade desenvolvida pela International Commission for the History of Representative and Parliamentary Institutions, bem visível na sua revista Parliaments, Estates and Representation, a qual, desde os finais da década de 1980, reuniu alguns dos mais inovadores contributos sobre esta matéria – cfr. Thomas N. Bisson, «The problem of medieval parliamentarism: a review of work published by the International Commission for the History of Representative and Parliamentary Institutions, 1936-2000», Parliaments, Estates and Representation, 21 (2001) pp. 1-14; e Maria Sofia Corciulo, «Alle origini del dibattito metodológico sulla storia delle istituzioni parlamentari: il contributo della International Commission for the history of Representative and Parliamentary Institutions (ICHRPI)» in Laura Casella org.), Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano e Istituzioni Rappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003, pp. 37-46. 20 Uma panorâmica da bibliografia publicada até à década de 1990, em Pauline Croft & I.A.A. Thompson, «Aristocracy and Representative Government in Unicameral and Bicameral Institutions: the Role of the Peers in the Castilian Cortes and the English Parliament, 1529-1664» in W. Blom, W.P. Blockmans, H. de Schepper (orgs.), Bicameralisme. Tweekamerstelsel vroeger en nu. Handelingen van de Internationale Conferentie ter gelegenheid van bet 175-jarig bestaan van de Eerste Kamer der StatenGeneraal in de Nederlanden, Haia, Sdu Uitgeverij Koninginnegracht, 1992, pp. 63-86; e Pauline Croft, «Review Article: English Parliaments Re-considered», Parliaments, Estates and Representation, 13 (1993) pp. 75–81. 21 Blair Worden, The Rump Parliament 1648-1653, Cambridge, Cambridge University Press, 1974. 22 Mark Kishlansky, Parliamentary selection. Social and Political Choice in Early Modern Europe, Cambridge, Cambridge University Press, 1986. 23 Conrad Russell, «Monarquias, guerras y parlamentos en Inglaterra, Francia y España, ca. 1580-ca. 1640», Revista de las Cortes Generales, 6 (1985) pp. 231-254; «The Nature 228 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS of a Parliament in Early Modern England» in C. Russell, Unrevolutionary England. 1603-1642, Londres, The Hambledon Press, 1990, pp. 1-29. 24 J. Russell Major, Representative government in early modern France, New Haven, Yale U. P., 1980; Roger Chartier & D. Richet, Représentation et vouloir politiques. Autour des États Généraux de 1614, Paris, EHESS, 1982; Roger Chartier & J. Nagle, «Les cahiers de Dóleances de 1614. Un échantillon: châtellenies et paroisses du Baillage de Troyes», Annales ESC, 6 (1973) pp. 1484-1494; sobre a assembleia representativa francesa cumpre consultar, também, os trabalhos de Neithard Bulst, «L’histoire des assemblées d’états en france et la recherche prosopographique» in F. Autrand (org.), Prosopographie et Genése de l’État moderne, Paris, ENSJF, 1986, pp. 171-184 ; e, também de N. Bulst, «Les Députés aux États généraux de France de 1468 et 1484» in AA. VV., Mélanges de l’École Française de Rome, t. 100 (1988) 1, pp. 265-272. 25 Cfr. in gerene Laura Casella (org.), Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano e Istituzioni Rappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003. 26 E. Lousse, «The Estates of Brabant to the end of the fifteenth century: the make-up of the assembly» in P. Mack & M. Jacob (eds.), Politics and culture in early modern Europe - Essays in Honor of H.G. Koenigsberger, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, pp. 95-100. 27 Winfried Schulze, «Majority Decision in the Imperial Diets of the Sixteenth and Seventeenth Centuries», Journal of Modern History, vol. 58 (1986) pp. 46-63; e, sobretudo, de Peter Blickle (org.), Landschaften und Landstände in Oberschwaben. Bäuerliche und bürgerliche Repräsentation im Rahmen des frühen europäischen Parlamentarismus, Tübingen, Bibliotheca Academica Verlag, 2000. 28 João Pedro Ribeiro, «Memorias sobre as Fontes do Codigo Filipino» in Memorias de Literatura Portugueza, Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, vol. II, 1792, pp. 46-170; e Indice Chronologico Remissivo de Legislação Portuguesa posterior à publicação do Codigo Filipino, Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1805. 29 Visconde de Santarém, Memorias para a Historia e Theoria das Cortes Geraes, que em Portugal se celebrarão pelos Tres Estados do Reino Ordenadas, e Compostas no Anno de 1824, Lisboa, Lisboa, Imprensa Regia, 1827-28; ver, também, de Vasco Pinto de Sousa Coutinho, Visconde de Balsemão, Memorias sobre algumas antigas cortes portuguesas extrahidas fielmente de manuscritos autenticos da Biblioteca Real de Paris, etc., etc., oferecidas aos emigrados portuguezes pelo seu companheiro d’exilio, Paris, 1832. 30 Henrique da Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885-1934. 31 Eduardo Freire de Oliveira (org.), Elementos para a História do Município de Lisboa, Lisboa, Typographia Universal, 1889. 32 Paulo Merêa, O Poder Real e as Cortes (Lições proferidas na Faculdade de Direito de Coimbra no ano lectivo de 1922-1923), Coimbra, Coimbra Editora, 1923. 33 Marcelo Caetano, «As Cortes de 1385», Revista Portuguesa de História, Coimbra, 5 (1941); As Cortes de Leiria de 1254. Memória Comemorativa do VII Centenário, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1953; «Subsídios para a História das Cortes Medievais Portuguesas», Bracara Augusta, 14-15 (1963) pp. 139-160; História do Direito Português. I – Fontes, Direito Público. 1140-1495, Lisboa, Editorial Verbo, 1981. Importante foi também a inventariação documental realizada por Joaquim Leitão, em Côrtes do Reino de Portugal. Inventário da documentação existente servindo de catálogo da exposição documental e bibliográfica, Lisboa, Assembleia Nacional, 1940. ENTRE 34 O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 229 José Mattoso, «Perspectivas Económicas e Sociais das Cortes de 1385» in Estudos Medievais, n.º 5/6 (1984/1985), Porto, 1985, pp. 39-52. 35 Armindo de Sousa, «As Cortes de Leiria-Santarém de 1433», Estudos Medievais, 2 (1982), 71-224; «Conflitos entre o Bispo e a Câmara do Porto nos meados do século XV», Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, 1 (1983) pp. 9-103; «O discurso político dos concelhos nas Cortes de 1385», Revista da Faculdade de Letras – História, II (2) (1985) pp. 9-44; «As Cortes Medievais Portuguesas. Panorama Bibliográfico», Penélope. Fazer e Desfazer a História, 4 (1989) pp. 139-155; As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490), Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica / Centro de História da Universidade do Porto, 1990; «O Parlamento Medieval Português: perspectivas novas», Revista da Faculdade de Letras – História, II (7) (1990) pp. 47-58. 36 Maria Helena da Cruz Coelho, «Relações de Domínio no Portugal Concelhio de Meados de Quatrocentos», Revista Portuguesa de História, tomo XXV (1990) pp. 235-289; «État et Cortes au Portugal sous la Dynastie des Avis: le cas du Régent Don Pedro», Parliaments, Estates and Representation, 16 (1996) pp. 47-58; «A Guarda em Cortes nos séculos XIV e XV», Revista Portuguesa de História, 35 (2001-2002) pp. 123-142; «As Cortes e a Guerra», Revista de História da Sociedade e da Cultura, 1 (2001) pp. 61-80; «Les cortes en temps de guerre - une médiation interactive entre le roi et les corps sociaux du royaume de Portugal aux XIVe et XVe siècles», Parliaments, Estates and Representation, 21 (2001) pp. 37-56. 37 Amélia Aguiar Andrade & R. Costa Gomes, «As Cortes de 1481-82: uma abordagem preliminar. I - Capítulos Gerais. II - Capítulos Especiais», Estudos Medievais, n.º 3/4 (1984). 38 Maria Helena da Cruz Coelho & J. Romero Magalhães, O Poder Concelhio: das origens às Cortes Constituintes. Notas da História Social, Coimbra, Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, em especial pp. 40 segs. 39 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica (1580-1640). Felipe II, las Cortes de Tomar y la génesis del Portugal Católico, Madrid, Universidad Complutense, 1987; Portugal no tempo dos Filipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668), Lisboa, Cosmos, 2000. 40 António de Oliveira, A vida económica e social de Coimbra de 1537-1640, Coimbra, Faculdade de Letras, 1972; Poder e oposição política no período filipino (1580-1640), Lisboa, Difel, 1992; Movimentos sociais e poder em Portugal no século XVII, Coimbra, Imprensa de Coimbra, 2002. 41 Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, Coímbra, Imprensa da Universidade, 1981-82; acerca das Cortes, ver, em especial, vol. II pp. 112 segs. 42 António M. Hespanha, História das Instituições - Épocas Medieval e Moderna, Coimbra, Almedina, 1982, sobretudo pp. 367 segs.; «Centro e periferia nas estruturas administrativas do Antigo Regime», Ler História, 8 (1986) pp. 35-60; «As Cortes e o reino. Da União à Restauração», Cuadernos de história moderna, 11 (1991); «A “Restauração” Portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641», Penélope. Fazer e desfazer a história, 9/10 (1993) pp. 29-62; As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal, Século XVII, Coimbra, Almedina, 1995. 43 Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu Termo (1580—1640). Os homens as instituições e o poder, Porto, Arquivo Histórico. Câmara Municipal do Porto, 1988; «A participação do Porto nas Cortes de Lisboa de 1619», Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, 2.ª Série, vol. I, Porto (1983) pp. 105-139; «A viagem de Filipe 230 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS III a Portugal. Itinerários e Problemáticas», Revista de Ciências Históricas, 2 (1987) pp. 223-260. 44 Fernanda Olival, «As Cortes de Torres Novas, as Cortes de Évora e as reformas administrativas dos inícios do século XVI», actas do Colóquio: Évora, o foral manuelino e o devir quinhentista, Novembro de 2001 (no prelo). 45 Pedro Cardim, Cortes e Cultura Política no Portugal do século XVII, Lisboa, Cosmos, 1998. 46 Ângela Barreto Xavier, El rei aonde póde, & não aonde quer. Razões da política no Portugal seiscentista, Lisboa, Colibri, 1998. 47 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987. 48 Sobre este tema cfr. I.A.A. Thompson, «Patronato Real e Integración Política en las Ciudades Castellanas Bajo los Austrias» in J. I. Fortea Pérez (org.), Imágenes de la Diversidad. El Mundo Urbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII), Santander, Universidad, 1997, pp. 475-496. 49 Cfr. o magnífico trabalho realizado por J. I. Fortea Pérez, «Doctrinas y prácticas fiscales» in Roberto J. López & Domingo L. González Lopo (orgs.), Balance de la Historiografía Modernista. 1973-2001, Actas del VI Coloquio de Metodología Histórica Aplicada, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, pp. 489-514; consulte-se, também, de Beatriz Cárceles de Gea, Fraude y Desobediencia Fiscal en la Corona de Castilla, 1621-1700, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 2000. 50 Na linha do trabalho de edição de fontes históricas que está a ser efectuado, desde há alguns anos, pelo Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa. 51 Consulte-se, in genere, Pietro Costa, Iurisdictio. Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100-1433), Milão, Giuffrè, 1969. 52 João Salgado de Araújo, Ley Regia de Portugal. Primera Parte… (Madrid, Juan Delgado, 1627) f. 111v. 53 No caso de Portugal, um dos principais elementos a destacar é a inexistência de corpos intermédios entre as cidades e o reino, tanto nos domínios europeus da Coroa lusitana quanto no ultramar. Apesar de o termo «província» surgir na documentação, tratase de um vocábulo que não tinha uma correspondência administrativa muito clara, designando simplesmente o espaço dependente das principais cidades – cfr. Maria Helena da Cruz Coelho & J. Romero Magalhães, O Poder Concelhio…, cit., 1986, pp. 34 segs. Acerca deste tema cumpre consultar, também, os estudos de Nuno Gonçalo Monteiro, em especial «Os Poderes Locais no Antigo Regime» in César Oliveira (org.), História dos Municípios e do Poder Local (Dos finais da Idade Média à União Europeia), Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 17-175. 54 Gaines Post, «A romano-canonical maxim: “Quod omnes tangit”», Traditio, 4 (1946) pp. 196-251; G. Ermini, «Il principio “quod omnes tangit etc.” nello stato della Chiesa del seicento (secondo il pensiero di G. Battista de Luca)», Rivista Storica della Accademia, 49 (1970) pp. 276-300. Para o contexto português, consulte-se, de Rita Costa Gomes, «As Cortes de 1481-1482» in D. Ramada Curto (org.), O Tempo de Vasco da Gama, Lisboa, Difel, 1998, pp. 258 segs. 55 Cfr. Bernardo García (dir.), El Imperio de Carlos V. Procesos de Agregación y Conflictos, Madrid, Fundación Carlos de Amberes, 2000. 56 M. J. Rodríguez-Salgado, «Patriotismo y política exterior en la España de Carlos V y Felipe II» in Felipe Ruiz Martín (org.), La proyección europea de la Monarquía hispánica, Madrid, Editorial Complutense, 1996, pp. 49-104; veja-se, também, I.A.A. Thompson, «La respuesta castellana ante la política internacional de Felipe II» in AA. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 231 VV., La monarquía de Felipe II a debate, Madrid, SECCFC, 2000, pp. 121-134, estudo que contém muitos dados sobre a percepção da política internacional nutrida pelos procuradores às Cortes de Castela. 57 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro. Unión de Coronas Ibéricas entre Don Manuel y Felipe II» in AA. VV., Congreso Internacional de Historia - El Tratado de Tordesillas y su Época, Valhadolide, 1995, pp. 1453-1463. 58 Rita Costa Gomes, A Corte dos Reis Portugueses no final da Idade Média, Lisboa, Difel, 1995. 59 Em Portugal, na falta do rei, ou na sua menoridade, o regente podia convocar as Cortes – cfr. Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 111 segs. 60 A ausência do rei levantava problemas tanto para as Cortes de Aragão quanto para as da Catalunha, porquanto o costume e a lei estabeleciam que só o monarca em pessoa podia chamar e presidir às Cortes. Tal princípio foi respeitado excepto em Navarra e na Península Itálica (Nápoles, Sicília e Sardenha), onde deparamos com vice-reis a convocar e a presidir a assembleias, as quais se realizaram com uma notável frequência. Cfr. Xavier Gil Pujol, «Republican Politics in Early Modern Spain…, cit., 2002, pp. 279 segs.; vide, também, Carlos José Hernando Sanchez, «El parlamento del reino de Nápoles bajo Carlos V: formas de representación, facciones y poder virreinal» in Laura Casella org.), Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano e Istituzioni Rappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003, pp. 329-387. 61 Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú. Aspectos político-legales», Anuario de Estudios Americanos, 24 (1967) pp. 1133-1176. 62 Thomas N. Bisson, «Celebration and Persuasion: reflections on the cultural evolution of medieval consultation», Legislative Studies Quarterly, VII, 2 (1982) pp. 181-204. 63 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government in Unicameral and Bicameral Institutions: the Role of the Peers in the Castilian Cortes and the English Parliament, 1529-1664» in W. Blom, W.P. Blockmans, H. de Schepper (orgs.), Bicameralisme. Tweekamerstelsel vroeger en nu. Handelingen van de Internationale Conferentie ter gelegenheid van bet 175-jarig bestaan van de Eerste Kamer der Staten-Generaal in de Nederlanden, Haia, Sdu Uitgeverij Koninginnegracht, 1992, pp. 75 segs. 64 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 142 segs. 65 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, p. 113. 66 Vide Iria Gonçalves, Pedidos e empréstimos em Portugal durante a idade Média, Lisboa, Ministério das Finanças, 1964. 67 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 464-465. 68 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 75. 69 Tal não significa, porém, que os nobres tenham deixado de interferir nos trabalhos da assembleia; continuaram a fazê-lo, mas de uma forma indirecta, quer através dos canais cortesãos de influência política, quer por meio do seu ascendente sobre o governo de algumas cidades – I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 75. 70 Gaines Post, «Roman Law and early representation», Speculum. Journal of maedieval studies, 18 (1943); Paolo Cappellini, «Rappresentanza (Diritto intermedio)» in AA.VV., Enciclopedia del Diritto, Milão, Giuffré Editore, vol. XXXVIII, 1988, pp. 435-463; e também D. Nocilla & L. Ciaurro, «Rappresentanza politica» in AA.VV., Enciclopedia del Diritto, Milão, Giuffrè Editore, 1988, vol. XXXVIII, pp. 543-609. 232 71 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 74. 72 José Ignacio Fortea Pérez, «Las Ciudades, las Cortes…, cit., 1997, p. 424. 73 Cfr. Pedro Cardim, «Le forme di rappresentanza nel sistema politico del Portogallo dell’Antico Regime» in Laura Casella org.), Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano e Istituzioni Rappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003, pp. 215-236. 74 António M. Hespanha, «O Governo dos Áustria e a “Modernização” da constituição política portuguesa», Penélope. Fazer e desfazer a história, n.º 2 (Fevereiro de 1989) pp. 52 segs. 75 Rita Costa Gomes, «As Cortes de 1481-1482…, cit., 1998, pp. 251 segs. 76 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 74. 77 Biblioteca Nacional, Lisboa, cód. 3722 f. 134v. 78 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 75. 79 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 780 segs. 80 Cfr. J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 781 segs. Este dispositivo conheceu algumas modificações, em especial porque em Castela a Coroa usou a venda de lugares nas Cortes como fonte de rendimento. Assim, segundo J. I. Fortea Pérez, em 1625 a Galiza conseguiu um voto em Cortes a troco de um serviço de 100 mil ducados. Em 1639 a Coroa decidiu vender outros dois votos às cidades que quisessem comprá-los. Porque nenhuma urbe se mostrou interessada, a oferta voltou a ser feita em 1650. Nessa ocasião, um dos votos foi adquirido colectivamente pelas cidades da Extremadura, enquanto que o outro foi comprado por Palência, a troco de 80 mil ducados. Dessa forma, Palência conseguiu realizar uma antiga pretensão: separar-se da cidade de Toro. Seja como for, as Cortes de Castela deixaram de ser convocadas antes que Palência pudesse exercer o seu direito de voto. No século XVIII, outras cidades negociaram o seu direito de voto - caso de Écija, Málaga, Jerez de la Frontera ou Oviedo - mas nenhuma alcançou os seus objectivos. Assim, na sua versão final as Cortes de Castela contavam com 21 cidades com direito de voto – J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 781 segs. 81 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, p. 199; Luís Miguel Duarte, «The Portuguese Mediaeval Parliament: Are We Asking the Right Questions?», E-Journal of Portuguese History, Volume 1, n. 2 (Winter 2003) p. 7 - artigo disponível na Internet no seguinte sítio: http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue2 /pdf/duarte.pdf (Março de 2003). 82 Tamar Herzog, Defining Nations. Immigrants and Citizens in Early Modern Spain and Spanish America, New Haven y Londres, Yale University Press, 2003. 83 Xavier Gil Pujol, «Ciudadanía, patria y humanismo cívico en el Aragón foral: Juan Costa», Manuscrits, 19 (2001) pp. 81-101. 84 J. I. Fortea Pérez, «Los abusos del poder: el común y el gobierno de las ciudades de Castilla trás la rebelión de las Comunidades» in J. I. Fortea, Juan Gelabert & T. Mantecón (orgs.), Furor et rabies. Violencia, conflicto y marginalización en la Edad Moderna, Santander, Universidad de Cantabria, 2002, pp. 183-218. ENTRE 85 A O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 233 par destas reflexões de carácter “abstracto”, alguns acontecimentos concorreram para perturbar a situação. É esse o caso de episódios em que certas comunidades fizeram demonstrações de voluntarismo, abdicando de um rei e escolhendo abraçar, por sua livre vontade, a fidelidade de um outro monarca. Gil Pujol cita, a este respeito, o exemplo de Cambrai, cidade localizada entre os Países Baixos espanhóis e a França. As autoridades urbanas de Cambrai rejeitaram o seu anterior soberano, o arcebispo local, e escolheram colocar-se sob a soberania e protecção de Filipe II, na condição de que os seus privilégios fossem respeitados. O mesmo Filipe II que negava às cidades ibéricas estas formas de voluntarismo, aceitava, no caso de Cambrai, a manifestação da sua vontade política. Este interessantíssimo episódio foi estudado por José Javier Ruiz Ibáñez em Felipe II y Cambrai: el consenso del pueblo. La soberanía entre la práctica y la teoría política (1595-1677), Madrid, SECCFC, 1999. A crise sucessória de Portugal também suscitou o mesmo tipo de reflexões. 86 Xavier Gil Pujol, «Republican Politics in Early Modern Spain…, cit., 2002, pp. 267 segs. 87 Na Catalunha estas alusões tinham uma especial ressonância política. Desde há muito que o principado se auto-representava como uma comunidade política de base contratual (origens carolíngias, eleição original, etc.). Todavia, cumpre notar que não existia apenas uma visão do “constitucionalismo catalão”, mas sim várias leituras do tema, coexistentes umas com as outras. Alguns - como Andreu Bosch - tinham uma leitura eminentemente popular, encarando as Cortes catalãs e a Generalitat como as instâncias representativas por excelência. Cfr. Xavier Gil Pujol, «Republican Politics in Early Modern Spain…, cit., 2002, pp. 279 segs. 88 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 782 segs. 89 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 782 segs.; acerca deste tema consulte-se, também, de J. M. Carretero Zamora, «Régimen electoral de Madrid a las procuraciones en Cortes: Las ordenanzas electorales de los siglos XVI y XVII», E.T.F. Homenaje al Prof. Bethencourt Massieu, n.º 4 (1989) pp. 173-194; e, de J. Cerdá y Ruiz-Funes, «Formas de elección de los procuradores de Cortes en Murcia (1444-1450). En torno a unos documentos de la ciudad y el Rey» in AA.VV., Estudios en Homenaje a Don Claudio Sánchez Albornoz en sus 90 años, Buenos Aires, Facultad de Filosofia y Letras, Instituto de Historia de España, s.d. 90 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 784 segs.; consulte-se, também, de J. Sarrión Gualda, «La interferencia del Rey en la designación y poderes de los procuradores en las Cortes castellano-leonesas (siglos XVI-XVII)» in A. Iglesia Ferreirós (dir.), Centralismo y Autonomismo en los siglos XVI-XVII. Homenaje al Profesor Jesús Lalinde Abadía, Barcelona, Universidad de Barcelona, 1989; para o contexto portugués, consulte-se P. Cardim, «Cortes e Procuradores do reinado de D. João IV», Penélope. Fazer e desfazer a história, n.º 9/10 (1993) pp. 63-71; para o espaço galego vide, de María López Díaz, «Organización e Integración Política de la Ciudades Gallegas en Tiempos de Felipe II», Obradoiro de Historia Moderna, n.º 8 (199) pp. 99-120. 91 J. I. Fortea Pérez, «Las Ciudades, las Cortes y el problema de la representación política…, cit., 1997, pp. 439 segs. 92 O que não significa que o assunto não tenha vindo a lume. De facto, e como recorda Armindo de Sousa, desde o período tardo-medieval debateu-se a questão do voto imperativo dos procuradores – As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 227 segs. 93 Marcello Caetano, «Da Antiga Organização dos Mesteres» in Franz-Paul Langhans, As 234 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História, Lisboa, Imprensa Nacional, 1943, vol. 1, pp. I-LXXXIII. 94 Xavier Gil Pujol, «Parliamentary Life in the Crown of Aragon…, cit., 2002, p. 377. 95 Cfr. Rita Costa Gomes, «As Cortes de 1481-1482…, cit., 1998, pp. 245-264. 96 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995. 97 Como notou Armindo de Sousa, durante a Idade Média a intervenção das Cortes em matérias sucessórias não era vinculativa. Nalguns casos os três estados foram chamados para decidir ou sancionar a mudança de reinado; noutras conjunturas, porém, todo o processo decorreu sem que as Cortes fossem consultadas – As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 256 segs. 98 Cfr. P. Cardim, Cortes e Cultura Política..., cit., 1998, capítulo 2. 99 Saúl António Gomes, «As Cortes de Lisboa de 1502» in AA.VV., Primeiras Jornadas de História Moderna, Vol. I, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986, pp. 317-347; Luís Miguel Duarte, «O Estado Manuelino: a onça e o elefante» in O tempo de Vasco da Gama, dir. de D. Ramada Curto, Lisboa, Difel, 1998, pp. 190-191. L. M. Duarte lembra que, nesta ocasião, as Cortes foram chamadas para exercer uma função até aí pouco frequente: o juramento do herdeiro ao trono. A única excepção foi a reunião de 1390-91. 100 Joaquim Veríssimo Serrão, «A “Crónica de D. João III” de António de Castilho», Arquivos do Centro Cultural Português, vol. II (1970) pp. 355 segs. Acerca das Cortes do tempo de D. João III, consulte-se, de Joaquim Romero Magalhães, «As Cortes» in J. Romero Magalhães (coord.) No Alvorocer da Modernidade 1480-1620), vol. III de José Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 73-78. 101 Frei Luís de Sousa, Anais de D. João III, com prefácio e notas do prof. M. Rodrigues Lapa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1938, pp. 199 segs. 102 Capitolos de Cortes E Leys que sobre alguuns delles fezeram… (Lisboa, Germão Galharde, 1539). 103 Cfr. «Lembrança do que sucedeu na morte de D. João 3, filho de D. Manuel, e da rainha D. Maria, e levantamento do principe D. Sebastião por Rei de Portugal, seu neto…», Fundação da Casa de Bragança, Vila Viçosa, Mss. II, f. 54-57v.; D. Manuel de Menezes, Chronica do Muito Alto, E Muito Esclarecido principe D. Sebastião Decimosexto Rey de Portugal, composta por D. Manoel de Menezes, Chronista mòr deste Reyno, e Conquistas em sua menoridade... (Lisboa, Officina Ferreyriana, 1730), pp. 50 segs.; e Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião. Elementos para uma história estrutural, Lisboa, I.N.-C.M., 1992, pp. 18 segs. 104 Acerca das Cortes de 1562 consulte-se, de D. Manuel de Menezes, Chronica do Muito Alto, E Muito Esclarecido principe D. Sebastião..., cit., 1730, pp. 271 segs.; e Diogo Barbosa Machado, Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem o Governo del rey D. Sebastião... (Lisboa, Joseph Antonio da Sylva, 1736-), pp. 162 segs. 105 Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião..., cit., 1992, pp. 289 segs. e pp. 340 segs. 106 Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião..., cit., 1992, pp. 340 segs. 107 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995, pp. 1453-1463. 108 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995, p. 1454. ENTRE 109 O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 235 Edward Peters, The Shadow King. Rex Inutilis in Medieval Law and Literature, New Haven, Yale, 1970. 110 Mafalda Soares da Cunha, «A questão jurídica na crise dinástica» in J. Romero Magalhães (coord.), No Alvorocer da Modernidade…, cit., 1993, pp. 558 segs. Ver também, de Carlos Margaça Veiga, Poder e poderes na crise sucessória portuguesa (1578-1581), Lisboa, Universidade de Lisboa, Fac. de Letras, 1999 (2 vols. policopiados). 111 Mafalda Soares da Cunha, «A questão jurídica na crise dinástica» in J. Romero Magalhães (coord.), No Alvorocer da Modernidade…, cit., 1993, pp. 557 segs. 112 Cfr. José Maria de Queirós Velozo, O reinado do Cardeal D. Henrique, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1946; idem, O Interregno dos Governadores e o Breve Reinado de D. António, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1953; Joaquim Veríssimo Serrão, O reinado de D. António Prior do Crato, Coimbra, IAC, 1956; Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 236 segs; Carlos Margaça Veiga, Poder e Poderes na crise sucessória portuguesa (1578-1581), Lisboa, tese de dout., Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 1999. 113 José Maria de Queirós Velozo, O Interregno dos Governadores..., cit., 1953, pp. 56 segs.; Mafalda Soares da Cunha, «A questão jurídica na crise dinástica» in J. Romero Magalhães (coord.), No Alvorocer da Modernidade…, cit., 1993, pp. 552-559. 114 «Carta régia à cidade de Lisboa», Elvas, 4 de Janeiro de 1581, Eduardo Freire de Oliveira (org.), Elementos para a História do Município de Lisboa, XII, Lisboa, CML, 1903, p. 8. 115 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, «Introdução. Portugal nas cartas de D. Filipe I às suas filhas e os tempos de um Príncipe Moderno» in Cartas a duas infantas meninas, Lisboa, Dom Quixote, 1999, pp. 22 segs. 116 O melhor estudo sobre esta temática é o de Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica (1580-1640). Felipe II, las Cortes de Tomar y la génesis del Portugal Católico, Madrid, Universidad Complutense, 1987, pp. 213 segs. 117 Archivo General de Simancas, Estado, Legajo 415. 118 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995, p. 1458 segs. 119 O juramento teve lugar a 16 de Abril. Em carta de 1 de Maio, dirigida às suas filhas, D. Filipe manifestava já a intenção de viajar para Lisboa - Cartas a duas infantas meninas, Lisboa, Dom Quixote, 1999, pp. 61 segs. 120 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas en que se examinan las prerrogativas de la Corona y de las Cortes de Portugal», Anuario de Historia del Derecho Español, 1933, p. 14. 121 O príncipe D. Filipe foi jurado a 30 de Janeiro de 1583, no Paço da Ribeira, em Lisboa; duas semanas mais tarde, o monarca hispânico partia para Castela - Cartas a duas infantas meninas, Lisboa, Dom Quixote, 1999, p. 183. 122 Consulte-se, por exemplo, o «Parecer sobre se podia El rey fazer mercê aos Povos, como fez nas Cortes de Thomar de os desobrigar dos direitos dos Portos Secos, e se resolue que sim podia, nem he couza para se duvidar» (sem data, ca. 1595), Biblioteca da Ajuda, Lisboa, cód. 51-VI-46 f. 174v. 123 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 76. 124 J. I. Fortea Pérez, «Las Ciudades, las Cortes y el problema de la representación política…, cit., 1997, pp. 427-428. 236 125 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS J. I. Fortea Pérez, «Entre dos servicios. La crisis de la hacienda real…, cit., 1997, pp. 63-90. 126 António Manuel Hespanha, «O Governo dos Áustria…, cit., 1989, pp. 53 segs. 127 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 792-795. 128 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, p. 78. 129 I.A.A.Thompson, «Castile, Spain and the monarchy: the political community from ‘patria natural’ to ‘patria nacional’» in R. Kagan & G. Parker (orgs.), Spain, Europe and the Atlantic world. Essays in honour of John H. Elliott, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, pp. 140 segs. 130 Ernest Belenguer Cebrià, «La Monarquía Hispánica desde la perspectiva de Cataluña…, cit., 1998, p. 35. 131 Claude Gaillard, Le Portugal sous Philippe III d’Espagne. L’action de Diego de Silva y Mendoza, Grenoble, Université des Langues et Lettres de Grenoble, 1982, pp. 107 segs.; F. Ribeiro da Silva, «A viagem de Filipe III..., cit., 1987, pp. 223-260. 132 Acerca do Conselho de Portugal consulte-se, maxime, Santiago de Luxán Meléndez, La Revolución de 1640 en Portugal, sus fundamentos sociales y sus caracteres nacionales. El Consejo de Portugal. 1580-1640. Madrid, Editorial de la Universidad Complutense, 1988; D. Ramada Curto, A Cultura Política em Portugal (1578-1642). Comportamentos, ritos e negócios, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, dissertação de doutoramento, 1994, pp. 346 segs. 133 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas…, cit., 1933, p. 4. 134 Acerca do protagonismo da Câmara de Lisboa no período filipino, cfr. António Manuel Hespanha, «O Governo dos Áustria…, cit., 1989, pp. 55 segs. 135 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas…, cit., 1933, pp. 5-6. 136 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica (1580-1640)..., cit., 1987, pp. 321 segs. 137 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas…, cit., 1933, p. 6. 138 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 826 segs. Apesar de as Cortes de 1619 terem ficado aquém do que os portugueses esperavam, a propaganda régia encarregou-se de apresentar o evento como um momento de intensa comunhão entre D. Filipe II e os seus vassalos de Portugal – cfr. a gravura da sala de Cortes inserida na famosa obra de João Baptista Lavanha, Viagem da Catholica Real Magestade del Rey D. Filipe II. N. S. ao reyno de Portugal e rellação do solene recebimento que nelle se lhe fez… (Madrid, Thomas Iunti, 1622). Acerca desta reunião de Cortes consulte-se F.J. Pizarro Gómez, «La Jornada de Felipe III a Portugal en 1619 y la arquitectura efémera» in Pedro Dias (coord.), As relações artísticas entre Portugal e Espanha na época das Descobertas, Coimbra, Livraria Minerva, 1987, pp. 123-146; Francisco Ribeiro da Silva, «A viagem de Filipe III a Portugal. Itinerários e Problemáticas», Revista de Ciências Históricas, 2 (1987) pp. 223-260; Pedro Gan Giménez, «La jornada de Felipe III a Portugal (1619)» Chronica Nova, 19 (1991) pp. 407-431; D. Ramada Curto, «Ritos e cerimónias da monarquia em Portugal (séculos XVI a XVIII)» in AA.VV., A Memória da Nação, Lisboa, Sá da Costa, 1991, pp. 201-265; Jacobo Sanz Hermida, «Un viaje conflictivo: relaciones de sucesos para la Jornada del Rey N. S. Don Felipe III deste nombre, al Reyno de Portugal (1619)», Península. Revista de Estudos Ibéricos, n.º 0 (2003) pp. 289-320. 139 Claude Gaillard, Le Portugal sous Philippe III d’Espagne…, cit., 1982, pp. 311 segs. ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. 140 António A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 237 Manuel Hespanha, «O Governo dos Áustria…, cit., 1989, pp. 50-73; Peter Thomas Rooney, «Habsburg Fiscal Policies in Portugal, 1580-1640», Journal of European Economic History, 23 83) (1994) pp. 545-562. 141 Jean-Frédéric Schaub, «Dinámicas políticas en el Portugal de Felipe III (1598-1621)», Relaciones, revista do Colegio de Michoacan, México,73 (1998) pp. 169-211. 142 Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado…, cit., vol. I, pp. 231-233. Para uma boa comparação com a Coroa de Aragão, onde os «Fueros de Sobrarbe» exerceram um efeito galvanizador semelhante ao das «actas» das Cortes de Lamego, consulte-se, de Jesús Morales Arrizabalaga, «Los Fueros de Sobrarbe como discurso político. Consideraciones de método y documentos para su interpretación» in Huarte de San Juan. Revista de la Facultad de Ciencias Humanas y Sociales de la Universidad Pública de Navarra, Serie: Derecho, n. 1 (1994) pp. 161-188; Veja-se, também, de Antonio Álvarez-Ossorio, «Fueros, Cortes y clientelas: el mito de Sobrarbe, Juan José de Áustria y el reino paccionado de Aragón (1669-1678)», Pedralbes, n.º 12 (1992) pp. 239-291. 143 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, «A nobreza portuguesa e a corte de Madrid entre 1630 e 1640. Nobres e luta política no Portugal de Olivares» in Portugal no Tempo dos Filipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668), Lisboa, Cosmos, 2000, pp. 207 segs.; J. Romero Magalhães, «1637: motins da fome», Biblos, 52 (1976); António de Oliveira, Poder e Oposição Política..., cit, 1991, pp. 161 segs.; idem, Movimentos Sociais..., cit., 2002, pp. 423 segs. 144 Jean-Frédéric Schaub, Le Portugal au temps du comte-duc d’Olivares (1621-1640). Le conflit de juridictions comme exercice de la politique, Madrid, Casa de Velázquez, 2001, pp. 130 segs. 145 Archivo Historico Nacional, Madrid, Consejos, leg. 7130 – Memorial de Don Agustín Manuel de Vasconcelos sobre las advertencias a la juridizion y a la hazienda del reyno de Portugal, 17 de Outubro de 1638. 146 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 865 segs. 147 Xavier Gil Pujol nota que em Inglaterra, anos mais tarde, o Protectorado também implementou um parlamento britânico com uma só câmara (1654) - «Parliamentary Life in the Crown of Aragon…, cit., 2002, pp. 390 segs. 148 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 868 segs. 149 Biblioteca Nacional, Madrid, Mss. 953, f. 236 segs. 150 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, «1640 perante o Estatuto de Tomar. Memória e juízo do Portugal dos Filipes», Penélope. Fazer e desfazer a história, 9-10 (1993) pp. 17-27. 151 J.-F. Schaub, Le Portugal au temps du comte-duc d’Olivares…, cit., 2001, pp. 135 segs. 152 Luca Mannori y Bernardo Sordi, «Giustizia e amministrazione», in Fioravanti, Maurizio (org.), Lo Stato Moderno in Europa. Istituzioni e diritto, Bari, Laterza, 2002, pp. 61 segs.; Beatriz Cárceles de Gea, «El conde-duque de Olivares y los tribunales de la Corte: oposición política y conflicto constitucional», Cuadernos de investigación histórica, 13 (1990) págs. 7-35. 153 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria: Castilla en la década de 1640» in España en Europa. Estudios de historia comparada. Escritos seleccionados, Valência, Universitat de València, 2002, pp. 201 segs. 154 Algo de semelhante ter-se-á passado em Cambrai, em Outubro de 1595, quando os seus habitantes habitantes optaram por aclamar Filipe II como o seu novo soberano, um episódio estudado por José Javier Ruiz Ibáñez em Felipe II y Cambrai..., cit., 1999. 238 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 155 «Deste papel se há de formar la platica del Embaxador de Roma al Pontifice para que no admita la Embaxada del Obispo de Lamego y proceda en causas contra Portugal», Biblioteca Nacional, Madrid, Mss. 2372, f. 184 segs.; P. Cardim, «Ceremonial, political allegiance and religious constraints in 17th century Portugal» in José Pedro Paiva (org.) Religious Cerimonials and Images. Power and Social Meaning (1400-1750), Coimbra, Palimage – European Science Foundation, 2002, pp. 351-368. 156 Francisco Velasco de Gouveia, Ivsta acclamação do serenissimo Rey de Portvgal Dom Ioão o IV. Tratado analytico diuidido em tres partes, ordenado, e divulgado em nome do mesmo reyno, em justificação de sua acção… (Lisboa, Lourenço de Anvers, 1644), pp. 32 segs. Acerca deste livro, consulte-se, de Luís Reis Torgal, Ideologia Política..., cit., vol. I, 1981, pp. 231 segs. e 244 segs. 157 António Barbas Homem, Lei Fundamental e Lei Constitucional. A Formação do conceito de Constituição. Contributos para uma história do Direito Público, Relatório apresentado no Curso de Mestrado, Direito Constitucional, Lisboa, Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, 1985, p. 19; cfr. Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português. Lisboa, ISCSPU, 1968, pp. 67 segs. 158 Estas «actas» foram oportunamente impressas em 1641: Cortes Primeiras que el Rey Dom Afonso Henriquez celebrou em Lamego aos Tres Estados depois de ser confirmado pelo Sumo Pontifice por Rey deste Reyno... (Lisboa, António Alvarez, 1641). As cortes de Lamego são «a verdadeyra instituição do Reyno» escreve João Pinto Ribeiro em Uzurpação, Retenção, Restauração de Portugal... (Lisboa, Lourenço de Anvers, 1642), f. 38 segs. 159 Acerca da presença do conceito de pactum subiectionis na paisagem política ibérica, cfr. J. I. Fortea Pérez, «Principios de gobierno urbano en la Castilla del siglo XVI» in Enrique Martínez Ruiz & Magdalena de Pazzis Pi (coords.), Las Jurisdicciones, Madrid, Actas Editorial, 1996, pp. 261-308. 160 Fulgêncio Leitão, Reduccion, Restituycion del Reyno de Portugal a la Serenissima Casa de Bragança en la Real Persona de D. Iuan IV. Rey de dicho Reyno, con las razones, y causa de la Confederación, que celebró con el Rey christianissimo, y otros Principes. Discurso Moral, y Político: Por Iuan Baptista Moreli Doctor in Vtroque, y en la Sagrada Teología... (Turim, Iuannetin Pennoto, 1648), p. 238. 161 Lívio Giotta, Raggioni del Ré di Portogallo D. Giovanni IV. Col Stabilimento Fatto nella Corti dalli tre Stadi di quel Regno et Alcvne Allegationi Giuridicopolitiche, con le quali si proua, che il suo Ambasciatore mandato in Roma deue esser accettato del Pontefice. Con vna breue relatione del successo nell’elettione del nuouo Rè. Tradotto dalla Lingva Portvghese nell’Italiana per Informatione de Signori Italiani da Liuio Giotta (Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1642), pp. 1-3. 162 Cfr. Fernando Dores Costa, «As forças sociais perante a guerra: as Cortes de 1645-46 e de 1653-54», Análise Social, vol. XXXVI (161) (2002) pp. 1147-1181. 163 P. Cardim, Cortes e Cultura Política..., cit., 1998, cap. 4. 164 Cfr. P. Cardim, «O processo político (1621-1822)» in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. VIII, coord. de A. M. Hespanha, O Antigo Regime (1620-1807), Lisboa, Lexicoteca, 2002, pp. 242 segs. 165 Segundo Xavier Gil Pujol («Parliamentary Life in the Crown of Aragon…, cit., 2002, pp. 386 segs.), na Catalunha existia uma forte memória de governação republicana, e tal memória terá sido determinante em Junho de 1640, quando Olivares resolveu convocar as Corts tendo em vista fazer aprovar um novo pedido fiscal. A convocató- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 239 ria foi expedida, mas a reunião não chegou a celebrar-se, pois os representantes recusaram-se a comparecer, alegando que não poderiam votar com liberdade encontrando-se um exército régio em território catalão. Em vez da Coroa, foi a Diputació a entidade que conseguiu congregar os representantes do Principado. Esta reunião – que não foi convocada pelo rei – desenvolveu uma actividade muito intensa. Todavia, para as Corts catalãs a conjuntura de 1640 representou um breve momento de protagonismo, pois nas décadas que se seguiram a assembleia representativa perdeu boa parte da projecção política de que momentaneamente gozara. Acerca deste tema é imprescindível a consulta do estudo clássico de John H. Elliott, The Revolt of the Catalans. A Study in the Decline of Spain (1598-1640), Cambridge, Cambridge University Press, 1963, em especial pp. 408 segs. 166 Francisco Manuel de Melo, Tacito Portuguez. Vida, e Morte, Dittos e Feytos de El-Rei Dom João IV, segundo apógrafo inédito da Biblioteca Nacional, com introdução, informação, notas de Afrânio Peixoto, Rodolfo Garcia e Pedro Calmon, Rio de Janeiro, Centenário da Restauração, 1940, p. 132. 167 Carta de D. João da Silva, 2.º marquês de Gouveia, embaixador em Madrid, para o secretário de Estado Francisco Correia de Lacerda, 1673, Abril, 22, Biblioteca da Ajuda, Lisboa, cód. 49-X-6, f. 222v. (devo esta sugestiva referência a Rafael Valladares Ramirez). 168 Um bom exemplo: Avizo Exortatório aos Fidelíssimos Três estados do felicíssimo Reyno de Portugal. Ordenado por Ioão Rabello Vellozo que muito dezeja o seruiço de Deos & o de sua Augusta Magestade el rey D. Ioão IV para paz, & conseruação de seus Reynos, & Senhorios… (Lisboa, Lourenço de Anveres, 1642). Acerca da articulação entre a pregação e a política, cfr. in genere a obra de João Francisco Marques, em especial A Parenética Portuguesa e a Restauração, 1640-1668, Lisboa, I.N.I.C., 1989 (2 vols.). 169 Cfr. «Correspondance diplomatique de François Lanier résident de France à Lisbonne, 1642-1644», Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXXII (1993) pp. 719 segs. 170 O livro de António da Silva e Sousa, Ivizio o Vaticinio Politico Al Noble Reyno de Svecia: Debaxo de la conducta del Muy Alto, y Poderoso Principe Carlos Gustavo. Rey de Suecia.... (Estocolmo, Johannes Jansson, 1655). seguido de Tomo Segvndo del Iuizio o Vaticinio Politico Al Noble Reyno de Svecia. Contiene la tercia, quarta, y quinta parte de la segunda, y la tertercia de la obra... (Estocolmo, Johannes Jansson, 1655) inclui um capítulo sobre impostos intitulado «Apunta se las condiciones que deven currir para imponer nuebos pechos. Disputa sse si deven imponer se de consentimiento de los tres Estados del Reyno (Cortes)», no qual o autor analisa as várias opiniões sobre o tema, não chegando a nenhuma conclusão taxativa. 171 Cfr. P. Cardim, «La Corona y las Autoridades Urbanas en el Portugal del Antíguo Régimen. Entre los Habsburgo y los Braganza» in J. Bravo Losano (org.), Espacios de Poder. Cortes, Ciudades y Villas, Madrid, Limencop, 2002, pp. 29-50. 172 E.A.R. Brown, «Cessante Causa and the taxes of the last Capetians. The political applications of a Philosophical Maxim», Stvdia Gratiana, 15 (1972) pp. 562-587. 173 Citado por Edgar Prestage, Frei Domingos do Rosário, Diplomata e Político, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, p. 35 174 Correspondência diplomática de Francisco Ferreira Rebelo, Londres 1655-1657, edição de Manuel Lopes de Almeida, revisão de Lígia Cruz, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1982, pp. 105, 122 segs., 133 segs., 141 segs. 175 Cfr. in genere Ângela Barreto Xavier, El rei aonde póde, & não aonde quer. Razões da política no Portugal seiscentista, Lisboa, Colibri, 1998. 240 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 176 Rafael Valladares, La Rebellión de Portugal. Guerra, conflicto y poderes en la Monarquía Hispánica (1640-1680), Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1998, pp. 261 segs. 177 Carlos Dias Rementeria, «La Constitución de la sociedad política» in Ismael Sánchez Bella, Alberto de la Hera & Carlos Dias Rementeria, Historia del Derecho Indiano, Madrid, Mapfre, 1992, pp. 167-190. 178 Carlos Dias Rementeria, «La Constitución de la sociedad política…, cit., 1992, pp. 184. 179 Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú..., cit., 1967, pp. 1135 segs. 180 Carta escrita em Lima, a 14-3-1628 – cfr. Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú…, cit., 1967, p. 1138. 181 Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú…, cit., 1967, p. 1139. 182 A. M. Hespanha, «A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes» in AA. VV. O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica Imperial Portuguesa (séculos XVI-XVIII), org. de João Fragoso, Rio de Janeiro, 2001, pp. 165-188. 183 Consulte-se in genere a Historia da Expansão Portuguesa. Do Índico ao Atlântico (1570-1697), org. de F. Bethencourt & K. Chauduri, Lisboa, 1998. 184 Charles Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1510-1800, Madison, 1980. 185 E. Cabral de Mello, Olinda Restaurada. Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654, Rio de Janeiro, Topbooks, 1998. 186 As cidades e vilas do reino também costumavam preparar petições conjuntas, denotando, portanto, uma certa capacidade para articular posições à escala regional. Em algumas das sessões de Cortes é possível detectar sinais de concertação entre procuradores oriundos de uma mesma região. Todavia, estas atitudes coexistiam com tomadas de posição eminentemente particularistas e completamente desprovidas de qualquer sentido de solidariedade para com os problemas que afectavam o resto do «reino e conquistas». 187 Guida Marques, «O Estado do Brasil na União Ibérica. Dinâmicas políticas no Brasil no tempo de Filipe II de Portugal», Penélope. Revista de História e Ciências Sociais, n. 27 (2002) pp. 7-36. 188 Guida 189 Marques, «O Estado do Brasil na União Ibérica…, cit., 2002, pp. 30 segs. «Procuradores que estão por definidores com voto e declaração dos que estão com alternativa em as Cortes que se comessarão em 22 de Outubro de 1653», Biblioteca da Ajuda, Lisboa, cód. 51-VI-19, fs. 345-347. 190 Maria de Fátima Gouvêa, «Poder Político e administração do complexo atlântico por- tuguês (1645-1808)» in AA. VV., O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa (séculos XVI-XVIII), org. de João Fragoso, Rio de Janeiro, 2001, pp. 285 segs.; Maria Fernanda Bicalho, A Cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. 191 Acerca do tema consulte-se, de Joaquim Veríssimo Serrão, «A concessão do Foro de Cidade em Portugal dos séculos XII a XIX», Portugaliae Historica, vol. I (1973) pp. 13-80.; e, de Maria Fernanda Bicalho, A Cidade e o Império..., cit.; veja-se, também, de Rodrigo Bentes Monteiro, O Rei no Espelho. A Monarquia Portuguesa e a colonização da América, 1640-1720, São Paulo, Hucitec, 2002. 192 Consulte-se P. Cardim, «Política cortesana y administración en Portugal durante la segunda mitad del siglo XVII» in José Javier Ruiz Ibáñez (org.), Seminario Extraordi- ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES.... 241 nario Floridablanca. Entre Clío y Casandra, Universidade de Múrcia, Departamento de História (no prelo). 193 Cfr. O excelente artigo de I.A.A. Thompson, «The rule of law in early modern Castile», European History Quarterly, 14 (1984) pp. 221-234; consulte-se, também, de I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, pp. 78-79. 194 Acerca das críticas ao valimento, cfr. Antonio Feros, Kingship and Favoritism in the Spain of Philip III, 1598-1621, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp. 230 segs. 195 Cfr. Antonio Álvarez-Ossorio, «Ceremonial de la Majestad y Protesta Aristocrática. La Capilla Real en la corte de Carlos II» in J. J. Carreras & Bernardo García García (orgs.), La Capilla real de los Austrias. Música y ritual de corte en la Europa moderna, Madrid, Fundación Carlos de Amberes, 2001, pp. 345-410. 196 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…, cit., 1992, pp. 91 segs. 197 Para uma excelente exposição sobre a eficácia conformadora do Direito no contexto do Antigo Regime, consulte-se, de Jesús Vallejo, «Derecho como cultura. Equidad y orden desde la óptica del Ius Commune» in Salustiano de Dios et al., Historia de la Propiedad. Patrimonio Cultural, Madrid, Servicio de Estudios del Colegio de Registradores, 2002, pp. 53-60. 198 Acerca desta problemática é imprescindível a consulta de A. M. Hespanha, História das Instituições..., cit., 1982, p. 374; e, de António Barbas Homem, «Introdução Histórica à Teoria da Lei – Época Medieval», Legislação. Cadernos de Ciência de Legislação, 25 (Abril-Junho de 1999) pp. 7-125. 199 A questão da resposta aos «capítulos» merece também alguma atenção. A Coroa castelhana, por vezes, usou essa matéria como forma de pressão, recusando-se a dar resposta às petições até que as Cortes aprovassem os servicios que o monarca reclamava. Com a implementação do novo regime dos millones, estabeleceu-se que o rei deveria incluir na escritura de los millones as respostas às petições, o que obrigava a Coroa a antecipar-se à negociação fiscal na resposta aos pedidos. Além disso, tais respostas tinham força de lei e eram incorporadas nas sucessivas edições da Nueva recopilación, o que dava novo alento à capacidade das Cortes para influenciar o corpus normativo da Coroa. Fortea Pérez chama a atenção para o facto de, a par das Cortes, terem continuado abertos vários outros canais de comunicação entre a Coroa e as cidades. Essa coexistência de várias vias de diálogo foi uma constante, e no início não retirou força às Cortes, pois a Coroa continuava a carecer da assembleia enquanto cenário natural de negociação entre o rei e o reino, do qual se esperava, de resto, uma colaboração activa no terreno fiscal – J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 790 segs. 200 Não raras vezes eram as próprias Cortes a não revelar grande empenho em debater questões de alta política, como mostrou I.A.A. Thompson em «La respuesta castellana ante la política internacional de Felipe II» in AA. VV., La monarquía de Felipe II a debate, Madrid, SECCFC, 2000, pp. 121-134. 201 Francisco Tomás y Valiente, «La Diputación de las Cortes de Castilla (1525-1601)», Anuario de Historia del Derecho Español, XXXII (1962), pp. 347-469; J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., p. 788. 202 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 789 segs. 242 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS 203 Acerca deste tema consulte-se, de Olivier Christin, «À quoi sert de voter aux XVIe-XVIIIe siècles?», Actes de la recherche en sciences sociales, 140 (décembre 2001) pp. 21-30. Giovanni Levi, «Reciprocita mediterranea» in Renata Ago (org.), The Value of the Norm, Roma, Biblink editori, 2002, pp. 37-72. 205 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria: Castilla en la década de 1640» in España en Europa. Estudios de historia comparada. Escritos seleccionados, Valência, Universitat de València, 2002, pp. 207 segs. 206 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria..., cit., 2002, pp. 207 segs.; consultes-se, também, de Juan E. Gelabert, Castilla convulsa..., cit., 2002, pp. 237 segs. 207 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria…, cit., 2002, p. 208. 208 Este fenómeno registou-se em toda a Península Ibérica, como lembra Xavier Gil Pujol, «La Corona de Aragón a finales del siglo XVII: a vueltas com el Neoforalismo» in Pablo Fernández Albaladejo (org.), Los Borbones. Dinastía y Memoria de Nación en la España del siglo XVIII, Madrid, Marcial Pons, 2001, pp. 109 segs. 209 Para J. I. Fortea Pérez, a decisão de 1667 inscreve-se no quadro mais geral da reformulação do sistema fiscal castelhano. O modelo do servicio – entendido como auxílio temporário, para fins específicos e baseado em determinadas condições – estava a debilitar-se. Daí que tanto a Coroa como o reino, tenham manifestado o interesse em recorrer a modalidades alternativas de financiamento – J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 801-802. Acerca deste tema consulte-se, de David Alonso García, «La configuración de lo ordinario en el sistema fiscal de la Monarquia (1505-1536). Una o dos ideas», Studia Historica. Historia Moderna, 21 (1999) pp. 117-152. 210 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 801-802. 211 Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Da Justiça Administrativa em Portugal. Sua origem e evolução, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1994, pp. 187-188; José Esteves Pereira, O Pensamento Político em Portugal no século XVIII, António Ribeiro dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1983. 212 Bartolomé Clavero, «Cortes Tradicionales e Invención de la Historia de España» in AA. VV., Las Cortes de Castilla y León. 1188-1988, Valhadolide, Cortes de Castilla y León, 1990, pp. 149-195. 213 Bartolomé Clavero, «Cortes Tradicionales e Invención de la Historia de España…, cit., 1990, p. 153. 204 As relações entre o centro e a periferia no discurso do Desembargo do Paço (sécs. XVII-XVIII) JOSÉ SUBTIL (Universidade Autónoma de Lisboa / Instituto Politécnico de Viana do Castelo) “E sendo tudo visto, Parece à Meza o mesmo que ao Ministro Informante” A fórmula de despacho em portada foi a que, na maioria dos casos, o tribunal do Desembargo do Paço seguiu para submeter à apreciação superior as consultas relativas aos assuntos das câmaras depois de ter obtido as informações e os pareceres dos corregedores, provedores ou de outros ministros como o do Procurador da Coroa. Ou, então, quando decidia no quadro do seu regimento. O rei, por sua vez, responde nos despachos “Como parece”. As excepções vão para pretensões fora do ordinário ou quando os ministros deixam os pareceres em aberto com o acostumado “Faça-se justiça” (fiat justitia). Todavia, as propostas historiográficas para a caracterização do modelo de relação entre o centro e a periferia tenderão sempre a reconhecer fundamentos para apoiar a perspectiva centralizadora ou autonomista do poder, valorizando o poder local ou as intenções centralizadoras. Acontece, porém, que o conhecimento mais recente da realidade administrativa e política do Antigo Regime é complexa demais para se deixar classificar de forma tão simplista. Os objectivos, estratégicos ou efémeros, dos organismos envolvidos nas relações de poder, o plano doutrinário, as tradições que envolvem as práticas sociais, os recursos disponíveis e as motivações dos vários actores sociais, implicam alguma indeterminação na configuração global do sistema de poderes e estruturas de probabilidades consoante os espaços onde se tecem as obediências, as desobediências e, portanto, os dispositivos disciplinares. E outras, ainda, são as questões quando se invocam outros poderes para além dos régios e muniOs Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 243-261. 244 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS cipais, como os poderes senhoriais, da Igreja e das comunidades com juízes ordinários1. E as respostas que se procuram ou que se querem encontrar são imaginadas de acordo com a perspectiva em que nos coloquemos, isto é, os problemas relacionados com o exercício do poder obedecem a interesses e mecanismos próprios de dominação bastante diferentes conforme o lugar que nos dispomos ocupar. Do lado de quem manda ou pretende mandar, ou do lado de quem obedece ou pretende obedecer. No discurso historiográfico, por exemplo, a periferia tem sido identificada com os concelhos, sendo ignoradas as freguesias embora, para o final do Antigo Regime, alguns corregedores as comecem a invocar como novos pólos de territorialidade política, isto é, como unidades que podiam sustentar, em primeira instância, qualquer movimento reformista. Naturalmente que uma geografia política que equacione, em simultâneo, a relação entre a Coroa/concelhos e concelhos/freguesias recentra a geometria dos campos de domínio do poder e torce os lugares políticos e sociais. A hierarquia do lugar que ocupam os concelhos em relação às freguesias não resulta imediatamente das relações estabelecidas pelos concelhos com a Coroa, como foi sugerido para as paróquias por José Viriato Capela neste mesmo colóquio. Será uma mudança com resultados, provavelmente, surpreendentes para avaliar, ao nível periférico, o verdadeiro papel da Coroa e dos municípios na conformidade da vida política e social. Entre as diversas componentes destas lógicas, atentemos nalguns detalhes que dizem respeito ao Desembargo do Paço, tribunal que assegurava a comunicação política entre a Coroa e os poderes periféricos. O significado dos arquivos Através da forma de organização dos arquivos administrativos e do seu conteúdo técnico podemos reconhecer, tanto o papel desempenhado pela burocracia na maneira de exercer o poder, como os circuitos para a tomada das decisões. Não há dúvida que a persistência continuada e exclusiva de arquivos municipais e centrais, como memórias dos actos praticados, revela que as comarcas e as provedorias não constituíam espaços sociais de relações de poder mas, apenas, unidades que serviam para circunscrever as funções de execução política e administrativa dos corregedores e/ou provedores na sua relação com a Corte e os concelhos. 1 Sobre o poder local ver referências aos mais recentes trabalhos em Nuno Monteiro, Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa das Ciências Sociais, 2003. RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 245 Uma das evidências desta particularidade reside, assim, no facto das provas documentais do exercício do poder estarem nos arquivos municipais ou nos arquivos dos tribunais e conselhos da administração central. O corregedor e/ou provedor, como funcionários volantes que exerciam, sobretudo, um poder de indagação da verdade não precisavam de uma secretaria de reserva que duplicasse a informação disponível nos arquivos referidos o que, para além do mais, agilizava as suas acções e permitia, igualmente, uma grande economia de recursos humanos e financeiros uma vez que a duplicação da informação era demorada e implicava trabalhos acrescidos. Quando as circunstâncias o justificassem era, então, accionado o mecanismo dos traslados cujos custos, na maioria dos casos, eram suportados pelos interessados, pedidos que, aliás, revertiam em receitas de emolumentos para os magistrados e para a Coroa e, portanto, eram do interesse destes. Em qualquer caso, não deixa de ser surpreendente como, apesar destas características e das limitações da comunicação, o processamento burocrático se fazia de forma razoável para a época. Isto significa, também, que a produção documental servia, em primeiro lugar, os interesses da instituição produtora da documentação. Neste sentido, o conteúdo dos arquivos municipais e dos arquivos centrais não repetem, de uma forma geral, a informação, com excepção de alguma correspondência. As actas das vereações, por exemplo, não se encontram no Desembargo do Paço, nem as pautas das eleições nos arquivos concelhios o que nos mostra que as possibilidades de controlo estavam reservadas aos oficiais comarcais através dos quais o monarca podia chegar ao maior número possível de informações, tanto para as de carácter mais técnico, como mesmo para outras indagações, públicas ou mais ou menos secretas, tendo em vista formar a decisão régia. Mas vejamos outros pormenores. De acordo com a estrutura e a organização do arquivo do Desembargo do Paço, podemos distinguir dois tipos de expediente. Um, relacionado com o despacho régio, ou seja, com os processos relativos a consultas, a cargo da Secretaria das Justiças e do Despacho da Mesa; um outro, que se destinava aos assuntos referentes aos concelhos, da responsabilidade da Secretaria das Comarcas onde se deviam tratar os que tocarem “às Cameras dos Lugares das suas Comarcas, ou dos Corregedores, Juízes, e Justiças dellas, no que tocar a seus officios, ou ao bem commum”2. Esta secretaria era constituída por quatro repartições (Corte, Estremadura e Ilhas; Minho e Trás-os-Montes; Beira; e Alentejo e Algarve) cada uma 2 Parágrafo 8.º do Regimento Novo do Desembargo do Paço (27 de Julho de 1582). 246 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS remetendo para a respectiva comarca cujos processos se organizavam em maços. O acesso aos processos podia fazer-se por nome próprio do requerente, por assuntos ou por toponímia3. Os assuntos dos particulares não entravam, porém, por esta secretaria mas sim pela Casa do Expediente através, sobretudo, dos procuradores das partes que se encarregavam de organizar o dossier com os documentos necessários aos processos sendo, posteriormente, distribuídos pelas repartições das comarcas. As funções e o papel político desempenhado por estes procuradores que, em grande medida, asseguravam a relação dos particulares com o monarca, estão por conhecer como, também, a forma como se constituíam as redes entre os procuradores e advogados espalhados pelo Reino e os que tinham escrivaninhas na Corte. Tudo parece indicar que os procuradores formavam uma verdadeira corporação profissional que exercia pressão sobre o andamento dos processos e a sua resolução final, dando conta aos seus clientes dos passos que foram e estavam a ser dados. Trabalhavam, normalmente, para um advogado com quem repartiam os honorários. Alguns oficiais e escrivães do Desembargo do Paço foram acusados de cumplicidade com alguns destes procuradores para influenciarem ou acelerarem processos, recebendo gratificações em troca. A certa altura foi adoptado no tribunal a numeração do registo de entrada dos processos, uma prática que veio a ser abandonada por se mostrar inconsequente. A confirmação, porém, da boa organização do tribunal está expressa na forma como o arquivo funcionava apesar de tratar dos mais variados assuntos, desde os mais simples requerimentos dos particulares até aos mais complexos, relacionados com a administração da justiça e da magistratura, o fomento económico, higiene pública, cultivo das terras, obras, conflitos jurisdicionais, doações e heranças, eleições municipais, administração dos bens da Igreja, dos concelhos e dos donatários leigos, etc. No que diz respeito ao governo das câmaras, os processos mais importantes tinham a ver com os actos eleitorais (pautas) e com a fiscalização sobre as comissões de serviço dos magistrados régios (autos de residência). Formam uma interminável fonte de informação sobre o poder local. O que se pode dizer, portanto, sobre a estrutura e funcionamento arquivístico do tribunal é, em primeiro lugar, que não existiam arquivos comarcais ou de provedoria o que nos remete para uma noção de periferia política e administrativa consubstanciada, exclusivamente, nos municípios. Ou melhor dizendo, que as unidades administrativas do Reino 3 Ver pormenores da estrutura do arquivo em José Subtil, O Desembargo do Paço (1750-1833), Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 1996 (cap. II). RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 247 eram constituídas, apenas, pelos tribunais centrais da Corte e pelos senados das câmaras. Nesta medida, os corregedores e provedores constituíam magistraturas muito especiais uma vez que as suas funções se destinavam a cumprir ordens dos tribunais superiores, sobretudo do Desembargo do Paço, ou a exercerem o poder em sua representação. Muito raramente tomavam iniciativas próprias. Em segundo lugar, deve registar-se que há uma clara distinção no tratamento burocrático de assuntos públicos e privados. Enquanto os primeiros dispunham do mecanismo político e administrativo assegurado pelos serviços destes magistrados, os assuntos particulares estavam dependentes das iniciativas tomadas pelos procuradores e advogados, ou seja, por um grupo cujo poder de intervenção dificultava a relação directa com o monarca. E, todavia, o processamento destes casos acabava, mais tarde, por cair nas competências dos corregedores e provedores para, depois de procederem às indagações e inquirições necessárias, emitirem pareceres para submeter à Mesa do Desembargo do Paço. Tanto para os processos documentalmente bem preparados como para os que precisavam de ser complementados com mais informação. A acção da Coroa em relação à periferia apoia-se, assim, em quaisquer dos casos, em profissionais especializados que conferem pelas suas práticas um carácter institucional aos procedimentos administrativos, isto é, a organização processual e o corpus documental constituíam, desde logo, uma poderosa imagem do poder da Coroa porque obrigavam a descartar procedimentos que não estavam ao alcance de qualquer um, exigindo regras e rigores discursivos indispensáveis à apreciação régia. A arte da explanação dos assuntos e a materialização da realidade objectiva em documentos, a cargo destes profissionais, constituíam o signo de entendimento do poder régio que não reconhecia outros sentidos fora destas estruturas de modelização. A lógica das relações e da decisão política Os corregedores e provedores eram, como já se disse e se sabe, os oficiais de ligação entre o centro e a periferia. Para o efeito, o Reino estava dividido em comarcas e provedorias que incluíam, dentro das suas áreas jurisdicionais, os concelhos4. Ao contrário de Espanha, estes delegados do poder régio foram sempre magistrados togados e nunca de capa e espada5. 4 5 Sobre a organização do poder à periferia ver Nuno Monteiro, “O central, o local e o inexistente regional”, História dos Municípios e do Poder Local (direcção de César de Oliveira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 79-119. Apesar das Histórias de Espanha recentemente editadas, continua a ser fundamental 248 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Depois de diplomados, tinham de realizar um exame de acesso à carreira e fazer um tirocínio para obterem o encarte na correição o que só viria a acontecer no país vizinho durante o reinado de Carlos III, logo suprimidos por Carlos IV6. O corregedor estava encarregue de tirar devassas, examinar obras, dar conta dos crimes e mendigos, fazer a eleição dos vereadores e almotacés, proceder à cobrança da décima, zelar pelo ordenamento da floresta, conhecer da imunidade da Igreja, fiscalizar os oficiais das sisas e fazer o seu lançamento na ausência dos juizes de fora, tomar posse dos bens da Coroa quando vagassem, visitar os cárceres, receber queixas contra as autoridades locais, informar sobre as actividades dos juizes de fora e juizes ordinários que não cumpriam as leis e conhecer as apelações das sentenças dos juizes ordinários, entre outras tarefas ocasionais7. As audiências gerais das câmaras, destinadas a informar o ministro do que seria justo a bem do povo, eram objecto de um auto assinado por todos os presentes, corregedor, escrivão, vereadores, procurador do concelho, nobreza e povo chamados a pregão e toque de sino. Na câmara existia, também, um cartório onde se lançavam os provimentos dos corregedores. O provedor tinha a seu cargo o controlo e fiscalização dos cofres da comarca e provedoria, das capelas, órfãos, confrarias, albergarias e hospitais bem como o cumprimento das vontades dos testamentos e obras pias. Tomavam conta das despesas e receitas dos concelhos e inspeccionavam as remessas para o Conselho da Fazenda8. Apesar do que hoje já se conhece sobre o corregimento9, ainda não é possível termos uma imagem clara sobre as efectivas funções e acções no terreno dos corregedores. A este propósito, seria muito interessante termos estudos que nos permitissem reconstituir a actividade de um corregedor ao longo do seu mandato, tempos das aposentadorias, locais e formas de inquirição de testemunhos, momentos de trabalho com as vereações, utilização de meios de transporte, frequência das visitações por localidades e períodos, etc.10. para uma visão de conjunto deste período a obra de G. Desdevises du Dezert, La España del Antiguo Regímen, Madrid, Fundacion Universitária Española, 1989. 6 Sobre a carreira dos magistrados ver José Subtil, op. cit., capítulo IV. 7 Ver Ordenações Filipinas, liv. I, tít. 58. 8 Idem, liv. I, tít. 62. 9 Sobretudo com os trabalhos de José Viriato Capela em especial para este tema, Política de Corregedores, Braga, Universidade do Minho, 1997. 10 Estes estudos só serão possíveis através do cruzamento de fontes, particularmente, autos de residência, actos das vereações, informações solicitadas pelo Desembargo do RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 249 Desconhece-se, assim, em grande parte, a cartografia e cronologia das correições bem como o significado que as sedes das comarcas, situadas no principal concelho, desempenhavam na vida profissional do corregedor. O mesmo se dirá das apreciações que fizeram sobre as apelações dos juizes ordinários. E tão pouco estamos em condições de podermos comparar o desempenho destes cargos para concelhos de diferente dimensão e estatuto o que nos permitiria, também, avaliar em que medida o corregimento se limitava, ou não, à resolução de problemas suscitados pelos tribunais superiores forçando, desta forma, a agenda dos corregedores. Ou se o planeamento anual da correição obedecia a algum calendário standard ao qual se acopulavam, dentro do possível, as solicitações do centro, se outras variáveis (tempo, escrivães e meirinhos de apoio, estado das estradas, problemas das casas para aposentadoria, etc.) influenciavam, aleatoriamente, a sua gestão. Saber quais as câmaras que raramente acolhiam o corregedor e as formas usadas para receber os munícipes na sede do concelho ou obter informações sobre a vida social, económica e política. Merecem, a este respeito, particular atenção as modalidades regionais utilizadas para os concelhos requererem sobras das terças e sisas destinadas a concertos e reparações de obras devido às despesas que implicavam ou, em contrapartida, as reacções municipais aos pedidos régios para as agravar como, por exemplo, o lançamento de segundas terças. Mas se o Desembargo do Paço comunicava com as câmaras através dos corregedores e provedores, os casos em que estas se dirigiam directamente ao tribunal, ou indirectamente, através do Secretário de Estado dos Negócios do Reino, embora raros, indicia que existiam formas alternativas cujas razões e mecanismos ignoramos mas que podemos presumir tenham sido usados com recurso, muito provavelmente, aos procuradores dos concelhos quando se deslocavam à Corte. Neste caso, as câmaras não esperariam pela reunião com o corregedor. Compulsando algumas destas situações, verifica-se que a grande maioria se reporta a grandes ou médios concelhos abaixo do Mondego. Pode ser uma boa razão para se admitir que a relação com a centralidade polí- Paço e respostas às mesmas (ou de outros organismos centrais), inventário das presenças destes magistrados nas diversas corporações locais, pautas eleitorais, sindicâncias, etc. De notar, por exemplo, que na maioria das contas que dão aos tribunais superiores, os corregedores assinalam a data e a localidade em que se encontram e os autos indicam os funcionários ao serviço. A fórmula a adoptar para estes estudos consistiria em delimitar no tempo os seus mandatos e correr a informação disponível nos tribunais superiores e nas câmaras de forma a estabelecer-se uma cronologia das suas actividades. 250 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS tica é, também, fomentada pela proximidade territorial a Lisboa ou por facilidades de comunicação, introduzindo tipos de relacionamento forçados por factores que não faziam parte das lógicas políticas do regime. Por outro lado, sempre que tal se verificava, o ganho de tempo podia ser grande uma vez que eram suprimidos os tempos de correio entre o corregedor e o tribunal. Mas a hipótese de que tal expediente pudesse corresponder a uma forma expedita de relacionamento com o tribunal deve, porém, ser posta de lado na medida em que, nos casos que conhecemos, o Desembargo do Paço envia os requerimentos para o corregedor ouvir a Câmara, Nobreza e Povo, instruir o processo com as opiniões das partes envolvidas. Não se verificam situações em que o tribunal despache, de imediato, instruções para as mesmas câmaras ou que as remeta por intermédio dos corregedores e/ou provedores. Outra situação, igualmente rara, refere-se aos pareceres que os corregedores decidem remeter para o tribunal sobre matérias de governo camarário sem que a iniciativa tenha pertencido aos senados. Também nestes casos, o tribunal dá instruções para o corregedor ouvir sobre a matéria todos os interessados não decidindo, por conseguinte, exclusivamente com a opinião do magistrado. Estas três formas de relacionamento entre o tribunal e o poder local (apenas através do corregedor, indirectamente por intermédio da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino ou directamente pelos procuradores dos concelhos) e a consequente instrução processual mantiveram-se inalteráveis até ao final do Antigo Regime e a extinção do Desembargo do Paço (1833), com a excepção para outras modalidades de comunicação que emergiriam após o consulado pombalino mas com outros contornos políticos como adiante se verá. Contudo, nunca se enraizariam nos procedimentos habituais do tribunal. Temos, assim, que o Desembargo do Paço não modificou o seu modo de proceder relativamente às decisões sobre o poder local, isto é, elegeu sempre o modelo jurisdicionalista como norteador das suas tomadas de decisão, ou seja, o princípio de que todas as partes se deviam pronunciar para aferir dos privilégios, regalias e direitos adquiridos de tal sorte que os despachos não contradissessem a ordem estabelecida ou a viessem perturbar. Um exemplo limite e, por isso, emblemático desta conformidade diz respeito ao pedido (24 de Novembro de 1788) formulado pelo poderoso e influente Intendente Geral da Polícia, desembargador do tribunal do Desembargo do Paço e Conselheiro de Sua Majestade, Diogo Inácio Pina Manique, que pretendia aforar ou comprar umas terras em Arronches, compostas pela herdade de Tagarrães e o baldio de Lopo da Mouta, com o argumento de possuir uma lavoura interessante tanto em “sementeira como em criação de Gados de Lãa, e Cabelo”. Uma vez que a câmara RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 251 tinha vindo a arrendar essas herdades, o desembargador pretendia “aumentar a sua Lavoura, e as criaçoens dos seus Gados” que, no seu entender, também “interessa ao Estado”, o que afirmava não ter acontecido com os anteriores rendeiros. O requerimento deu entrada directamente no tribunal mas a Mesa deliberou que não podia tomar qualquer decisão sem ser ouvida a Câmara, Nobreza e Povo para se conhecer a verdadeira justiça e não poder vir a ser sujeita aos embargos de obrepção e subrepção de outros interessados ou lesados11. A decisão final acabou por não ser tomada, desconhecendo-se as razões que a impediram, embora se saiba que ficou retida na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. No que respeita aos particulares, o facto do expediente não ser canalizado pelo corregedor que, aliás o podia fazer, se tivermos em conta que durante a correição podia recolher os mesmos, pelo menos, os do território onde se encontrava ou se presumisse que iria estar, significa que do cálculo dos peticionários não constava este tipo de procedimentos nem os mesmos se configuravam, portanto, no âmbito do corregimento. No mínimo, pode dizer-se que este género de expediente era tudo menos económico, tanto pelo tempo que acabava por demorar como pelos custos que implicava. Na lógica dos nossos procedimentos seria óbvio que nos casos em que o corregedor pudesse recepcionar as petições, desde logo, retirasse as informações que da praxe eram exigidas e remetesse para o tribunal o processo já instruído para ser ultimado. Neste sentido, o uso, por parte dos peticionários, de procuradores das partes para levar os requerimentos à Corte parece significar que o papel do corregedor é, sobretudo, instrumental do tribunal e que a Corte, ao contrário do que pudesse parecer, ganhava com o expediente uma certa centralidade que não podia assumir se aligeirasse os procedimentos. A gestão do tempo, dos circuitos e a escolha dos actores, mesmo que fossem, de certo modo, previsíveis, cotava o tribunal como um lugar de escolhas, de determinação de resultados e garante da não arbitrariedade política. Digamos que o modelo, ao repetir-se, ao repetir os actos e a homogeneizar as decisões, fundamentava o acto jurisdicional. Este tipo de comunicação entre a Coroa e a periferia, ao alimentar com este modelo um conjunto numeroso de oficiais e profissionais encarregues da redacção dos textos e traslados, inculcava em todos estes actores fórmulas universais e disciplinas processuais que contribuíam para a aceitação de uma linguagem especial, própria de um certo poder indisponível à 11 IAN/TT, Ministério do Reino, maço 340. 252 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS extravagância, arbitrariedade ou estratégias de surpresa. De facto, a eficácia dos actos administrativos e de governo dependiam desta disciplina dos textos e da sua organização e nunca da excelência dos argumentos ou da exuberância literária como acontecerá a partir do pombalismo. Desta forma, o poder que exigia a formatação dos discursos adequados era, por sua vez, a razão de ser de todos estes oficiais que não tinham interesse algum em o destruir dado que no conhecimento que possuíam destas tecnologias residia, de facto, o seu estatuto político e social. Em contrapartida, os despojados destas competências, ao recorreram aos que as tinham, tanto legitimavam as suas autoridades como reconheciam que ao usá-las podiam aceder ao sistema de legitimação política, a jusante ou a montante. Por isso, para nós que hoje somos movidos pela economia das acções, pelo ganho da celeridade e da eficácia, pela habilidade retórica para a construção de verdades, achamos incompreensível e estranho que, neste período, se fizessem tantas coisas da mesma forma, tantas repetições de procedimentos, se investisse demasiado em actos de duvidosa consequência prática. A consolidação deste estilo de governo, fundada na previsibilidade dos textos e procedimentos, é atestada, também, pelo facto do tribunal não ter por hábito remeter ordens sobre o governo das câmaras ou tomar iniciativas políticas. Digamos que o tribunal age, essencialmente, pela via passiva, ou seja, reage sempre a acontecimentos ou factos e não cria, nem acontecimentos, nem factos. Deste modo existe uma enorme desproporção entre o aparato discursivo dos actos administrativos e a dimensão da acção política. A estratégia de dominação do centro sobre a periferia residiu, assim e sobretudo, na regularidade discursiva e na constituição de corpus documentais, por um lado, e nos poderes jurisdicionais delegados ou normativos, por outro, que permitiam o autogoverno dos senados, ficando reservado aos oficiais régios, de uma forma global, assegurar o prosseguimento desses princípios. Limitar o poder do rei e limitar o poder das câmaras, tal era o fundamento e a promessa do modelo jurisdicionalista que o Desembargo do Paço garantia como instituição central do sistema. Nestas circunstâncias, nada fazia supor para o governo das câmaras que o tribunal tivesse uma estratégia de ocasião ou objectivos obscuros na apreciação que fazia dos processos. Mesmo que o viesse a fazer, deliberadamente ou não, ficaria sempre sujeito ao embargo das suas decisões o que de todo era de evitar pelas consequências que acarretava, desde logo, a suspensão da mesma. RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 253 O discurso manuscrito12 Se compulsarmos o discurso produzido pelo tribunal onde se materializavam os seus actos, verificamos que uma das constantes que impregna a actividade burocrática diz respeito à permanência da cultura manuscrita que cobria todos os momentos processuais e de expediente. Só para o final do século XVIII começaram a surgir documentos impressos que correspondem a um novo entendimento da produção documental, nomeadamente quanto à dominância de certos padrões e tipologias documentais. Este facto mostra que a imprensa não terá assumido um papel inovador nos actos administrativos do tribunal e, pelo contrário, o prestígio simbólico do manuscrito terá resultado da singularidade do documento enquanto objecto único para, sobretudo, consagrar o monopólio das produções discursivas por uma elite e evitar, por isso, a banalização das mesmas. Por outro lado, o manuscrito implicava um ditado feito pelos magistrados ou escrivães, promovendo uma tecnologia de dominação que privatizava o conhecimento o que não acontecia com o documento impresso que, ao vulgarizá-lo, facilitava os actos administrativos. E como, também, afirma Ana Buescu a “Escrita manual, individualizada, por vezes criadora, ela integra um carácter sacrificial e um significado transcendente (...) Com o aparecimento da imprensa, a revolução tecnológica constituída pela criação dos caracteres metálicos permite a fixação das normas linguísticas e ao aparecimento de gramáticas e tratados ortográficos, e implica o definitivo desaparecimento do carácter “sagrado” da escrita”13. É certo, também, que sendo a época dominada por uma cultura oral e exigindo o acto administrativo uma cultura escrita, os grupos profissionais que tinham o domínio da escrita favoreciam, evidentemente, a elitização dos letrados na medida em que se tornavam elementos decisivos na manutenção das condições de produção discursiva, na formulação dos enunciados e na utilização da retórica14. Desta forma inculca-se a ideia de que as competências linguísticas, referências a conceitos e fórmulas, repetidamen- 12 Sou aqui, particularmente, influenciado por Michel Foucault, sobretudo, com L’ archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969. 13 Ana Isabel Buescu, em Memória e Poder, Ensaios de História Cultural (séculos XV-XVIII), Lisboa, Cosmos, 2000, procede a uma análise sobre a cultura impressa e manuscrita durante a época moderna onde acentua, justamente, a dominância do manuscrito sobre o impresso (transcrição p. 32). 14 Sobre o mundo jurídico não letrado ver António Manuel Hespanha, “Les magistratures populaires dans l’organisation judiciaire d’Ancien Regime au Portugal”, Diritto e Potere nella Storia Europeia, Firenze, 1982, pp. 806-822. 254 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS te inscritos nos discursos eram, fundamentalmente, uma competência com carácter “sagrado” a que até o próprio monarca ficava submetido. Ao mesmo tempo, o domínio que o governo dos togados detinha para produzir taxonomias na apreciação de processos já examinados estabelecia, também, uma ordem final que regulava o certo e o errado. O acto que realizava e definia estas classificações era, por isso, gerador de suspeitas de um saber quase misterioso exercido na inacessibilidade dos gabinetes ou em procedimentos ocultos. Um saber recheado de qualidades indisponíveis à maioria, como a prudência, a probidade, o rigor e a imparcialidade vertidas em textos cuja ordem do discurso era insuspeita pela ilustração das evidências conclusivas. Por tudo isto, os desembargadores do Paço obedeciam a um ritual apertado e cerimonioso no exercício das suas funções quando estavam reunidos para despacho. Na altura dos votos, ou declarações, eram obrigados a cobrir as cabeças em sinal de recolhimento e meditação. Estavam, também, obrigados a fazer os despachos, pareceres e deliberações (tenções), pelas suas próprias mãos como que transmitindo ao documento a originalidade irrefutável e inquestionável das suas autoridades e conhecimentos. Quando começavam a trabalhar, as portas dos gabinetes eram fechadas e mesmo os escrivães só podiam entrar desde que chamados pelo toque das campainhas. Não podiam, portanto, ser interrompidos nem vistos enquanto trabalhavam. Por isso, também, não podiam acumular com outras funções dentro do tribunal, garantindo uma certa permanência física dos trabalhos que começavam cedo e terminavam cedo, desde as sete horas de Verão e oito de Inverno até ao final da manhã. Para evitar intimidades estavam proibidos de prover ofícios ou serventias nos tribunais em criados ou parentes até ao quarto grau. As providências sobre os trajes, as insígnias e as composturas deviam contribuir, igualmente, para o “respeito que todos devem”. Na presença do rei, no trabalho dos tribunais ou em quaisquer actos públicos deviam usar “togas talares descobertas, gorra ou carapuça”, não podendo trazer capa sobre a beca15. Ao longo do século XVII, depois da publicação das Ordenações Filipinas, a legislação vai continuando a dar conta de algumas virtudes, deveres e direitos dos desembargadores. Como, por exemplo, só poderem fazer visitas uns aos outros, estarem proibidos de frequentar casas de jogos, não tomarem afilhados de género algum, serem obrigados a fazerem-se acompanhar da mulher e dos filhos, tanto nas deslocações dentro do Reino como fora dele, não poderem morar fora da cidade, nem ter casa 15 Algumas destas disposições estão já consagradas no Alvará de 30 de Junho de 1652. RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 255 na cidade e a família fora, etc. Em circunstância alguma podiam ser presos, suspensos ou despedidos sem expressa autorização régia. Estavam isentos das responsabilidades recorrentes de sentenças injustas e não podiam dar consulta sobre mercês a parentes até ao quarto grau16. E todo este trabalho realizado no Desembargo do Paço era, exclusivamente, um trabalho sobre textos, ou seja, uma forma de trabalho que se destinava a formar uma opinião meditada acerca das coisas sobre as quais os textos não se deviam equivocar. Por isso mesmo, a acção do Desembargo do Paço nunca se revestiu com carácter de indagação sobre a realidade política local com recurso a procedimentos de observação directa por parte dos desembargadores, nem mesmo através de artifícios indirectos como podiam ser visitações às câmaras, formação de comissões volantes para inspeccionarem as comarcas ou até a chamada ao tribunal de vereadores ou representantes da Nobreza, Clero ou Povo para serem ouvidos ou confrontados com opiniões favoráveis ou desfavoráveis. O Conselho não dispunha destes dispositivos nem, em altura alguma, sequer o imaginou como necessário e indispensável para velar pelo bom desempenho dos corregedores e, muito raramente, fazia depender a confiança política nestes magistrados num qualquer fiscal das suas actividades. Em conclusão, podemos dizer, a este respeito, que a relação entre o Desembargo do Paço e a periferia foi uma relação fundada em realidades discursivas mediatizadas pelos corpus documentais produzidos pelos corregedores. Quando encontramos, com raridade, críticas ao Desembargo do Paço por parte das câmaras, o que é sempre referido são a falta de informação, abusos, testemunhos falsos ou preponderância de pareceres. E nestes casos, regra geral, o tribunal tomava a iniciativa de solicitar novas informações referindo os reparos que foram feitos, continuando a observar os acontecimentos, exclusivamente, através dos documentos. Embora em menor escala, o ritual das audiências das câmaras decorria em ambientes semelhantes e, por vezes, os corregedores queixavam-se da falta de cerimonial dos senados e da rusticidade dos vereadores, muitos sem instrução para saberem ler e escrever. Com alguma frequência, os magistrados régios obrigavam os vereadores e os procuradores a escutar a leitura, em voz alta, de certas passagens das Ordenações e dos Regimentos lidas pelo seu escrivão. 16 Encontra-se referência a esta legislação em Joaquim Caetano Pereira e Sousa, Esboço de hum Diccionario Jurídico, Theoretico, e Practico, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1825; ou, ainda, em Manoel Fernandes Thomaz, Repertório Gera, ou Índice Alphabetico das Leis Extravagantes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1843. 256 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS A nova centralidade pombalina Vila Flor que “he huma das mais piquenas, e, miseráveis povoaçoens, que tem o titulo de Villa”, na altura em que se procede à devassa da correição consegue-se, com muito sacrifício, juntar “sete, até oito testemunhas”. Os vereadores normalmente acabam em juízes, sendo que o último, João Ferreira, “tinha servido de Vereador, apezar de haver pouco que deixou de guardar cabras, e que o mesmo he irmão do actual vereador Leonardo Ferreira”, apesar de outros dois candidatos terem tido mais votos17. Este relato do corregedor de Portalegre expressa a imagem, tendencialmente, global da situação que se vivia na maior parte dos concelhos e que retirava, efectivamente, campo de manobra política para a acção dos corregedores. Como tem vindo a ser conhecido, cada vez com maior detalhe e expressão regional, o governo das câmaras estava confinado a uma corte provinciana e local cujas lógicas emparedavam os limites da autoridade régia e controlavam os efeitos de qualquer estratégia que pretendesse invadir a soberania que detinham sobre os seus territórios. E é verdade, também, que o quadro doutrinário não vocacionava os corregedores para procedimentos que tivessem em vista desestruturar estas realidades18. Todavia, os novos fundamentos ideológicos e políticos da segunda metade do século XVIII acabariam por interromper a influência absoluta dos teólogos e juristas da tradição do período do ius commune e atribuir o papel principal de governo aos políticos que se esforçavam por produzir modelos racionais de compreensão do social. A formulação dos novos enunciados discursivos deixava, por esta via, de se legitimar em princípios que transcendiam a vontade dos homens. Ao contrário do complexo conhecimento das coisas “divinas” e “humanas” que pedia um governo com prudência e justiça para assegurar uma ordem capaz de cumprir o desígnio transcendental, com regras e leis de governação, naturais e indisponíveis à interpretação arbitrária da razão humana, o modelo de representação social fundado no indivíduo, dotado de vontade e de razão, passava a admitir a autonomia dos homens para se governarem. Esta libertação da natureza e do social em relação ao divino produziu a possibilidade de o pensamento social se poder constituir como pensa- 17 Relato do corregedor de Portalegre (IAN/TT, Desembargo do Paço, repartição do Alentejo e Algarve, maço 800, doc. 5). 18 Ver síntese sobre os contornos dos modelos de representação em Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, “A representação da sociedaded e do Poder”, História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 199 , vol. IV, pp. 121-156. RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 257 mento político autónomo e, nesta medida, criar doutrina sobre a ordem social mais adequada. A razão passava agora a ser invocada para criar, construir e não conformar, conservar. Contudo, o modelo dominante continuou a ser o da legitimação pela tradição pelo que, na segunda metade do século XVIII, iremos assistir a abertura de conflitos entre o tribunal e outros organismos criados na matriz política como sejam, por exemplo, a Intendência Geral da Polícia, o Erário Régio e as novas secretarias de estado que elegeram para os seus programas políticos a usurpação funcional dos poderes corporativos. Um dos tópicos mais emblemáticos desta mudança de perspectiva é o continuado apelo às reformas dos meios de comunicação, construção de estradas, encanamento dos rios e melhoramento dos portos. Do ponto de vista social, o melhoramento dos meios de comunicação tinha em vista, também, permitir o movimento de pessoas e bens, alterando os condicionalismos da imobilidade onde se fundavam as particularidades locais para, em contrapartida, criarem um dinamismo na governação e racionalização dos espaços e territórios. Do ponto de vista dos poderes centrais, a reforma das vias de comunicação permitiria maior rapidez na comunicação, aceleração na tomada de informações, apresentação de inquéritos e relatórios capazes de mapearem e cartografarem os problemas da governação. Como, também, os oficiais régios podiam aumentar as possibilidades da sua presença física directa impondo, evidentemente, o domínio da observação sobre o do relato, ou seja, ver mais e ler menos. A razão de tudo isto é, aliás, manifesta porquanto numa situação em que a mobilidade política e social é de baixa intensidade, os poderes locais tendem a autonomizar-se enquanto que, no inverso, o modelo de grande mobilidade aumenta o domínio do território por parte dos agentes do poder central que tenderão a diminuir a autonomia dos poderes locais. Estes pressupostos significam, também, que os novos agentes do poder central, ao deslocaram-se, mais e mais rapidamente, precisavam, concomitantemente, de mais autoridade sobre as câmaras e os magistrados locais para poderem dar sentido político efectivo às suas presenças. E esta foi, efectivamente, a lógica da figura do intendente, oficial encarregue de uma determinada área de governação com jurisdição plena mas disponível à vontade do príncipe, à oportunidade das suas missões e ao bom desempenho dos cargos, doravante, medido por resultados práticos. Curioso que, a este respeito, a mudança preconizada, embora claramente sedutora para os políticos, também, acabaria por ser, pelo menos, imaginada por alguns magistrados tradicionais que recorreram para o Desembargo do Paço dispostos a distinguir pela positiva as vantagens 258 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS desta nova administração, comparando-a, inclusive, com a ineficácia do corregimento. É o caso, por exemplo, do provedor de Torres Vedras, Manuel Inácio da Mota e Silva19, que se permitiu, atendendo ao “Grande Espírito com que V. M. promovia o Bem dos seus Vassalos” defender que era “Princípio certo que o Comércio interior do Reino era, quem felicitava os Povos, e quem augmentva o Real Erário” pelo que, no seu entender, era necessário separar a sua jurisdição de uma intendência que reformasse as estradas, não só da sua provedoria mas das que se encontravam contíguas. Chega mesmo a apresentar um plano para a construção e conservação das estradas a cargo de uma superintendência que procedesse, igualmente, ao tombo das que existiam. E assimilava o efeito da mobilidade do comércio ao da virtude de um poder regional superior ao dos próprios corregedores. Na sua proposta reconhecia, curiosamente, a importância dos pequenos poderes na relação com a autoridade do intendente, como sejam o dos juízes de vintena, acusando os poderes camários “Vista a tristíssima experiência de que os officiaes das Cameras já mais olhavam para obra alguma pública, talvez porque cada hum de per si não adquiria a gloria de ser util ao público, confundindo-se esta no concurso de todo o Corpo”. Não deixando, porém, de ser um magistrado do Desembargo do Paço, o provedor encontrou como justificação para as suas ideias o facto destas “Providências parecia serem todas do Expediente desta Meza porque todas erão da Economia dos Povos, e sobre que a Camera podia fazer Postura guardada a forma da Ordenação do Reyno: Que isto pelo que respeitava a imposição sobre os carros, e que quanto ao Suprimento dos sobejos das Sizas, onde não chegasse a dita imposição era igualmente do expediente desta Meza”. E afirmava, ainda, que tais proposições “Concorriam igualmente ao bem do Estado na exportação e importação” o que não se verificava na comarca de Torres Vedras que “Estava ao abandono da sua Policia”. Evidentemente que a proposta do provedor colocava um problema sério ao Desembargo do Paço que tinha a ver com a criação de um superintendente particular com poderes para intervir na esfera tradicional das competências das câmaras e dos corregedores, para além de ser marcada pelo entusiasmo nos novos ventos de mudança uma vez que não se eximia a dizer que a “Ovra do efeito que tinham produzido as Superintências particulares em cada objecto, mostrava a necesidade de se adoptarem; e senão, que olhassemos para o Reyno cheyo de Cameras e de Corregidores e que vissemos, se as Estradas se achavam praticáveis (...) Que todo o 19 6 de Novembro de 1787 (IAN/TT, Ministério do Reino, maço n.º 340). RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 259 Objecto grande e público, em que se necessitava do Socorro dos Povos, devia ser tratado com muita Política prudencial; mas que por hua só cabeça e que ella estabelleceria os braços, que julgasse a propósito Que elle não avançava a que se tirasse às Cameras a economia que a ley lhe dava, mas que no estado apoletico, em que estavao as Estradas do Reyno, só remedios extraordinarios lhe convilhão” (o sublinhado é nosso). Uma só cabeça, isto é, o provedor defendia uma política de centralização administrativa a nível regional e o arbítrio do superintendente para administrar com total liberdade. Escusado será dizer que o Procurador da Coroa foi contra esta fantasia do provedor ao dizer que as Ordenações já regulavam estes assuntos na competência das câmaras e dos corregedores acabando, claro está, por o Desembargo do Paço concordar com o parecer e não atender às súplicas do seu provedor. Mas a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, como que desautorizando o tribunal, não fez seguir a consulta para despacho régio. A conclusão a retirar deste processo é, sem dúvida, a de que o tribunal estava claramente contra a corrente do centralismo pombalino que advogava que a relação entre território e jurisdição, particularmente, a disponibilidade para que o espaço administrativo, não coincida com as comunidades e com os limites dos poderes instalados teria que ser marcada pela implantação no terreno dos intendentes e superintendes com obediência directa às secretarias de estado e não ao Desembargo do Paço20. A partir de então, a aliança do tribunal e das câmaras contra estes novos funcionários mostrou a lenta agonia do modelo de liberalidade nas relações entre o centro e a periferia que teria, após a extinção do tribunal, dias conturbados durante a implantação do liberalismo. E, como se depreendeu, neste novo figurino e expediente político, o pólo de coordenação da nova centralidade para com as câmaras deslocou-se para a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino que, em crescendo, foi dando ordens aos corregedores e provedores sem informar o Desembargo do Paço passando, também, a assenhorear-se da tramitação burocrática do próprio tribunal com o monarca. Com o apoio de outros organismos, entretanto criados, a nível central como, entre os mais importantes, o Erário Régio (22 de Dezembro de 1761) e a Intendência Geral da Polícia (25 de Julho de 1760), estava criada uma outra administração que coabitaria com a do modelo tradicional em evidente ponto de ruptura. A estratégia de consumação dos poderes tradicionais passaria, sobretudo, pela técnica de esvaziamento funcional 20 Ver síntese deste modelo em José Subtil, “Governo e Administração”, História de Portugal, vol. VII, Lisboa, Lexicultura, 2002, pp. 199-234. 260 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS do Desembargo do Paço e pelo afrontamento político. As câmaras perceberam tanto o rodeio destas inovações como a intromissão da secretaria de estado nas suas jurisdições privativas21. Já no final do Antigo Regime, durante o período neo-pombalino liderado por José de Seabra da Silva (1784-1799), as alterações das relações entre a Corte e a periferia foram, ainda mais longe, com a regulação das jurisdições dos donatários, a abolição das ouvidorias, demarcação das comarcas (1790)22, criação do Superintendente Geral das Estradas (1791) e incorporação do Correio-Mor na Coroa (1797). Destas reformas resultaria, ainda mais, a perda da influência do Desembargo do Paço na comunicação política com as câmaras, os corregedores e os provedores. Conclusão Durante o Antigo Regime, a relação do Desembargo do Paço com a periferia resumiu-se, praticamente, aos senados das câmaras através das magistraturas dos corregedores e provedores e foi, essencialmente, a que assegurou a comunicação política entre a Corte e o Reino. As unidades orgânicas mais pequenas, como freguesias e paróquias, mediatizavam a relação com o tribunal por intermédio do poder camarário que, por esta via, desempenhou, a nível local, um papel determinante na organização e composição destas unidades. Separando a acção destes magistrados no terreno da que estabeleciam com o Desembargo do Paço e referindo-nos, apenas, a esta última, podemos dizer que, de um modo geral, o tribunal e os seus os corregedores e/provedores tenderam a moderar, por um lado, o poder das câmaras mas, por outro lado, também a proteger e a valorizar as suas opiniões quando eram, para o efeito, consultadas. As respostas do tribunal à actuação destes magistrados obedeceu, regra geral, aos seus pareceres e fundou-se, exclusivamente, em informações escritas preparadas pelos mesmos. O discurso do Desembargo do Paço expressa e assinala, amiudadamente, que as audições da Câmara, Nobreza e Povo deviam ser manifestas quanto às decisões tomadas para não se pôr em causa a justiça e o bem público. 21 Para uma síntese da reforma do governo pombalino ver José Subtil , “A Reforma do Governo e da Administração (1750-1777)”, Actas do colóquio O Século XVIII e o Marquês de Pombal, câmaras de Pombal e Oeiras, 2001, pp.101-112 22 Sobre o disposto nestas reformas e as suas consequências na alteração do mapa político do Reino, ver Ana Cristina da Silva, O Modelo Espacial do estado Moderno, Lisboa, Estampa, 1998. RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO 261 Outro terá sido, porém, o papel desempenhado pelos mesmos magistrados no domínio comarcal onde tinham de agir para resolver abusos da administração municipal como sugerem muito dos capítulos das correições já estudados. Mas estas actividades não enchem a documentação que chega ao tribunal. Compreende-se, por isso, a importância que revestiu para o tribunal a nomeação e o controlo das suas carreiras de forma a garantir que os seus serviços promovessem a paz e evitassem a discórdia. Ou seja, ao tribunal interessava-lhe, sobretudo, a manutenção dos privilégios e regalias consolidadas ou que, das suas alterações, não resultassem prejuízos graves para a ordem estabelecida. A produção e reprodução dos mecanismos de dominação do centro à periferia consistiu, sobretudo, em assegurar tipologias, regularidades discursivas e habitus burocráticos que promovessem o direito como tecnologia de decisão. Afinal todos esperavam ganhar com este expediente ou, pelo menos, não perderem. O surgimento de novos oficiais com competências para exercerem funções em áreas regionais que cobriam territórios de diversos concelhos e comarcas bem como o controlo da centralidade na comunicação com as comarcas e concelhos pelo Erário Régio, Intendência Geral da Polícia e, especialmente, pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, a partir de meados do século XVIII, veio colocar problemas à autoridade do Desembargo do Paço. Entre esses problemas é de salientar a alteração das regras de intervenção política que passaram a considerar, como fundamental, o constrangimento do poder local. Estavam em causa outros problemas, outras estratégias e outras tecnologias de dominação que passaram por várias inovações, uma das quais, bem referenciada e assumida, foi a da criação de condições para uma maior mobilidade dos agentes de poder régio, liberdade para governarem e mais território para intervirem. O tribunal sentiu a mudança e a perda de autoridade mas não mudou, no essencial, o rumo tradicionalista pelo que, até à sua extinção (1833), os poderes locais foram confrontados com duas centralidades (uma passiva, outra activa) que concorrerem em conflitualidade pelo monopólio do poder. A questão do efectivo controlo da periferia pelo centro viria a ser assumida, novamente, embora com outros contornos, pela geração liberal. Balanço final: Questões para uma sociologia histórica das instituições municipais1 RUI SANTOS (Univ. Nova de Lisboa – FCSH – Dept. Sociologia / Instit. Sociologia Histórica) Antes de mais, gostaria de começar por agradecer ao CIDEHUS, à Câmara Municipal e à Biblioteca Municipal de Montemor-o-Novo o convite para participar neste encontro, bem como a eficaz organização e o excelente acolhimento facultado aos participantes, que muito facilitaram o êxito desta iniciativa, também do ponto de vista académico. Se nos reportarmos ao encontro que teve lugar há uma dúzia de anos, em Reguengos de Monsaraz, sobre poderes centrais e poderes periféricos numa perspectiva histórica, em termos de orientações analíticas, de diversidade de assuntos, mas também de maturação dos temas, podemos hoje verificar um enorme contraste que denota uma grande progressão e um amadurecimento desta área temática. Há muito mais estudos, mas também, o que é ainda mais importante, há muito mais pensamento e análise. Por isso mesmo, também mais reflexão sobre o que ficou por fazer ao longo deste percurso, sobre a necessidade de corrigir enviesamentos dos resultados obtidos, sobre novos problemas e novas hipóteses de resposta. Não sendo especialista na matéria, pesem embora incursões pontuais lançadas a partir de investigações centradas em outros domínios, dificilmente este balanço poderia ser uma síntese competente da rica diversidade de informações e de pistas de trabalho deixadas pelas comunicações e pelos debates que tiveram lugar. Em vez disso, procurarei extrair e discutir os pon1 Este texto desenvolve, no essencial, a comunicação de encerramento apresentada no encontro, procurando reflectir as comunicações e as discussões, tal como decorreram oralmente. Foi elaborado sem conhecimento dos textos finais dos restantes autores, pelo que não incorpora eventuais modificações entretanto introduzidas nas versões escritas. Agradeço à organização do encontro o ter-me prontamente facultado as gravações das sessões. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberais Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 263-274. 264 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS tos que me parecem especialmente interessantes para a definição actual de problemáticas de investigação sobre o tema. Inevitavelmente, fá-lo-ei a partir de uma perspectiva, a minha, ancorada na sociologia histórica e como tal privilegiando a análise comparativa das configurações e das instituições sociais, bem como dos processos de reprodução e de mudança social, com vista a generalizações empírica e conceptualmente relevantes. Espero assim dar um contributo para a clarificação e o debate das muitas e interessantes questões levantadas no encontro, sem ilusões de exaustividade nem de imparcialidade do ponto de vista adoptado. Abordarei consecutivamente três aspectos: primeiro, o que me pareceu terem sido os grandes consensos emergentes das comunicações e das discussões; segundo, o que me pareceu terem sido os pontos principais de ruptura e debate manifestos; terceiro, as omissões, o que me pareceu ter ficado por tratar, apesar de o considerar imprescindível numa agenda de investigação sobre as instituições municipais e as suas práticas no contexto do antigo regime. 1. Consensos Da perspectiva em que me coloco, os consensos mais interessantes revelados por este encontro relacionam-se com o diagnóstico de uma acumulação de estudos de caso – veja-se o rico inventário apresentado por Francisco Ribeiro da Silva – que denota grandes ganhos de conhecimento, mas ao mesmo tempo do carácter pouco estruturado dessa acumulação que coloca problemas de representatividade, de comparabilidade e portanto de síntese e generalização. Em primeiro lugar, destacou-se a necessidade de um alargamento da representatividade territorial, que padece de uma excessiva concentração nos grandes municípios, especialmente no Continente, da falta de estudos sobre os municípios de fronteira e de áreas interiores, sobre os pequenos municípios rurais, e até da interferência de factores cientificamente espúrios, embora práticos, como a influência da contiguidade das áreas estudadas às implantações universitárias detectada por Francisco Ribeiro da Silva. Em segundo lugar, o alargamento também da representatividade cronológica. Foi sobejamente notada por vários intervenientes a carência de investigação sobre casos anteriores ao século XVIII, mas também a necessidade de os projectar na longa duração. São escassos os estudos longos, e têm-se generalizado para os séculos XVI e XVII imagens centradas no século XVIII, e mesmo na fase final do antigo regime. Seria necessário alargar os horizontes cronológicos para aferir melhor as continuidades e descontinuidades, e pensar mais em termos de contrastes e de mudanças, BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA... 265 não apenas de semelhanças – pese embora a estabilidade dos discursos jurídicos que moldavam as relações de poder no decurso do antigo regime, que José Subtil sublinhou. Terceiro alargamento de representatividade, o da hierarquia burocrática e militar dos concelhos: concretamente, o estudo da importância do funcionariado concelhio e do oficialato das ordenanças nas configurações efectivas de exercício do poder, e nas oportunidades de acesso a status sociais conferidos por essas hierarquias enquanto vias de mobilidade ascendente para elites subalternas. Um quarto alargamento de representatividade identificado foi a correcção do que poderíamos chamar o enviesamento sociológico salientado por José Viriato Capela, nomeadamente a carência de estudos sobre as instituições do ponto de vista dos administrados, da resistência e do conflito – a que acrescentaria a anuência e a conformidade, que não fariam menos parte da vivência dos subordinados. Dadas as assimetrias sociais dos actos discursivos escritos ou transcritos, seleccionados e arquivados com que construímos as fontes, é uma perspectiva que mais facilmente suscita interrogações do que respostas. Mas é inegavelmente do maior interesse historiográfico e, para além das fontes peticionárias e dos recursos para segunda instância, existem corpos documentais nos próprios arquivos municipais onde alguma visibilidade pode ser recuperada, ao menos em filigrana, se as perguntas de investigação forem bem colocadas. Desde logo, as próprias actas de vereação, onde conflitos, alegações e contra-alegações, infracções e sanções, avanços e recuos nas decisões camarárias em confronto com os administrados ficaram frequentemente registados, por vezes com surpreendente pormenor. As posturas camarárias repetindo ad nauseam durante décadas a proibição desta ou daquela prática (como a de criar porcos pelas ruas da cidade, por exemplo) não revelam bem a capacidade de resistência das populações nas suas práticas quotidianas? Mas também, como lembrou Teresa Fonseca, outra documentação largamente inexplorada, como os livros de coimas, os de licenças e os de fianças, conterá provavelmente informação preciosa para este interrogatório. Finalmente, o alargamento da representatividade institucional, em termos de exercício e de relação entre os poderes. Em primeiro lugar, o quase vazio do nosso conhecimento sobre as funções judiciais de primeira instância das câmaras, devido à transferência dessa documentação dos arquivos municipais para os tribunais durante as reformas liberais do sistema judicial, mas talvez parcialmente superável pelo estudo sistemático dos seus rastos nos processos depositados nos tribunais de segunda instância, como apontou Nuno Monteiro. Será necessária uma melhor caracterização, por outro lado, dos fluxos da periferia para o centro e da influência 266 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS dos municípios na política da Coroa, através da representação em cortes, como notaram Francisco Ribeiro da Silva e Pedro Cardim; reciprocamente, este último sugeriu como hipótese de trabalho a função dessa representação no tecer de uma consciência supra-local nos actores políticos locais, eventualmente parte de uma estratégia da Coroa para a consolidação da entidade política Reino. Várias intervenções questionaram a acção dos agentes da Coroa – provedores, corregedores – e de outros poderes supra-municipais, como o Desembargo do Paço, as intendências e as secretarias de Estado, sobre a esfera dos poderes municipais. Importante também se torna caracterizar e operar com a distinção institucional entre municípios de jurisdição régia e de jurisdição senhorial – incluindo a ambiguidade de que a este respeito parecem revestir-se os municípios das ordens militares sob a alçada da Coroa, como ressalta da comunicação de Fernanda Olival –, tendo sido salientado por Mafalda Soares da Cunha o panorama muito rarefeito, em parte por problemas de fontes, dos estudos sobre municípios senhoriais nos séculos XVI e XVII. Foi ainda bastante sublinhada, em várias intervenções, a necessidade de serem mais consideradas unidades de análise infra-municipais e não-municipais, tanto ao nível de instituições (freguesias, misericórdias como na comunicação de Laurinda Abreu e Rute Pardal) como de actores (juízes de vintena, párocos, provedores e mesários das misericórdias). Em geral, e para resumir, foi constatada a necessidade de analisar mais sistematicamente a articulação, as relações de colaboração, partilha, concorrência ou conflito entre os poderes concelhios e outros poderes locais, senhoriais e supra-locais. 2. Debates Em articulação com o último ponto de consenso inventariado na secção anterior, podemos começar por reflectir em três problemas levantados para discussão nas intervenções, todos remetendo para as configurações e a variabilidade das relações inter-institucionais e para os modos de as abordar teoricamente: o das relações entre instâncias de diferentes escalas institucionais; o da existência, ou não, de instituições e de acção política de escala regional; e o da coexistência e do conflito entre poderes municipais e senhoriais. Uma segunda ordem de problemas tem a ver com as articulações entre a história das instituições e dos poderes locais e a história social. José Subtil questionou a oposição corrente entre as instituições centrais (nomeadamente, o Desembargo do Paço) e os agentes da Coroa, por um lado, e os poderes locais, por outro, como pólos de uma relação de concorrência. Tal oposição fundamenta-se nas tensões de poder pela decisão BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA... 267 jurídica legítima entre poderes centrais e poderes periféricos, fiscalizadores e fiscalizados, primeira instância e instâncias de recurso, etc., e invoca mudanças da relação centro-periferia em finais do antigo regime por efeito de um reforço das instituições e dos actores políticos centrais, como um dos vectores de uma crise do municipalismo. Na sua comunicação, o autor propôs repor o problema a partir de um ângulo diferente, deslocando-o de uma lógica dos actores e das “vontades” – subjacente à noção de concorrência – para uma lógica dos discursos. De acordo com esta perspectiva, na arquitectura tradicional de poderes do Antigo Regime as várias instâncias eram organicamente complementares, sobrepondo-se como diferentes camadas com lógicas de funcionamento próprias, estáveis e reciprocamente previsíveis; o Desembargo do Paço, nomeadamente, não teria uma estratégia de intervenção sobre os poderes locais, apenas interviria quando a ordem local era perturbada, no quadro do discurso jurídico tradicional assente nas categorias de justiça e de graça. A mudança das relações centro-periferia em fins do antigo regime teria antes que ser entendida pela emergência, desde finais do século XVII, de novos discursos (o administrativo, o económico e o financeiro) que escapavam à lógica do discurso jurídico tradicional inventando novos objectos, e pela crescente intromissão em torno desses novos objectos de agentes da Coroa externos à ordem tradicional e que escapavam à sua lógica discursiva (secretarias de Estado, intendências), pondo em causa as instituições tradicionais, tanto locais como centrais, e minando a estrutura e os equilíbrios de poder do antigo regime. Não se trataria, assim, de uma tensão entre o centro e a periferia, mas entre discursos e agentes tradicionais e “modernos” no próprio centro. O problema fica em aberto, instigando ao estudo das intervenções e (des)articulações destes poderes, não sem levantar reservas o apelo à passagem de uma análise centrada nos actores para uma outra centrada nos discursos, que anularia a acção voluntária sob um modelo decisório tradicional completamente formatado pelo discurso jurídico. Os discursos normativos podem ser apropriados como recursos da acção, encobrindo e legitimando processos de decisão que decorrem de margens de liberdade dos actores, decerto variáveis em função das suas posições, dos seus capitais sociais e culturais. De facto, como conceptualizar um dispositivo institucional assente na execução e na apreciação de “actos linguísticos” procedendo à total elisão da autonomia, relativa que seja, dos actores (emissores, receptores, em todo o caso intérpretes)? À parte esta dúvida teórico-metodológica, parece-me um problema especialmente estimulante para uma sociologia política do antigo regime – suspeito que o seu interesse poderá transcender muito a fase final daquele –, o de perspectivar as relações entre poderes centrais e periféricos à luz das tensões institucionais 268 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS no centro. Esse questionamento permitiria talvez equacionar melhor a questão, levantada no debate por Margarida Sobral Neto, da contextualização dos discursos iluministas anti-municipais que fundamentam a ideia de uma crise do municipalismo no final do século XVIII, e elucidar, numa lógica de acção política, a sua aparente contradição com o apoio dos oficiais da Coroa à acção anti-senhorial dos municípios na época pombalina, referida pela mesma autora. No plano das configurações espaciais, José Viriato Capela contestou a tese do carácter a-regional ou mesmo anti-regional do município moderno, particularmente no século XVIII. Salientou as dinâmicas políticas que favoreceram fortes homogeneidades regionais, nomeadamente por efeito da legislação pombalina e mariana no sentido da concentração, da hierarquização e da racionalização político-institucionais, e de empreendimentos de desenvolvimento regional envolvendo os recursos de múltiplos concelhos. Resumindo, estas tendências teriam levado a uma crise dos pequenos municípios – que seria a expressão fundamental da chamada crise do municipalismo – e a uma concentração de poderes, funções e recursos nos grandes municípios que assim teriam acentuado o seu peso relativo e constituído pólos, se não regionais, ao menos “regionalizantes”, cujos poderes e privilégios lhes confeririam verdadeiras tutelas sobre territórios cujas configurações físicas, económicas e sociais tendiam por sua vez a criar fortes homogeneidades. Este questionamento apresenta as indiscutíveis virtudes de pôr na primeira linha do debate sobre o municípios os processos de mudança social e institucional de finais do antigo regime, e de obrigar a transcender o quadro fortemente localizado e por assim dizer auto-contido de grande parte da historiografia municipal. Colocar mais decididamente as relações, as funções, as hierarquias inter-municipais na agenda da investigação sobre a história local poderá certamente trazer perspectivas de articulação em espaços mais amplos, não só do ponto de vista institucional como também do social (pensemos nas eventuais relações entre mobilidade social e mobilidade geográfica, nas redes familiares supra-municipais das gentes da governança, na detenção trans-municipal de propriedades ou de direitos, apenas para dar alguns exemplos) e do económico (hierarquias de mercados, variável capacidade de gestão dos fluxos económicos inter-concelhios). No entanto, merecem mais reflexão algumas ambiguidades em torno da operacionalização do conceito de região. Por um lado, porque nesta discussão coexistem, de forma não problematizada, duas definições teoricamente distintas: a região como recorte definido pela homogeneidade ou pela polarização (que implica heterogeneidade e dominação). Parte dos argumentos aduzidos por José Viriato Capela referem-se, de facto, a homo- BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA... 269 geneidades territoriais criadoras de semelhanças sócio-institucionais, de resto nem sempre correlacionadas (como é o caso dos municípios de fronteira, característica geopolítica que intersecta muitas outras de diferentes índoles). Outra parte refere-se, diversamente, a hierarquias de poderes entre municípios, seja a diferenciação entre concelhos com juiz de fora e com juiz ordinário, ou entre os municípios beneficiários e os envolventes contribuintes, mas não beneficiários de obras promovidas pela Coroa, seja a dotação de grandes municípios com sedes de instituições com importantes poderes supra-municipais (como no caso do Porto com a Real Companhia, ou de Coimbra com a Universidade, a que poderíamos acrescentar Lisboa com a Corte e os seus privilégios de abastecimento). Hierarquias que induziriam polarizações de dominação política do território, e que seriam bem complementadas pela polarização mais estritamente económica do peso dos mercados das grandes cidades nas suas áreas de influência. Por outro lado, e sendo o problema do carácter regional ou a-regional dos municípios de natureza essencialmente política, não correrá o risco de confundir, ora as consequências de âmbito supra-municipal da implantação e da actuação dos grandes municípios, ora as continuidades de características territoriais relativamente homogéneas, com a existência de identidades, corpos e mecanismos de poder ou de representação intermédios entre o município e o reino, que realmente definiriam a escala regional no plano político? Se a crise dos municípios na segunda metade do século XVIII é sobretudo perceptível nos pequenos municípios, sem dimensão nem recursos para desempenhar as funções que lhes foram atribuídas pelas reformas políticas, não deveria falar-se de um aumento da hierarquização, com acréscimo do peso relativo dos grandes municípios mas sem mudança da sua escala de acção institucional, mais do que de um carácter regional daqueles? No que respeita à relação entre os poderes municipais e os poderes senhoriais, Margarida Sobral Neto contrapôs aos tipos ideais que poderíamos denominar de domínio senhorial limitado (os poderes senhoriais tinham escassa capacidade, ou pouco interesse em interferir com a esfera de autonomia dos concelhos) e de controle funcional (os poderes senhoriais exerciam um controle político “moderador” sobre a actuação das câmaras, no sentido da redução do arbítrio, da manutenção do bem comum e do bom governo dos povos, tipo ideal de algum modo subsidiário da ideia de domínio oligárquico dos municípios), o da concorrência e conflito institucional. Os poderes senhoriais, em concorrência pelo exercício do poder, pela apropriação do território e dos recursos económicos, tinham efectivo interesse e capacidade de colocar bloqueios e constrangimentos à autonomia das câmaras, e faziam-no em proveito próprio. A exacção das rendas 270 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS senhoriais e as isenções de coimas ou de taxas camarárias, nomeadamente, empobreciam os concelhos, impedindo a capacidade de governação camarária e o desempenho das funções municipais na provisão de bens públicos, ao passo que os privilégios jurisdicionais subvertiam a jurisdição camarária de primeira instância. Como decorreu da discussão, haverá aqui a distinguir, quer a diversidade e o peso relativo dos direitos senhoriais exercidos pelas casas (por contraste com direitos de propriedade), quer a interferência de privilégios jurisdicionais como os de juízo privativo, que não eram especificamente senhoriais, tendo proliferado em fins do antigo regime entre um variado tipo de instituições. Na realidade, as intervenções no debate deram a entender que os três tipos ideais, mais do que teoricamente contraditórios, reflectem situações-tipo não generalizáveis e cuja variabilidade, tanto territorial como conjuntural ou mesmo situacional, carece ela própria de investigação e de explicação comparativa. A segunda grande temática em debate tem, como disse, a ver com a relação da história dos municípios e das instituições locais com os problemas e conceitos da história social, particularmente em torno da história social das elites e, mais genericamente, da estratificação, da reprodução e da mobilidade sociais. Dois temas foram levantados a este respeito, ambos por Nuno Monteiro: a discussão, que é em parte semântica e em parte substantiva, em torno da caracterização dos grupos detentores do poderes locais como elites ou como oligarquias, e a proposta de transformação da análise predominantemente institucional dos municípios pela sua subsunção numa problemática da história social das elites locais. Encerrarei esta secção do texto com uma recapitulação crítica dessas propostas. Nuno Monteiro sustentou, como tem feito em escritos passados, que a conceptualização em torno do conceito de oligarquia resulta tautológico e, por isso, teoricamente pouco profícuo, devido ao carácter “natural” da governação oligárquica no quadro da cultura política do antigo regime: a governação era por definição uma responsabilidade dos maiores numa hierarquia de honra e nobreza. Passando por cima das questões de terminologia (na realidade, dada a definição caberia mais falar de uma aristocracia, dos melhores), esta posição enferma ela mesma de uma fragilidade teórica, já que um tal carácter tautológico remete tão-só para a dimensão normativa da cultura política, deixando de lado a sua tradução nas práticas sociais e políticas. Se não presumirmos que a relação entre normas e práticas sociais é transparente e imediata, nem que as hierarquias adscritivas codificadas em normas são fixas e se aplicam exaustivamente nas situações e nos processos sociais – ambas premissas sociologicamente insustentáveis –, então há que verificar “no terreno” não só a hipotética dominância do modo de governo oligárquico decorrente da pauta nor- BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA... 271 mativa, como as variações, no espaço e no tempo, da distribuição social das oportunidades de acesso ao poder, bem como as lutas em seu torno: em suma, verificar e explicar histórica e sociologicamente as apropriações e interpretações da pauta normativa pelas instituições, pelos actores e pelos grupos (o que de resto me parece convergir com a sua segunda proposta, que retomarei abaixo). A questão que verdadeiramente interessa colocar é a de qual o valor analítico e hermenêutico de oligarquia e elite como conceitos de análise histórica e sociológica. Deste ponto de vista, creio que os dois conceitos recobrem campos de aplicação distintos, embora relacionados, não sendo por isso teoricamente alternativos. O conceito de oligarquia releva da teoria política, toma como unidades de análise entidades políticas e remete para um modo de governo e de exercício do poder. Denota a restrição do status de governante aos maiores, mais do que a designação de um grupo ou de um conjunto de grupos sociais (pese embora a vulgarização do seu uso neste último sentido, tal como aconteceu ao de aristocracia), podendo por isso assumir conotações ideológicas por oposição a ideais de governação municipal democrática, cuja validade empírica no contexto do antigo regime é evidentemente muito discutível. Mas se admitirmos que, dentro dos cânones de uma governação de tipo oligárquico, pode haver variações nas fronteiras sociais de acesso aos lugares de poder (na definição dos maiores), então tem cabimento teórico a análise de processos de oligarquização, no sentido de fechamento social da estrutura de oportunidades de acesso aos cargos de poder político (estreitamento social do grupo dos maiores legitimamente elegíveis, pela imposição de parâmetros de diferenciação mais exclusivos e/ou redução das probabilidades de mobilidade para o seu interior), cabendo talvez delimitar as circunstâncias em que será teoricamente preferível designá-los como processos de aristocratização. É na análise histórica de processos deste tipo que radica a associação dos conceitos de oligarquia e de oligarquização das instituições municipais às teses sobre a cristalização e o bloqueio da estrutura social do antigo regime. O conceito de elite, por seu turno, releva da teoria da estratificação social, remetendo para a definição de grupos que ocupam o topo de múltiplas dimensões de diferenciação e de hierarquização de status, mais ou menos correlacionadas entre si, e podem variar segundo as escalas de observação; e para a análise dos processos e mecanismos sociais pelos quais esses grupos se constituem, se diferenciam e reproduzem (ou não) o seu status. As unidades de análise são aqui os grupos sociais e os indivíduos, famílias, casas, etc. que os compõem. Podendo ser usado com conotações normativas, é no entanto um conceito fundamentalmente descritivo, porventura mais livre de conotações ideológicas e de juízos de valor implícitos do que o de oligarquia (ou tão-só portador de ideologias e de valores 272 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS hoje mais consensuais?); mas como disse acima, não o substitui. Dada a diversidade das dimensões de classificação social e dos grupos de referência relativamente aos quais os actores se posicionam, o conceito de elite tem sobre o de oligarquia, quando este é usado para designar o grupo detentor do poder e não a forma de governo, a vantagem de obrigar a pluralizar. À imagem homogénea de uma oligarquia, substitui-se a de uma estrutura de oportunidades estratificada, distribuindo posições de destaque relativamente a diferentes grupos de referência, onde, por exemplo, cargos que uma categoria social enjeita são definidores de uma posição de elite e de oportunidades de mobilidade social para outras categorias sociais (cf. exemplos nas comunicações de Mafalda Soares da Cunha e de Teresa Fonseca). Mas isto não é contraditório com a noção de processo de oligarquização, apenas um ângulo analítico distinto e mais amplo. O facto de esses processos poderem ser protagonizados, à escala local, por actores provenientes de diferentes categorias sociais não lhes retira, nem unidade analítica do ponto de vista processual, nem validade comparativa numa análise das dinâmicas sociais e políticas, nem ainda potencialidade explicativa, nesta escala de observação, relativamente a fenómenos de estruturação social mais amplos. Passando ao segundo tema, Nuno Monteiro propôs também uma descentração daquilo a que apelidou de “fetichismo” das instituições locais, na sua dimensão política e administrativa formal, através do alargamento da perspectiva para uma história das elites locais, como meio de ultrapassar uma espécie de efeito ricardiano dos rendimentos marginais decrescentes, segundo o qual cada novo estudo sujeito a este “fetichismo” pouco acaba por acrescentar ao que já se sabia. Seria, por isso, necessário reinventar a problemática, do que resulta uma deriva interessante e enriquecedora a partir de um interrogatório ancorado na história social. Pergunta, elegendo as casas ou famílias como unidades de análise, que lugar representavam as instituições locais – entre outros meios de mobilidade ou de defesa da posição social – nas metas e nas trajectórias sociais das elites locais, numa duração multi-geracional. Mas o interesse inegável desta problematização não deve fazer esquecer o questionamento específico das realidades políticas e administrativas enquanto tais, em favor da abordagem unilateral da sua função como instrumentos de mobilidade social (ou de defesa contra ela). Se na realidade há rendimentos marginais decrescentes, tal dever-se-á mais ao paradoxo já sugerido de uma “acumulação não cumulativa” (i.e., agregação de casos isolados, sem critérios de comparabilidade ou organizados em torno de categorias teoricamente pouco profícuas) e ao efeito contínuo e não corrigido das tendências de enviesamento identificadas acima. O remédio BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA... 273 estará mais na negociação científica de uma agenda, ou agendas, de investigação comparativa assentes em modelos analíticos explícitos que definam as lacunas, os problemas – entre os quais, decerto o da mobilidade e da reprodução das elites –, os conceitos, as dimensões e os indicadores, bem como os referentes espaciais e cronológicos que permitam transcender o âmbito local dos somatórios de conclusões e eventualmente reinterpretar o que já foi feito para trás. Não deveria ser esse o desafio a lançar por um evento que comecei por caracterizar como de amadurecimento da área temática? 3. Omissões Num encontro muito marcado pela relação e pelas tensões entre as perspectivas institucional-política, por um lado, e das hierarquias e mobilidades sociais, por outro, foram flagrantes três ausências. Trata-se de temas que se diria serem estruturantes e que, ou ficaram de todo omissos, ou, quando referidos, o foram de forma lateral e incidental, e não como objectos específicos de estudo ou sequer de problematização. Não tendo sido objecto de reflexão no encontro, não procurarei aqui dar-lhes um desenvolvimento que resultaria marginal aos resultados substantivos que se verificaram. Limitar-me-ei a inventariar brevemente essas omissões, o que permitirá encerrar este balanço final numa nota de desafio. Em primeiro lugar, a questão das instituições municipais como produtoras, reprodutoras ou cristalizadoras de identidades sociais simbolicamente representadas por atributos de pertença: a um espaço geográfico, uma vila ou cidade, um termo; a um nome, a um conjunto de símbolos edificados, a um povo do concelho, decerto em coexistência ou em concorrência com outras pertenças ou reivindicações identitárias. Pouco ou nada sabemos sobre o eventual exercício desse poder simbólico pelas instituições municipais e sobre a sua eficiência. Em segundo lugar, a questão das actividades de produção e apropriação de território e de paisagem. Refiro-me aqui a território, não no sentido administrativo, mas sim no de espaço socialmente marcado e apropriado, investido de significado, entretecido com instituições e com rotinas sociais, edificado e funcionalmente diferenciado; território no sentido sociológico, paisagem no sentido clássico da geografia humana. Actividades em que as instituições municipais detinham um papel fundamental, quer directamente enquanto produtoras – de património edificado, de vias de circulação, etc., funções de provisão de bens públicos que Margarida Sobral Neto brevemente mencionou na sua comunicação – quer enquanto reguladoras e fiscalizadoras. 274 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO : DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS Finalmente, também por ser o tema que me interessa mais, a questão das actividades de intervenção económica directa e de regulação económica das instituições municipais. Não exclusiva, nem essencialmente como legisladores, mas como instituições de enquadramento ou agentes activos nos mercados locais e regionais. Agentes que gerem recursos económicos próprios, arrematam rendas, impostos e coimas, e provêem (ou sonegam) bens públicos; que, enquanto jurisdições de primeira instância, sancionam direitos de propriedade, públicos e privados, e contratos; que através das concessões de licenças e da exigência de fianças intervêm nas actividades económicas; que dentro dos seus territórios definem quais são os mercados, as trocas e os actores legítimos, e redefinem conjunturalmente essa legitimidade; que intervêm nos mercados fazendo uso das suas prerrogativas, em equilíbrios de poder variáveis com outros agentes, para manipular as ofertas de bens, os preços e a circulação. O estudo das práticas económicas concretas na esfera local – a exemplo do trabalho empírico pormenorizado apresentado por Laurinda Abreu e Rute Pardal sobre uma outra instituição – é uma dimensão crucial da sociologia económica do antigo regime, mormente se pensarmos que foi em grande parte em torno dela que se definiu o discurso iluminista sobre as “vexações” aos povos e os entraves ao progresso alegadamente protagonizados pelos governos municipais. Estando estas dimensões inscritas, sob formas e com pesos variáveis, nas matrizes problemáticas que foram seminais deste campo de estudos, creio que seria interessante, não só recuperá-las, mas também interrogar reflexivamente os modos de fazer história que têm vindo a conduzir à sua perda. Colof.qxd 06-07-2011 23:39 PÆgina 275 Colibri – Soc. de Artes Gráficas Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Alameda da Universidade 1600-214 LISBOA Tel./Fax: 21 796 40 38 www.edi-colibri.pt [email protected]