DOIS LIVROS DIDÁTICOS DE EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA DIFERENTES: MECANISMOS DE APROPRIAÇÃO DAS PRESCRIÇÕES OFICIAIS* Juliana Miranda Filgueiras - PUC/SP O ensino de Educação Moral e Cívica (EMC) tornou-se obrigatório no Brasil em 1969, sem ainda possuir um programa curricular específico. Porém, em 1970, já existiam diversos livros didáticos publicados para a disciplina e a produção editorial cresceu aceleradamente nos anos seguintes. Em 1970, a Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC) publicou os “Subsídios para Currículos e Programas Básicos de Educação Moral e Cívica”. Estes subsídios permaneceram como indicação aos programas de ensino da disciplina. Em 1971, o Conselho Federal de Educação (CFE) apresentou o Parecer n° 94, que fixou os “Currículos e Programas de Educação Moral e Cívica para todos os níveis de ensino”. Uma das funções da CNMC era assessorar o Ministério da Educação na avaliação dos livros didáticos de EMC. A Comissão deveria aprovar os livros didáticos que seriam posteriormente homologados pelo Ministro da Educação. Os diversos livros de EMC produzidos ao longo da existência da disciplina tomavam como base um dos dois programas curriculares (da CNMC ou do CFE) ou mesclavam indicações de ambos os programas. Entretanto, alguns autores elaboraram livros didáticos que não seguiam integralmente as prescrições oficiais. A presente comunicação tem por objetivo apresentar a constituição de dois livros didáticos diferentes: o primeiro, de Leny Werneck Dornelles, publicado em 1971, logo após a implantação da disciplina; o segundo, de Heloísa Dupas Penteado, publicado em 1984, no fim da Ditadura Militar. Estes livros demonstraram que os autores buscavam diversos mecanismos para alterar as prescrições oficiais. As autoras De modo geral os autores dos livros didáticos de EMC dividiam-se em quatro grandes grupos: educadores, religiosos, membros do Exército e autores profissionais. As duas autoras que serão analisadas nesta comunicação eram educadoras. Leny Werneck Dornelles publicou seu livro pela editora Ao Livro Técnico. Dornelles era professora do Instituto de Educação da Guanabara. Heloísa Dupas Penteado publicou pela editora Loyola. Penteado era professora da rede estadual de ensino e professora de Prática de Ensino de Sociologia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Essas autoras interpretaram os programas para a disciplina de modos diversos. Compreenderam inclusive o significado de uma Educação Moral e Cívica de formas distintas, expondo conceitos diferentes dos oficiais ou, até mesmo, * A presente comunicação é parte de minha dissertação de mestrado intitulada A Educação Moral e Cívica e sua produção didática: 1969-1993. deixando de expor determinados conteúdos nos livros didáticos. Na análise dos livros, essas questões ficarão expostas. Estrutura dos livros, prefácios e orientações Os prefácios e as orientações presentes nos livros didáticos de EMC permitiram apreender os discursos dos autores/editores sobre o objetivo e a finalidade da disciplina. Eles possibilitaram verificar se os objetivos propostos pelos livros eram os mesmos objetivos indicados pelos programas curriculares oficiais. Os livros de Dornelles (1971) e Penteado (1984) oferecem, além dos livros para o aluno, manuais para o professor, em anexo. Estes guias apresentam a definição de EMC das autoras, explicam sobre a escolha dos conteúdos programáticos, indicam a metodologia de ensino-aprendizagem e sugerem atividades a serem realizadas em sala de aula. Ambas a autoras recomendam como metodologia de ensino o Método Ativo, baseado em situações problemas. O livro de Penteado (1984) ilustra bem a proposta de Método Ativo. Seu livro intercala texto, ilustrações e exercícios. As ilustrações compõem com o texto, estão incorporadas a ele. E são fundamentais para o entendimento do capítulo. Cada capítulo apresenta textos e exercícios entrelaçados. Os exercícios vão sendo pedidos ao longo do capítulo e são o estímulo para a discussão dos assuntos apresentados. Não existe um grande texto teórico. O livro utiliza figuras ao longo de todos os capítulos que são em seguida interrogadas pelas perguntas. A proposta é que o aluno reflita sobre sua realidade. Cada capítulo incita para que o aluno dê sua opinião e pense sobre o tema tratado. Dornelles (1971), na apresentação aos professores, define a finalidade da Educação Moral e Cívica: A finalidade máxima da instituição da Educação Moral e Cívica como disciplina e prática educativa obrigatórias no sistema educacional brasileiro prende-se à necessidade de fortalecer, através da escola, os instrumentos necessários à formação de uma consciência social para uma cidadania efetiva, isto é, instrumentalizar o indivíduo, a fim de que ele possa vir a ser um cidadão consciente, capaz de praticar uma cidadania efetiva. Desenvolver em cada indivíduo a sua capacidade de pensar nos problemas que o envolvem, como pessoa e como membro da sociedade, criando soluções para cada situação que lhe seja configurada, captando e respondendo adequadamente aos apelos que a vida social e afetiva lhe oferecem é o desafio que é lançado à escola, é a parte que lhe cabe na formação do cidadão consciente (DORNELLES, Guia do Professor, 1971: 1). De acordo com Penteado (1984), seu livro de EMC era um trabalho feito a partir da perspectiva das Ciências Sociais. O manual pretendia ser um instrumento de trabalho para professores, permitindo lidar com os alunos, tendo como ponto de partida seus valores morais e cívicos, “visando transpor a visão etnocêntrica do mundo e assim alargar a compreensão humanística do próprio ser humano”. Para explicar a função da disciplina EMC, Penteado apresenta a definição de moral: MORAL é a parte da FILOSOFIA que se ocupa do conjunto de regras de conduta consideradas válidas (ética). Como tal, é um campo de conhecimento de natureza teórica e abstrata que tem ficado reservado a estudantes no mínimo de cursos de nível superior. Tem-se esquecido com freqüência que este campo de conhecimento tem as suas raízes na realidade concreta vivida pelo homem. O ser humano é um ser moral. Onde quer que ele esteja, vive cotidianamente comportamentos e partilha situações que lhe colocam a questão do bem e do mal, do certo e do errado, do bom e do ruim. A consciência dos critérios que orientam esses julgamentos é elemento decisivo para que o homem viva realmente a sua dimensão HUMANA, ou seja a sua dimensão MORAL (PENTEADO, Livro do professor, 1984: 4-5). Segundo Penteado, os objetivos gerais a serem atingidos pelos estudantes eram: 1. Discriminar a Moral como uma característica essencialmente humana; 2. Identificar o Civismo, na sua mais ampla acepção, como um aspecto da Moral; 3. Compreender a Moral e o Civismo como um produto da vida social dos homens; 4. Sensibilizar-se para assumir, conscientemente, os aspectos morais e cívicos de seus comportamentos; 5. Dominar alguns conceitos básicos das Ciências Sociais, indispensáveis para a compreensão da Moral e do Civismo; 6. Aplicar esses conceitos na análise dos aspectos “moral” e “cívico” dos diferentes comportamentos humanos; 7. Conhecer a divisão político-administrativa atual do Brasil e ser capaz de ler o mapa político do Brasil; 8. Conhecer os símbolos nacionais e saber se comportar em relação a eles. Dornelles e Penteado apresentaram modos de definir a Educação Moral e Cívica diferenciados. As prescrições oficiais afirmavam que a disciplina EMC deveria tornar a criança um cidadão “qualificado e eficiente”, que deveria adquirir comportamentos desejáveis, valores cristãos, um cidadão que precisava aprender a obedecer e servir à Pátria. Diferentemente da proposta oficial, Dornelles propõe instrumentalizar o aluno “a fim de que ele possa vir a ser um cidadão consciente, capaz de praticar uma cidadania efetiva” (DORNELLES, 1971: 1). A escola deveria desenvolver a capacidade de a criança e o jovem pensar nos problemas sociais existentes. Penteado (1984) vai mais longe, opondo-se explicitamente aos programas oficiais. A autora relacionou a moral e o civismo às Ciências Sociais, compreendendo-os como produtos da vida em sociedade, que mudam de acordo com os tempos e os lugares. A moral e o civismo eram construídos historicamente. Para a Comissão Nacional de Moral e Civismo, a consciência moral era algo inato ao homem e não adquirido ao longo da vida, eram valores universais e imutáveis retirados dos valores cristãos. Os conteúdos veiculados nos livros didáticos Os conteúdos da maioria dos livros didáticos de Educação Moral e Cívica giram em torno de três grandes temas: Civismo, Estado brasileiro e Moral. Estes temas apresentam por sua vez subitens: cidadania, patriotismo, nacionalismo, o trabalho e o trabalhador, a formação do povo brasileiro, a realidade brasileira, a família e a religião. Em um primeiro momento, verificou-se a organização dos índices dos livros didáticos de Dornelles (1971) e Penteado (1984), observando-se assim a disposição dos conteúdos, a prioridade e a ordem em que estavam estruturados os temas. O livro de Dornelles (1971) apresenta quatro grandes capítulos: - Símbolos da Pátria, em que a autora contextualiza o surgimento dos símbolos dos países, como a bandeira, o hino nacional e o selo. Explica para que servem e seus significados; - Dinheiro é para Gastar?, em que a autora discute a relação entre trabalho, produção e a satisfação das necessidades (consumo), além das muitas formas de se usar o dinheiro, tanto pelo indivíduo como pelo governo; - Milhões de Pessoas, momento em que é descrito as características do território e o processo de formação do povo brasileiro; - Quem governa?, em que a autora fala sobre o surgimento e a necessidade das leis e descreve a organização política do Brasil, a divisão dos Três Poderes e suas funções. Alguns temas considerados importantes nos programas curriculares, como moral, família e religião, não aparecem no índice e não são discutidos ao longo do livro de Dornelles. Penteado (1984) divide os assuntos do livro em cinco unidades: - A moral, em que é discutido o conceito de moral como uma característica desenvolvida pelo homem. É explicado o que são normas e leis, quais os direitos e deveres dos cidadãos brasileiros e os direitos e deveres humanos gerais, estabelecidos pela Declaração dos Direitos do Homem; - O civismo, em que é apresentado o conceito de civismo, são identificadas algumas datas cívicas, quais são os símbolos nacionais e é discutido o que são vultos nacionais, internacionais e porque são pessoas consideradas importantes; - A família, em que é descrito os modelos de família que existem, de acordo com as diversas culturas; - A religião, momento em que são apresentadas as diversas religiões que existem no país, as diferenças entre as normas de comportamento preconizadas pelas inúmeras religiões. Analisam-se as mudanças por que passaram as religiões ao longo dos tempos e conceitua-se o que é sincretismo religioso; - O Estado Brasileiro, em que se conceitua o que é país, pátria, Estado e estados, localiza-se no mapa do Brasil os estados e regiões. Por último é descrito organização política do Brasil e suas funções. Dornelles e Penteado ao selecionarem os assuntos que deveriam ser discutidos nos livros, escolheram somente alguns temas propostos nos programas curriculares oficiais. Diversos temas indicados pelas prescrições não apareceram. É interessante verificar que um tema que era considerado fundamental para a CNMC a questão da Segurança Nacional -, foi excluído de ambos os livros. Civismo e cidadania As definições de civismo e cidadania eram muito próximas. Em geral o cidadão deveria ter consciência dos direitos políticos e civis e cumprir os deveres cívicos, principalmente: a obediência às leis, o voto, o Serviço Militar, o respeito aos bens públicos, o pagamento de taxas e impostos e contribuir para o progresso do país. De modo geral a definição de civismo estava relacionada com o homem em sua prática de cidadão brasileiro. O programa curricular elaborado pela CNMC apresentava a definição de civismo como sendo caráter, patriotismo e ação. Observou-se que o civismo deveria ser não somente a atuação consciente do cidadão para o bem comum, mas a atuação do bom cidadão. O civismo foi compreendido como uma virtude moral, e como a moral é religiosa grande parte dos livros apresentavam a dicotomia entre bem e mal. Os livros que se basearam diretamente no programa da CNMC expõem esta definição de civismo. Entretanto, foram publicados livros, com definições diferentes da apresentada pela CNMC. Penteado (1984) definiu civismo como a consciência dos direitos e deveres do ser humano dentro das fronteiras do seu país. A autora não se baseou na acepção religiosa de moral, predominando a concepção de civismo ligado ao Estado, ao cumprimento das leis, dos direitos e deveres do homem. A cidadania é definida pelos livros didáticos como o gozo dos direitos e deveres civis e políticos do cidadão de um país. Cada direito corresponderia a uma obrigação a ser cumprida. A cidadania deveria ser exercida, praticada pelos educandos desde a escola. O bom exercício da cidadania pressupunha ações como: participar, colaborar, cooperar e conviver. Os vultos nacionais O culto aos vultos nacionais era considerado essencial para a EMC, pois servia como exemplo de civismo para os alunos. Eram pessoas que viveram para o engrandecimento do Brasil, que exerceram suas funções do melhor modo possível ou que tiveram grande produção intelectual, cientifica, artística, etc. Os nomes que mais apareciam nos livros didáticos eram: Tiradentes, José Bonifácio de Andrada e Silva, Visconde de Mauá, Duque de Caxias, Carlos Chagas, Rui Barbosa, Santos Dumont, Ana Néri, Olavo Bilac, Oswaldo Cruz, Castro Alves, Princesa Isabel, Marechal Rondon, José de Anchieta, Villa-Lobos, Marechal Deodoro da Fonseca, D. Pedro I, D. Pedro II, Euclides da Cunha, Visconde do Rio Branco, Benjamim Constant, Floriano Peixoto, etc. Alguns poucos livros consideravam além das pessoas tradicionais, outros nomes como vultos nacionais. O livro de Penteado (1984) é um destes casos. A autora expõe toda uma explicação sobre o significado dos vultos nacionais: a grandeza de um povo pode ser percebida, entre outras coisas, pelo conjunto de homens ilustres, de pessoas que, através dos tempos, se destacaram em todos os campos da atividade humana, seja na literatura, nas artes, na vida militar, na ciência, na economia e nos demais campos. Essas pessoas foram consideradas pela história como vultos nacionais. Os vultos nacionais são, portanto, cidadãos que se destacaram no conjunto da população de um país, deixaram seus nomes registrados na memória do povo e devem ser conhecidos e respeitados por todos. (1984: 85) Além dos nomes que já haviam sido edificados pela história como vultos nacionais, Penteado acrescenta pessoas contemporâneas, que estavam vivas e em alguns casos tinham participado da luta contra a Ditadura Militar: Mário Cravo, Jorge Amado, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Lima Barreto, Carlos Diegues, Glauber Rocha, Paulo Freire e Plínio Marcos. Estado Brasileiro Dornelles (1971), ao discutir as formas de governo, descreve que um bom governo deveria providenciar meios para que o povo pudesse trabalhar em paz, produzir, ter o seu trabalho pago por um preço justo, para que pudesse obter as coisas de que precisasse. Um bom governo deveria ajudar o povo a melhorar o seu trabalho, a sua saúde, a sua educação. Para fazer tudo isto, o governo precisaria de dinheiro que seria obtido por meio de taxas e impostos. (1971: 36). Com isso o governo produziria serviços para o bem comum, para o povo, providenciando recursos e meios de ajudar os cidadãos a produzir mais e viver melhor (1971: 38). Penteado esclarece de uma maneira interessante como as leis surgem: “quando uma norma se torna muito importante para um grande número de pessoas, ela dá origem a leis, criadas pelas autoridades” (1984: 44). E qual a sua finalidade: “As leis existem para garantir os direitos e estabelecer os deveres que as pessoas têm, por viverem num município, num estado, num país, no mundo (leis internacionais)” (1984: 46). Dornelles esclarece a função das leis: “Para garantir o bom viver das pessoas, existem certas regras, ou normas, ou regulamentos, a que chamamos de leis. As leis são feitas pelos homens com a finalidade de ajudar as pessoas a viver bem umas com as outras” (1971: 70). Muitos livros apresentam detalhadamente o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Ao tratar das formas de eleição, esclarecem que os representantes do Poder Legislativo eram escolhidos pelo voto direto da população, mas o Presidente da República era eleito de forma indireta, pelos senadores e deputados. Ao definir a função do Poder Legislativo, o Senado e a Câmara dos Deputados, Dornelles esclarece que são eles os responsáveis por fazer as leis, e entre elas, a Constituição do Brasil. Mas esclarece também, que “a Constituição pode ser feita pelos legisladores, como pode ser feita pelo Poder Executivo, em condições especiais” (1971: 79). A autora não explicita quais são essas “condições especiais”, mas é possível aferir que ela referia-se à Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969, outorgada pela Junta Militar. Ao tratar do Poder Executivo os manuais explicam como é realizada a eleição para Presidente da República. O dever do voto era constantemente ressaltado nos livros didáticos, mas a população desde 1965, por meio do AI-2, não votava mais para presidente da república. Segundo Dornellles, “a atual Constituição (1967) determina que o presidente seja eleito pelas pessoas que formam o poder legislativo – deputados e senadores. Esse tipo de eleição é chamado eleição indireta, porque o povo escolhe os legisladores e, depois, os legisladores escolhem o presidente” (1971: 81). Dornelles, de modo interessante, define a função do Governo: para que um governo seja bom e útil para os cidadãos, é importante que os três poderes – legislativo, executivo e judiciário – tenham os seus poderes iguais, isto é, que um não seja mais poderoso, não mande mais que os outros – esta é uma importante regra do jogo. Outra idéia importante é lembrar que cabe aos cidadãos, isto é, ao povo, organizar o seu governo e dele participar, seja no município, no estado ou território, ou no país em que você vive (1971: 84). Dornelles (1971) diferente de outros autores não justifica o “regime de exceção”, e descreve como seria um Governo, de fato, democrático, com os três poderes iguais, e em que o cidadão participasse dos espaços de decisão e atuação. O Povo Brasileiro Os livros que tratam do povo brasileiro, de modo geral, iniciam descrevendo a sua formação. Apresentam as três principais raças ou etnias formadoras – o branco, o índio e o negro –, suas características, contribuições e heranças para a constituição da nacionalidade brasileira. São citados também outros imigrantes como: os italianos, os japoneses, sírios, árabes, turcos, libaneses, espanhóis, alemães, russos, etc. Todas essas raças teriam contribuído para a formação do homem brasileiro. Dornelles foi uma das únicas autoras a descrever a forma como os negros foram “incorporados” ao povo brasileiro: Os negros eram caçados como animais, negociados e transportados como mercadorias e, aqui chegados, trabalhavam de graça para um dono – eram escravos. Escravos sem qualquer direito, procurando viver à sua própria maneira, numa terra que não era a deles, fazendo trabalhos novos, servindo a um senhor que tinha costumes também diferentes (1971: 54) Moral Penteado é uma das autoras mais criativas ao explicar o que é a moral. Em um primeiro momento a autora elabora exercícios que demonstram que a moral não é a mesma em todos os lugares e que é diferente de um tempo para outro. Em seguida ela apresenta a definição: A Moral é um conjunto de normas que orienta o comportamento das pessoas, na sua vida, dentro dos grupos de que participam (1984: 21). As normas de um mesmo lugar variam de tempo em tempo. Da mesma forma, as normas podem ser diferentes de um lugar para outro, na mesma época (1984: 21). Para fazer nossa moradia, abrigar o nosso corpo, conseguir nossa comida e armazená-la, criar os nossos filhos seguimos “normas” de comportamento inventadas pelo próprio homem e que variam de lugar para lugar e de um tempo para outro. O conjunto dessas normas constitui o que chamamos de Moral (1984: 30). Para Penteado, a moral não é universal, variando “de lugar para lugar e de um tempo para outro”. E ela é criada pelo homem, não por Deus. Uma das discussões mais interessantes presentes nos livros didáticos diz respeito a questão da moral como algo universal. Nos livros em que a religião é a base da moral sempre é afirmado que a moral é universal, pois os preceitos religiosos os são. Porém, os livros que não relacionam diretamente moral à religião, consideram essa última apenas uma das formas de transmitir códigos morais. Penteado (1984) propõe uma definição de moralidade humana enfocada no contexto histórico e social: ...os homens inventam “normas de comportamento” que orientam a sua reunião, sua vida em comum e as atividades que praticam juntos, quer sejam de trabalho ou de simples diversão. Essas normas que os homens produzem não fazem parte do seu corpo. Se fizessem, seriam iguais para todos os homens do mundo. Elas são um produto da sua inteligência e baseiam-se nas necessidades do seu corpo. Portanto, são os homens que criam a maneira de se comportar (1984: 37). Dornelles (1971) priorizou a discussão cívica em seu livro e não apresentou capítulos sobre moral. Religião Alguns autores discutiram a religião como uma instituição cultural que faz parte da sociedade e que se propõe a ajudar o homem a enfrentar seus problemas. Penteado compreendeu a religião como uma manifestação característica do ser humano, que existia tanto entre os povos primitivos da atualidade como entre povos civilizados e altamente desenvolvidos (1984: 123). A religião seria uma forma de conhecimento e de explicação da realidade. A autora afirmou que as religiões sofreram mudanças ao longo dos tempos. Para exemplificar a afirmação, penteado descreve as mudanças por que passou a religião cristã e suas várias divisões: igreja católica, protestantismo, calvinismo, igreja ortodoxa, espiritismo. O Candomblé e a Umbanda foram apresentados em poucos livros. A CNMC procurava, nas avaliações dos livros didáticos, retirar qualquer menção a essas religiões. Somente alguns livros da segunda metade dos anos 80 em diante descreveram-nos. A maioria dos autores consideravam o Candomblé e a Umbanda como rituais de magias, típicos do Nordeste, principalmente da Bahia, influenciados pelo grande número de escravos negros que lá se introduziram. Eram vistos simplesmente como folclore, tradições e costumes regionais. Penteado (1984) modifica essa visão ao discutir o sincretismo religioso: “Foi a mistura dos elementos religiosos contidos na religião dos portugueses, dos índios, e dos africanos que deu origem à religião conhecida entre nós como Umbanda” (1984: 150). A família Diversos livros didáticos faziam críticas à instabilidade da família moderna, que por diversos motivos estaria ameaçada: as condições da vida urbana que não permitiriam mais famílias numerosas; a emancipação da mulher; a necessidade da mãe ter que trabalhar fora de casa; a interferência do Estado em funções que eram de direito da família - como a educação. Estas críticas eram as mesmas definidas pelo General Moacir Araújo Lopes (membro da CNMC e um dos principais idealizadores da disciplina EMC), como causas da desestruturação familiar (LOPES, 1971). Todavia, Penteado (1984) ressaltou a família por uma perspectiva distinta. A autora relatou as diferentes organizações familiares existentes: famílias poligâmicas ou monogâmicas; famílias simples (pai, mãe, filhos) ou compostas (parentes, descendentes de várias gerações morando juntos), a concepção de família de acordo com as diversas culturas. Penteado procurou mostrar que existiam muitas idéias de organização familiar. Cada povo, em um determinado tempo, constituía um tipo de família. Uma breve conclusão Primeiramente faz-se necessário reforçar a afirmação de que existiram livros que não seguiram de forma rígida o padrão determinado por nenhum dos dois programas curriculares oficiais para a disciplina Educação Moral e Cívica. Esses livros demonstraram como os autores e editores se apropriaram das prescrições oficiais e qual entendimento faziam dos programas curriculares. Os livros expõem os temas que foram considerados prioritários e os que não foram, e principalmente, mostram como esses temas eram transformados em saberes a serem ensinados. Dornelles escreveu em 1971, no auge do Regime Militar. Para a autora a Educação Moral e Cívica não incluía a discussão sobre moral ou sobre religião. Seu livro expunha muito mais as questões do civismo, da cidadania, o conhecimento dos símbolos nacionais, o estudo do Estado Brasileiro, sua organização e estrutura, as instituições e seus problemas, o trabalho e as relações em torno dele. Conhecer a realidade brasileira, conhecer suas instituições, sua estrutura governamental e a inserção no mundo do trabalho era o fundamental para a formação cívica dos estudantes. Penteado pensou a EMC pela perspectiva da Sociologia, pois a moral e o civismo eram produtos da vida social dos homens. A moral era um conjunto de normas que orientava o comportamento das pessoas em sua vida, dentro dos grupos de que participava. Ela variava de lugar para lugar e de um tempo para outro, variava de acordo com a sociedade, portanto não poderia ser universal. A moral dependia do contexto histórico e social. O civismo foi compreendido como o mais alto grau da moral, pois era a consciência das regras estabelecidas por um país. Dornelles (1971) e Penteado (1984) basearam-se em um civismo e uma moral vinculados ao Estado e não subordinados à religião ou a Igreja Católica. Esta comunicação pretendeu mostrar que o esforço dos diversos autores em escrever livros para a disciplina Educação Moral e Cívica, ora de acordo com as prescrições oficiais, ora tentando burlar, suprimir e modificar essas prescrições demonstra que o livro didático é dependente das relações de força existente entre os diferentes grupos sociais e políticos de uma determinada época. As análises dos livros de Dornelles (1971) e Penteado (1984) foram fundamentais para se compreender os mecanismos de apropriação e resistência aos programas curriculares oficiais realizados pelas autoras. Os livros não fugiram totalmente ao padrão, e nem era possível, pois existia todo um mecanismo de controle sobre sua produção, desde o grande controle oficial, exercido pela CNMC, até o controle da própria editora. As autoras diante de seu contexto encontraram mecanismos para modificar as prescrições oficiais. Bibliografia BRASIL. Secretaria de Estado da Educação. Comissão Estadual de Moral e Civismo. Educação Moral e Cívica. Legislação Federal e Estadual. Brasília, s.d. Decreto-Lei nº. 869, de 12 de setembro de 1969. Parecer n° 94, do CFE, de 4 de fevereiro de 1971, Currículos e Programas de Educação Moral e Cívica. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Comissão Nacional de Moral e Civismo. Subsídios para Currículos e Programas Básicos de Educação Moral e Cívica. Prescrições sobre currículos e programas básicos de Educação Moral e Cívica nos três níveis de ensino: (Artigo 4º do Decreto-lei nº. 869/69). Brasília, 1970. DORNELLES, Leny Werneck. Pátria e Cidadania: EMC. 4º ano. Guia do Professor. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1971. LOPES, General Moacir Araújo. Moral e Civismo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. PENTEADO, Heloísa Dupas. O homem, os lugares, os tempos. Educação Moral e Cívica. 6ª série, 1º grau. São Paulo: Loyola, 1984.