Saúde Questões antigas, soluções atuais Novas tecnologias e interdisciplinaridade possibilitam estratégias pioneiras no combate às doenças tropicais Valda Rocha As doenças tropicais são sempre um desafio para a comunidade científica brasileira. Pesquisadores do Laboratório de Cristalografia, Estereodinâmica e Modelagem Molecular (LaCrEMM) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), coordenados por Julio Zukerman-Schpector, viram no desafio uma possibilidade e passaram a buscar caminhos que pudessem contribuir para a descoberta de um composto capaz de combater duas dessas enfermidades (leishmaniose e doença de Chagas), a partir da realização de uma pesquisa pioneira em nível molecular. Desde 1995, a equipe formada por três pesquisadores estuda a reação das moléculas das enzimas Glutationa reductase (encontrada no organismo dos seres humanos) e Tripanotiona reductase (encontrada no Trypanosoma cruzi, causador da Desafio é encontrar fármacos que tenham efeito no parasita sem afetar o funcionamento da enzima humana jan|abr|2002 doença de Chagas), quando em contato com alguns fármacos.“A estrutura das moléculas nos parasitas causadores da leish- LaCrEMM Nesta figura, vemos um modelo tridimensional da enzima Tripanotiona reductase de T. cruzi, constituído de dois monômeros (um em amarelo e outro em rosa). Podemos observar os três possíveis sítios de enlace de um composto: o sítio ativo (onde aparece em verde o substrato); o sítio de NAD (em vermelho); e o sítio da interface, onde vemos um composto, cuja atividade biológica foi testada. O composto foi colocado nessa posição através de métodos de modelagem molecular, docking e computação gráfica. 51 52 Saúde Oxigênio: herói e vilão de uma mesma história Um dos maiores desafios na busca por fármacos capazes de inibir a evolução de determinadas doenças é encontrar substâncias que ataquem o parasita sem prejudicar o organismo humano. No caso da pesquisa sobre uma possível cura para a leishmaniose e a doença de Chagas, essa preocupação reflete-se na tentativa de inibir a enzima Tripanotiona reductase sem afetar a funcionalidade de sua correspondente no organismo do indivíduo infectado, a Glutationa reductase. Ambas as proteínas são responsáveis pelo metabolismo dos radicais livres. Radical livre é toda molécula que tem seus elétrons não pareados na órbita externa, o que a torna instável quimicamente. Por isso, são altamente reativos, uma vez que “roubam” elétrons de qualquer composto próximo para se estabilizar. No corpo humano, esse processo produz reações em cadeia de dano celular. O oxigênio, fundamental para a manutenção do funcionamento das células e, conseqüentemente, da vida, é, ao mesmo tempo, o principal responsável pela formação de radicais livres em nosso organismo. Cerca de 95% do oxigênio assimilado pelo homem é transformado em energia. O corpo humano está preparado para se defender dos outros 5%, justamente por meio de enzimas maniose e da doença de Chagas é muito similar. Escolhemos trabalhar com o T. cruzi por dois motivos: além de possibilitar maior visibilidade durante o processo de determinação da estrutura atômica da enzima, pudemos aproveitar o material coletado pela equipe da Universidade Federal Fluminense (UFF), nossa parceira nesse projeto”, explica Zukerman-Schpector. antioxidantes. Porém, quando a produção de radicais livres é superior àquela “prevista”, o organismo é incapaz de metabolizá-los. Segundo Marcos Antônio Corrêa, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp de Araraquara, diferentes fatos podem ocasionar a produção excessiva de radicais livres: exposição prolongada ao sol, administração de diferentes substâncias químicas, poluição, stress constante (físico ou mental) e quaisquer outras situações que fragilizem o organismo e predisponham o indivíduo a doenças degenerativas crônicas diversas (sono irregular ou insuficiente, fumo, bebidas alcoólicas em excesso etc.). Além disso, o próprio processo natural de envelhecimento reduz a capacidade do sistema antioxidante. Os principais quadros patológicos relacionados aos processos oxidativos são aterosclerose, isquemias por reperfusão, envelhecimento precoce, doenças reumáticas, câncer e doenças pulmonares. “Na maioria dos casos, apenas a manutenção de hábitos que possibilitem o controle dos fatores de risco mantém o equilíbrio dentro de nosso organismo, permitindo que nosso próprio sistema antioxidante controle a produção de radicais livres”, conclui Corrêa. Métodos O processo utilizado para determinar a estrutura das moléculas que compõem as enzimas estudadas é a cristalografia por difração de raios X. No método, a propagação de ondas magnéticas que se chocam com as moléculas cristalizadas permite a identificação precisa da estrutura atômica das mesmas. Segundo Ignez Caracelli, Uso do método docking para a avaliação dos mecanismos de reação em nível molecular é pioneiro jan|abr|2002 Saúde pesquisadora do LaCrEMM, em alguns casos não é possível obter os cristais. Então, é feita a modelagem com base em informações de moléculas similares e em cálculos químicos quânticos. Os dados obtidos são repassados para o computador, onde, por meio do método denominado docking (ancoragem), imagens tridimensionais possibilitam a realização de testes que visam analisar os mecanismos de reação das enzimas quando em contato com os fármacos. A equipe da UFSCar trabalha com os compostos químicos testados biologicamente pelos pesquisadores da UFF, coordenados por Antônio Carlos Freitas. Os experimentos, realizados no Instituto Oswaldo Cruz, verificam o comportamento da Tripanotiona reductase diante de alguns fármacos por meio de testes in vitro diretamente no parasita e, depois, em camundongos infectados. Os resultados desse levantamento são repassados para a equipe do Departamento de Química da UFSCar, que os utiliza como subsídio para os estudos no computador. Cinderela “A hipótese é que os compostos experimentados atuem nas enzimas, causando sua inibição”, explica ZukermanSchpector. O pesquisador acredita, com base no jan|abr|2002 conhecimento disponível até o momento, que os parasitas possam ser destruídos se submetidos a uma “overdose de radicais livres”. Isto porque a Tripanotiona reductase é responsável pelo metabolismo dos radicais livres; ou seja, protege o parasita do stress oxidativo causado pelo excesso dessas substâncias no organismo. Conseqüentemente, sua inibição resulta no aumento da quantidade dos radicais livres e na morte do parasita. “O problema é encontrar fármacos que tenham esse efeito no parasita sem afetar o funcionamento da enzima humana”, explica ZukermanSchpector. Para retratar o desenvolvimento da pesquisa, ele volta aos contos de fadas para buscar uma metáfora. “Podemos dizer que a história é inversa àquela contada na história da Cinderela. Isto porque, no conto, o príncipe encantado tem um sapato e busca desesperadamente descobrir quem é a dona do pé no qual ele serviria. Já no laboratório, o que se tem é o pé, ou seja, a molécula, e a busca é por um sapato que sirva, o que significa a descoberta do composto químico que se encaixa na enzima e inibe sua ação.” Nas enzimas, existem três “pés”, ou seja, três áreas que podem indicar o fármaco “perfeito”.Esses locais são denominados sítios. O Zukerman-Schpector: “Devemos seguir trabalhando para ter uma quantidade de informações suficientemente grande que permita anunciarmos o fim do caminho em direção à cura” primeiro deles é o sítio ativo, que tem uma estrutura similar na enzima humana e na do parasita. Porém, o tamanho e o caráter polar são diferentes. Nesse local, a molécula recebe o substrato por cujo metabolismo ela é responsável (no caso, os radicais livres). O sítio da interface é outra área estudada e fica no espaço entre as moléculas que formam as enzimas. A diferença, nesse caso, entre as duas enzimas, diz respeito à estrutura que liga uma molécula à outra. A terceira e última área é o sítio de NAD, que é similar nos dois casos, não possuindo nenhuma peculiaridade especial. A partir da análise desses sítios, é possível identificar qual das três áreas tem a melhor ancoragem para receber o composto químico capaz de inibir a ação da enzima do parasita. Os mecanismos de reação dos três sítios frente à aplicação dos fármacos estão sendo estudados nas duas moléculas (humana e do parasita), a partir da concepção molecular 53 54 Saúde O que é... A leishmaniose contaminou, em 2000, 39.214 pessoas no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. A doença, no país, manifesta-se de duas formas: visceral e tegumentar americana (LTA). A leishmaniose visceral é causada pelo protozoário Leishmania chagasi, que tem seu principal reservatório nos cães e nas raposas. No Brasil, segundo dados da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), foram registrados, em 2000, 4.492 casos confirmados de leishmaniose visceral. A região Nordeste é a que tem maior incidência de casos, com 3.809, seguida pelas regiões Norte (326), Sudeste (221) e Centro-Oeste (136). Na região Sul, não houve registro da doença. A leishmaniose visceral, também conhecida como calazar, esplenomegalia tropical e febre Dundun, é caracterizada por febre de longa duração e outras manifestações, como perda de peso e aumento do baço e do fígado. Pode evoluir para óbito em um ou dois anos após o aparecimento da sintomatologia. A leishmaniose tegumentar americana (LTA) também é causada por um protozoário do gênero Leishmania, que afeta pele e mucosas dos infectados, com o aparecimento de ulcerações arredondadas com cerca de três a quatro centímetros de diâmetro. O gênero se divide em diferentes subgêneros e espécies. Segundo dados da Funasa, em 2000, foram confirmados no país 34.722 casos de LTA. A região com maior índice da doença é a Nordeste, com 40% dos casos confirmados (13.919). Em relação à doença de Chagas, os dados são mais gerais. Isto porque a Chagas é uma doença crônica, que manifesta a sintomatologia décadas após a infecção inicial. Mesmo assim, segundo dados do Ministério da Saúde, na década de 70 estimou-se que a doença contaminou cem mil pessoas a cada ano no país. Na década de 80, o coeficiente de mortalidade foi de 5,2/100.000 habitantes e, em 1990, esse índice diminuiu para 4,1/100.000 habitantes, o que correspondia a uma média de seis mil óbitos por ano em decorrência da doença. Depois de inquéritos sorológicos realizados sistematicamente entre escolares de 7 a 14 anos de todos os Estados endêmicos no período de 1989 a 1999, o Ministério da Saúde considera a doença controlada no país. Existem 118 espécies conhecidas dos insetos vetores da doença de Chagas, mas apenas 42 foram identificadas até agora no Brasil. Destas, 30 já foram capturadas em ambiente domiciliar e cinco têm grande importância no processo de transmissão da doença ao homem. A doença de Chagas, parasitose exclusiva do continente americano, é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. No Brasil, na década de 70, o risco da transmissão atingia 36% do território do país, o que abrangia mais de 2.450 municípios. Os organismos considerados reservatórios comuns do Trypanosoma cruzi, além do homem, são mamíferos tais como: gato, cão, porco, rato de esgoto, rato doméstico, sagüi, tatu, gambá e morcego, entre outros. Transmissão A leishmaniose visceral e a tegumentar são transmitidas pelo Lutzomia longipalpis, mosquito de pequeno tamanho, cor de palha, com grandes asas e pelos, também conhecido como birigüi ou mosquito palha. A infecção acontece após a picada do mosquito previamente infectado. Segundo o infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marcelo Nascimento Burattini, o mosquito pode ter adquirido a infecção ao picar um cachorro, outro mamífero ou mesmo o homem. Já a doença de Chagas é transmitida através das fezes dos triatomíneos (Tryatominae), popularmente conhecidos como“barbeiros” ou “chupões”.Após picar os vertebrados, os insetos defecam, eliminando formas infectantes do protozoário. As fezes podem penetrar pelo orifício da picada ou também pelo simples ato de coçar o local. Prevenção A prevenção da leishmaniose, segundo Burattini, deve acontecer por meio de três tipos de ações: vigilância epidemiológica ativa e tratamento dos casos, medidas de combate ao vetor e, também, medidas de contenção da doença na população canina. Os casos confirmados de leishmaniose em humanos são tratados com uma droga a base de antimônio pentavalente, que está disponível em duas preparações comerciais.“Com um tratamento eficaz e criterioso, existe a cura da leishmaniose em humanos”, finaliza Burattini. O processo preventivo contra a doença de Chagas envolve uma estratégia de monitoramento entomológico, ou seja, de focos do inseto vetor, para identificar a presença do mosquito transmissor e, assim, definir ações de combate a partir do uso de inseticidas específicos, bem como melhorias habitacionais em áreas endêmicas. jan|abr|2002 LaCrEMM Saúde que compõem uma molécula, da primária à quaternária, o que facilita a correlação entre a prática e a teoria. Nesse contexto, cerca de 300 fármacos já foram testados. Segundo o pesquisador, alguns dos compostos químicos apresentaram atividade promissora contra o parasita, mas ainda é muito arriscado fazer afirmações sobre a cura da doença. “Devemos seguir trabalhando para ter uma quantidade de informações suficientemente grande que permita, aí sim, anunciarmos o fim do caminho em direção à cura”, encerra ZukermanSchpector. Nesta figura, observamos um composto químico no sítio da interface. São destacados apenas os resíduos que estão a uma distância capaz de interagir com o possível fármaco. desenvolvida em computador por meio do método docking. Esse método é considerado pela comunidade científica o único que obtém resultados fundamentados em uma lógica para o processo de ancoragem dos compostos químicos nas proteínas. Entretanto, Zukerman-Schpector afirma que foram necessários anos de trabalho para estabelecer parâmetros que permitissem tirar conclusões consideradas úteis. “É importante salientar que os jan|abr|2002 programas de computador, assim como o papel, aceitam qualquer coisa e sempre nos dão algum resultado, independentemente de serem possíveis”, reforça. Resultados O uso do método docking para a avaliação dos mecanismos de reação em nível molecular é pioneiro. Os pesquisadores da UFSCar conseguem, por meio do método, visualizar todas as estruturas Zukerman-Schpector: “É importante salientar que os programas de computador, assim como o papel, aceitam qualquer coisa e sempre nos dão algum resultado, independentemente de serem possíveis” 55