Mobilidade e Vulnerabilidade nos Espaços de Vida de Campinas∗
Eduardo Marandola Jr.♣
Palavras-chave: população e ambiente; vulnerabilidade; espaço de vida; metrópole
Resumo
A vida nas metrópoles brasileiras tem sofrido alterações significativas nos últimos 30 anos,
produzindo novos padrões espaciais e sociodemográficos que incidem diretamente na
qualidade e no padrão de vida das pessoas. Dois traços desta nova forma metropolitana são
especialmente relevantes para compreender estas transformações e suas implicações: a
mobilidade e a vulnerabilidade. Nos dois casos, a problemática ambiental está no cerne de
toda a discussão. Tem aumentado a evidência de relação entre a mobilidade e a
vulnerabilidade, seja em termos espaciais (lugar-fora do lugar) seja em termos sociais
(comunidade-fora da comunidade). Os riscos aumentam à medida que aumenta a
mobilidade, diminuindo a segurança e potencializando a vulnerabilidade, tanto de pessoas e
grupos quanto de lugares e regiões. O cerne deste argumento está no esgarçamento do
espaço de vida e das relações sociais oriundo do aumento da mobilidade, fazendo com que
os mecanismos de proteção (lugar, família, comunidade), que têm alcance limitado,
diminuam gradativamente a sua eficácia. A distribuição espacial da população, ordenada a
partir de grandes corredores viários e da conexão por vias e meios de transporte, conecta por
um lado e isola por outro, dotando o tecido metropolitano de fragmentos conectados por
tênues fios. Investigar o desenho dos espaços de vida individuais e os riscos e perigos
enfrentados quotidianamente pelas pessoas, revela facetas da tensão ambiental vivida nas
metrópoles, bem como as implicações do padrão de distribuição espacial da população e as
formas desta de elevar sua segurança, diminuindo a incerteza. Por outro lado, o olhar para a
experiência cotidiana revela riscos insuspeitos, ao passo que outros, aparentemente tão
evidentes, são descartados. Esta pesquisa procura delinear este caminho, a partir de trabalho
de campo realizado na região Metropolitana de Campinas, metrópole do interior paulista
que congrega as características do período mais recente da metropolização brasileira.
∗
Trabalho apresentado no XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú - MG –
Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006.
♣
Geógrafo, Doutorando em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas
(IG/UNICAMP). Colaborador do Núcleo de Estudos de População (NEPO/UNICAMP). [email protected].
Mobilidade e Vulnerabilidade nos Espaços de Vida de Campinas
Eduardo Marandola Jr.
População, Ambiente e Espaço
O debate ambiental no campo demográfico tem avançado rapidamente nos últimos anos.
Incorporando questões novas ou consolidando campos já tradicionais, os temas pertinentes à
relação população-ambiente têm trazido resultados promissores tanto para os estudos de
população quanto para as demais ciências (sociais, ambientais e de saúde) e para as políticas
públicas.
Entre estas preocupações, os demógrafos têm se dedicado especialmente a pelo menos
dois grandes temas derivados da preocupação maior com a distribuição espacial da população:
riscos e vulnerabilidades de populações/lugares e a migração. A partir destes dois temas
estruturam-se as demais questões, sendo tratadas especialmente em duas escalas: da cidade e da
região. Em vista disso, o espaço tem desempenhado papel cada vez mais relevante nas análises,
inclusive com a incorporação do uso de Sistemas de Informação Geográfica e técnicas
geomáticas em busca da uma melhor apreensão das relações entre os fenômenos demográficos e
o ambiente. (Marandola Jr. e Hogan, 2005a)
Refletindo sobre este campo de investigação, alguns autores têm enfatizado a necessidade
de abordagens em pequenas áreas e em diferentes escalas, visando a apreensão multidimensional
dos fenômenos. (Hogan, 2000; Torres, 2000) Estas interações ainda estão por serem melhor
delineadas, embora o conjunto dos trabalhos estejam avançando nesta direção. Por outro lado,
tem-se apontado a necessidade de avançar epistemologicamente, abordando a relação populaçãorecursos para além de uma relação causal simples, lembrando que o impacto da população
humana “está mediado por la cultura y la tecnología, por patrones de producción y de consumo.”
(Leff, 2000, p.252) Neste sentido também há avanços, principalmente ao se compreender a
dimensão social e política da degradação ambiental e dos riscos vividos pelas populações.
A confluência de abordagens também tem sido relevante, pois a questão da distribuição
espacial da população é fundamental tanto no contexto urbano quanto no regional, recebendo
tratamentos metodológicos complementares. Assim, tanto a migração quanto o ambiente são
abordados por diferentes ângulos, com ênfase nas interações sociedade-natureza e na produção
social do espaço urbano. Estes estudos têm revelado dimensões essenciais do binômio mobilidadeambiente, além de apontar para relações sociais perversas em diferentes níveis. (Hogan, 1998)
Em um contexto metropolitano, como em Campinas, entre os fenômenos migratórios mais
relevantes está a mobilidade diária entre as cidades da região. Esta mobilidade ocorre nas duas
escalas (urbana e regional) incrementando questões relevantes para o ambiente. A espacialidade
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destes fenômenos resulta num quadro particular de vulnerabilidade, diante de perigos específicos
decorrentes deste comportamento populacional.
O objetivo deste texto é discutir a relação mobilidade-vulnerabilidade no contexto
metropolitano de Campinas, a partir da operacionalização do conceito de espaço de vida. Este
apresenta-se como uma forma de objetivar os movimentos diários das populações na escala
individual. O desenho destes espaços de vida reflete as tendências de mobilidade observadas nos
dados secundários, mas não se limita a isso. Ele é animado pela informação qualitativa da
experiência da metrópole (a própria história de vida da pessoa), podendo revelar também aspectos
subjetivos e circunstanciais (ligados ao lugar, à comunidade ou a outros círculos coletivos que a
pessoa está inserida) que interferem diretamente na vulnerabilidade da pessoa. Assim, fenômenos
apreendidos na escala regional ou da cidade são complementados com um olhar da escala micro,
permitindo incrementar as informações quantitativas com dados qualitativos, uma das fronteiras
ainda não enfrentadas pelo campo de estudos em População e Ambiente.
Primeiramente, procuramos traçar a ligação entre mobilidade e vulnerabilidade no
contexto metropolitano. Apesar de já termos indicações sobre tal relação, ela ainda está por ser
melhor delineada. Em vista disso, este trabalho é preliminar no sentido de propor uma
metodologia de abordagem que contribua para demonstrar, empiricamente, a natureza desta
conexão. A exposição de tal metodologia constitui a segunda parte do texto, seguido pela análise
preliminar de alguns espaços de vida exemplares da Região Metropolitana de Campinas (RMC).
Tal discussão culmina com o apontamento da relevância de abordagens quanti-quali para o
campo de População e Ambiente, reforçando a natureza complexa e interdisciplinar dos
fenômenos investigados.
Mobilidade e Vulnerabilidade na Metrópole
A mobilidade é fenômeno fundante da trama socioespacial da metrópole contemporânea,
revelando dinâmicas globais, regionais e locais num mesmo plano. Está na base da estrutura
causal da atual forma metropolitana (espraiada, dispersa), mas é também conseqüência desta
forma. Por este ângulo, é possibilitada pelas novas tecnologias de comunicação e transporte,
permitindo a dissociação residência-trabalho, um dos elementos fundamentais da alteração dos
padrões de mobilidade diária que ocorria entre estes dois pólos. (Ascher, 1998) Este fato, somado à
crescente participação da mulher no mercado de trabalho, à flexibilização do mundo do trabalho e
ao aumento da escolaridade e da necessidade de educação (cursos diversos), têm contribuído para a
complexificação das viagens realizadas por um núcleo familiar ou por um indivíduo diariamente.
A emergência de uma metáfora rizomática para compreender a metrópole e a sociedade
contemporânea é uma das manifestações deste pensamento em rede, expresso na morfologia urbana
e no padrão de mobilidade das pessoas. (Castells, 1999; Cadaval e Gomide, 2002)
Campinas é uma metrópole que surge na emergência desta nova forma de metropolização,
com a prevalência dos fluxos na organização regional, resultando na elevada fragmentação do
tecido metropolitano e da importância dos corredores viários para a conexão entre os pedaços da
região metropolitana. A expansão, ao invés de ocorrer a partir de um núcleo central, se
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desenvolve a partir destes eixos viários, formando uma mancha urbana metropolitana. (Pires e
Santos, 2002; Pires, 2005)
As conseqüências em termos de fragilização da infra-estrutura, dificuldades de
acessibilidade e de mobilidade e de outros riscos provenientes deste modelo são evidentes à
medida que as carências sociais e urbanas compõem grande parte da paisagem nas zonas de
expansão urbano-metropolitana. (Ascher, 1998; Torres, 2002; Ojima, 2005) A estas
conseqüências de curto e médio prazos, temos a degradação e a poluição ambiental, que se
espalham por um território maior, atingindo terras agricultáveis e recursos hídricos importantes,
trazendo conseqüências de médio e longo prazo. (Hogan e Carmo, 2001) Tais processos podem
causar alterações na distribuição espacial da população, produzindo movimentos de atração,
expulsão ou retenção, produzindo rebatimentos na segregação residencial e nos movimentos
pendulares e, consequentemente, no sistema de transportes e no padrão de mobilidade.
Em vista disso, o tamanho, a duração e a complexidade (bifurcações e baldeações) dos
trajetos diários que as pessoas têm de fazer está em crescente aumento nas regiões
metropolitanas. Muito tempo se passa no carro ou no transporte coletivo, seja porque a distância é
longa mesmo, seja por causa do trânsito que já não tem condições de trafegabilidade. Os custos
aumentam na mesma proporção da necessidade ou das melhorias de infra-estrutura. Além disso,
com as dificuldades de gestão dos transportes públicos ao congregar as esferas municipal e
estadual (representando a gestão metropolitana), o trânsito, a infra-estrutura viária e os sistemas
de transportes públicos apresentam um dos mais importantes “gargalos” a se resolver numa
região integrada, mas também uma das tarefas mais complexas para o planejamento e a gestão
compartilhada. (Junqueira Filho, 2002; Ministério das Cidades, 2004a, 2004b)
A hipermobilidade tem-se tornado um fenômeno importante na sociedade contemporânea,
influenciando diretamente na reprodução social do cotidiano e nos estilos de vida. (Jarvis, Pratt e
Cheng-Chong Wu, 2001) Aumenta assim a preocupação com a crescente desvinculação entre a
pessoa e sua comunidade, seu lugar. Não que os laços elementares inerentes à relação homemmeio percam sua importância. (Tuan, 1980, Bachelard, 1993) Ao contrário, eles nunca foram tão
fundamentais. No entanto, estes, enquanto fenômenos locais, têm uma abrangência limitada,
perdendo gradativamente sua efetividade enquanto proteção à medida que aumenta a distância e o
tempo do deslocamento. (Marandola Jr., 2005a, 2005b) Assim, no contexto da mobilidade
metropolitana atual, as pessoas passam a percorrer trajetos regionais, o que diminui a efetividade
de mecanismos de proteção existencial, como a casa, a comunidade, a família e o lugar.
(Marandola Jr., 2006; Giddens, 2002)
O movimento (ligado à velocidade e à hipermobilidade) ajuda no estabelecimento de
relações espaciais e culturais mais efêmeras. Sem o tempo necessário para o envolvimento (Tuan,
1983), tais relações são frágeis, deixando a pessoa vulnerável. Claudelir Clemente, estudando
migrantes transnacionais, notou com propriedade esta problemática: “Hoje [...] não se pode
deixar de entender que estas maneiras de socialização do espaço e do tempo apontam para um
aspecto do território que, por vezes, não se presta atenção: a sua efemeridade, o seu movimento.”
Tanto pequenos grupos de migrantes morando em outros países quanto aqueles que vivem em
movimento (seja transnacional ou não) possuem suas relações identitárias estremecidas,
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aumentando com isso sua vulnerabilidade diante de diferentes riscos. Em vista disso, os ritos
sociais desempenham papel de fronteiras, ajudando a delimitar e ajudar a permanência de um
território. “Disto se depreende que as comunidades conscientes da fragilidade do território
realizam constantes ritualizações, diuturnamente, para não se perderem nos fluxos
desterritorializantes que convergem para o lugar.” (Clemente, 2005, p.03)
A saída para estabelecer relações de proteção nestes casos é o reforço de relações
solidárias, como a amizade, a cultura e a família. Os sistemas de proteção ficam dispersos no
espaço, mantendo conexões em redes de relacionamentos que, em geral, não possuem a figura da
comunidade. O indivíduo ainda possui alguns lugares de referência, pois esta é uma condição
sine qua non da existência humana (Casey, 1997; Heidegger, 2002), mas a figura da comunidade,
enquanto um coletivo espacialmente localizado que produz segurança, sentimento de pertença e
identidade (Bauman, 2003), dificilmente consegue ser restabelecido.
Enquanto fator demográfico mais significativo na distribuição populacional no espaço
(Hogan, 1998), a mobilidade é também um dos fenômenos mais importantes na distribuição de
perigos, bem como na configuração de diferentes vulnerabilidades, quando pensamos em termos
de pessoas e famílias e na produção de riscos e perigos, ou quando pensamos em áreas
específicas. O migrante já tende a ser vulnerável no novo lugar, por não estar adaptado ao
ambiente e à comunidade, faltando-lhe conhecimentos acumulados culturalmente. (Frémont,
1980; McPhee, 1990) Por outro lado, a presença de grandes contingentes de migrantes pendulares
num lugar de elevada poluição ou vulnerabilidade ambiental pode contribuir para o agravamento
da questão, devido ao não compromisso ou mesmo a não permanência (estão sempre de
passagem) no lugar de trabalho ou estudo. (Hogan, 1992, 1993) Entretanto, os lugares onde
moram muitos migrantes que passam pouco tempo em casa podem sofrer do mesmo tipo de
desagregação social, influindo na forma como a comunidade se engaja ou não no cuidado e no
enfrentamento de perigos e tensões ambientais.
Por outro lado, nos trajetos entre os lugares, cresce o efeito “túnel” nas viagens diárias.
(Ascher, 1998) As pessoas trafegam por grandes distâncias sem estabelecer nenhum contato com
o longo espaço metropolitano que fica entre os dois pontos. Às vezes, nem mesmo o contato
visual, pois cansados por acordar cedo ou por ter trabalhado o dia todo, viajam cochilando
cabisbaixos até o ponto de parada. Todo este espaço indiscriminado que não faz parte da
experiência das pessoas é potencialmente perigoso, pois ali o homem não goza dos mecanismos de
proteção ligados ao lugar e à comunidade. Ali o homem está “solto no mundo” (contraposição ao
enraizamento do lugar e da comunidade), potencialmente mais vulnerável. (Marandola Jr., 2005a)
A mobilidade, portanto, é um dos fenômenos que operacionaliza a fragmentação do eu e
da comunidade, desagregando recursos (sociais, culturais, financeiros e espaciais) e contribuindo
significativamente para o aumento da vulnerabilidade não apenas diante de riscos ambientais,
mas também dos demais perigos que atingem as populações metropolitanas. Não se trata de
culpar a mobilidade pela vulnerabilidade, mas de identificar no padrão de mobilidade elementos
que apontam relações específicas que resultam em diferentes formas de enfrentamento dos riscos.
A mobilidade não é sinônimo de vulnerabilidade; diferentes populações, em diferentes contextos
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socioespaciais e demográficos terão situações específicas em relação aos riscos e perigos.
(Marandola Jr. e Hogan, 2005b; Hogan e Marandola Jr., 2005)
Em vista disso, é importante conhecer os padrões de mobilidade, para além das
informações origem-destino ou dos motivos de viagens. Estes são fundamentais para tecer
quadros gerais dos padrões de mobilidade e de interações espaciais. No entanto, é necessário
olhar mais de perto, aproximando a escala de análise para poder detectar nuanças e detalhes que
caracterizam os padrões de mobilidade existentes numa região metropolitana. Com este intuito,
resgatamos a noção de espaço de vida para poder objetivar os movimentos pessoais, abrindo a
possibilidade de conectar os fenômenos da escala vivida à escala dos grupos demográficos.
(Marandola Jr., 2005b)
Operacionalizando a Noção de Espaço de Vida
A noção de espaço de vida foi trazida à Demografia por Daniel Courgeau, em seu
empenho de ultrapassar o lugar comum nas investigações sobre mobilidade. (Courgeau, 1988,
1990) Courgeau intentava modificar as formas de mensuração dos movimentos, incorporando aos
dados temporais os dados espaciais. Assim ele teria lugares e itinerários conectados por
movimentos com duração, distância e fluxos populacionais. Para permitir tal mensuração, o autor
teve de abrir mão da informação qualitativa, encarando todos os lugares da mesma forma, sem
considerar a hierarquização que cada pessoa estabelece entre os lugares de seu espaço de vida,
seja pela função, pelo envolvimento ou pelo subjetivo. (Frémont, 1980)
Antes de Courgeau dar este tratamento, espaço de vida foi utilizado enquanto componente
subjetivo do espaço social por Lewin (1951, apud Buttimer, 1980) e aplicado posteriormente de
forma mais ampla na geografia do espaço vivido de Armand Frémont, na década de 1970. Frémont
(1980) relaciona o espaço de vida à biografia da pessoa, como conseqüência de um inventário dos
lugares freqüentados por um homem no decorrer de sua vida, restituindo os valores que ele atribuiu
a cada um deles. A partir deste levantamento, procura (1) a hierarquização e as estruturas do
território freqüentado, assim como (2) as imagens, motivações, alienações e impulsos. O primeiro é
o espaço de vida, que descreve o conjunto de lugares e itinerários do homem, enquanto o espaço
vivido é a dimensão subjetiva (qualitativa) da existência.
Utilizamos espaço de vida no mesmo sentido: “o espaço da vida da pessoa, por onde ela
desenvolve seu cotidiano.” (Marandola Jr., 2005a, p.08) Ela é uma noção chave que tem servido
de ensejo para uma aproximação profícua entre Geografia e Demografia, tanto na discussão sobre
o planejamento e a participação (Marandola Jr. e Mello, 2005) quanto no contexto da mobilidade
metropolitana. (Marandola Jr., 2005c; Mello e Marandola Jr., 2005) Esta investigação tem se
desenvolvido no sentido de, por um lado, manter a noção de espaço de vida estritamente objetiva
enquanto incorporamos, por outro lado, uma dimensão qualitativa, procurando hierarquizar os
lugares a partir da experiência do próprio indivíduo. Para isso nos utilizamos de metodologias
qualitativas como a história de vida e a entrevista não-diretiva, além da arqueologia
fenomenológica (método de busca das essências), enquanto pressuposto teórico-metodológico
para leitura e análise das biografias. (Marandola Jr., 2004; 2005b)
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Esta proposta está alicerçada na tradição dos estudos humanistas e culturais em Geografia,
que se inspira numa abordagem fenomenológico-existencialista de pesquisa, partindo das
experiências pessoais, do espaço vivido, em direção ao significado do relacionamento do homem
com o espaço. Esta tradição incorpora a existência humana às análises acadêmicas, procurando
complexificar a realidade em foco com a perspectiva oblíqua da realidade. (Buttimer, 1976;
Marandola Jr., 2005d; Bellavance, 1999)
A partir deste marco teórico, utilizamos algumas categorias consagradas na Geografia e
na Antropologia, utilizadas de forma mais ou menos aproximada em uma ou na outra:
1. Lugar: é a menor célula espacial onde se estabelece a relação orgânica homem-meio,
tal como a casa, o bairro, a vizinhança. Possui gradações de envolvimento, não sendo
monolítico. (Buttimer, 1980) É a “pausa no movimento”, como diz Tuan (1983,
p.153), pois é quando o homem de-mora-se (Heidegger, 2001), permitindo assim o
envolvimento. Pode ter diversos tamanhos, mas mantém-se em geral na escala do
corpo, ou seja, é construído na experiência imediata.
2. Território: adotado a partir de uma leitura culturalista, é entendido como o conjunto
articulado de lugares e itinerários sobre os quais exercemos algum tipo de domínio,
como, por exemplo, o conhecimento e a segurança existencial. (Bonnameison, 2002;
Marandola Jr., 2006)
3. Umwelt: utilizamos esta noção a partir da leitura de Giddens (2002, p.120) que aplica
o conceito de Goffman ao contexto da Sociedade de Risco. Este seria “um núcleo de
normalidade (realizada) com que os indivíduos e os grupos se cercam.” O Umwelt tem
portanto uma função de proteção, proveniente do hábito e do costume estabelecidos
por porções indeterminadas do tempo e do espaço. Agrega-se ao casulo protetor
formado pelas relações sociais e espaciais mais elementares, proporcionando
segurança e identidade.
4. Comunidade: nosso entendimento de comunidade está ligado à leitura da sociedade
contemporânea feita por Bauman (2003), que tem neste ideal uma impossibilidade
virtual e uma busca efetiva. A comunidade é o elo antropológico e espacial do
Umwelt, estabelecido coletivamente num lugar e num território. Promove a segurança
e a auto-identidade tanto quanto o sentimento de pertença, aproximando-se assim da
noção de local de Bourdin (2001). É um fenômeno de localização definida, embora
cresçam hoje as comunidades espalhadas no tecido metropolitano, marcadas pelas
conexões em rede e não pela vizinhança ou proximidade espacial.
5. Habitar: noção trabalhada a partir da fenomenologia existencialista de Heidegger
(2001a, 2001b), que traz o sentido do próprio modo do homem ser e estar no mundo.
Longe de indicar a habitação, revela a essência dos modos próprios da vida do
homem. Abrange desde as funções primeiras de espacializar e socializar, até as
escolhas dos modos de vida e a experiência. É uma noção chave que permite
incorporar toda a dimensão da biografia da pessoa (incluindo o espaço de vida, o
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lugar, o território, o Umwelt e a comunidade) em uma só, expressando uma forma
própria de ser e estar na metrópole.
É a partir deste arcabouço teórico-metodológico que procuramos operacionalizar a noção
de espaço de vida: mantendo-a objetiva enquanto conjunto de lugares e itinerários que uma
pessoa percorre em sua história de vida, mas qualificando-a a partir da hierarquização subjetiva
dos lugares, o desenho de territórios e de comunidades e o estabelecimento e fortificação do
Umwelt. O habitar é a expressão de todo este ser e estar na metrópole, permitindo-nos analisar os
fenômenos de maneira integrada.
Como as histórias de vida estão vinculadas ao próprio espaço de vida (Pinçon e PinçonCharlot, 1988), procuramos através de entrevistas com pessoas que moram em diferentes
situações na região metropolitana (diferentes formas de habitar), reconstituir sua história de vida
mapeando numa base cartográfica regional o seu espaço de vida, nas diferentes faixas etárias. A
reconstituição envolve a pontuação de todos os lugares e trajetos componentes do espaço de vida.
Adicionalmente, procuramos qualificar esta informação cartografada, através da revelação da
própria pessoa do seu envolvimento com os lugares, os hábitos e os costumes, bem como os
medos, insegurança e angústia referentes a certos lugares ou situações. Os “comos” são
enfatizados em relação aos “por quês” (Turra Neto, 2004), priorizando a descrição do espaço e da
história de vida enquanto portadores de significado.
O resultado são descrições de diferentes formas de habitar que compõem o mosaico de
fragmentos holográficos que em sua projeção dão forma à metrópole. Estes parecem variar ao
infinito, mas não há o intuito de esgotá-los. Antes, a descrição e investigação de alguns deles já
nos fornecem elementos essenciais para pensar como se desenham padrões de mobilidade e os
mecanismos de proteção e risco que concorrem na delimitação da vulnerabilidade das populações
e seus lugares.
O que segue é um ensaio preliminar dos resultados obtidos nas pesquisas-piloto operadas
com o objetivo de testar a abordagem. Os resultados apontam para a possibilidade de ampliação
da pesquisa, baseada no aumento da amostragem e do universo analisado.
Espaços de Vida do Habitar Metropolitano de Campinas
A partir dos trabalhos de campo exploratórios e de outros operacionais, a primeira fase
desta pesquisa objetivou o delineamento de uma descrição de algumas das principais formas de
habitar na Região Metropolitana de Campinas. Este delineamento parte da experiência
difusamente colhida, compondo-se de depoimentos e observação de campo desenvolvida ao
longo dos últimos 36 meses. O que vamos expor, portanto, não são espaços de vida ligados a
histórias de vida específicas (apenas o último, a título de ilustração), mas modelos aproximativos
de espaços de vida que referem-se a algumas formas de habitar presentes na RMC. Este
procedimento auxilia a visualização da proposta num quadro modelado, permitindo consideração
crítica sobre as formulações.
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O primeiro modelo de espaço de vida metropolitano foi elaborado no contexto do trabalho
Life spaces, mobility and the metropolis: dialogue with Geography, apresentado em Tous, no
encontro da IUSSP (International Union for the Scientific Study of Population). (Mello e
Marandola Jr., 2005) Contudo, aquele modelo se aplicava melhor a uma metrópole industrial,
como São Paulo, onde a centralidade da cidade sede é preponderante, sendo comum
(principalmente nos anos de consolidação da região metropolitana) a migração de pessoas das
cidades vizinhas para o polo da região.
Já no caso de Campinas, há uma fragmentação maior tanto do tecido quanto da população
metropolitana. As próprias análises demográficas reforçam este entendimento. (Baeninger, 2001,
2002) Além de ter menor participação relativa em termos de população, economia e indústria, o
município de Campinas recebe um contingente muito baixo de migrantes das demais cidades da
região, possuindo nesta relação um elevado saldo migratório negativo. Os dados referentes à
pendularidade, conforme mostra Baeninger (2002), no entanto, sustentam a prevalência de
Campinas, embora também tenha um elevado contingente de pessoas que se dirijam do município
sede para trabalhar ou estudar em outras cidades da região.
Na Figura 01, observamos este primeiro modelo, que retrata o espaço de vida da
metrópole industrial. A faixa etária foi mantida, partindo-se das definições de Courgeau (1988),
que utiliza estes quatro estágios (infância, juventude, idade adulta e terceira idade) em suas
análises dos espaços de vida.
A infância representa o momento do início da construção de seu espaço de vida, sendo
este bastante limitado espacialmente. Seu espaço de vida está basicamente ligado aos laços
familiares, compostos pela casa, a escola, casa de amigos e familiares e, em alguns casos, alguns
lugares de lazer. Espaço de vida, comunidade e território possuem as mesmas dimensões.
Courgeau afirma que este primeiro espaço de vida simplificado corresponde “[...] au logement et
au lieu de travail ou de scolarité d’un même individu [...] ” ou a casa, o trabalho ou o lugar de
estudo da pessoa. (Courgeau, 1988, p.17)
No modelo, podemos observar que vivendo numa cidade da região metropolitana, a
criança tem seu espaço de vida e território limitados à comunidade ou ao Umwelt. Na verdade,
nesta faixa etária, não há diferença significativa entre eles. Os lugares a que vai sozinho são
poucos e limitados à sua capacidade motora, enquanto lugares fora da comunidade pressupõem o
acompanhamento dos pais. Mesmo que haja alguma visita a lugares mais distantes, estes não
fazem parte do espaço de vida da criança.
Na juventude, observamos a expansão do espaço de vida, em geral impulsionado por
maior independência dos pais e constituição de novos amigos e lugares a estes associados, como
sua casa, lugares de lazer que praticam em comum, escola (ensino médio ou ensino técnico fora
do bairro) e faculdade. As relações familiares e os lugares da infância, no entanto, permanecem
em geral intactos, talvez com a exclusão da casa de algum amigo de infância ou lugar que
freqüentava com os pais. Nesta idade, o espaço de vida se desprende da comunidade e do
território, expondo em primeira mão o jovem ao perigo. Segundo Courgeau (1988, p.18), este
espaço de vida corresponde à “[...] glissement dans l’espace.”
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Figura 01 – Espaço de vida da metrópole industrial
INFÂNCIA
JUVENTUDE
Legenda
IDADE ADULTA
TERCEIRA IDADE
O jovem pode ir estudar em uma outra cidade, conforme o modelo, lá estabelecendo
relações que ampliam o seu Umwelt. No entanto, estas relações em geral se limitariam aos
trajetos e a alguns poucos lugares envolvidos em suas atividades escolares (um bar, um
restaurante, uma casa de jogos etc). O trajeto até a outra cidade dificilmente se tornaria um
território, pois o efeito túnel e o trajeto feito como fluxo dificilmente estabeleceria as condições
para a pausa necessária ao envolvimento ou ao conhecimento. Os longos trajetos metropolitanos,
em geral, permanecem indiferenciados, portadores de perigos potenciais.
Na idade adulta, Courgeau (1988, p.18) aponta que “Dans le second type, l’espace de vie
gagne de nouvelles positions, en perd d’anciennes, tout en gardant certaines. On peut alors parler
de glissement dans l’espace.“ O nível de complexidade do espaço de vida chega a seu ápice, com
relações diversas entre os municípios, envolvendo a nova residência após o casamento, os lugares
que envolvem a vida dos filhos, a casa de familiares do cônjuge, lugares relacionados ao trabalho,
novos lugares relacionados ao lazer e aos serviços demandados pela família e assim por diante. O
habitar é caracterizado pelas constantes viagens, pela centralidade do local de trabalho e de
residência enquanto proteção e referência identitária, ao passo que a casa dos pais e dos sogros
dividem de certa forma a atenção enquanto portadores de tais referências.
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Se por um lado aumenta a proteção pela constituição de numerosos lugares, por outro a
vulnerabilidade pode manifestar-se a partir de quadros específicos, como a ansiedade em relação
à educação dos filhos, a busca de segurança no local de moradia, para si, o cônjuge e os filhos,
longos trajetos para ter acesso a serviços e ao mercado de trabalho ou mesmo para obter lazer e
cultivar os laços comunitários elementares.
Na terceira idade, vemos o espaço de vida involuir, quase voltando a ter as dimensões da
infância. Muitos lugares ficam no passado, estando presentes apenas na memória da pessoa,
fazendo parte de sua experiência, mas não mais de seu espaço de vida. A comunidade retrai-se
fortemente, voltando a compreender apenas poucos lugares na vizinhança e alguns parentes.
Novos lugares podem ser adicionados, principalmente ligados a atividades e serviços antes não
necessários. Segundo Courgeau (1988, p.18), “[...] L’espace de vie peut connaître une contraction
ou un repli dans l’espace, en perdant des implantations antérieures. C’est souvent ce qui se
produit lorsqu’un individu prend sa retraite et s’éloigne de son milieu de travail antérieur, tout en
gardant ses autres positions.”
Além da vulnerabilidade óbvia que se desenvolve nesta faixa etária (relacionada à saúde),
é significativa a dificuldade de locomoção e de acessibilidade aos lugares. Esta dificuldade às
vezes pode contribuir para a fragilização de vínculos solidários, dispersos no espaço
metropolitano. Por outro lado, a fixidez favorece o fortalecimento de relações mais próximas,
principalmente relacionadas à vizinhança e a círculos elementares locais.
Embora muitos elementos discutidos a partir deste espaço de vida possam ser válidos para
o habitar na RMC, o que não corresponde à dinâmica regional de forma mais significativa é a
migração entre as cidades ao longo da história de vida. De fato, na RMC, com a importância
relativa que todas as cidades da região possuem e a acessibilidade entre elas, este fenômeno é a
exceção na região. As pessoas nascidas e criadas em uma cidade, mesmo que não trabalhem nem
estudem nela, dificilmente mudam-se para Campinas ou Americana, os dois maiores centros da
região. O que observamos é o uso da mobilidade pendular para estabelecer estes nexos, muito
mais do que a mudança de residência. Esta é muito mais comum entre os migrantes, que chegam
na região, em grande parte em Campinas, e nos anos seguintes mudam-se em definitivo para
outra cidade. (Baeninger, 2002)
Assim, procuramos descrever duas formas de habitar em relação a este tempo de
experiência na região. Os primeiros são aqueles que tem um habitar de-morado, ou seja, que
vivem desde a infância ou no início da juventude, constituindo seus laços elementares aqui. A
estes, chamaremos de Lares.2 O segundo grupo são daqueles migrantes que chegam aqui na idade
adulta, em busca de trabalho, moradia ou instrução, e por aqui ficam. Estes têm raízes fora da
2
Utilizamos os Lares como uma metáfora, a partir da descrição de uma das cidades invisíveis de Italo Calvino. Estes
simbolizam os moradores mais antigos, que já estão enraizados com profundo envolvimento com o lugar e a região.
(Calvino, 1990)
10
região, com suas relações elementares distantes, tendo um habitar des-enraizado. Chamaremos
a estes de Penates.3 (Marandola Jr., 2006)
No entanto, há muitas nuanças e possibilidades em ambos os casos. A título de reflexão,
nos limitaremos a descrever duas situações análogas vividas por Lares e Penates: aqueles que
moram na metrópole (Campinas) e aqueles que moram na região metropolitana (nas demais
cidades).
A Figura 02 representa o habitar de-morado dos lares da metrópole, ou seja, de Campinas.
Na infância, pouca diferença haverá em qualquer um dos casos. Talvez os Lares da metrópole
tenham hoje uma mobilidade mais acentuada do que em outros tempos, já desde cedo utilizando
transporte escolar para ir estudar a longas distâncias. Nestes casos, no entanto, o seu espaço de
vida pode ser maior, mas não a sua hierarquia de lugares nem seu Umwelt.
Na adolescência já podemos encontrar situações um pouco diferentes, com
estabelecimento de alguns lugares em outras cidades da região a título de lazer ou de visitas a
amigos ou parentes. Os lugares na metrópole podem ser mais numerosos devido às oportunidades
de vida que ela oferece. Como sua mobilidade não enfrenta longos trajetos em caminhos
rodoviários em direção a outras cidades, a densidade da vivência da metrópole pode alcançar
níveis bastante razoáveis, ampliando grandemente o território dentro do espaço da própria cidade.
Por outro lado, todos os riscos e tensões ambientais concentradas na área de maior densidade
atingirão a pessoa desde a juventude; as relações elementares fortes, no entanto, agirão no sentido
de manter a vulnerabilidade em grau aceitável.
Na idade adulta, os Lares da metrópole também têm o ápice de seu espaço de vida, com o
estabelecimento de novas relações elementares (família do cônjuge) e a mudança de comunidade
(casar em geral resulta em mudar seu espaço de vida). As relações de proteção estabelecidas na
infância e juventude são acrescentadas àquelas que o adulto irá desenvolver no novo local de
moradia, fornecendo aos filhos o casulo protetor e o Umwelt necessário, tal qual ele teve em sua
própria infância, na casa dos pais. As relações com outros municípios permanecem apenas
funcionais e esporádicas, como visitas a trabalho ou a algum ponto de turismo ou lazer. O espaço
de vida, embora amplo e diversificado, está fortemente concentrado em Campinas, na própria
metrópole.
Por fim, tal qual no primeiro modelo, a terceira idade traz a redução do espaço de vida à
comunidade e aos laços elementares em torno dos lugares primários. Morando na metrópole,
ainda pode-se gozar de certas acessibilidades a serviços e comércio, talvez até mantendo certos
níveis de mobilidade. No entanto, a maior parte dos lugares que configuraram o espaço de vida
ao longo da história de vida da pessoa, agora fazem parte apenas de sua memória.
3
Para Calvino (1990), os Penates representam os novos moradores, os migrantes, aqueles des-enraizados que
procuram as mudanças, o desenvolvimento e o novo, não raro entrando em conflito com os Lares por causa desta
diferença de perspectiva.
11
Figura 02 – Habitar de-morado: Lares da metrópole
p
JUVENTUDE
INFÂNCIA
Legenda
IDADE ADULTA
TERCEIRA IDADE
Ao contrário do que se supõem com freqüência, a dinâmica dos Lares da região
metropolitana não difere tanto daqueles da metrópole. Diferente do modelo para a metrópole
industrial (Figura 01), onde prevalecia a dependência em relação à cidade sede, o que se observa
na RMC é uma forte vinculação com a própria cidade natal. Quando é necessário, busca-se
trabalho ou estudo em outras cidades, como a Figura 03 mostra, na Juventude e na Idade Adulta,
com o estabelecimento de lugares na metrópole. Contudo, nota-se em ambos os casos que a
concentração do espaço de vida está na cidade natal. A gravitação em torno de Campinas ocorre
de forma bastante fragmentada e seletiva, não prevalecendo o modelo da metrópole industrial que
obrigava a população a recorrer à cidade sede em busca de bens, serviços e lazer. É evidente que
a hierarquização da rede urbana organiza as cidades e muitas coisas só serão encontradas em
Campinas. Contudo, é menor o grau de dependência orgânica (ou seja, para as tarefas do dia-adia) do que se costuma atribuir.
Algumas formas de habitar de-morado na região metropolitana têm mais relações entre as
cidades da região do que expresso na Figura 03. Os próprios dados de pendularidade e da
pesquisa Origem-Destino, realizada em 2003, apontam para estas relações significativas entre as
12
cidades da região. (Jacob e Sobreira, 2005) Estes possuem seus lugares e referências culturais e
históricas bem estabelecidas, até mesmo em cidades pequenas como Jaguariúna, Holambra e
Pedreira. Cidades maiores como Valinhos, Sumaré e Indaiatuba, apesar de apresentar números
significativos de pendularidade (em especial Sumaré), possuem serviços e mercado de trabalho
amplo que absorve boa parte de sua mão de obra. Em vista disso, estes Lares de-moram-se em
sua própria cidade, mantendo relações específicas e funcionais com o município sede.
Figura 03 – Habitar de-morado: Lares da região metropolitana
INFÂNCIA
JUVENTUDE
Legenda
IDADE ADULTA
TERCEIRA IDADE
Quanto aos Penates, de habitar des-enraizado na metrópole (Figura 04), mudaram-se há
pouco tempo para cá, por vários motivos que poderão ser discutidos em outra ocasião. (Antico,
1997) Portanto, seu espaço de vida na RMC estabelece-se a partir da Idade Adulta, faltando-lhes
os vínculos elementares do Umwelt e a memória para protegê-los. Em vista disso, realizam
constantes viagens para fora da região, em direção à terra natal, onde familiares e antigos amigos
estão. Lá revisitam lugares e pessoas, gozando de proteção e aconchego.
Como não possuem lugares do passado em sua memória, têm de estabelecer relações de
confiança e cumplicidade a partir da própria relação, o que Giddens (2002) chama de relações
13
puras. Não há parâmetros para confiar ou não em alguém, pois não há relações elementares
envolvidas. Os únicos parâmetros são os expostos na própria relação. Estas são, evidentemente,
mais arriscadas, expondo os Penates, em especial na metrópole contemporânea, a perigos
variados, aumentando sua vulnerabilidade.
Figura 04 – Habitar des-enraizado: Penates da metrópole
Legenda
IDADE ADULTA
TERCEIRA IDADE
Contudo, justamente por não possuir outros vínculos, acabam estabelecendo
envolvimento com as comunidades profissionais, além de procurar estabelecer, nem sempre com
sucesso, relações duradouras no próprio lugar de residência. Quando tal moradia é em
condomínios horizontais ou verticais (destino privilegiado de Penates), tais dificuldades podem
ser ainda maiores.
A terceira idade para os Penates continuará marcada pelas constantes idas e vindas para a
cidade natal. No entanto, dificilmente estes voltarão para lá. Nesta fase do ciclo vital, seus
próprios filhos e netos já estarão vivendo na metrópole (capaz de absorver população) e seu
habitar já se tornou de-morado. Estes, no entanto, nunca serão Lares. Talvez seus filhos o sejam,
dependendo da natureza do envolvimento da família com o lugar de origem.
A Figura 05 mostra o habitar des-enraizado dos Penates da região metropolitana. A
principal diferença destes em relação aos Penates da metrópole é que estabelecem relações mais
estreitas com outras cidades da região. Diferente daqueles que se direcionam para a metrópole,
estes Penates procuram mais o conhecimento, bens, serviços e lazer em outras cidades,
estabelecendo espaços de vida mais esgarçados, embora muito coesos na cidade de moradia. Por
outro lado, a metrópole tem um significado maior para eles do que para os Lares da região
metropolitana, tanto pelo fascínio que ela exerce, quanto pela centralidade de serviços
metropolitanos, principalmente ligados ao lazer, ao trabalho e à educação.
Com esta alta mobilidade espraiada em várias cidades e longos trajetos, estes Penates
assumem riscos altos ao mover-se e ao dirigir-se a lugares que mantém relações efêmeras. Só no
seu local de moradia é que possuem fixidez. Mesmo assim, esta é relativa e devido à mobilidade
14
e ao esgarçamento do espaço de vida, é frágil em estabelecimento de Umwelt e comunidade.
Contudo, beneficiam-se da proximidade maior entre os moradores das cidades da região, que
apresentam quadros de coesão social mais expressivos que a metrópole. Na terceira idade, a
exemplo dos Penates da metrópole, vivem o dilema de voltar à terra natal ou acompanhar os
filhos, provavelmente genitores de uma nova geração de Lares.
Figura 05 – Habitar des-enraizado: Penates da região metropolitana
Legenda
IDADE ADULTA
TERCEIRA IDADE
Por fim, a Figura 06 representa o espaço de vida de M.M., 26, morador do distrito de
Nova Veneza, em Sumaré, localizado na Rodovia Anhanguera, principal eixo rodoviário da
RMC, a 20 minutos do centro de Campinas. Bem integrado à dinâmica metropolitana, M.M. não
passou de algumas idas ao centro de Sumaré em sua infância. Na Juventude, estudou em
Americana e Campinas, estabelecendo relações pontuais nas duas cidades. Com familiares em
São Paulo e São Bernardo do Campo, sempre viajou para lá, em busca da complementação do
Umwelt.
Na Idade Adulta, vemos a complexidade que, apenas com esta idade, M.M. já alcançou na
região. Note-se que o aumento de lugares se concentra em Sumaré, com a casa da namorada
tornando-se um novo “ponto zero” de onde partem deslocamentos. A partir desta relação, seu
espaço de vida incorporou ainda a casa da sogra, o trabalho da namorada, além da casa de
parentes dela, também localizados fora da RMC.
Atualmente trabalha em Itatiba, obrigando-o a longas horas de trânsito diárias. Contudo,
esta alta mobilidade é vista como aceitável, pois já faz parte de seu modo de vida realizar tais
viagens. Ir a Campinas ou a outra cidade da região para algum evento ou para o lazer é atividade
corriqueira, que implica em aumento da mobilidade e de suas conseqüências. M.M. possui um
espaço de vida bastante esgarçado, embora com forte vinculação nos pontos do casulo protetor e
do lugar original (laços familiares).
Este espaço de vida mostra que, quando traçamos a biografia da pessoa no espaço a
complexidade das relações é muito maior do que aquelas que vimos nos modelos anteriores. É
15
por este motivo que é tão importante realizar esta descrição em várias situações, que são muito
mais numerosas do que as expostas aqui. Há uma multiplicidade de formas de habitar que
repercutem no espaço de formas diversas, produzindo rebatimentos no ambiente e na mobilidade.
Em outra palavras, cada biografia e seu respectivo espaço de vida pode revelar aspectos
importantes da vulnerabilidade que precisam ser trazidos à tona e analisado em conjunto com
diferentes fontes de dados e informações.
Figura 06 – Habitar de-morado: M.M.
INFÂNCIA
JUVENTUDE
Legenda
IDADE ADULTA
Considerações Finais
A relação entre mobilidade e vulnerabilidade fica evidenciada na análise preliminar dos
espaços de vida do habitar de-morado e des-enraizado de Campinas e dos municípios da região
metropolitana. Enquanto modelização, tais espaços de vida são simplificações que indicam
orientações e tendências. Contudo, como foram elaborados a partir de experiências e histórias de
16
vida, apontam para questões pertinentes no contexto da distribuição espacial da população e sua
dimensão ambiental.
Em primeiro lugar, a estruturação do tecido metropolitano disperso, como é o caso da
RMC, promove padrões de mobilidade complexos que envolvem diferentes cidades, trajetos,
atividades e meios de transporte simultaneamente. Esta complexidade dificulta a ação de
mecanismos de proteção, favorecendo o risco em cada uma destas atividades, de forma setorial, e
a vulnerabilidade das populações, de forma mais ampla.
Além disso, o habitar des-enraizado, seja na metrópole ou na região metropolitana,
apresenta riscos específicos relacionados à insegurança existencial e a dificuldades de adaptação.
Tais populações estão mais vulneráveis a certos riscos, ao passo que assumem outros (como os
oriundos da Sociedade de Risco) de forma mais ampla. Os Penates da região metropolitana
enfrentam certos riscos associados aos longos trajetos, ao passo que os Penates da metrópole
vivem situações de tensão ambiental mais intensa.
Em terceiro lugar, os Lares, em seu habitar de-morado, conseguem estabelecer conexões
entre lugares ao longo do tempo, desenvolvendo historicidade e geograficidade que reforçarão o
Umwelt e a comunidade, favorecendo a proteção. Possuem conhecimentos que auxiliam a lidar
com o perigo, em especial aqueles já enfrentados de longa data. No entanto, mostram-se mais
vulneráveis a riscos oriundos da Sociedade de Risco, provenientes de escalas superiores. Seus
territórios estão bem estabelecidos, mas são ameaçados pelas novas formas do tecido
metropolitano.
Por fim, o espaço de vida é uma noção que permite operacionalizar o habitar,
potencializando a descrição da mobilidade ao longo da biografia da pessoa. Permite associar
dados quantitativos e qualitativos, ao mesmo tempo que possibilita aprofundar no conhecimento
dos mecanismos e elementos que interferem no desenho das diferentes vulnerabilidades.
Aproximar-se destes mecanismos é um passo importante para poder auxiliar no gerenciamento
dos riscos e na diminuição da vulnerabilidade oriundas da relação população-ambiente.
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