“Quem conhece o solo e o subsolo da vida,
sabe muito bem que
um trecho de muro,
um banco,
um tapete,
u m g u a r d a - c h u v a,
são ricos de idéias
ou de sentimentos,
quando nós também o somos,
e que as reflexões de
parceria
entre os homens
e as coisas
compõem um dos mais
i n t e r e s s a n t e s
fenômenos da terra ”.
Machado de Assis, Quincas Borba,
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ARCOS VOLUME 1 1998 NÚMERO ÚNICO
CAPÍTULO 142
editorial
“Cada capital da Europa tem o seu monumento célebre,
seu edifício predileto, sua grande construção local, que
imprime a toda a cidade um caráter do qual ela retira
a sua originalidade de aspecto. No Rio, esse monumento
é o aqueduto da Carioca, com suas arcadas duplas,
seu aspecto de construção romana, sua forma ao mesmo
tempo elegante e grandiosa, que atrai de todos os lados
os olhares e que estes amam encontrar”.
Ferdinand Denis, Brésil
(1837)
Quando os romanos antigos construíam uma cidade, duas coisas que não
podiam faltar eram um aqueduto e um anfiteatro, estruturas baseadas no
princípio construtivo do arco pleno como elemento de suporte e equilíbrio
pela distribuição das cargas. Em torno desses edifícios organizaram-se cidades, implantaram-se sociedades, formou-se uma cultura que abrangeu, no seu
auge, boa parte do mundo antigo. Mais do que um simples elemento construtivo, os arcos representavam todo o aparato ideológico do império romano:
força, estabilidade, eficiência, regularidade, uniformidade, continuidade,
permanência. Permanência tanta, aliás, que alguns até hoje resistem, surgindo
aqui e ali, em paisagens européias, africanas, orientais: testemunhas eloqüentes
de que toda civilização, todo poder e também toda tirania um dia chegam ao
fim. A civilização romana acabou – ou melhor, diluiu-se em outras tantas –
mas os seus arcos perduram como provas em concreto de um povo que soube
se projetar no tempo e no espaço.
DESIGN, CULTURA MATERIAL E O FETICHISMO DOS OBJETOS
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Outras eras, outros povos, mas persistiram os problemas de projetar uma
cidade, de dar condições à própria vida e, por conseguinte, ao florescimento
de uma cultura. Foi assim que, na década de 1720, no governo de Ayres de
Saldanha, concluiu-se após longa demora o grande projeto de trazer as águas
do rio Carioca desde a sua fonte no Silvestre, descendo pelo morro do Desterro (Santa Teresa), até o largo da Carioca. Aquele primeiro aqueduto margeava
o velho caminho do Desterro, depois transformado em rua dos Barbonos, e
seguia até o campo da Ajuda. Os arcos foram reedificados já na década de
1740, sob o governo de Gomes Freire de Andrade, ganhando as feições que
hoje conhecemos, e mudando o traçado para passar ao norte daquela rua e
por cima da antiga lagoa do Desterro e desembocar diretamente no morro
de Santo Antônio. As mudanças não pararam por aí. A própria lagoa do
Desterro acabou sendo aterrada, abrindo lugar para a construção de grande
parte do bairro da Lapa. E a velha rua dos Barbonos mudou de nome, tornandose no século XIX, Evaristo da Veiga, nome que até hoje retém.
Em toda cidade, há certos locais que a História parece tomar como palco
privilegiado, e onde ela até se repete de forma às vezes trágica, às vezes
irônica, às vezes assustadoramente presciente. No Rio de Janeiro, a esquina
meridional da Evaristo da Veiga é um lugar como esses, um lugar de grande
responsabilidade. Foi por ali que chegaram, pela primeira vez, aquelas águas
que dariam à cidade um abastecimento regular, possibilitando a sua
transformação em metrópole digna de servir de capital ao País. Também ali
ergueu-se, no século XIX, o quartel do corpo policial da Corte, o primeiro do
gênero entre nós, o qual ainda domina a rua com o seu jeito carrancudo de
fortaleza. Já no nosso século, foi ali que se implantou uma certa escola superior,
que prometia redesenhar a visão do Brasil nos moldes da modernidade que
então fervilhava no mundo todo. Promessa, repressão, liberdade: já passou
de tudo por lá nesses quase cinco séculos de existência.
Hoje parte daquela esquina uma nova voz, sem pretensões de fazer História
mas consciente da sua herança atribulada. Fugindo do legado autoritário de
romanos, portugueses e outros mais, desejamos que esta seja uma voz acessível,
crítica e, antes de tudo, plural. No verdadeiro espírito dos arcos antigos, esses
Arcos pretendem dar estrutura a diversas cargas e conciliar influências opostas.
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ARCOS VOLUME 1 1998 NÚMERO ÚNICO
A nossa boa e velha cidade pode não precisar mais de um aqueduto mas sempre
há espaço para uma outra espécie de canalização, de tipo metafórico: uma
canalização que conduza as idéias por leitos inusitados, criando um fluxo intenso
onde antes havia apenas uma baldeação irregular. É nossa esperança sincera
que, como os velhos arcos da Lapa descritos com tanto carinho por Ferdinand
Denis, esta Arcos atire para si os olhares e que estes, por sua vez, sintam
prazer em encontrá-la.
Os Editores
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