artigo ENEM SEM EM CLÁUDIO BUFFARA – RIO DE JANEIRO, RJ INTRODUÇÃO Há algumas semanas decidi, pela primeira vez na vida, examinar com cuidado uma prova de Matemática do ENEM. Baixei então, do site do Inep, a prova aplicada em 2013. Numa primeira leitura, constatei que o tema “proporcionalidade” foi o que ocorreu com maior frequência, em 18 das 45 questões, tanto diretamente quanto sob a forma de frações ou porcentagens ou escalas de mapas ou semelhança de figuras geométricas, e que 14 questões dependiam da interpretação de gráficos ou tabelas. Observo que esses dois tópicos são amplamente abordados nos programas de Matemática do ensino fundamental (1o ao 9o ano). A HEGEMONIA DA CONTEXTUALIZAÇÃO Essa primeira leitura, na diagonal, como se diz, confirmou o que eu já havia lido e ouvido sobre o ENEM: todas as questões eram contextualizadas, ou seja, pretendiam apresentar aplicações da Matemática ao “mundo real”. De fato, questões de cunho abstrato foram completamente banidas do exame. Um artigo publicado nesta Revista, [1], já tratou da dificuldade de elaborar 6 | no. 85 | revista do professor de matemática *AMAR25DOM20* *AMAR25DOM20* 2013 QUESTÃO 139 A razão que represent reservadas do setor 3 em A razão que desse mesmo setor édo s reservadas QUESTÃO 139 EXCESSO DE QUESTÕES FÁCEIS Lendo a prova, também fiquei com a impressão de que quase todas as questões eram fáceis. Talvez até demais. De fato, algumas podiam mesmo ser resolvidas apenas com Matemática de “primário”, ou seja, aquela que é aprendida até o 5o ou 6o ano da escola, e com uma pequena dose de bom-senso. Tomemos, por exemplo, a questão 139 da prova amarela 3 (neste artigo, a numeração das questões será sempre a da prova amarela do ENEM 2013): ENEM sem EM 30,95% 14,76% 3,57% Brasil São 14,76% Paulo (Estado) São Paulo (Capital) Uma loja acompanho de doisQUESTÃO produtos, A 141 e B, fevereiro e março de 2012 90 Guarulhos 3,57% Fonte: IBGE, 2002-2008 (adaptado). 80 Brasil São percentuais Paulo São Analisando os dados doPaulo gráfico, qual a Analisando os (Estado) dados percentuais gráfico, (Capital) doGuarulhos diferença entre o maior e o menor centro em crescimento 70 60 90 50 80 Fonte: IBGE, 2002-2008 qual a diferença entre o maior e o menor centro em(adaptado).40 no polo das indústrias? 30 crescimento no polo das indústrias? Analisando os dados percentuais do gráfico, qual a20 A 75,28 a. 75,28 b.entre 64,09o maior c. 56,95 45,76centro e. 30,07 diferença e od. menor em crescimento10 B 64,09 no polo das indústrias? C Apesar 56,95 da redação sofrível da questão (que deveria ser “qual a diferença entre o maior e o menor A 75,28 D 45,76 percentual de crescimento?”), não é difícil deduzir B 64,09 E 30,07 que a resposta correta, 56,95 (alternativa C), é obtiC 56,95 140 QUESTÃO da subtraindo-se o menor percentual indicado no D 45,76 gráfico do maior. Em um certo teatro, as poltronas são divididas em E 30,07 setores. A figura apresenta a vista do setor 3 desse teatro, Ou então a questão a seguir. no qual as cadeiras escuras estão reservadas e as claras QUESTÃO 140 não foram vendidas. QUESTÃO 140 Uma loja ac de dois produto fevereiro e març 0 Número de compradores 40% 20% 35% 15% 30% 10% 5% 25% 0% 20% 15% 10% 5% 0% Número de compradores O problema é que, como mostram pesquisas recentes [2], quem adquire uma dada habilidade matemática de forma abstrata adquire também maior facilidade para transferir essa habilidade, aplicando-a em situações diversas, do que aqueles que adquirem a habilidade no contexto de um problema específico. Naturalmente, o objetivo de uma educação matemática é formar pessoas capazes de adaptar e aplicar seus conhecimentos matemáticos a todo e qualquer tipo de contexto, e não apenas a umas poucas situações que tenham sido vistas na escola. 17 cresce em conforme indústrias, conforme mostra o gráfico. A 70 indústrias, mostra o gráfico. Em proporção, possui a economia que mais cresce B em17 53 17 53 indústrias, conforme mostra o gráfico. C 70 B 53 Crescimento - Indústria 65% 53 53 D 17 C 60% Crescimento - Indústria 70 55% 70 65% 50% E 17 D 53 45% 60% 17 40% 55% 30,95% 35% 70 50% QUESTÃO 141 30% E 17 45% 25% 60,52% Vejo, no entanto, um problema mais sério nessa hegemonia da contextualização. A ausência de questões abstratas numa prova tão abrangente e decisiva como o ENEM fatalmente impactará os currículos de Matemática das escolas. É altamente provável que esses passem a enfatizar cada vez mais as aplicações da Matemática em detrimento da apresentação de tópicos abstratos, que não “caem” no ENEM. A cidade de Guarulhos (SP) tem o 8º PIB municipal A cidade (SP) da temAmérica o 8º PIB do Brasil, alémde doGuarulhos maior aeroporto do municipal Sul. 17 desse mesmo se do Sul. Em proporção, possui a economia que mais A 70 EmBrasil, proporção, a economia que mais cresce em do alémpossui do maior aeroporto da América do Sul. 60,52% boas questões contextualizadas, dificuldade essa que tem produzido algumas falhas no exame. Isso porque, a fim de contornar a complexidade dos problemas reais, a banca do ENEM às vezes produz enunciados confusos, recorre a simplificações excessivas e descreve situações irreais. 2013 70 60 3 20 50 10 40 Janeiro 30 20 10 A loja 10 sorteará um b produto A e outro brinde en 0 Janeiro Qual a probabilidade de feito suas compras em fev A loja sortea 1 A 20 produto A e outro 3 Qual a probabili B 242 feito suas compr Em um certo teatro, as poltronas são divididas em 5 1 Em um certo teatro, as poltronas são divididas C 22 setores. A figura apresenta a vista do setor 3 desse teatro, A 20 em setores. A figura apresenta a vista do setor 3 6 no qual as cadeiras escuras estão reservadas e as claras D 25 S 3 desse teatro, no qual as cadeiras escuras estão reB 242 nãoEforam vendidas. servadas e as claras não foram vendidas. T 7 O R 3 S E T O R Fe 20 E 15 5 C 22 6 D 25 7 E 15 MT - 2º dia | Caderno 5 - AMARELO - Página 20 3 QUESTÃO 139 A cidade de Guarulhos (SP) tem o 8o PIB municipal do Brasil, além do maior aeroporto da América revista do professor de matemática | no. 85 | 7 MT - 2º dia | Caderno 5 - AMARELO - Página 20 ENEM sem EM A razão que representa a quantidade de cadeiras reservadas do setor 3 em relação ao total de cadeiras desse mesmo setor é: a. 17 b. 17 c. 53 d. 53 e. 70 70 53 70 17 17 Ocorre que a inclusão, no enunciado, do gráfico no qual os três pontos estão assinalados, torna a resposta visualmente evidente: o ponto (50, 30) (alternativa E). Enfim, após ter resolvido e analisado todas as questões, concluí que seria perfeitamente possível ir bem nessa prova sem ter cursado o ensino médio. Mais precisamente, fiquei convencido de que Algumas questões eram do tipo “eu olho e vejo”. um aluno que estivesse a ponto de concluir o 9o Vejamos a de número 168. ano do ensino fundamental (a prova do ENEM costuma ocorrer no fim de outubro / início de novemQUESTÃO 168 bro)2013 e que, além disso, tivesse estudado com algum Nos últimos anos, a televisão tem passado por cuidado as provas dos anos anteriores, a fim de se uma verdadeira revolução, em termos de qualidaQUESTÃO 168 QUESTÃO acostumar com o169 formato das questões e de revisar de de imagem, som e interatividade com o telesmais frequentemente cobrados, to- bolos, utiliza pectador. Essaanos, transformação se deve Nos últimos a televisão temà conversão passado poros tópicos Uma cozinheira, especialista emteria fazer uma do verdadeira revolução, termos deEntretanto, qualidade detais uma forma de noacertar, formatono representado figura: sinal analógico para oem sinal digital. condições mínimo, doisnaterços imagem, som e interatividade com o telespectador. Essa muitas cidades ainda não contam com essa nova das questões dessa prova. transformação se deve à conversão do sinal analógico tecnologia. Buscando levar esses benefícios a três para o sinal digital. Entretanto, muitas cidades ainda não Para chegar a essa conclusão, procurei detercidades, uma nova emissora de televisão pretende conscontam com essa tecnologia. Buscando levar essesminar quais questões necessitavam, para sua rebenefícios a três uma emissora televisão truir uma novacidades, torre de transmissão, que de envie sisolução, apenas de conhecimentos matemáticos pretende nova torrejá de transmissão, nal àsconstruir antenas uma A, B e C, existentes nessas que envie sinal às antenas A, B e C, já existentes nessasadquiridos no ensino fundamental. Baseei minha cidades. As localizações das antenas estão reprecidades. As localizações das antenas estão representadasanálise nos parâmetros curriculares nacionais de sentadas no plano cartesiano: no plano cartesiano: Matemática e também no conteúdo de uma coleNela identifica-se a representação de duas figuras geométricas tridimensionais. ção de livros didáticos destinados a alunos do 6o y (km) o são que 34 das 45 questões se ao 9Essas ano figuras [3]. Concluí 70 enquadravam nessade categoria. A um tronco cone e um cilindro. Acho que um aluno de 6o ano chegaria sem grandes problemas à resposta correta: 17/70 (alternativa A). Bastaria que soubesse contar. *AMAR25DOM28* 60 B outras um cone cilindro. As onzee um questões realmente envolviam C um de são pirâmide e um cilindro. tópicos quetronco somente tratados detalhadamenD ensino dois troncos cone. te no médio: de combinatória e probabilidaE dois cilindros. de, funções quadrática, exponencial e logarítmica, C 50 40 30 geometria analítica, QUESTÃO 170 geometria espacial, trigonometria e progressões. 10 Uma falsa relação x (km) Considero que cinco dessas onze questões seO cruzamento da quantidade de horas estudadas com 10 20 30 40 50 60 70 80 90 riam de fato inacessíveis a um aluno normal do 9o o desempenho no Programa Internacional de Avaliação ano,de uma vez que envolviam a função Estudantes (Pisa) mostra queexponencial mais tempo na escola A torre deve estar situada em um local equidistante não é garantia de nota acima162), da média. (decaimento radioativo)(Questão a fórmula A torre deve estar situada em um local equidisdas três antenas. NOTASdo NO PISA E CARGA HORÁRIA (PAÍSES SELECIONADOS)* do volume cilindro (Questão 145), combinações tante das três antenas. O localO adequado para a construção dessa torre NOTAS local adequado para a construção dessa torre (probabilidade de se ganhar na megassena)(QuesNO PISA corresponde ao ponto de coordenadas corresponde ao ponto de coordenadas tão 176), raciocínios combinatórios mais sofisticaA (65 ; 35). 600 a. (65 ; 35) b. (53 ; 30) c. (45 ; 35) dos (número de maneiras distintas de se montar B (53 ; 30). Média d. (50 ; 20) e. (50 ; 30). um colar com quatro pedras de três cores distintas) Finlândia C (45 ; 35). 550 Coreia do Sul Holanda D (50 ; 20). HORAS DE ESTUDO Austrália (dos 7 aos 14 anos) 8 | no. 85 | revista do professor de matemática Japão E (50 ; 30). 4.500 5.000 5.500 6.000 6.500 7.000 7.500 8.000 8.500 9.000 20 A B Rússia Portugal 450 Itália Israel x = 1 → f(x) = – 9/2 + C Por outro lado, as seis questões restantes poderiam, a meu ver, ser resolvidas por um aluno em vias de concluir o ensino fundamental. Vejamos duas delas (as outras quatro são as de números 138, 142, 156 e 175) juntamente com as respectivas soluções que poderiam ser encontradas por um tal aluno: as questões 136 e 166. x = 3 → f(x) = – 9/2 + C QUESTÃO 136 A parte interior de uma taça foi gerada pela rotação de uma parábola em torno de um eixo z, conforme mostra a figura. x = 2 → f(x) = – 6 + C x = 4 → f(x) = C ENEM sem EM (Questão 161), e o conceito de independência em probabilidade (Questão 141). Nesse ponto, o aluno poderia observar que a figura é simétrica em relação ao eixo z (de rotação), que os valores da função são simétricos em relação a x = 2, e que f(2) parece ser o valor mínimo de f(x). A partir dessas observações, ele poderia inferir que o ponto V tem abscissa x = 2 (é claro que esse argumento não é rigoroso, mas o objetivo, aqui, é resolver a questão e não dar uma demonstração formal de uma propriedade da função quadrática). Finalmente, como a ordenada de V é y = 0 ( já que V está sobre o eixo x), deve ser – 6 + C = 0 ou C = 6. A alternativa correta é a E. QUESTÃO 166 O ciclo de atividade magnética do Sol tem um período de 11 anos. O início do primeiro ciclo registrado se deu no começo de 1755 e se estendeu até o final de 1765. Desde então, todos os ciclos de atividade magnética do Sol têm sido registrados. Disponível em: http://g1.globo.com. Acesso em: 27 fev. 2013. A função real que expressa a parábola, no plano cartesiano da figura, é dada pela lei 3 f ( x ) = x 2 − 6 x + C , onde C é a medida da altura 2 do líquido contido na taça, em centímetros. Sabese que o ponto V, na figura, representa o vértice da parábola, localizado sobre o eixo x. Nessas condições, a altura do líquido contido na taça, em centímetros, é a. 1 b. 2 c. 4 d. 5 e. 6 A única coisa que um aluno que nunca viu função quadrática poderia fazer é ir testando valores de x: x = 0 → f(x) = C No ano de 2101, o Sol estará no ciclo de atividade magnética de número a. 32 b. 34 c. 33 d. 35 e. 31 Não é necessário que o aluno conheça a teoria formal das progressões aritméticas para resolver esta questão. Basta que ele extrapole o padrão de regularidade explicitado no enunciado. O 1o ciclo começou no início de 1755 e durou 11 anos. Ou seja, terminou no final de 1765. O 2o ciclo começou no início de 1755 + 11 = 1766. O 3o ciclo começou no início de 1766 + 11 = 1777 = 1755 + 2 × 11. revista do professor de matemática | no. 85 | 9 ENEM sem EM O 4o ciclo começou no início de 1777 + 11 = 1788 = 1755 + 3 × 11. E assim por diante... Seguindo esse padrão, segundo o qual o n-ésimo ciclo começa no início do ano 1755 + (n –1) × 11, e com base nas alternativas fornecidas, o aluno poderia concluir que: o 31o ciclo começará no início de 1755 + 30 × 11 = 1755 + 330 = 2085; o 32o ciclo começará no início de 2085 + 11 = 2096; o 33o ciclo começará no início de 2096 + 11 = 2107. Como 2096 < 2101 < 2107, a conclusão é que, em 2101, o Sol estará no 32o ciclo. Alternativa A. Em suma, além das 34 questões cujas soluções poderiam ser obtidas exclusivamente através do uso de conceitos e técnicas aprendidos no ensino fundamental, não me parece irreal supor que um aluno do 9o ano, adequadamente preparado (mediante o estudo das provas aplicadas em edições anteriores do ENEM), tivesse plenas condições de resolver seis das onze questões restantes, as quais envolviam tópicos abordados apenas no ensino médio. Ou seja, 40 das 45 questões da prova de Matemática do Exame Nacional do Ensino Médio de 2013 eram resolvíveis por um aluno em vias de concluir o ensino fundamental! Ocorre que o ENEM é usado por um número crescente de universidades, em particular as federais, como exame de seleção de candidatos. Isso significa que diversas universidades importantes usam, como critério de seleção, uma prova excessivamente fraca, a qual permite o ingresso, nessas universidades, de alunos insuficientemente preparados. Pois é evidente que um aluno do 9o ano (salvo raríssimas exceções) não tem condições de frequentar, por exemplo, um curso de engenharia, em que Matemática é crucial. Mas esse aluno, se preparado da forma óbvia (tendo estudado provas de anos anteriores), tem condições de obter, pelo 10 | no. 85 | revista do professor de matemática menos na prova de Matemática do ENEM, pontuação suficiente para ingressar numa universidade federal de primeira linha. COMENTÁRIOS FINAIS A se prosseguir a insistência, por parte da banca do ENEM, em questões contextualizadas e de baixo nível de dificuldade, e dada a importância cada vez maior desse exame, não será surpresa encontrar, num futuro não muito distante, cursos de Matemática nas escolas de ensino médio reduzidos a cursinhos preparatórios para o ENEM. Durante três anos, esses cursinhos treinarão seus alunos na resolução de questões contextualizadas de Matemática, a maioria das quais no nível do ensino fundamental. O problema é que, ao adaptarem seus currículos de Matemática às exigências do ENEM, nossas escolas correm o risco de passar a formar alunos que não só estarão habituados a resolver apenas problemas fáceis, em nível de ensino fundamental, como também terão maior dificuldade para aplicar seus conhecimentos matemáticos em contextos inéditos, um requisito básico de vários cursos universitários (e não só na área de exatas) e de quase todos os empregos de alto nível. Esse seria, certamente, um desastroso retrocesso do já combalido ensino de Matemática no Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] Antonio Luiz Pereira, Severino Toscano Melo. ENEM 2009: vazamentos, erros e contextualização. RPM 71 [2] Jennifer A. Kaminski, Vladimir M. Sloutsky, Andrew F. Hecler. Do Children Need Concrete Instantiations to Learn an Abstract Concept? Proceedings of The 28th Annual Conference of the Cognitive Science Society (2006) http://csjarchive.cogsci.rpi.edu/proceedings/2006/ docs/p411.pdf [3] Ênio Silveira, Claudio Marques. Matemática: compreensão e prática. 1a edição. São Paulo: Moderna, 2008. 4 volumes (6o ao 9o ano).