Agropecuária Técnica • v.27, n.1, 2006 ISSN 0100-7467 — Areia, PB, CCA/UFPB ESTUDO DO PROCESSO DE DIGESTÃO ANAERÓBIA DE RESÍDUOS SÓLIDOS ORGÂNICOS E APROVEITAMENTO DO BIOGÁS1 CRISTINA DE SOUSA FELIZOLA2, VALDERI DUARTE LEITE3, SHIVA PRASAD4 1 2 3 4 Parte da dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, apresentada pelo primeiro autor ao PRODEMA (Programa de Desenvolvimento e Meio Ambiente) da UFPB. Campina Grande, PB Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. [email protected] D.Sc., Professor Titular, UEPB – Centro de Ciências e Tecnologia, Campina Grande, PB. [email protected] D.Sc., Professor Titular, UFCG – Centro de Ciências e Tecnologia, Campina Grande, PB. [email protected] RESUMO A aplicação do processo de digestão anaeróbia tem se intensificado nas últimas décadas para o tratamento de resíduos sólidos orgânicos de diversas origens, como urbana, rural ou industrial, no intuito de desenvolver alternativas tecnológicas de aproveitamento energético e de redução dos impactos ambientais. Neste trabalho foi estudado o processo de digestão anaeróbia de resíduos sólidos orgânicos com baixa concentração de sólidos, em um Reator Anaeróbio Compartimentado (RAC). Este tinha capacidade unitária de 1000 litros e foi operado durante um período de 330 dias, onde foi avaliada a eficiência do processo de bioestabilização. Os resultados obtidos demonstraram que a digestão anaeróbia pode ser aplicada a esse tipo de substrato, na qual ocorreram dias em que a produção de metano no biogás gerado foi de aproximadamente 60%, podendo ser utilizado como fonte alternativa de energia. Palavras-chave: digestão anaeróbia, resíduos sólidos orgânicos, reator anaeróbio compartimentado ANAEROBIC TREATMENT OF ORGANIC SOLID WASTES AND BIOGAS UTILIZATION AB STRAC T The use of anaerobic digestion has developed greatly in the last two decades. In the present investigation, anaerobic digestion was used to treat organic solid wastes from urban, rural and industrial sources, in order to develop technological alternatives of energy production and decrease the environmental impact. This study evaluated the process of anaerobic digestion of solid organic waste with low concentration of solids using a Compartmented Anaerobic Reactor (CAR). The CAR capacity was 1000 liters and it was operated during 330 days to assess the bioestabilization. It was shown that this type of substrate might be submitted to anaerobic digestion, and methane was approximately 60% of the biogas produced in some days, allowing its use as an alternative source of energy. Key words: anaerobic digestion, organic solid wastes, compartmented anaerobic reactor Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 54 Cristina de Sousa Felizola, Valderi Duarte Leite & Shiva Prasad INTRODUÇÃO Atualmente, a maioria das cidades brasileiras gera quantidades de resíduos que vão além da capacidade de coletar e acondicionar racionalmente. Em se tratando dos resíduos sólidos urbanos, segundo os dados do IBGE (2000), a fração que é coletada diariamente no Brasil corresponde a cerca de 228 mil toneladas. Desse contingente, quase sua totalidade é disposta de forma inadequada, como em lixões (21%) e aterros controlados (37%). Cerca de 36% são destinados a aterros sanitários e, apenas 2,8% são tratados em usinas de compostagem. Os 3,2% restantes são destinados a estações de triagem, incineração e outros locais não especificados. Um percentual médio de 55% (percentagem em peso) desses resíduos sólidos urbanos coletados é composto por material orgânico putrescível, passível de fermentação. Quando bioestabilizado em áreas inadequadas, esse material produz o lixiviado, líquido altamente poluente, de cor escura, cheiro forte e alta DQO (Demanda Química de Oxigênio), carreando sólidos em suspensão e microrganismos, alguns patogênicos, contaminando corpos hídricos, o solo e a atmosfera, na medida em que é gerado biogás, cujo componente principal é o gás metano (Leite et al., 2003). Frente a esta problemática, torna-se necessária a implantação de programas de gerenciamento integrado para os resíduos sólidos urbanos nas cidades brasileiras. Ao se introduzirem sistemas de coleta seletiva, tem-se como principal meta a separação de materiais recicláveis e reutilizáveis, como também o material orgânico dos materiais perigosos e dos que ainda não são passíveis de reciclagem. No gerenciamento integrado, as inúmeras formas de beneficiamento e disposição final aplicáveis aos resíduos sólidos ocorrem de forma associada. O material orgânico é destinado ao tratamento aeróbio ou anaeróbio, conforme as prioridades locais (Lima, 2002). Bouallagui et al (2003) comentaram que o tratamento anaeróbio da fração orgânica dos resíduos sólidos urbanos é um processo que tem crescido nos últimos anos. A conversão desses resíduos em metano oferece benefícios ao meio ambiente, como redução dos impactos ambientais e utilização como alternativa energética. O tratamento anaeróbio consiste no processo biológico que ocorre na ausência de oxigênio molecular, onde diversos microrganismos exercem atividades metabólicas para a conversão do material orgânico Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 complexo (carboidratos, proteínas e lipídios) em CH4, CO2 e NH3, traços de outros gases e ácidos orgânicos de baixo peso molecular (Chernicharo, 1997). O tratamento da fração orgânica putrescível, quando realizado em biodigestores, não causa problemas de maus odores e utiliza espaços físicos relativamente pequenos, além de oferecer melhores condições operacionais, se comparados com os aterros sanitários. Uma das desvantagens relacionadas ao uso de biodegestores se refere ao longo tempo necessário para bioestabilização do material. Neste sentido, a utilização de inóculos tem mostrado resultados satisfatórios. Os inóculos geralmente utilizados são lodos de esgoto sanitário e alguns materiais de origem animal, como esterco bovino, que é rico em microrganismos anaeróbios capazes de acelerar o tempo de bioestabilização (Leite et al, 2003). O modelo cinético de Monod tem sido amplamente usado para descrever o processo cinético em digestores anaeróbios. Embora a aplicação da cinética de Monod tenha algum sucesso, alguns pesquisadores encontram dificuldades em aplicá-la em seus sistemas, já que somente é aplicada em condições específicas, especialmente em sistemas que tratam substratos solúveis e finamente dispersos, como por exemplo glicose e ácidos graxos voláteis. Além disso, nutrientes e micronutrientes devem estar presentes em abundância. Ela descreve uma cinética de saturação, na qual todas as substâncias, exceto o substrato limitante, encontramse presentes em abundância. Tratando-se de substratos com presença de material particulado, a equação que melhor descreve a remoção do substrato, obedece a cinética de primeira ordem (Leite e Povinelli, 1999). O objetivo deste trabalho foi estimar os parâmetros cinéticos do processo de bioestabilização anaeróbia de resíduos sólidos orgânicos em reator anaeróbio compartimentado, operando em regime semicontínuo com baixa concentração de sólidos, no intuito de desenvolver alternativas de aproveitamento dos resíduos sólidos orgânicos e sugerir medidas para a redução dos impactos ambientais. MATERIAL E MÉTODOS O trabalho experimental foi realizado nas dependências da Estação Experimental de Tratamento Biológico de Esgotos Sanitários (EXTRABES), da Uni- ESTUDO DO PROCESSO DE DIGESTÃO ANAERÓBIA DE RESÍDUOS SÓLIDOS ORGÂNICOS E APROVEITAMENTO DO BIOGÁS versidade Federal da Paraíba – UFPB, localizada na cidade de Campina Grande, nordeste do Brasil. Foi construído um reator anaeróbio compartimentado de fibra de vidro e assentado numa base metálica, medindo 1,54 m de comprimento, por 0,65 m de altura, com 1 m de largura (Figura 1). Do volume total do reator (1000 L), uma fração em torno de 950 L foi destinada à zona de reação e o restante destinado à acumulação do biogás produzido. O reator foi dividido internamente em três câmaras de iguais dimensões, de modo que se definiu na primeira câmara um ponto de 55 amostragem na parte lateral inferior, com o objetivo de acompanhar o perfil do material sólido ao longo do sentido longitudinal do reator e, na parte superior, em cada câmara foram fixados pontos de amostragem, no intuito de coletar o biogás produzido. Foi utilizado um triturador de resíduos sólidos orgânicos, modelo TRAPP – 2000, recipiente para a preparação do substrato e uma caixa de alimentação acoplada ao reator, para receber o substrato preparado. Na Tabela 1 são apresentados os parâmetros operacionais aplicados ao reator anaeróbio compartimentado. Caixa de alimentação Saída 3ª câmara 2ª câmara 1ª câmara Entrada Ponto 1 Figura 1a. Esquema geral do reator anaeróbio compartimentado. O reator foi alimentado inicialmente com 950 kg de substrato. Aproximadamente 316,6 kg de substrato ficaram retidos em cada câmara do reator por um período de 60 dias. Após este período, o reator passou a receber carga orgânica diária de 15,9 kg de RSO m-3 d-1. Na Tabela 2 são apresentados os principais Tabela 1. Parâmetros operacionais aplicados ao reator Parâme tro s Volume do reator (L) Proporção RSU/Lodo (%) Massa de RSU (kg) Massa de Lodo (kg) Massa Total (kg) Teor de Umidade (%) Carga Orgânica Aplicada (kg de RSO m-3 dia-1) Massa de DQO Aplicada (kg m-3) Tempo de Detenção (dias) Figura 1b. Esquema interno do reator anaeróbio compartimentado. Magnitude 1000 80/20 760 190 950 95 15,9 18,79 60 RSU – Resíduos Sólidos Urbanos; RSO – Resíduos Sólidos Orgânicos; DQO – Demanda Química de Oxigênio. Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 56 Cristina de Sousa Felizola, Valderi Duarte Leite & Shiva Prasad Tabela 2. Dados da caracterização química do substrato Parâme tro s %TU %ST %STF (%ST) %STV (%ST) %NTK (%ST) %DQO (%ST) Relação C:N Alcalinidade Total (g L-1) Ácidos Graxos Voláteis (g L-1) pH Magnitude 95,0 5,0 24,0 76,0 3,5 39,5 12,1 6,6 7,4 5,6 TU – Teor de Umidade; ST – Sólidos Totais; STF – Sólidos Totais Fixos; STV – Sólidos Totais Voláteis; C:N – Carbono:Nitrogênio. parâmetros químicos do substrato utilizado para alimentação inicial do reator. Na Tabela 2, os valores mostram que o substrato continha em média 76% de STV e a DQO foi de 39,5%. A relação C:N do substrato situou-se abaixo da faixa recomendada, que é de 20 a 30. Porém, não foram evidenciados problemas no processo causado pelo excesso de nitrogênio. Segundo Picanço (2004), se essa relação for bem maior que a estabelecida, o nitrogênio será rapidamente consumido pelos microrganismos metanogênicos para suprimir a necessidade de proteína, resultando em baixa produção de biogás. Se a relação for pequena, o nitrogênio será liberado e acumulado na forma de amônia, elevando o pH do sistema, inibindo os microrganismos metanogênicos. Para manter esta relação em nível aceitável, uma das opções bastante utilizada é adicionar lodo de esgotos sanitários ou com esterco bovino aos resíduos sólidos orgânicos, que são materiais de elevada relação C:N. A fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos urbanos utilizados neste trabalho foi proveniente do descarte de alimentos de restaurantes. O resíduo foi coletado em sacos plásticos e transportado para o laboratório, onde foi submetido às operações de trituração, ao ajuste do teor de umidade e à caracterização química. Alcançada a umidade desejada (95%), a caracterização química foi avaliada seguindo os métodos preconizados por APHA (1995). O lodo de esgoto sanitário foi oriundo de sistemas experimentais, como lagoas de estabilização, tanques sépticos e reatores UASB, situados nas dependências da EXTRABES. O ajuste do teor de umidade foi obtido com esgoto sanitário, tanto para o resíduo como também para o lodo. A caracterização química foi posteriormente realizada de acordo com APHA (1995). O substrato utilizado para a alimentação diária do Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 reator foi preparado numa concentração média de 5% (em peso e base úmida) de sólidos totais pela fração orgânica putrescível oriunda de resíduos sólidos urbanos e lodo de esgotos sanitários, na proporção de 80 e 20%, respectivamente. Foram realizadas diariamente análises de sólidos totais nos resíduos sólidos orgânicos triturados, com a finalidade de se ajustar à concentração em torno de 5% de sólidos totais do substrato afluente ao reator. Na avaliação do processo de bioestabilização anaeróbia dos resíduos sólidos orgânicos, foi utilizada a constante cinética de bioconversão de 1ª ordem (k), tomando-se como base a biodegradabilidade do substrato a pH e temperatura constantes, conforme descrito na Equação 1. S = S0 . e-kt (1) Onde: S: massa do substrato no tempo t (kg); S0: massa inicial do substrato (kg); k: constante de biodegradação do substrato (dia-1); t: tempo (dia). As taxas de utilização do substrato foram estimadas através da equação 2. TUS = F . ET (2) Onde: TUS: taxa de utilização de substrato (g dia-1); F: carga orgânica aplicada (g dia-1); ET: eficiência de transformação. O balanço de massa foi aplicado ao reator com a finalidade de verificar a eficiência de conversão do substrato em biogás, a massa residual acumulada e a massa lançada no material efluente. Na estimativa do balanço de massa foi utilizada a equação 3. MAP = MAC + MCB + MCP (3) Onde: MAP: massa aplicada ao reator; MAC: massa acumulada no final do período de monitoração; MCP: massa efluente no lixiviado; MCB: massa convertida em biogás durante o período de monitoração. ESTUDO DO PROCESSO DE DIGESTÃO ANAERÓBIA DE RESÍDUOS SÓLIDOS ORGÂNICOS E APROVEITAMENTO DO BIOGÁS Tabela 3. Parâmetros monitorados, freqüência de análises e métodos analíticos aplicados no sistema experimental Fração Parâmetro Método Freqüência de coleta pH Potenciométrico Semanalmente Afluente e Efluente STV Gravimétrico Semanalmente DQO Titulométrico Semanalmente N-NH4+ Micro Kjeldahl Semanalmente AT e AGV Potenciométrico Semanalmente Fração Gasosa Volume Produzido Hidrômetro Semanalmente CH4 e CO2 Cromatografia gasosa Semanalmente STV – Sólidos Totais Voláteis; DQO – Demanda Química de Oxigênio; AT – Alcalinidade Total; AGV – Ácidos Graxos Voláteis RESULTADOS E DISCUSSÃO pH Na Figura 2 são apresentadas as tendências das evoluções temporais do pH no substrato afluente, no material efluente e na primeira câmara do reator. Os valores de pH no afluente apresentaram variações de 3,2 a 5,6. Essa faixa de pH está relacionada 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) entrada saída 1ªcâmara Figura 2. Comportamento das evoluções temporais do pH no substrato afluente, no material efluente e na 1ª câmara do reator. aos resíduos sólidos vegetais que apresentaram características ácidas. Luna (2003), tratando resíduos sólidos urbanos putrescíveis em biodigestor anaeróbio, estimou valores correspondentes a essa faixa de pH no substrato. No efluente, o pH apresentou valores sempre superiores a 7,0, indicando a presença de mecanismos de tamponação dos resíduos retidos no reator, conferindo estabilização necessária para a produção de metano. Bouallagui et al. (2003) estimaram valores de pH na faixa de 7,0 – 7,4 no efluente, sob diferentes concentrações de Sólidos Totais – ST (4%, 6% e 8%) e diferentes Tempos de Detenção Hidráulica – TDH (12, 15 e 20 dias). Na 1ª câmara, o pH apresentou variações de 6,9 – 8,3 nos primeiros 95 dias de monitoração. Após este período, decresceu para 5,0 – 5,9 até os 180 dias de monitoramento. Aos 182 dias, o material apresentava valores de pH entre 4,0 – 5,0, mantendo-se nesta faixa até o final do tempo de monitoração, totalizando 330 dias. Estas variações deveram-se ao fato de, no interior da primeira câmara do reator, ter ocorrido a predominância das etapas de hidrólise e acidogênese, o que levou a formação dos ácidos graxos voláteis. Na Figura 3 são apresentados os perfis referentes à alcalinidade total. AT (g de CaCO3.L-1) O monitoramento do sistema experimental foi realizado semanalmente no material afluente (substrato), efluente e câmaras do reator, como também no biogás produzido no processo fermentativo. Para os materiais afluente e efluente foram monitorados os parâmetros pH; Sólidos Totais Voláteis (STV); Demanda Química de Oxigênio (DQO); Nitrogênio Amoniacal (N-NH4+), seguindo os métodos preconizados por APHA (1995). As medições da Alcalinidade Total (AT) e Ácidos Graxos Voláteis (AGV) seguiram o método titrimétrico de Dillalo e Albertson (1961). A medição do biogás foi feita através de hidrômetro e a quantificação dos teores de dióxido de carbono e metano, através de cromatógrafo a gás, modelo CG-35. Na Tabela 3 são apresentados os parâmetros monitorados, a freqüência da realização das análises e os respectivos métodos analíticos empregados. 57 8 7 6 5 4 3 2 1 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) Entrada Saída 1ª câmara Figura 3. Perfis referentes à alcalinidade total. A alcalinidade total no afluente apresentou valor médio de 0,6 g de CaCO3 L-1. As variações dos valores desse parâmetro foram de 0 a 2,7 g de CaCO3 L-1, podendo ser explicadas pela heterogeneidade dos resíduos sólidos vegetais. No efluente, a alcalinidade total apresentou variações de 5,4 g de CaCO3 L-1 a 7,1 g de CaCO3 L-1. Os altos valores de alcalinidade no efluente podem estar associados à elevada concentração de nitrogênio apresentada neste material, o que contribui para a formação de alcalinidade por bicarbonato de amônia. A Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 58 AGV (g de Hác.L-1) alcalinidade a bicarbonatos (AB) gerada no reator foi suficiente para manter a estabilidade do processo, apresentando valor de 5,3 g de CaCO3 L-1. A alcalinidade total compreende a alcalinidade a bicarbonatos e aproximadamente 70% a ácidos graxos voláteis, sendo que somente a primeira é utilizada para neutralizar os AGVs (Dillalo e Albertson, 1961). Com relação à 1ª câmara, na medida em que houve a redução do pH, a alcalinidade acompanhou este decréscimo, atingindo valores médios de 2,8 g de CaCO3 L-1 após 190 dias de monitoração. Na Figura 4 são apresentados os perfis dos ácidos voláteis ao longo do período de monitoração do reator anaeróbio compartimentado. 14 12 10 8 6 4 2 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 AGV:AT Cristina de Sousa Felizola, Valderi Duarte Leite & Shiva Prasad 0,18 0,16 0,14 0,12 0,1 0,08 0,06 0,04 0,02 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) Figura 5. Perfil da evolução temporal de AGV:AT. res de 0,005 com um máximo de 0,16 ao longo do tempo de monitoração do sistema experimental. Segundo Chernicharo (1997), a relação AGV:AT deve ser inferior ou igual a 0,3 para que o sistema apresente boa capacidade de tamponação. Observou-se, portanto, a obtenção de valores abaixo do que foi preconizado pelo autor citado, indicando que o sistema apresentou boa capacidade de tamponamento. O comportamento da DQO total durante o período de monitoração do reator é apresentado na Figura 6. Tempo de operação (dias) Saída 1ª câmara Figura 4. Comportamento dos ácidos graxos voláteis. A concentração de AGV no afluente apresentou valor médio de 3,7 g de Hác.L-1 enquanto que no material efluente a concentração média foi de 0,2 g de Hác.L-1. No processo de bioestabilização anaeróbia de resíduos sólidos orgânicos, quando acontece redução da concentração dos ácidos graxos voláteis, proporcionalmente ocorre um acréscimo acentuado do percentual de gás metano no biogás (Leite et al., 2003). Os valores de AGV na 1ª câmara foram consideravelmente maiores do que no material efluente do reator, apresentando valores médios de 8,020 g de Hác.L-1. Gonçalves (2005) estudando o efeito da agitação mecânica na co-digestão anaeróbia de resíduos sólidos orgânicos, observou que mesmo com um aumento da alcalinidade total a partir de 16 dias de operação, não se verificou decréscimo nas concentrações de AGV nem elevação do pH. Assim, os valores de AT foram devidos principalmente à presença de AGV. Os dados da Figura 5 apresentam a tendência da evolução temporal de AGV:AT no material efluente do reator durante o período de monitoração do sistema experimental. A tendência da evolução AGV:AT alcançou valoAgropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 DQO (g de O2.L-1) Entrada 16 14 12 10 8 6 4 2 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) entrada saída 1ª câmara Figura 6. Comportamento das evoluções temporais da DQO total. O acompanhamento da DQO nos sistemas de tratamento biológico serve como base para avaliar a presença e o consumo de matéria orgânica no sistema. A concentração de DQO no afluente apresentou variações de 1,60 g de O2 L-1 a 13,37 g de O2 L-1. No efluente essa variação foi de 0,36 g de O2 L-1 a 4,36 g de O2 L-1, atingindo-se uma eficiência média de remoção de 78%. Para a 1ª câmara, a variação ocorreu de 1,30 g de O2 L-1 a 6,75 g de O2 L-1. Nota-se que a massa de DQO inicialmente hidrolisada na 1ª câmara do reator, passou a ser quantitativamente convertida em metano, resultando numa menor concentração no material efluente. Luna (2003) obteve uma eficiência média de remoção de DQO de 72%, em 140 dias de monitoração do reator anaeróbio compartimentado. ESTUDO DO PROCESSO DE DIGESTÃO ANAERÓBIA DE RESÍDUOS SÓLIDOS ORGÂNICOS E APROVEITAMENTO DO BIOGÁS 60 STV (g.L-1) 50 40 30 20 10 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de operação (dias) Entrada Saída 1ªcâmara Figura 7. Comportamento dos sólidos totais voláteis (STV) ao longo do período de monitoração. A concentração de STV no afluente variou de 15,90 g L-1 a 49,03 g L-1, enquanto que no efluente essa variação foi de 0,30 a 3,26 g L-1, atingindo uma eficiência média de remoção de 97%. Bouallagui et al. (2003) obtiveram eficiência de remoção de sólidos totais voláteis de 75%, produzindo biogás com 65% de metano. As concentrações de STV variaram de 2,95 g L-1 a 23,33 g L-1 na 1ª câmara, apresentando valores superiores aos registrados no efluente. Este fato pode estar relacionado com a quantidade de material particulado que foi degradado em partículas menores e convertido em compostos solubilizados, promovendo dessa forma, alta taxa de hidrólise na 1ª câmara do reator. Na Figura 8 apresentam-se as tendências das evoluções temporais do nitrogênio amoniacal (N-NH4+) no afluente, na 1ª câmara e no efluente do reator. O monitoramento deste parâmetro é importante pois, dependendo da concentração existente no reator, sua presença pode ser benéfica ou limitante da atividade metanogênica. A digestão de compostos ricos em pro- teína conduz à formação do bicarbonato de amônia que atua como fonte de nitrogênio e como tampão para massa de resíduos sólidos orgânicos em estado de bioestabilização. O nitrogênio amoniacal no afluente variou de 0,004 a 0,227 g de N-NH4+ L-1, enquanto que no efluente a concentração variou de 0,277 a 1,170 g de N-NH4+ L-1. O acréscimo de nitrogênio amoniacal pode ser explicado pelo fato de que a maior parte do nitrogênio contido no substrato afluente foi de origem orgânica, como proteínas e aminoácidos. Quando esse nitrogênio começou a ser degradado pelos microrganismos existentes no interior do reator, através das reações de hidrólise que acontecem na primeira etapa do processo de digestão anaeróbia, esse foi convertido em amônia. Lay et al. (1997), tratando resíduos sólidos orgânicos e lodo de esgoto em digestores anaeróbios de batelada, estudaram os efeitos da concentração do N-NH4+ na atividade metanogênica. Numa ampla faixa de pH variando de 6,5 – 8,5 a atividade metanogênica decresceu com o aumento da concentração do N-NH4+, reduzindo em 10% quando as concentrações variaram de 1760 – 3720 mg de N-NH4+ L-1. Em concentrações variando de 4090 – 5550 mg de N-NH4+ L-1, a atividade metanogênica decaiu em 50% e quando as concentrações apresentaram-se entre 5880 – 6600 mg de N-NH4+ L-1 a atividade metanogênica decaiu para zero. Na Figura 9 é apresentada a composição percentual do CH4 no biogás produzido durante o período de monitoração. 70 60 50 %CH4 Na Figura 7 apresentam-se as tendências das evoluções temporais de STV durante o período de monitoração do sistema experimental. 59 40 30 20 10 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) N-NH4+ (g.L-1) 1,4 1,2 1ª Câmara 2ª Câmara 3ª Câmara Figura 9. Composição percentual do CH4 presente no biogás. 1 0,8 0,6 0,4 0,2 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) Entrada Saída 1ªcâmara Figura 8. Tendências das evoluções temporais do nitrogênio amoniacal. O percentual médio de gás metano foi de 30%, 45% e 50% nas 1ª, 2ª e 3ª câmaras respectivamente. As baixas produções de metano na 1ª câmara do reator podem ser explicadas devido às altas concentrações de AGV, conforme observado na Figura 4. De acordo com a redução nas concentrações de ácidos graxos voláteis ao longo do período de monitoração nas 2ª e 3ª câmaAgropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 60 Cristina de Sousa Felizola, Valderi Duarte Leite & Shiva Prasad ras do reator, verifica-se que houve um crescente percentual de metano na composição geral do biogás nessas respectivas câmaras, cujas produções atingiram cerca de 66% de CH4 no dia 270. Para avaliar o desempenho do processo de bioestabilização da fração orgânica do substrato, foi realizado um estudo do perfil da relação CH4:CO2 em função do tempo de operação do reator conforme apresentado na Figura 10. Quando esta relação apresenta valor médio de 1,5 o biogás produzido pelo processo de bioestabilização do material orgânico contém em média 60% de metano e 40% de dióxido de carbono (Leite, 1997). Na Figura 10 observa-se que a relação que mais se aproxima deste valor é encontrada na 3ª câmara, dado o percentual médio de metano produzido nesta câmara ter atingido 50%. 2,5 CH4:CO2 2 1,5 1 0,5 0 0 30 60 90 120 150 180 210 240 270 300 330 Tempo de Operação (dias) 1ª Câmara 2ª Câmara 3ª Câmara Figura 10. Perfil da relação CH4:CO2 em função do tempo de operação. CH4 22,1% CO2 77,9% Na Figura 11 é apresentado um modelo das diversas frações de Carbono Orgânico Total (COT), do qual era composto o balanço de massa durante o período de monitoração. O reator foi alimentado com 5058 kg durante os 330 dias de monitoração. Dessa massa, cerca de 192,2 kg se referiram aos STV. A massa de COT aplicada correspondeu a 105,78 kg, onde 97% dela ficaram retidos no reator, 2% foi descarregado sob a forma de lixiviado e apenas 1% foi transformado em biogás. Os percentuais médios de CH4 e CO2 no biogás produzido, durante o período de monitoração, foram de 22% e 78%, respectivamente. Na Tabela 4 são apresentadas as constantes cinéticas pontuais, com as respectivas médias, os desvios padrões e as variâncias estabelecidas em relação às concentrações de DQO (g L-1), STV (g L-1) e N-NH4+ (g L-1) para o período de monitoração do reator, de acordo com a equação da cinética de 1ª ordem. Analisando os dados da Tabela 4, verificou-se que o valor médio da constante cinética de bioconversão para DQO foi da ordem de 1,1.10-2 dia-1, enquanto a taxa de bioconversão para STV foi de 2,9.10-2 dia-1, este conferindo maior velocidade de conversão, quando comparado a DQO, visto que quanto maior a constante de bioconversão menor o tempo necessário para bioestabilizar o material orgânico no reator. Massa de RSO 5.058 kg 5% ST Massa de RSO em base seca 252,9 kg Biogás 222 g 76% STV Massa de COT transformada 840 g 1% Massa de COT aplicada 105,78 kg 2% Massa de COT no efluente 2,0 kg Figura 11. Modelo esquemático do balanço de massa para COT durante o período de monitoração. Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 97% Massa de COT acumulada 103,94 kg ESTUDO DO PROCESSO DE DIGESTÃO ANAERÓBIA DE RESÍDUOS SÓLIDOS ORGÂNICOS E APROVEITAMENTO DO BIOGÁS Tabela 4. Constantes cinéticas pontuais, médias das constantes pontuais, desvio padrão e variância Te mpo de Ope ração (dias) 60 74 110 147 184 221 258 294 330 Média das constantes pontuais (k) Desvio padrão Variância Co nstante s ciné ticas po ntuais (k) STV (dia-1) N -N H 4-1 (dia-1) DQO (dia-1) -6,5 x 10-2 1,3 x 10-2 -3,5 x 10-2 2 2 -1,6 x 10 -5,3 x 10 1,9 x 10-2 3 2 -3,4 x 10 -3,6 x 10 1,4 x 10-2 -1,3 x 10-2 -2,9 x 10-2 1,1 x 10-2 -1,5 x 10-2 -2,2 x 10-2 1,4 x 10-2 2 2 -1,2 x 10 -1,8 x 10 9,6 x 10-3 -4,1 x 10-3 -1,4 x 10-2 1,2 x 10-2 -5,1 x 10-3 -1,1 x 10-2 1,1 x 10-2 -3,7 x 10-3 -9,5 x 10-3 6,2 x 10-3 DQO ST V N -N H 4+ -1,1 x 10-2 dia-1 -2,9 x 10-2 dia-1 1,2 x 10-2 dia-1 9,9 x 10-3 9,9155 x 10-5 1,9 x 10-2 3,8 x 10-4 3,5 x 10-3 1,6 x 10-5 DQO – Demanda Química de Oxigênio; STV – Sólidos Totais Voláteis Leite (1997), tratando anaerobiamente resíduos sólidos urbanos inoculados com lodo de esgoto industrial, obteve uma constante de bioconversão média de 8,7.10-3 dia-1. Para o N-NH4+, o valor da constante foi de 1,2.10-2 dia-1, assumindo uma constante de formação, em razão da maior parte do nitrogênio contido no substrato afluente ser de origem orgânica. Ao ser degradado pelos microrganismos, através das reações de hidrólise, ocorre a geração de N-NH4+ no reator. Luna (2003) obteve valores da constante de bioconversão para DQO de 1,2.10-2 dia-1, 2,8.10-2 dia-1, 3,3.10-2 dia-1 e 4,9.10-2 dia-1, enquanto que para STV os valores das constantes foram de 1,9.10 -2 dia-1 , 3,4.10-2 dia-1, 4,0.10-2 dia-1, 5,4.10-2 dia-1, respectivamente na primeira, segunda, terceira e quarta fases, verificando-se que os dois parâmetros estudados apresentaram uma maior constante de bioconversão na quarta fase de monitoração, indicando que existe uma relação direta entre a constante de bioconversão e a carga orgânica aplicada. Na Tabela 5 são apresentadas as taxas de utilização de substrato do reator estudado. Analisando os dados da Tabela 5, observa-se que as taxas de utilização de resíduos sólidos orgânicos apreTabela 5. Taxas de utilização do substrato DQO STV Parâme tro F (g DQO dia-1) TUS (g DQO dia-1) F (g STV dia-1) TUS (g STV dia-1) Re ato r Anae ró bio Co mpartime ntado 100,14 78,71 525,41 509,91 DQO – Demanda Química de Oxigênio; STV – Sólidos Totais Voláteis 61 sentaram valores bastante expressivos, o que correspondeu a aproximadamente 78,6% da carga orgânica aplicada de DQO e cerca de 97% da carga orgânica aplicada de STV. CONCLUSÕES Frente a análise dos dados deste trabalho, pode-se concluir que: • o processo de tratamento anaeróbio de resíduos sólidos orgânicos com baixa concentração de sólidos desponta como uma alternativa tecnológica para o tratamento integral desses tipos de resíduos, fornecendo como produtos o biogás e composto bioestabilizado; • a eficiência de remoção média de STV durante o período de monitoração do sistema experimental foi de 97%, podendo ser atribuída à configuração do reator compartimentado, que possibilitou maior contato da massa de resíduo com a massa microbiana. • o substrato constituído por resíduos sólidos vegetais e lodo parcialmente bioestabilizado produziu biogás com valores próximos de 66% de gás metano na segunda e terceira câmara do reator. • as constantes cinéticas de 1ª ordem referentes a DQO e STV foram respectivamente 1,1.10-2 dia-1 e 2,9.10-2 dia-1, conferindo maior velocidade de bioestabilização para STV. Em relação ao N-NH 4+, assumiu uma constante de formação de 1,2.10 -2 dia -1, devido à geração de N-NH4+ no reator. AGRADECIMENTOS Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o apoio financeiro concedido para a realização deste trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APHA, AWWA, WPCF. Standard Methods for the Examination of Water and Wastewate. 18.ed. Washington, 1995. 1193p. Agropecuária Técnica, v.27, n.1, p.53–62, 2006 62 Cristina de Sousa Felizola, Valderi Duarte Leite & Shiva Prasad BOUALLAGUI, H.; BEN CHEIKH, R. ; MAROUANI, L.; HAMDI, M. Mesophilic biogas production from fruit and vegetable waste in a tubular digester. Bioresource Technology, Tunis, v. 86, n.1, p.85- 89, 2003. CHENICHARO, C.A de L. Reatores anaeróbios. Belo Horizonte: UFMG, 1997. 245p. DILALLO, R.; ALBERTSON, O.E. Volatile acids by direct titration. Journal of Water Pollution Control Federation, New York, v.33, n.4, p.350-364, 1961. GONÇALVES, S.C. 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