Análise Crítica-Literária e Tradução da Carta Circular da Igreja de Esmirna Sobre o
Martírio de São Policarpo: a mais antiga narrativa do gênero
Elias Santos do PARAIZO JÚNIOR
Especialista pela UFPR-UMESP
[email protected]
A carta que a Igreja de Esmirna enviou à de Filomélio, narrando este martírio, é um
documento de meados do séc. II (156 d.C.); a mais antiga narrativa de martírio que se
conhece; transcende em importância, razão pela qual se procura evidenciar que nenhum
estudo da Igreja pode ser completo sem a discussão das Atas dos primeiros mártires. Há
muito, eruditos têm confiado na monumental coleção destes Atos do literato marista – Thierry
Ruinart, e sua Acta primorum martyrum sincera (1689, 1801 e 1859); ao mesmo tempo, com
a grande coleção de vitae e passiones dos Jesuítas em Antwerp (1643) sob a orientação do
estudioso Jean Bolland, foi feito muito para estabelecer realmente os textos dos Atos. Outras
mais recentes edições encontram-se debaixo deste escopo. Porém, não é muito grandiosa a
tarefa de justificar a necessidade de novas edições críticas e traduções para os Atos e Relatos
de Martírio, ferramentas tão necessárias a todos os estudantes do império romano e da história
do cristianismo primitivo. As palavras de Hebert Mussurilo, expert desta questão, são:
“Nossas pesquisas em Grego e Latim amplamente dispersas, e a existência de diferentes
recensões adicionais torna delicado o surgimento de alguma edição; comentários e traduções
são esparsas ou não existem” (1972, p.v.). Não é possível embarcar em uma nova tradução
sem antes chamar as palavras de Edward Gibbon. Os tempos mudaram desde que ele escreveu
A negligência total da verdade e provavelmente destes martírios primitivos foi
ocasionada por um grande erro natural. Os escritores eclesiásticos dos quartos
e quintos séculos atribuíram aos magistrados de Roma o mesmo ardor
implacável e empenho severo com o qual encheram seus próprios peitos de
encontro aos heréticos ou aos idolatras de suas épocas (1952, p. 467).
Certamente a críticas de Gibbon, impaciente com o estado da erudição contemporânea,
acelerou o surgimento da história na Igreja primitiva baseada em fundamentos mais
adequados.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
A Literatura da Era das Perseguições
Os extratos literários, do período das perseguições que chegaram até nós, datam de
meados do séc. II até começo do séc. IV. Uma literatura que sofreu uma considerável
alteração em decorrência das novas condições de vida. Os escritos da era apostólica e subapostólicas haviam se circunscrito, sobretudo a cultivar e a comunicar fielmente a mensagem
de Jesus, bem como as instituições e preceitos indispensáveis para a vida cristã das
comunidades e indivíduos. A aceitação de relações mais intensas, inclusive literárias, com o
ambiente não-cristão parecia desnecessária com a expectativa do retorno, < p a r o u s i a >
do Messias para breve. Limitavam-se à vida diária, à missão e à superação espiritual das
perseguições, que sempre de novo eclodiam, e que eram interpretadas como provações pelas
quais a Igreja tinha que passar. Por outro lado, também o ambiente secular ou pagão não teve
ocasião de ocupar-se mais a fundo com o cristianismo, sob o aspecto intelectual e literário.
Era tido como um dos muitos grupos religiosos do Império Romano, que não cumpria
qualquer papel importante na vida pública, e que na visão do povo muitas vezes nem mesmo
se distinguia do judaísmo onde nascera.
Mas cem anos após a morte e ressurreição de Jesus os cristãos, enfim, tiveram que
reconhecer que a < p a r o u s i a > do Senhor haveria de protelar-se por um tempo indefinido,
e que, por conseguinte, fazia-se imperioso estabelecer em caráter permanente o cristianismo
na terra. Ao mesmo tempo o êxito do trabalho missionário fizera acrescer de tal modo o
número dos cristãos nas cidades que sua presença já não podia passar despercebida, passando
aos poucos a abarcar também todas as camadas da população, não apenas os que não
possuíam formação e que eram mais fáceis de seduzir, como de início gostava de apresentálos a crítica secular mais erudita. Pelo contrário, os cristãos instruídos inseriram na Igreja sua
erudição filosófica e retórica, com ela começando a perpassar sua fé e a fundamentar e
defender sua racionalidade na altercação com as religiões tradicionais. Suas declarações,
apesar de afirmações em contrário, foram levadas bastante a sério pelos antagonistas, os
intelectuais pagãos, e também consideradas dignas de uma resposta literária. Frontão de Cirta,
o mestre do imperador Marco Aurélio (161-180), fez um discurso público contra os cristãos.
O sofista Luciano de Samósata, em sua sátira De morte Pelegrini, ridicularizou os cristãos por
volta de 170 por causa de seu amor ao próximo e de sua disposição ao sacrifício. O platônico
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
215
alexandrino Celso compôs por volta de 1781 um escrito polêmico com o nome Ἀληθὴς
Λόγος contra os cristãos, a que Orígenes respondeu com seu grande tratado Contra Celsum.
A literatura apologética cristã tinha, além disso, que rebater as agressões práticas do
estado pagão contra a Igreja, isto é, as perseguições, não somente evidenciando o caráter
racional e inofensivo do cristianismo, mas também fundamentando sua exigência exclusiva de
verdade e recomendado seu valor único para o estado, inclusive com base no comportamento
modelar de seus seguidores. De meados do séc. II até inícios do séc. IV as perseguições e a
discussão do cristianismo com o ambiente pagão marcaram de maneira tão intensa o conjunto
da literatura cristã, que este período pode ser resumido sob este conceito, mais histórico que
literário, da “literatura da era das perseguições”. Seu tema passou a ser os processos contra os
cristãos, em parte como autos judiciais e em parte também como relatos e narrativas a seu
respeito. As grandes perseguições a partir de meados do séc. III representavam um grave
problema para a vida da Igreja, e também um problema teológico, que precisava ser
ponderado e respondido nos tratados que com ela se ocupava.
Evidentemente, a penetração da formação filosófico-retórica da Antigüidade na Igreja
configurou não apenas o seu trabalho para fora, mas também o seu desenvolvimento interno,
sua exegese, pregação e dogmática, que passou por um primeiro período de florescimento. Se
os livros bíblicos ainda podiam ser acusados pela forma e estilo literário, agora os escritos
cristãos evoluíram para verdadeiras obras-primas, de acordo com padrões da arte literária
antiga. Disto fazia parte também a discussão interna que se cristalizou por escrito sobre o
caminho eclesiástico e teológico a ser trilhado pelo cristianismo em expansão, isto é,
esclarecer o que na Igreja podia ser acolhido como teologia válida < o r t o d o x i a > e o que
deveria ser refutado como herético < h e t e r o d o x o >. Para este abstruso processo de
inculturação do cristianismo à cultura grega antiga foi cunhado, por volta da virada dos sécs.
XIX para XX, o conceito “helenização” do cristianismo, se bem que no sentido de uma
inadmissível superestrutura e falsificação da doutrina original de Jesus tal como se havia
cristalizado nos escritos bíblicos. Mesmo sem podermos entrar mais a fundo nos complicados
problemas de hermenêutica, pode-se, no entanto articular que a pesquisa mais recente
demonstrou com clareza que tal processo era e é inevitável para a expansão universal do
cristianismo, que ele nunca permanece unilateral e que não ocorreu exclusivamente na era
1
Esta datação tradicional e amplamente aceita baseia-se em conclusões, sendo também posta em dúvida na era
moderna.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
216
helenista, mas ocorre todas as vezes que a mensagem cristã é traduzida para outra linguagem
e para outra cultura. O que nisto se perde e o que se aufere para a fé é difícil de ser
corretamente avaliado.
Diante deste pano de fundo, a literatura cristã dos sécs. II e III pode ser qualificada
nestes dois grandes grupos: o do predomínio exclusivo da literatura grega - κοινὴ διάλεκτος
(língua comum) até o final do séc. II, e o dos inícios da literatura latina cristã na África do
Norte e em Roma a partir do final do séc. II. De acordo com o conteúdo e os gêneros literários
pode-se distinguir: escritos apologéticos, os martirológicos, a literatura teológica através de
tratados, comentários, pregações etc., onde um < t o p o s > literário cabe às discussões em
torno da fé ortodoxa, bem como obras que visam francamente as necessidades práticas da vida
cristã das comunidades, como cartas, escritos litúrgicos, tratados morais, etc.
Gênero Literário: Relatos de Martírio
Passam a existir a partir do séc. II, sob coação direta das perseguições contra cristãos, os
escritos sobre os mártires, que podem ser divididos em três grupos: Acta, Passiones /
Martyria e Legendae. Os < Acta > são atas (protocolos) do processo concretizado
normalmente diante do procônsul, glosadas pelos escrivões do tribunal e reproduzindo ao pé
da letra o interrogatório. Isso não exclui que mais tarde fossem completadas ou refundidas por
um relator cristão, pois elas se preservam na verdade apenas na tradição da Igreja. Nas <
Passiones / Martyria >, pelo contrário, são autores cristãos que narram – muitas vezes com
interpretação decididamente teológica – os últimos dias e a morte dos mártires. As <
Legendae > contêm um cerne histórico, mas em volta desse escol há muitos elementos da
fantasia piedosa; constituem a origem da literatura hagiográfica, mas não precisamos falar
delas aqui, uma vez que surgem só a partir do séc. IV.
As Atas dos mártires em regra começam informando a data, o nome do juiz e dos
acusados como também a acusação. A elaboração cristã do quadro revela-se nas
caracterizações das pessoas como “santos mártires”, “imperadores iníquos”, ou na
qualificação das leis como “injustas”. O procônsul abre o interrogatório indicando a
identidade dos acusados, e estes às vezes não dão o seu nome civil, mas apenas professam:
“cristianus / a sum” como o único e verdadeiro nome de um cristão. O processo não discute a
substância do cristianismo, mas procura provar o pretenso crime dos cristãos, ou exige
simplesmente que se jure pelo gênio de César e se ofereça um sacrifício imprecatório <
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
217
supplicatio > por ele; em suma, voltar à religião tradicional e racional dos romanos. O
procônsul procura persuadir disso os réus, lembrando-lhes sua juventude ou sua idade
adiantada, suas obrigações familiares, etc., prometendo riqueza, honras e cargos ou
ameaçando-os com torturas e a morte. Comumente, tudo isso não obtém o efeito esperado; ao
contrário, os mártires, por sua vez, tomam a iniciativa e procuram dar testemunho de sua fé
cristã, ou advertem o juiz e o público com a punição de Deus. No final, ficam apenas a
confissão “cristianus / a sum” e a abdicação do culto pagão. É apregoada então a pena de
morte. Isso se dá < ex tabella >: o julgamento é lido de uma tabela. Ou seja, a sentença já
estava preparada e estabelecida básica e anteriormente.
Os Martyria e Passiones reelaboram os subsídios dos Acta; agora, porém fala um autor
cristão, que apresenta todo o episódio: as circunstâncias da prisão, a conjuntura do cárcere, a
caracterização de pessoas, a descrição das torturas e dos milagres que ocorrem nessas
ocasiões. São sobrepostas reflexões teológicas e espirituais, cita-se a Bíblia e torna-se claro
acima de tudo o desígnio da tradição: edificar os crentes e fortalecer aqueles que também
tenham que padecer o martírio mais tarde.
Advém uma qualidade peculiar do gênero literário dos relatos de mártires: enquanto
todos os demais escritos dos sécs. II e III podem ser classificados segundo os diferentes
grupos lingüísticos e autores de acordo com seus vínculos histórico-literários, os relatos de
mártires formam uma tal unidade global de línguas e autores que devem ser tratados
conjuntamente sem considerar a língua ou o autor.
As “Atas Pagãs de Mártires”
Deste modo como as cognomina Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (1898) – não
podem ser equiparadas às Atas cristãs de mártires e não são antecessoras ou análogas no
paganismo. Trata-se antes de 22 fragmentos de papiro dos sécs. I-III, que constituem escritos
de propaganda da resistência de cidadãos gregos de Alexandria contra a dominação romana.
Assemelham-se às Atas cristãs de mártires unicamente por escolherem a forma protocolar
judicial e informarem sobre a oposição à violência do Estado, estando dispostos a morrer em
nome de um ideal. Quando muito tiveram alguma acepção para o cristianismo na medida em
que talvez alguns cristãos se inspiraram em seus modelos, como Tertualiano2 que apresenta
2
E.g. Tertuliano em Apologeticum 50,5-9.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
218
também heróis não-cristãos como dignos de serem imitados. Mas já Justino3, Clemente de
Alexandria4 e João Crisóstomo5 salientam claramente as diferenças – não se trata
propriamente de mártires da fé e seus motivos são inteiramente diferentes dos motivos
cristãos – de modo que é preferível dar a esse gênero literário o título neutro de Acta
Alexandrinorum.
Policarpo e o seu Contexto Histórico
Policarpo que nasceu em uma família cristã da alta burguesia no ano 69, em Esmirna,
cujo nome significa “muito fruto”, chegou ainda a ver e a ouvir, na sua juventude, o apóstolo
João, que o investiu no cargo de bispo de Esmirna6, onde se conservou por mais de cinqüenta
anos. Foi mestre de Irineu, o mais importante erudito cristão do final do séc. II. Se pudermos
acreditar em Tertuliano7 e Ireneu8, Policarpo foi designado para seu ofício de bispo pelos
apóstolos, que o tinham conhecido ainda como infante.
Pelo ano de 154 ou 155, esforçou-se por obter um acordo, em Roma, com o papa
Aniceto, a respeito do dia e da celebração litúrgica da festa da Páscoa; não se conseguiu, nada
obstante, um entendimento entre ambos9; a Igreja de Roma celebrava a festa sempre no Dom.,
ao passo que as igrejas da Ásia a celebravam segundo o “uso antigo”, isto é, a 14 de Nisan
(calendário judaico), pouco importando o dia da semana em que caísse. O bispo de Esmirna e
o bispo de Roma permaneceram firmes nas respectivas posições, mas “em paz”. Quando
Marcião, o heresiarca, destituído por seu bispo, perguntou a Policarpo se o conhecia,
respondeu: “Sim; eu te conheço. És o primogênito de Satanás"10. Ainda estando em Roma,
Policarpo conheceu alguns hereges da seita dos Valencianos.
3
E.g. Justino em 2 Apologia 10,8.
4
E.g. Clemente de Alexandria em Stromateis IV, 17,1-3.
5
E.g. João Crisóstomo In sanctum Babylam 7: SC 362,136ss.
6
Cf. Tertuliano De praescr. 32,2; Euzébio h.e. 5.20,5ss.
7
Cf. Tertuliano De praescr. 32,2.
Cf. Ireneu Her. 3.3,4.
8
9
Cf. Euzébio h.e. IV, 14,1.
10
Ireneu Haer. 3,3.4.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
219
Sua morte se deu em um local que era palco de muitas mortes de cristãos: o estádio, que
tinha um caráter muito importante para a civilização romana. Eram centros da vida social dos
romanos, e fonte de lazer e diversão para eles. Onde quer que dominassem uma cidade,
construíam um estádio. Era um símbolo do poder e engenhosidade dos romanos. Eles
adoravam o caráter espetaculoso das apresentações, em especial no que se refere às mortes
ocorridas durante os espetáculos. Mas não eram só nos estádios que os cristãos eram mortos.
Apesar de muitas vezes a perseguição ser comandada pelos próprios líderes do Império,
outras vezes ocorriam perseguições conduzidas por cidadãos comuns, entre eles muitos
judeus, que não concordavam com sua pregação que, entre outras coisas, pregava o abandono
do culto aos deuses. Estima-se que até o final do séc. II cerca de 80 mil cristãos foram mortos.
Mas, como declarara Tertuliano: “o sangue dos mártires é semente de cristãos”. Quanto mais
cristãos eram mortos, mais a igreja crescia. Os relatos de martírio registram o momento em
que se dá o embate civilizacional entre a ‘ordem sacrifical antiga’ e a ‘ordem cristã’, do qual,
não por acaso, o cristianismo sai vitorioso na exata medida em que abdica da guerra.
A sociedade e a religião estiveram, até o advento do Cristianismo, fundadas no
mecanismo do bode expiatório e na possibilidade de sua repetição simbólica no rito sacrifical.
O holocausto do bode expiatório, neste aspecto, surge da necessidade de descarregar a soma
dos antagonismos e da violência social generalizada sobre uma vítima inerme, a qual, incapaz
de retaliação, porá fim com sua morte ao ciclo de vinganças mútuas. Uma vez sacrificada, a
vítima é convertida em objeto de adoração, e a sua memória, na forma do rito e do mito,
proverá à comunidade meios simbólicos de administrar a violência, pelo menos enquanto não
se produza uma nova crise mimética. Com o advento do cristianismo, o mecanismo sacrifical
é revelado e inutilizado. Doravante o conflito mimético, em vez de mediatizado pela
coletividade, é apresentado à consciência, na qual adquire sentido moral e ascético. O que
diferencia o Evangelho dos mitos antigos, ou do mito como tal, é a revelação cristã acerca da
inocência da vítima e da culpa da coletividade homicida, numa inversão simétrica do
mecanismo do bode expiatório.
No séc. II o Império Romano estava em seu apogeu. O imperador Trajano havia
estendido a fronteira do Império à sua máxima extensão. Adriano, seu sucessor, conservou a
enorme área do império e reconheceu que não valia a pena estendê-lo ainda mais. Ao tempo
do martírio de Policarpo o imperador de Roma era Antonino Pio — sucessor de Adriano,
tendo sido adotado como filho por ele —, o qual reinou de 138-161 e não foi um imperador
de grandes realizações.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
220
A cidade de Esmirna (atual Izmir, na Turquia) está localizada junto à costa do mar Egeu,
a cerca de 450 km ao sudoeste de Istambul. Esta região, na época do Império Romano, era
conhecida como Ásia Menor. Esmirna foi fundada por volta do ano 3000 a.C. e foi anexada
ao Império Romano no ano de 85 a.C., após o final da Primeira Guerra Mitridática (89-85
a.C.). Fazia parte da província romana da Ásia. A primeira evidência do cristianismo em
Esmirna é a referência feita à Igreja nela estabelecida no livro do Apocalipse (2.8-11).
Análise e Crítica-Literária da Carta Circular da Igreja de Esmirna
Esta é a mais antiga narrativa da paixão e morte de mártir que se tenha conservado. É a
primeira obra a usar este título “mártir” para designar um cristão morto pela fé. Ela sofreu
influência de narrativas análogas, escritas no judaísmo como II e IV Macabeus, e influenciou
por sua vez o desenvolvimento deste gênero literário entre os cristãos. Em substância, é
autêntica e fidedigna; reveste a forma de epístola da comunidade de Esmirna à Igreja de
Filomélio, uma pequena cidade da Psídia localizada próxima a fronteira com a Frígia e cerca
de 400 km a leste de Esmirna (ambas na Turquia asiática). Foi escrita pouco depois da morte
de Policarpo por um certo Marcião, não o gnóstico (cap. 20). Posteriormente, vários
apêndices foram arraigados nos últimos capítulos.
O autor, rememorando a paixão de Cristo, delineia o testemunho cruento do bispo,
citando também a réplica dada ao procônsul Estácio, quando lhe ordenou amaldiçoar a Cristo:
“Há oitenta e seis anos que O sirvo; jamais ele me fez mal algum; como poderei eu blasfemar
contra meu Rei e Salvador?”11 No cap. 14, o narrador põe nos lábios do mártir, atado na
fogueira, uma oração que é de extraordinário valor para a história das antigas orações cristãs.
Visto que as chamas da fogueira se abaularam em redor do mártir à guisa de velas de um
navio, o confector transpassou-o com o punhal.
Tal sucedeu-se provavelmente aos 22 de fevereiro de 156. Um número menor de
estudiosos advoga na atualidade que o martírio deu-se no “grande dia de sábado”, isto é, um
domingo (para a significação desta expressão)12; o dia 23 de fevereiro de fato caiu num
domingo como advoga Euzébio13 (167) durante o reinado do imperador Marcus Aurelius.
11
Tal frase deu na arena, lugar dos jogos olímpicos, um dos maiores teatros abertos da Ásia Menor, parte de cuja
construção permanece até hoje.
12
Cf. Epifânio. Pan. expos fidei 24.
13
Cf. Euzébio h.e. XV.1.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
221
Porém, a maioria dos estudiosos pensa que Euzébio estava mal informado, por não ter
consciência do material contido no cap. 21. Mas a correta solução a partir da data mencionada
cap. 21 (se for aceita como histórico), e também L. Statius Quadratus for o consul ordinarius
em 14214, então é impossível de se acreditar que por mais de 25 anos tenha permanecido no
consulado. Portanto, a data mais plausível é, e.g. 155-56. Há outras discussões em andamento
também e os dados contidos no relato do martírio de Policarpo de Esmirna não permitem
determinar com exatidão a data de sua morte15.
O término da carta retoma a idéia do começo, terminando com um louvor ao mártir e a
exortação a que seu exemplo seja seguido, < imitatio > (19-20). Conzelmann (1987, p.v.)
atribui as informações sobre a data e a oração anexadas no final (21-22) ao assim chamado –
por Campenhausen (1957, p.v.) – “redator do Evangelho” (Evangeliumredaktor). Segundo
Campenhausen tratar-se-ia de início de um relato sobre doze mártires, em que o Martyrium
Polycarpi era apenas o ponto culminante. Depois o redator teria destacado Policarpo e
moldado a obra segundo sua concepção teológica própria: a < imitatio Christi > segundo o
Evangelho. Por outro lado, Dehandshutter (1979, p.v.), apoiado em Buschmann (1994, p.v.),
defende a unidade redacional de todo o texto, no qual o cap. 21 seria um acréscimo
relativamente antigo.
No comportamento de Policarpo, nos fatos milagrosos ocorridos no martírio, bem como
na interpretação teológica e espiritual dos fenômenos ocorridos, podemos diagnosticar os
rudimentos típicos dos relatos de martírio. Todavia, deve-se considerar como fato fora do
comum o tom densamente antijudaico (12.2; 13.1; 18.1), que de resto ocorre apenas no
martírio de Piônio16. São dignos de nota os pressupostos trinitarianos que abrolham no cap. 14
e em outros lugares.
Talvez a porção mais significativa desse opúsculo seja o fato de que ele nos informa
sobre as obras e as atitudes dos cristãos que tiveram que sofrer o martírio no começo do séc.
II. Um desses cristãos, Germânico, sofreu uma morte heróica (3); mas um outro, Quinto,
apostatou. Este era menos corajoso do que pensava. Denunciou-se como cristão, diante das
autoridades, em um momento impetuoso; mas, chegada a hora de enfrentar a morte, perdeu a
14
Cf. PIR iii. 640.
15
Cf. cap. II.I.C.
16
Pionius 4.II ss.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
222
bravura (4). Este incidente foi usado como lembrete, feito aos cristãos em geral, para que não
se autodenunciassem; que a natureza seguisse seu próprio curso (4).
Quanto ao estilo do corpo do texto (1-20) é puramente funcional e ao mesmo tempo
coloquial; ocasionalmente homilético (2.1-2, 22.1) com fortes reminiscências dos Evangelhos,
por isso von Campenhausen sugere a teoria do Redator do Evangelho. Não há razões para
conjeturar que o chefe de polícia – Herodes, na prisão de Policarpo é uma imitação do
martírio de Jesus (6.2). Poderia se supor que eles estavam agindo pelas diretrizes em vigor
com Plínio, reescritas pelo Imperador Trajano17 de acordo com (11.1) que trata da punição
com feras não ser possível. O autor do Martírio parece acreditar na teoria da conspiração do
demônio (17.1); também ele subscreve uma dimensão sobrenatural e bíblica da história,
referindo a profecias de Policarpo (5.2; 16.2). Quando o fogo assume o formato de uma vela
de navio – simbolicamente remete ao barco de Pedro e o trabalho do qual gostava (15.2); ou
ainda quando fala do “ouro e prata” remete a freqüente linguagem bíblica (Pv 17.3; Ap. 1.15 e
outros). De resto há uma relevante diferença em Euzébio que omite o “milagre da pomba”
(16.1), que possivelmente tenha sido conhecido por ele, mas ao transmitir o texto ele omitiu
como trivial ou não-confiável.
Outros Documentos Literários Acerca de Policarpo
Conforme atesta o testemunho de Ireneu18, natural de Esmirna, Policarpo escreveu
diversas cartas a comunidades e a bispos em particular, das quais resta apenas a Carta aos
Filipenses. Quatro escritos, testemunhos de sua vida e de sua morte, trazem seu nome:
1. Carta de santo Inácio a Policarpo.
2. A Carta de Policarpo aos filipenses.
3. A Vita Polycarpi, de Piônio, é insignificante compilação, totalmente lendária.
Aparato Crítico
17
Epist. 10.97.
18
Euzébio HE 5,20,8.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
223
O texto apresentado é adaptado de Karl Bihlmeyer, Die apostolischen Väter. Tubingen:
1924. Os manuscritos são os seguintes: P = códice Parisinus graecus 1452 (s.x); H = códice
Hierosollymitanus sancti Sepulchri (s. IX/X) na Biblioteca do Patriarcado Grego Ortodoxo de
Jerusalém; B = códice Baroccianus 238 (s. XI) na Biblioteca Bodleian, Oxford; C = códice
Chalcensis Mon. 95 (s. XI) do Convento do Espírito Santo, ilha de Halki, formalmente na
Biblioteca Patriarcal, Istambul; V = códice Vindobonensis graecus eccles. Iii (s. XI) na
Biblioteca Nacional, Viena; M = códice Mosquensis 150 (s. XIII) na Biblioteca Sinodal,
Moscou; Há também uma importante porção preservada em Euzébio, h.e. IV, 1519.
Amostra do Texto Crítico Cap. I em Grego
-
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου
Πολυκάρπου - e Sua Tradução
Ἡ ἐκκλησία τοῦ θεοῦ, ἡ παροικοῦσα Σµύρναν, τῇ ἐκκλησίᾳ τοῦ θεοῦ, τῇ
παροικούσῃ ἐν Φιλοµηλίῳ καὶ πάσαις ταῖς κατὰ πάντα τόπον τῆς ἁγίας καὶ
καθολικῆς ἐκκλησίας παροικίαις. ἔλεος καὶ εἰρήνη καὶ ἀγάπη θεοῦ πατρός καὶ
τοῦ κυρίου ἡµῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ πληθυνθείη.
A Igreja de Deus, que vive como forasteira20 em Esmirna, à Igreja de Deus forasteira em
Filomélia e a todas as comunidades da Igreja santa e universal21 onde quer que esteja: a
misericórdia, a paz e a amor de Deus Pai, de Jesus Cristo nosso Senhor, superabundem em
vós.22
1.1. Ἐγράψαµεν ὑµῖν, ἀδελφοί, τὰ κατὰ τοὺς µαρτυρήσαντας καὶ τὸν µακάριον
Πολύκαρπον, ὅστις ὥσπερ ἐπισφραγίσας διὰ τῆς µαρτυρίας αὐτοῦ κατέπαυσε
19
Schwartz, 336 ss.
20
Cf. 1Pe 2.11.
21
Quando esta epístola foi escrita (por volta de 156 d.C.), a palavra grega καθολικῆς (católica) não tinha o
sentido que tem hoje a expressão Igreja Católica, o que ocorreu nos anos 381 d.C., quando o imperador Teodósio
I reconheceu oficialmente um único ramo do cristianismo como ortodoxia católica. A aplicação apenas como um
adjetivo fica claríssimo na construção usual da língua grega τῆς ἁγίας καὶ καθολικῆς ἐκκλησίας; portanto,
“universal” é apenas um adjetivo de “igreja” e não uma distinção teológica que só muito posteriormente passaria
a existir.
22
Cf. Jd 1.2 e 1Pe 1.2.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
224
τὸν διωγµόν. σχεδὸν γὰρ πάντα τὰ προάγοντα ἐγένετο, ἵνα ἡµῖν ὁ κύριος
ἄνωθεν ἐπιδείξῃ τὸ κατὰ τὸ εὐαγγέλιον µαρτύριον.
2.
περιέµενεν γὰρ ἵνα
παραδοθῇ, ὡς καὶ ὁ κύριος, ἵνα µιµηταὶ καὶ ἡµεῖς αὐτοῦ γενώµεθα, µὴ µόνον
σκοποῦντες τὸ καθ᾽ ἑαυτούς, ἀλλὰ καὶ τὸ κατὰ τοὺς πέλας. ἀγάπης γὰρ
ἀληθοῦς καὶ βεβαίας ἐστίν, µὴ µόνον ἑαυτὸν θέλειν σώζεσθαι ἀλλὰ καὶ πάντας
τοὺς ἀδελφούς.
1.1. Escrevemos-vos, irmãos, relatos a cerca dos que sofrem martírio e do bem-aventurado23
Policarpo, cujo martírio foi, por assim dizer, o selo final, que pôs termo à perseguição. Na
verdade, quase todos os acontecimentos anteriores se efetuaram para que, do céu, o Senhor
nos fizesse ver o martírio narrado no Evangelho.
2.
Policarpo esperou pacientemente ser
entregue24, como o Senhor, para que aprendêssemos, através do seu exemplo25, a não ter em
mira somente o que nos concerne, mas também os interesses do próximo26. Realmente, o
amor verdadeiro e firme consiste em não desejar apenas a própria salvação, mas também a de
todos os irmãos.
Referências Bibliográficas
BARNES, Timothy D. Legislation Against The Christians. IN: Journal of Roman Studies,
V. LVIII. London: The Society for the Promotion of Roman Studies, 1968a, p. 32-50.
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. Trad. Fredericus Antonius
Stein. Supervisão Johan Konings. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
BIHLMEYER, Karl. Die apostolischen Väter. Tubingen: 1924.
BUCHMANN, G. Martyrium Polycarpi – Eine formkritiche Studie. Ein Beitrag zur Frage
nach der Entstehung der Gattung Märtyrerakte: BZNW 70, 1994.
23
Cf. Lc 12.43 e 14.15.
24
Cf. At 8.32; Is 53.7.
25
Cf. 1Cor 11.1; Fl 3.17; 1Ts 2.14; Hb 6.12. Note-se que a construção em língua grega ἵνα µιµηταὶ καὶ ἡµεῖς
αὐτοῦ γενώµεθα, é uma remissão aos textos bíblicos mencionados. Porém, lá a questão colocada nos seus
contextos “é aprender segundo exemplos para um determinado fim”; e a remissão se dá no contexto deste ensino.
Se traduzíssemos literalmente “para que imitadores também nós dele nos tornássemos,” poderia dar a idéia de
que deveríamos esperar pacientemente para sermos entregues, quando o que é dito é que deveremos aprender
“através do seu exemplo” a focar-se nas coisas que afetam os outros e não apenas as que afetam a nós próprios.
26
Cf. Fl 2.4.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
225
BUENO, Daniel Ruiz (Trad.). Actas de los Martires. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1961.
CAMPENHAUSEN, H. von, Bearbeitugen und Interpolationen dês Polykarpmartyriums:
SHAW, 1957/3.
COMBY, J. & LEMONON, J. P. Roma em Face a Jerusalém: Visão de Autores Gregos e
Latinos. Trad. Benôni de Lemos, São Paulo; Paulinas, 1987.
CONZELMANN, H. Bemerkungen zum Martyrium Polycarpi: NAWG.PH, 1978/2.
DANIÉLOU, Jean S.J. Histoire des Doctrines Chrétiennen avant Nicée II: Message
Évangélique et Culture Hellénistique aux IIe IIIe siècles. Paris-Tournai-New YorkRome: Desclée Co, 1961.
DAVIDSON, Ivor J., Staging the Church? Theology as Theather. IN: Journal of Early
Christian Studies 8:3, p. 413-451, Baltimore: The Johns Hopkins University Press,
winter 2000.
DE CERTEAU, M. Art. Hagiographie, dans Encyclopaedia Universalis, t.8, Paris, 1968, p.
207-209.
DEHANSCHUTTER, B. Martyrium Polycarpi. Een literar-kritiche studie: BEThL 52, 1979.
DELEHAYE, Hyppolite. Les Passions des Martyrs et les Genres Littérraires. Bruxelles:
Société des Bollandistes, 1966 [Subsidia Hagiographica, no. 13B].
DELHAYE, Hyppolite. Les origines du culte des Martyrs. Bruxelles, Société des
Bollandistes, 1933.
ESLER, Philip (ed.). The Early Christian World (V.II). London and New York: Routledge,
2000.
FONTAINE, Jacques. Le culte dês saints e sés implications siciologiques. Réflexions sur
um récent essai de Peter Brown. IN: Analecta Bollandiana, t. 100, Bruxelles, 1982.
GIBBON, Edward. The Decline and Fall of the Roman Empire. New York: Everman’s
Library, 1910/1952.
HADOT, Pierre. Exercices spirituels et philosophie antique. Préface d’Arnold I. Davidson.
Paris: Éditions Albin Michel, 1993, 2002.
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
226
HUGONIOT, Christophe. Église et cité: le conflit des spectacles. IN: Le Monde de la Bible,
No. 132, janvier-février 2001.
IPIRANGA JÚNIOR, Pedro. Imagens do outro como um si mesmo: drama e narrativa
nos relatos biográficos de Luciano de Samosata e na Vita Antonii de Atanásio. Belo
Horizonte, 2006 (Tese).
IPIRANGA JÚNIOR, Pedro. O Hades Luciânico: espaço discursivo de inscrição da
memória e do ficcional. Mariana, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Ouro Preto, 2000 (Dissertação de mestrado).
KLAUSNER, Samuel Z. Martyrdom. IN: Encyclopedia of Religion. Ed. Mircea Eliade (V.
9). New York: Macmillan Publishing Company, London: Collier Macmillan Publishers,
1987 (p. 230-238).
MUSURILLO, Herbert A. Acts of the Christian Martyrs (V.II). Oxford: Oxford University
Press, 1972/2000.
MUSURILLO, Herbert A. Acts of the Pagan Martyrs - Acta Alexandrinorum (v.I). Oxford:
Oxford University Press, 2000.
RUINART, Thierry. Acta primorum martyrum sincera. Le Blant: 1689, 1801 e 1859.
SHAW, Brent D. Judicial Nightmares and Christian Memory. IN: Journal of Early
Christian Studies 11:4, p. 533-563, Baltimore: The Johns Hopkins University Press,
winter 2003.
VAN UYTFANGHE, Marc. L’Hagiographie un “genre” chrétien ou antique tardif? IN:
Analecta Bollandiana (Revue Critique D’Hagiographie). Bruxelles: Société des
Bollandistes, 1993 (Tome 111).
Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008
227
Download

Análise Crítica-Literária e Tradução da Carta Circular da Igreja de