Se o conhecimento tem por objeto o ser, e a ignorância tem por objeto o não-ser, a opinião será, portanto, o termo médio entre o conhecimento e a ignorância. Platão, A República, Livro V, Secção 478 c Agradecimentos À Professora Doutora Catarina Mendes Leal, orientadora da presente dissertação, cuja disponibilidade, acompanhamento, orientação, e sugestões foram imprescindíveis ao desenvolvimento do conteúdo e estrutura da dissertação. Deixo um agradecimento especial à sugestão de desenvolver um exercício prático através da aplicação de uma fórmula de aferição do poder dos Estados, cujo papel foi crucial para melhor entender o lugar dos BRICS na ordem atual. Ao Professor Doutor Carlos Gaspar (cujos seminários foram extremamente cativantes e determinantes para a escolha do tema da dissertação), por me ter incutido o gosto pelo estudo das questões que envolvem a polaridade, a natureza dos Estados e as perspetivas das diferentes teorias das relações internacionais. Por fim, aos meus pais e irmã, por todo o apoio que sempre me deram para conseguir atingir os meus objetivos. Deixo ainda um agradecimento muito particular à minha entidade empregadora – a Xerox – por me ter facilitado a conclusão da dissertação através da concessão de um horário a tempo parcial. Resumo A ordem internacional atual é substancialmente distinta da ordem que surgiu com o colapso da União Soviética, em 1991. Se, por um lado, deixou de ser totalmente correto classificar a ordem atual como exclusivamente unipolar, por outro lado é igualmente prematuro classificá-la como multipolar. Ora, os BRICS – enquanto maiores representantes do protagonismo das potências emergentes – constituem um dos principais fatores que contribuíram para esta modificação, em especial durante a década de 2000 a 2010. A razão fundamental já não é o desenvolvimento militar ou a ameaça nuclear, mas sobretudo a força da economia e da geoeconomia. O colossal crescimento económico está, portanto, na base de todo o protagonismo dos BRICS. De um modo geral, os BRICS são representativos de seis perspetivas fundamentais: (1) Surgiram a partir de um conceito criado pelo mundo económico e financeiro (a Goldman Sachs), o que prova que os mercados, a geoeconomia e, cada vez mais, a geofinança influenciam crescentemente a geopolítica dos Estados. (2) Representam o desenvolvimento crescente do regionalismo enquanto característica marcante da ordem internacional atual. A entrada da África do Sul é exemplo disto mesmo. (3) Não atuam enquanto um bloco coeso e com uma estratégia comum, mas antes baseados em acordos esporádicos e objetivos muito concretos, como a alteração de regras em organizações como o Banco Mundial, o FMI e a ONU, ou a defesa de um mundo multipolar. (4) Possuem graves constrangimentos regionais, desde Taiwan, passando por Caxemira, até à Tchetchénia, que constituem uma desvantagem considerável em relação aos EUA. (5) São essencialmente fortes em hard power (sobretudo na capacidade económica e na massa crítica), mas ainda muito fracos em soft power, justamente a vertente que versa sobre o desenvolvimento social, os direitos humanos, o regime político e a capacidade de atrair e persuadir os Estados e a opinião pública mundial a seguir o seu modelo de organização social e cultural. (6) E, por fim, não são ainda sociedades pós-industriais, mas os dados indicam que, assim que atingirem este patamar, têm todas as potencialidades para atingir o nível dos EUA. Em suma, a superpotência continua a ser apenas uma – os EUA – mas já não se trata do mesmo conceito de superpotência que surgiu no final da Guerra Fria. A presente dissertação avalia o poder atual dos EUA – e a sua evolução ao longo da última década – face ao poder crescente dos BRICS, tanto na vertente de hard power como de soft power. Índice Pág Lista de Siglas, Acrónimos e Abreviaturas Introdução.................................................................................................................. 1 1. Capítulo I – O Poder na Ordem Internacional Atual e o Lugar dos BRICS 1.1 Polaridade, Poder e a Ordem vigente................................................................... 4 1.2 Superpotências, Grandes Potências e Potências Regionais.................................. 9 1.3 Polos de Poder Atuais e a Dinâmica do Regionalismo........................................ 12 1.4 A Teoria da Transição de Poder........................................................................... 16 1.5 Soft Power, Hard Power e Smart Power.............................................................. 18 1.6 Da Geopolítica à Geoeconomia............................................................................ 21 1.7 BRICS: um mero acrónimo?................................................................................ 24 2. Capítulo II – O Protagonismo dos BRICS na Cena Internacional 2.1 Brasil – Um Gigante Mundial ou Regional?........................................................ 27 2.1.1 A Diplomacia Brasileira e as Relações com os Estados Vizinhos.............. 27 2.1.2 Os Trunfos do Brasil: novos combustíveis................................................. 31 2.2 Rússia – A Reemergência de um Gigante?.......................................................... 35 2.2.1 O Lugar da Rússia no Mundo..................................................................... 35 2.2.2 Os Trunfos da Rússia: o gás natural e a “diplomacia do tubo”................... 40 2.3 Índia – A China do Futuro?.................................................................................. 45 2.3.1 Crescimento Indiano: diferente do chinês?................................................. 45 2.3.2 A Índia no Contexto Regional e Mundial................................................... 49 2.4 China – A Grande Desafiadora da Ordem Unipolar............................................ 53 2.4.1 Os Trunfos da China: crescimento económico e militar............................. 53 2.4.2 Taiwan, Tibete e Xinjiang........................................................................... 57 2.4.3 A Transformação da China: apenas económica ou também social e política?................................................................................................................ 60 2.4.4 A Estratégia da China.................................................................................. 62 2.5 África do Sul – um pequeno gigante 63 2.5.1 O papel da África do Sul nos BRICS: uma relevância essencialmente regional................................................................................................................. 63 2.6 BRICS: pontos estratégicos e desvantagens (um balanço).................................. 66 3. Capítulo III – O Poder Real dos BRICS 3. Uma Fórmula de Poder.......................................................................................... 69 3.1.1 Apresentação............................................................................................... 69 3.1.2 Relevância das Variáveis e suas Fontes...................................................... 71 3.1.3 Execução..................................................................................................... 72 3.2 Hard Power: uma avaliação................................................................................. 73 3.3 Soft Power: uma avaliação................................................................................... 77 3.4 O Poder Real dos BRICS..................................................................................... 84 4. Capítulo IV – A Ordem Internacional Atual: entre a Multipolaridade e o Regionalismo 4.1 EUA: Perda de Poder ou Reformulação do Conceito de Superpotência?............ 87 4.2 A Estratégia dos EUA para conter os BRICS...................................................... 91 4.3 A Reestruturação das Organizações Internacionais............................................. 94 4.4 BRICS: Sinónimo de Transição na Classificação da Ordem Atual?................... 103 Considerações Finais................................................................................................ 108 Bibliografia Referências Relevantes Anexo I Anexo II Lista de Siglas, Acrónimos e Abreviaturas ASEAN – Associação de Nações do Sudeste Asiático BP – British Petroleum BASIC – Brasil, África do Sul, Índia, China BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul CIA – Central Intelligence Agency IBSA – Índia, Brasil, África do Sul IDE – Investimento Direto Estrangeiro IDH – Índice de Desenvolvimento Humano FAOSTAT – Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação FEM – Fórum Económico Mundial FMI – Fundo Monetário Internacional GUAM – Organização para a Democracia e o Desenvolvimento Económico Mercosul – Mercado Comum do Sul NAFTA – Tratado Norte-Americano de Livre Comércio NATO – Organização do Tratado do Atlântico Norte OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico OMC – Organização Mundial de Comércio OMT – Organização Mundial de Turismo ONU – Organização das Nações Unidas OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo Petrobras – Petróleo Brasileiro SA PIB – Produto Interno Bruto PPP – Paridade de Poder de Compra PRB – Population Reference Bureau SADC – Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral START – Strategic Arms Reduction Treaty UA – União Africana UAAA – União Aduaneira da África Austral UE – União Europeia UNASUL – União de Nações Sul Americanas UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento Introdução O início do século XXI conferiu uma nova importância à expressão potências emergentes. Torna-se cada vez mais claro que o protagonismo económico e político já não se encontra só do lado dos EUA, mas também do lado de países que se no passado estavam condenados ao subdesenvolvimento, hoje demonstram uma evolução económica, social e política que pode alterar o seu estatuto na cena internacional. Tratase de potências que mais do que se destacarem por via do seu novo desenvolvimento, destacam-se sobretudo porque começam a ter capacidade de liderança regional. De facto, é a dinâmica do regionalismo que atualmente coloca as maiores questões sobre a classificação da ordem internacional, e os BRIC (mais recentemente BRICS, com a entrada da África do Sul em 2011) – pela sua dimensão, protagonismo político e enorme crescimento económico – constituem o grupo de países que melhor simbolizam tanto esta dinâmica do regionalismo, como o conceito de potências emergentes. A criação do acrónimo BRIC e as cimeiras entre estas quatro potências emergentes não surgiram, no entanto, por iniciativa dos próprios líderes políticos que as representam, mas antes por iniciativa de uma agência do mundo financeiro – a Goldman Sachs 1 . Em 2001, esta agência criou o termo BRIC e previu que, em 2050, estes quatro países serão as economias dominantes. Figura I – Previsões da Goldman Sachs para 2050 Fonte: Goldman Sachs (2005) 1 Jim O’Neill, “Building Better Global Economic BRICs”, Global Economics, Paper nº 66, Goldman Sachs, Nova York, 2001, pp. 1-15 (disponível em http://www.goldmansachs.com/ideas/brics/buildingbetter.html). 1 Desde então, a comunidade internacional tem prestado maior atenção às economias emergentes. Os próprios BRIC expandiram-se para os BRICS e deram seguimento à ideia criada pela Goldman Sachs, organizando-se em cimeiras e apresentando alguns objetivos políticos e económicos. Contudo, os BRICS não deixam de apresentar diferenças assinaláveis entre si. A heterogeneidade deste grupo pode mesmo ser considerada contraditória, na medida em que pretendem passar a ideia de que possuem uma estratégia comum quando, na realidade, cada uma destas potências representa objetivos regionais e internacionais distintos. É por esta razão que importa analisar a verdadeira índole dos BRICS; qual a homogeneidade que existe entre estas potências tão distintas e tão distantes umas das outras, e perceber se, em conjunto, os BRICS representam efetivamente uma única voz ou se, pelo contrário, é cada potência emergente que, por si só, pretende atingir os seus próprios objetivos. Por outro lado, importa ainda verificar qual é a reação da superpotência quando confrontada com uma realidade que pode ameaçar a sua supremacia, sobretudo tendo em conta que a abordagem seguida, no passado, por George W. Bush e, atualmente, por Barack Obama, é substancialmente diferente. A presente dissertação pretende avaliar o poder real dos BRICS face aos EUA (conjuntamente com a maioria dos países do G20 2 ) na década de 2000 a 2010. Será dada especial relevância à dicotomia entre o hard power e o soft power, enquanto duas vertentes com índoles diferentes e, frequentemente, utilizadas de modo separado. O ponto central será uma avaliação concreta do poder no capítulo III. A base será uma fórmula que compreende o hard power e o soft power, elaborada com base nas fórmulas de Ray Cline 3 e de Mendo Castro Henriques e António Paradelo 4 . O objetivo será a realização de um ranking final com a soma dos rankings do soft power e do hard power, seguindo-se a análise subsequente não apenas do ranking final, mas de todos os rankings que levarão à soma final. Em última análise, o propósito da presente dissertação será o de verificar em que lugar se situam os BRICS em relação ao poder da superpotência que são os EUA. 2 Serão consideradas como objeto de análise de poder as potências do G20, à exceção da Coreia do Sul, devido à sua pequena dimensão, e da União Europeia enquanto bloco, pois é sobretudo representada pelas quatro grandes potências europeias (Reino Unido, Alemanha, França e Itália). No seu lugar, serão incluídas a Venezuela e o Irão, devido à sua importância ao nível energético; crescente protagonismo internacional contra os EUA; e desenvolvimento nuclear (no caso do Irão). 3 Ray S. Cline, World power assessment: A calculus of strategic drift, Westview Press, Boulder, Colorado, 1975 4 Mendo Castro Henriques e António Paradelo, “Uma Fórmula de Soft Power”, in Nação e Defesa, nº113, 3ª série, Lisboa, 2006, pp. 107-127 2 A metodologia a seguir será, sobretudo, descritiva e analítica, assentando em três perspetivas: a) Análise bibliográfica e documental; b) Recolha e análise de dados de diversas organizações e empresas (sendo as mais relevantes: o Banco Mundial, a OMC, a ONU, o FMI ou ainda a Gazprom); c) Análise do discurso político. A análise assentará sobre duas vertentes fundamentais. A primeira é a base do que verdadeiramente catapultou os BRICS para um maior protagonismo – a economia. A Goldman Sachs previu a ascensão dos BRIC baseada exclusivamente em estudos económicos; e, efetivamente, o mundo hoje reconhece o Brasil, a Rússia, a Índia e a China (a África do Sul em menor escala) enquanto grandes potências devido ao seu extraordinário crescimento económico. É por esta razão que faz todo o sentido abordar a problemática da geopolítica cada vez mais dominada pela geoeconomia, e analisar as consequências deste fenómeno no crescimento dos BRICS. A segunda vertente assenta na abordagem dos conflitos regionais enquanto potenciadores de grandes discórdias e enquanto obstáculos ao poder de uma grande potência. No caso de alguns dos BRICS, mais do que conflitos regionais, trata-se de focos que evidenciam potenciais embates à escala mundial, além de que podem igualmente servir como fatores de enfraquecimento do poder destes países, pois suscitam rivalidades e apoios regionais e mundiais. Desde a Tchetchénia até Taiwan, o poder regional de alguns dos BRICS permanece bastante contestado, o que justifica a sua análise. Em termos de estrutura, importa primeiramente referir que o segundo capítulo será mais extenso comparativamente com os restantes capítulos, dado incluir a análise pormenorizada dos pontos estratégicos e dos constrangimentos de cada um dos BRICS. Assim, o primeiro capítulo será consignado à definição dos conceitos relevantes e à descrição da distribuição atual do poder; o segundo capítulo versará sobre as vantagens (económicas, militares ou políticas) de cada um dos BRICS e, paralelamente, sobre os constrangimentos que enfrentam (desde os conflitos regionais até às dificuldades sociais); o terceiro capítulo analisará, na prática, a fórmula de avaliação do poder a ser aplicada; e por fim, o quarto capítulo analisará a reestruturação das organizações internacionais e a reação dos EUA ao crescimento destas potências. 3 Capítulo I – O Poder na Ordem Internacional Atual e o Lugar dos BRICS 1.1 Polaridade, Poder e a Ordem vigente A temática da ascensão dos BRICS e a sua influência, tanto no poder dos EUA como na ordem vigente, obriga necessariamente à definição de três conceitos capitais: polaridade, poder e ordem. Trata-se de conceitos que envolvem diretamente a ação dos BRICS, pelo que a análise da sua natureza é de extrema importância para a qualificação desta ação e subsequente conclusão relativamente à ordem vigente e estrutura do poder. O conceito de polaridade implica a assunção de que a distribuição do poder no sistema internacional é necessariamente desigual. Randall Schweller transmite bem a essência deste conceito ao utilizar os termos “oligarquia” e “hegemonia" (consoante o número de polos existentes) enquanto formas de distribuição do poder pelos Estados 1 . O conceito de polaridade baseia-se, pois, numa perspetiva realista das relações internacionais: a de que a incontornável competição entre os Estados gera obrigatoriamente polos de poder no contexto da anarquia intrínseca ao sistema 2 . Mas mais do que a noção de polos de poder, a questão essencial no conceito de polaridade é a de que nem todos os Estados têm a capacidade necessária para atingir o patamar de grande potência. A polaridade significa, portanto, que apenas os grandes interessam; que apenas as grandes potências têm a capacidade para se qualificar enquanto polo por possuírem um conjunto de elementos que lhes permitem ter maior poder do que outros Estados. No fundo, é o conceito de poder que confere o estatuto de polo aos Estados. Mas será o poder divisível ou será que o estatuto de grande potência exige uma série de elementos básicos interdependentes e, portanto, indivisíveis? De facto, é evidente que os Estados podem destacar-se em vertentes específicas do poder – como a economia ou os recursos naturais – e tornar-se inclusivamente potências de média 1 Schweller especifica que só alguns Estados têm capacidade de atingir o estatuto de grande potência e tornar-se num polo do sistema internacional, e como tal o poder só pode estar distribuído de duas maneiras: ou pertence apenas a alguns numa oligarquia (associado aos conceitos de multipolaridade, bipolaridade ou outros que envolvam mais do que uma potência) ou pertence a um só numa hegemonia (associado ao conceito de unipolaridade). Segundo Schweller: “The very concept of polarity implies oligarchic or, in the case of unipolarity, hegemonic rule over the international system.” Randall Schweller, “Entropy and the trajectory of world politics: why polarity has become less meaningful”, Cambridge Review of International Affairs vol. 23, nº1, 2010, p. 149. 2 Segundo Barry Buzan: “(…) polarity rests on a realist understanding of what the international system is and how it works. It defines the system primarily in terms of states, and the dynamic of international relations primarily in terms of conflict”. Barry Buzan, The United States and the Great Powers: World Politics in the Twenty-First Century, Polity Press, Cambridge, 2004, p. 41 4 dimensão ou à escala regional. Contudo, o estatuto de grande potência exige mais do que uma só vertente, pelo que abordar a questão das grandes potências implica necessariamente considerar o poder indivisível. A definição de poder em todas as suas vertentes requer, portanto, a definição de uma série de elementos obrigatórios. Neste sentido, o realismo estruturalista de Kenneth Waltz 3 apresenta uma definição bastante completa do conceito de poder, ao estipular que uma grande potência requer obrigatoriamente cinco elementos: uma população e um território de grandes dimensões; recursos naturais em abundância; grande capacidade económica; grande capacidade militar; e, por fim, competência e estabilidade políticas. Tendo em conta estes elementos, rapidamente se conclui que só um número muito reduzido de Estados consegue preencher estes requisitos: Quadro I Requisitos de Poder País EUA Rússia China Brasil Canadá Japão Índia Austrália Reino Unido França México Itália Alemanha Arábia Saudita Indonésia Irão Venezuela Argentina África do Sul Turquia Território Extenso1 X X X X X X X X Grande População2 X X X X Recursos Naturais3 X X X X X X X Economia Forte4 X X X X X X X X X X Força Militar5 X X X Competência Política6 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X Total de requisitos 6 5 5 4 4 4 3 3 3 3 2 2 2 2 1 1 1 1 0 0 1 Países com território superior a 2 milhões de Km2 – Banco Mundial 2 Países com população superior a 100 milhões de habitantes – Banco Mundial 3 Países ricos em petróleo, gás natural e com capacidade de produção de novos combustíveis – OPEP e BP 4 Países com um PIB nominal superior a um milhão de milhões de dólares (1 bilião de dólares) – Banco Mundial 5 Países que gastam mais de 50 mil milhões de dólares em recursos militares – Banco Mundial 6 Países cuja eficiência do Estado foi considerada superior a 70% pelo Banco Mundial Países que preenchem maior número de requisitos de poder. 3 Kenneth Waltz, “The Emerging Structure of International Politics”, International Security, vol. 18, nº2, The MIT Press, Harvard, 1993, p. 50 5 Os BRICS – com a exceção da África do Sul – estão nesse grupo limitado de países, assim como os EUA. O grupo deixa, no entanto, de ser limitado quando a perspetiva é exclusivamente o número de grandes potências (e não o número de Estados no mundo). Ora, se em termos de grandes potências são vários os países que conseguem, atualmente, corresponder a estes cinco elementos (cerca de dez, mais do que no final da Guerra Fria), então a relação de forças deve ser reequacionada. É neste contexto que se impõe a questão da classificação da ordem internacional vigente. Mas o conceito de ordem é mais complexo do que a mera relação entre os Estados. A definição de Hedley Bull é particularmente elucidativa sobre a complexidade entre as unidades do sistema. Bull estabelece dois conceitos de ordem: um que envolve unicamente a relação entre os Estados enquanto unidades mínimas a considerar (ordem internacional); e um segundo conceito que se refere sobretudo à sociedade entre os seres humanos, envolvendo um número muito maior de unidades como os Estados, regimes políticos, valores humanos, e o próprio indivíduo enquanto unidade mínima (ordem mundial) 4 . Ora, a ordem mundial é, segundo Bull, mais importante por duas razões: a primeira é o facto de o indivíduo constituir uma unidade inatingível pela ordem internacional; e a segunda é o facto de esta mesma unidade ser indestrutível e considerar os valores humanos, contrariamente às unidades da ordem internacional que são os Estados, impérios ou organizações. Nas palavras de Bull: “World order is wider than international order because to give an account of it we have to deal not only with order among states but also with order on a domestic or municipal scale 5 . A classificação da ordem internacional torna-se, contudo, mais importante para a análise aqui patente, pois, adotando uma abordagem realista, as unidades de poder são exclusivamente os Estados, e, em última análise, as alianças e as organizações internacionais, e não a sociedade em geral e todos os seus elementos e valores comuns ou divergentes. Mesmo tratando-se os Estados de unidades geridas, naturalmente, por indivíduos, é através destas unidades de maior dimensão que o poder se manifesta em termos internacionais, e muito pouco através do indivíduo, por si só, ou outros grupos por si criados. Em suma, a ordem mundial é de extrema importância para a sociedade e 4 Bull define a ordem internacional como o padrão da atividade internacional entre os Estados que sustenta determinados objetivos (a manutenção da paz, a defesa da independência dos Estados e a preservação do sistema). Por outro lado, Bull define a ordem mundial como o padrão da atividade humana que sustenta a vida em sociedade. A ordem mundial vai muito mais além dos Estados ao abranger também os indivíduos, grupos de indivíduos, valores políticos, valores humanos e valores da sociedade, além do Estado e das organizações internacionais. Hedley Bull, The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics, Palgrave, 3ª Edição, Nova York, 2002, p. 16 e p. 19 5 Hedley Bull, Op. cit. p. 21 6 para a evolução dos seus valores, mas o poder está sobretudo na ordem internacional e é esta que deverá ser tida em conta quando analisados os BRICS e os EUA. Considerando, pois, o conceito de ordem internacional, é importante notar que a última década apresentou grandes desenvolvimentos ao nível das potências emergentes, desviou a atenção do mundo ocidental (particularmente da visão eurocêntrica) e colocou os EUA num diálogo muito mais frequente com países como a China ou a Índia. Os BRICS, individualmente ou em grupo, tiveram aqui um papel preponderante. Colocaram a ordem internacional em discussão, pois a verdade é que os elementos constitutivos do poder não conferem só aos EUA o estatuto de superpotência; conferem também, e cada vez mais, o estatuto de grande potência a países que antes eram excluídos e desconsiderados. A classificação da ordem atual deve refletir esta realidade. Em 1997, Kenneth Waltz garantia que a multipolaridade era já uma realidade: “Multipolarity is developing before our eyes: To all but the myopic, it can already be seen on the horizon” 6 . Porém, os últimos vinte anos demonstram que o poder dos EUA permaneceu inabalável em muitos momentos difíceis, desde a primeira guerra do Golfo em 1990 até à invasão do Afeganistão em 2001 e do Iraque em 2003. É difícil ser-se tão perentório como Waltz, pois a força do momento unipolar norte-americano continua a notar-se em termos militares, económicos e inclusivamente em termos da influência americana no mundo (o soft power americano). A questão que se coloca é se os EUA estão a conseguir manter a sua unipolaridade face a forças como os BRICS, tendo ainda em conta outros atores como a Europa ou o Japão, mesmo que não preencham todos os requisitos básicos de uma grande potência. É, contudo, difícil colocar a ordem internacional atual numa das três formas mais frequentes e conhecidas da polaridade: a multipolaridade, a bipolaridade e a unipolaridade. O conceito de unipolaridade ainda é muito visível na ordem atual (tal como o provam também os dados do capítulo III), mas é também visível que esta mesma ordem apresenta algumas diferenças que a afastam da unipolaridade exclusiva. Samuel Huntington, por exemplo, sugere o termo “unimultipolaridade”, definindo o mundo como unipolar do ponto de vista internacional e multipolar sob o ponto de vista regional 7 . A visão de Huntington não parece estar 6 Kenneth Waltz, “Evaluating Theories”, American Political Science Review, vol. 91, nº4, University of California, Berkeley, 1997, p. 915 7 Huntington sugere quatro níveis para a estrutura unimultipolar: no primeiro está a superpotência que são os EUA (com o poder em todas as suas vertentes); no segundo estão as potências regionais, onde Huntington inclui os BRICS; no terceiro estão potências regionais secundárias; e no quarto nível estão todos os restantes Estados. Samuel P. Huntington, “America in the World”, The Hedgehog Review, vol. 5, nº1, Institute for Advanced Studies in Culture, University of Virginia, 2003, p. 8 7 longe da realidade e é, decerto, uma visão a considerar. Mas a par desta visão, importa ainda considerar dois outros conceitos que contribuem para este debate: a ausência de polaridade (nonpolarity), definida por Richard Haass; e a interpolaridade, definida por Giovanni Grevi. Haass defende a ausência de polaridade baseado não apenas no facto de existir atualmente uma grande quantidade de Estados com poder, mas, sobretudo, porque o poder hoje não é apenas dos Estados, mas de outros atores não-estatais. O conceito de multipolaridade torna-se, assim, insuficiente para Haass: “Today's world differs in a fundamental way from one of classic multipolarity: there are many more power centers, and quite a few of these poles are not nation-states” 8 . O estado de ausência de polaridade deve-se, segundo Haass, a duas outras razões: por um lado devido ao fator da globalização enquanto intensificador deste fenómeno, no sentido em que o poder de muitos Estados fica enfraquecido por não conseguirem controlar alguns fenómenos da globalização; e por outro lado a ausência de rivalidade entre as grandes potências, pois a maioria depende do sistema internacional para conseguirem manter a estabilidade económica e política 9 . Em suma, a ausência de polaridade é definida enquanto sinónimo de poder disperso, de tal forma que nem a multipolaridade é suficiente para classificar a ordem internacional. É por esta razão que Haass atribui o conceito de entropia à ausência de polaridade, no sentido em que um grande número de atores, com a mesma influência e poder, gera necessariamente um carácter aleatório na ordem internacional. Este carácter entrópico do sistema é igualmente defendido por Schweller 10 . O que Haass denomina como a ausência de polaridade na ordem atual, Giovanni Grevi denomina, por outro lado, como a interpolaridade. Grevi entende a interpolaridade como um conceito que combina a multipolaridade com a interdependência entre os Estados: “Interpolarity is arguably a better illustration of the international system than multipolarity, as it captures the shifting balance of power (…) while highlighting the fact that the prosperity and security of all the major powers are 8 Richard Haass, “The Age of Nonpolarity: what will follow U.S. dominance”, Foreign Affairs, vol. 87, nº3, 2008, p. 45 9 Richard Haass, Op. cit. p. 4 e p. 5 10 Para melhor explicar o conceito de entropia (um conceito da termodinâmica), Schweller apresenta o exemplo de um baralho de cartas, pois ao ser baralhado, jamais voltará à sua ordem original. A entropia aplica-se ao sistema internacional no sentido em que a polaridade perde relevância devido ao crescente número de atores em movimento e com poder idêntico. Nas palavras de Schweller: “(…) the key point is that polarity (...) is no longer as important as it once was in determining the behaviour of the great power system.” Randall Schweller, “Entropy and the trajectory of world politics: why polarity has become less meaningful”, Cambridge Review of International Affairs vol. 23, nº1, 2010, p. 158 8 interconnected as never before 11 . A ideia central é a de que o mundo crescentemente multipolar e interdependente necessita de cada vez maior cooperação e multilatelarismo, dada a correlação política e económica cada vez maior entre os vários atores internacionais. Ora, esta mudança, segundo Grevi, está a originar uma maior cooperação baseada nas instituições, maiores soluções tomadas em conjunto e uma crescente segurança coletiva 12 . Grevi vaticina, pois, a maior cooperação entre os Estados em resultado da interdependência e das crescentes assimetrias no poder. A interpolaridade distingue-se da multipolaridade justamente devido ao carácter de interdependência que dita que os polos são, necessariamente, obrigados a cooperar de modo a manter a estabilidade e a prosperidade. É com base nestes conceitos que a influência dos BRICS deve ser analisada na ordem internacional atual. O mundo já não é o mesmo desde 1990, pelo que qualquer um dos conceitos de polaridade aqui patentes será objeto de reflexão e cruzamento com o poder real dos BRICS. 1.2 Superpotências, Grandes Potências e Potências Regionais Depois de definidos os elementos essenciais à constituição de uma grande potência mundial, importa agora perceber de que forma se organizam os Estados em termos do seu poder real. Barry Buzan exprime uma primeira ideia de extrema relevância neste contexto, ao referir que as potências e grandes potências não se definem apenas por meios materiais, mas por dois outros critérios que importa analisar: o primeiro refere-se ao estatuto internacional que um Estado atribui a si próprio; e o segundo refere-se ao estatuto que os outros Estados atribuem a esse Estado (ou seja, a forma como um Estado é visto por todos os outros) 13 . De facto, esta questão abordada por Buzan não é meramente teórica ou hipotética. Analisando as potências atuais, percebe-se, efetivamente, que o reconhecimento do estatuto internacional constitui um dos primeiros fatores a ter em conta na classificação de uma grande potência. O comportamento dos Estados – quer em relação a si mesmos, quer em relação aos seus 11 Giovanni Grevi, “The Interpolar World: a new scenario”, Occasional Paper, Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, nº79, 2009, p. 9 12 Giovanni Grevi, Op. cit. p. 28 13 Barry Buzan, The United States and the Great Powers: World Politics in the Twenty-First Century, Polity Press, Cambridge, 2004, p. 67 9 pares – clarifica o seu estatuto internacional. Buzan refere um exemplo bem elucidativo: a Suécia atua muitas vezes ao nível global, mas não é tratada como grande potência; enquanto que o Japão raramente o faz, mas é tratado pelos outros Estados com esse estatuto 14 . Poder-se-ia ainda acrescentar outros exemplos, como o caso da Venezuela ou do Irão, dois Estados que não são considerados como grandes potências, mas que se esforçam por aumentar a sua influência na ordem internacional. Ou ainda a África do Sul, convidada para o grupo dos BRICS e vista como uma potência regional, mas raramente interventiva por sua própria iniciativa. A ideia de que “o que os outros Estados dizem de um par, é mais importante do que o que esse par diz sobre si próprio” (Buzan 15 ), serve de mote para a distinção entre os vários tipos de potências. A primeira distinção é claramente o nível global e o nível regional: no primeiro inserem-se a superpotência e as grandes potências e, no segundo nível, as potências regionais. Esta classificação, definida por Buzan, delimita o alcance do poder dos Estados consoante as suas potencialidades e a forma como são percecionados pelos seus pares. Uma superpotência, segundo Buzan, precisa, antes de tudo, de cumprir todos os requisitos materiais com grande excelência (capacidade militar, económica e política), devendo ser capaz de atuar em qualquer cenário e em qualquer região do globo. Esta base material é evidentemente elementar, mas pode tornar-se insuficiente se não for gerida com uma estratégia bem definida e, sobretudo, se a superpotência não souber gerir a sua legitimidade em termos do que Buzan denomina “os valores universais que suportam a sociedade internacional” 16 . É aqui que surge a questão do reconhecimento do estatuto pelos restantes Estados, e no caso da superpotência, a índole do estatuto de hegemonia assume uma importância ainda maior. Uma superpotência deve, não apenas ter a perceção do seu estatuto, mas sobretudo ser reconhecida e aceite por todos os outros Estados, caso contrário estaremos perante uma maior polarização e, portanto, perante uma superpotência que, na realidade, é considerada pelos restantes Estados como apenas mais uma grande potência numa ordem multipolar (por hipótese). Ora, analisando a realidade atual e tendo todos estes fatores em conta, é percetível que apenas os EUA se enquadram no conceito de superpotência, mesmo no contexto de 14 Barry Buzan, Op. cit. p. 67 Barry Buzan, Op. cit. p. 67 16 Barry Buzan, Op. cit. p. 69 15 10 mudança da ordem atual em que outras grandes potências se posicionam como candidatas a um estatuto de hegemonia. Por outro lado, uma grande potência, apesar de estar no mesmo nível de intervenção da superpotência, tem mais limitações no seu poder, seja devido a fatores materiais, seja porque o seu próprio estatuto a impede de atuar em todas as regiões. Distingue-se, porém, de uma potência regional por se considerar acima da limitação regional e, sobretudo, por se considerar uma potencial candidata ao estatuto de superpotência. Em termos da realidade atual, incluem-se neste estatuto países como o Japão e a União Europeia, isto é, as grandes potências tradicionais. Contudo, e tal como Buzan refere, trata-se de potências que dificilmente conseguirão ascender a um estatuto de superpotência: a União Europeia porque é politicamente fraca e dividida, e o Japão porque, além de limitações como o território reduzido e a vizinha China, também a sua incapacidade política o impede de ascender internacionalmente 17 . Neste sentido, o estatuto de grande potência está cada vez mais associado a países como os BRICS, em particular a China, que Buzan considera como a verdadeira desafiadora da superpotência. Os BRICS são, portanto, cada vez mais considerados pelos restantes Estados como as grandes potências atuais. A abertura dos seus regimes políticos ao longo dos últimos trinta anos – que consequentemente potenciou a abertura dos seus mercados ao comércio internacional e o seu extraordinário crescimento económico e demográfico – dá-lhes um estatuto de relevância igual ou, porventura, superior à de Estados como a França ou a Alemanha. E, por isso, além de grandes potências, têm igualmente o estatuto de potências emergentes 18 . Por fim, resta o estatuto de potência regional. Buzan define este conceito de uma forma clara: trata-se de um Estado que define a polaridade de um determinado complexo regional 19 . Por conseguinte, uma potência regional não atua ao nível global, ainda que o seu estatuto numa dada região possa determinar a ascensão a esse nível, dependendo do seu sucesso na região em causa. Por outro lado, sendo os complexos regionais separados (mas também interdependentes) do nível de ação global, cada um deles pode possuir uma polaridade diferente da existente na ordem internacional. É por 17 Barry Buzan, Op. cit. p. 71 Jérôme Sgard, “Qu’est-ce qu’un pays émergent?”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po-L’Express, Paris, 2008, p. 41 19 Barry Buzan, The United States and the Great Powers: World Politics in the Twenty-First Century, Polity Press, Cambridge, 2004, p. 71 18 11 esta razão que faz sentido a classificação de Huntington da ordem internacional, ao introduzir a importância crescente do regionalismo no termo unimultipolaridade. É também devido ao crescente protagonismo dos complexos regionais que Buzan os considera mais importantes do que o que define como potências de média dimensão: Estados que têm uma intervenção que transpõe frequentemente as regiões onde se inserem (Canadá, Suécia e Austrália são exemplos disso) 20 . Contudo, importa referir que a hegemonia regional não significa que um Estado se qualifique como grande potência. Segundo Buzan, “hegemony within a region is not a guarantee of great power status” 21 . Buzan refere justamente o exemplo da África do Sul, um dos membros recentes dos BRICS, que apesar de pertencer a uma região onde é a potência regional hegemónica, não se qualifica como grande potência. A análise de Buzan sustenta, portanto, a ideia de que o regionalismo é um dos principais fatores que move os BRICS, e que é através da ascensão regional que a maioria destes países ascende ao estatuto de grande potência mundial. 1.3 Polos de Poder Atuais e a Dinâmica do Regionalismo A polaridade atual já foi brevemente analisada. Conceitos como a unipolaridade, a interpolaridade, a ausência de polaridade ou a unimultipolaridade espelham, cada um, uma parte da ordem internacional atual. O mundo continua, de facto, unipolar em muitos aspetos, mas os desenvolvimentos da última década obrigam a uma reanálise e identificação dos novos polos de poder. A questão da ordem internacional atual é recorrente e necessária também quando se tenta identificar Estados que representem um polo. Para William Wohlforth, por exemplo, o mundo permanece unipolar e assim continuará por muito tempo por duas razões fundamentais: trata-se de um mundo onde a paz é muito mais verosímil, e um mundo onde a grande capacidade da superpotência (aliada a uma estratégia que mantenha satisfeitos os restantes Estados) elimina qualquer competição ou sublevação 22 . Wohlforth não nega evidentemente a existência de outros polos, mas é perentório ao afirmar que nada podem contra a superpotência que são os EUA, o que, na 20 Barry Buzan, Op. cit. p. 71 Barry Buzan, Op. cit. p. 73 22 William Wohlforth, “The Stability of a Unipolar World”, International Security, vol. 24, nº 1, MIT Press, Harvard, 1999, p. 7 21 12 prática, retira bastante poder a esses polos. A competição e o equilíbrio de poder são, para Wohlforth, praticamente inexistentes numa estrutura unipolar, pela razão de que quanto mais poder tiver a superpotência, menores constrangimentos sofrerá de outros Estados 23 . A tese de Wohlforth contraria totalmente a argumentação de Kenneth Waltz, que insiste que é justamente a hegemonia de um Estado que suscita a necessidade de os restantes Estados se sublevarem – a teoria do equilíbrio de poder: “In international politics, overwhelming power repels and leads others to try to balance against it” 24 . Por conseguinte, a unipolaridade é encarada por Waltz como um momento de curta duração que necessariamente dará lugar a uma estrutura com vários polos de poder semelhantes. Nas palavras de Christopher Layne – que considera igualmente a unipolaridade como uma estrutura de curta duração por natureza – a multipolaridade deveria ser já vigente na década de 2000 a 2010 25 . Porém, da mesma forma que é difícil considerar a estrutura atual como unipolar, é também bastante arriscado considerá-la já multipolar. Daí que conceitos como a interpolaridade ou a ausência de polaridade surjam, cada vez mais, como alternativa à discussão entre unipolaridade versus multipolaridade. Existem, por outro lado, outras perspetivas quanto aos polos de poder vigentes. Robert Kagan 26 , por exemplo, apesar de também ser perentório ao afirmar que o mundo é indiscutivelmente unipolar, considera que a competição entre as grandes potências é crescente, contrariando a tese elaborada por Francis Fukuyama de que o final da Guerra Fria trouxe o fim da História, e com ela o fim das lutas ideológicas e o triunfo das democracias liberais 27 . A tese de Fukuyama está, aliás, cada vez mais afastada da realidade, sobretudo com o decorrer da última década que estipulou claramente novas potências, novos atores não-estatais e uma contínua competição entre os Estados. Kagan, por seu lado, divide o mundo de uma forma bipolar e estabelece as democracias e as autocracias como os dois grandes polos que se opõem atualmente, sugerindo, inclusivamente, que os EUA devem empenhar uma mudança na sua estratégia e criar uma liga das democracias que se oponha e, ao mesmo tempo, convença as autocracias – chefiadas, a seu ver, pela China e pela Rússia – a seguir a via democrática. Outras 23 William Wohlforth, World out of Balance, Princeton University Press, New Jersey, 2008, p. 23 Kenneth Waltz, “Structural Realism after the Cold War”, International Security, vol. 25, nº 1, MIT Press, Harvard, 2000, p. 28 25 Christopher Layne, “The Unipolar Illusion”, International Security, vol. 17, nº 4, MIT Press, Harvard, 1993, p. 7 26 Robert Kagan, “End of Dreams, Return of History”, Policy Review, nº144, Hoover Institution – Stanford University, 2007, p. 36 27 Francis Fukuyama, The End of History and The Last Man, Macmillan, Nova York, 1992 24 13 perspetivas, como a de Samuel Huntington, por exemplo, na célebre obra The Clash of Civilizations 28 , define oito civilizações distintas e argumenta que os próximos desafios do mundo advirão do embate entre elas (uma visão também oposta à de Fukuyama). Independentemente das teses em causa, a verdade é que, mesmo estando integrados em blocos civilizacionais ou ideológicos, os Estados não deixaram de competir entre si. A questão da oposição civilizacional é complexa e discutível, assim como o é a questão da liga das democracias. Os Estados continuam a rivalizar ao nível mundial e regional, sem muitas vezes terem em conta questões civilizacionais ou ideológicas. Estão muito mais interessados no que Buzan designa como os Complexos de Segurança Regionais (Regional Security Complexes – RSC) do que num quadro civilizacional. Segundo Buzan: “Huntington’s delineation of the regions/civilisations differs from ours at several points because his are seen as reflections of underlying cultural affinities, whereas our RSCs are defined by the actual patterns of security practices” 29 . A realidade demonstra que existem conflitos dentro das próprias civilizações definidas por Huntington, e por isso mesmo Buzan considera que é o nível regional que deve ser considerado, sobretudo para evitar desastres como os da Guerra Fria que se concentrou sobretudo no nível global dos conflitos. Tal como será abordado nos capítulos seguintes, os conflitos regionais moldam muito mais as relações de poder atualmente. É por esta razão que faz todo o sentido abordar a realidade atual sob o ponto de vista da importância crescente do regionalismo, em detrimento de grandes blocos que contêm dentro de si mesmos grandes conflitos e disputas. O primeiro grande polo de poder a ter em conta é a superpotência ainda vigente: os EUA. Tendo em conta o conceito de superpotência e analisando a realidade atual, os EUA permanecem o único país capaz de atuar muito além da sua zona regional, incluindo na última década. Trata-se ainda do país com uma capacidade militar e económica muito superior à das grandes potências imediatamente seguintes (como a China, por exemplo). Além disso, o soft power americano – desde a indústria cinematográfica e língua até à sua capacidade de atrair imigração e influenciar outros Estados – continua a ser gigantesco. Mesmo os autores que vaticinam o fim da era americana (como Charles Kupchan 30 ou Fareed Zakaria 31 ) concordam que os EUA 28 Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Simon & Schuster, Londres, 2002 29 Barry Buzan, Regions and Powers: The Structure of International Security, Cambridge University Press, Cambridge, 2003, p. 41 30 Charles Kupchan, The End of the American Era, Alfred A. Knopf Inc., Nova York, 2002, p. 12 14 permanecem uma potência hegemónica. O seu maior desafio coloca-se agora no que Zakaria denomina como rise of the rest, aludindo não apenas à ascensão de outras potências, mas também ao crescente poder dos atores não-estatais 32 . Por outro lado, a expressão rise of the rest incide justamente num ponto central da atualidade: a questão do regionalismo e o desenvolvimento das grandes potências emergentes – os novos polos de poder. Na década de 90, Kenneth Waltz referia sobretudo a Alemanha, o Japão e a Rússia como os grandes polos de equilíbrio de poder 33 . Kupchan, por seu lado, referia sobretudo a Europa (até mais do que a China) como a grande ameaça ao poderio norte-americano 34 . É certo que alguns países europeus como a França, o Reino Unido e a Alemanha não perderam o estatuto de grandes potências, mas a sua importância e influência têm vindo a decrescer para dar lugar às potências emergentes. Atualmente, a realidade demonstra que os restantes polos de poder estão a surgir sobretudo fora das regiões tradicionais. Na Ásia, a China destaca-se como a maior desafiadora da supremacia norte-americana. Ao mesmo tempo, a Índia e o Japão assumem uma tremenda importância regional e mundial, não apenas em relação aos EUA, mas especialmente em relação à influência do crescimento desenfreado da vizinha China. A Ásia é, porventura, a maior representante da forte ascensão regional, ou como o general Loureiro dos Santos intitulou um dos seus capítulos: trata-se do “regresso da Ásia aos níveis superiores de influência estratégica” 35 . Além da Ásia, importa ainda destacar outros dois grandes polos de poder: a América do Sul (através do triângulo entre Brasil, Argentina e Venezuela, com o Brasil a liderar o complexo regional); e a Rússia, cujo crescimento económico e potencialidades energéticas e militares impedem que perca o estatuto de grande potência, optando cada vez mais por se aliar ao fenómeno das potências emergentes 36 . Ao nível exclusivamente regional, importa salientar a África do Sul, o Egito, a Turquia, o México, a Venezuela ou o Irão. Embora com uma importância relativa, os complexos regionais de cada uma 31 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 217 32 Fareed Zakaria, Op. cit. p. 4 33 Kenneth Waltz, “The Emerging Structure of International Politics”, International Security, vol. 18, nº2, The MIT Press, Harvard University, 1993, p. 72 34 Charles Kupchan, The End of the American Era, Alfred A. Knopf Inc., Nova York, 2002, p. 119 35 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 79 36 José Alberto Loureiro dos Santos, Op. cit. p. 131 e 143 15 destas potências têm contribuído para a valorização do regionalismo enquanto fenómeno de alteração da estrutura da ordem internacional. É com todos estes polos de poder que os EUA terão de lidar cada vez mais. É também com base nos novos polos de poder que Kupchan, por exemplo, defende a mudança da estratégia norte-americana, sobretudo em relação ao isolacionismo e unilateralismo que têm colocado em causa a unipolaridade dos EUA 37 . Neste sentido, Kupchan introduz um conceito que importa mencionar: a unipolaridade benigna, enquanto estratégia para preservar a hegemonia dos EUA 38 . O ponto central deste conceito incide justamente nas questões regionais: Kupchan defende que os EUA só poderão prolongar a sua supremacia através do apoio à unipolaridade regional, pois só a supremacia regional de um Estado irá evitar que outros se sublevem, ao mesmo tempo que permite à superpotência definir os termos em que a unipolaridade regional se estabelece. Nas palavras de Kupchan: "I argue that the United States should prepare for the inevitable decline of its preponderance by encouraging the emergence of regional unipolarity (…)” 39 . Hoje, mais do que na década de 90, o regionalismo crescente dá maior credibilidade a esta estratégia. Os EUA não podem ignorar esta realidade e a verdade é que, tal como será abordado nos capítulos seguintes, a estratégia norte-americana tem-se modificado por influência das potências emergentes e do crescente regionalismo. 1.4 A Teoria da Transição de Poder A transição de poder entre os Estados não é um fenómeno raro nas relações internacionais, e tendo em conta os desenvolvimentos da última década, é cada vez mais oportuno abordar a teoria da transição do poder à luz da ordem atual. Abramo Organski – o percursor desta teoria – toca num ponto de extrema importância para a realidade que se vive atualmente, ao defender que o processo de industrialização dos Estados é a chave para o advento de uma mudança na distribuição do poder 40 . Ora, o processo de industrialização é justamente o que se verifica na maioria dos países dos BRICS, 37 Charles Kupchan, The End of the American Era, Alfred A. Knopf Inc., Nova York, 2002, p. 31 Charles Kupchan, “After Pax Americana: Benign Power, Regional Integration, and the Sources of a Stable Multipolarity”, International Security, vol. 23, nº2, The MIT Press, Harvard, 1998, p. 42 39 Charles Kupchan, Op. cit. p. 42 40 Abramo Organski, World Politics, Alfred A. Knopf Inc., Nova York, 1958, p. 301 38 16 sobretudo desde o começo da década de 80 do século XX, o que, segundo o conceito de Organski, torna alguns destes países aptos a desafiar a potência hegemónica. Organski define três fases do processo de industrialização: uma primeira fase préindustrial, onde a agricultura é predominante; uma segunda fase de crescimento motivado pelo começo do processo industrial, pelo crescimento dos centros urbanos e pelo grande fluxo migratório para as cidades; e, por fim, a terceira fase caracterizada pela industrialização plena e por uma economia forte 41 . Tendo chegado a esta fase e possuindo todos os elementos constitutivos do poder, então uma grande potência terá todas as potencialidades para desafiar a superpotência. Além disso, tratando-se de uma grande potência insatisfeita, maior será o risco de surgir um conflito armado entre a potência hegemónica e o desafiador. No conceito de Organski, é o grau de poder (onde se inclui a industrialização) aliado ao grau de satisfação que encaminham o mundo para uma transição de poder entre potências42 . Enquanto que a teoria do equilíbrio de poder de Waltz não pressupõe necessariamente a guerra, a teoria da transição do poder pressupõe sobretudo a guerra, visto ser baseada nos casos mais frequentes da História. Analisando a realidade atual, não é, contudo, certo que os BRICS estejam já na fase final do processo de industrialização definido por Organski. Por outro lado, mesmo considerando-os nesta fase, não existe o grau de insatisfação suficiente para chegar a um nível de guerra (ver capítulos II e III). A tese de Organski serve sobretudo para perceber a evolução dos BRICS (à exceção da Rússia): antes da década de 80 faziam parte do chamado “terceiro mundo”, eram essencialmente agrícolas e economicamente fracos, e foi o processo de industrialização e de abertura que os trouxe para a primeira linha das grandes potências mundiais. Se houver uma transição de poder, ela far-se-á através da evolução deste mesmo processo de industrialização. A questão, contudo, não se coloca tanto ao nível da guerra, mas mais ao nível de uma transição pacífica, o que não significa necessariamente a deposição da superpotência, mas, seguramente, a alteração da ordem exclusivamente unipolar. Kupchan parte do princípio de que a maioria das potências atuais possui um carácter benigno, incluindo a superpotência, e por isso desenvolve a teoria de uma transição 41 Abramo Organski, Op. cit. p. 302 Segundo Organski: “Degree of power and degree of satisfaction become important national characteristics to be considered when trying to locate nations that are most likely to disturb world peace.” Op. cit. p. 325 42 17 pacífica como a hipótese mais plausível 43 . Acrescenta ainda outros fatores como o acordo sobre a ordem vigente e a questão da legitimidade internacional que definem uma série de normas que regem a relação entre as grandes potências. São estes argumentos que levam Kupchan a considerar a transição pacífica de poder, sem, no entanto, deixar de considerar que a supremacia americana continua indiscutível e que é essa supremacia que tem mantido a paz atual 44 . Como se verá nos capítulos seguintes, a alteração (ou transição) na ordem internacional atual não aponta para uma situação de guerra, mas antes para uma reconfiguração da distribuição do poder, onde o fator da interdependência entre os Estados assume uma importância muito maior do que o eventual desacordo ou rivalidade quanto à ordem internacional. 1.5 Soft Power, Hard Power e Smart Power O poder contém em si mesmo outras vertentes que não apenas a vertente material. Partindo da definição de poder de Joseph Nye – “power is the ability to influence the behaviour of others to get the outcomes one wants” 45 – importa referir que essa influência pode ser muito mais do que a coerção pela força material, seja pelos meios militares ou pela economia (hard power). É certo que a vertente material do poder é, em última análise, a única que poderá conseguir os resultados que um Estado pretende (sobretudo se se tratar de uma situação de guerra). Mas a verdade é que esses mesmos resultados podem ser atingíveis recorrendo a outros meios de influência; meios que podem inclusivamente ter maior sucesso, a médio e longo prazo, por assentarem na base da persuasão (soft power). Precisamente, a crescente importância do soft power suscita cada vez mais a divisão em relação ao hard power, sobretudo tendo em conta que a ação do soft power consegue determinar, atualmente, a prevenção de conflitos, o estabelecimento e aceitação de regras internacionais e a admiração por um conjunto de valores ou práticas (podendo ser bons ou maus) vindos de uma determinada potência. 43 Kupchan refere que a transição de poder pode levar a três resultados distintos: a guerra; a paz fria (baseada na dissuasão); e a paz quente (baseada na cooperação). Charles Kupchan, Power in transition: The peaceful change of international order, United Nations University Press, Nova York, 2001, p. 7 44 Charles Kupchan, Op. cit. p. 172 45 J. Nye, Soft Power: The means to success in world politics, PublicAffairs, Nova York, 2004, p. 2 18 Enquanto o hard power se baseia na ameaça e na coerção, o soft power baseia-se na capacidade de cooptar. Segundo Nye, o soft power é muito mais do que a influência ou até do que a persuasão: a palavra-chave quando se aborda o soft power é atração 46 . O objetivo é cativar, levar o adversário a interessar-se por valores culturais ou políticos, e assim conseguir a conversão ou aceitação, isto é, eliminar pontos de conflito e criar pontos de atração que impedem um confronto. Nye define três pontos fulcrais do soft power: a cultura, os valores políticos e a política externa 47 . Ora, é claro que é impossível atrair todos os adversários, por muito atrativa que seja, por exemplo, a cultura de um país 48 . A cultura americana, por exemplo, pode ter uma grande influência nos países latino-americanos, mas ter o efeito oposto em países como a Arábia Saudita. É por esta razão que Nye ressalva que a atração do soft power depende do contexto, sobretudo em termos culturais. Ainda assim, Nye é perentório ao afirmar que a divulgação e o sucesso da cultura americana (desde o cinema até à música) tornaram os EUA mais poderosos, ricos e inspiradores (mesmo em países como a China) 49 . Por outro lado, e contrariamente ao hard power, os elementos constitutivos do soft power não são controláveis pelos governos, mesmo no caso dos valores políticos ou da política externa, cuja ação é invariavelmente condicionada pela influência cultural (e vice-versa) 50 . É certo que um governo pode seguir uma estratégia de soft power, que se traduziria, por exemplo, por uma abordagem mais diplomática, legitimada e respeitadora dos outros Estados e culturas. Mas independentemente desta ação, o facto é que a globalização da cultura americana é um bom exemplo de como a cultura popular de massas pode condicionar a política externa de um Estado tão poderoso como os EUA. Se existe, de facto, uma grande aceitação, admiração e cópia do estilo de vida americano na Europa, América Latina e mesmo na Ásia, o mesmo não se poderá dizer de alguns países africanos ou do Médio Oriente (que adotam frequentemente uma atitude hostil para com as marcas americanas). A parte não controlável do soft power pode, efetivamente, ter efeitos negativos ou de repulsa (mesmo que, segundo Nye, 46 J. Nye, The Powers to Lead, Oxford University Press, Nova York, 2008, p. 31 J. Nye, Soft Power: The means to success in world politics, PublicAffairs, Nova York, 2004, p. 2 48 Nye dá o exemplo da Mcdonald’s ou da Coca-Cola, cuja presença nos países islâmicos não motiva propriamente adoração pelos EUA. Joseph Nye, Op. cit. p. 12 49 J. Nye, Op. cit. p. 12 50 Nye refere, por exemplo, que a maneira como o Islão é frequentemente retratado nos filmes americanos ou a simples realidade liberal da mulher ocidental, condicionam os esforços do governo para melhorar as relações com os países islâmicos. J. Nye, Op. cit. p. 15 47 19 muitos líderes de países islâmicos ou o próprio presidente da Coreia do Norte, Kim Jong Il, alegadamente se divirtam a ver os filmes americanos e a comer fast food) 51 . Mais recentemente, o soft power, aliado ao fator da globalização, teve um efeito determinante na mudança política e social de alguns BRICS, mais concretamente da Rússia e da China. Tanto a abertura económica da Rússia como, mais significativamente, a abertura económica e política da China ao longo dos últimos vinte anos, decorreu, em parte, da pressão do soft power e da globalização, sem que os EUA controlassem diretamente essa influência. A atração pelo capital, pelos mercados e pelas grandes empresas conseguiu, ao fim de tantos anos, convencer a Rússia e a China a mudarem substancialmente o seu modelo e a adotarem o que se poderá denominar por comunismo capitalista (sobretudo no caso chinês). Um modelo que, apesar de manter o regime comunista, no caso da China, é aberto à economia de mercado, ao investimento e ao negócio, o que prova uma clara influência do modelo ocidental. Por outro lado, mesmo a mais recente influência e pressão dos EUA sobre a China, em matéria de direitos humanos, tem tido alguns desenvolvimentos no lado chinês (ver capítulo II), o que demonstra justamente o carácter de longo prazo da estratégia de soft power e o maior sucesso comparativamente ao hard power 52 . É por estas razões que faz sentido avaliar a componente de soft power dos BRICS e dos EUA, pois o poder, a influência e a eventual alteração de regras internacionais joga-se cada vez mais a este nível. A chave do sucesso do poder está, porém, na inteligência de saber conjugar o soft power com o hard power. A esta capacidade Nye dá o nome de smart power 53 . Da mesma maneira que o hard power dificilmente conseguirá aumentar, por si só, a influência e a legitimidade de um Estado, também o poder de atração do soft power, por si só, é insuficiente para fazer face a todas as adversidades do sistema. Como se verá nos próximos capítulos, os EUA perceberam justamente esta particularidade nos últimos anos e, sobretudo, após a estratégia seguida no Iraque, em 2003. Nas palavras de Nye: “When the exercise of hard power undercuts soft power, it makes leadership more difficult” 54 . 51 J. Nye, Op. cit. p. 12 Importa referir que, apesar deste sucesso, o soft power nem sempre é melhor do que o hard power. Nye refere o exemplo mais recente e mais fulgurante: a atração exercida por Osama Bin Laden junto dos seus seguidores. O seu soft power é de tal modo bem sucedido que consegue atrair e convencer seguidores a sacrificarem a vida pelo terrorismo mais atroz. Neste sentido, não difere do hard power, na medida em que pode igualmente ser direcionado para fins hostis e perniciosos. J. Nye, The Powers to Lead, Oxford University Press, Nova York, 2008, p. 43 53 J. Nye, Op. cit. p. 43 54 J. Nye, Op. cit. p. 43 52 20 Ora, o smart power conduz justamente à ideia de liderança, na medida em que só poderá ser consolidada se as duas vertentes do poder forem combinadas. A liderança não se faz através da violência e intransigência. Quem o diz é também um dos grandes conhecedores destas questões – o ex-presidente Eisenhower – que, na sua definição de liderança, classificou esta ação como um atentado ou abuso: “You don’t lead by hitting people over the head; that’s assault, not leadership” 55 . A liderança faz-se, sim, através de uma atitude inteligente que a legitime. Com efeito, uma liderança forte terá necessariamente de compreender uma estratégia de smart power. Num momento tão crucial para os EUA como é o atual, as questões da estratégia de liderança e do smart power assumem uma importância capital. E como se verá mais adiante, a estratégia norte-americana tem vindo alterar-se justamente para uma via mais próxima do smart power, devido, em grande parte, à influência dos BRICS. 1.6 Da Geopolítica à Geoeconomia O crescimento dos BRICS está intimamente ligado ao gigantesco crescimento económico que ocorreu nestes países a partir da década de 80 e, em especial, na última década. No mundo ocidental, a década de 80 marcou igualmente o início do mercado livre e do liberalismo económico, mas também das privatizações em massa e da desregulamentação: um período e uma política que Edward Luttwak critica ao qualificar como o início do turbocapitalismo, por oposição ao capitalismo regulado que surgiu a partir de 1945 56 . O que importa, porém salientar, é que a ideia do mercado livre (ou turbocapitalismo, numa visão mais crítica do capitalismo desregulado) introduziu uma mudança na relação da economia com os Estados, no sentido em que passaram a utilizar armas económicas para rivalizar. Além disso, estão hoje muito mais dependentes da economia do que a economia dependente das regulamentações governamentais, ou seja, o próprio 55 Dwight Eisenhower apud Alan Axelrod, Eisenhower on Leadership: Ike’s Enduring Lessons in Total Victory Management, Jossey-Bass, São Francisco, 2006, p. 283 56 O que muitos economistas designam como mercado livre, Luttwak designa como turbocapitalismo (um termo cunhado por si), definindo-o como o capitalismo desenfreado, sem regulação dos Estados, baseado nas privatizações de empresas públicas (e até faculdades, prisões ou bibliotecas), sem quaisquer preocupações sociais e com o único propósito do lucro. A geração de riqueza é o objetivo, mas a sua distribuição não é minimamente tida em conta, segundo Luttwak. É definido em oposição ao capitalismo moderado e regulado que trouxe riqueza às massas depois da Segunda Guerra Mundial. Edward Luttwak, Turbocapitalismo, Temas e Debates, Lisboa, 2000, p. 55 21 poder económico ultrapassa frequentemente o controlo dos países. É por esta razão que, também na relação entre os Estados, se assiste cada vez a uma passagem da geopolítica à geoeconomia, um termo também cunhado por Luttwak 57 . O próprio protagonismo político dos BRICS é fundamentalmente motivado pelo crescimento económico, muito mais do que pelo poderio militar, o que prova a importância crescente da geoeconomia. Edward Luttwak cunhou o termo da geoeconomia com base no argumento de que a guerra e as lutas territoriais deixaram de ser uma realidade quando os envolvidos são Americanos, Europeus e Japoneses. Nas palavras de Luttwak: “a geoeconomia é um jogo que é disputado por países que já suspenderam as guerras uns com os outros” 58 . A rivalidade entre estes atores persiste, mas a outro nível: o nível geoeconómico. As armas de guerra deram lugar a duas armas da economia: o investimento e o sistema financeiro. E quando estas armas são desenvolvidas e apoiadas pelos Estados, já não estamos só perante a economia mas perante a geoeconomia. Segundo Luttwak: “Na geoeconomia, o capital de investimento na indústria orientado pelo Estado é o equivalente ao poder de fogo; o desenvolvimento de produtos subsidiados pelo Estado é equivalente às inovações no armamento; e a penetração nos mercados sustentada pelo Estado substitui as bases e guarnições militares em solo estrangeiro (…).” 59 Ora, é justamente este tipo de relação que cada vez mais se impõe entre, por exemplo, a China e praticamente todas as outras potências, ou entre os EUA e a Europa, ou mesmo dentro da própria Europa. A geoeconomia já não se aplica apenas ao mundo ocidental, aplica-se cada vez mais aos BRICS e à relação de competição que mantêm com as outras potências. Enquanto a geopolítica se define – segundo Rudolf Kjellen, o criador do termo no século XIX – como o estudo do Estado enquanto espaço geográfico 60 , a geoeconomia assenta na relação entre o espaço – não necessariamente confinado ao Estado – e o homem económico. A geopolítica pertence exclusivamente aos Estados, mas a geoeconomia tanto pode ser utilizada por estes, ou tornar-se ela própria supra estatal, 57 Edward Luttwak, Op. cit. p. 169 Edward Luttwak, Op. cit. p. 185 59 Edward Luttwak, Op. cit. p. 171 60 “La géopolitique est l’étude de l’État consideré comme un organisme géographique, ou encore comme un phénomène spatial (…)” Rudolf Kjellen apud Philippe Moreau Defarges, Introduction à la géopolitique, Éditions du Seuil, 2009, Paris, p. 39 58 22 dado o seu interesse exclusivo nas trocas e nos fluxos comerciais e no lucro. O espaço económico é, pois, muito diferente do espaço político. Nas palavras de Philippe Moreau Defarges: “L’espace politique est radicalement différent de l’espace économique, car le premier ne peut exister sans permanence, sans clôture, tandis que le second bouge sans cesse en fonction des offres et des demandes de biens, de services” 61 . Por outro lado, se a geoeconomia é, de facto, cada vez mais utilizada pelos Estados como meio de poder e de influência, a realidade mais recente (a crise do subprime, em 2008, e as consequências daí decorrentes para a Zona Euro nos anos seguintes) também provou que a geoeconomia – através da geofinança dos mercados 62 – consegue aplicar uma enorme pressão sobre os Estados para conseguir os seus objetivos lucrativos. Com efeito, hoje, mais do que nunca, o poder económico (e financeiro) e a utilização da geoeconomia pelos Estados, define uma grande parte das relações de poder. A sua importância é tanto mais marcante se tivermos em conta que foi o papel da geoeconomia que formou os grandes blocos económicos como a União Europeia, o Mercosul, a ASEAN ou a NAFTA. O fenómeno do regionalismo e a criação dos grandes blocos deve-se, pois, em grande parte à utilização do poder económico pelos Estados. E à semelhança destes grandes blocos económicos regionais, também os BRICS decorrem da grande influência geoeconómica: basta referir que foram criados a partir do relatório de uma importante agência de investimento. Embora, no seu conjunto, seja difícil considerar os BRICS como um bloco regional e económico, a verdade é que formam seguramente uma força resultante do crescimento económico, da geoeconomia e da própria globalização enquanto fenómeno mais abrangente e responsável pelo enriquecimento dos países em processo de industrialização, como a China em particular, ou os BRICS em geral 63 . Em suma, o poder atualmente joga-se cada vez mais ao nível económico. Desde o fenómeno do turbocapitalismo, cada vez mais presente no mundo, até ao peso da geoeconomia sobre a geopolítica, é evidente que os instrumentos de guerra se tornaram 61 Philippe Moreau Defarges, Op. cit. p. 191 A geofinança pode ser definida como uma síntese do dinheiro global e da desregulamentação. Charles Goldfinger apud Philippe Moreau Defarges, Introduction à la géopolitique, Éditions du Seuil, 2009, Paris, p. 203 63 Segundo Luttwak: “No seu estado atual, a globalização enriquece os países pobres em processo de industrialização (…)” Edward Luttwak, Turbocapitalismo, Temas e Debates, Lisboa, 2000, p. 96 62 23 eminentemente económicos e financeiros. Nas palavras de Fareed Zakaria: “the path to power is through markets, not empires 64 . 1.7 BRICS: um mero acrónimo? A criação, por Jim O’Neill, do termo BRIC (recentemente BRICS), teve o propósito de agrupar um conjunto de países com economias emergentes e capazes de ultrapassar os EUA em 2050 (ou até antes). Contudo, e numa análise mais cuidada, percebe-se que a escolha dos países em causa – bem como a posição deliberada das letras no acrónimo – não foi um mero acaso. Os países em causa fazem certamente parte das potências emergentes (ou reemergentes). Mas, sendo assim, por que razão não foram incluídos países como o México, a Turquia, a Indonésia ou a Coreia do Sul, cujo desempenho económico é comparável aos BRICS? Por que razão foi incluída a África do Sul, em 2011, e não o México, cuja economia e crescimento são superiores? Por outro lado, por que razão foi escolhida a sequência BRIC e não CRIB, por hipótese, dando mais relevo ao maior dos BRICS, que é a China? Em primeiro lugar, a verdade é que siglas como CRIM (China, Rússia, Índia e México), ou BRIMC (Brasil, Rússia, Índia, México e China) dificilmente teriam tanto impacto na cena internacional como os BRICS tiveram, o que explica, logo à partida, a exclusão, pela Goldman Sachs, de países como a Indonésia, a Turquia ou mesmo o México, que foi excluído com o argumento, discutível, de já ser considerado um país desenvolvido 65 . Os restantes países foram excluídos com o argumento de que não estão ao nível das potencialidades dos BRICS. Mas a questão persiste: se há razões para excluir estes países, então por que razão não se pensou da mesma forma em relação à África do Sul, um país ao mesmo nível da Indonésia e Turquia e cuja adesão aos BRIC foi igualmente defendida pela Goldman Sachs? Se a Indonésia e a Turquia não têm, de facto, as mesmas potencialidades do que a China ou Índia, então também a África do Sul não os terá. Esta realidade reforça a ideia de que a força do acrónimo apresenta-se, 64 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 108 65 A Goldman Sachs explicou, em 2005, que tanto o México como a Coreia do Sul foram excluídos do grupo por os considerarem já países desenvolvidos e, designadamente, por fazerem parte da OCDE. Jim O’Neill, “How Solid are the BRICs”, Global Economics, Paper 134, Goldman Sachs, Nova York, 2005, p. 4 24 de facto, como uma das grandes razões para a escolha das potências a aderir. A verdade é que a escolha da África do Sul oficializou o “S” maiúsculo (South Africa) que já vinha sendo utilizado na forma plural inglesa de BRIC (the BRICs) e, por conseguinte, a sua adesão respeitava, em tudo, a força do acrónimo já existente, contrariamente ao México, Indonésia ou Turquia. Por outro lado, a exclusão de alguns destes países está igualmente relacionada com o fenómeno do regionalismo. É o caso do México, cuja exclusão, desta vez pelos próprios BRICS, é compreensível dado o seu contexto geográfico: o México faz fronteira com a superpotência, está próximo de uma potência média, que é o Canadá, e rivaliza ainda com o Brasil em termos regionais. A proximidade entre todas estas grandes potências (e sobretudo a competição entre o Brasil e o México) contribuiu para a exclusão de um país que se encontra numa zona já repleta de vários atores. É, pois, compreensível que os BRIC tenham endereçado um convite à África do Sul, em 2011, pois contrariamente ao México, a África do Sul assume um papel de liderança regional num continente que quase não tem representação ou voz internacionais, ao contrário da América. A exclusão do México pode também estar relacionada com o facto de pertencer à OCDE e de, portanto, alguns países já o considerarem fora do conceito de potência emergente, mesmo possuindo vários elementos que o classificam como tal. Em segundo lugar, o acrónimo BRIC (ou BRICS) tem um significado muito mais sugestivo do que CRIM, CRIB ou BRIMC, que pecam pela ausência de significado imediato ou até pela alusão a uma ideia pejorativa (no caso de CRIM – fácil de associar à palavra “crime” – a conotação seria certamente negativa para os países emergentes). Pelo contrário, a conotação do acrónimo BRICS – ao ligar-se à ideia de bloco coeso e forte (tijolo) – facilita não apenas a sua compreensão imediata, mas sobretudo a perceção de que estamos perante um bloco sólido e poderoso. É por estas razões que, independentemente de se tratar de potências emergentes com grande crescimento, o facto é que toda a ideia associada ao acrónimo BRICS está inevitavelmente ligada a uma estratégia de marketing que, por sinal, tem tido um sucesso crescente junto da cena internacional e dos média. A Goldman Sachs criou o conceito, e os países em causa, conscientes do seu sucesso, aproveitaram-no para aumentar o seu protagonismo. Mas será possível considerar os BRICS como um bloco semelhante à União Europeia e à ASEAN, ou mais próximo da índole do G8 e do G20? A resposta a esta questão obriga, antes de tudo, à compreensão do conceito de bloco. Segundo Philippe Moreau Defarges, a noção de bloco exige, no mínimo, três elementos básicos: uma 25 coesão interna bastante forte; uma política comum em relação ao resto do mundo; e, por fim, uma hierarquização dos elementos implicados, isto é, um ou mais Estados que tenham poder de decisão e saibam pressionar o conjunto do grupo 66 . Tendo por base este conceito, é difícil enquadrar totalmente os BRICS na ideia de bloco. Por um lado, possuem, de facto, uma coesão suficiente para delinear objetivos comuns em relação ao mundo, nomeadamente em matérias de política económica, organizações internacionais e, grosso modo, polaridade da ordem atual. Mas, por outro lado, a distância geográfica mina a coesão entre estes países, na medida em que os complexos regionais em que se inserem ditam que os objetivos de cada um deles sejam diferentes (mesmo no que se refere à reformulação de algumas organizações internacionais). Além disso, não existe propriamente uma potência que se destaque sobre as restantes, no sentido de delinear uma estratégia comum. Os BRICS, enquanto grupo, têm sobretudo apelado a uma mudança em diversas áreas internacionais, mas não se podem comparar a blocos como a União Europeia, com instituições próprias e uma estratégia comum. Por conseguinte, tal como o G8 ou o G20 dificilmente são considerados como blocos políticos ou económicos, também os BRICS não devem ser considerados enquanto tal, muito menos enquanto bloco regional. O lugar dos BRICS na cena internacional é, sobretudo, enquanto conjunto de potências emergentes e é exclusivamente enquanto potências emergentes que os seus objetivos convergem. Os BRICS acompanham o novo conceito de mercados emergentes – expressão utilizada pela primeira vez, nos anos 80, por Antoine van Agtmael 67 – que veio substituir o termo “terceiro mundo”. E se os primeiros mercados emergentes foram, na década de 90, os Tigres Asiáticos (Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul e Taiwan) 68 , a década seguinte trouxe os grandes colossos para o mercado mundial, sendo já visível a sua influência em diversos fóruns, cimeiras e conversações. Os casos mais paradigmáticos foram, até agora, três: as negociações de Doha, que opuseram, pela primeira vez, os países desenvolvidos aos BRICS, em matérias como os subsídios à agricultura ou as tarifas industriais; os encontros de Aquila e de Copenhaga, em 2009, onde surgiu o grupo BASIC (Brasil, África do Sul, Índia e China) que substituiu a força da Europa ao negociar o acordo final com os EUA; e, por fim, as conversações em Londres, em Abril de 2009, no seguimento da crise financeira mundial, onde os BRICS 66 Philippe Moreau Defarges, Introduction à la géopolitique, Éditions du Seuil, 2009, Paris, p. 208 Antoine van Agtmael, The Emerging Markets Century, Simon & Schuster, Londres, 2008, p. 5 68 Riordan Roett, The New Brazil, The Brooking Institution, Washington, 2010, p. 5 67 26 exigiram a reforma do FMI e do Banco Mundial, cujas lideranças são decididas apenas pelos EUA e pela Europa. É nestas questões que os BRICS marcam a diferença, e é também nestas questões que o peso dos BRICS será avaliado relativamente ao poder instituído dos EUA e da Europa. 27 Capítulo II – O Protagonismo dos BRICS na Cena Internacional 2.1 Brasil – Um Gigante Mundial ou Regional? 2.1.1 A Diplomacia Brasileira e as Relações com os Estados Vizinhos A questão sobre se o Brasil pode já ser considerado um importante ator internacional tem merecido um amplo destaque, não apenas devido ao seu crescente potencial energético (tema analisado no subcapítulo 2.1.2), mas também devido à sua estratégia de liderança na América do Sul e, em especial, devido ao protagonismo que assumiu na mediação do acordo relativo ao programa nuclear do Irão, em 2010. Efetivamente, a questão do Irão é a que merece maior destaque, por uma razão clara e evidente: o Brasil saiu da sua esfera de intervenção regional. É preciso recuar até à participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial para encontrar uma tomada de posição internacional semelhante. De resto, todas as intervenções do Brasil situaram-se ao nível regional: desde a Guerra do Paraguai (1864), passando por algumas disputas territoriais com a Argentina (1895) e com a Bolívia (1899), até, mais recentemente, à missão da ONU para a estabilização no Haiti, com início em 2004 e cuja coordenação está a cargo do Brasil. O envolvimento do Brasil numa região tão complexa e sensível, como é o Médio Oriente, demonstra bem o avanço do protagonismo da diplomacia brasileira. Já não se trata de um protagonismo meramente circunstancial ou de cooperação com as decisões da ONU, mas de um entendimento próprio do mundo que o Brasil faz questão de querer assumir. Esta posição ganhou ainda maior relevância pelo facto de recolher o apoio e a participação ativa de outra potência emergente: a Turquia. Apesar da estratégia fracassada (as sanções ao Irão acabariam por ser aprovadas no Conselho de Segurança, em Junho de 2010), importa salientar que a ação do Brasil e da Turquia marcou o início de uma intervenção mais ativa das potências emergentes em questões que antes eram tratadas, quase em exclusivo, pelos EUA e pela Europa. Acresce que o facto de se tratar de uma ação no âmbito do Conselho de Segurança (tanto o Brasil como a Turquia eram, à data, membros não-permanentes1 ), revela o quão crescente é o protagonismo destas potências em instâncias internacionais. De resto, esta ação é em tudo condizente com a estratégia do Brasil para conseguir um lugar de membro permanente no Conselho de Segurança. O ex-presidente Lula da Silva foi 1 O mandato da Turquia começou em 1 de Janeiro de 2009 e terminou em 31 de Dezembro de 2010. O mandato do Brasil começou em 1 de Janeiro de 2010 e terminará em 31 de Dezembro de 2011. 27 particularmente incansável nesta questão: “Os países pobres e em desenvolvimento têm de aumentar sua participação na direção do FMI e do Banco Mundial. (…) Não é possível que as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança sejam regidos pelos mesmos parâmetros que se seguiram à Segunda Guerra Mundial” 2 . A reforma do Conselho de Segurança tem sido, aliás, um dos grandes objetivos do Brasil, mas também um dos pontos centrais de discórdia e de disputas regionais entre diversos países, e mesmo entre os próprios BRICS 3 . No caso do Brasil, este objetivo tem estado alinhado com o protagonismo que tem assumido nesta instância. A sua ação tem sido continuada, e voltou a revelar-se aquando da decisão sobre a intervenção militar na Líbia, na resolução 1973 do Conselho de Segurança, de Março de 2011, onde o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, em conjunto com a Alemanha, se abstiveram e demonstraram uma posição contrária à dos EUA e à maioria da Europa. A decisão da Rússia e da China já era previsível. Mas já não era tão previsível a decisão do Brasil e da Índia, o que prova que as potências emergentes e, em particular, os BRICS, têm noção da sua força crescente e já não delegam a sua decisão nos EUA e na Europa, alinhando cada vez mais com a Rússia e com a China. A diplomacia brasileira mostrase, pois, muito mais forte internacionalmente, como nunca antes acontecera. Demonstra igualmente a inteligência estratégica de revelar-se sobretudo no âmbito do Conselho de Segurança, justamente porque é aqui que recai o seu objetivo principal de reestruturação da ordem internacional. Se o protagonismo internacional do Brasil é, de facto, assinalável, isso deve-se também à sua consolidação enquanto potência regional. O Brasil tem assumido uma postura regional de cooperação e de construção de um bloco sul-americano forte, sobretudo durante a presidência de Lula da Silva, que levou inclusivamente muitos Estados vizinhos a aceitarem o protagonismo internacional do Brasil4 . O Mercosul, e mais recentemente a UNASUL 5 , constituem os dois maiores instrumentos de afirmação 2 Presidente Lula da Silva, Discurso no Debate Geral da 64ª Sessão da Assembleia-geral das Nações Unidas, Nova York, 23 de Setembro de 2009, disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-deimprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/presidente-da-republica-federativa-dobrasil/discurso-no-debate-geral-da-64a-sessao-da, acedido no dia 12/04/2011 3 As disputas para os lugares de membro permanente do Conselho de Segurança são reflexo do regionalismo mais ofensivo atual, desvendando também algumas incongruências dentro dos próprios BRICS: ver ponto 4.3 do Capítulo IV. 4 “During Lula’s presidency, other South American leaders have come to recognize Brazil as the continent’s leading representative at the international level.” Riordan Roett, The New Brazil, The Brooking Institution, Washington, 2010, p. 132 5 A UNASUL foi criada em 2008, fruto da união do Mercosul com a Comunidade Andina de Nações, numa tentativa de iniciar um projeto semelhante ao da União Europeia. 28 da América Latina enquanto bloco. Mas existe uma particularidade em relação ao Brasil: o seu objetivo está muito mais centrado na utilização destes blocos para a sua própria afirmação enquanto potência regional, do que no desenvolvimento de uma comunidade semelhante à União Europeia com instituições regionais 6 . O Brasil tem, naturalmente, todo o interesse em desenvolver a integração e interdependência económica da América do Sul, mas a sua realidade leva-o muito mais além. O Brasil é o maior país da América do Sul; é maior do que os EUA (excetuando o Alasca); é rico em recursos energéticos renováveis e não renováveis; e possui trocas comerciais que têm como primeiro parceiro a Ásia (onde se destaca a China), seguida da União Europeia, e só depois o Mercosul, seguido dos EUA 7 . O Brasil tem, portanto, todas as razões para demonstrar maior interesse por outros mercados emergentes do que pelo seu próprio mercado regional. Daí que a sua diplomacia acompanhe justamente estas trocas comerciais e a expansão da economia brasileira, em detrimento das trocas comerciais com os Estados vizinhos e da criação de um bloco político semelhante à União Europeia. Na verdade, a criação de um bloco como a UNASUL dificilmente suscitará outro interesse – que não regional – a um país como o Brasil, que constitui, sozinho, um ator colossal ao nível dos EUA, da China ou da União Europeia. Qual é então a índole atual do Mercosul e da UNASUL? Apesar do distanciamento do Brasil, estes blocos económicos e políticos (no caso da UNASUL) permanecem um importante ponto de confluência regional. O Brasil não precisa, de facto, do Mercosul nem da UNASUL para se expandir, mas precisa certamente destes instrumentos para consolidar a sua liderança regional. O interesse é, pois, eminentemente político. A recente adesão da Venezuela ao Mercosul é prova disso mesmo: tratou-se de uma estratégia de integração em relação a um país que tem vindo a seguir uma estratégia revolucionária e de crescente protagonismo regional. Ora, integrando a Venezuela, o Brasil pretende não apenas introduzir estabilidade na América do Sul, mas sobretudo atenuar este protagonismo regional de outros Estados. O objetivo do Brasil é, justamente, ser encarado e considerado pelos outros Estados como uma grande potência, 6 “The fact that MERCOSUR today is neither a common market nor a complete free trade area is partly a consequence of Brazilian foreign policy, which is focused much more on national sovereignty than on the country’s integration into regional institutions in the long run.” Daniel Flemes, “Brazilian foreign policy in the changing world order”, South African Journal of International Affairs, Routledge, Londres, 2009, p. 176 7 Dados da balança comercial brasileira, referentes a Janeiro de 2011, disponíveis no site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil, http://www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=5&menu=3173&refr=1161, acedido no dia 09/05/2011. 29 e a estratégia para com a Venezuela é prova disso. Um dos grandes exemplos é a política em relação aos EUA: tanto a Venezuela como o Brasil concordam, no essencial, com a necessidade de alterar regras internacionais, mas enquanto o presidente Hugo Chávez desafia e ataca direta e constantemente todas as ações dos EUA, o presidente Lula prossegue uma estratégia moderada, dialogante e respeitadora, mantendo boas relações com os EUA e exigindo, ao mesmo tempo, a reforma das instituições e a alteração de políticas económicas internacionais. Na análise do general Loureiro dos Santos: “o Brasil (…) ganhou dois aliados em conflito entre si – os EUA e a Venezuela. As ações de cada um deles, enfraquecendo-se mutuamente, favorecem as posições estratégicas brasileiras. Tanto no plano continental como no plano global.” 8 . Em termos regionais, o Brasil enfrenta, contudo, outros entraves à sua liderança. Além da Argentina – que se opõe fortemente à entrada do Brasil como membro permanente no Conselho de Segurança – surgiu recentemente a Bolívia que, com Evo Morales, nacionalizou as reservas bolivianas de gás natural e petróleo, afetando diretamente os investimentos da empresa brasileira Petrobrás. A realidade, porém, é que o Brasil é o comprador exclusivo do gás natural boliviano e, além disso, a Petrobrás descobriu recentemente reservas de gás natural no campo de Júpiter (no Estado do Rio de Janeiro) 9 . Ora, estes factos permitem que o Brasil continue a ter uma palavra de peso na América do Sul, sobretudo porque consegue contornar os constrangimentos impostos pelos Estados vizinhos. A par desta liderança regional, a análise aqui patente prova também que a influência do Brasil já ultrapassa o foro regional, através de uma estratégia de soft power que consegue cativar os EUA, e que contrasta com o discurso de hard power da Venezuela. É neste sentido que o Brasil, além de uma potência regional, pode já ser considerado como uma potência média – à semelhança do Canadá ou da Austrália. Segundo Daniel Flemes: “Brazil can be defined as a middle power in order to frame its foreign policy behaviour and options at the global level” 10 . A este estatuto acresce ainda um enorme potencial para o futuro: a sua enorme capacidade energética. 8 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 143 9 "(Bolivia) needs Brazilian demand to sustain its gas setor (...). And the new Tupi and Jupiter discoveries will probably alter the dynamics of gas consumption in South America." Ricardo Ubiraci Sennes e Thais Narciso, “Brazil as an International Energy Player”, in Brazil as an Economic Superpower?, Brookings Institution, Washington, 2009, p. 46 10 Daniel Flemes, “Brazilian foreign policy in the changing world order”, South African Journal of International Affairs, Routledge, Londres, 2009, p. 163 30 2.1.2 Os Trunfos do Brasil: novos combustíveis Num mundo com necessidades energéticas crescentes, o Brasil afirma-se cada vez mais como uma potência rica em combustíveis fósseis e em fontes de energia renováveis. Nos combustíveis fósseis, a recente descoberta de petróleo na Baía de Santos (Tupi) e de gás natural no campo de Júpiter, provam que o potencial do Brasil nestes combustíveis é superior ao que se pensava, e asseguram que a dependência energética externa do país será cada vez menor. O Brasil encontra-se finalmente no ranking dos maiores produtores de petróleo, ainda que com uma produção reduzida comparativamente com a Arábia Saudita, com a Venezuela ou com a Rússia. Gráfico I Evolução das Reservas Mundiais de Petróleo do Brasil e dos Maiores Produtores Brasil Rússia Irão Venezuela Arábia Saudita Barris (milhares de milhões) 300 250 200 150 100 50 0 1980 1990 2000 2010 Fonte: BP – Statistical Review of World Energy 2011 É certo que a posição do Brasil não é a mais significativa, mas é suficiente para aumentar a sua independência energética. Por outro lado, é preciso ter em conta que as reservas de gás natural ainda não começaram a ser exploradas, e que a produção de petróleo do Brasil aumentou de 3 mil milhões de barris, em 1989, para 8 mil milhões em 1999, e para 14 mil milhões em 2009 11 . Além de tudo, a perspetiva é de que a 11 Dados da BP no relatório “Statistical Review of World Energy 2011”, disponível em: http://www.bp.com/sectionbodycopy.do?categoryId=7500&contentId=7068481, acedido no dia 14/05/2011. 31 produção atinja os 40 mil milhões12 . Ora, com estes desenvolvimentos nos combustíveis fósseis – que, por enquanto, permanecem os mais procurados e os mais valiosos – o Brasil avança para um patamar de crescente autossuficiência, num período em que os preços do petróleo subiram vertiginosamente, primeiro com a guerra no Iraque, e posteriormente com a crise financeira mundial. Mas a verdadeira revolução energética, no Brasil, situa-se ao nível das energias renováveis. Em 2009, quase metade da energia total produzida no Brasil (46,8%), proveio de fontes renováveis, sendo a biomassa (18,8%) e a energia hídrica (14%) as que mais contribuíram para este resultado13 . Dentro das energias renováveis, a biomassa constitui a grande aposta do Brasil, em especial no que se refere à produção da substância que está a revolucionar o setor dos combustíveis: o etanol. O Brasil é o segundo maior produtor mundial de etanol, logo a seguir aos EUA, com quem compete diretamente. Juntos, o Brasil e os EUA monopolizam praticamente a produção deste biocombustível. Gráfico II Litros (milhares de milhões) Produção Mundial de Etanol (2009) 60 54,7 50 40 24,8 30 20 10 2,047 1,646 1,097 0 EUA Brasil China Tailândia Canadá Fonte: Relatório da F.O. Licht’s – “World Ethanol and Bifuels Report” 2009 12 "(...) the figure for Brazil is 11 billion barrels and could potentially reach 38 to 41 billion barrels." Ricardo Ubiraci Sennes e Thais Narciso, “Brazil as an International Energy Player”, in Brazil as an Economic Superpower?, Brookings Institution, Washington, 2009, p. 45 13 Dados do relatório “Balanço Energético Nacional”, do Ministério de Minas e Energia do Brasil, disponível em: https://ben.epe.gov.br/BENRelatorioFinal2010.aspx, acedido no dia 14/05/2011. 32 Porém, e apesar de os EUA possuírem uma produção superior, a verdade é que existem diferenças assinaláveis – tanto no modo de produção como na matéria-prima utilizada – que conferem maior eficiência e competitividade ao Brasil. A diferença que está na base desta disparidade começa na matéria-prima: enquanto nos EUA a produção de etanol é feita a partir do milho, no Brasil é feita a partir da cana-de-açúcar. Esta diferença na produção não seria, certamente, tão singular se não fosse o facto de o etanol de cana-de-açúcar fornecer quase seis vezes mais energia do que o etanol de milho (8,2 joules de energia, contra apenas 1,5 joules, segundo Daniel Budny) 14 . A esta vantagem junta-se ainda o facto de a produção a partir da cana-deaçúcar ter um custo muito menor do que a produção do etanol de milho. Segundo Amani Elobeid e Simla Tokgoz, “The cost of ethanol per gallon of fuel from sugarcane in Brazil (…) is lower than the cost from corn in the U.S., at $1.09 per gallon”15 . O custo do etanol de cana-de-açúcar é, aliás, tão baixo que compensa mais aos EUA importar o etanol brasileiro do que aumentar a sua produção, mesmo após a taxa de importação imposta pelo governo dos EUA para limitar as importações. Esta situação, segundo Daniel Budny, verificou-se em especial no ano de 2006: “the price differential between Brazilian and U.S. produced ethanol was so great in 2006 that it was still cheaper to import Brazilian ethanol even after the 54 cents per gallon import tariff” 16 . Ora, a eficiência e competitividade do etanol de cana-de-açúcar é clara e inequívoca, pois mesmo sendo a produção dos EUA superior, a realidade prova que é o Brasil que mais ganha com a produção deste biocombustível 17 . A vantagem do Brasil torna-se ainda maior pelo facto de se tratar do país líder na produção mundial de cana-deaçúcar 18 . Por conseguinte, o Brasil, mais do que qualquer outro país, tem todas as condições para crescer enquanto maior potência exportadora de biocombustíveis. Este crescimento, porém, só é travado pelo protecionismo internacional e pelas limitações impostas por outros Estados. Precisamente, a maior barreira que atualmente 14 Dados do artigo de Daniel Budny, “The Global Dynamics of Biofuels: Potential Supply and Demand for Ethanol and Biodiesel in the Coming Decade”, Brazil Institute Special Report, nº 3, Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington, 2007, p. 4 15 Dados do artigo de Amani Elobeid e Simla Tokgoz, “Removing Distortions in the U.S. Ethanol Market: what does it imply for the United States and Brazil?”, American Journal of Agricultural Economics, vol. 90, nº 4, 2008, p. 11 16 Dados do artigo de Daniel Budny, op. cit. p. 3 17 A prova é que enquanto os EUA importam cerca de 39% de etanol, o Brasil nem sequer precisa de importar este produto. Daniel Budny, op. cit. p. 5 18 Segundo o FAOSTAT (Food and Agriculture Organization of the United Nations) o Brasil produz quase 700 toneladas de cana-de-açucar, contra as 300 toneladas do segundo maior produtor, a Índia. Dados disponíveis em: http://faostat.fao.org/site/567/default.aspx#ancor, acedido no dia 15/05/2011. 33 se coloca a este crescimento situa-se no mercado dos EUA que, ao impor taxas às importações, encarece e desincentiva a compra do etanol brasileiro. Esta é, aliás, a questão central das reivindicações do Brasil nas negociações de Doha da OMC, onde o presidente Lula da Silva, por diversas vezes, exigiu que os EUA e a União Europeia eliminassem tanto as barreiras comerciais, como os subsídios à sua própria produção agrícola, pois são medidas que penalizam grandemente o escoamento de produtos das potências emergentes e, em particular, do Brasil. Apesar de tudo, a indústria brasileira do etanol continua em grande desenvolvimento, tanto mais que, atualmente, a gasolina pura já não é vendida nos postos de abastecimento brasileiros, uma vez que, segundo Jesus Ferro e Paulo Arruda 19 , é sempre misturada com cerca de 20% de etanol. Além disso, e segundo Daniel Budny 20 , mais de 80% dos veículos ligeiros vendidos no Brasil são flexíveis, isto é, aceitam tanto a gasolina como o etanol (também denominado álcool nos postos de abastecimento), o que denota a mudança de hábitos na sociedade brasileira. Deste modo, o próprio mercado interno brasileiro estimula a grande produção deste biocombustível, e apesar das taxas de importação, também o mercado externo (onde se destacam os EUA e a Europa) procura cada vez mais o etanol brasileiro. Na base de toda esta produção – é importante referir – está o desenvolvimento de duas atividades produtivas de extrema importância para o Brasil: a agricultura e a pecuária. A cana-de-açúcar, tal como já foi referido, é uma das colheitas que confere o primeiro lugar ao Brasil, mas existem outras, de entre as quais se destacam a soja (com 40% da quota de mercado), o café (com 30%), o tabaco (com 20%) e ainda outras produções como a carne bovina e avícola 21 . Estes resultados comprovam, assim, que o Brasil se está a tornar num enorme mercado de abastecimento mundial. Os mais recentes dados da OMC demonstram, aliás, que o Brasil é já o terceiro maior exportador de produtos agropecuários, a seguir à União Europeia (que sendo um bloco países, tem menor paralelo de comparação), e aos EUA 22 . O Brasil já tinha ultrapassado o Canadá em 2008, e continua à frente de países como a China, a Argentina e a Austrália, que no início da década apresentavam valores de exportação superiores aos do Brasil. Assim, e 19 Dados do artigo de Sizuo Matsuoka, Jesus Ferro e Paulo Arruda, “The Brazilian Experience of Sugarcane Ethanol Industry”, In Vitro Cellular & Developmental Biology – Plant, vol. 45, nº3, p. 374 20 Dados do artigo de Daniel Budny, op. cit. p. 6 21 Dados do artigo de Lael Brainard e Leonardo Matinez-Diaz, “The “B” Belongs in the BRICS”, in Brazil as an Economic Superpower?, Brookings Institution, Washington, 2009, p. 2 22 Dados do relatório “International Trade Statistics 2010”, disponíveis em: http://www.wto.org/english/res_e/statis_e/its2010_e/its10_toc_e.htm, acedido no dia 15/05/2011 34 além de uma potência energética, o Brasil está também a tornar-se numa potência agrícola exportadora. Nas palavras do general Loureiro dos Santos: “O Brasil está a transformar-se na quinta do mundo” 23 . Perante estes resultados, torna-se evidente que o poder comercial e energético do Brasil está a aumentar, juntando-se ao seu crescente protagonismo político. Refira-se, porém, que a entrada do Brasil no grupo das grandes potências só poderá ser efetiva quando conseguir ultrapassar obstáculos estruturantes, como o desequilíbrio económico, que persiste entre as várias regiões e entre o meio rural e o meio urbano, e as desigualdades sociais, que apesar dos últimos progressos, permanecem como um dos maiores entraves ao desenvolvimento social e económico do Brasil. 2.2 Rússia – A Reemergência de um Gigante? 2.2.1 O Lugar da Rússia no Mundo O final da Guerra Fria significou, para a Rússia, o início do declínio económico e militar. A perda de influência russa conduziu, consequentemente, à perda do seu estatuto de superpotência e à sua retirada da competição com os EUA. Trata-se, pois, de um país que difere dos restantes BRICS no tipo de ascensão económica e política: enquanto que na maioria dos BRICS se fala de emergência, o caso da Rússia é sobretudo associado à ideia de reemergência. De facto, o poder russo, hoje, não é comparável ao poder soviético que o precedeu. Em termos políticos, a influência russa na sua esfera tradicional – o leste europeu e as antigas repúblicas soviéticas – diminuiu significativamente, sobretudo após a adesão à NATO de países como a Polónia, a República Checa, a Hungria, a Estónia, a Letónia e a Lituânia, entre 1999 e 2004. Em termos económicos, a Rússia só há pouco tempo começou a torna-se numa economia de mercado, semelhante às poderosas economias ocidentais. A sua força económica ainda está longe da dos EUA e da União Europeia, e o facto de ainda não ser membro da Organização Mundial de Comércio – ao contrário da China – prova a lenta integração da Rússia no mercado internacional. Além disso, é o único membro dos BRICS onde o crescimento demográfico é negativo 24 . 23 José Alberto Loureiro dos Santos, Op. cit. p. 145 Segundo o PRB (Population Reference Bureau), na Rússia, por cada mil habitantes, nascem 13 e morrem 14 todos os anos. Dados disponíveis em: http://www.prb.org/DataFinder/Topic.aspx?cat=3. 24 35 Apesar de tudo, a Rússia continua a deter trunfos estratégicos que lhe permitem continuar a ter um papel importante na ordem internacional. O lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU constitui, desde logo, uma das principais formas de influência no mundo, sobretudo através do direito de veto. Por outro lado, a Rússia permanece uma superpotência nuclear, estimando-se que tenha uma capacidade superior inclusivamente à dos EUA 25 . É ainda parte integrante do G8 e do G20, e tem claramente uma palavra forte em questões como as do Irão, da Coreia do Norte e do conflito entre Israel e a Palestina, onde a Rússia é das poucas grandes potências a intervir diplomaticamente (através do Quarteto Diplomático para o Médio Oriente, constituído pelos EUA, Rússia, União Europeia e ONU). Em termos militares, e apesar do declínio económico, importa referir que, de acordo com o general Loureiro dos Santos, a Rússia tem investido na atualização e modernização do seu armamento, com nova tecnologia capaz de rivalizar com os EUA 26 . Resta apenas referir aquele que é, porventura, o maior trunfo estratégico da Rússia num mundo com enormes necessidades energéticas: as suas reservas de hidrocarbonetos (tema do próximo subcapítulo). Com todo este poder estratégico e, ao mesmo tempo, com a perda de influência global e uma economia ainda fraca, é difícil classificar a Rússia como uma potência emergente semelhante à China ou à Índia, por exemplo. Na realidade, o conceito de potência emergente aplica-se sobretudo aos países que, durante a Guerra Fria, pertenciam ao denominado “Terceiro Mundo” e que só recentemente começaram a ter verdadeiras economias de mercado, fruto da abertura política, económica e do crescente interesse do investimento estrangeiro. A Rússia, pelo contrário, continua bastante fechada às multinacionais ocidentais. Segundo Jérome Guillet: “L’émergence de la Russie est souvent mal vue car la Russie n’est pas ouverte aux multinationales occidentales. Le pays est perçu comme un marché mais pas comme un lieu d’investissement ou de développement, ni même comme une plateforme offshore comme peuvent l’être la Chine ou l’Inde” 27 . De facto, as mudanças 25 Segundo a Federation of American Scientists, a Rússia tem uma capacidade de cerca de 11000 armas nucleares, contra as 8500 dos EUA. Relatório disponível online em: http://www.fas.org/programs/ssp/nukes/nuclearweapons/nukestatus.html, acedido no dia 18/05/2011 26 “ (…) a Rússia procurou manter o seu avanço tecnológico no campo dos armamentos. Com destaque para o fabrico de mísseis balísticos intercontinentais que lhe garantem a paridade nuclear estratégica com os EUA. Tanto os mísseis Topol-M (…) como os mísseis Bulava (…) dispõem de inovações que lhes permitem perfurar o sistema anti-míssil norte-americano, pelo menos até 2020 (…).” José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 132 27 Jérôme Guillet, “La Russie: émergente ou réémergente?”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po-L’Express, Paris, 2008, p. 147 36 políticas e económicas que ocorreram na Rússia não são comparáveis, por exemplo, às da China, que apesar de permanecer com um regime pouco diferente do que era nos anos 70, permitiu a abertura ao capital estrangeiro de uma forma colossal. Por conseguinte, a Rússia encontra-se numa posição intermédia: se, por um lado, continua com uma parte importante do seu poder, por outro lado ficou relegada ao estatuto de grande potência e com uma influência mais reduzida. Ora, é neste sentido que atualmente se fala numa reemergência da Rússia, não apenas devido a esta dualidade no seu desenvolvimento e poder, mas também por duas razões estratégicas: a primeira é a sua extrema importância ao nível energético, sobretudo em relação à Europa e às exrepúblicas soviéticas; e a segunda prende-se com a estratégia russa de afirmação global nos últimos dez anos: a sua aproximação a países como a China, a Índia e o Brasil. Com efeito, e mesmo não apresentando as mesmas características dos grandes mercados emergentes, a verdade é que a Rússia tem todo o interesse em associar-se a eles, pois sozinha dificilmente consegue competir e resistir à influência dos EUA no mundo. O objetivo da Rússia consiste, na realidade, em manter-se na esfera global, tentando evitar cair exclusivamente numa esfera regional. Segundo Barry Buzan: “At present, Russian policy is much driven by the aspiration to remain in the global rank, i.e., to avoid falling to regional power status” 28 . A associação às potências emergentes, e em particular aos BRICS, é exemplo disso. Porém, a execução deste objetivo passa necessariamente pela liderança e sucesso ao nível regional. Ora, a Rússia, mais do que o Brasil, enfrenta grandes inimizades regionais e conflitos internos que podem dificultar a sua ação, legitimidade e credibilidade internacionais. Na região do Cáucaso lida, desde logo, com dois conflitos separatistas: um interno e referente à própria Rússia – a Tchetchénia – e o outro externo e referente à Geórgia – nas regiões da Ossétia do Sul e da Abecásia – onde a Rússia se envolveu diretamente. O conflito na Tchetchénia é o que mais tem afetado a credibilidade da Rússia, não apenas por se tratar do conflito que está na origem de toda a instabilidade no Cáucaso, mas sobretudo porque tem demonstrado a abordagem militar brutal da Rússia face à insurgência separatista. Por outro lado, os atos terroristas levados a cabo por rebeldes tchechenos (refira-se, em especial, o brutal ataque à escola de Beslan, em 2004) também têm provocado a brutalidade russa na região. Ora, a situação na Tchetchénia está baseada num círculo vicioso de brutalidade 28 Barry Buzan, Regions and Powers: The Structure of International Security, Cambridge University Press, Cambridge, 2003, p. 435 37 que já causou cerca de 100 mil refugiados 29 . E se, por um lado, a reação internacional dos EUA e da Europa tem sido a de reconhecer que a Tchetchénia é, de facto, parte integrante da Federação Russa, por outro lado as críticas relativas às violações dos direitos humanos e ataques a civis, cometidos pelo exército russo, têm sido a grande mancha na reputação da Rússia ao longo dos últimos vinte anos 30 . Mas se o conflito interno da Tchetchénia suscitou a condenação internacional a algumas políticas da Rússia, na Geórgia a indignação foi ainda maior devido à ingerência russa, em 2008, no conflito da Ossétia do Sul e da Abecásia. A credibilidade, legitimidade e reputação da Rússia ficaram novamente afetadas, não apenas devido à reação da Geórgia, ao considerar esta ingerência como uma declaração de guerra, mas sobretudo devido à condenação dos EUA e da União Europeia, o que piorou as relações entre o Ocidente e a Rússia, pelo menos durante alguns meses. Esta ingerência da Rússia tem, contudo, outros antecedentes e motivações. A razão oficial, segundo o presidente Dmitri Medvedev, limitou-se sobretudo à proteção da população russa na região: “We really proved – including to those who sponsored the current regime in Georgia – that we are able to protect our citizens. That we are able to effectively defend our national interests and effectively carry out our peacekeeping responsibilities” 31 . Todavia, houve outras razões que importa salientar. A declaração de independência do Kosovo, também em 2008 – a que a Rússia se opôs, mas que mereceu o reconhecimento da parte de vários países europeus e americanos – constitui uma das principais razões que explicam a ingerência russa na Geórgia e, acima de tudo, o facto de a Rússia ter reconhecido unilateralmente a independência da Ossétia do Sul e da Abecásia. O próprio presidente russo reconheceu este facto: “Russia’s recognition of the independence of South Ossetia and Abkhazia once again showed that we live in a world of double standards. (…) the position of our partners, who recently made every effort to circumvent international law to achieve the secession of Kosovo from Serbia (…), seems obviously biased, for they now criticize Russia as if nothing had happened” 32 . Trata-se, pois, em parte, de uma ação de retaliação às decisões do Ocidente. O objetivo da Rússia é claramente o de demonstrar que a sua influência não 29 Gail W. Lapidus, “Contested Sovereignty: The Tragedy of Chechnya”, International Security, vol. 23, nº1, The MIT Press, Harvard, 1998, p. 6 30 Gail W. Lapidus, op. cit. p. 37 31 Presidente Dmitri Medvedev, discurso na Assembleia Federal da Federação Russa, no dia 5 de Novembro de 2008, disponível em: http://eng.kremlin.ru/transcripts/296, acedido no dia 21/05/2011 32 Presidente Dmitri Medvedev, op. cit. 38 se perdeu e que tem a capacidade de, quase unilateralmente, tomar decisões na sua esfera de intervenção regional. De um modo geral, a marca deixada por estes conflitos regionais situa-se, fundamentalmente, na reputação do poder militar da Rússia. Os conflitos na Tchetchénia e na Geórgia causaram milhares de desalojados e de refugiados, com o exército russo a afetar diretamente os civis das regiões em causa. Estes factos só contribuem para um sentimento de crescente animosidade de quase toda a região relativamente à Rússia. E se alguns países como a Bielorrússia, a Arménia, o Quirguistão ou o Tajiquistão continuam sob forte influência russa, a verdade é que uma parte das ex-repúblicas soviéticas preferiu sair desta esfera de influência. O caso mais marcante foi a criação, em 2001, da GUAM (Organização para a Democracia e o Desenvolvimento Económico), que agrupa a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia e o Azerbaijão, e que serve como contra-influência à Rússia e à Comunidade de Estados Independentes, que abrange quase todas as ex-repúblicas soviéticas. Apesar de tudo, esta perda de influência regional e a brutalidade das ações militares não retiraram à Rússia o seu verdadeiro objetivo: permanecer uma potência global. Prova disso são as suas relações com os EUA, cujo desenvolvimento continua a revelarse crucial para a segurança mundial, em particular ao nível nuclear. A aproximação aos EUA e à NATO na cimeira de Praga, em 2010, é o mais recente desenvolvimento global nas relações EUA – Rússia, precisamente porque foi alcançado um novo acordo de não proliferação nuclear: o START (Strategic Arms Reduction Treaty). Porém, também nesta questão surgiu um forte ponto de discórdia centrado num dos grandes objetivos dos EUA: a colocação do escudo de defesa antimíssil na Europa central. Ora, a Rússia, nas palavras do próprio presidente, já manifestou a sua forte oposição, afirmando inclusivamente que o avanço deste plano poderá pôr em causa o acordo START e até conduzir a um regresso à Guerra Fria: “This would be a very bad scenario; it would be the kind of scenario that would throw us back into the Cold War era. It may ruin everything that we have done in the last several years, including, in my view, the very important START treaty” 33 . Os últimos desenvolvimentos internacionais demonstram, pois, que a cooperação entre a Rússia e o Ocidente pode sofrer um impasse. Mas demonstram sobretudo que a 33 Presidente Dmitri Medvedev, Conferência de Imprensa na Escola de Gestão Skolkovo, em Moscovo, no dia 18 de Maio de 2011, disponível em: http://eng.kremlin.ru/transcripts/2223, acedido no dia 25/05/2011. 39 Rússia continua a deter uma relevância assinalável nas grandes questões de segurança internacional – mais do que a China, Brasil ou Índia – o que lhe confere um estatuto especial na esfera das grandes potências. 2.2.2 Os Trunfos da Rússia: o gás natural e a “diplomacia do tubo” À semelhança do Brasil, o fator que atualmente confere a maior vantagem geopolítica e geoestratégica à Rússia é a sua riqueza em recursos naturais. Na realidade, a sua classificação enquanto potência emergente ou reemergente advém, segundo Jérôme Guillet 34 , desta riqueza, e em particular, do facto de ser o maior exportador de gás natural. Se, por um lado, o Brasil tem inovado nas energias renováveis, a Rússia continua a deter as maiores reservas mundiais de gás natural e ainda grandes reservas de petróleo (ver Gráfico I, pág. 31), os dois recursos mais procurados mundialmente. Gráfico III Reservas Mundiais de Gás Natural Brasil 13 Índia 1 3 China 4,5 Argélia 7 EUA Qatar 25 29 Irão 44 Rússia 0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 Trilhões de m3 Fonte: OPEP – Annual Statistical Bulletin 2009 34 Jérôme Guillet, “La Russie: émergente ou réémergente?”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po-L’Express, Paris, 2008, p. 150 40 Em termos energéticos, a Rússia encontra-se numa posição estratégica decisiva, por uma razão simples: é o maior fornecedor de gás natural da Europa e das ex-repúblicas soviéticas. Na realidade, a Rússia é o maior produtor mundial de gás natural (21,8% do total), o maior exportador (detém 24% das exportações mundiais), e tem a União Europeia como o maior importador mundial 35 . Significa, portanto, que a Rússia tem grande parte da Europa sob a sua dependência energética. A maior prova deste facto está na situação de quase desespero que criou na Europa, quando decidiu suspender o fornecimento de gás em 2005 e em 2009. A origem – importa salientar – esteve numa alteração de influência política regional: a aproximação da Ucrânia à NATO e à União Europeia. Ora, embora nem toda a Europa seja exclusivamente dependente do gás russo (casos da Península Ibérica e dos países escandinavos, em particular a Noruega), a verdade é que as maiores economias europeias e ainda todo o leste europeu importam o gás da empresa estatal russa Gazprom em grandes quantidades. Mesmo com o decréscimo no volume de importações de 2008 para 2009, a dependência do gás russo permanece bastante grande, sobretudo em países do leste, como a Ucrânia e a Bielorrússia, que importam ainda mais do que a Alemanha. Figura I – Importações do Gás Russo (2008 e 2009) Fonte: Relatório Anual da Gazprom (disponível em: http://www.gazprom.com/investors/reports/2009/) 35 Dados do artigo de Catarina Mendes Leal, “Gás Natural no Século XXI: Uma Visão Geoeconómica”, Da Sphera, Lisboa, 2007, p. 11 41 Ora é precisamente na Ucrânia que a Gazprom tem enfrentado sérias disputas, e apesar de a Europa ocidental estar livre deste conflito diplomático, o facto é que cerca de 80% do gás russo exportado para a Europa passa pela Ucrânia 36 . Consequentemente, qualquer conflito entre estes dois países afeta inevitavelmente quase toda a Europa. A disputa é, mais concretamente, entre as duas grandes empresas estatais: a russa Gazprom e a ucraniana Naftogaz. Mas apesar deste contexto empresarial, a verdade é que as divergências são eminentemente políticas, pois começaram logo após a Revolução Laranja, entre 2004 e 2005, na Ucrânia, símbolo da maior perda de influência russa no leste europeu. A estratégia ucraniana de crescente aproximação à União Europeia e à Aliança Atlântica causou-lhe, visivelmente, grandes dificuldades nas relações com a Rússia, e o setor energético ficou particularmente afetado, com a Rússia a aumentar significativamente os preços de venda do gás à Ucrânia. A disputa central envolve o preço real do gás vendido pela Gazprom: tanto a Rússia como a Ucrânia reclamam que os preços nominais não correspondem à realidade, sendo que, nas negociações, a Rússia apresenta um preço sempre superior ao proposto pela Ucrânia 37 . Ora, sempre que é necessário renovar o acordo de fornecimento de gás entre os dois países, a intransigência de ambos os lados termina num impasse. A consequência mais visível traduz-se nas ações drásticas tomadas pela Rússia, ao reduzir o fornecimento de gás à maioria da Europa ocidental que, em Janeiro de 2009, se viu confrontada com um corte total no fornecimento de gás natural. Com efeito, a Rússia utiliza a sua enorme capacidade energética para executar uma estratégia geopolítica que coloca grande parte da Europa, e em particular a Ucrânia, na sua dependência e influência. Na verdade, toda a estratégia energética da Rússia, após o fim da URSS, tem sido no sentido de exercer a sua influência política nas ex-repúblicas soviéticas. A Bielorrússia, por exemplo, concede ficar sob influência política russa em troca do petróleo 38 . O mesmo acontecia com a Ucrânia antes da Revolução Laranja: recebia o gás natural russo a preços muito reduzidos. Após a revolução, a Rússia passou a exigir preços de mercado à Ucrânia, justamente no mesmo ano da mudança política. Acresce ainda que, no futuro, a relação de dependência não sofrerá alterações significativas, uma vez que a Rússia situa-se na região do mundo com maior potencial 36 Dados do artigo de Edward Chow e Jonathan Elkind, “Where East Meets West: European Gas and Ukrainian Reality”, The Washington Quarterly, vol. 32, nº 1, Washington, 2009, p. 78 37 “Ukraine claims to receive gas, while Russia claims to sell gas, at nominal prices that do not correspond with reality.” Edward Chow e Jonathan Elkind, op. cit. p. 83 38 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 132 42 de gás natural por descobrir. Estima-se, aliás, que continue a ser a maior produtora e exportadora mundial em 2040, altura em que a procura mundial atingirá cerca de 90%, ultrapassando o carvão e ficando atrás apenas do petróleo 39 . No meio destas disputas está a Europa ocidental, cuja dependência do gás russo ascende a cerca de 25% das suas necessidades de gás natural 40 . Ora, a Rússia tem todo o interesse em manter esta dependência, não apenas por razões políticas que permitem exercer pressão sobre os países europeus, mas também porque dois terços dos lucros da Gazprom provêm das ligações que atravessam a Ucrânia 41 . Estas razões justificam o facto de a Rússia estar já a investir na construção de dois projetos de gasodutos que contornam justamente a Ucrânia no fornecimento de gás ao resto da Europa: o Nord Stream, que atravessa o mar báltico e contorna a Ucrânia e a Polónia até à Alemanha; e o South Stream, que atravessa o Mar Negro até aos países balcânicos, Áustria e Itália. Figura II Nord Stream e South Stream Fonte: BBC (disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/8607214.stm) 39 Dados do artigo de Catarina Mendes Leal, “Gás Natural no Século XXI: Uma Visão Geoeconómica”, Da Sphera, Lisboa, 2007, p. 25 e p. 27 40 José Alberto Loureiro dos Santos Op. cit. p. 132 41 Dados do artigo de Edward Chow e Jonathan Elkind, “Where East Meets West: European Gas and Ukrainian Reality”, The Washington Quarterly, vol. 32, nº 1, Washington, 2009, p. 78 43 Todavia, se por um lado a Rússia dificilmente abdica da sua enorme vantagem energética enquanto instrumento geopolítico, por outro lado a Europa ocidental também já percebeu que tem de reduzir a sua dependência relativamente ao gás russo. O facto de a Rússia já ter provado que é capaz de tomar ações drásticas para conseguir os seus objetivos políticos e económicos, deixa a Europa numa posição frágil e receosa. É por esta razão que a Europa tem aumentado a procura por outras alternativas de abastecimento, além da hipótese da energia nuclear 42 . Por outro lado, impõe-se outra questão relativa à estratégia energética europeia, pois se é verdade que a Rússia é o maior fornecedor de gás natural de toda a Europa, também é verdade que a Europa é o maior comprador do gás russo. A situação é idêntica à que se passa entre o Brasil e a Bolívia, onde a relação de dependência não é tão grande justamente porque a Bolívia não tem outra opção. Ora, por que razão então existe uma relação de dependência tão grande na Europa relativamente à Rússia? A resposta está na falta de uma estratégia comum da Europa – ou, pelo menos, da União Europeia – que consiga unificar a posição europeia numa única voz, de modo a impedir a Rússia de seguir para posições radicais. Sem esta estratégia, a Europa continua dependente das decisões geopolíticas e geoestratégicas da Rússia, e só a procura por outras fontes de abastecimento ou a opção do nuclear poderão reduzir a dependência da Europa ocidental no futuro. A “diplomacia do tubo” russa revela-se, assim, uma das grandes mais-valias do poder russo atualmente, e o melhor instrumento de influência política sobre toda a Europa, com especial incidência no leste europeu. Se a Rússia é considerada uma potência emergente, deve-o, em grande parte, a esta vantagem energética que lhe permite ter uma influência regional decisiva (apesar das crescentes inimizades regionais na sua esfera de intervenção). Esta estratégia, aliada à relevância política e ao crescente protagonismo internacional que assume através dos BRICS, coloca a Rússia numa posição seguramente mais sólida do que a que tinha em 1991. Percebendo que sozinha não conseguiria continuar a competir com os EUA, a Rússia ganhou agora a força das potências emergentes, e é enquanto tal que está a contribuir para alterar a ordem internacional exclusivamente unipolar. 42 Recentemente, a hipótese da energia nuclear foi, contudo, adiada e até afastada por vários países europeus (sobretudo a Alemanha), após o desastre nuclear na central japonesa de Fukushima, na sequência do terramoto e tsunami de 2011. 44 2.3 Índia – A China do Futuro? 2.3.1 Crescimento Indiano: diferente do chinês? A Índia não é rica em recursos naturais como o Brasil ou a Rússia; ainda não tem o estatuto internacional da China; e encontra-se num complexo regional de várias potências – entre as quais o Paquistão, o Japão e a China – que dificultam a sua atuação enquanto potência regional, e a sua afirmação enquanto grande potência mundial. E, no entanto, a Índia, em conjunto com a China, apresenta dados de crescimento colossais e únicos no mundo; e está a tornar-se num polo de grandes empresas na área da informática e de outras tecnologias. Só em termos económicos, a Índia e a China cresceram mais do que qualquer outro país dos BRICS na última década 43 . Ora, apesar dos constrangimentos de ordem regional, a Índia possui capacidades que lhe permitem tornar-se num dos maiores polos de poder. A questão coloca-se agora em dois pontos fulcrais: por um lado, importa perceber de que forma os constrangimentos regionais limitam a relevância política da Índia (tema do próximo subcapítulo), e por outro lado, importa avaliar as reais potencialidades económicas da Índia e em que medida se diferenciam, ou não, das da China. O primeiro grande fator base do crescimento económico da Índia assenta na sua gigantesca massa demográfica. É certo que a China supera a Índia neste indicador, mas com algumas desvantagens. Por um lado, as políticas antinatalistas impostas pela China a partir dos anos 70 (nomeadamente a política do filho único) provocaram o aumento do envelhecimento da população e uma consequente diminuição do crescimento demográfico 44 . Na Índia, pelo contrário, as falhas sucessivas nas políticas de planeamento familiar e de controlo da natalidade – que têm evidentemente graves consequências ao nível do aumento da pobreza – resultaram numa vantagem para o futuro: uma população ativa cada vez mais jovem. Por outro lado, o custo da mão de obra na Índia é ainda mais barato, o que a torna ainda mais competitiva em relação à 43 Nos últimos dez anos, o crescimento da Índia e da China situou-se sempre entre os 7% e os 10% do PIB per capita, inclusive em 2009, ano de recessão mundial. No Brasil, Rússia e África do Sul, o crescimento foi mais moderado e cedeu ligeiramente à recessão económica mundial de 2009. (Dados do Banco Mundial disponíveis em: http://databank.worldbank.org/ddp/home.do?Step=1&id=4, acedido no dia 01/06/2011). 44 Segundo o PRB – Population Reference Bureau, o número de nascimentos por cada mil habitantes é de 23 para a Índia, e de apenas 12 para a China (Dados disponíveis online em: http://www.prb.org/Datafinder/Topic/Bar.aspx?sort=v&order=d&variable=85, acedido a 22/08/2011. 45 China 45 . Em termos demográficos, a Índia está, pois, a caminhar para se tornar no país mais populoso do mundo e com uma média de idade extremamente jovem, o que provocará necessariamente um aumento do seu peso económico e político. Nas palavras de Zakaria, “if demography is destiny, India’s future is secure” 46 . Refira-se, aliás, que de todos os BRICS, a Índia é o único cujas estimativas apontam para um crescimento demográfico gigantesco até 2060, ao contrário da Rússia onde a tendência é a de que o crescimento negativo se mantenha. Figura III Crescimento Populacional nos BRICS e Estimativas para 2060 Fonte: Goldman Sachs (2010) Mas a demografia é apenas o início. Aliada a este fator está, por exemplo, a forte componente consumista da Índia, onde o consumo pessoal atinge 67% do PIB, um valor muito acima dos 42% da China, e abaixo apenas dos EUA, com 70% 47 . Nem a crise do subprime nos EUA, e subsequente crise financeira mundial, afetaram o negócio do crédito indiano, provando que as grandes potências emergentes asiáticas conseguiram passar ao lado da recessão e até crescer economicamente. No caso da Índia, a força económica verifica-se em muitas outras áreas. O setor dos serviços é já o maior sucesso indiano: a Índia é praticamente líder mundial nas atividades de backoffice e de serviços 45 Dados do artigo de Christophe Jaffrelot, “L’Inde, puissance émergente, jusqu’où?”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po-L’Express, Paris, 2008, p. 94 46 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 132 47 Fareed Zakaria, op. cit. p. 136 46 de apoio ao cliente das grandes empresas, através dos conhecidos call center, o que a torna num verdadeiro polo de serviços técnicos mundiais. Na verdade, cerca de metade do PIB indiano tem já origem neste setor dos serviços, com um valor de 50%, face aos 25% da indústria e aos restantes 25% da agricultura 48 . Ora, como se explica este grande sucesso na prestação de serviços técnicos e especializados num país onde a pobreza ainda prevalece? A explicação está noutra grande vantagem da Índia: a grande aposta na tecnologia e na inovação. Atualmente chegam todos os anos ao mercado indiano cerca de 525 mil engenheiros, 250 mil médicos e quase 2 milhões de licenciados em áreas científicas 49 . O número de formados especializados é tão grande que uma grande parte sente a necessidade de emigrar, tendo como principal destino os EUA, que assim continuam a atrair cérebros de países que ainda não possuem mercado suficiente para responder ao número de diplomados técnicos. Apesar de tudo, o desenvolvimento tecnológico e empresarial da Índia continua a progredir, além de que possui uma enorme vantagem em relação à China: grande parte dos Indianos fala o inglês como segunda língua, fator determinante no sucesso das relações empresariais globais. Além disso, é no setor empresarial que se começam a verificar algumas diferenças em relação à China, pois enquanto que o desenvolvimento económico chinês é sobretudo baseado na iniciativa do Estado, na Índia é o setor privado que prevalece. Esta diferença verifica-se igualmente nas exportações: na China, 60% das exportações devem-se à presença das grandes multinacionais estrangeiras (atraídas pelo governo chinês), enquanto que a Índia possui um setor privado próprio e em crescimento 50 . Este facto permite à Índia possuir já algumas das maiores empresas mundiais, como a Infosys, no ramo das novas tecnologias (IT), a Tata, no ramo automóvel, a Ranbaxy, no ramo dos produtos farmacêuticos, e a Reliance, um gigantesco grupo privado de empresas indianas que vão desde o entretenimento até à construção de infraestruturas51 . No setor dos serviços e das grandes empresas, a Índia avança, pois, para uma sociedade já pós-industrial, mas diferente do modelo de desenvolvimento chinês que, apesar do sucesso indiano, continua numa explosão de crescimento económico superior ao da Índia. 48 Fareed Zakaria, op. cit. p. 135 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 119 50 Loureiro dos Santos, op. cit. p. 120 51 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 137 49 47 O que distingue, então, estes dois gigantes asiáticos no tipo de crescimento económico? O forte setor privado indiano, já referido, constitui uma vantagem da Índia a longo prazo. Porém, a iniciativa estatal da China tem conseguido ainda melhores resultados económicos. Ora, é aqui que reside a grande diferença na geração de crescimento: o regime político. A Índia é a maior democracia do mundo e provou ao longo de toda a Guerra Fria que as democracias não são regimes fracos face às autocracias, sobretudo porque conseguiu perdurar numa Ásia maioritariamente autocrática. Todavia, o governo indiano enfrenta maiores obstáculos ao desenvolvimento, pois qualquer decisão é escrutinada pela opinião pública e jamais avançará se for contra a Constituição da Índia ou se o poder judicial assim o determinar. A China autocrática, pelo contrário, tudo o que decide, executa. Desde a construção de infraestruturas que possam eventualmente prejudicar populações inteiras, até à criação de leis que vão no mesmo sentido 52 . Regra geral, a China decide e constrói, algo só possível porque os protestos, os valores democráticos e os direitos humanos não são autorizados. A Índia, pelo contrário, não pode simplesmente ignorar a vontade da população e os seus direitos. O excelente exemplo de Fareed Zakaria relativamente à migração para as cidades é prova desta diferença política: enquanto que a China exige uma prova de posse de emprego a qualquer cidadão chinês que queira migrar do campo para a cidade, na Índia tal não é possível, pois estaria a violar um direito da Constituição: a liberdade de movimento 53 . O resultado é que, enquanto a China atrai, para os meios urbanos, uma maioria de pessoas qualificadas e com emprego, na Índia não existe qualquer limitação ou imposição, o que aumenta o risco de pobreza nos grandes centros urbanos. Por conseguinte, o desenvolvimento indiano está mais limitado do que o chinês, ou nas palavras do general Loureiro dos Santos em relação à Índia: “existe uma espécie de “preço democrático” que tende a diminuir o ritmo de desenvolvimento” 54 . Este ritmo de desenvolvimento lento é particularmente visível no nível de pobreza do país. Cerca de 40% da população pobre mundial encontra-se na Índia55 . Comparando 52 Segundo Zakaria: “China’s growth is overseen by a powerful government. Beijing decides that the country needs new airports, eight-lane highways, gleaming parks – and they are built within months.” Fareed Zakaria, op. cit. p. 134 53 Fareed Zakaria, op. cit. p. 134 54 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 119 55 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 133 48 com os restantes BRICS, a Índia é o país onde a pobreza extrema é mais elevada (ver mapa da pobreza extrema mundial no Anexo I) Apesar de tudo, a Índia está a ter um desenvolvimento económico que lhe permite ter mais voz nas instituições internacionais. Trata-se de um país em processo de desenvolvimento, com alguns setores pós-industriais, mas com a maioria da economia ainda numa fase pré-industrial (a segunda fase do processo de industrialização definido por Organski). Em todo o caso, se é verdade que a Índia jamais conseguirá assumir-se como uma grande potência ao nível da China, isso deve-se fundamentalmente aos constrangimentos regionais, e não ao seu tipo de crescimento económico que, a longo prazo, tem todas as potencialidades de atingir o crescimento chinês. 2.3.2 A Índia no Contexto Regional e Mundial A Índia, segundo Barry Buzan 56 , ainda é fundamentalmente uma potência regional num complexo com duas grandes potências: a China e o Japão. A realidade da última década demonstra que a ação da Índia está, de facto, bastante condicionada por estes dois atores regionais e mundiais. Além disso, tem ainda de enfrentar o maior desafiador à sua liderança regional no sudeste asiático: o Paquistão. A questão está em saber se estes constrangimentos regionais colocam a Índia num plano exclusivamente regional, ou se, por outro lado, a crescente força económica, política e nuclear da Índia anula estes constrangimentos e a coloca num plano cada vez mais internacional. A China é o primeiro elemento a ter em conta neste complexo. Apesar da recente cooperação entre a Índia e a China no desenvolvimento dos BRICS, a verdade é que subsistem tensões regionais históricas que provam precisamente o contrário em relação à homogeneidade deste grupo. As rivalidades entre os BRICS começam sobretudo entre estes dois gigantes asiáticos. Em primeiro lugar, importa recordar que a Índia e a China travaram uma guerra – em 1962 – num conflito fronteiriço que terminou com a derrota da Índia. Antes, em 1959, a Índia já assumira uma posição contrária a um dos grandes objetivos políticos da China: a ocupação do Tibete. Precisamente em 1959, a Índia concedeu asilo político ao 56 “Asia contains two great powers (China and Japan) and a third state (India) that is the leading aspirant to elevation from regional to great power standing.” Barry Buzan, Regions and Powers: The Structure of International Security, Cambridge University Press, Cambridge, 2003, p. 93 49 Dalai Lama e a cerca de cem mil tibetanos, numa afronta ao poder político chinês e tornando o Tibete numa disputa regional 57 . Atualmente – e apesar da recente renúncia do Dalai Lama à liderança política do Tibete, em Março de 2011 (permanecendo apenas como líder religioso) – o facto é que a Índia continua a controlar o Tibete do Sul, uma pequena área territorial contestada pela China. A esta disputa acrescem ainda os testes nucleares realizados pela Índia, em 1998, e a sua subsequente auto-declaração enquanto potência nuclear, gerando uma reação hostil por parte da China cujo poder nuclear fica evidentemente contrabalançado. Resta, por fim, referir a presença indireta da China no conflito Índia – Paquistão, sob a forma de apoio militar ao governo paquistanês. Apesar de não existir nenhum tratado formal de ajuda militar, a verdade é que a China tem sido o país da região que mais tem ajudado militarmente o Paquistão, o que dificulta naturalmente as relações com a Índia 58 . Por outro lado, importa salientar um outro elemento de enorme importância nas relações Índia – China: os EUA. A razão é recente e evidente: face ao gigantesco crescimento mundial da China, a estratégia dos EUA tem estado muito mais próxima da Índia, numa tentativa de conter o peso mundial e regional da China. Prova disso é a declaração inédita dos EUA, em 2010, em como apoiam a entrada da Índia no Conselho de Segurança da ONU 59 . Com efeito, considerando que a Índia só poderá ser bem sucedida regionalmente se tiver o apoio dos EUA (sobretudo porque não tem aliados de peso na sua região), este apoio surge como um trunfo da estratégia indiana para ascender regional e mundialmente. Mas os constrangimentos regionais à Índia não terminam na China. Desde a data da independência, em 1947, a Índia mantém uma relação de permanente tensão e conflito com o Paquistão, sobretudo devido à província de Caxemira. Em termos regionais, o Paquistão – com cerca de 170 milhões de habitantes – é o principal rival da Índia – com mais de um bilião de habitantes – na liderança do sudeste asiático. Surge aqui precisamente a primeira questão: por que razão se sente a Índia tão ameaçada por um Estado que é quase dez vezes menor em termos populacionais? A resposta tem sobretudo razões históricas relacionadas com a descolonização britânica e com a divisão do território. A maior e mais grave consequência foi, evidentemente, a guerra, que em pouco mais de 60 anos já foi travada por quatro vezes entre a Índia e o Paquistão. 57 Dados do livro de Stephen Philip Cohen, India: Emerging Power, Brookings Institution Press, Washington, 2001, p. 259 58 Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 210 59 Ver ponto 4.3 do Capítulo IV. 50 Destes quatro conflitos, aquele que agravou as animosidades futuras foi, sem dúvida, a guerra de 1971, de onde o Paquistão saiu derrotado e com uma enorme perda territorial: o Paquistão Oriental, atual Bangladesh. A partir desta data, a rivalidade entre a Índia e o Paquistão aumentou exponencialmente, agravando ainda mais a disputa territorial de Caxemira, já existente desde 1948. A estes factos acresce ainda a separação religiosa entre hindus e muçulmanos, cuja rivalidade foi sobretudo gerada e acentuada pela verdadeira índole do conflito Índia – Paquistão: a disputa territorial. Ora, independentemente da enorme disparidade demográfica, a Índia tem razões suficientes para temer um Paquistão que permanece extremamente revoltado com a divisão territorial existente. O Paquistão, por seu lado, tem uma perceção e convicção claras de que a Índia pretende acabar com o seu território enquanto Estado 60 . Estas posições ficaram, naturalmente, mais acentuadas após o desenvolvimento nuclear em ambos os países, no final dos anos 90, o que só prova a extrema animosidade entre estes dois rivais regionais. Atualmente, o centro da grande rivalidade entre a Índia e o Paquistão permanece o mesmo desde 1948: a região de Caxemira, que mais do que um conflito regional, arrisca tornar-se num conflito internacional. O conflito de Caxemira abrange uma amálgama de questões em disputa. Nas palavras de Stephen Philip Cohen: “The conflict in Kashmir is as much a clash between identities, imagination, and history, as it is a conflict over territory, resources and peoples” 61 . A questão religiosa constitui o centro das reivindicações: por um lado, o Paquistão entende que Caxemira, enquanto território de maioria muçulmana, deveria integrar o seu território; a Índia, por outro lado, entende que esta razão não é suficiente, e evoca o secularismo da identidade indiana para rejeitar o exclusivismo do Paquistão, sobretudo porque a própria Índia abrange uma parte considerável de muçulmanos 62 . Contudo, e embora esta diferença religiosa seja a parte mais destacada pelos intervenientes no conflito, a verdade é que oculta outras razões de maior importância, entre as quais, desde logo, o controlo de um território estratégico rico em água. Além disso, Caxemira está situada entre vários países importantes na região (China, Índia, Paquistão e Afeganistão), o que confere uma maior relevância regional ao Estado que a controlar (atualmente a Índia controla a maior parte do território). Ora, independentemente de os adversários serem Estados seculares ou religiosos, a verdade é 60 Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 36 Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 42 62 Stephen Philip Cohen, op. cit. p. 43 61 51 que Caxemira é estratégica em termos territoriais, e essa é a verdadeira motivação do conflito, ao contrário de uma ideia de confronto entre civilizações ou religiões. A questão religiosa assumiu maior relevância no início desta década, após o envolvimento direto da Al-Qaeda (resultando num aumento do terrorismo na região), mas a disputa é eminentemente territorial e política. Com efeito, face a estes desenvolvimentos, torna-se evidente que a liderança regional da Índia permanece bastante contestada. O próprio investimento militar da Índia prova a grande rivalidade que o país enfrenta: em 2004, e para um período de oito anos, a Índia fez encomendas militares superiores às da Arábia Saudita, no valor de 15,7 mil milhões de dólares 63 . Paralelamente a esta contestação regional, a última década provou, por outro lado, que a influência internacional da Índia tem aumentado, fruto de dois elementos chave: o enorme vigor económico, que atraiu os Estados vizinhos e aumentou a influência económica da Índia na região; e o sistema democrático indiano, através do qual a Índia tem conseguido manter na sua esfera de influência Estados mais pequenos como o Nepal, o Butão, o Bangladesh e o Sri Lanka. Qual é então o balanço do poder regional e mundial da Índia? Em primeiro lugar, é certo que as tensões com a China podem ressurgir a qualquer momento, e que o Paquistão é, sem dúvida, um entrave ao seu poder regional. Além disso, a relação de tensão histórica entre a Índia e a China constitui uma das grandes diferenças nos BRICS, o que contribui para a falta de homogeneidade do grupo. Todavia, importa referir que o grande desenvolvimento económico da Índia e o apoio dos EUA têm anulado, por enquanto, a força da contestação regional. A Índia é encarada como uma potência emergente e como uma futura grande potência mundial. Nas palavras do primeiro-ministro indiando, Manmohan Singh, o objetivo da Índia é comum a todos os BRICS e centra-se em tornar a ordem internacional multipolar: “We support a multipolar, equitable, democratic and just world order with the United Nations playing a central role in tackling global challenges” 64 . É este objetivo que evita o aumento das tensões entre a Índia e a China, e é também este objetivo concertado que tem permitido à Índia contornar os constrangimentos regionais durante a última década. 63 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 122 64 Primeiro-Ministro da Índia, Manmohan Singh, Conferência de Imprensa após a Cimeira dos BRICS em 15 de Abril de 2010 (discurso disponível em: http://pmindia.nic.in/speech/content.asp?id=912, acedido no dia 09/06/2011). 52 2.4 China – A Grande Desafiadora da Ordem Unipolar 2.4.1 Os Trunfos da China: crescimento económico e militar A ascensão da China enquanto polo, e da Ásia enquanto complexo regional, representa, atualmente, o maior desafio ao poder unipolar dos EUA. Efetivamente, a China lidera o novo conceito de potências emergentes, e as razões são diversas: na última década, o seu crescimento económico situou-se sempre na casa dos 9%, superando a Índia e qualquer outra potência emergente ou grande potência mundial 65 ; possui o maior exército do mundo em número de efetivos; é o segundo país que mais gasta em meios militares, a seguir aos EUA (ver capítulo III); tem um território extenso; é o país mais populoso do mundo; e, por fim, possui uma economia em franca expansão, cada vez mais aberta às grandes multinacionais e ao investimento estrangeiro, com uma mão de obra barata, e com um volume de transações que transformou a China na segunda maior economia do mundo em 2010, ultrapassando o Japão 66 . A China está, assim, progressivamente a aproximar-se da influência económica e militar dos EUA, bem como a regressar à esfera das grandes potências mundiais, após séculos de retração do seu poder regional, e da perda de influência para a Europa e EUA. Historicamente, trata-se, de facto, de um regresso ao enorme poder que a China deteve até ao século XV, quando, segundo Paul Kennedy, a sua força naval, militar e económica superava largamente a da Europa 67 . Após séculos de isolamento, e com o fim da Guerra Fria, o poder da China ressurgiu finalmente, e tem-se revelado uma preocupação crescente para os EUA. Prova disto é o facto de o Pentágono ter passado a publicar – a partir do ano 2000 – um relatório anual sobre o poder militar chinês, à 65 Dados do Banco Mundial (http://databank.worldbank.org/ddp/home.do?Step=1&id=4, acedido no dia 14/06/2011) 66 Dados do FMI relativamente ao PIB nominal: a China atingiu, em 2010, um PIB nominal de 5,8 mil milhões de dólares, ultrapassando, pela primeira vez, o Japão que ficou nos 5,4 mil milhões (dados disponíveis em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2011/01/weodata/index.aspx, acedido no dia 14/06/2011). 67 Segundo Paul Kennedy, até ao século XV o poder da China revelou-se dominante em praticamente todas as áreas: desde a população (o dobro da europeia), até à sua força militar e naval (com expedições marítimas anteriores às europeias), terminando na força económica (nomeadamente na grande produção de ferro). Importa ainda referir que, segundo Kennedy, o poder naval chinês era tão grande, que as expedições de Cheng Ho (que chegaram a todo o sudeste asiático e à África austral) seriam bem capazes de contornar África e descobrir Portugal muito antes de as expedições portuguesas passarem além de Ceuta, o que prova que a China sempre deteve o potencial para estar na primeira linha das grandes potências. “From what historians and archaeologists can tell us of the size, power, and seaworthiness of Cheng Ho's navy (...) they might well have been able to sail around Africa and "discover" Portugal several decades before Henry the Navigator's expeditions began earnestly to push south of Ceuta.” Paul Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers, Unwin Hyman, Londres, 1988, p. 7 53 semelhança do que fazia sobre o poder militar soviético durante a Guerra Fria 68 . A reação dos EUA denota, pois, o crescente poder da China, obrigando à modificação da estratégia norte-americana para a Ásia, sobretudo porque passou a utilizar a Índia como meio de contenção do poder chinês. Em termos económicos, é notório que a economia chinesa tem crescido exponencialmente desde as reformas introduzidas por Deng Chao Ping, em 1978. Desde então, a China já retirou da pobreza cerca de quatrocentos milhões de pessoas e atualmente exporta num único dia mais do que exportou durante todo o ano de 1978 69 . A chave do seu crescimento económico tem sido, efetivamente, a grande aposta nas exportações, sobretudo através da atração do investimento das grandes empresas multinacionais. A China destaca-se, aliás, por apresentar um crescimento do investimento direto estrangeiro (IDE) dos mais elevados, o que contrasta com o enorme desinvestimento verificado, por exemplo, nos EUA, onde o IDE sofreu uma queda vertiginosa desde o ano 2000 (muito embora em 2009 tenha ocorrido uma quebra geral em todos os países, em resultado da crise financeira mundial). Gráfico IV IDE – Evolução entre 2000 e 2009 nos EUA e BRICS Dólares (milhares de milhões) 350 300 250 EUA Brasil 200 Rússia 150 Índia 100 China África do Sul 50 0 2000 -50 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Fonte: Banco Mundial 68 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 82 69 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 89 54 Paralelamente, o contínuo aumento das exportações chinesas – potenciado pelo crescimento do IDE e pela deslocalização da atividade fabril das grandes empresas para a China – tem proporcionado um enorme superavit financeiro à economia chinesa, que por sua vez canaliza estes ganhos para a compra de títulos do tesouro norteamericano 70 . Na verdade, a China é o país com as maiores reservas mundiais de dólares, detendo um valor que ascende a 1,5 biliões de dólares 71 . Ora, com estes dados, a China detém uma enorme mais valia sobre o poder económico dos EUA, sobretudo porque prova que está a tornar-se indispensável e incontornável à economia norte-americana. Um dos maiores pontos de viragem no crescimento económico chinês foi a entrada da China na Organização Mundial de Comércio, em 2001. Desde então, a economia chinesa tem vindo a gerar uma verdadeira revolução ao nível produtivo, sobretudo devido à sua mão de obra gigantesca e barata que tem influenciado toda a economia mundial. De facto, com uma mão de obra que custa pouco mais de 30 cêntimos por hora 72 (ainda que esteja a tornar-se mais cara do que a indiana), a China adquiriu uma enorme vantagem sobre a produção dos restantes países. Na verdade, o crescimento económico na China não se fica apenas pelos produtos das grandes multinacionais. Atualmente, a China é ainda o maior produtor de carvão, aço e cimento, e está a atravessar uma verdadeira revolução ao nível da construção de infraestruturas: em 2005, a China tinha cerca de dois mil milhões de metros quadrados de espaço em construção, um valor cinco vezes acima dos EUA 73 . Paralelamente, o crescimento económico chinês é igualmente motivado por outra grande revolução: a migração de uma gigantesca massa de pessoas para as cidades, tornando a China num país crescentemente urbano, industrial e com uma economia de mercado cada vez mais forte. As implicações deste gigantesco crescimento são, evidentemente, um aumento do peso económico da China ao nível mundial. Com efeito, na última década, a China atraiu não apenas investimento estrangeiro, mas encetou igualmente uma estratégia de investimentos chineses por todo o mundo. O 70 Esta compra de títulos do tesouro norte-americano tem mantido o preço do dinheiro baixo nos EUA, gerando, consequentemente, o inflacionamento dos preços no mercado imobiliário. Na verdade, em 2006, o general Loureiro dos Santos apontava já esta razão como sendo uma das bases da desregulação do mercado imobiliário norte-americano, o que viria também a contribuir grandemente para a crise do subprime, em 2008. José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 100 71 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 92 72 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 84 73 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 91 55 continente africano tem sido um dos maiores centros da estratégia da China, através de fortes investimentos não apenas económicos, mas também militares, conjugados com uma crescente influência política. A China está precisamente a ocupar o espaço de influência dos EUA, da França e do Reino Unido em África, ou seja, encontra-se numa competição direta e crescente com as economias ocidentais, o que demonstra que o seu poder económico já ultrapassa a sua esfera regional de influência. É certo que os EUA continuam a deter o lugar de maior economia mundial, com um PIB per capita superior ao de qualquer outro país e, portanto, revelador de uma grande riqueza, solidez empresarial e economia forte. Mas os desenvolvimentos económicos na China, durante a última década, demonstram que o papel deste gigante asiático na economia mundial é cada vez maior, sobretudo porque já provou conseguir desestabilizar os mercados ocidentais. Conjugado com este crescente poder económico, a China detém igualmente um poder militar assinalável que, de resto, tem vindo a crescer durante a última década. Além de ser o país com maior número de militares e o segundo do mundo com maiores despesas militares, é igualmente importante salientar que a China é uma potência nuclear. O seu arsenal nuclear está ao nível dos da França e do Reino Unido, e é superior ao da Índia, o que confere à China um estatuto regional e mundial só comparável ao dos EUA e da Rússia, as superpotências nucleares. Na verdade, é importante referir que a China tem vindo a investir grandemente na renovação das suas armas nucleares: segundo o general Loureiro dos Santos, a China já aplicou melhoramentos aos mísseis nucleares lançados de submarinos, com um alcance superior a cinco mil milhas (e, portanto, capazes de dissuadir os EUA); e investiu na aquisição de mísseis balísticos intercontinentais, com um alcance de oito mil milhas (capazes de cobrir todo o território dos EUA) 74 . A força militar chinesa assume-se, pois, cada vez mais capaz de limitar a ação dos EUA na Ásia. A questão coloca-se, agora, ao nível dos objetivos políticos e estratégicos da China em relação aos EUA. Ora, a verdade é que, durante a última década, os seus objetivos não têm passado por uma posição de hostilidade para com os EUA. Os dirigentes chineses têm consciência de que o mundo é cada vez mais interdependente em termos económicos, e que esta interdependência se aplica particularmente aos EUA e à China. Não é do interesse chinês colocar em risco, neste preciso momento, o seu extraordinário 74 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 109 56 crescimento económico, a favor de uma disputa pela liderança mundial com os EUA, de onde poderiam resultar custos incalculáveis para a China e para o resto do mundo. A posição da China denota precisamente o contrário: cooperação com os EUA (nomeadamente na questão do terrorismo) e aceitação das regras internacionais, o que significa que não se trata de um Estado revisionista. A China pretende conquistar o seu lugar no grupo das grandes potências através de uma estratégia de longo prazo, baseada fundamentalmente na influência económica e sem afrontar nenhuma grande potência ou superpotência instituída. Por conseguinte, a liderança económica é um dos grandes objetivos da China, confirmando a ideia de Zakaria de que atualmente o poder se consegue através dos mercados, e não dos impérios. Existe, porém, apenas um dado de extrema importância que justifica todo o desenvolvimento militar chinês e até a sua capacidade para atacar os EUA: a questão particular de Taiwan, e ainda o Tibete e a província de Xinjiang. 2.4.2 Taiwan, Tibete e Xinjiang Os conflitos regionais que envolvem a China constituem a maior razão para o desenvolvimento do seu poder militar, sobretudo no caso de Taiwan, questão sobre a qual a China se mantém irredutível. Taiwan não é sequer motivo de ponderação por parte das autoridades chinesas que, aliás, fazem questão de o transmitir constantemente aos EUA. Nas palavras de Yang Jiechi, ministro chinês para os negócios estrangeiros: “We will never waiver in our commitment to the one China principle and will never compromise our opposition to "Taiwan independence", "two Chinas" or "one China, one Taiwan". We hope that the US side will honor its commitments” 75 . Importa, aliás, referir que a China coloca mesmo a hipótese de um conflito à escala global no caso de ocorrer uma declaração de independência por parte de Taiwan, e subsequente reconhecimento internacional 76 . Ora, é esta incerteza que tem motivado o desenvolvimento militar chinês. Segundo o general Loureiro dos Santos, mais de seiscentos mísseis de curto alcance encontram-se 75 Yang Jiechi, Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, num discurso intitulado “Broaden ChinaUS Cooperation in the 21st Century”, 12 de Março de 2009, disponível em: http://www.fmprc.gov.cn/eng/zxxx/t542505.htm, acedido no dia 20/06/2011. 76 O general Loureiro dos Santos refere inclusivamente que o general Zhu Chenghu já proferiu declarações onde ameaça atacar centenas de cidades americanas com ogivas nucleares, no caso de surgir uma guerra com Taiwan. José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 109 57 apontados a Taiwan, e a China já estabeleceu acordos navais com diversos Estados da região (entre os quais o Paquistão, o Camboja, o Bangladesh e a Tailândia) que lhe permitem intervir a qualquer momento na ilha 77 . O pressuposto para utilizar toda esta força é simples: se Taiwan declarar formalmente a independência, a China intervirá militarmente para forçar a integração da ilha. Em todo este conflito, os EUA surgem colocados na posição difícil de evitar um conflito à escala global através de uma cedência: reconhecer que existe apenas uma China (a República Popular da China, com um regime autoritário) onde Taiwan (com um regime democrático e uma economia de mercado forte e semelhante à dos EUA) é também considerado como parte integrante de um regime comunista e autoritário. A China, por seu lado, tem seguido uma via substancialmente diferente da ameaça militar e nuclear que caracterizou a sua estratégia em anos anteriores. Ao mesmo tempo que desenvolve uma estratégia para uma eventual invasão (no caso da proclamação de independência), a China tem apostado sobretudo numa estratégia menos agressiva, convencida de que a integração total e pacífica de Taiwan é meramente uma questão de tempo 78 . Por outro lado, o governo chinês está empenhado em dissuadir o apoio internacional a Taiwan, e o melhor exemplo desta estratégia encontra-se nos enormes investimentos e relações bilaterais que a China tem vindo a estabelecer com África, levando mesmo alguns países africanos a trocar as relações com Taiwan pela China 79 . Ora, sendo verdade que a tensão entre estes dois adversários permanece bastante elevada, também é verdade que os mais recentes desenvolvimentos revelam uma perda da força diplomática de Taiwan, o que constitui um sinal do poder crescente da China ao nível regional e internacional. Em todo o caso, Taiwan mantém-se como um dos maiores constrangimentos ao reconhecimento da China enquanto grande potência mundial, o que a impede de se afirmar politicamente no mundo. A afirmação política da China fica igualmente mais limitada pela existência de outros conflitos internos onde, aliás, se verificam confrontos que não existem em Taiwan. É no Tibete e na província de Xinjiang que a contestação à China se tem feito no terreno. Enquanto que a questão de Taiwan envolve, na prática, um conflito entre dois Estados sem confrontos visíveis (mas com o sério risco de uma guerra de 77 José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 108 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 123 79 Segundo Zakaria, de um total de vinte e três países que apoiam Taiwan, sete situam-se em África, e seis destes já trocaram o reconhecimento de Taiwan pela China, incluindo a África do Sul. Fareed Zakaria, op. cit. p. 119 78 58 proporções internacionais), no Tibete e em Xinjiang existem, de facto, confrontos civis de carácter étnico e religioso. O Tibete concentra uma cultura muito própria, baseada no budismo tibetano e com uma língua bastante distinta do mandarim. Mas assim como Taiwan é, para a China, inegociável, também a independência do Tibete é impensável para Pequim. Desde 1959, os confrontos entre as autoridades chinesas e os monges tibetanos têm sido recorrentes. Atualmente, mais do que a autodeterminação, as reivindicações dos monges tibetanos centram-se na exigência de reconhecimento e respeito pela cultura e religião do Tibete. Embora a China advogue que o faz, a realidade mostra o oposto, nomeadamente através de uma nova estratégia baseada na migração massiva de chineses de etnia Han (a maior etnia da China) para o Tibete, uma ação que o Dalai Lama classifica como uma verdadeira “agressão demográfica” 80 . Com efeito, embora a questão da independência já não seja crucial para os tibetanos 81 , a verdade é que os confrontos persistem devido a um imenso descontentamento com as políticas uniformizadoras de Pequim. De igual modo, o descontentamento que se verifica no Tibete é idêntico na província de Xinjiang, onde novamente a etnia Han está envolvida em confrontos com a etnia local, Uigur. Efetivamente, embora a China reconheça as minorias do país, a verdade é que privilegia sempre a uniformização pela maioria Han: no Tibete o conflito é entre os Han e os monges tibetanos, e em Xinjiang é entre os Han e os Uigures (maioritariamente muçulmanos e com língua própria). Os confrontos em Xinjiang e na capital, Ürümqi, regressaram em Julho de 2009 (após uma década de estabilidade) com centenas de mortos e atos de violência extrema. A reivindicação é a mesma do Tibete: não necessariamente independência, mas respeito pela cultura uigur 82 . Ora, embora o crescimento do poder regional e internacional da China tenha, efetivamente, reduzido o apoio internacional à independência de algumas regiões – Taiwan e Tibete – a verdade é que o governo de Pequim continua a enfrentar sucessivas contestações que reprime violentamente e que mancham a credibilidade da China, o que dificulta o reconhecimento do seu poder na ordem internacional. 80 A expressão “agressão demográfica” tem sido frequentemente usada pelo Dalai Lama desde os anos 90 (informação disponível no site oficial do Dalai Lama: http://www.dalailama.com/messages/tibet/10th-march-archive/1993, acedido no dia 23/06/2011). 81 O próprio Dalai Lama já o confirmou ao retirar-se da liderança política do Tibete, em 2011, concedendo, assim, a escolha de um líder político (mas não religioso) através de eleições. 82 “Uyghurs inside and outside Xinjiang are today arguably most concerned not about achieving an independent Uyghur state – which seems unattainable – but about cultural autonomy.” James A. Millward, “Introduction: Does the 2009 Urumchi violence mark a turning point?”, Central Asian Survey, Routledge, vol. 28, nº 4, Londres, 2009, p. 357 59 2.4.3 A Transformação da China: apenas económica ou também social e política? A China está a conseguir em trinta anos aquilo que o Ocidente conseguiu em dois séculos: uma sociedade industrial e uma economia de mercado 83 . Poucos são os países que em cerca de trinta anos passaram de uma sociedade maioritariamente rural, baseada na agricultura, extremamente pobre e sem infraestruturas, para uma sociedade crescentemente urbana, baseada na produção industrial e com uma economia de mercado que tem vindo a reduzir a pobreza do país. A transformação económica da China é, portanto, evidente. Mas a mesma velocidade de transformação não se verifica ao nível político. De facto, a índole autoritária e a ideologia comunista que caracterizam o regime chinês não sofreram grandes alterações desde 1978. O aparelho do Partido Comunista Chinês continua a deter a mesma força e influência na sociedade, limitando fortemente a liberdade de expressão e reprimindo veementemente qualquer tipo de manifestação, insurgência ou qualquer outro ato mais crítico em relação ao governo 84 . O regime político da China não acompanhou, portanto, a extraordinária abertura económica do país. A única transformação política deu-se ao nível da conceção económica que contraria justamente a ideologia comunista, ou seja, o regime permaneceu autoritário e repressor, mas crescentemente desviado da ideologia comunista ao nível económico. Neste contexto, a questão crucial que se impõe é se o regime chinês conseguirá manter-se imutável perante uma transformação económica e social de dimensões gigantescas. De facto, qualquer país que evolua no processo de industrialização sofrerá, necessariamente, transformações políticas e sociais, como foi o caso da Indonésia de Suharto 85 . Ora, a China apresenta todos os elementos necessários à ocorrência de uma transformação política, nomeadamente o aumento da escolaridade da população, o aumento do poder de compra e o surgimento de uma sociedade urbana capaz de se organizar política e civicamente para defender a sua posição. Na realidade, existem já exemplos de uma sociedade crescentemente contestatária na China, começando no Tibete e em Xinjiang (embora com um propósito distinto), e também nos grandes 83 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 97 84 Tanto o Índice de Voz e Transparência (do indicador de governança do Banco Mundial), como o Relatório de Liberdades emitido pela Freedom House, demonstram que a China está muito abaixo no ranking dos 20 países em análise (ver Capítulo III). 85 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006 p. 95 60 centros urbanos, onde, segundo o general Loureiro dos Santos, o número de incidentes e tumultos aumentou substancialmente a cada ano da última década, a maioria dos quais estão relacionados com decisões governamentais 86 . É certo que a China reprime violentamente cada manifestação, e que não tem qualquer hesitação em utilizar a pena de morte nos contestatários. Mas a verdade é que a crescente abertura económica e o crescimento dos grandes centros urbanos começam a evidenciar uma maior capacidade de contestação e reivindicação de interesses por parte da população. Estes fatores não significam que o regime político da China se modifique rapidamente ou que se converta numa democracia, mas importa, ainda assim, salientar que a sociedade chinesa já possui quase todos os elementos necessários para que ocorra uma transformação política, exceto um elemento: o nível de industrialização e desenvolvimento plenos. Justamente, o facto de a China ainda não ter atingido o nível de uma sociedade pósindustrial impede a transformação plena da sociedade chinesa. O seu desenvolvimento encontra-se na fase intermédia definida por Organski. Apesar do extraordinário desenvolvimento verificado na última década, a verdade é que a China permanece um país subdesenvolvido e ainda com graves carências 87 . Os próprios dirigentes chineses sabem-no, e ao perceberem o grande reconhecimento ocidental em relação ao desempenho económico da China, não hesitam em lembrar o enorme caminho que o seu país ainda tem de percorrer 88 . Este longo caminho não se situa apenas ao nível económico e ao nível do desenvolvimento social e político. A questão dos direitos humanos permanece como um dos grandes pontos de discórdia entre a China autocrática e repressora de liberdades fundamentais, e o Ocidente democrático e protetor dessas mesmas liberdades. Apesar de tudo, também nesta questão começam a surgir alguns sinais de mudança por parte da China. Numa declaração inédita em 2011, o presidente chinês Hu Jintao reconheceu, 86 Em 2004, o número de manifestações e tumultos na China aumentou em cerca de 16 mil, num total de 74 mil incidentes, e em 2005 aumentou para 87 mil. José Alberto Loureiro dos Santos apud Howard French, op. cit. p. 89 87 No relatório do Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, de 2010, a China mantém-se bastante longe das economias pós-industriais e desenvolvidas, no lugar 89 do ranking (ver capítulo III). 88 “Some people are lavishing praises on China and describing my country as a developed one, even equal to the United States. My friends, please do not buy what they say. This is nothing but a myth! We are well aware that it would take several generations' hard work or even longer before we can achieve modernization”. Dai Bingguo, Conselheiro de Estado chinês, Discurso no Secretariado da ASEAN em Jacarta, a 22 de Janeiro de 2010, disponível em: http://www.fmprc.gov.cn/eng/wjdt/zyjh/t653431.htm, acedido no dia 26/06/2011. 61 pela primeira vez, que a China tem um longo trabalho a fazer em matéria de direitos humanos, o que demonstra a sua vontade de convergir com o Ocidente89 . Os mais recentes desenvolvimentos provam, assim, que os próprios dirigentes políticos chineses estão dispostos a ingressar numa transformação política – embora lenta – que ainda não acompanha a transformação económica. Não obstante o regime autocrático chinês, importa salientar que a posição oficial da China é de cooperação com os EUA na manutenção da paz mundial e no combate ao terrorismo, o que denota uma estratégia bastante afastada de um possível conflito entre potências. 2.4.4 A Estratégia da China A estratégia da China não assenta numa agenda revisionista 90 . A interdependência económica com os EUA é demasiado intensa, e os riscos de um possível conflito entre grandes potências extremamente perigosos. A própria ação da China no Conselho de Segurança da ONU nunca foi além dos 6 vetos, o que contrasta com os 82 vetos dos EUA e com os 124 vetos da Rússia 91 . O seu principal objetivo é a sua expansão económica, a reformulação de organizações como o FMI e o Banco Mundial e a constituição de um mundo crescentemente multipolar, convergindo, assim, grandemente com os BRICS. Tem claramente constrangimentos internos que afetam a credibilidade do seu poder. Mas a realidade demonstra igualmente que, na última década, o crescimento exponencial da China tem conseguido neutralizar estes constrangimentos. As palavras cooperação e convergência estão no topo da estratégia da China na relação com os EUA. Este facto não significa, porém, que não exista uma estratégia paralela para competir com o Ocidente e, em particular, com os EUA. África é claramente um dos objetivos centrais do governo chinês, utilizando o grande 89 Numa conferência de imprensa em Washington, e quando perguntado uma segunda vez sobre a questão dos direitos humanos na China, o presidente Hu Jintao respondeu ineditamente: “A lot still needs to be done. China is always committed to the protection and promotion of human rights”. Hu Jintao, presidente da China, Conferência de Imprensa em Washington, em 19 de Janeiro de 2011, disponível em: http://www.reuters.com/article/idUSN1921953620110119, acedido no dia 26/06/2011. 90 Visão partilhada por Alastair Johnston, “Is China a Status Quo Power?”, International Security, vol. 27, nº 4, The MIT Press, Massachusetts, 2003, p. 47; e por Avery Goldstein, Rising to the Challenge: China’s Grand Strategy and International Security, Stanford University Press, Stanford, 2005, p. 216 91 Dados disponíveis no Global Policy Forum, disponível em: http://www.globalpolicy.org/securitycouncil/tables-and-charts-on-the-security-council-0-82/use-of-the-veto.html, acedido no dia 26/06/2011. 62 investimento para competir com o Ocidente, e, simultaneamente, para dissuadir os Estados africanos de apoiarem Taiwan 92 . Em suma, politicamente, a China está a aumentar a influência na sua região, e economicamente está a aumentar a influência em todo o mundo (mais do que o Brasil e do que a Rússia), provando que a distribuição do poder global pende cada vez mais para o lado asiático, independentemente das enormes dificuldades sociais que afetam particularmente a China e a Índia. 2.5 África do Sul – um pequeno gigante 2.5.1 O papel da África do Sul nos BRICS: uma relevância essencialmente regional A entrada da África do Sul no grupo dos BRICS não seguiu os mesmos parâmetros que definem as atuais potências emergentes. Desde logo, a África do Sul não se enquadra totalmente no conceito de potência emergente: não possui uma projeção económica de grandes dimensões e fruto de uma grande abertura ao mercado internacional e ao investimento estrangeiro, como o caso da China ou da Índia; não expressa o mesmo protagonismo político dos restantes BRICS; e possui um território e população claramente inferiores ao dos grandes países emergentes. Em termos económicos e militares, a África do Sul encontra-se inclusivamente abaixo de países como a Turquia, a Indonésia ou a Venezuela, e no fim do ranking dos vinte países em análise no capítulo seguinte. Se, de facto, os BRICS são considerados como o grupo das potências emergentes, seria mais justificável o alargamento a países como o México, a Argentina ou a Turquia 93 . A verdade é que, com o convite endereçado à África do Sul para integrar o grupo em 2011, os BRICS já não são apenas representativos das potências emergentes, mas também, e cada vez mais, do crescimento do regionalismo. Ora, neste contexto, importa ter em conta que a África do Sul está inserida num complexo regional unipolar onde usufrui de um lugar de liderança que, segundo 92 Segundo o general Loureiro dos Santos, a China já se substituiu ao FMI em alguns países, ao conceder um empréstimo em melhores condições a Angola (e até ao Brasil e à Argentina), o que serve como instrumento de influência chinesa nos países onde atua. José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006 p. 101 93 A questão da força do acrónimo, já abordada no capítulo I, é uma das razões que justificam a entrada da África do Sul, em detrimento de outras potências que desvirtuariam o significado e força do acrónimo BRICS. 63 Buzan 94 , é único quando comparado com todos os restantes complexos regionais. Este facto confere, evidentemente, um estatuto de grande relevância internacional à África do Sul, mas é ao nível regional que o seu poder deve ser avaliado. No complexo regional onde se insere, a África do Sul detém um estatuto de gigante económico, com cerca de um quarto do PIB do continente africano e um terço do PIB da África subsariana 95 . O seu papel nas organizações regionais é preponderante para atingir o desenvolvimento de organizações como a União Europeia ou o Mercosul, embora ainda longe da grandeza destes espaços económicos. Além da União Africana, a África do Sul é especialmente crucial em duas organizações subregionais: a SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), com catorze Estados membros e onde o PIB da África do Sul representa três quartos do PIB total da organização 96 ; e a UAAA (União Aduaneira da África Austral), uma organização essencial à livre circulação de capitais entre a África do Sul e os países fronteiriços, e cuja criação – em 1910 – antecedeu a ideia do projeto de integração europeia. Embora se trate de organizações com um peso diminuto no comércio mundial, são essenciais ao desenvolvimento económico da África do Sul enquanto potência regional. Paralelamente, o governo sul-africano tem-se empenhado numa maior abertura e modernização da economia, através, fundamentalmente, de programas como o GEAR (Growth, Employment and Redistribution) e o ASGISA (Accelerated and Shared Growth Initiative for South Africa), cujo objetivo assenta numa estratégia de maior liberalização e até desregulação do mercado sul-africano com vista à aceleração do crescimento 97 . Os conceitos da geoeconomia e do turbocapitalismo, desenvolvidos por Edward Luttwak, constituem, portanto, o centro do tipo de crescimento da África do Sul. O seu crescimento anual, na última década, situou-se sempre na casa dos 3%, e atingiu 6% em 2006 98 (em 2009, porém, sofreu uma enorme queda na sequência da crise financeira mundial, contrariamente à China e à Índia). Em termos evolutivos, a África do Sul passou de uma economia fechada e fundamentalmente centrada na exploração mineira e agrícola, para uma economia aberta, semelhante às economias ocidentais e muito centrada no setor dos serviços, que 94 “The Southern African RSC is unipolar. South Africa is dominant to an unusual degree compared with other standard regions.” Barry Buzan, Regions and Powers: The Structure of International Security, Cambridge University Press, Cambridge, 2003, p. 235 95 Dominique Darbon, “L’Afrique du Sud: une puissance au seul regard des autres?”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po-L’Express, Paris, 2008, p. 137 96 Dominique Darbon, op. cit. p. 137 97 Dominique Darbon, op. cit. p. 139 98 Dominique Darbon, op. cit. p. 139 64 representa já dois terços do PIB sul-africano 99 . A África do Sul é ainda um forte investidor no continente africano – rivalizando com a China – e transformou-se num importante intermediário entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, situados, em grande parte, em África. Em termos mundiais, a sua visibilidade tem sido crescente, sobretudo no grupo dos IBSA (Índia, Brasil e África do Sul), criado em 2003; e no G20, onde é a única representante do continente africano. Acresce ainda que, contrariamente a grandes potências emergentes como a Rússia, a Índia e a China, a África do Sul não enfrenta conflitos internos ou regionais que ameacem a sua credibilidade internacional e a estabilidade mundial, o que constitui uma vantagem considerável no seu reconhecimento enquanto potência mundial. Ora, perante estes elementos, existem razões suficientes para considerar a África do Sul como o maior ator no continente africano, o que justifica a sua ascensão regional e, em consequência, o convite para se tornar parte dos BRICS. A sua prestação económica não é, contudo, livre de constrangimentos económicos e sociais. Desde logo, cerca de 50% da população é pobre e enfrenta graves problemas sociais, como a Sida – que atinge cerca de 31% da população – ou como os elevados níveis de violência e de criminalidade 100 . Paralelamente, a África do Sul é também o segundo país do mundo com maiores desigualdades sociais, pior inclusivamente do que o Brasil ou do que a Índia 101 . Enfrenta igualmente um constrangimento económico de grandes dimensões – a China – com quem compete diretamente no investimento em África. Além disso, e contrariamente a outros blocos económicos no mundo, a SADC e a UAAA permanecem ainda bastante fracas, embora essenciais ao desenvolvimento da África do Sul que, por ter um mercado interno relativamente pequeno, precisa de um bloco económico para desenvolver a sua economia. Neste aspeto, nenhum dos restantes BRICS precisa de um bloco económico forte, pois a sua dimensão já lhes oferece um mercado interno suficientemente grande para expandir a sua economia. Com efeito, as características da África do Sul classificam-na fundamentalmente como uma potência dominante na sua região, mas bastante longe do crescimento demonstrado pelos restantes BRICS. Tem a vantagem de não enfrentar grandes constrangimentos regionais, mas em contrapartida está inserida num complexo regional 99 Dominique Darbon, op. cit. p. 139 Dominique Darbon, op. cit. p. 137 e p. 143 101 Dados do ranking do World Factbook da CIA, baseado no índice GINI, uma fórmula que mede a desigualdade e a distribuição de riqueza num país. Ranking disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2172rank.html, acedido no dia 02/07/2011. 100 65 bastante fraco economicamente e com grandes problemas sociais. O seu desenvolvimento económico e militar não é comparável ao de países como a China, a Índia ou mesmo o Brasil. Neste sentido, o caso concreto da África do Sul é um excelente exemplo da ideia, introduzida por Barry Buzan, de que a forma como um Estado é considerado pelos restantes é mais importante do que a forma como esse Estado se considera a si próprio. A classificação da África do Sul enquanto grande potência ou potência emergente advém, quase em exclusivo, da classificação atribuída pelas restantes potências emergentes. O que justifica esta classificação é a crescente importância do regionalismo na ordem internacional, e não a ação da África do Sul no contexto global. Por conseguinte, o título do capítulo de Dominique Darbon – sob a forma de afirmação – sintetiza bem o motivo da ascensão da África do Sul: L’Afrique du Sud: une puissance au seul regard des autres 102 . 2.6 BRICS: pontos estratégicos e desvantagens (um balanço) De acordo com a análise realizada, as capacidades dos BRICS podem ser sintetizadas da seguinte forma: Brasil Pontos Estratégicos - Crescente protagonismo internacional - Potência energética - Potência agrícola Constrangimentos - Crescimento económico moderado - Graves carências sociais e níveis elevados de pobreza (ocupa a posição 73 do Índice de Desenvolvimento Humano, em 2010) - Oposição regional da Argentina, México e Venezuela Fonte: Tabela elaborada por Miguel Almeida, com base em 2011 Rússia Pontos Estratégicos - Potência de combustíveis fósseis - Superpotência nuclear - Grande potência mundial com uma palavra a dizer em questões como o Médio Oriente e a Coreia do Norte - Membro permanente do Conselho de Segurança Constrangimentos - Economia ainda fraca e pouco aberta a multinacionais - Crescimento demográfico negativo - Imagem política e militar negativa (fruto das intervenções militares russas em conflitos como a Tchetchénia e a Geórgia) - Perda de influência na sua esfera de intervenção regional Fonte: Tabela elaborada por Miguel Almeida, com base em 2011 102 Dominique Darbon, “L’Afrique du Sud: une puissance au seul regard des autres?”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po-L’Express, Paris, 2008 66 Índia Pontos Estratégicos Constrangimentos - Crescimento económico na casa dos 8% - Elevado índice de pobreza - Forte setor privado e empresarial - Graves problemas sociais (ocupa a posição 119 - Crescimento demográfico gigantesco do Índice de Desenvolvimento Humano, em 2010) - Apoio dos EUA à sua entrada como membro - Infraestruturas deficientes permanente no Conselho de Segurança - Grave conflito com o Paquistão e tensões - Democracia estável históricas com a China Fonte: Tabela elaborada por Miguel Almeida, com base em 2011 China Pontos Estratégicos Constrangimentos - Crescimento económico na casa dos 10% - Perspetiva de estagnação demográfica a longo - Maior detentora mundial de títulos de dívida dos prazo EUA - Crescentes manifestações internas - Grande massa demográfica - Conflitos em Taiwan, no Tibete e em Xinjiang - Crescimento gigantesco ao nível do investimento - Regime político repressor e, consequentemente, direto estrangeiro (IDE) penalizador da imagem da China - Crescimento gigantesco ao nível da construção - Graves deficiências sociais (ocupa a posição 89 - Estratégia de investimento em África do Índice de Desenvolvimento Humano, em 2010) Fonte: Tabela elaborada por Miguel Almeida, com base em 2011 África do Sul Pontos Estratégicos Constrangimentos - Líder do seu complexo regional - Dimensão reduzida - País de África com melhor desempenho - Desigualdades sociais abissais económico - Muito longe do desempenho económico dos - Ausência de disputas ou conflitos regionais BRICS Fonte: Tabela elaborada por Miguel Almeida, com base em 2011 A par destes elementos, os BRICS enquanto grupo apresentam ainda duas características fundamentais: • A primeira é a de que a sua ascensão internacional se deve, fundamentalmente, a um colossal crescimento económico impulsionado pela gigantesca massa demográfica, juntamente com uma mão de obra barata e igualmente gigantesca. • A segunda característica reside na noção de bloco aplicada ao conceito dos BRICS. Ora, pela análise já realizada, os BRICS retêm divergências políticas de natureza regional. A grande razão da união entre os BRICS é o poder da superpotência. Não é, pois, possível considerá-los como um bloco, pois além de não existirem órgãos e instituições oficiais que regulem a sua estratégia, os seus entendimentos são sobretudo pontuais e muito concretos. Não se trata, portanto, de um grupo coerente. Nas palavras de Cornelia Woll, “Les pays émergents agissent rarement comme un bloc cohérent, mais plutôt comme des acteurs qui se regroupent selon des coalitions fluctuantes” 103 . 103 Cornelia Woll, “Les stratégies des pays émergents au sein de l’Organisation mondiale du commerce”, in L’enjeu mondial: les pays émergents, Presses de Sciences Po, Paris, 2008, p. 273 67 Ainda assim, importa salientar que existem pontos onde as potências emergentes já começam a alterar o eixo de tomada de decisões que é o atlântico norte. A Cimeira de Copenhaga sobre as alterações climáticas, em 2009, constituiu um dos maiores exemplos da força crescente de países como os BASIC (Brasil, China, Índia e África do Sul), cuja influência na cimeira conseguiu ultrapassar a tradicional influência da União Europeia nos acordos internacionais. Pela primeira vez, a União Europeia foi deixada de fora da redação do acordo final, já que o entendimento e as reuniões finais se fizeram exclusivamente entre os EUA e os países BASIC. Assim, e independentemente do sucesso ou insucesso relativamente ao acordo alcançado, a verdade é que a posição das potências emergentes, e em particular da China, conseguiram ter maior peso do que as grandes potências europeias ou do que o Japão. Em termos globais, a posição dos BRICS no mundo pode ser sintetizada através do Quadro II: a parte a azul representa os melhores indicadores que caracterizam este grupo (massa crítica, grandeza das economias ou o investimento direto estrangeiro), e a parte vermelha representa os piores indicadores dos BRICS, justamente indicadores sociais, pobreza e desenvolvimento humano. O caso particular da África do Sul demonstra que, de facto, a sua dimensão é muito inferior aos restantes BRIC. Em suma, trata-se, portanto, de economias com grandes deficiências, mas igualmente com a grandeza suficiente para, num futuro próximo, atingirem um desenvolvimento mais elevado. Quadro II A Posição dos BRICS nos Rankings Mundiais País Território1 População1 Exército1 Brasil Rússia Índia China África do Sul 5º 1º 7º 3º 25º 5º 9º 2º 1º 25º 14º 4º 2º 1º 59º PIB nominal2 7º 11º 10º 2º 29º Investimento Estrangeiro3 14º 19º 24º 7º 29º IDH4 73º 65º 119º 89º 110º Desigualdade Social5 10º 53º 79º 34º 2º Poder de Compra2 71º 52º 129º 94º 77º 1 Banco Mundial – disponível em: http://databank.worldbank.org/ddp/home.do 2 FMI – disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2011/01/weodata/weoselgr.aspx 3 CIA – disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2198rank.html 4 ONU – disponível em: http://hdr.undp.org/en/reports/global/hdr2010/chapters/pt/ 5 Índice GINI – Países com maiores desigualdades. Disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/fields/2172.html 68 Capítulo III – O Poder Real dos BRICS 3. Uma Fórmula de Poder 3.1.1 Apresentação A aferição do poder real dos BRICS implica a quantificação desse mesmo poder, pelo que só a aplicação de uma fórmula matemática poderá espelhar esta realidade. O objetivo particular deste capítulo centra-se numa análise quantitativa do poder dos BRICS em comparação com outros quinze Estados (a maioria parte do G20) com estatuto de grandes potências, potências regionais, potências emergentes ou países com capacidade para atingir um destes estatutos, sendo eles: os EUA, o Canadá, o México, a Argentina, a Venezuela, a França, a Alemanha, o Reino Unido, a Itália, a Turquia, a Arábia Saudita, o Irão, a Austrália, a Indonésia e o Japão. Todos fazem parte do G20, à exceção do Irão e da Venezuela, incluídos nesta análise devido ao seu crescente protagonismo face à superpotência. Refira-se ainda que foram excluídas a Coreia do Sul, devido à sua dimensão reduzida e poder limitado, e a União Europeia, por tratar-se de um bloco de países sem uma força militar conjunta, e bastante desagregado para a quantificação de todos os parâmetros necessários. A fórmula aplicada na presente dissertação é baseada nas fórmulas de Ray Cline 1 e de Mendo Castro Henriques e António Paradelo 2 . A fórmula de Ray Cline consiste numa combinação entre o hard power e o soft power: P = (C + E + M) x (S + W) 3 . Já a fórmula de Mendo Castro Henriques e António Paradelo centra-se exclusivamente na aferição do soft power de um país, combinando diversas variáveis agrupadas: 4 1 Ray S. Cline, World power assessment: A calculus of strategic drift, Westview Press, Boulder, Colorado, 1975 2 Mendo Castro Henriques e António Paradelo, “Uma Fórmula de Soft Power”, in Nação e Defesa, nº113, 3ª série, Lisboa, 2006, pp. 107-127 3 P corresponde ao poder adquirido, C à massa crítica, E à capacidade económica, M à capacidade militar, S ao poder estratégico e W à vontade de executar esta estratégia. As variáveis C, E e M correspondem ao hard power e são mais quantificáveis, e as variáveis S e W correspondem ao soft power. 4 FN corresponde ao Fator Normativo (que agrupa variáveis como a Língua, a Educação ou a Justiça); FF corresponde ao Fator Físico (que agrupa variáveis como a Saúde, o Turismo ou a Competitividade); P é a variável da População; POI a Participação em Organizações Internacionais; D a Diuturnidade e, por fim, a variável do denominador C é o fator Coesão (onde se incluem variáveis como Religiões, Etnias ou Saldo Migratório). 69 Ora, partindo destes dois exemplos, a fórmula aplicada centrou-se em dois objetivos fulcrais: o primeiro assenta na combinação imprescindível entre o hard power e o soft power (ausente da fórmula de Mendo Castro Henriques e António Paradelo); e o segundo assenta na identificação de variáveis quantificáveis que permitam estabelecer um ranking (o que na fórmula de Ray Cline é mais difícil de realizar devido ao caráter vago das variáveis de soft power). Por conseguinte, a fórmula final baseou-se principalmente na complementaridade entre estas duas fórmulas, permitindo assim cumprir os dois objetivos centrais. A fórmula de Mendo Castro Henriques e António Paradelo é bastante completa em termos de soft power; já a de Ray Cline é bastante clara na parte do hard power. Partindo, pois, destes princípios, a fórmula considerou diversas variáveis estruturantes do poder. Ao todo, treze variáveis e mais dez subvariáveis. Relativamente ao hard power, a escolha recaiu sobre os elementos mais estruturantes de uma grande potência. Já no soft power, a seleção das variáveis obedeceu aos três critérios que melhor caracterizam esta vertente: o poder de atração, o poder de persuasão e o poder de influência. No final, foram ainda adicionadas duas variáveis decisivas: o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e a capacidade nuclear. O Quadro III sintetiza as variáveis: Quadro III Variáveis e Subvariáveis Hard Power - Massa Crítica - População - Território Soft Power - Capacidade Económica - PIB per capita PPP - Crescimento do PIB - PIB nominal - Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - Competitividade - Governança - Voz e Transparência - Controlo de Corrupção - Eficiência do Estado - Capacidade militar - Língua - Número de militares - Liberdades - Gastos militares (% do PIB) - Participação em Organizações Internacionais - Gastos militares (dólares) - Turismo - Saldo Migratório - Capacidade Nuclear - Assento permanente no Conselho de Segurança da ONU A fórmula final aplicada traduz-se na seguinte expressão numérica: P = (C + E + M) x (D + C + G + L + LB + POI + T + SM) + Assento permanente no CS + Capacidade Nuclear 70 3.1.2 Relevância das Variáveis e suas Fontes Variáveis de hard power: as três variáveis desta vertente do poder (massa crítica, capacidade económica e capacidade militar) correspondem aos critérios que definem uma grande potência segundo Kenneth Waltz, Organski e Randall Schweller, pelo que a sua presença nesta fórmula é estruturante e crucial na avaliação do poder de um Estado. O resultado de cada uma destas variáveis traduziu-se num balanço das subvariáveis que nelas estão incluídas: no caso da massa crítica incluem-se a população e o território; na capacidade económica foi feito um balanço entre o PIB per capita em PPP (paridade de poder de compra), crescimento anual do PIB per capita, e o PIB nominal; e, por fim, na capacidade militar o resultado é um balanço entre o número de militares, os gastos militares em percentagem do PIB, e os gastos militares em valores reais (dólares). Todos estes dados tiveram como fonte o Banco Mundial. Variáveis de soft power: além dos critérios que melhor medem o poder de atração, persuasão e influência de um Estado, a seleção das variáveis de soft power centrou-se igualmente na escolha daquelas que melhor quantificam estes critérios. - Desenvolvimento humano: variável imprescindível que reflete o avanço social de um Estado e, portanto, também o seu poder de atração junto dos restantes países. A recolha destes dados foi feita através do relatório de desenvolvimento humano das Nações Unidas, visto tratar-se do relatório mais completo ao combinar dados de educação, saúde, rendimento, pobreza e esperança média de vida. - Competitividade: variável bastante ligada ao indicador de hard power que é a capacidade económica, mas cuja especificidade se centra em indicadores que medem o desenvolvimento e o progresso de uma sociedade ao nível das infraestruturas, desenvolvimento tecnológico e setor empresarial. A quantificação desta variável foi feita através do ranking de competitividade do Fórum Económico Mundial. - Governança: variável extremamente relevante na aferição da eficiência de um Estado e dos seus níveis de corrupção. Nesta variável estão incluídas três subvariáveis: voz e transparência, controlo da corrupção e eficiência do Estado. A sua quantificação foi feita através do índice de governança do Banco Mundial. - Língua: variável que pode ser determinante na influência exercida por um ou mais países, sobretudo ao nível da pressão cultural (através do cinema, música, televisão, Internet) e das trocas de informação entre Estados. A sua quantificação foi 71 feita através do relatório Ethnologue: Languages of the World, do SIL International (Summer Institute of Linguistics). - Liberdades: variável imprescindível na determinação da credibilidade e legitimidade internacionais de um país. A sua quantificação foi feita através do relatório de liberdades da Freedom House. - Participação em Organizações Internacionais: variável que reflete a influência de um Estado, e a sua participação em questões internacionais ou regionais. A quantificação desta variável foi feita através do relatório World Factbook, da CIA. - Turismo: variável que define a capacidade de atração de um país, bem como a sua imagem e credibilidade internacionais. A sua quantificação foi feita através do ranking da Organização Mundial de Turismo. - Saldo Migratório: à semelhança do turismo, também esta variável mede a capacidade de atração de um país, com a particularidade de ter ainda maior impacto, na medida em que tanto identifica países onde as condições de vida são melhores, como países onde predominam graves problemas sociais, políticos ou económicos. A quantificação desta variável foi feita através dos dados do Banco Mundial. 3.1.3 Execução A execução da fórmula já apresentada baseou-se na elaboração de um ranking de rankings, ou seja, este estudo refletirá a soma dos rankings dos diversos relatórios internacionais recolhidos e referentes a 2009 e 2010. Deste modo, cada variável foi sujeita à elaboração de um ranking dos vinte países em causa, baseado nas posições dos rankings dos relatórios disponíveis. O resultado final constitui uma soma dos vários rankings das variáveis. De referir que, quanto menor for o resultado da fórmula para cada país, mais elevada será a sua posição no ranking final (nos rankings em estudo, a posição “1” corresponde sempre ao melhor desempenho, pelo que o país com maior poder será sempre o que tiver um resultado menor). No final, é ainda estipulada a subida de uma posição a cada um dos países que possuam um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e nos países que possuam armas nucleares, salvo quando um ou mais países possuam estas duas variáveis e se encontrem em sequência na ordem final: por exemplo, um em terceiro lugar e outro em quarto lugar. Nestes casos, não é alterada a ordem, pois o que os diferencia são os outros indicadores, e não estes dois elementos finais. 72 Importa ainda referir que os resultados geraram algumas situações de empate entre os países, quer no ranking individual de cada variável, quer no ranking total do soft power e do hard power (o ranking final não gerou empates). Com efeito, foi necessário definir critérios de desempate. No ranking individual de cada variável foi atribuída prevalência a uma subvariável que o justificasse. Já na soma do hard power foi dada prevalência à capacidade militar (pela sua inequívoca importância estratégica nas relações de poder entre os Estados), e na soma do soft power foi dada prevalência ao índice de desenvolvimento humano (por se tratar do relatório mais completo). 3.2 Hard Power: uma avaliação De acordo com a fórmula aplicada, a avaliação final do hard power confirma que os EUA continuam a deter a supremacia nesta vertente de poder. No entanto, os resultados confirmam igualmente o peso crescente dos BRICS: a China surge em segundo lugar, seguida da Índia, da Rússia e do Brasil, em quinto lugar. Só depois se encontram as potências tradicionais europeias e as potências médias como o Canadá e a Austrália. No final da tabela surge a África do Sul, atrás de países como a Venezuela, a Argentina, a Turquia ou o Irão, o que confirma a sua relevância eminentemente regional. Tabela I – Ranking do total do Hard Power País EUA China Índia Rússia Brasil França Japão Austrália Alemanha Canadá Reino Unido Indonésia Arábia Saudita Irão Turquia Itália México Argentina Venezuela África do Sul C 2 1 4 3 5 15 10 13 14 8 19 6 17 9 12 20 7 11 18 16 E 1 4 11 16 9 3 6 2 5 7 8 14 12 15 18 10 17 13 19 20 M 1 2 4 3 8 5 13 15 12 16 7 14 6 11 9 10 17 20 18 19 Total 4 7 19 22 22 23 29 30 31 31 34 34 35 35 39 40 41 44 55 55 Rank 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Fonte: Soma dos dados do Banco Mundial (2009) 73 Numa análise mais detalhada, e relativamente à massa crítica, os BRICS – à exceção da África do Sul e juntamente com os EUA – ocupam os lugares do topo. Esta variável demonstra, por si só, que apenas os BRICS têm a capacidade para ascender ao estatuto dos EUA. É certo que a França, o Reino Unido, a Alemanha ou o Japão apresentam um paralelo de comparação com a superpotência na maioria das variáveis, mas a verdade é que dificilmente atingiriam um estatuto de superpotências, e a massa crítica é claramente a maior barreira que se impõe. Na realidade, se o desenvolvimento económico e social dos BRICS acompanhar a força da sua massa populacional e territorial, tal significará a perda definitiva de influência por parte das potências europeias, cujo declínio advém, em parte, da falta de dimensão geográfica e populacional. O ranking desta variável prova igualmente que a grande massa populacional e territorial do mundo se encontra nos países emergentes (como os BRICS, o México e a Indonésia), em conjunto com a superpotência que são os EUA, e com dois outros países que apenas se destacam na extensão territorial, o Canadá e a Austrália. Os desenvolvimentos da última década começam, pois, a acompanhar a massa crítica das nações, e a abandonar as potências tradicionais de pequena dimensão. Tabela II Ranking da Massa Crítica (C) País China EUA Rússia Índia Brasil Indonésia México Canadá Irão Japão Argentina Turquia Austrália Alemanha França África do Sul Arábia Saudita Venezuela Reino Unido Itália População Total (milhões) 1,331,460,000 307,007,000 141,850,000 1,155,347,678 193,733,795 229,964,723 107,431,225 33,739,900 72,903,921 127,560,000 40,276,376 74,815,703 21,874,900 81,879,976 62,616,488 49,320,150 25,391,100 28,384,000 61,838,154 60,221,211 Rank 1 3 6 2 5 4 8 17 11 7 16 10 20 9 12 15 19 18 13 14 Área (Km2) 9,327,489 9,161,920 16,377,740 2,973,190 8,459,420 1,811,570 1,943,950 9,093,510 1,628,550 364,500 2,736,690 769,630 7,682,300 348,770 547,660 1,214,470 2,000,000 882,050 241,930 294,140 Rank Soma Rank* 2 3 1 7 5 11 10 4 12 17 8 15 6 18 16 13 9 14 20 19 3 6 7 9 10 15 18 21 23 24 24 25 26 27 28 28 28 32 33 33 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 *Em caso de empate prevalece o fator da população sobre o território, pela maior relevância internacional Fonte: Banco Mundial (2009) 74 Nas variáveis da capacidade económica e militar, contudo, os resultados demonstram que o poder ainda permanece muito do lado das potências tradicionais. Na capacidade económica, o ranking reflete um equilíbrio entre a riqueza das economias ocidentais (PIB per capita), e a extensão e grandeza dos mercados emergentes (PIB nominal). Ora, se por um lado a riqueza económica mundial se verifica, quase em exclusivo, nos países desenvolvidos, por outro lado, as potências emergentes apresentam mercados gigantescos e crescimentos económicos anuais igualmente grandes. Este balanço permite perceber que os BRICS não são, de facto, economias ricas, mas antes economias que devem o seu protagonismo e crescimento à sua dimensão gigantesca, refletida no PIB nominal. O mesmo não se verifica em países como a Austrália, o Canadá, a França ou o Reino Unido, isto é, economias que devem o seu poder a um PIB per capita muito elevado, e não à extensão dos seus mercados. Por conseguinte, a variável da capacidade económica prova, por um lado, que os BRICS ainda não atingiram um desenvolvimento pós-industrial, e por outro lado, que possuem todos os elementos materiais (dimensão e grande crescimento) para conseguir atingir este desenvolvimento, cumprindo as estimativas da Goldman Sachs para 2050. Tabela III – Ranking da Capacidade Económica (E) País EUA Austrália França China Alemanha Japão Canadá Reino Unido Brasil Itália Índia Arábia Saudita Argentina Indonésia Irão Rússia México Turquia Venezuela África do Sul PIB per capita, PPP (dólares) 45,989 39,230 33,655 6,828 36,267 32,452 37,945 36,495 10,412 31,908 3,270 23,395 14,538 4,199 11,558 18,962 14,335 13,885 12,322 10,277 Rank 1 2 6 18 5 7 3 4 16 8 20 9 11 19 15 10 12 13 14 17 Crescimento do PIB per capita (anual %) -3.5 -0.8 -3.2 8.5 -4.5 -5.1 -3.7 -5.6 -1.1 -5.7 6.2 -2.2 0.9 5 0.5 -7.8 -7.5 -5.8 -4.8 -2.8 Rank 11 6 10 1 13 15 12 16 7 17 2 8 4 3 5 20 19 18 14 9 PIB nominal (em dólares) 14,119,000,000,000 924,843,128,520 2,649,390,172,579 4,985,461,200,585 3,330,031,687,465 5,068,996,399,490 1,336,067,710,611 2,174,529,808,278 1,573,408,702,181 2,112,780,152,060 1,310,170,500,357 369,178,666,666 307,155,148,184 540,273,507,315 331,014,973,186 1,231,892,982,496 874,809,714,007 614,603,094,838 326,132,984,629 285,365,879,675 Rank Soma Ranking Final* 1 12 5 3 4 2 9 6 8 7 10 16 19 15 17 11 13 14 18 20 13 20 21 22 22 24 24 26 31 32 32 33 34 37 37 41 44 45 46 46 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 * Em caso de empate prevalece o fator PIB Nominal, pois é o indicador que define o ranking das maiores economias mundiais. Fonte: Banco Mundial (2009) 75 Na variável da capacidade militar, a tabela é novamente liderada pelos EUA, mas neste caso seguidos mais de perto por três dos BRICS que mais têm apostado em investimento militar: a China, a Rússia e a Índia. A força militar da China e da Índia advém essencialmente do facto de possuírem os dois maiores exércitos do mundo. Além disso, o investimento militar neste países assume igualmente grandes proporções. A Rússia, por outro lado, continua a rivalizar com os EUA nos gastos militares, atingindo quase a mesma percentagem de gastos do PIB do que o exército norte-americano. Por fim, a posição do Brasil, em 8º lugar, reflete a natureza da estratégia brasileira, assente sobretudo nas negociações diplomáticas, em detrimento da afronta militar; e a África do Sul mais uma vez confirma a sua índole essencialmente regional. Neste ranking importa ainda assinalar a capacidade militar de dois outros países: a Arábia Saudita, cujos gastos militares em percentagem do seu PIB (11,2%) ultrapassam qualquer país do mundo; e a Turquia, que em 9º lugar revela-se como um ator militar internacional ao nível da Itália. Tabela IV Ranking da Capacidade Militar (M) País EUA China Rússia Índia França Arábia Saudita Reino Unido Brasil Turquia Itália Irão Alemanha Japão Indonésia Austrália Canadá México Venezuela África do Sul Argentina Número de Militares (2008) 1,540,000 2,885,000 1,476,000 2,582,000 353,000 238,000 160,000 721,000 613,000 436,000 563,000 244,000 242,000 582,000 55,000 64,000 286,000 115,000 62,000 107,000 Rank 3 1 4 2 10 14 15 5 6 9 8 12 13 7 20 18 11 16 19 17 Gastos Militares (% do PIB) 2009 4.6 2.0 4.3 3.0 2.4 11.2 2.7 1.7 2.8 1.7 2.8 1.4 1.0 0.9 2.0 1.5 0.5 1.3 1.5 0.8 Rank 2 8 3 4 7 1 6 9 5 9 5 11 13 14 8 10 16 12 10 15 Gastos Militares – em dólares (2009) 661,049,000,000 104,168,248,424 56,782,958,738 40,678,457,651 62,726,404,800 41,279,137,995 60,377,117,289 31,229,341,317 16,833,418,628 35,111,838,516 8,708,929,001 44,818,603,382 57,843,339,189 5,501,740,812 25,631,232,548 22,414,209,519 5,342,743,274 2,089,705,095 5,124,785,836 2,187,774,570 Rank Soma 1 2 6 9 3 8 4 11 14 10 15 7 5 16 12 13 17 20 18 19 6 11 13 15 20 23 25 25 25 28 28 30 31 37 40 41 44 48 47 51 Rank Final* 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 * Em caso de empate prevalece o fator dos gastos militares (total em dólares), pois o investimento em armamento e tecnologia podem neutralizar um grande exército sem essa capacidade. O ranking final desta variável serve ainda como critério de desempate no ranking do hard power. Fonte: Banco Mundial (2009) 76 Em termos globais, e avaliando a contabilização do total do hard power, é possível retirar duas leituras evidentes: a primeira é a de que os EUA se mantêm como a grande potência de hard power mundial; e a segunda é a de que os BRIC (e não BRICS) – pela ordem: China, Índia, Rússia e Brasil – são já as potências com maior capacidade para contrapor o poder norte-americano, destronando todas as antigas potências europeias, o Japão e potências emergentes de dimensão semelhante, como o México. Os resultados obtidos não significam que o cenário mais provável seja uma guerra entre potências, mas existe, sem dúvida, uma crescente mudança do eixo do poder mundial para os mercados emergentes e uma maior competição económica com estes mercados. As reivindicações dos BRICS – centradas sobretudo na exigência de um maior peso nas organizações internacionais – reflete, portanto, a própria realidade atual do hard power. 3.3 Soft Power: uma avaliação Na vertente do soft power, e de um modo geral, os resultados mostram que os BRICS, individualmente, têm pouco poder de atração, persuasão e influência. É certo que o Brasil, por exemplo, desenvolve uma estratégia política que assenta maioritariamente numa abordagem de soft power e de constante negociação. Mas a verdade é que o seu poder de atração junto dos outros Estados – isto é, enquanto modelo político, económico e social a seguir – é bastante fraco. O mesmo se pode dizer da Rússia, China, Índia e África do Sul. A capacidade de atrair e influenciar ainda se situa, em grande parte, nas economias mais ricas, justamente porque possuem modelos de desenvolvimento bem sucedidos, maior qualidade de vida e indicadores que atraem as massas. Daí que países como os EUA, o Canadá, e a maioria dos Estados europeus se situem no topo da tabela do soft power. 77 Tabela V Ranking do total do Soft Power País EUA Canadá Reino Unido Alemanha França Austrália Itália Japão Arábia Saudita México Rússia Brasil Turquia China Argentina África do Sul Índia Indonésia Venezuela Irão D 2 3 8 4 6 1 7 5 10 11 12 14 16 17 9 19 20 18 15 13 C 1 4 5 2 6 7 11 3 8 17 16 14 15 9 19 13 12 10 20 18 G 6 1 4 3 5 2 8 7 14 12 18 11 10 16 15 9 13 17 20 19 L 2 2 2 9 10 2 11 8 4 3 7 6 12 1 3 15 5 14 3 13 LB 1 1 1 1 1 1 2 2 9 4 7 3 5 9 3 3 4 4 6 8 POI 5 3 5 4 1 11 2 9 15 11 7 6 8 12 10 13 11 14 14 16 T 2 10 5 7 1 15 4 13 11 8 9 17 6 3 18 12 16 14 20 19 SM 1 3 4 6 7 7 2 9 9 18 8 13 12 17 11 5 16 15 10 14 Total 20 27 34 36 37 46 47 56 80 84 84 84 84 84 88 89 97 106 108 120 Rank 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Fonte: Soma dos relatórios da ONU, FEM, Banco Mundial, Freedom House, CIA, OMT e Ethnologue Importa, antes de tudo, perceber a razão que explica o primeiro lugar dos EUA neste ranking. A última década demonstrou que, de facto, a estratégia dos EUA passou mais pela abordagem militar de hard power do que por uma abordagem mais negocial e centrada em evitar conflitos armados diretos. Contudo, e apesar destes desenvolvimentos penalizadores para a imagem dos EUA, o seu poder de atração das massas mundiais continua bastante ativo. A prova está na maioria dos indicadores em análise: dos vinte países mais poderosos, os EUA ocupam a segunda posição no índice de desenvolvimento humano, a primeira posição no ranking de competitividade, a segunda posição na língua (atrás apenas do chinês, que por sua vez não tem a mesma força internacional do inglês), a segunda posição no turismo, e a primeira posição no saldo migratório. Trata-se efetivamente de um país que continua a exercer uma poderosa influência mundial, com grande capacidade de atração de imigrantes e de visitantes. Acresce ainda toda a cultura norte-americana divulgada através do cinema e da televisão, cuja indústria é praticamente monopolizada por um só país. Os EUA conseguem, assim, continuar a divulgar o estilo de vida norte-americano, influenciando todo o Ocidente, e praticamente todo o resto do mundo, incluindo potências como a China, a Índia e o Japão. 78 É certo que este poder pode ter o efeito contrário, nomeadamente em países islâmicos como a Arábia Saudita e o Irão, ou em grupos terroristas como a Al-Qaeda. Mas a realidade demonstra que a capacidade de persuasão e influência dos EUA é gigantesca na maior parte do mundo, incluindo na divulgação dos valores democráticos e de direitos humanos, o que valeu já um comentário do presidente chinês Hu Jintao ao reconhecer que a China tem um longo caminho a percorrer em matéria de direitos humanos 5 . As posições que se seguem aos EUA são ocupadas por países com um nível de desenvolvimento humano igualmente elevado, e com um forte poder de atração e influência sobre a população mundial. Países como o Canadá, o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Austrália, a Itália ou o Japão – segundo a ordem do ranking – representam efetivamente sociedades desenvolvidas ao nível político, económico e social, o que justifica a sua maior influência cultural e económica no mundo. Na verdade, a tabela final do soft power está rigorosamente dividida em dois grupos: o primeiro constituído por países desenvolvidos, e o segundo pelas potências emergentes e pelos países mais pobres socialmente. A capacidade de influência, persuasão e atração dos BRICS é, efetivamente, bastante diminuta. Sem a força do hard power, e em particular do elemento económico, os BRICS revelam poucos elementos que consigam convencer e atrair outros Estados. É certo que a Índia tem uma influência cultural considerável na sua região, e possui um regime democrático que tem servido de exemplo a Estados vizinhos de menor dimensão, como o Nepal. No entanto, a antiguidade das civilizações indiana e chinesa não contribui especialmente para um aumento da força de persuasão e de influência destes países. No caso da China, a imagem que prevalece é mais marcada pelo existência de um regime autoritário, repressor e desrespeitador dos direitos humanos, do que por uma civilização milenar de grande prestígio. O mesmo se aplica ao caso da Rússia, cuja imagem política mundial permanece manchada pelas abordagens brutais do exército russo. Restam apenas o Brasil e a África do Sul que, apesar de receberem maior aceitação mundial (sobretudo o Brasil, devido à sua estratégia diplomática e à cultura de massas que é o futebol), não possuem todos os elementos necessários que lhes permitam ter um grau de influência e atração mundiais semelhante ao dos EUA. 5 Ver Capítulo II, ponto 2.4.3 “A Transformação da China: apenas económica ou também social e política?” 79 Os principais fatores que impedem os BRICS de exercer maior poder de atração e influência mundiais centram-se, sobretudo, nas variáveis que medem concretamente a capacidade de atração de um país (como o saldo migratório ou o turismo) e nas variáveis que medem o desenvolvimento humano. Ora, os resultados do saldo migratório colocam a maioria dos BRICS numa posição distante das potências tradicionais, sobretudo nos casos do Brasil, Índia e China, cujo saldo é negativo. Tabela VI Ranking do Saldo Migratório (SM) País EUA Itália Canadá Reino Unido África do Sul Alemanha Austrália França Rússia Japão Arábia Saudita Venezuela Argentina Turquia Brasil Irão Indonésia Índia China México Saldo (diferença entre nº de emigrantes e nº de imigrantes) 5,051,899 1,650,000 1,049,999 947,621 700,001 550,000 500,000 500,000 250,000 150,000 150,000 40,000 30,000 -44,272 -229,000 -500,000 -730,000 -1,000,000 -1,731,080 -2,430,065 Rank 1 2 3 4 5 6 7 7 8 9 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Fonte: Banco Mundial (2010) 80 Também no turismo os resultados estão longe de beneficiar as potências emergentes, à exceção da China que se destaca com valores muito elevados. Trata-se, porventura, do único ranking que reflete a capacidade de atração relativamente a uma civilização tão antiga como a chinesa. Tabela VII Ranking do Turismo (T) País França EUA China Itália Reino Unido Turquia Alemanha México Rússia Canadá Arábia Saudita África do Sul Japão Indonésia Austrália Índia Brasil Argentina Irão Venezuela Número de Chegadas (milhões) 74,2 54,9 50,9 43,2 28 25,5 24,2 21,5 19,4 15,8 10,9 7 6,8 6,3 5,6 5,1 4,8 4,3 2,0 0,7 Rank 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Fonte: Organização Mundial de Turismo (2009) Mas o ranking mais penalizador para a imagem mundial dos BRICS é o índice de desenvolvimento humano. De um modo geral, todos os BRICS apresentam níveis de desenvolvimento muito baixos. A posição da Rússia no índice mundial – na posição 65, já de si muito baixa – é a melhor no grupo dos BRICS, o que revela bem o nível de desenvolvimento dos restantes países deste grupo, com o Brasil, a China, a África do Sul e a Índia a ocupar posições ainda mais baixas, tanto no índice de desenvolvimento mundial como no ranking dos vinte países em estudo. Este ranking é a prova de que os BRICS, comparativamente com as economias pós-industriais, ainda têm um longo caminho a percorrer em matéria de educação, saúde, pobreza e desenvolvimento social. 81 Tabela VIII – Ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (D) País Índice de Desenvolvimento Humano 0,937 0,902 0,888 0,885 0,884 0,872 0,854 0,849 0,775 0,752 0,750 0,719 0,702 0,699 0,696 0,679 0,663 0,600 0,597 0,519 Austrália EUA Canadá Alemanha Japão França Itália Reino Unido Argentina Arábia Saudita México Rússia Irão Brasil Venezuela Turquia China Indonésia África do Sul Índia Rank do IDH 2 4 8 10 11 14 23 26 46 55 56 65 70 73 75 83 89 108 110 119 Rank Final 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Fonte: Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (2010) A esta variável somam-se ainda os resultados baixos na competitividade, no índice de governança, e nas liberdades. Tabela IX – Ranking de Competitividade (C) País Valor EUA Alemanha Japão Canadá Reino Unido França Austrália Arábia Saudita China Indonésia Itália Índia África do Sul Brasil Turquia Rússia México Irão Argentina Venezuela 5.43 5.39 5.37 5.30 5.25 5.13 5.11 4.95 4.84 4.43 4.37 4.33 4.32 4.28 4.25 4.24 4.19 4.14 3.95 3.48 Rank do Fórum Económico Mundial 4 5 6 10 12 15 16 21 27 44 48 51 54 58 61 63 66 69 87 122 Rank Final 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Fonte: Fórum Económico Mundial (2010) 82 Tabela X – Ranking de Governança (G) País Canadá Austrália Alemanha Reino Unido França EUA Japão Itália África do Sul Turquia Brasil México Índia Arábia Saudita Argentina China Indonésia Rússia Irão Venezuela Voz e Transparência (%) 95 94 93 92 90 86 81 81 66 45 62 53 60 3 56 5 48 22 8 26 Rank 1 2 3 4 5 6 7 7 8 14 9 12 10 19 11 18 13 16 17 15 Controlo da Corrupção (%) 96 96 92 91 90 85 87 59 60 60 56 49 46 63 38 36 28 11 22 8 Rank 1 1 2 3 4 6 5 9 8 8 10 11 12 7 13 14 15 17 16 18 Eficiência do Estado (%) 96 95 92 91 90 89 86 68 67 63 57 60 54 52 39 58 46 44 26 18 Rank Soma Rank Final 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 13 11 14 15 18 12 16 17 19 20 3 5 8 11 14 18 19 24 25 32 32 34 36 41 42 44 44 50 52 53 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Fonte: Banco Mundial (2009) Tabela XI – Ranking de Liberdades (LB) País França EUA Reino Unido Alemanha Canadá Austrália Itália Japão África do Sul Brasil Argentina México Indonésia Índia Turquia Venezuela Rússia Irão China Arábia Saudita Direitos Políticos* 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2 2 3 5 6 6 7 7 Liberdades Civis* 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2 3 3 3 3 4 5 6 6 6 Rank (soma) 2 2 2 2 2 2 3 3 4 4 4 5 5 5 6 9 11 12 13 13 Rank Final 1 1 1 1 1 1 2 2 3 3 3 4 4 4 5 6 7 8 9 9 *O valor 1 corresponde ao mais livre e o 7 ao menos livre (classificação da Freedom House) Fonte: Freedom House (2010) 83 Ora perante resultados que revelam sociedades com enormes dificuldades sociais e económicas, e com modelos políticos que nuns casos ainda são muito repressores (Rússia e China), e noutros casos ainda são pouco eficientes e transparentes (Brasil, Índia e África do Sul), é evidente que a capacidade de atração e persuasão destes países se torna bastante frágil. Tal não significa que, por exemplo, o Brasil e a Índia não exerçam uma forte influência cultural na sua região, porque de facto exercem-na, mas a capacidade de serem reconhecidos como um exemplo a seguir ou como polos de atração de massas é bastante reduzida (ver rankings das restantes variáveis no Anexo II). Com efeito, em termos de modelo político democrático, e de modelo económico e social, a América do norte, a Austrália e a maioria dos países europeus continuam a ser o maior exemplo seguido pela maioria dos países do mundo, incluindo por potências emergentes como a Rússia e a China, cujo modelo económico está cada vez mais ocidentalizado. 3.4 O Poder Real dos BRICS A soma do hard power com o soft power prova, em primeiro lugar, que os EUA continuam a ser o país com maior poder militar, maior capacidade económica, e simultaneamente o país com maior sucesso na influência que exerce sobre os outros Estados e as suas sociedades, quer através da divulgação de uma cultura de massas que interioriza o estilo de vida norte-americano, quer através da captação de imigrantes com o sonho de viver, trabalhar ou estudar nos EUA. Mas a soma destas duas vertentes do poder revela igualmente uma aproximação cada vez maior de uma potência emergente em particular: a China. A sua força advém fundamentalmente da capacidade de hard power, sobretudo na vertente da massa crítica e na vertente da economia, com trunfos assinaláveis como o facto de se ter tornado a maior detentora de títulos do tesouro norte-americano e a segunda maior economia mundial. Os dados recolhidos revelam que a China tem todas as capacidades para atingir o nível de poder dos EUA, correspondendo às expectativas da Goldman Sachs. As suas maiores deficiências, contudo, revelam-se na sua reduzida capacidade de soft power, fruto dos graves problemas sociais e do subdesenvolvimento que ainda persiste, e fruto do desempenho do governo chinês ao nível político e ideológico, na medida em que não atrai nem persuade outros Estados ou sociedades a seguir o seu modelo político. Por outro lado, importa referir que a tarefa de ultrapassar os EUA na divulgação de uma 84 cultura de massas (como o cinema e a televisão) é extremamente difícil e morosa para qualquer dos BRICS. A Índia, por exemplo, possui a indústria de cinema com maior produção em todo o mundo – Bollywood – e mesmo assim está muito longe de atingir o nível de lucro e de influência norte-americanos neste domínio. Tabela XII – Ranking Final do Poder País EUA China França Reino Unido Canadá Rússia Alemanha Índia Austrália Japão Brasil Itália Arábia Saudita México Turquia Indonésia Argentina Irão África do Sul Venezuela Ranking do Hard Power 1 2 6 11 10 4 9 3 8 7 5 16 13 17 15 12 18 14 20 19 Ranking do Soft Power 1 14 5 3 2 11 4 17 6 8 12 7 9 10 13 18 15 20 16 19 Total multiplicado do Soft e do Hard Power 1 28 30 33 20 44 36 51 48 56 60 112 117 170 195 216 270 280 320 361 CS Sim Sim Sim Sim --Sim ----------------------------- Capacidade Nuclear Sim Sim Sim Sim --Sim --Sim ------------------------- Rank Final* 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 * Os critérios “Assento Permanente no Conselho de Segurança” e “Capacidade Nuclear” foram aplicados nos casos da China, França, Reino Unido (subiram todos uma posição relativamente ao Canadá), da Rússia (subiu em relação à Alemanha), e da Índia (subiu em relação à Austrália). Os EUA mantiveram sempre o primeiro lugar mesmo sem estes critérios. Além de revelar os EUA e a China como os dois Estados com maior poder atualmente, o ranking final revela igualmente uma grande capacidade da parte de algumas potências europeias, como a França ou o Reino Unido, em posições à frente da Rússia. Ora, é certo que a Europa está a perder poder para as potências emergentes, sobretudo ao nível económico e cada vez mais ao nível do peso político mundial. Porém, a capacidade de influência da Europa permanece ainda bastante significativa. A diferença das potências europeias relativamente às potências emergentes centra-se num ponto fundamental: o nível de industrialização. Enquanto as potências emergentes não atingirem um nível de sociedade pós-industrial, com um desenvolvimento social e económico sólido e sustentável, a sua força continuará necessariamente mais fraca. A questão, porém, é que este fosso entre o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido (relativo aos BRICS) está cada vez mais reduzido, e a última década 85 constitui apenas o começo de uma mudança na alteração da distribuição da riqueza e, consequentemente, do poder. É desta forma que a questão se coloca para a Europa, pois o mais natural é o poder regressar a Estados (os BRICS sobretudo) que, por natureza, têm uma dimensão gigantesca, o que significa que assim que atingirem a fase da industrialização plena, o seu poder não terá paralelo de comparação com Estados cuja dimensão é muito reduzida. Relativamente aos restantes BRICS, a Rússia, na 6ª posição, confirma a sua posição enquanto potência que se encontra entre os patamares da reemergência e da estagnação ao nível do poder. Já a Índia, na 8ª posição, e o Brasil, na 11ª posição, confirmam o seu lugar enquanto potências que estão, de facto, a emergir. Embora a força destes dois Estados seja ainda relativamente frágil, a verdade é que a evolução da última década tem provado que o seu desempenho está a progredir vertiginosamente. E se na década de 80 e 90 do século XX o seu peso mundial era praticamente nulo, atualmente tanto a Índia como o Brasil afirmam-se como grandes potências que crescem em praticamente todos os setores (com a economia no centro da sua ascensão). Resta a África do Sul que, mais uma vez, confirma o seu poder eminentemente regional, num continente com pouca representação mundial. Em termos globais, a sua força não tem paralelo de comparação com os EUA, nem com os próprios BRIC, pois além de exercer uma influência bastante reduzida, a África do Sul é líder de um complexo regional que se revela mais fraco do que países como a Argentina, a Turquia, a Indonésia ou o México. O poder real dos BRICS revela-se, pois, como uma parte que é já muito importante nas relações de poder atuais. O seu poder é revelador de uma mudança: a perda progressiva de poder do eixo do atlântico norte para outras zonas que há vinte anos não tinham qualquer hipótese de entrar na força da competição das economias de mercado. Por outro lado, e de acordo com a fórmula aplicada, fica igualmente bem patente que o poder real dos BRICS se centra fundamentalmente no crescimento da China. Os BRICS, sem a China, dificilmente conseguiriam adquirir tanto protagonismo e exigir tantas mudanças na estrutura das organizações internacionais. A prova mais visível é o grupo dos IBSA, que, sem a China, praticamente não tem voz mundial e exerce uma pressão muito menor comparada com a pressão dos BRICS. Em suma, os BRICS demonstram hoje a capacidade de ameaçar a hegemonia dos EUA. Importa agora perceber, concretamente, qual é a estratégia dos EUA face aos desenvolvimentos da última década. 86 Capítulo IV – A Ordem Internacional Atual: entre a Multipolaridade e o Regionalismo 4.1 EUA: Perda de Poder ou Reformulação do Conceito de Superpotência? Os dados do capítulo III confirmam-no: os EUA continuam a manter o estatuto de superpotência. Seria, aliás, bastante atípico que uma superpotência ou império perdessem esse estatuto num tão curto espaço de tempo (pouco mais de uma década), sem que uma guerra entre potências tivesse sequer ocorrido. A questão, contudo, não se coloca tanto ao nível da perda deste estatuto, mas antes ao nível de uma reconfiguração do peso político internacional e de uma fase de transição. Ora, em 2010, e pela primeira vez, os próprios EUA admitiram – no documento oficial National Security Strategy – que o mundo atravessa uma fase de transição com alterações significativas que as instituições internacionais deveriam refletir. No relatório pode ler-se: “We live in a time of seeping change. (…) International institutions must more effectively represent the world of the 21st century with a broader voice – and greater responsibilities – for emerging power” 1 . Quando a própria superpotência percebe e declara que estamos perante uma alteração da configuração do peso político internacional, significa que os conceitos de unipolaridade e de superpotência já não são os mesmos de 1990. O apoio à entrada na Índia como membro permanente no Conselho de Segurança é o exemplo prático desta perceção do governo dos EUA. Importa, pois, começar por compreender se os EUA perderam realmente poder durante a última década. Ao nível militar, os EUA permanecem o único país capaz de intervir, de forma massiva, em cenários de guerra longínquos, como o Iraque ou o Afeganistão, independentemente de saírem ou não bem sucedidos dessas intervenções. Na realidade, não é apenas nestes cenários que os EUA intervêm. Qualquer conflito mundial, por mais pequeno que seja, merece sempre a intervenção diplomática ou militar dos EUA. Foi assim com a Bósnia e com o Kosovo em 1995 e 1999 – após o fracasso da mediação das Nações Unidas e da União Europeia – com o Kuweit e o Iraque em 1991, com a Macedónia em 1998 ou ainda com a Somália na guerra civil de 1992, entre muitas outras intervenções de caráter humanitário em países como a Serra 1 Governo dos EUA, National Security Strategy, Maio de 2010, Washington, p. I e 3, disponível em: http://www.whitehouse.gov/issues/homeland-security, acedido no dia 21/08/2011. 87 Leoa, a Libéria ou o Paquistão, este último na sequência de mais conflitos envolvendo a região de Caxemira, em 2005 e 2006. A intervenção dos EUA é visível até na mais pequena das disputas. Tome-se como exemplo o caso paradigmático abordado por Fareed Zakaria: a disputa entre Espanha e Marrocos pela ilha de Leila, ao largo do Estreito de Gibraltar. O litígio pela ilha já era antigo, mas quando em Julho de 2002 o governo de Marrocos decidiu enviar doze soldados para hastear a bandeira marroquina na ilha, nenhum país europeu, nem a União Europeia ou a Rússia tomaram a responsabilidade ou a preocupação de mediar um conflito às portas da Europa. Coube mais uma vez aos EUA resolver uma disputa afastada do seu complexo regional, para grande indignação do então Secretário de Estado Collin Powell, segundo Zakaria 2 . A realidade demonstra, pois, que nenhuma outra grande potência intervém nas mais diversas disputas globais, a não ser no âmbito das Nações Unidas. Ora, isto prova que o estatuto militar e diplomático dos EUA ainda permanece sólido, e que a superpotência ainda não enfrenta propriamente uma competição de outro Estado na resolução dos mais variados conflitos. Frequentemente, aliás, são os próprios intervenientes nos conflitos que solicitam a intervenção dos EUA, e não o governo norte-americano por sua própria iniciativa. Foi assim no conflito dos Balcãs e até em disputas recentes e de tão pequena dimensão como a de Espanha com Marrocos. Por outro lado, e se a capacidade militar é, de facto, o elemento que mais contribui para o estatuto de superpotência dos EUA, isso deve-se a um outro elemento de extrema relevância: a força da economia norte-americana e a sua base tecnológica. Não obstante o crescimento colossal da China e da Índia, os dados do capítulo III demonstram que a economia norte-americana continua a ser a maior do mundo, com o maior PIB per capita e PIB nominal. Além disso, e em termos de investigação e inovação, os EUA continuam a deter as melhores universidades do mundo e a atrair os maiores cérebros mundiais, acolhendo cerca de 30% do total mundial dos alunos a estudar no estrangeiro 3 . A título de exemplo comparativo: enquanto a Índia forma, por ano, cerca de 35 a 50 doutorados em engenharia informática, esse número nos EUA aumenta para mil por ano 4 . O simples facto de a maioria dos mil melhores engenheiros informáticos 2 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 216 3 Fareed Zakaria op. cit. p. 190 4 Fareed Zakaria op. cit. p. 191 88 do mundo terem estudado, segundo Zakaria 5 , em universidades e escolas americanas, é revelador da contínua influência tecnológica dos EUA. A este vigor económico e militar acresce ainda o bem sucedido soft power americano, cuja influência consegue atingir massas muito além do continente americano. O saldo migratório dos EUA é o exemplo perfeito desta realidade. Importa reforçar que o grande sucesso dos EUA enquanto potência tecnológica e de concentração de saber advém, em grande parte, da sua capacidade de atrair os melhores estudantes estrangeiros. Segundo Zakaria, a afluência e desempenho dos grandes cérebros internacionais perfaz inclusivamente cerca de metade de toda a formação de investigadores e cientistas nos EUA: “Foreign students and immigrants account for 50% of the science researchers in the country” 6 . A toda esta capacidade única acresce ainda uma vantagem dos EUA relativamente aos BRICS: a ausência de conflitos internos ou regionais que coloquem em causa a supremacia norte-americana. Ora, estes dados revelam efetivamente um Estado com o estatuto de hegemonia. Os próprios restantes Estados do sistema percecionam os EUA desta forma. A verdade, contudo, é que a estratégia seguida pelos EUA, na última década, contribuiu para o enfraquecimento do seu estatuto atual. A abertura e o crescimento económico das potências emergentes é, como já se verificou, uma das razões principais. Mas para este enfraquecimento contribuiu igualmente uma das maiores falhas dos EUA na abordagem internacional: a questão da legitimidade. Tal como foi abordado no capítulo I, a legitimidade é crucial na aplicação do hard power e na conjugação do hard power com o soft power, na medida em que conduz a uma estratégia sólida de smart power que contribui para o prestígio internacional de qualquer Estado que a siga. Os EUA, porém, seguiram um caminho muito mais assente no recurso ao uso da força, preterindo uma estratégia que privilegiasse, de facto, a obtenção de um entendimento. O caso mais paradigmático foi, claramente, a intervenção militar no Iraque. Apesar de ter recolhido vários apoios de países europeus (como o Reino Unido, a Polónia, praticamente todo o resto do leste europeu e ainda Portugal e Espanha, entre outros), e outros tantos asiáticos (como o Japão, a Tailândia, e na Oceânia a Austrália e a Nova Zelândia), o facto é que se tratou de um dos momentos de maior cisão entre a comunidade internacional, e em particular entre os EUA e os dois países estruturantes da Europa: a França e a Alemanha. Nem no conflito dos Balcãs houve tanta 5 6 Fareed Zakaria op. cit. p. 191 Fareed Zakaria op cit. p. 198 89 discordância entre os dois lados do Atlântico. Com efeito, o resultado foi uma invasão do Iraque pelos EUA sem qualquer legitimação por parte da ONU, e apenas com o apoio dos países que estavam convencidos de que, na sequência da luta contra o terrorismo no Afeganistão, o Iraque poderia igualmente constituir uma ameaça internacional. Ora, a esta distância é possível afirmar que os motivos da intervenção se basearam muito mais no fator do petróleo do que numa preocupação efetiva em proteger o mundo de um ataque terrorista por parte do Iraque (sobretudo porque mais tarde se confirmou que não possuía armas de destruição massiva). As consequências mais graves desta estratégia foram sobretudo três: a divisão do Ocidente; a tragédia em número de baixas para o exército norte-americano e para os próprios Iraquianos; e, por fim, a escalada de descontentamento da maioria da opinião pública mundial em relação aos EUA, sobretudo por parte de países do mundo árabe e islâmico, como o Irão. Acresce ainda toda a tortura e violação dos direitos humanos levada a cabo pelos próprios EUA nas prisões de Abu Grahib e de Guantanamo. Ora, perante estes factos torna-se difícil atribuir credibilidade à ação dos EUA. Não só a sua credibilidade ficou manchada, como o exército americano sofreu enormes baixas nos anos seguintes à invasão. Além disso, o dinheiro despendido na guerra ascendeu, segundo o general Loureiro dos Santos 7 , a mais de mil milhões de dólares, o que contribuiu decisivamente para o agravamento do défice dos EUA. Por outro lado, e devido à enorme impopularidade da guerra no Iraque, o próprio exército americano começou a sofrer graves dificuldades de recrutamento e inclusivamente de manutenção de efetivos e de oficiais. Segundo o general Loureiro dos Santos, em 2005 os efetivos militares reduziram-se em cerca de 25 mil, e em 2007 o exército já previa o decréscimo das altas patentes do exército (como capitães e majores) em cerca de 35008 . Além disso, o facto de a idade limite de recrutamento ter sido aumentada dos 35 para os 39 anos – com o Pentágono a propor inclusivamente os 42 anos – é bem representativo das necessidades do exército norte-americano 9 . A estratégia no Iraque – e em menor grau no Afeganistão – revelou-se, assim, como o maior volte face na credibilidade dos EUA. Se a sua popularidade já era bastante débil em países árabes e islâmicos, após a intervenção no Iraque passou a ser ainda mais crítica, incluindo no mundo ocidental. Ora, foi justamente toda esta impopularidade que 7 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 174 8 José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 172 9 José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 173 90 conduziu os EUA a uma alteração substancial da sua estratégia. Isto verificou-se ainda nos últimos anos da administração Bush, mas sobretudo com a eleição de Barack Obama, cujas primeiras medidas contrariaram toda a estratégia de hard power dos anos anteriores, nomeadamente a decisão de encerrar a prisão de Guantanamo, a definição de datas para a retirada definitiva das tropas do Iraque e do Afeganistão, ou ainda a visita oficial ao Cairo num sinal claro de respeito e de apaziguamento do mundo árabe e islâmico. Iniciou-se, assim, a estratégia atual dos EUA, e a diferença é evidente: a superpotência passou de uma estratégia baseada num mundo exclusivamente unipolar, para uma estratégia que contempla a ascensão de potências emergentes. Em termos práticos, os EUA perceberam que têm de alterar a sua forma de atuar, de modo a manterem credível o seu estatuto de superpotência. É neste sentido que é possível falar de uma reformulação do conceito de superpotência, na medida em que já não ignora o poder crescente de outros Estados, valoriza o fenómeno do regionalismo e apoia a representação do peso das potências emergentes. Em suma, apesar de o poder dos EUA não se ter alterado substancialmente, a estratégia da última década fragilizou-o. Paralelamente, o crescente peso dos BRICS obrigou a superpotência a encetar uma estratégia de smart power, de modo a conter o descontentamento dos restantes Estados. 4.2 A estratégia dos EUA para conter os BRICS A História recente tem demonstrado que as grandes potências ou superpotências que, a um dado momento, pareciam ultrapassar os EUA, ficaram, na verdade, aquém desse objetivo. Neste sentido, Zakaria 10 tem, de facto, razão quando aponta a época em que o progresso norte-americano parecia ultrapassado pela União Soviética, primeiro com o lançamento do satélite Sputnik em 1957, e depois quando Iuri Gagarin se tornou o primeiro homem no espaço, em 1961. Ou ainda mais recentemente, quando, nos anos 80, se pensava que a economia e o progresso tecnológico do Japão ultrapassariam os EUA. A verdade, porém, é que, hoje, nenhum destes países é superior aos EUA. Partindo, pois, desta análise, o paralelismo com a ascensão dos BRICS é incontornável. As dúvidas podem, de facto, surgir em relação ao Brasil ou até à Rússia, 10 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 210 91 e seguramente em relação à África do Sul. Mas como fazer a mesma leitura em relação a sociedades gigantescas – a China e a Índia – que avançam rapidamente no desenvolvimento económico, social e até militar, podendo atingir o nível pós-industrial em poucas décadas? Ora, de facto, perante tais potencialidades (quer em termos de massa crítica, quer em termos de dimensão económica e até militar), é evidente que as perspetivas, em relação, sobretudo, à China, ultrapassam largamente as perspetivas do Japão dos anos 80. Só a União Soviética poderia constituir um ponto de comparação, na medida em que o seu poder militar e tecnológico esteve sempre ao nível do poder dos EUA. A questão é que, atualmente, não é apenas a China que se apresenta com elevadas potencialidades, mas também a Índia, a reemergente Rússia ou o Brasil, em menor grau. A própria perceção e posição dos EUA relativamente ao poder destas potências é reveladora de uma mudança. São exemplos disso não apenas a posição em relação à Índia, ou a recente estratégia de segurança nacional de 2010, mas também o mais recente relatório do Pentágono que dá conta do poder militar chinês. Neste mesmo relatório fica bem patente o extraordinário e detalhado desenvolvimento militar da China – muito devido a Taiwan – bem como os receios dos EUA relativamente à forma como a China pretende usar esta força. No relatório pode ler-se: “Over the past decade, China’s military has benefitted from robust investment in modern hardware and technology. (…). However, there remains uncertainty about how China will use its growing capabilities” 11 . Por outro lado, ao mesmo tempo que os EUA demonstram alguma prudência e desconfiança, do lado da China as declarações oficiais de alguns responsáveis chineses dão conta de um crescente protagonismo e, inclusivamente, de um tipo de posição que antes só os EUA tomavam. Veja-se o exemplo das afirmações do presidente do Banco da China, Xiao Gang, ao advertir os EUA para o caminho económico que estão a seguir e ao indicar a solução para os problemas da economia norte-americana: “It is a recognized structural problem of the global economy that US over-consumption has been a principal source of world demand (…). The US should refrain from launching QE3 [Quantitative Easing – programa de estímulos à economia nacional] and tighten its monetary policy to raise the world's confidence in the value of the dollar” 12 . Ora, no 11 Relatório oficial do Pentágono sobre o poder militar chinês, Military and Security Developments Involving the People’s Republic of China 2011, Agosto de 2011, p. I, disponível em: http://www.defense.gov/transcripts/transcript.aspx?transcriptid=4868 12 Xiao Gang, presidente do Banco da China, artigo de 17 de Agosto de 2011, disponível em: http://www.boc.cn/en/bocinfo/bi1/201108/t20110817_1493258.html, acedido no dia 30/08/2011 92 contexto de uma ordem exclusivamente unipolar, dificilmente dirigentes de outra potência fariam declarações de caráter repreensivo que apontam o caminho à superpotência. Esta tarefa coube sempre aos EUA, e não à China ou à Rússia, sobretudo após o final da Guerra Fria. Zakaria está, portanto, cada vez mais certo quando afirma: “At a military-political level, America still dominates the world, but the larger structure of unipolarity – economic, financial, cultural – is weakening” 13 . Apesar de tudo, a posição oficial do governo norte-americano reafirma o poder estruturante dos EUA na ordem atual. Barack Obama faz questão de o afirmar e de reforçar que o lugar dos EUA continuará a ser enquanto superpotência. Num discurso em Westminster, no parlamento britânico, Obama diz claramente: “Countries like China, India, and Brazil are growing by leaps and bounds. (…) And yet, as this rapid change has taken place, it’s become fashionable in some quarters to question whether the rise of these nations will accompany the decline of American and European influence around the world. That argument is wrong. The time for our leadership is now. It was the United States and the United Kingdom and our democratic allies that shaped a world in which new nations could emerge and individuals could thrive. That’s why countries like China, India and Brazil are growing so rapidly -because they are moving toward market-based principles that the United States and the United Kingdom have always embraced.” 14 Ao mesmo tempo que os EUA reforçam a ideia de que o poder da América e da Europa é agora mais necessário do que nunca, seguem igualmente uma estratégia inteligente de contenção do poder das potências emergentes, em particular dos BRICS. A valorização de grupos como o G20, em detrimento do G8, ou mesmo a própria valorização dos BRICS e das suas reivindicações (como a reestruturação do Conselho de Segurança da ONU) constituem mudanças assinaláveis relativamente à visão que os EUA tinham do mundo no ano 2000. Atualmente, a estratégia norte-americana revela a inteligência de se basear numa índole de smart power que passa pelo reconhecimento, respeito e apoio ao peso político de países como a Índia, por exemplo. Ora, este smart 13 Fareed Zakaria, The Post-American World: And the Rise of the Rest, Penguin Books, Londres, 2009, p. 218 14 Barack Obama, presidente dos EUA, Discurso em Westminster, 25 de Maio de 2011, disponível em: http://www.whitehouse.gov/the-press-office/2011/05/25/remarks-president-parliament-londonunited-kingdom, acedido no dia 30/08/2011. 93 power traduz-se no que Charles Kupchan designa como unipolaridade benigna 15 e cuja execução se baseia fundamentalmente na valorização do regionalismo, mais concretamente no apoio ao estabelecimento de potências regionais, de modo a manter e fortalecer o estatuto da superpotência. Nas palavras de Kupchan: “Regional unipolarity provides order and stability through power asymmetry (...). The preponderance of the leading regional state discourages others from balancing against it (...)” 16 . A estratégia norte-americana baseia-se, assim, não apenas no apoio desta supremacia regional, mas igualmente num estímulo à competição regional, de modo a gerar um equilíbrio de poder entre as grandes potências e assim beneficiar o estatuto da superpotência. Esta é claramente a estratégia que está a ser adotada em relação à reestruturação de organizações internacionais como a ONU, cujo Conselho de Segurança é hoje palco do regionalismo mais evidente. 4.3 A Reestruturação das Organizações Internacionais É recorrente a declaração dos BRICS em como exigem uma reestruturação das organizações internacionais, de modo a refletirem o seu peso crescente enquanto potências 17 . Exigem-no fundamentalmente para duas organizações financeiras (o Banco Mundial e o FMI 18 ), uma organização de comércio internacional (a OMC 19 ), e para a única organização onde o peso político mundial é executado com maior legitimidade e poder (a ONU e o seu Conselho de Segurança). Ora, se nas primeiras o consenso entre os BRICS é maior, na ONU, pelo contrário, o debate tem sido bastante exemplificativo das disputas regionais entre os vários candidatos a um lugar de membro permanente no Conselho de Segurança. 15 Charles Kupchan, “After Pax Americana: Benign Power, Regional Integration, and the Sources of a Stable Multipolarity”, International Security, vol. 23, nº2, The MIT Press, Harvard, 1998, p. 42 16 Charles Kupchan, op. cit. p. 45 17 “(…) we reaffirm the need for a comprehensive reform of the UN, with a view to making it more effective, efficient and representative (…). The IMF and the World Bank urgently need to address their legitimacy deficits.” Declaração Conjunta dos BRICS, 15 de Abril de 2010, Brasília, disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/temas-mais-informacoes/saiba-mais-bric/documentos-emitidos-por-altasautoridades/brics-joint-statement-on-global-food-security/view, acedido no dia 05/07/2011. 18 A exigência centra-se no fim da divisão, entre os EUA e a Europa, da presidência de cada uma destas organizações, que exclui sempre qualquer outro país do mundo. 19 A exigência na OMC centra-se no fim da atribuição de subsídios agrícolas, por parte dos EUA e da União Europeia, aos seus agricultores, prejudicando as exportações dos mercados emergentes. 94 A verdade é que a maioria das exigências dos BRICS não tem sido atendida pelos EUA nem pela Europa. As duas únicas alterações visíveis representam um sinal, mas não têm um peso significativo na distribuição de poder: a primeira reside no mero simbolismo demonstrado por Christine Lagarde, enquanto candidata à presidência do FMI, ao visitar os países emergentes (a China e o Brasil) numa tentativa de os convencer e merecer a sua aprovação (embora meramente simbólica, tal diligência seria impensável fazer-se na década de 80 ou 90); e a segunda foi a reunião da OMC em Hong Kong, em 2005, onde ficou decidido colocar finalmente um fim, até 2013, aos subsídios à agricultura e às exportações por parte dos EUA e da União Europeia 20 . A estas alterações poder-se-ia ainda acrescentar o crescente protagonismo do G20 – onde estão incluídos todos os BRICS – em detrimento de grupos como o G8. Ainda assim, não se trata de uma organização internacional, mas antes de um grupo de debate e influência onde os BRICS passaram, evidentemente, a poder expressar a sua posição. Ora, a influência dos BRICS durante a última década ainda não produziu resultados práticos, sendo que o Conselho de Segurança da ONU constitui a instância cuja reestruturação merece maior destaque, e cujo processo já se arrasta há mais de uma década. O apelo a uma reforma das Nações Unidas começou a ser ativamente falado durante a década de 90, mas só no ano 2000, com a Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio 21 , foi expressamente declarada a necessidade de uma reforma abrangente do Conselho de Segurança. Apesar desta vontade institucional, a realidade reflete o oposto: por um lado, as potências estabelecidas no Conselho de Segurança ainda não estão totalmente dispostas a partilhar o poder desta instância (salvo a exceção dos EUA que, como se verá neste capítulo, já perceberam que a manutenção do seu estatuto passa por um equilíbrio de poder entre todos os outros Estados); e por outro lado, os modelos de reestruturação propostos e as disputas regionais entre os vários candidatos provam que o processo de reestruturação está longe de ser consensual, incluindo dentro dos próprios BRICS. O primeiro modelo de reestruturação a ser proposto partiu do ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan, ao propor duas hipóteses: na primeira (o modelo A) entrariam seis novos membros permanentes (dois da África, dois da Ásia, um da Europa e um da América) e mais treze membros não permanentes; na segunda hipótese (modelo B) não 20 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 145 21 Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas, disponível em: http://www.un.org/millenniumgoals/bkgd.shtml, acedido no dia 09/08/2011. 95 entrariam quaisquer membros permanentes, dividindo-se os membros não permanentes por dois grupos de países: o primeiro eleito por períodos de quatro anos, e o segundo por períodos de dois anos 22 . Na sequência desta proposta, surgiram ainda mais candidatos, grupos de candidatos e, consequentemente, crescentes manifestações de apoio e oposição a determinados Estados num processo que espelha cada vez mais a situação da ordem atual: o regionalismo. Um dos primeiros e mais emblemáticos grupos de pressão para entrada no Conselho de Segurança foi o G4, constituído pela Alemanha, Brasil, Índia e Japão. A proposta inicial era a entrada imediata destes países como membros permanentes, mas acabaram por reformular a proposta ao abdicar do direito de veto nos primeiros quinze anos de permanência. Ora, esta proposta motivou, evidentemente, as primeiras oposições de caráter regional: primeiro da parte da União Africana e logo depois da parte de um grupo de países que formou a União pelo Consenso, constituída em 2005 pelo Canadá, Itália, Colômbia e Paquistão 23 . A este grupo juntaram-se posteriormente outros países com uma oposição muito concreta e dirigida a membros específicos do G4: a Argentina, a Colômbia e o México opuseram-se à entrada do Brasil; a Itália, a Holanda e a Espanha contra a entrada da Alemanha; a Coreia do Sul contra o Japão; o Paquistão contra a Índia; e o Canadá, por princípio, contra qualquer reestruturação sem um consenso global. Ora, estamos perante o regionalismo mais claro e ofensivo na luta pela influência e pelo poder globais. De referir que o G4 constitui igualmente a primeira incongruência nos BRICS, pois enquanto a Rússia e a China já detêm o seu lugar enquanto membros permanentes no Conselho de Segurança, nem o Brasil e nem a Índia estão nesta situação, obrigando-os a procurar outros aliados fora dos BRICS para conseguirem o seu objetivo. Este facto demonstra o caráter extremamente generalista das reivindicações dos BRICS: propõem, de facto, a reestruturação das organizações internacionais, mas sem concertação e, porventura, plenamente conscientes de que, quando cada um profere esta declaração, está na verdade a pensar no seu próprio modelo de reestruturação, sem que haja uma discussão com os restantes BRICS, justamente porque existe a consciência de que haverá desacordo. 22 Relatório de Kofi Annan sobre a reforma das Nações Unidas, “In Larger Freedom”, 2005, disponível em: http://www.globalpolicy.org/un-reform/un-reform-topics/reform-of-the-security-council9-16/41196.html?itemid=1321 23 José Alberto Loureiro dos Santos, O Império Debaixo de Fogo: Ofensiva Contra a Ordem Internacional Unipolar, Europa-América, Mem Martins, 2006, p. 29 96 Ora, foi precisamente o que se verificou na posição da China, em concertação com os EUA, relativamente ao G4. Se no início a posição destes dois países era oposta (a China mostrou-se inicialmente favorável à entrada da Índia e frontalmente contra a entrada do Japão, enquanto os EUA apoiavam o Japão e opunham-se frontalmente à entrada da Alemanha e do Brasil24 ), o desenvolvimento dos acontecimentos aproximou progressivamente os EUA e a China numa estratégia de defesa do status quo. A base desta aproximação foi a força crescente das potências que exigiam uma reforma das Nações Unidas, e embora a visão dos EUA e da China fosse oposta, no final os seus interesses convergiram na exclusão de todas as propostas de reforma apresentadas. Esta posição da China é, pois, elucidativa dos interesses distintos dentro dos BRICS, pois apesar de se tratar de uma potência emergente, o seu peso político na ONU, juntamente com o da Rússia, já se encontra relativamente bem estabelecido na ordem internacional atual. Apenas o Brasil e a Índia têm um interesse maior em reestruturar a ONU, o que justifica a sua aliança no grupo IBSA (juntamente com a África do Sul), embora sem grandes repercussões em todo este processo. Mais significativa foi a mudança de posição dos EUA ao longo da última década. Importa recordar que, antes dos ataques do 11 de Setembro, a posição dos EUA durante a administração Bush, através do embaixador na ONU John Bolton, era a de que a reforma mais natural do Conselho de Segurança seria tornar os EUA no único membro permanente com direito de veto25 , ignorando a ascensão de novas potências e mantendo uma perspectiva baseada no mundo de 1990. Todavia, os ataques terroristas em 2001 e a guerra no Iraque viriam a contrariar esta visão, sobretudo porque foi após estas datas que se assistiu ao surgimento de várias propostas de reestruturação do Conselho de Segurança, a maioria das quais introduzindo sempre novos membros permanentes. Ora, foi neste contexto que, perante uma tal vontade de alterar as regras vigentes, os EUA passaram de uma estratégia plenamente segura da sua hegemonia, para uma estratégia de defesa do seu estatuto e poder, contanto com o apoio da China. Em pouco tempo, os EUA deixaram de estar tão seguros do seu poder, para começarem a enfrentar maiores dificuldades de contenção do protagonismo de outras potências. Nas palavras do general Loureiro dos Santos: “Assistimos a uma permanente manobra diplomática defensiva por parte da América do Norte, desenvolvida em todo o mundo, nas mais diversas chancelarias e encontros diplomáticos, reveladora das 24 25 José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 29 José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 29 97 dificuldades em que se encontra a única potência capaz de intervenção decisiva global” 26 . Esta mesma estratégia aprofundou-se substancialmente com a administração Obama que, percebendo justamente estas alterações e o descontentamento do mundo relativamente aos EUA (particularmente do mundo árabe), se centrou em vários objetivos estratégicos: apaziguar o descontentamento global; respeitar a ascensão de novas potências e o seu peso político; e manter uma estratégia de diálogo que impeça o maior descontentamento e, simultaneamente, confirme a imagem dos EUA como a única superpotência. O primeiro gesto mais emblemático desta estratégia foi a visita de Barack Obama ao Egito e à Universidade do Cairo, logo no início da sua presidência em 2009, onde proferiu um discurso apaziguador e respeitador do mundo árabe: “I've come here to Cairo to seek a new beginning between the United States and Muslims around the world, one based on mutual interest and mutual respect and one based upon the truth that America and Islam are not exclusive and need not be in competition” 27 . É no seguimento desta estratégia que a posição dos EUA se tem vindo a alterar relativamente à reforma do Conselho de Segurança. Se no início da década a posição oficial dos EUA rejeitava ou ignorava qualquer entrada de membros permanentes, atualmente a estratégia norte-americana evidencia claramente um objetivo que contempla esta hipótese. O recente apoio declarado à entrada da Índia é exemplo deste objetivo. Contrariando a posição oficial anterior que ignorava e nem sequer considerava esta hipótese (sobretudo durante a administração Bush), Barack Obama expressou, de forma inédita, o apoio oficial dos EUA à entrada da Índia como membro permanente no Conselho de Segurança: “The just and sustainable international order that America seeks includes a United Nations that is efficient, effective, credible and legitimate. That is why I can say today, I look forward to a reformed United Nations Security Council that includes India as a permanent member” 28 . A presença da Índia como membro permanente no Conselho de Segurança constituiria seguramente um contrabalanço ao poder chinês, sobretudo nas questões que irão ocupar o futuro do século XXI. Todavia, a estratégia dos EUA mantém-se inalterada em relação a outros Estados candidatos, como o Brasil. A razão é novamente estratégica e de índole regional: da 26 José Alberto Loureiro dos Santos, op. cit. p. 27 Barack Obama, presidente dos EUA, Discurso na Universidade do Cairo, Egito, 4 de Junho de 2009, disponível online em: http://www.whitehouse.gov/the-press-office/remarks-president-cairouniversity-6-04-09, acedido no dia 16/08/2011. 28 Barack Obama, presidente dos EUA, Discurso no Parlamento da Índia, Nova Deli, 8 de Novembro de 2010, disponível em: http://www.whitehouse.gov/the-press-office/2010/11/08/remarks-president-jointsession-indian-parliament-new-delhi-india, acedido no dia 11/08/2011. 27 98 mesma forma que a Índia está para a China em termos de equilíbrio de poder (constituindo, assim, uma vantagem para os EUA), o Brasil está para os EUA na mesma situação (constituindo um entrave à hegemonia dos EUA), precisamente porque se trata de dois gigantes num mesmo complexo regional, embora mais alargado. Não é do interesse dos EUA apoiar a entrada de um país cuja posição geográfica poderia significar uma força de bloqueio ainda mais ameaçadora do que a China ou a Índia. Daí que o governo norte-americano manifeste maiores reservas em relação ao Brasil e não assuma uma posição tão determinada como a que demonstrou com a Índia. A reestruturação do Conselho de Segurança, porém, envolve outras questões além da vontade de cada Estado. Fatores como as contribuições para o orçamento da ONU, as contribuições de militares para missões de paz, ou o simples peso populacional de um país servem como uma ponderação extremamente importante na avaliação dos países candidatos. Em termos de contribuições monetárias, o Japão e a Alemanha são, respetivamente, o segundo e o terceiro maiores contribuintes para o orçamento total da ONU (logo a seguir aos EUA), num ranking onde nem o Brasil, nem a Rússia e nem a Índia ocupam lugar. É, pois, compreensível que, por um lado, o Japão e a Alemanha considerem que o seu peso deveria estar mais representado, e que, por outro lado, o México se oponha terminantemente à entrada do Brasil. Quadro IV 10 Maiores Contribuintes para o Orçamento da ONU (2005) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 País EUA Japão Alemanha Reino Unido França Itália Canadá Espanha China México Percentagem 22% 19.4% 8.6% 6.1% 6% 4.8% 2.8% 2.5% 2% 1.8% Milhões (dólares) 362 279 124 88 86 70 40 36 29 27 Fonte: ONU, disponível em: http://www.un.org/geninfo/ir/index.asp?id=150 Todavia, a questão das contribuições para o orçamento pode ser bastante relativa, sobretudo tendo em conta fatores como a dimensão e a riqueza de um país. A título de exemplo, o Luxemburgo e a Suíça são, respetivamente, o primeiro e o segundo maiores contribuintes em termos de PIB per capita. Significa, portanto, que se trata de países 99 que, de acordo com a sua dimensão e riqueza, contribuem muito mais do que países como os próprios EUA (num ranking dominado por países europeus de pequena dimensão). Importa, aliás, referir que, no ranking dos dez maiores contribuintes em termos de PIB per capita, estão ausentes todas as potências tradicionais e emergentes, à exceção apenas do Japão, que ocupa o terceiro lugar. Quadro V 10 Maiores Contribuintes per capita para o Orçamento da ONU (2005) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 País Luxemburgo Suíça Japão Liechtenstein Noruega Dinamarca Islândia Qatar Áustria Holanda Dólares (per capita) 3.4 3.3 3.06 3.03 3.01 2.69 2.38 2.14 2.13 2.10 Fonte: ONU, disponível em: http://www.un.org/geninfo/ir/index.asp?id=150 Ora, em teoria, estes dados tanto podem dar argumentos à Alemanha, como a vários países europeus de menor dimensão que contribuem mais do que qualquer outro candidato a membro permanente. Isto prova que as contribuições para o orçamento da ONU podem ter duas leituras: uma primeira que favorece os argumentos de alguns dos principais países candidatos, como a Alemanha e o Japão (embora este último seja, de facto, um dos maiores contribuintes nas duas perspectivas); e uma segunda que relativiza este mesmo argumento com as contribuições mais pequenas de países de menor dimensão, mas comparativamente muito maiores em termos de PIB per capita. O mesmo se pode aplicar às contribuições com militares em missões de paz da ONU, na medida em que se trata de uma questão mais dependente da proximidade geográfica em relação a conflitos específicos. Neste indicador, e considerando os dados de Dezembro de 2010, os maiores contribuintes de militares e tropas de policiamento em missões da ONU foram três países bastante populosos e geograficamente próximos: o Paquistão, o Bangladesh, e a Índia. Os primeiros lugares do ranking são, aliás, ocupados exclusivamente por países subdesenvolvidos em África e na Ásia. Na 13ª posição está o Brasil, na 15ª a China, e só na 17ª é possível encontrar o primeiro país industrializado e desenvolvido com maiores contribuições: a Itália. Significa, portanto, 100 que os países industrializados não são os maiores contribuintes com tropas para missões de paz. Os EUA, por exemplo, ocupam o lugar 70 do ranking, muito abaixo da Índia ou da China. Quadro VI Maiores Contribuintes com Tropas para Missões da ONU (2010) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 17 48 70 País Paquistão Bangladesh Índia Nigéria Egito Nepal Jordânia Ruanda Gana Uruguai Senegal Etiópia Brasil África do Sul China Itália Rússia EUA Tropas 10,642 10,402 8,691 5,841 5,409 4,431 3,977 3,810 2,966 2,453 2,358 2,301 2,267 2,187 2,039 1,741 258 87 Fonte: ONU, disponível em http://www.un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/contributors_archive.shtml Estes dados constituem, pois, razões suficientes para que Índia (e até ao Brasil) reivindiquem uma posição de maior relevo no Conselho de Segurança, mesmo tendo em conta que países como os EUA, o Canadá, o Reino Unido ou a França são quem mais contribui com tropas para cenários de guerra como o Afeganistão, em 2001, ou o Iraque, em 2003. Em termos de forças de manutenção de paz, policiamento e reconstrução são, no entanto, os países subdesenvolvidos que mais contribuem com a sua força. Paralelamente a todas estas razões, importa ainda considerar o fator da população e a representação de todos os continentes. Neste ponto, a Alemanha – com cerca de 80 milhões de habitantes – está claramente em desvantagem, pois além de a Europa já estar representada, a população alemã é bastante inferior à de países como a Índia, o Brasil, o México, a Indonésia, o Paquistão, o Japão ou mesmo a Nigéria, com uma população de cerca de 150 milhões de habitantes 29 . Além disso, a voz de regiões e continentes como 29 Dados do Banco Mundial online: http://databank.worldbank.org/ddp/home.do?Step=1&id=4, acedido no dia 16/08/2011. 101 África, a América do Sul, o Sudeste Asiático ou o Médio Oriente não tem qualquer representação a nível decisório, o que ainda acrescenta mais razões para que os membros permanentes sejam alargados as estas regiões. Em termos populacionais, portanto, países como o Brasil, a Índia, a Nigéria (o país africano mais populoso), o México ou a Indonésia têm claramente maiores possibilidades do que qualquer Estado europeu ou outros Estados concorrentes como a Argentina, a Venezuela, a Colômbia ou a África do Sul, com populações abaixo dos 50 milhões de habitantes. Tendo, assim, em conta todos os elementos acima referidos, a reestruturação do Conselho de Segurança da ONU torna-se bastante complexa e passível de gerar grandes discórdias. O fator populacional é claramente um dos que exerce maior peso. Mas a captação do apoio e reconhecimento internacionais é, em última análise, o fator decisivo, pelo que é aqui que se geram as discórdias que dividem também os BRICS. Apesar de tudo, é em dois membros dos BRICS – a Índia e o Brasil – que recai a maior possibilidade de entrada na permanência do Conselho de Segurança. A Índia é, desde logo, o único país que conta com o apoio da superpotência. Além disso, está numa melhor posição do que países do seu complexo regional como a Indonésia, que não recolhe apoios particulares, ou o Japão, cuja rivalidade histórica com a China é ainda maior do que a da Índia com a China. O Brasil, por outro lado, apesar de suscitar uma posição adversa dos EUA, é o país melhor colocado em toda a América para aceder ao Conselho de Segurança, sobretudo porque nem a Argentina e nem o México possuem um território e população de dimensões superiores. Mesmo opondo-se ao Brasil, nenhum outro país americano terá o mesmo potencial para aceder ao Conselho de Segurança, salvo através de um eventual acordo que permitisse a entrada do Brasil juntamente com o México, por hipótese. Este acordo seria, no entanto, bastante improvável, pois significaria uma representação excessiva do continente americano e suscitaria, consequentemente, a forte contestação de outros complexos regionais. Por outro lado, importa ter em conta que, da mesma forma que o Brasil não recolhe o apoio dos EUA, também os restantes Estados americanos não recolhem qualquer apoio, o que os coloca numa posição pior do que o Brasil, cuja dimensão é muito superior. Nos restantes complexos regionais, a competição entre os candidatos é mais igualitária. No continente africano, a África do Sul destaca-se como potência económica, mas compete com países como a Nigéria ou o Egito, com cerca de 80 milhões de habitantes. Na Europa, a oposição à entrada da Alemanha é evidente, e no 102 Médio Oriente não é sequer equacionada a entrada de países como o Irão, o Iraque ou a Arábia Saudita. Em suma, a reestruturação do Conselho de Segurança permite perceber duas realidades: a primeira é a de que todas as razões atrás mencionadas são o espelho da ascensão do regionalismo e das disputas dentro dos vários complexos; e a segunda é a de que tanto a Índia como o Brasil encontram-se na melhor posição para aceder à permanência no Conselho de Segurança, além de pelo menos um lugar quase certo para o continente africano, embora com maiores dúvidas sobre que Estado deveria aceder. Resta apenas referir que esta mesma reestruturação está, evidentemenre, dependente da vontade e aprovação dos cinco membros permanentes. No entanto, contrariando as posições expressas no passado e após conhecida a posição atual dos EUA, bem como a abertura da China e da Rússia nas cimeiras dos BRICS, é cada vez mais verosímil uma reestruturação do Conselho de Segurança. 4.4 BRICS: Sinónimo de Transição na Classificação da Ordem Atual? Os dados do capítulo III demonstram que a distribuição de poder na ordem internacional – sobretudo na vertente do hard power – pende cada vez mais para potências como os BRICS. Em termos classificativos, é portanto bastante redutor classificar a ordem atual como exclusivamente unipolar. Todavia, é igualmente redutor classificá-la como multipolar, pois tanto os dados recolhidos, como a realidade na prática (sobretudo em questões de segurança e de mediação ou intervenção em conflitos regionais e mundiais) demonstram que apenas os EUA se destacam como maiores protagonistas. Por outro lado, tornou-se igualmente evidente que a distribuição de poder já não é idêntica à que se verificava em 1990, pelo que se, de facto, estivermos perante uma transição na classificação da ordem atual, então os BRICS constituem a maior razão que subjaz a esta alteração. A classificação do momento presente é, portanto, bastante complexa. A realidade atual aproxima-se, efetivamente, muito mais de um mundo interdependente, globalizado e com vários atores para além dos Estados, do que de um mundo cujo rumo internacional é definido exclusivamente por um Estado hegemónico. Se, por um lado, é inequívoco que os EUA ainda são considerados como a superpotência, por outro lado, a última década provou igualmente à superpotência que a 103 necessidade de cooperação é cada vez maior, por duas razões fundamentais: a primeira reside no aumento do poder dos BRICS, na sua contestação ao poder centralizado e de decisão dos EUA e da Europa; e a segunda reside na estratégia de cooperação internacional que os EUA estão a aprofundar, justamente para contrariarem o aumento de poder das potências emergentes de modo a prolongarem o seu estatuto exclusivo de superpotência. É evidente que as razões subjacentes a esta alteração de estratégia não residem apenas nos BRICS, mas também em outras razões relativas à segurança internacional, como o combate ao terrorismo e a necessidade de apaziguamento do mundo árabe após a guerra no Iraque. Ainda assim, a quota-parte dos BRICS é de assinalar, sobretudo devido às reações e declarações que já motivaram no governo dos EUA. Por outro lado, a análise até aqui realizada também demonstra que o poder dos BRICS está extremamente orientado para uma área específica: a produção, a exportação e o investimento em massa. Por conseguinte, o setor onde os BRICS mais se destacam, e aquele onde constituem a maior ameaça à hegemonia norte-americana, é o setor da economia – e a geoeconomia em particular – e não tanto o poder ou a afronta militares. Os próprios BRICS são, aliás, o produto de uma agência financeira de investimento. Ou seja, o próprio mundo económico e financeiro influenciou o rumo da geopolítica, criou coligações, acelerou e intensificou a realidade de países como os BRICS. Isto não significa que as potências emergentes jamais teriam maior influência se não fosse a estratégia e até a criatividade do mundo financeiro. Mas é evidente que foi a própria geoeconomia dos mercados que criou a geoeconomia das potências emergentes e, consequentemente, a exigência de se alterarem regras na OMC, no FMI e na ONU. Posto isto, a geoeconomia de cada um dos BRICS tem-se revelado extremamente desafiadora para as economias ocidentais. A competição atual entre os Estados joga-se, portanto, muito mais na influência económica e no sucesso de empresas nacionais do que na competição por um melhor desenvolvimento militar. Tal como já foi referido em capítulos anteriores, as guerras atuais fazem-se entre mercados, moedas e empresas, e entre impérios económicos, em vez de impérios políticos e territoriais. Esta situação já era uma realidade entre os EUA, o Japão e a Europa. Os BRICS apenas vieram juntar-se à luta por uma maior influência económica, e a verdade é que têm sido bem sucedidos. Em termos de IDE, por exemplo, as estimativas para o período entre 2011 e 2013 colocam a China no primeiro lugar dos países que serão mais atrativos ao investimento, logo seguida dos EUA, Índia, Brasil e Rússia. 104 Figura IV Economias mais Atrativas ao Investimento Direto Estrangeiro Fonte: UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) Paralelamente, as estimativas relativamente à dimensão das economias dos BRICS para 2015 revelam um crescimento brutal, em particular nos casos da China e da Índia, cujas estimativas apontam para que a China continue a ser a segunda maior economia do mundo e para que a Índia se torne na terceira, seguida da Rússia em sexto lugar e do Brasil em sétimo. 105 Figura V Evolução dos BRICS no Ranking das Maiores Economias Mundiais Fonte: FMI Na última década, a influência económica dos EUA tornou-se, portanto, cada vez mais desafiada, pelo que as implicações destas mudanças refletem-se, evidentemente, na classificação da ordem internacional. Ora, embora a aferição do poder total de um Estado não possa ser dividida, no setor específico da economia a realidade já confirma mais a multipolaridade ou, pelo menos, a interdependência económica, do que uma hegemonia dos EUA que tudo controlam. No setor militar, pelo contrário, a concentração de poder ainda permanece bastante do lado da superpotência, e é precisamente a força e o poderio militar que mais contribuem para o estatuto dos EUA. Por outro lado, e sendo já seguro que a influência dos BRICS é clara enquanto sinónimo de transição, importa salientar que essa mesma influência é eminentemente dispersa, pouco concertada e regional. Nas três cimeiras realizadas 30 , os únicos pontos comuns centram-se na reestruturação das organizações internacionais e na defesa de um mundo crescentemente multipolar. A realidade, porém, é que cada um dos BRICS 30 Ekaterimburgo, em 2009; Brasília, em 2010, e Pequim, em 2011. 106 desenvolve a sua própria estratégia comercial, defende a sua própria posição internacional e apenas se une com os restantes de forma esporádica e em posições mais genéricas. Deste modo, é evidente que a influência dos BRICS é eminentemente individual e com uma forte componente regional. Por outro lado, e se os últimos capítulos demonstraram que o crescimento dos BRICS é, de facto, gigantesco, os desenvolvimentos mais recentes – em organizações como o FMI – provam que o poder da Europa e dos EUA ainda permanece com uma grande influência sobre o resto do mundo. Mais concretamente, a eleição, em 2011, de Christine Lagarde, ex-ministra das finanças de França, para o cargo de diretora do FMI confirma a tradicional liderança europeia desta organização, mesmo após fortes pressões dos BRICS para que a presidência fosse ocupada, pela primeira vez, por um país emergente. Ora, este é apenas um sinal da falta de solidez e de concertação dos BRICS. Em suma, a última década confirma, por um lado, que o eixo central do poder está em processo de deslocação do atlântico norte para zonas como a Ásia. Por outro lado, confirma igualmente que este processo é moroso no que concerne a alteração do status quo no seio das organizações internacionais. Não deixa, porém, de ser um facto que as potencialidades dos BRICS permitem antever o contínuo processo de mudança na ordem internacional atual. 107 Considerações Finais Na sequência de um processo de investigação sobre os BRICS que conduziu ao levantamento, análise e interrogação de várias vertentes, é possível chegar a quatro conclusões fundamentais: ¾ A primeira é a de que os BRICS resultam, sobretudo, da geoeconomia e da geofinança dos mercados e das agências de investimento. Só posteriormente se transformaram num conceito de iniciativa política, dando mais força ao acrónimo já criado pela Goldman Sachs. São, portanto, a prova mais concreta de que a geoeconomia está, de facto, a substituir e a controlar cada vez mais a geopolítica dos Estados. Por outro lado, e num sentido inverso, são igualmente o exemplo de como os Estados utilizam cada vez mais a geoeconomia para exercer a sua influência. O exemplo mais marcante é, seguramente, o caso da China e de toda a sua estratégia em África. Os BRICS vieram confirmar que as guerras atuais se fazem cada vez mais através da força da geoeconomia ao serviço dos Estados, do que através das guerras militares convencionais. A índole dos BRICS caracteriza-se ainda por dois pontos fundamentais: o protagonismo resultante sobretudo de um crescimento económico colossal e de uma massa demográfica gigantesca; e o regionalismo como base crescente da sua afirmação global, o que explica a entrada da África do Sul. ¾ A segunda conclusão é a de que, embora a estrutura da ordem internacional atual permaneça de base unipolar, os BRICS tiveram efetivamente impacto no poder da superpotência durante a última década. Este impacto traduziu-se fundamentalmente na mudança da estratégia seguida pelos EUA na sequência da ascensão das potências emergentes, e do descontentamento geral da maioria dos Estados em relação à estratégia seguida pela superpotência no Iraque e na luta contra o terrorismo. O apoio à reforma do Conselho de Segurança da ONU (e, em particular, o apoio à entrada da Índia) constitui o exemplo mais representativo desta mudança de estratégia. 108 Por outro lado, além de uma base unipolar, a ordem internacional atual caracteriza-se igualmente por uma interdependência crescente e por um número crescente de atores internacionais. Se, por um lado, os EUA detêm a supremacia ao nível militar, os restantes parâmetros do poder já não são exclusivamente unipolares, sobretudo no campo económico. Em termos de hard power, aliás, os BRICS ultrapassam já a força das potências europeias e das potências de média dimensão. Acresce ainda que o regionalismo representa cada vez mais a estrutura da ordem internacional atual. Com efeito, os conceitos de unimultipolaridade, de Samuel Huntignton, de interpolaridade, de Giovanni Grevi, e de ausência de polaridade, de Richard Haass, adequam-se mais à ordem atual do que o conceito de uma unipolaridade inequívoca ou, segundo William Wohlforth, sólida, durável e mais desejável do que a multipolaridade. Numa outra perspectiva relevante, o momento atual pode ainda ser visto, segundo Mendo Castro Henriques e António Paradelo 1 , de uma forma tridimensional: unipolar do ponto de vista militar, multipolar do ponto de vista económico, e com uma distribuição caótica do poder do ponto de vista das ameaças transnacionais do terrorismo e do crime organizado. ¾ A terceira conclusão assenta na ação pouco concertada dos BRICS e das potências emergentes em geral. Isto deve-se fundamentalmente ao caráter regional das suas reivindicações e aos objetivos e estratégias distintas. As únicas razões que mantêm as potências emergentes unidas baseiam-se na reestruturação das organizações internacionais e na defesa de um mundo multipolar. Ao nível económico, por exemplo, a China e o Brasil estão em blocos opostos e competem pelo escoamento dos seus produtos agrícolas e industriais. O mesmo acontece com a China e a África do Sul na competição pelo investimento em África. Ao nível político sucede o mesmo cenário: a China e a Rússia são potências instaladas e satisfeitas no seio do Conselho de Segurança da ONU, e a Índia, o Brasil e a África do Sul batem-se por alterar o peso neste organismo estruturante da ONU. Daí a sua aliança no grupo IBSA, excluindo a China e a Rússia. O mesmo tipo de incongruência surgiu igualmente na cimeira das alterações climáticas de Copenhaga, onde a formação do grupo BASIC excluiu a Rússia, cujo estatuto 1 Mendo Castro Henriques e António Paradelo, “Uma Fórmula de Soft Power”, in Nação e Defesa, nº113, 3ª série, Lisboa, 2006, p. 113 109 político foi mais associado ao conceito de grande potência tradicional do que de potência emergente. ¾ A quarta e última conclusão reside na natureza do estatuto dos EUA enquanto superpotência. As razões que sustentam este estatuto são fundamentalmente três: (1) Os EUA continuam a ser encarados como a superpotência pelos restantes Estados do sistema. O facto de a sua intervenção ser requisitada em conflitos muito distantes do seu território evidencia bem a imagem de potência hegemónica que detém. Este reconhecimento é a base da sua supremacia. (2) Os EUA possuem, de facto, capacidades de hard power e de soft power que lhes conferem um estatuto que ainda permanece superior ao de potências como a China. (3) Os constrangimentos regionais que muitos dos BRICS enfrentam não existem nos EUA, que têm ainda a vantagem de estarem localizados numa zona geográfica mais isolada do resto do mundo e, portanto, mais difícil de sofrer um ataque perpetrado por outra potência (sobretudo pelo meio terrestre). É certo que poder-se-ia interpretar o Irão, a Arábia Saudita, a Palestina, a Síria, ou o grupo terrorista Al-Qaeda como constrangimentos (embora de cariz internacional, e não regional), mas o facto é que estes atores também não estão a alinhar com a Rússia, China, Índia ou Brasil. Na realidade, tanto a Rússia como a China, a Índia ou o Brasil alinham com os EUA na luta contra o terrorismo e contra a proliferação nuclear. Significa, portanto, que os constrangimentos que os EUA enfrentam não são apoiados por nenhuma outra grande potência. Na prática, isto significa que o seu estatuto de superpotência é novamente confirmado pela grande maioria das grandes potências do sistema internacional. Em suma, a ordem internacional atual confirma o papel dos EUA como potência hegemónica, mas espelha cada vez mais o caminho para um mundo interdependente, interpolar ou multipolar, onde os BRICS assumem um peso cada vez maior. Perante um mundo em constante mudança, ficam inevitavelmente por abordar alguns aspetos do tema em estudo. Não obstante, foram apontadas pistas conclusivas sobre a índole dos BRICS. Espera-se, com esta investigação, contribuir para um melhor conhecimento do seu papel na evolução da ordem internacional atual. 110 Bibliografia AMBROSIO, Thomas, “Russia's quest for multipolarity: A response to US foreign policy in the post cold war era”, European Security, vol. 10, nº 1, Routledge, Londres, 2001, pp. 45 – 67 AXELROD, Alan, Eisenhower on Leadership: Ike’s Enduring Lessons in Total Victory Management, Jossey-Bass, São Francisco, 2006 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz, "Brazil as a Regional Power and its Relations with the United States", Latin American Perspectives, vol. 33, nº3, Sage Publications, 2006, pp. 12 – 27 BRAINARD, Lael e MARTINEZ-DIAZ, Leonardo, Brazil as an Economic Superpower?, Brookings Institution, Washington, 2009 BUDNY, Daniel, “The Global Dynamics of Biofuels: Potential Supply and Demand for Ethanol and Biodiesel in the Coming Decade”, Brazil Institute Special Report, nº 3, Woodrow Wilson International Center for Scholars, Washington, 2007, pp. 1 – 7 BULL, Hedley, The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics, Palgrave, 3ª Edição, Nova York, 2002 BUZAN, Barry, Regions and Powers: The Structure of International Security, Cambridge University Press, Cambridge, 2003 BUZAN, Barry, The United States and the Great Powers: World Politics in the TwentyFirst Century, Polity Press, Cambridge, 2004 BUZAN, Barry, e FOOT, Rosemary (edit.), Does China Matter? 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Anexo II Restantes Quadros da Fórmula Ranking da Participação em Organizações Internacionais (POI) País França Itália Canadá Alemanha EUA Reino Unido Brasil Rússia Turquia Japão Argentina Austrália Índia México China África do Sul Indonésia Venezuela Arábia Saudita Irão Total de organizações internacionais em que participa 85 76 75 74 71 71 70 69 68 66 65 63 63 63 61 59 55 55 51 50 Ranking da Língua (L) Rank 1 2 3 4 5 5 6 7 8 9 10 11 11 11 12 13 14 14 15 16 País China EUA/R. Unido /Austrália/Canadá Argentina/México/Venezuela Arábia Saudita Índia Brasil Rússia Japão Alemanha França Itália Turquia Irão Indonésia África do Sul Língua Mandarim Inglês Espanhol Árabe Hindi Português Russo Japonês Alemão Francês Italiano Turco Persa/Farsi Indonésio Zulu Falantes nativos (milhões) 845 328 329 221 182 178 144 122 90 67 61 50 31 23 10 Fonte: Ethnologue Languages of the World Ranking da Capacidade Nuclear (CN) Fonte: World Factbook da CIA País Rússia EUA França China Reino Unido Índia Arsenal de Armas Nucleares (estimativa por intervalo) 11000 8500 ~300 240 225 80-100 Rank 1 2 3 4 5 6 Fonte: Federation of American Scientists Rank 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15