SÉRGIO ELIAS SANTOS DE ABREU A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA REVOLUÇÃO DE 1383 EM PORTUGAL Monografia de final do Curso de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora : Professora Fátima Regina Fernandes Frighetto. CURITIBA 2000 2 SÉRGIO ELIAS SANTOS DE ABREU A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA REVOLUÇÃO DE 1383 EM PORTUGAL Monografia de final do Curso de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora : Professora Fátima Regina Fernandes Frighetto. CURITIBA 2000 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...............................................................................................4 CONTEXTUALIZAÇÃO ................................................................................7 COMO SE DEU A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA REVOLUÇÃO .......10 CONCLUSÃO ................................................................................................17 FONTE ...........................................................................................................19 REFERÊNCIAS .............................................................................................20 4 INTRODUÇÃO O estilo é um centauro, reunindo o que a natureza como que decretou que estivesse apartado. É forma e é conteúdo, entrelaçados para formar a tessitura de toda arte e todo o ofício – e também a história. Peter Gay* Ao intentarmos qualquer esforço na reconstrução de um momento histórico, seja ele qual for, fica evidente a falta de elementos que possam nos trazer a realidade tal como ela aconteceu. É fundamental, portanto que nos apropriemos das fontes disponíveis com a maior objetividade possível ao historiador e busquemos dar um enfoque ao nosso trabalho delimitando tema, recorte temporal e eventuais diálogos com outras fontes. O presente trabalho trata da REVOLUÇÃO DE 1383 EM PORTUGAL, gerada pela agitação social quando da morte do Rei D. Fernando. A proposta do trabalho é investigar em que nível ocorreu a participação do povo miúdo de Portugal na crise de sucessão ocorrida em 1383 naquele país, como a arraia miúda portuguesa trabalhou e pensou em prol da manutenção do trono português sob o comando de portugueses, elegendo para tanto um defensor do reino, a saber o futuro rei D. João I de Avis. Esta trabalho de Monografia é fruto de pesquisa nas Crônicas de Fernão LOPES sobre os reis portugueses, mais especificamente da primeira parte da Crônica do Rei D. João I de Avis1. O autor desta Crônica ocupou o cargo de guarda das escrituras da Torre do Tombo, o Arquivo Nacional Português, a partir de 1418, sendo nomeado Tabelião Geral em 14372. Mesmo ignorando-se o local exato e data de nascimento e a paternidade do autor, sabe-se que F. LOPES foi guarda do Arquivo Nacional por 35 anos , sendo que durante os * GAY,P. O estilo na história : Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo : Cia das Letras, 1990, p. 17. 1 LOPES,F. Primeira parte da Crônica de D. João I Rei de Portugal. In CAMPOS, A. (Org.) Antologia Portuguesa. Lisboa : Bertrand, 1920. 2 Id. , p. XIII. 5 últimos dezoito anos acumulou também o cargo de Cronista do reino3, e em 1443 escrevia os últimos capítulos da Crônica de D. João I. Fernão LOPES é considerado o grande cronista de Portugal, senão da Europa como querem alguns autores4. Como esta fonte é o relato de um funcionário do Rei de Portugal é importante lembrarmos que trata-se de um trabalho sob encomenda e produzido algum tempo após os acontecimentos por ele narrados. Porém, Isto não invalida o documento enquanto fonte histórica, já que a bibliografia consultada sobre o assunto nos confirma que as Crônicas de F. LOPES são as mais fidedignas fontes sobre o período retratado*. Quanto a produção bibliográfica sobre este período, século XIV em Portugal, baseei-me principalmente na obra de Joel SERRÃO, O Caráter social da Revolução de 13835, já que esta obra elabora uma análise do contexto sócio econômico português no século XIV, conduzindo a discussão a partir de uma perspectiva social da crise, como o título indica, estabelecendo ao longo de seus capítulos um contra ponto com outras obras sobre o período que salientam um caráter burguês da Revolução de 1383. J. SERRÃO demonstra através da mesma fonte utilizada neste trabalho que a participação da arraia miúda portuguesa foi decisiva para os caminhos políticos definirem-se após 1383 em Portugal. E foi justamente elaborando uma resenha do livro de J. SERRÃO, como trabalho final de uma disciplina sobre Portugal Medieval na Universidade Federal do Paraná*, que escolhi o tema do presente trabalho. Além do livro de J. SERRÃO, que inspirou a hipótese aventada neste trabalho, a outra obra que forneceu subsídios para trabalhar com o contexto social português trecentista foi o livro Lições de História de Portugal de Armando CASTRO6. Este livro é o resultado de um curso aplicado em 1981 na Universidade Popular do Porto para um público heterogêneo incluindo desde agricultores até engenheiros e professores, no qual o autor elabora uma análise da formação da nacionalidade portuguesa num recorte temporal que 3 Ibid., p. XII-XV. Ibid., p. XIV. * Ver a seção de Referências à pagina x deste trabalho. 5 SERRÃO, J. O caráter social da Revolução de 1383. 4 ed., Lisboa : Livros Horizonte, 1981. * Trata-se da disciplina de Tópicos Especiais de História Social ofertada no segundo semestre de 1998 pela Professora Dr.ª Fátima Regina Fernandes Frighetto 6 CASTRO, A. Lições de história de Portugal 1 : as classes populares na formação, consolidação e defesa da nacionalidade, séculos XII a XV. Lisboa : Livros Horizonte, 1981. 4 6 vai do século XII ao XV. Embora um tanto quanto radical ao utilizar um vocabulário marxista para este período da história portuguesa, como por exemplo o conceito de classes populares, ainda assim esta obra contém elementos e análises da produção historiográfica propondo novos questionamentos e exigindo novas respostas da fonte. Armando CASTRO faz uma análise objetiva dos cominhos percorridos pelos autores que escreveram e tiveram como tema a história portuguesa, inserindo-os nos respectivos contextos de sua produção, diferenciando de forma clara os vários significados de conceitos como Nação, Nacionalidade e Estado a partir do ponto de vista social, político, filosófico, jurídico e econômico7. Discussão de grande importância para a forma como desenvolvo este trabalho. E por último, uma outra contribuição da obra de A. CASTRO é a análise sobre a vertente explicativa que marcou a produção historiográfica portuguesa. Trata-se da vertente geográfica, isto é, uma corrente explicativa que salienta as especificidades da localização geográfica de Portugal como principal fator para este país ser o primeiro a definir suas fronteiras e estabelecer-se como reino independente8. Portanto, estas análises acompanham o presente trabalho que tem por objetivo, dentre outros, livrar-se de qualquer espécie de determinismo em sua elaboração. Situadas as obras de contexto e análise é tempo de apresentar, ainda que brevemente, o apoio teórico metodológico sob o qual procurei orientar meu trabalho. Tratase de uma pesquisa baseada nos pressupostos de uma história social, tributária da Escola dos Annales9 embora não trabalhando a longa duração em meu recorte temporal, procuro privilegiar uma nova concepção do documento, não aceitando-o como a verdade mas sim como uma dentre as possíveis interpretações de um momento histórico10. 7 Id., p. 26-34. Ibid., p. 56-60. 9 LE GOFF, J. A história nova. São Paulo : Martins Fontes, 1990, p. 26-57. 10 Id., p. 54. 8 7 Portanto, minha pesquisa está, fatalmente, baseada no pressuposto de que “ a realidade é social ou culturalmente construída”11, já que entendo a história como um processo no qual vários elementos trocam experiências sociais, culturais, econômicas e políticas. CONTEXTUALIZAÇÃO A Europa do século XIV é um ambiente onde proliferam as disputas senhoriais que, dependendo das condições sociais e políticas dos envolvidos, levam a guerras infindáveis, como por exemplo a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra iniciada em 1337, com prejuízos materiais irrecuperáveis desencadeando crises econômicas nos reinos envolvidos. Com efeito, a extremidade ocidental da Península Ibérica não foge a este contexto, Portugal é um dos primeiros reinos a definir suas fronteiras e buscar uma unidade político administrativa12, sem no entanto livrar-se de imediato de disputas por territórios contra o reino de Castela como podemos perceber nas Crônicas de F. LOPES sobre os reis D. Pedro, o Crú, e D. Fernando13. É no período correspondente ao reinado de D. Fernando que os acontecimentos políticos culminarão na crise de 1383, no ano seguinte ao da morte deste rei. A mudança de conduta da população é que nos indica a crise que estava por vir. Quando D. Fernando 11 BURKE,P. (Org.). A escrita da história : novas perspectivas. São Paulo : Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 11. 12 CASTRO, A. Opcit, p. 46. 13 LOPES,F. Crônica de D. Pedro e D. Fernando, In CAMPOS, A. Antologia portuguesa, v. 1, Lisboa : Bertrand, 1920. 8 resolve tomar D. Leonor Teles, uma fidalga castelhana, como esposa o povo miúdo de Portugal demonstra seu descontentamento reunindo-se em praça pública e exigindo uma postura de D. Fernando quanto à não realização deste casamento, o que causará perseguição por parte da futura rainha contra a arraia miúda portuguesa, já que o rei ignora os apelos da população e casa-se14. Portanto, são elementos como este que permitirão uma análise da importância da participação popular no desenvolvimento da crise de 1383 em Portugal. Com efeito, a burguesia portuguesa do século XIV não deve ser tomada, como querem alguns autores, como a condutora da Revolução de 1383, visto que esta ordem burguesa está dispersa nos letrados, artistas e mestres15, portanto esta ordem burguesa não está formada nos moldes da burguesia durante a Revolução Francesa. Antes é um amalgama da ordem dos mestres, isto é, os físicos, cirurgiões, mareantes, tangedores, armeiros, ourives16 e outras mais profissões ligadas ao comércio, mas todas associadas ao trabalho manual. Por isto é altamente discutível supor que a Revolução de 1383 foi organizada e conduzida pela burguesia, hipótese que permeará o presente trabalho. Atentemos agora para o fator econômico português do século XIV. Num contexto de guerras e da peste que assolara a Europa, diminuindo sensivelmente a população e, portanto, a quantidade de mão-de-obra disponível para o trabalho servil ocorre uma valorização do trabalho do camponês. E não só deste como de toda a ordem dos mesteirais17, alterando assim a relação entre a ordem burguesa e a arraia miúda de Portugal. Crescendo esta em importância, visto que de seu trabalho dependia boa parte da economia do reino. Sim, pois se a economia de Portugal estava baseada essencialmente na agricultura18, tinha na importação de produtos sutilli e exportação de produtos grossi, nomes dados pelos comerciantes genoveses e venezianos para diferenciar mercadorias básicas e com preços mais baixos ( grossi ) de outras mais raras e consequentemente mais 14 Id., p. 91-103. SERRÃO, J. Opcit., p. 136-138. 16 Id., p. 137. 17 Ibid., p. 137. 18 Ibid., p. 25. 15 9 caras ( sutilli )19, um importante meio de comércio e comunicação com a Inglaterra e a região da Flandres. Estas trocas, esta economia portuguesa parcamente esboçada aqui verá uma evolução, culminando no apogeu da economia portuguesa com o advento das grandes navegações. Economia que ao longo das pestes, guerras e colheitas desastrosas pelas quais Portugal passou e a constante desvalorização da moeda a partir do reinado de D. Afonso IV ( 1325 – 1357 )20, influenciará no aspceto social acarretando uma diferenciação social progressiva no país. Isto é, o desenvolvimento de uma burguesia comercial em Lisboa desmembrada entre os grandes mercadores e negociantes judeus com interesses diferentes da arraia miúda dos mesteirais e ventres ao sol21. Portanto, tendo associado os principais eixos de ligação entre a Europa e Portugal do século XIV com o objetivo do presente trabalho, saliento que levo em consideração tais elementos ao construir minha hipótese de trabalho, qual seja, demonstrar que a arraia miúda desempenhou papel fundamental na decisão do Mestre de Avis tornar-se regedor e defensor do reino protuguës. Atitude que viria alterar os horizontes políticos e sociais de todas as ordens ou extratos sociais portugueses após 1383, culminando na dinastia portuguesa que propiciou, ao longo do século XV, as condições econömicas, políticas e até culturais das Grandes Navegações. 19 Ibid., p. 99. Ibid., p. 98-99. 21 Ibid., p. 30-31. 20 10 COMO SE DEU A PARTICIPAÇÃO DA ARRAIA MIÚDA PORTUGUESA NA REVOLUÇÃO DE 1383 Para avaliar a participação de qualquer elemento ou ordem social em um processo de mudanças políticas é preciso ter bem definida qual a função social exercida por tal elemento ou ordem. Nada melhor, portanto, que iniciarmos este capítulo discernindo as diferenças e semelhanças entre burguesia, nobreza e arraia miúda*. Pois bem, para entendermos como a arraia miúda e os mesteirais são parte integrante da burguesia portuguesa importa lembrar o grau de autonomia que a burguesia alcança com a criação dos Conselhos a partir do Reinado de Afonso III22, e mesmo assim continua dependente da arraia miúda, visto que é esta ordem social que torna possível os lucros auferidos pela ordem burguesa. Portanto, entendemos a burguesia no contexto portuguës do * Cf. página 7 deste trabalho onde esta discussão já está esboçada. 11 século XIV como sendo uma ordem dispersa nos letrados, artistas e mestres23, e suas diferenças com a nobreza portuguesa são de ordem social, isto é, de linhagem já que a diferenciação de um indivíduo como nobre não está na posse de bens móveis, riqueza monetária e sim na posse dos privilégios senhoriais concedidos pelo monarca. Como veremos mais adiante alguns destes valores invertem-se durante a crise para voltarem a firmar-se após esta. Por hora deixemos de lado este raciocínio para retomarmos a análise das mudanças na conduta humana, pois é esta, segundo J. SERRÃO, a presa da história. Com efeito, os acontecimentos que passo a analisar encontram-se na primeira parte da Crönica de D. João I, fica , portanto, claro que o trabalho doravante apresentado não se preocupa em narrar os acontecimentos, pois Fernão LOPES já o fez de maneira grandiosa, e sim de apresentar uma sequëncia de citações no intuito de evidenciar, analisar e qualificar a participação da arraia miúda na Revolução de 1383. Comecemos então dizendo como D. João tornou-se Mestre de Avis. O Rei D. Pedro, o Crú24, alcunha que designa sua fama de violento e, mais que violento, o justo, teve um filho bastardo por nome João que foi entregue em poder de D. Nuno Freire, mestre da ordem de Cristo, para o criar. Sabendo este D. Nuno Freire que era morto D. Martim de Avelal, mestre de Avis, roga a D. Pedro, o rei, que outorgue o título de Mestre de Avis para o seu filho bastardo João. O que o rei D. Pedro faz sob juramento e com testemunhas, mas não sem antes dizer que não era do seu conhecimento este seu filho, todavia pela certeza que lhe dava D. Nuno Freire ele o faria25 Mestre de Avis. Retenhamos este fato. 22 Ibid., p. 25-26. Ibid., p. 136-138. 24 LOPES,F. Crônica de D. Pedro e D. Fernando, In CAMPOS, A. Antologia portuguesa, v. 1, Lisboa : Bertrand, 1920, p. 55-60. 25 Id., p. 61-64. 23 12 Após a morte do Rei D. Pedro, reina D. Fernando seu filho. Este D. Fernando ao ficar viúvo intenta um casamento com D. Leonor Teles, uma fidalga castelhana, gerando descontentamento no povo miúdo de Lisboa manifesto no ajuntamento de "bem mais de três mil"26 entre mesteirais e homens de pé, todos armados exigiam do rei que não levasse adiante tal casamento, e que tomasse para si mulher filha de reis como era costume. Não vejo nesta atitude do povo senão a expressão de sua vontade para com o rei, que este não ultrajasse os costumes e ainda respeitasse o seu povo. Entendemos, a partir deste fato que D. Fernando detinha pouca admiração do povo miúdo português, não só pelo casamento contrariado, como por envolver Portugal em guerras, sofrendo também o reino neste período a fome e a peste, agravados pelas sucessivas desvalorizações da moeda portuguesa através do processo de quebra da moeda27, o que dificultava ainda mais a sobrevivência. Além disso D. Fernando não deixou varão para ocupar o trono português, fazendo um acordo com D. João de Castela que o herdeiro deste casar-se-ia com D. Beatriz, filha de D. Fernando, assumindo o trono português. Com D. Fernando morto, D. João de Castela casa-se com D. Beatriz e intenta assumir o trono português28. Neste ínterim, em Portugal, com a morte de D. Fernando, os amigos do rei resolvem vingar-lhe a honra matando o amante que D. Leonor Teles tinha com o rei ainda em vida. trata-se do Conde João Fernandes Andeiro. E combinaram-se o D. João Afonso, Conde de Barcelos e irmão de D. Leonor, o Mestre de Avis, D. João e D. Pedrálvares, prior do Hospital desta maneira : E acordaram todos que era bem de o fazer um homem de pequena conta, para qualquer cousa que se disto seguisse; porque melhor era perder-se um homem ligeiro, que um de grande honra e maior estado29 Esta citação demonstra o valor de um homem bom comparado a um homem ligeiro, um membro da arraia miúda não merecia o crédito da nobreza. Continuemos porém com o desenrolar da crise para observarmos a mudança no conceito de povo miúdo pelo menos no período da Revolução. 26 Ibid., p. 88-92. SERRÃO, J. Op. cit., p. 88. 28 Id., p. 35. 29 LOPES,F. Crônica de D. João I, In CAMPOS, A. Antologia portuguesa, v. 2, Lisboa : Bertrand, 1920, p.15-16. 27 13 Ainda intentando lavar a honra do rei traído com o sangue do Conde Andeiro, eis que surge a figura de Álvaro Pais, antigo funcionário do rei D. Pedro e de D. Fernando. Este apresenta ao Mestre seu argumento para matar o amante de D. Leonor: Álvaro Pais, com desejo que havia, mostrava ao Mestre serem tôdalas razões tão ligeiras para o acabar, como se fôsse um pequeno feito e quanto á ajuda do povo, em que o Mestre falou muito, responde êle e disse, que se o êle fazer quisesse, que êle lhe ofereceria a cidade em sua ajuda, entendendo de o fazer assim.30 Foi confiado no povo que o Mestre, após relutar muito, aceita a tarefa de matar o Conde Andeiro. Sim, com o apoio da arraia miúda o Mestre legitimaria sua atitude tanto perante a regente D. Leonor como perante o soberano de Castela, aspirante ao trono português. Após este acerto com Álvaro Pais o Mestre "...ia muitas vezes à casa de Álvaro Pais, algumas horas com o Conde...", entenda-se aqui o Conde de Barcelos, D. João irmão de D. Leonor Teles, "... e outras a-departe, falar com ele sobre a morte de Conde João Fernandes, e especialmente como se poderia haver a ajuda do povo por sua parte"31. É indubitável, a crer na Crônica, que o povo miúdo é imprescindível para a efetivação da tarefa proposta. E se mesmo com estes extratos da Crônica já percebemos uma certa atitude do povo vejamos mais adiante como esta atitude agudizar-se-á chegando a extremos de violência. Acordado ficou entre o Mestre e Álvaro Pais que ao page do Mestre seria dado ordem para correr do paço da regente D. Leonor até à casa de Álvaro Pais pedindo socorro para o Mestre quando este já tivesse matado o Conde Andeiro. Foi montada uma estratégia com o fim único de cooptar o povo miúdo no auxílio do Mestre. E assim fez-se. Quando o Mestre matou o Conde Andeiro deu ordem ao seu page que, percorrendo a distância atá a casa da Álvaro Pais, foi pedindo socorro para a população, que acudissem ao Mestre. Álvaro Pais já devidamente preparado e esperando, sai ao encontro do page bradando a todos : Acorramos ao Mestre, amigos! Acorramos ao Mestre, que matam sem porquê! A gente começou de se ajuntar a êle, e era tanto, que era estranha cousa de ver. Não cabiam pelas ruas principais e 30 31 Id., p. 35 Ibid., p. 37-38. 14 atravessavam lugares escusos, desejando cada um ser o primeiro e, preguntando uns aos outros quem matava o Mestre32. O povo tomou gosto pelo Mestre desde já, pois o consideravam melhor para os portugueses que a regente Leonor. Esta vontade do povo em defender o Mestre, como já disse, ganhará contornos de crueldade como demonstra o próximo extrato da fonte. Após ter escoltado o Mestre, bem sucedido em sua tarefa de lavar a honra do Rei D. Fernando, o povo miúdo lembra-se que na Sé de Lisboa* os sinos não foram repicados como nas outras igrejas quando o povo saíra para socorrer o Mestre, juntemos isto ao fato do Bispo da Sé D. Martinho ser castelhano, foi o suficiente para que o povo o arrastasse na rua decretando : Justiça que manda fazer nosso Senhor o papa Urbano VI a êste traidor, scismático, castelão, porque não tinha com a Santa Igreja33 Matando-o em seguida. É impressionante como alguns autores colocam a questão da Revolução de 1383 do ponto de vista apenas burguês34. Visto que a população lisboeta tomou as rédeas da Revolução neste momento, para em seguida nos impressionar com a postura adotada diante da atitude do Mestre na questão dos judeus. Estes eram quase tão mal vistos como os castelãos e por isto o povo miúdo começa a roubá-los. É chamado o Mestre para intervir neste assunto, e quando em presença deles não consegue dissuádi-los ( o povo) do seu objetivo, ouvindo um conselheiro seu afasta-se do local. Atitude que gera na arraia miúda o efeito desejado, pois esta ouvindo apregoar-se da parte do Mestre que não se cometesse crimes contra a judaria procede como nos mostra a fonte: As gentes tôdas, quando ouvriam êste pregão, folgavam muito em suas vontades, e diziam uns contra os outros. Que farzemos estando ? Tomemos este homem por senhor e alcemo-lo por rei35 Uns contra os outros entenda-se por uns para os outros. Para alguns isto pode parecer manipulação pura e simples. No entanto, na minha visão trata-se de uma articulação entre a vontade do Mestre e seus companheiros e a vontade da arraia miúda que é ter um rei que não o soberano de Castela, pois entendia que D. João de Castela poderia retribuir-lhes todo o mal que percebiam ter causado à gente castelhana que vivia em Portugal. 32 Ibid., p. 55. Trata-se da Igreja Matriz da cidade. 33 Ibid., p. 69. 34 SERRÃO, J.Op. cit., p. 101-102. 35 Ibid., p. 69. * 15 Lembrando-se ainda da vingança prometida por D. Leonor, reforçado pelo fato desta ter ainda muitos correligionários em Portugal36. Imbuídos destes sentimentos e representados pelo fidalgo Álvaro Vasques de Gois37, apresenta-se ao Mestre razões para que ele não partisse para a Inglaterra como intentava : ...quando entendeis vós lá de cobrar outra tão boa cidade, por força de armas, como a cidade de Lisboa, em que vós estais e hu se oferecem os moradores dela a vos servir, e dar quanto teem, até morrerem por vos ajudar.38 É claro que existe uma atitude da burguesia, mas que até este momento está vacilante entre apoiar a causa do Mestre ou tentar manter o status quo vigente. Na verdade a situação é tão indefinida que a burguesia tomará partido como que forçosamente em uma assembléia convocada pela Câmara do Conselho, na qual, mediante a indecisão dos homens bons da cidade, um tanoeiro, integrante da ordem dos mesteirais, chamado Afonso Anes Penedo pousa a mão na espada e diz : Que estais vós-outros assim cuidando, e que não outorgais o que outorgam quantos aqui estão ? E como ? Ainda vós duvidais de tomar o Mestre por regedor dêstes reinos, e que tome carrego de defender esta cidade e nós-outros todos ? Parece que não sois vós-outros verdadeiros Portugueses ! Digo-vos que, quanto por esta guisa, buscai-nos vós todos cedo em poder de castelãos!39 Como não houvesse resposta o mesmo Afonso, novamente pousando a mão na espada, dispara, agora ainda mais ameaçador : Vós outros, que estais assim fazendo? Quereis vós outorgar o que vos dizem ? Ou dizei que não quereis, que eu em esta cousa não tenho mais aventurado que esta garganta, e quem isto não quiser outorgar, logo há mester que o pague pela sua, antes que daqui saia40 Mais uma vez fica explícito como as divergências entre as ordens remontam aos problemas abordados no capítulo Contextualização deste trabalho. Isto é, ao povo miúdo está claro o caminho a seguir e empenha todas as suas forças nele, para a ordem burguesa a situação, até o momento desta ameaça, está indefinida e só outorga o Mestre como regedor do reino porque foi praticamente coagida. Se na primeira vez que o tanoeiro fala podemos perceber a divergência quanto ao serem verdadeiros portugueses, isto é, muito mais de 36 Ibid., p. 93-96. Exemplo da mescla da ordem burguesa com os mesteirais. 38 Ibid., p. 101-110. 39 Ibid., p. 121. 40 Ibid., p. 122. 37 16 inclinação política, na segunda percebemos claramente as diferenças sociais, de condição social, financeira e ao mesmo tempo que a sua ameaça é igualar as condições de garganta por garganta ou seja uma vida pela outra sem distinção de ordem social. Após as garantias da apoio do povo miúdo e dos homens honrados o Mestre vai buscar o apoio de uma legislação na pessoa do doutor João das Regras41, peça importante mais tarde na legitimação, através das leis perante a nobreza e os castelhanos, de D. João I de Avis como Rei de Portugal. E como se não bastasse tais medidadas Álvaro Pais aconselha o Mestre assim : Senhor, fazei por esta guisa : dá aquilo que vosso não é ; e prometei o que não tendes ; perdoai a quem vos não errou. E ser-vos-há mui grande a ajuda para tal negócio em que sois posto...42 E lançando mão deste expediente o Mestre contentava a todos os que por ele lutavam entregando-lhes as posses dos que eram pela regente do reino ou dos que iam para o lado do rei de Castela, selando uma cumplicidade ainda maior entre o povo miúdo e o Mestre, demonstrando o caráter popular da primeira fase da Revolução de 1383. Enfim, há uma clara atitude da arraia miúda nos elementos da Crônica de D. João I aqui arrolados e analisados. Creio que estes comentários servem como argumento contrário a qualquer tentativa de dissociar a arraia miúda portuguesa de um papel preponderante na Revolução de 1383. CONCLUSÃO A partir da leitura e pesquisa na fonte anteriormente mencionada é possível conferir, através dos elementos analisados neste trabalho o grau de importância do povo miúdo livre de Portugal na Revolução de 1383. É também oportuno registrar-se que esta pesquisa buscou representar uma pequena contribuição ao estudo da participação popular em 41 42 Ibid., p. 125 Ibid., p. 128. 17 levantes ao longo da Idade Média, embora o exemplo português esteja no “ocaso” da Idade Média43. É um trabalho que, se prestou a alguma contribuição, foi justamente afirmar a presença marcante do povo português que em um momento de crise soube aptar por um Senhor que lhe faria as melhores honras. É bem verdade que oprimido como vinha sendo aos nossos olhos, de expectadores do século XX, parecia a melhor opção o Mestre de Avis. Mas foram eles que viveram aquela situação, em um mundo onde a mulher tinha quase que nenhuma representação a não ser no campo do simbólico, como frágil e propensa ao mal. Um mundo onde as leis e costumes eram impostos unilateralmente pelo mais forte. Um mundo onde não havia o conceito de liberdade tal como o temos hoje, pois a liberdade era nascer nobre ou filho da casa de um abastado fidalgo. Um mundo regido pela ordem trinitária dos oratores, bellatores e laboratores, que se vinha sofrendo mudanças estas não alteravam o modelo vigente, limitando-se a multiplicar as tarefas desdobrando alguma das ordens44. Com efeito, a Revolução de 1383 não alterou profundamente a sociedade protuguesa trecentista e quatrocentista, no máximo, do ponto de vista econômico social, conseguiu transferir alguns elementos da arraia miúda e da burguesia para a nobreza. Sim, poas esta foi muitas vezes a moeda de troca de D. João I, Mestre de Avis na busca de apoio contra os castelhanos. No entanto, não se pode dizer que a Revolução de 1383 fracassou , pois ao contrário de outras revoluções esta não queria livrar-se do rei enquanto símbolo de opressão, mesmo por que neste momento analisado não podemos utilizar estes conceitos sem cair em anacronismo hitórico, que como muitos nos ensinam é o pior pecado de um historiador. Pois bem, a Revolução de 1383 não queria livrar-se do rei e sim escolher um outro rei. Não queria mudar seu sistema político, nem havia naquele momento qualquer discussão político-filosófica que nos levasse a pensar em tal hipótese. A Revolução de 1383 em Portugal, ainda que não elaborada inicialmente num plano totalmente teórico para depois ser colocada em prática, ela já nasceu na prática com o assassinato do Conde Andeiro e a reação entusiasmada do povo miúdo para com o Mestre. Isto é, a Revolução de 43 44 SERRÃO, J., Op. Cit., p. 8. Id., p. 137. 18 1383 em Portugal fez-se dia após dia, tornou-se um processo para nós que a olhamos hoje, com centenas de anos separando os acontecimentos daquela época e sua realidade ficando tão distante da nossa quanto são grandes as dificuldades de reconstruir Portugal do século XIV. Pretendo ter demonstrado ao longo do trabalho que a hipótese aventada sustenta-se na medida em que são levantadas questões e a fonte nos responde, em alguns momentos com clareza impressionante. FONTE LOPES,F. Crônica de D. João I, In CAMPOS, A. Antologia portuguesa, v. 2, Lisboa : Bertrand, 1920. 19 REFERÊNCIAS CASTRO, A. Lições de história de Portugal 1 : as classes populares na formação, consolidação e defesa da nacionalidade, séculos XII a XV. Lisboa : Livros Horizonte, 1981. BURKE,P. (Org.). A escrita da história : novas perspectivas. São Paulo : Universidade Estadual Paulista, 1992. DUBY, G. A sociedade cavalheiresca. São Paulo : Martins Fontes, 197?. GAY,P. O estilo na história : Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo : Cia das Letras, 1990. LE GOFF, J. A história nova. São Paulo : Martins Fontes, 1990. __________. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Libsoa : Edições 70, 1986. MATTOSO, J. A nobreza medieval portuguesa : a família e o poder. Lisboa : Estampa, 1987. SARAIVA, A . Fernão Lopes. Lisboa : Europa-América, col. Saber, 1965. SERRÃO, J. O caráter social da Revolução de 1383. 4 ed., Lisboa : Livros Horizonte, 1981.