O ENSINO DE HISTÓRIA ENTRE A INOVAÇÃO E A TRADIÇÃO SANTANA, Martha Shauana B. (Graduanda - UFV) SALGADO, Roberta Kelly Sousa (Graduanda - UFV) ASSIS, Angelo Adriano Faria de (Docente - UFV) A História como uma disciplina escolar, e mesmo como matéria de estudo científico nasceu no Brasil no século XIX, na conjuntura da constituição do estado nacional, vindo a contribuir para a proposta do Estado de construção de uma identidade nacional. A História produzida no Brasil foi concebida já dentro de um processo de definição conceitual da ciência histórica na Europa que transcorria de longa data, e tomou de empréstimo a esta as concepções teóricas e metodológicas mais condizentes com as finalidades que a sociedade brasileira daquela época lhe atribuía. Pensada, nesse momento, sob a perspectiva dos interesses elitistas do Estado Imperial, a História do Brasil consagrou os grandes eventos e personagens importantes, os quais justificavam um futuro próspero para a nação; esteve sob os moldes da História Positivista, que legou uma característica tradicionalista ao ensino de história, perdurando até meados do século XX1. A educação escolar, com destaque para o ensino de História, foi pensada, dessa forma, como um mecanismo de controle social contra a possibilidade de revoltas por parte das baixas camadas da população, através da formação de uma identidade nacional e do espírito patriótico2. Como demonstra Thais Nívea Fonseca, esse projeto de ensino iria perpassar, de um modo geral - guardadas as distinções de cada momento, atendendo a conjunturas políticas específicas - toda a produção do ensino de História no Brasil até a década de 80 do século XX, sendo esse discurso apropriado pelas elites políticas de cada época e se afirmando enquanto modelo de ensino, através das orientações governamentais que, cada vez mais, centralizavam as políticas educacionais, em nome da construção de uma sociedade harmônica, através do exercício de uma cidadania relativa que se referia ao sentimento patriótico, à obediência às leis e à colaboração com o Estado; a educação é pensada e usada como um instrumento de dominação política3. Nos anos trinta, a nascente 1 FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & ensino de História. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 92. 2 Idem, pp. 45-46. 3 Idem, pp. 50-58. 2 historiografia acadêmica brasileira começa a se influenciar pelas tendências historiográficas européias, principalmente a inglesa, alemã e francesa. Contudo, os interesses políticos do período varguista e, posteriormente, a perseguição política da ditadura militar, dificultaram e, em alguns momentos, impediram que esse conhecimento fosse absorvido pelo ensino escolar, criando um fosso entre as duas esferas do ensino. As finalidades da narrativa da História do Brasil, bem como o papel de negros índios e mestiços na constituição do país, só viria a ser repensada de forma mais intensa no ensino com a influência da teoria marxista da história que, apesar de ser concebida em finais do século XIX, só é incorporada nos estudos historiográficos brasileiros a partir da década de 30 do século XX, e ao ensino de História em finais da década de 70, quando o colapso da ditadura militar e o processo de redemocratização do país começam a pensar numa nova proposta de ensino de História, indo, segundo Fonseca, ao encontro das simpatias dos grupos que lideravam aquele processo, ligados “às tendências políticas de esquerda, vinculadas aos movimentos de inspiração socialista”4. Contudo, apesar da sua pretensão inovadora, essa proposta não rompia efetivamente com a anterior, mantendo as características de linearidade, etapismo e progressividade dos acontecimentos históricos, substituindo a cronologia dos marcos políticos pela cronologia dos modos de produção, que pouco diferia da primeira5. O uso excessivo de conceitos e categorias próprias do marxismo, como o de luta de classes, classe dominante e dominada, acabou servindo para a introdução de um maniqueísmo que opõe os “fortes” aos “fracos” da história, pouco servindo para um entendimento maior das relações sociais, do jogo de interesses, das manifestações de variadas formas de resistência6. Talvez a inovação mais notável desse período tenha ocorrido no ponto de vista da abordagem de ensino-aprendizagem. Começa, aí, um questionamento do método tradicional de ensino que, centrado na figura do professor, possuía um modelo verticalizado e hierarquizado de ensino, no qual o aluno era considerado um 7 receptor passivo do conhecimento e reprodutor deste . Segundo Fonseca, “... partindo da noção de que ‘os homens fazem a História e são produtores de seu próprio conhecimento histórico’, os elaboradores do programa ressaltavam a necessidade de que esse princípio básico aparecesse na própria prática 4 Idem, p. 63. Idem, p. 61. 6 Idem, pp. 94-99. 7 MIZUKAMI, Maria G. N.. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986, pp. 7-17. 5 3 pedagógica, no cotidiano escolar, no processo de ensino/aprendizagem, 8 integrando alunos e professores” . Ganham força também diversas tendências pedagógicas, sob a perspectiva de uma nova visão de sociedade, que concebe um mundo democrático em contraposição ao padrão hierarquizado anterior e, influenciadas pelas investigações e descobertas da psicologia, dialogam com a prática educativa de abordagem tradicional, contestando-a e propondo concepções pedagógicas que pensam novas formas para o processo educativo, nas quais o aluno é colocado como integrante ativo do processo de ensino-aprendizagem e dotado de conhecimentos prévios, além de possuidor de características cognitivas, afetivas e psicológicas específicas que interferem no processo na absorção e ressignificação do conhecimento9. Por volta dos anos 1980, a historiografia brasileira passa a ser influenciada de forma cada vez mais marcante pela chamada “História Nova”, proposta pela Escola dos Annales10 que inicia seu movimento de afirmação teórica no início do século XX. Em contraposição ao progressismo anterior, a atividade historiográfica apresenta-se em uma perspectiva que pretende um novo fazer da história, que corrobora com a atmosfera intelectual de relativismo e indeterminismo do seu tempo e contesta as teorias que tentaram equiparar metodologicamente a atividade historiográfica ao status objetivo das ciências naturais: concebendo a impossibilidade da objetividade e do estabelecimento de leis gerais neste campo, o fazer história torna-se um fazer crítico, interpretativo, e busca desvencilhar-se cada vez mais de pragmatismo que relacionava o conhecimento do passado com uma iluminação do presente e uma projeção para o futuro. Do questionamento proposto na atualidade, surgem hipóteses que, após a pesquisa, devem ser retomadas, corrigidas e completadas, admitindo que a verdade é exterior ao documento e que a tarefa do historiador consiste em estabelecer uma possibilidade pertinente. Não se concebe, assim, o conhecimento como uma verdade inexorável, pois se considera que nada é incontestável11. Pela impossibilidade de os 8 FONSECA, Thais Nivia de L. e . Op. cit., 2004, p. 62. Nos referimos aqui às abordagens cognitivistas e sócio-culturais também citadas no livro de Mizukami. 10 Um de seus fundadores, o historiador Marc Bloch define a História como “Ciência dos homens no tempo”, informando que o passado não pode ser objeto de ciência, mas os homens são objeto de estudo histórico através de todos os vestígios que deixaram, donde emerge a necessidade de aliança entre as disciplinas para o exercício de explicação das coisas humanas. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001. 11 Não que se pense aqui numa perspectiva de total indeterminismo e relativismo; o conhecimento histórico é pensado de acordo com a sua pertinência. Toda a argumentação pode, em princípio, ser válida, mas para ser aceita precisa encontrar respaldo entre seus pares, no seu meio e na sua época de produção. Michel de Certeau nos fala das relações entre o trabalho do historiador, o seu lugar e o seu tempo “[...] a operação histórica se refere à combinação de um lugar social e de práticas ‘científicas’”. 9 4 documentos disponíveis abrangerem toda a complexidade do passado, há que se considerar todas as hipóteses como prováveis e, dentre elas, discernir as mais satisfatórias, sendo esta a zona de aplicação da história, pois como afirma HenriIrénée Marrou: “não somos Deus, não podemos saber tudo”12. Esse posicionamento em relação ao conhecimento histórico possui muitas implicações sobre a relação que os estudiosos hoje estabelecem com o passado. E a pertinência deste discurso enquanto crítica ao que se denomina história historicista, que tentou definir regras ao trabalho do historiador, identificadas como 13 “desqualificação profissional” , em grande parte correlaciona-se a todo o debate crítico, que se iniciou no século XVII, em que um ceticismo filosófico do discurso cartesiano imbuía o pensamento contemporâneo de descrença quanto à produção do conhecimento humano. Em decorrência dessas concepções sobre a História, a preocupação historiográfica atual é produzir uma “História-Problema”, que aborde o passado a partir de questões do presente. Problemáticas que emergem dos mais diversos grupos sociais e que propõem, a partir de fontes de variados suportes, abordadas com metodologias pertinentes, compreender uma História plural que se constrói a partir de diferentes correntes teóricas, resgatando a memória de grupos sociais até então excluídos pela pesquisa historiográfica14. Essa História Nova adentra o universo escolar de forma cada vez mais definitiva, num processo de aproximação entre a produção historiográfica e o ensino. Sua presença se faz sentir, sobretudo, na confecção de materiais didáticos que, embora mantenham ainda características das edições tradicionais, apresentam, cada vez mais, temas como as mentalidades, a história cultural, o marxismo revisionista etc., apresentando textos e imagens que não se circunscrevem à mera reificação de marcos históricos, ao contrário, assumem uma postura analítica e reflexiva. O século XX é marcado, ainda, por grandes avanços tecnológicos que são incorporados pelas práticas educativas, e trazem em seu bojo todo um processo de transformação cultural, no qual, a partir de novas linguagens, formam-se novas concepções de mundo e diferentes formas de apropriação deste. Vivemos uma cultura da imagem, e esta veicula um tipo de memória histórica com a qual os educadores precisam dialogar. CERTEAU, Michel de. “A Operação Histórica”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (dir). História: Novos Problemas. Trad. De Teo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 18. 12 MARROU, Henri-Irénée. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 116. 13 Idem. p. 10. 14 LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (dir.). História: novos problemas, novas abordagens, novos objetos. 4ª ed. Tradução de Enrique Mesquita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. 5 A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)15 e os Parâmetros Curriculares Nacionais16 (PCNs) incorporam e expressam os debates sociais e as mudanças historiográficas e pedagógicas dos últimos anos. Pautando-se nos ideais de construção de uma sociedade democrática, nos orientam para um ensino de história que foque a discussão dos problemas sociais contemporâneos17, a valorização das diversidades culturais brasileiras, o respeito mútuo, a problemática da construção da identidade, do pensamento crítico e da cidadania do educando, incluindo-o como participante ativo do processo de construção do conhecimento. Propõem, ainda, um estudo temático sob a perspectiva da História do cotidiano e a utilização de métodos didáticos que levem o aluno à reflexão sobre sua vivência histórica, inserindo-o em um contexto social. Contudo, apesar de todo esse processo de suposta aproximação entre a pesquisa acadêmica e o ensino escolar da História, nossas preocupações em torno do ensino de História tiveram por origem a nossa frustração em não reconhecermos nos estudos acadêmicos aquilo que havíamos por tantos anos estudado nos ensinos fundamental e médio. Desde então, fomos levados a refletir sobre as causas que levaram ao que caracterizamos como um descompasso entre a produção acadêmica e a produção escolar do conhecimento histórico. Tomamos por objeto de análise o ensino de História na cidade de Viçosa, Minas Gerais, nos propondo a analisar como as perspectivas historiográficas atuais, e as novas propostas pedagógicas, têm influenciado o ensino de história e a formação de uma memória histórica nas escolas da cidade, tanto do ponto de vista da prática e interpretação dos professores, quanto da absorção e ressignificação do conhecimento histórico por parte dos alunos, bem como a incorporação dos materiais didáticos nas práticas escolares. Materiais e métodos Nossa amostra constituiu-se em seis escolas do perímetro urbano de Viçosa, dentre as vinte e uma que, segundo dados fornecidos pela Superintendência Regional de Ensino da 33ª Região, oferecem ensino de 5ª à 8ª séries em toda a MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei no 9334, 20 de dezembro de 1996. 16 SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. - Brasília: MEC/SEF, 1997, e Parâmetros curriculares Nacionais (5ª a 8ª séries): História. Brasília: MEC. SEF, 2001. 17 Estes, expressos, de forma resumida, na apresentação dos temas transversais: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas 15 6 cidade, sendo duas escolas municipais, duas estaduais e duas particulares. O número de docentes chegou a um total de onze: dois professores(as) de escolas particulares (um/uma de cada); quatro professores(as) de escolas estaduais (dois/duas de cada); e cinco professores(as) de escolas municipais (três de uma e dois/duas da outra). Como dois/duas professores(as) das escolas municipais não nos entregaram os questionários respondidos, trabalhamos com um total de nove docentes. A análise da forma e dos aspectos historiográficos e pedagógicos dos livros didáticos adotados pelas escolas em questão, juntamente com a análise quantitativa e qualitativa dos dados dos questionários aplicados a professores e alunos, nos permite levantar alguns pontos sobre os perfis e as tendências das coleções didáticas; um possível perfil dos professores de História em Viçosa, e as condições de trabalho destes; hipóteses sobre os possíveis usos que se faz do material didático e indícios sobre a apropriação do conhecimento por parte dos alunos. Trabalhamos com quatro coleções didáticas: História em documento: Imagem e Texto18, de Joelza Ester Rodrigue; utilizado pelas duas escolas estaduais e uma particular. História & Vida Integrada19, de Nelson Piletti e Claudino Piletti, utilizado por uma escola municipal; Navegando pela História20, de Silvia Panazzo e Maria Luísa Vaz, adotado por outra escola municipal, e História: das cavernas ao terceiro milênio21, adotado pela segunda escola particular. Os materiais didáticos: produção e utilização Quanto à produção dos materiais didáticos, iniciamos pela observância dos autores: com exceção da coleção História & Vida Integrada, que possui autores com formação em filosofia e pedagogia, os autores dos demais livros possuem formação de graduação em História. Todos os autores possuem experiência em ensino de História em nível fundamental ou médio, e ao menos um dos autores de cada coleção atua em pesquisa em pós-graduação em História. Temos, então, que os livros são transversais, ética. - Brasília: MEC/SEF, 1997. 18 RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2000. Examinamos também com a segunda edição desta coleção, que é de 2002. 19 PILETTI, Nelson e PILETTI, Claudino. História & vida integrada. São Paulo: Ática, 2002. 20 PANAZZO, Silvia e VAZ, Maria Luísa. Navegando pela História. 1ª ed. São Paulo: Quinteto Editorial, 2002. 21 BRAICK, Patrícia Ramos e MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio: ensino 7 elaborados por indivíduos que aliam conhecimento e experiência em ensino e pesquisa em História, o que fica evidenciado também nos capítulos introdutórios dos livros de quinta série, nos quais os autores expõem os objetivos das coleções e as perspectivas de história e de ensino nas quais seus trabalhos se pautam. Cabe ressaltar, contudo, que nenhuma das coleções é obra exclusiva dos autores; apesar deles assinarem a autoria dos textos, a produção final está submetida a uma grande equipe editorial, que chega, em alguns casos, a mais de vinte indivíduos, responsáveis pelos mais diversos aspectos do livro. Nos capítulos introdutórios dos livros destinados à 5ª série, todos os livros demonstram um conhecimento atualizado da historiografia, adaptando para o público escolar a discussão sobre alguns conceitos centrais para a produção historiográfica. Nos casos das coleções História em documento: Imagem e Texto e Navegando pela História, os autores expõem diretamente as suas concepções de História, introduzindo para o aluno as problemáticas teóricas e metodológicas que defendem. Já na coleção História: das cavernas ao terceiro milênio, são expostas várias concepções de história, deixando-se claro a definição por uma delas. E, no caso da coleção História & Vida Integrada, são expostas algumas concepções, mas através de uma seleção de perspectivas convergentes, que nos permite diagnosticar a concepção adotada pelos autores. Todos os livros definem-se, então, por uma perspectiva de História-problema. Logo, tratam o conhecimento histórico como atividade interpretativa, enfocam a atividade de pesquisa do historiador e as diversas fontes por ele utilizadas, ligam-se enfim, à Nova História, proposta pelos Annales. Não poderemos relatar aqui a análise individual de cada coleção mas, de um modo geral, os respectivos livros tentam conciliar as perspectivas historiográficas com abordagens pedagógicas modernas, sem descartar, contudo, as divisões tradicionais dos capítulos e a abordagem factual e política de alguns temas. Os livros não adotam integralmente a perspectiva temática proposta pelos PCNs, mas em maior ou menor grau dedicam um espaço para a história cultural, revisam velhas imagens dicotômicas e preconceituosas arraigadas no imaginário coletivo e problematizam algumas questões históricas; os textos apresentam uma narrativa que se aproxima do leitor, trazem uma variedade de fontes de informação como imagens, documentos de época, gráficos, mapas, sugestões de filmes. Na parte de exercícios, estimulam atividades de comparação, pesquisa, coleta e interpretação de dados, reflexões sobre questões atuais, produções textuais etc. fundamental. São Paulo: Moderna, 2000. 8 É claro que determinadas coleções são mais densas em conteúdos que outras, e alguns capítulos podem ser bastante falhos em temas que consideramos cruciais, como o encontro dos europeus com os indígenas e a escravidão africana, por exemplo, mas, como destacamos, de um modo geral, todos os livros apresentam, de forma mais ou menos elaborada, o conjunto de elementos citados. O primeiro dado que podemos notar é que uma coleção utilizada por uma escola particular faz parte do Programa Nacional do Livro Didático e foi adotada também pelas escolas estaduais. A comparação das edições nos mostra que não há diferenciação no material utilizado para a confecção, nem no conteúdo; por sinal, a data da edição dos livros utilizados nas escolas estaduais é mais recente, mas sem alterações. Esse fato vai de encontro à constatação de Décio Gatti Júnior22 que, no final dos anos 1990 verificou que havia uma diferença na produção dos livros por classes e que, naquele momento, cabia às escolas públicas um livro de qualidade inferior, com materiais inferiores e textos mais simplificados, mesmo que se tratasse de uma coleção similar com a mesma autoria. Hoje, o professor de escola pública tem à sua disposição para escolha uma grande quantidade de coleções didáticas com a mesma qualidade dos livros vendidos no mercado comum. A princípio, cabe então, ao professor, a responsabilidade pela escolha de um livro de qualidade. Embora saibamos que, não raro, os livros são indicados pelas secretarias de ensino, coordenações pedagógicas ou direção das escolas. Sobre a questão da escolha e utilização dos livros didáticos, 44,44% dos professores não participaram da seleção dos mesmos, proporcionalmente: 50% dos professores das escolas estaduais, 33,33% dos professores das escolas municipais e 50% dos professores das escolas particulares. Isto indica uma alta rotatividade de professores em todos os sistemas de ensino de Viçosa, o que contribui para a insatisfação de alguns professores com relação ao material utilizado. Mas, cabe ressaltar que mesmo os professores que tiveram oportunidade de escolher as coleções com que trabalham possuem críticas a fazer sobre os livros, e que nem sempre um professor que não participou da escolha tem queixas relevantes sobre a coleção. Todos os professores afirmam que complementam de alguma forma o material, 66,66% apontam como um dos recursos extra, a apresentação de filmes, mencionados nos questionários dos alunos como o recurso didático que mais gostam. Mas sua utilização pode ser confundida, como demonstra também a opinião de alguns alunos, com pretexto para burlar uma aula. 22 GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da história: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990) Bauru, SP: Edusc; Uberlândia, MG: Edufu, 2004. 9 Outro aspecto interessante quanto à adoção dos livros didáticos é que, apesar de existirem hoje algumas coleções disponíveis que trabalham integralmente com a proposta temática dos PCNs, nenhuma das escolas estudadas adotam esse tipo de material. Um dos docentes envolvidos critica o material que utiliza justamente pela falta da proposta temática, mas tendo a oportunidade de escolher o material didático, preferiu continuar trabalhando com uma coleção que oferece uma estruturação de texto tradicional (apesar de, como já dissemos, incorporar também um pouco da proposta temática). Esse fato nos leva a concluir pela existência de certa resistência à adoção de materiais que rompam de forma mais efetiva com os esquemas tradicionais. Mesmo insatisfeitos, os docentes procuram assegurar-se no que já é conhecido, temendo o risco do novo, posto que, no ambiente escolar, o trabalho sobre objetos que não se domina pode provocar danos irreparáveis nas relações entre docentes e alunos, dando mostras da insegurança dos professores e provocando certa desconfiança dos discentes em relação a eles. As relações professor-aluno requerem credibilidade e confiança para o bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem, por isso, como trabalhar em sala de aula de forma inovadora? Como propor uma perspectiva de discussão que foge até mesmo dos padrões das instituições de ensino superior em que se formam os professores? Temos que lembrar que, em sua grande maioria, os cursos de graduação de história, mesmo os que trabalham com uma perspectiva historiográfica e interpretativa, portanto, não conteudista, ainda mantêm os esquemas de divisões cronológicas da História nos programas das suas disciplinas; não raro, em muitos cursos de pós-graduação perdura esse modelo. Modelo este nascido de uma concepção etapista e progressivista da História, bastante arraigado, e o rompimento com essa estrutura é uma tarefa pioneira, a qual muitos professores ainda não se propõem. Neste campo, as mudanças se dão muito lentamente, não bastam apenas palavras incentivadoras de uma proposta oficial de ensino, há que se demonstrar na prática a viabilidade e a eficácia desse método para que haja mais credibilidade e os professores se arrisquem nessa empreitada. Professores: suas concepções teóricas e suas práticas pedagógicas O primeiro dado importante a notarmos é que todos os professores afirmaram possuir nível superior em História, 44,44% deles possuem ainda um curso de pósgraduação em História concluído, 11,11% com pós-graduação em outra área do 10 conhecimento. Outro dado a ser considerado é que 33,33% possuem uma outra formação em graduação, tendo iniciado suas carreiras docentes em outras áreas23, passaram, provavelmente, a trabalhar também com o ensino de história e foram, a partir de então, buscar uma formação específica na área. Em índices relativos: Professores com pós-graduação em História Escolas Proporção em relação ao nº total de prof. Proporção em rel. ao nº de prof. da rede Municipais 11,1% 33,3% Estaduais 22,22% 50% Particulares 11,1% 50% Professores com outro curso de graduação Proporção em relação ao nº total de prof. Proporção em relação ao nº de prof. da rede Municipais 22,2% 66,6% Estaduais 11,1% 25% Particulares 0,0% 0,0% Escolas Temos, portanto, um alto índice de professores com estudos posteriores à graduação e, também, uma grande proporção de docentes que possuem mais de uma graduação, num total de 77,77% de docentes que tiveram alguma continuidade formal nos estudos após a primeira fase de formação. Outro dado importante é que, enquanto 100% dos professores da rede particular iniciaram suas carreiras no ensino de História e nela permaneceram, 66,6% dos professores que hoje lecionam História na rede municipal e 25% dos professores que lecionam na rede estadual de ensino migraram para essa área, provavelmente após iniciarem suas experiências docentes no ensino de História, buscando a formação superior posteriormente. Este dado revela uma característica dos sistemas públicos de ensino que freqüentemente possibilitam o preenchimento dos seus quadros de docência por pessoas não habilitadas para trabalharem nas respectivas áreas de ocupação, e a permanência desses profissionais, às vezes por longos anos nessa situação, os leva a procurarem uma formação adequada. Do total de professores, 33,33% lecionam há mais de vinte anos, destes, 11,11% possuem o equivalente em ensino de História e os demais 22,22% somam-se 23 No total, 55,55% dos professores declararam um número de anos na prática de docência superior ao 11 a outros 22,2% que há mais de dez anos lecionam História. Assim 66,66% dos professores possuem entre dez e vinte anos de experiência em ensino de História. Dentre os demais, 11,11% lecionam História há cinco anos, e 33,33% entre alguns meses e um ano. Quanto aos dados sobre tempo de serviço em ensino de História, em proporções relativas, temos: Proporções relativas para o tempo de docência em História Escolas Proporção em relação ao nº total de prof. Proporção em relação ao nº de prof. da rede 20 +de 10 5 0a1 20 + de 10 5 0a1 Municipais 0,0% 33,3% 0,0% 0,0% 0,0% 100% 0,0% 0,0% Estaduais 11,1% 11,1% 0,0% 22,2% 25% 25% 0,0% 50% Particulares 0,0% 0,0% 11,1% 11,1% 0,0% 0,0% 50% 50% Vemos, pelos dados relativos, que os professores com formação e experiência profissional mais recente estão na rede particular de ensino (todos os professores possuem entre zero e cinco anos de sala de aula), seguida da rede estadual, em que há, ao mesmo tempo, professores com pouquíssimo tempo de serviço, professores com mais de dez e até vinte anos de atuação em ensino de História. Na rede municipal, todos os professores possuem entre dez e vinte anos de experiência em ensino de História. Este último aspecto, associado ao fato de que apenas as escolas particulares oferecem cursos de formação continuada minimamente satisfatórios às expectativas dos professores, talvez explique, em parte, a falta de conhecimento atualizado da produção historiográfica por parte de alguns professores. Muitos docentes da rede pública apresentaram muita dificuldade em responder a perguntas do questionário relacionadas às suas concepções teóricas. Dessa forma, tivemos que realizar reuniões para explicar as questões e, ainda assim, as respostas demonstram, muitas vezes, o total desconhecimento do assunto. Quanto à pergunta sobre a corrente historiográfica de interesse pessoal: um professor deixou em branco; outro, numa atitude de total indefinição, respondeu “[gosto] De todas”; outro, numa resposta que também sugere evasão, respondeu, “A historiografia moderna”; outro, contrariando as suas respostas sobre a utilização de fontes como recursos didáticos, afirmando utilizar-se de materiais visuais, filmes, número de anos em que trabalham com ensino de História. 12 revistas, recortes de jornal, definiu-se como “Positivista”. Enfim, apenas 44,44% dos professores demonstram um conhecimento atualizado da produção historiográfica e assumiram uma orientação teórica mais coerente com suas respostas. Destes, 22,22% lecionam nas escolas particulares e os outros 22,22% lecionam nas escolas estaduais, em totais relativos, 50% dos professores da rede estadual e 100% dos docentes da rede particular. A par disso, todos os professores responderam que têm acesso e conhecem, ao menos em parte, o conteúdo dos PCNs, dado que é corroborado pela seqüência de respostas, que indicam inclusive um esforço geral por parte dos professores em aplicar, na medida do possível, algumas das indicações dos mesmos, tendo estes, em alguns casos, que contornar as dificuldades financeiras da escola para trabalhar com materiais e métodos diversificados de ensino. A análise dos questionários dos alunos indica um convívio contraditório de uma concepção de história que vulgarmente associa o conhecimento histórico a coisas velhas, a um passado remoto, identificado por muitos discentes como “antigamente”, com concepções de história que propõem o estudo de relações entre passado e presente, bem como o estudo de outras sociedades. Este dado nos leva a concluir que os docentes têm enfrentado dificuldades no trabalho com conceitos cruciais para o conhecimento histórico e o entendimento do que Holien Bezerra24 chamou de “lógica da História”. Para a autora, ainda na escolaridade básica há que se definir em que consiste a atividade dos historiadores e a produção dela decorrente, e aqui se inclui as estratégias de pesquisa, busca de informações, utilização de fontes históricas, levantamento de hipóteses, organização de dados coletados, bem como o entendimento da noção de processo histórico, das dimensões da temporalidade, os conceitos de sujeito histórico e de cultura. Outro dado que corrobora com esta idéia é o fato de que os alunos não conseguem associar os conteúdos históricos à sua vivência, como se estes fossem um conhecimento aparentemente alheio às suas rotinas. Ao que parece, os professores não têm conseguido encontrar um ponto de aproximação entre os conteúdos e o cotidiano do aluno, fazer com que ele perceba-se como sujeito histórico e reconheça que a história está presente em todos os lugares, em todos os momentos, que o lugar seja qual for, integra-se historicamente a espaços e contextos mais amplos, que os indivíduos estão inseridos em contextos econômicos, políticos, sociais e culturais vividos no dia-a-dia por seus habitantes e por ele no município, no 24 BEZERRA, Holien Gonçalves. “Conceitos Básicos”. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2004. 13 país e no mundo; e que a sua forma de interagir com este mundo faz parte da constituição da sua própria identidade. Quanto às proposições pedagógicas atuais indicadas pelos PCNs cabe ressaltar que, ao que parece, todos os professores se esforçam por introduzir em suas aulas materiais e métodos diversificados - no caso da matéria em questão, há a exploração de fontes históricas, tanto as que já vêm nos livros quanto outras levadas pelo professor, incluindo documentos que se referem à atualidade, como recortes de jornal, revista etc. - e diversas formas de avaliação, que acontecem, na maioria dos casos, como parte integrante de todo o processo de ensino, sendo valorizadas as atividades diárias realizadas pelos educandos. Considerações finais: Das concepções teóricas às práticas escolares O fazer histórico muda, as práticas didáticas mudam, a sociedade muda, e a variação do público escolar é o maior testemunho disso; a cada novo ano, a cada nova turma, o professor depara-se com novos contingentes que trazem consigo suas expectativas, suas concepções de mundo e novos universos culturais vão se moldando no âmbito de convívio das novas gerações. O conhecimento não é estático, e o movimento de inovações e descobertas assume um caráter cada vez mais dinâmico. Não podemos descartar o conhecimento que adquirimos há dez anos atrás caindo na falsa perspectiva de que o novo é sempre o melhor, mas temos que compreender que, em função do tempo presente, o que passou tem que ser ressignificado, entendido numa perspectiva histórica, como fruto de uma época e um lugar. O docente precisa manter-se atualizado, não dá para pensar o ensino sem renovação, e isto pressupõe um esforço pessoal infinito de estudo e pesquisa. Os dados por nós levantados permitem inferir que, se por um lado a academia brasileira adentra num processo de reconstrução conceitual e, conectada com as tendências internacionais da área, propõe uma revisão da produção do conhecimento histórico e, se os documentos oficiais de ensino incorporam as inovações teóricas tanto da ciência histórica, quanto das teorias pedagógicas; por outro lado, os professores, alguns formados há muitos anos, em alguns casos, sob outras concepções de História e de ensino e sem continuidade nos estudos, nem sempre estão aptos a acompanhar a introdução dessas indicações em sua prática. Contudo, se falta, em grande parte, embasamento teórico para a aplicação das propostas, há, contraditoriamente, uma difusão geral das mesmas. Seja através 14 dos PCNs, dos livros didáticos, ou mesmo da mídia, os professores demonstram estar a par das discussões que se movem em torno das questões educacionais, ainda que com uma percepção parcial e, por vezes, contraditória das mesmas. Dessa forma, as respostas dos alunos aos questionários nos permitiram entrever as dificuldades dos docentes em ultrapassar as velhas concepções historiográficas no ensino de História. À primeira vista, eles não têm conseguido alcançar os objetivos a que se propõem, em alguns casos, talvez por falta de preparo teórico; em outros, talvez pela dificuldade em converter as teorias em práticas e, talvez, até mesmo pela dificuldade em lutar contra uma avalanche de informações externas ao ambiente escolar, que vulgariza o conhecimento histórico e possui uma força comunicativa que se sobrepõe ao conhecimento produzido em sala de aula. Como foi visto, muitos fatores se entrecruzam na reelaboração do conhecimento historiográfico para fins escolares e não determinam, ainda, o alcance objetivo do trabalho do docente, uma vez que é no próprio ambiente de sala de aula que se constrói efetivamente o saber escolar, mesclando as propostas oficiais de ensino aos objetivos do professor e à receptividade dos alunos com todo o seu arcabouço cultural, criando situações muitas vezes surpreendentes e inusitadas, sendo efetivamente aí que se dá a produção do saber escolar. Portanto, apesar de uma grande difusão dos documentos dos PCNs entre os professores, e da afirmação de uma tendência geral de incorporação das novas propostas curriculares, é sensível ainda o peso de uma tradição positivista no ensino, que deixa sua marca tanto nos materiais didáticos, quanto na concepção historiográfica de alguns professores e na forma de apropriação do conteúdo pelos alunos. Fontes e Bibliografia Livros didáticos BRAICK, Patrícia Ramos e MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio: ensino fundamental. São Paulo: Moderna, 2000. PANAZZO, Silvia e VAZ, Maria Luísa. Navegando pela História. 1ª ed. São Paulo: Quinteto Editorial, 2002. PILETTI, Nelson e PILETTI, Claudino. História & vida integrada. São Paulo: Ática, 2002. RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2000. 15 Bibliografia BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Trad. De André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & ensino de História. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da história: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990) Bauru, SP: Edusc; Uberlândia, Mg: Edufu, 2004. KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2004. LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (dir.). História: novos problemas, novas abordagens, novos objetos. 4ª ed. Tradução de Enrique Mesquita. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. MARROU, Henri. Sobre o Conhecimento Histórico. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Nº 9334, 20 de dezembro de 1996. MIZUKAMI, Maria G. N. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares Nacionais (5ª a 8ª séries): História. Brasília: MEC. SEF, 2001. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: MEC/SEF, 1997.