O AUTODOMÍNIO EM ARISTÓTELES
Ramiro Marques
O autodomínio é uma virtude singular que procura ultrapassar o
conflito gerado pela oposição entre a razão e as paixões. A sua
ausência constitui uma das três coisas que nos podem tornar vis, a
par dos vícios e da bestialidade.
Aristóteles analisa esta virtude nos capítulos IV e VI do livro II
da Magna Moralia (1), começando por criticar a tese socrática que
negava a existência do autodomínio, pois dizia que ninguém pode
escolher o mal sabendo o que é o mal. Na verdade, ao contrário do
que pensava Sócrates, as pessoas que não têm autodomínio
escolhem o mal, sabendo que estão a escolher o mal, não porque o
prefiram racionalmente, mas porque se deixam vencer pelo império
das paixões, não tendo força de vontade para lhe resistir.
Pode-se perguntar, no entanto, se esse conhecimento é um
verdadeiro saber ou uma mera opinião? No primeiro caso, a pessoa
que faz o mal merece ser censurada. No segundo caso, a pessoa que
não tem autodomínio faz o mal apenas porque possui uma vaga
opinião do mal e não um saber verdadeiro e, nessa medida, não
mereceria ser censurada. No entanto, todos sabemos que as pessoas
incapazes de autodomínio estão muito mais sujeitas do que as outras
a optar pelas más acções, quer por frouxidão quer pelo facto de não
saberem aplicar aquilo que sabem. Oiçamos Aristóteles: "por
conseguinte, não tem domínio de si, aquele que tendo um
conhecimento das coisas boas, não o põe em acto. Cada vez que ele
não põe em acto esse saber, pode-se dizer, sem cair no absurdo, que
ele faz o mal, sabendo o que é o bem. O seu caso é semelhante ao
das pessoas que dormem". (2).
O filósofo avança, ainda, uma outra explicação: é possível terse um conhecimento geral sem se saber como aplicá-lo a casos
particulares. Neste caso, a pessoa pode deter o saber, mas erra ao
aplicar esse saber à resolução de um conflito particular. As pessoas
sem autodomínio poderão cair, com facilidade, nesse erro e é, por
isso, que embora conheçam o bem, são incapazes de resistir ao mal,
sobretudo quando essa opção pelo bem as obriga a renunciar a
prazeres. Neste caso, as paixões e os apetites tornaram inactivo o
conhecimento e a pessoa deixa de obedecer à razão.
Ao invés a pessoa com autodomínio é aquela que é capaz de
obedecer à razão, embora seja confrontada, amiúde, com o desejo de
ceder às paixões e aos apetites.
Convém, no entanto, distinguir o autodomínio da resistência. O
autodomínio diz respeito aos prazeres. Aquele que se autodomina é
senhor dos seus prazeres, enquanto que a resistência diz respeito às
penas e às dores. Aquele que resiste às penas é um homem
resistente, mas não é, forçosamente, um homem com autodomínio.
Aristóteles faz um outra distinção entre a ausência de
autodomínio e a moleza. Enquanto a moleza significa a incapacidade
para resistir à dor, a ausência de autodomínio significa a incapacidade
para resistir aos prazeres indevidos, impróprios ou excessivos.
E o que é o oposto do autodomínio? Aristóteles defende que é o
deboche ou a vida dissoluta. Oiçamos Aristóteles: "existe um certo
tipo de homem que chamamos dissoluto. Será o mesmo tipo de
homem que aquele que não tem autodomínio? O dissoluto é aquele
que pensa que os seus actos são os melhores e os mais úteis para si
e que não possui nenhuma razão para se opor ao que lhe parece ser
agradável. O homem sem autodomínio, pelo contrário, possui uma
razão que o opõe aos fins em direcção aos quais o seu desejo o
empurra" (3), mas não consegue resistir ao apelo dos seus desejos e
paixões.
Qual é o mais facilmente corrigível? O homem dissoluto não usa
devidamente a razão, pois opta pelo mal, pensando que o mal lhe é
mais útil e agradável. O homem sem autodomínio dispõe de razão,
mas é incapaz de resistir aos desejos. Repare-se: o dissoluto não tem
qualquer noção do bem, mas o homem sem autodomínio tem. O
primeiro tem as características de um ser vicioso e vil por natureza,
mas o segundo não, embora se possa também tornar vicioso, graças
ao hábito. No entanto, é mais fácil alterar os maus hábitos do que
uma má disposição natural. É, por isso, que o homem dissoluto é
mais difícil de corrigir do que o homem sem autodomínio.
Será que a pessoa com autodomínio é sinónimo da pessoa
prudente? É verdade que o homem prudente também possui
autodomínio e que, portanto, não apenas possui uma recta razão,
mas também é capaz de agir em conformidade com a recta razão.
Contudo, ser prudente exige mais do que ter autodomínio, porque a
pessoa prudente também é capaz de escolher os melhores meios
para atingir os fins rectos.
Notas
1) Aristóteles (1995). Les Grands Livres d`Éthique (Magna
Moralia). Évreux: Arléa
2) idem, 1201 b, 15, p. 157
3) idem, 1202 b, 5, p. 163
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