UNI VALI – UNIVERSIDADE VALE DO ITAJAÍ AQUILES DUARTE DE SOUZA IDENTIDADES VELADAS: Fanny: a formação e a educação na cidade de Brusque na década de 1960 Itajaí 2005 AQUILES DUARTE DE SOUZA IDENTIDADES VELADAS: Fanny: a formação e a educação na cidade de Brusque na década de 1960 Projeto de Dissertação apresentado para exame de qualificação no Programa de Pós-Graduação em Mestrado em Educação da Universidade Vale do Itajaí – UNI VALI Orientadora: Itajaí 2005 Prof. a Dr. a Solange Puntel Mostafa AGRADECIMENTOS O reconhecimento ao se concretizar um objetivo, um sonho, um desejo é imanente ao ser humano e eu não s ou absolutamente diferente. Tornar real o que foi um projeto, executar o que foi uma idéia traz em s i a necess idade de agradecer. Neste caso, a elaboração de um memorial de agradecimento é algo tão delicado quanto a própria pesquisa. Deve ser tão acurado quanto os es tudos realizados na elaboração do trabalho científico porque sempre se corre o risco de olvidar de alguém. Por isso, antecipadamente, se eu esquecer de alguém, sinta-se desde já incluído na minha gratidão. Devo começar por alguém ou alguma coisa. “O Coelho Branco colocou os óculos e perguntou: Com licença de Vossa Majestade, devo começar por onde? Comece pelo começo – disse o Rei, com ar muito grave – e vá até o fim. Então, pare.” (CARROL, 1972, p. 86) Assim começarei pelo começo. Agradecendo ao Céu, à Divindade, ao Deus da religião nova e aos Deuses e Deusas das religiões antigas pela trama tão bem elaborada em que teceram minha vida, e que me trouxeram até aqui. Agradecer pela vida que vale a pena ser vivida. Sempre! Agradecer à minha família: na memória de meu pai Dario, à minha mãe Lidya – a melhor cozinheira do mundo, ao meu irmão e minha cunhada – Péricles e Darcy, minhas irmãs – Ili e Iara, meus cunhados , meus sobrinhos. Cada um sabe o quanto me ajudou, incentivou e de que forma. Com certeza fizeram o Mestrado junto comigo. Obrigado. É preciso também agradecer aos amigos. Eles são relações familiares, de parentesco que vão se ampliando sempre. E são muitos. À Família Lana (leia-se ROVIAN) – Jair, Teresa, Jailson, Jéferson e Jaici –, por que sou parte dessa família e há entre nós uma continua troca e interação, nos amamos muito e sabemos o quanto somos importantes uns para os outros. Pela compreensão, estímulo, confiança e generosidade impar que demonstram para comigo em muitos anos eu agradeço de coração. Metade de meu mestrado é deles. À Família Fritzsche (leia-se SULFABRIL) – Sr. Gerd, D. Tânia, Rafael e Sábatha, Roberto, Ricardo e Paulo Eduardo – por me honrarem com seu afeto e confiança, lá se vão já 20 anos. À Carmen de Souza, minha ex-diretora do Colégio São Luis, que me apresentou ao Mestrado em Educação na UNIVALI e pela mão me levou até lá. Aos meus professores do Mestrado. Todos! Pela amizade, companheirismo, partilha, acolhida. À Coordenação do curso, sempre presente e disponível para tantas situações comezinhas. Ao Professor Doutor Luis Felipe Falcão, meu primeiro orientador, exemplo de profes sor, agradeço pela oportunidade de desfrutar de suas aulas e sabedoria impar. Às secretárias do Mestrado Isabel, Núbia e Cris pela gentileza sempre pronta em atender. Às minhas amigas e amigos de aula. As trocas , as partilhas, o reconhecimento dos atributos de cada um, a afetividade, os cafés... Tudo aquilo que fez com fossemos um grupo inesquecível e surpreendente. À Família Moritz (leia-se Farmácia Moritz) – D. Marguit, Bruninho e Cristina, Bruninho Neto e Grazi. Pelo apoio recebido de tantas formas “cremosas”. Ao Doutor Márcio Clóvis Schaefer, filho da inesquecível Dona Edla, figura preciosa na minha formação. À Mônica Bueckmann, à Daniella Athayde Abram, à Regina Pfau e família (também faço parte desta família), à Jô Serafim, às amigas do Clubinho – Lucia, Neidi, Betinha e Heidi, à Rogéria Diegoli e Mariane Zen, minhas amigas , parceiras de ida e volta nas terças-feiras, companheiras, confidentes, incentivadoras, e, como eu mestrandas na área da Educação. Para a família da Rogéria, Dona Marta e Marli e demais, pela amizade, eu sou muito grato. Ao Everaldo, Marlei e Brian Venske pelo amor, atenção e amizade com que me cumulam. Assim também ao Álvaro Luiz Alves e Zete, amigos fiéis de todas as horas, necessidades, confidências e como eles: Baade, Ebas e Rui. À Lenita Siegel e Dona Helga Kamp, ex-chefes, mas sempre amigas e orientadoras. Às pessoas que colaboraram com a realização deste projeto: Dona Dalbérgia e seus familiares que me cederam documentos e fotos inestimáveis. Às professoras e demais pessoas que me ajudaram, elucidaram, es clareceram, contaram, confidenciaram, cochicharam... Ao João e à Cláudia, que esperavam pacientemente enquanto a professora orientadora me atendia em conversas e passeios intermináveis , mas prazerosos. A presença dos dois sempre ajudava a dar uma “quebrada” na tensão e ansiedade do que se tinha por fazer. Aos meus alunos: os que foram, aqueles que são ou ainda, aqueles que virão a ser. Pela oportunidade diária que me dão de reaprender, re-significar e interagir sempre. Pela amizade e confiança que me honram. À as professoras da Banca Examinadora deste trabalho, muito especialmente a minha orientadora, Professora Doutora Solange Puntel Mostafa, pela sua capacidade e presença sempre constante. Fui um privilegiado por contar com sua direção e experiência. Foi professora, orientadora, conselheira, amiga e parceira nessa pesquisa. A todos me declaro muito grato e com todos partilho do resultado deste trabalho. Obrigado! Brusque-SC, outubro de 2005 Aquiles Duarte de Souza RESUMO Objetivou-se com este trabalho investigar a identidade de uma cidade, no seu contexto e abrangência, dentro de uma característica societal do sul do Brasil, em aspectos como: educação, formação, es cola, professores, alunos e sexualidade. Conforme o título que o projeto porta: “Identidades Veladas: Fanny e a formação e a educação na cidade de Brusque na década de 60”, buscou-se nessa identidade encoberta pelo tempo uma nova maneira de contar a memória de uma prostituta e de uma cidade. A pesquisa buscou desvelar a identidade da personagem trazendo à luz s eu passado, sua vida, seu comportamento, suas oscilações e, a partir daí, as inferências dessa presença na formação, e na educação sexual dos jovens da cidade de Brusque. O resgate desta memória social, na fala de três professoras e quatro homensclientes da prostituta Fanny traz à luz o contexto social em que es cola, família e indivíduos s ingulares se entrelaçam na formação cultural de jovens brusquenses na década de 60. No aspecto de des velamento, a pes quis a apresenta resultados inesperados com revelações de parentesco inusitadas, de Fanny com o Duque de Caxias em sua vida pregres sa de esposa de Eduardo de Lima e Silva Herhaum, sobrinho do Duque de Caxias, pacificador de índios na reserva de Ibirama em Santa Catarina na década de vinte do século passado. Palavras-chave: Memória; Identidade; Prostituição. Educação sexual; Brus que; ABSTRACT The research investigates the identity of a city in the south region of Brazil (Santa Catarina State) in aspects such as education, culture formation, school, teachers, s tudents and sexuality. Following the title of this project “Hidden Identities: Fanny: Background and Education in Brusque, in the 60’s ” the research looked for a new way of telling the memory a woman and of a city. The research brought light to the past of a prostitute , her life, her behavior and from that, her pres ence in the formation and sexual education of young of a city in the s outh of Brazil. The rescue of this social memory in the speech of three teachers and four client-men of the prostitute Fanny brings light to the social context in which school, family and singular individuals match in cultural formation of young from Brusque in the sixties. In terms of discoveries, the research presents unespectable res ults with unusual blood relations of Fanny with Duque de Caxias in her married life with Eduardo de Lima e Silva Herhaum, Duque de Caxias nephew, an Indian peacemaker in Indian reserve of Ibirama (Santa Catarina State) in the twenties of last century. The goal of this search, beyond reveal their personalities, actions and consequences in the local society, is also to protect their memoirs, their profile, their meanings. Key-words: Memory; Identity; Sexual education; Brusque; Prostitution. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Francisca dos Anjos de Lima e Silva, a Fanny, em fotografia de 19/01/1981, aos 81 anos ......................................................... 29 Figura 2 – Vista do Rio Itajaí-Mirim e da antiga ponte que ligava os dois lados da cidade .................................................................... 33 Figura 3 – Clube de Caça e Tiro de Brusque – SHCÜTZWEREIN – na enchente de 1960 .................................................................. 34 Figura 4 – Enchente em 1983, vista do centro da cidade de Brusque ........... 34 Figura 5 – Foto de Fanny, tirada em 1920, aos 20 anos de idade, que Eduardo lhe enviou quando já estava em Brusque em 1939, depois de abandoná-lo. Na parte posterior do retrato ele escreveu um “versinho” dedicando a fotografia ........................................... 35 Figura 6 – O jovem Eduardo de Lima e Silva Hoerham, sobrinho-neto do Duque de Caxias, marido da Fanny, em 1920, época de seu casamento ............................................................................ 38 Figura 7 – Índios Xoklengs – Botocudos, na reserva indígena de Duque de Caxias, em 1920, em fotografia feita por Eduardo, marido de Fanny .................................................................................. 39 Figura 8 – Eduardo, Fanny, a pequena Dalbérgia em s ua residência de Ibirama acompanhados pelos mesmos bugres da foto nº 7, agora já “civilizados ” ........................................................................ 40 Figura 9 – Eduardo de Lima e Silva Hoerham, aos 80 anos, em 1980 .......... 41 Figura 10 – Fanny em 1921, um ano após seu casamento com Eduardo ........ 43 Figura 11 – Fanny, um ano após seu casamento (1921), trajada de acordo com a moda de Paris ................................................................... 44 Figura 12 – Eduardo, Fanny e a pequena Dalbérgia em 1922 ...................... 45 Figura 13 – Fanny com seus filhos Dalbérgia, Setembrino, Generino, Laioneli e a babá xokleng ................................................................. 46 Figura 14 – Fanny em 1925, em traje de caça, apresenta com orgulho, sua presa abatida ....................................................................... 47 Figura 15 – Em 1928, Fanny com seu caiaque, nos rios de Ibirama ............. 48 Figura 16 – Fanny, Eduardo e uma visitante da capital federal com seu veículo Ford em Ibirama, no ano de 1925 ............................... 48 Figura 17 – Padres Missionários com índios botocudos, em 1930, na reserva indígena Duque de Caxias. Esses padres que visitavam regularmente a reserva para catequisar os índios eram sempre hóspedes da Fanny e de seu marido, Eduardo .......................... 49 Figura 18 – Fanny com duas jovens auxiliares , separada de Eduardo, em Brusque no ano de 1963 ....................................................... 50 Figura 19 – Fanny e duas de suas colaboradoras, em 1965, no Morro do Rosário, no Santuário de Azambuja. Fanny era uma mulher muito religiosa e freqüentava regularmente a igreja católica de seu bairro, Santa Terezinha ........................................................ 53 Figura 20 – Bicicleta idêntica àquela que a Fanny utilizava para seus “ desfiles” na cidade. Sempre com vestidos coloridos e rodados, bem maquiada, era uma figura que chamava atenção ................ 54 Figura 21 – Fanny, aos 81 anos, em 1981. Uma personagem lendária na cidade de Brusque ......................................................................... 55 Figura 22 – Recém-casada, Fanny sorri feliz para posar para esta fotografia, que seu marido Eduardo mandou tirar em 1922. Mesmo tendo-o abandonado, Fanny sempre o amou e foi por ele amada ............ 56 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 - DO APORTE TEÓRICO E METODOLÓGICO DA PESQUISA .......................................................................................... 14 CAPÍTULO 2 - PERSONAGEM HISTÓRICA: FANNY, RAINHA DA CIDADE .............................................................................................. 29 2.1 FANNY .......................................................................................... 35 CAPÍTULO 3 - FANNY NA MEMÓRI A DOS PROFESSORES ................ 57 CAPÍTULO 4 - FANNY NA MEMÓRI A DOS ALUNOS .......................... 70 CAPÍTULO 5 - DAS CONCLUSÕES ..................................................... 78 5.1 DOS RESULTADOS E SURPRESAS DA PESQUISA ........................... 78 5.2 CURRÍCULO, PODER E GÊNERO .................................................... 79 5.3 DO AMOR, VERBO INTRANSITIVO? ............................................... 80 5.4 DAS RELAÇÕES DE PODER-SABER................................................ 81 REFERÊNCIAS ................................................................................... 85 APÊNDICES ........................................................................................ 88 INTRODUÇÃO A presente dissertação tem como título IDENTIDADES VELADAS: Fanny: a formação e a educação na cidade de Br usque na década de 1960, e é o resultado de uma pesquisa apresentada como dis sertação no Programa de Pós-Graduação em Mestrado em Educação da UNIVALI – Universidade Vale do Itajaí. O espaço onde se constrói uma cidade nos convida para o reconhecimento de um espectro infinito de determinações/relações. É nesse plano intrincado que homens, mulheres , crianças estabelecem, projetam e realizam suas vidas. O que trazem, o que inventam, o que transformam está além de qualquer possibilidade positiva de determinação. No entanto, estabelecer, associar processos instituindo matizes explicativos é o fazer próprio da condição de cidadania. Univers al e particular, geral e específico – contrapontos indis sociáveis de formas de compreensão do real pensado – não oferecem nenhum atalho ao processo de desvendamento do real concreto. Nesse esforço ou, mais propriamente, nesse movimento de debruçamento, o es pecífico, o particular adquire formas próprias, exigindo um recriar constante de parâmetros narrativos. A história que se escreve de maneira consciente e inconsciente está marcada pela época em que se vive. Fotografar, registrar alguns ângulos das diversas dimensões do real é uma forma de estabelecer e ass ociar acontecimentos e fatos. Em nos so trabalho procuramos estudar as conotações entre a educação e a prostituição na década de 1960 na cidade de Brusque, através do resgate da memória, realizando entrevistas orais, de pessoas que pudes sem, através de suas lembranças, da cidade, do currículo, das ligações do cotidiano escolar com a personagem Fanny, uma iniciadora sexual dos rapazes naquela época. As entrevistas, os depoimentos suscitam lembranças de sujeitos interiorizados, que no decorrer da conversa são exteriorizados em formas diferentes, e é isso que constitui a cultura, o imaginário popular. 12 Neste projeto adotamos uma metodologia qualitativa. Para coleta de dados nos utilizamos depoimentos obtidos através de entrevistas semiestruturadas. O método utilizado é o da His tória Oral. Houve uma reconstrução da his tória de vida dos sujeitos da pesquisa. No cas o específico de Fanny, por ser falecida, os dados foram fornecidos em entrevistas com sua filha, dona Dalbérgia. Demais conhecedores do enfoque aqui pesquisado e desenvolvido, também participaram em entrevistas gravadas, com pes quis a em arquivos familiares, com análise de fotos, recortes de jornais de época e documentos, como certidões de nascimento e casamento. Professoras aposentadas, de escolas ministrantes de disciplinas diversas, contribuíram na elaboração deste particulares escolhidas trabalho. Suas de forma e públicas, cuidadosa, participações foram essenciais no intuito de des velar as identidades perquiridas, analis ar as suas narrativas e posturas retirando assim as singularidades pess oais construtivas de configurações particulares de cada um. É uma viagem no tempo, uma retrospectiva até a década de 60. A pes quis a, está estruturada em três capítulos. No primeiro, ela aponta aportes teóricos utilizados no projeto e execução da pesquisa. No segundo descortina-se a personagem histórica: Fanny, a Rainha da Cidade. Sua identidade, sua vida, sua discutida profissão e influência na formação dos rapazes da cidade. O terceiro capítulo trata do tema da pesquisa na memória dos professores e alunos. Apresenta a escola na cidade de Brusque na década de 60, na memória dos professores e na memória dos alunos traçando um paralelo entre o ontem e o hoje. Num capítulo específico, memorial (que se encontra no apêndice A) descortina-se a cidade de Brusque na memória pessoal do pesquisador com suas lembranças e significações . A cidade e sua gente, seu jeito e seus valores, seu trabalho e suas individualidades . Sua religiosidade e sua conduta. As forças que formam a cidade e que formam aqueles que nela vivem. A escolaridade do pesquisador, suas peripécias na escola pública estadual Feliciano Pires onde estudou no primário (ensino fundamental) e ginásio (ensino médio). No auge do regime militar, as nuances ditatoriais que vinham se apoderar do contexto escolar. Castigos, punições, vitórias, 13 expectativas, desfilam pelas linhas do trabalho de pesquisa. É a memória que flui, apontando as conotações da formação da identidade do pesquisador. Na escola particular, durante o ensino médio, as dificuldades na apreensão do conhecimento de um aluno que vem de uma escola pública para uma escola particular, as disparidades s ociais que estigmatizam o aluno num ambiente desconhecido. O fracasso escolar da reprovação. Inserido nes te capítulo, entremeado por comentários à obra de Gilberto Dimenstein e Rubem Alves – Fomos M aus Alunos – figuras significativas na vida do pesquisador, professoras, diretora, colegas de escola. Porém, mais que tudo e todos, a figura de Edla Schaeffer é destacada. Pertencente a uma das famílias mais ilustres da cidade, esta bibliotecária era uma senhora de esmerada educação e de erudição refinada. Ela é, em primeiro plano, a responsável pela apreens ão cultural extra-escola que permitiu ao pesquisador se aprimorar na informação, na educação, na formação. É nela que reside a perspectiva de fazer de um menino pobre um futuro profess or. A formação de pes quisador veio muito cedo, na biblioteca publica municipal, através de dona Edla Schaeffer. Francisca dos Anjos de Lima e Silva Hoerham, a famosa Fanny, personagem principal dessa dissertação, já falecida, mas sempre lembrada é memorizada dentro de uma dualidade, misto prostituição e respeito. Aqui se desvela, da personagem, o caráter impecável, a vida tumultuada em seus descaminhos, as reminiscências que precederam à ligação de sua pessoa á prostituição. Há um descobrimento surpreendente de memória e identidade dos sujeitos. A pesquisa ainda traz, a memória de profissionais da educação. Professoras aposentadas, ícones da formação e educação que relembram personagens, falam da influência que exerceram e exercem ainda na educação e formação dentro e fora da escola. Aqui se encontra ainda o resultado de entrevista a quatro s enhores que na década de 1960 freqüentaram a escola e a casa da Fanny. Suas lembranças reavivam uma época que já é história. CAPÍTULO 1 DO APORTE TEÓRICO E METODOLÓGICO DA PESQUISA “ As lembranças se apóiam nas pedras da cidade.” (BOSI, 1994, p. 439) Não há memória em que o imaginário não se faça presente, assim como, não há imaginário sem que possamos encontrar nele a memória dos indivíduos, grupos e sociedades . Sem memória, jamais poderíamos formar e construir o nos so imaginário, da mesma forma que o imaginário s obre algo ou alguém é essencial para a formação de nossa memória. N ossa p e rc ep çã o n ã o i d en t i f i c a o mu n d o ex t e r i or c o m o el e é n a r eal i d ad e, e si m c o m o as t r an sf o r m aç õ e s, ef et u ad a s p e l os n o s sos ór gã o s d o s se n t i d o, n o s p e r mi t e m r ec on h e c ê- l o. A ssi m é q u e t r an sf or ma m o s f ót on s e m i ma g en s, vi b r aç õe s em son s e r u íd o s e r eaç õe s q u í mi ca s e m c h ei r o s e g o st o s e sp ec íf i co s. Na ver d a d e, o u n i ver s o é i n c ol o r, i n od or o, i n síp i d o e si l e n ci o s o. ( O LIV E I RA, 2004, p. 1). A memória armazena dados levando em conta a importância dada a certos as pectos pela pessoa que a armazenará. Podemos notar que, os mais variados assuntos sempre são repassados de maneira divers a e em alguns casos divergente, dependendo do ponto de vista e da importância dada a determinadas minúcias pela pessoa que está relatando o acontecimento. “ Quem conta um conto, aumenta um ponto” , diz o ditado popular. As lembranças, recordações sobre acontecimentos , pessoas , locais, tudo isso forma nossa memória; a partir do momento em que são gravadas em nosso cérebro, de forma ordenada e relacionada. E, para dar sentido a esse sem número de lembranças, em nosso cérebro elas são relacionadas com o nosso imaginário: nossos sonhos , utopias, nossa maneira particular de ver o mundo, sendo absolutamente mutável, criado e recriado incessantemente. O que é valorizado ou não, o que é licito ou ilícito, o que é esteticamente bonito o que não é, são posicionamentos que se alteram num processo imposs ível de se deter, vez que acompanham as evoluções da moda, do pensamento, da arte, da cultura, da moral e da ética. São, portanto, 15 continuamente reinterpretados . Não se pode es quecer de que estas concepções são forjadas e defendidas de acordo com os interesses de segmentos s ociais os mais variados, dentro daquilo de que se denomina sociedade. Em as sim s endo, a memória é o modo pelo qual o indivíduo, o grupo, a sociedade relata – seja por entrevista, seja por depoimentos, em publicações as mais variadas, através de manifestações artísticas em suas múltiplas manifestações – a sua maneira de ver alguém ou alguma coisa s empre com o intuito de jus tificar aspirações, comportamentos, projetos . Embasando tais considerações, trazemos teóricos como o russo Lev Semynovich Vygotsky. Este autor de inúmeras obras , foi extremamente profícuo nas suas linhas de es tudo. A crise da psicologia, a psicologia da arte, as diferenças entre psiquismo animal e humano, problemas das deficiências físicas e mentais, as relações entre pensamento e linguagem, a evolução da escrita na criança, a questão da mediação simbólica, as relações entre desenvolvimento e aprendizagem – o brinquedo entre tantas, contribuindo assim, significativamente na evolução do campo da educação. Na verdade, o foco das preocupações de Vygotsky – o objeto de s uas investigações – foi o desenvolvimento do indivíduo e da espécie humana como resultado de um processo sócio-histórico. Nas relações entre indivíduo e sociedade, para es te russo, as características humanas não estão presentes desde o nascimento do indivíduo, nem são um mero resultado das pressões do meio externo. Elas resultam da interação dialética do homem e o seu meio sócio-cultural. Quando o homem modifica o ambiente através de suas ações, de seu comportamento, essa mesma modificação influenciará o seu comportamento futuro. Foram teses de Karl Marx que influenciaram fortemente o pensamento Vygots kiano: a) o modo de produção da vida material condiciona a vida s ocial, política e espiritual do homem; b) o homem é um ser histórico, que se constrói através de suas relações com o mundo natural e social; c) a sociedade humana é uma totalidade em constante transformação; d) as transformações qualitativas ocorrem por meio da chamada síntese dialética. 16 Outro objeto de pes quis a, são as características de mediação presentes em toda a atividade humana. Nes te caso, são os instrumentos e os s ignos, construídos historicamente, que fazem a mediação dos seres humanos entre s i e deles com o mundo. A relação do homem com o mundo, portanto, não é direta, mas uma relação mediada. Ele distinguiu dois elementos mediadores: os instrumentos e os signos, que s ão análogos, mas com características bastante diferentes. Ch a m a m o s d e si g n o s a est e s e st í mu l os- i n st r u men t o s c on ve n ci on ai s, i n t r od u zi d o s p el o h o me m n a si t u aç ã o p si c ol ó gi ca e q u e c u mp r e m a f u n çã o d e au t o- est i mu l açã o. Qu al q u er e st í mu l o c on d i ci on al ( cr i a d o ar t i f i c i al men t e p el o h o me m) , q u e se ja u m v eí c u l o p a r a o d o m ín i o d a c on d u t a, a l h ei a ou p r óp r i a, é u m si gn o. ( VY GO TS KY, 1 9 8 7 , p .9 0 ) . Para Vygotsky a linguagem é um signo mediador por excelência. É a aquisição da linguagem que define um salto qualitativo no desenvolvimento humano. “ O pensamento não apenas se expressa na palavra, mas nela se realiza.” (VYGOTSKY, 1984, p. 182). A linguagem exerce um papel crucial no desenvolvimento dos processos mentais superiores como a memorização voluntária por exemplo. A fala externa, socializada, quando internalizada pelo indivíduo pas sa a servir como instrumento – interno, intrapsíquico – de pensamento. A trajetória do desenvolvimento do pensamento vai, do social para o individual. Desta forma, a linguagem é constitutiva e constituidora do sujeito. O sujeito é constituído pelas s ignificações culturais, porém a significação é a própria ação. Ela não existe em si, mas, apenas a partir do momento, em dois ou mais sujeitos que entram em relação e passam assim, a s ignificar. A relação de um sujeito com outro, é mediada, pois , dois sujeitos só entram em relação a partir da presença de um terceiro elemento que é o elemento semiótico, que é a mediação. Neste aspecto, há uma noção de cultura, de linguagem, onde ocorre uma aproximação, uma similaridade. É pela linguagem que se aproximam criando um campo de significação, de interação. Um sujeito é cons tituído e constituinte de relações sociais e as constrói. 17 O q u e é u m h o me m? P ar a He g e l , el e é u m su jei t o l ó gi c o. P ar a P avl o v, é u ma s o ma, u m o r gan i s mo. P ar a n ó s, o h o me m é u m a p es soa soc i al = u m a gr e gad o d e r el a ç õ es so c i ai s , c or p or i f i ca d o n u m i n d i víd u o ( f u n ç õe s s oci a i s c on st r u íd a s se gu n d o a est r u t u r a s oci a l ) . ( VY GO TS KY, 1 9 8 6 , p . 4 5 ) . Ne st e se n t i d o, o su je i t o n ã o é u m m er o s i gn o, el e e x i ge o r ec on h e ci men t o d o o u t r o p ar a se c on st i t u i r co m o su jei t o e m u m p r oc e sso d e r el a çã o d i a l ét i ca . El e é u m se r si gn i f i can t e, q u e t em o q u e d i zer , fa zer , p en s ar , sen t i r , t em c on sci ê n c i a d o q u e est á ac on t ece n d o, r ef l et e t od o s o s e ven t o s d a vi d a h u ma n a [ ... ] O su je i t o con st i t u íd o e c o n st i t u i n t e n a s e p el a s re l aç õ e s soc i ai s é o su jei t o q u e se r el a ci on a n a e p el a l i n gu a ge m n o c a mp o d a s i n t er su b jet i vi d ad e s. ( M O LO N, 2 0 0 3 , p . 1 1 5 ) . E ainda, “ [...] o sujeito é uma unidade múltipla, que se realiza na relação eu-outro, s endo cons tituído e constituinte do processo s ócio histórico e a subjetividade é a interface des se processo.” (MOLON, 2003, p. 116). As entrevistas, os depoimentos suscitam lembranças de sujeitos interiorizados, que no decorrer da conversa são exteriorizados em formas diferentes. Vê-se assim, que o mundo é visto com diferentes “ óculos” , em prismas e facetas diversas, dependendo de uma miríade de fatores. Neste contexto, a escola não é uma instituição isolada, fechada em s i mesma. Os professores levam para a sala de aula suas idéias, suas significações, suas compreens ões; o que acaba por gerar um mosaico. Os depoimentos e entrevistas de professores e de pers onagens expressam as teorias dialéticas existentes entre as memórias pessoal e social. Porém, se expressam e se exprimem sempre diferenciadamente daquilo que ouviram há anos atrás. Porque? Porque o discurso sempre evolui. Nossas memórias serão reconstruídas com esta pesquisa. Tanto do personagem, quanto dos professores e igualmente dos estudantes daquele tempo. Nessa multiplicidade de relações e significações, de construções e memorizações, a identidade e a memória do outro, vai sendo continuamente resignificada, reconstruída, revisada e, de acordo com o tempo, com o costume adquire uma tonalidade de escândalo, de “ normalidade” , de nobreza, de vileza, de heroicidade, de infâmia. Há uma continua releitura e resignificação do ato e do fato e, por cons eguinte, do sujeito dentro do imaginário popular. Afinal, não temos verdades , temos apenas compreensões. 18 A linguagem é então processual e instável, não possuindo o condão de ter significados eternos, exemplo disso as línguas “ mortas” , as gírias, as constantes inovações nos vocabulários. Ainda no tocante à linguagem podemos inferir com outros teóricos que: [ ... ] a p r óp r i a n at u r e za d a li n gu a ge m é t a mb é m r ed ef i n i d a . Nã o mai s vi st a c o m o v eí cu l o n eu t r o e t ra n sp a r e n t e d e re p r e se n t aç ã o d a r eal i d ad e, ma s c o mo p ar t e i n t e gr an t e e ce n t r al d a su a p r óp r i a d ef i n i ç ão e c on st i t u i çã o, a l i n gu a ge m d e i x a d e ser vi st a c o m o f i x a , est á ve l e c en t r ad a n a p r es en ça d e u m si gn i f i c ad o q u e l h e se r i a ex t e r n o e a o q u a l l h e c or r e sp on d er i a d e f or ma u n í v oca e i n eq u í v o ca. E m vez d i sso, a l i n gu a ge m é en c ar a d a c o mo m o vi men t o em c on st an t e f l u x o, s emp r e i n d e fi n i d a, n ã o con se gu i n d o n u n c a ca p t u r ar d e f or m a d ef i n i t i va q u al q u er si g n i fi cad o q u e a p r e c ed er i a e ao q u al e st a r i a i n eq u i v oc a me n t e a m ar r ad a . ( S ILV A, 1 9 9 5 a p u d BE R NA R DES; HOE N I S CH , 2 0 0 3 , p . 9 8 ) . Portanto, a linguagem é aberta e ins tável, jogando o sujeito sempre em novas conjunturas e situações, nunca iguais e sempre redefinidas . Postulam-se três teorias básicas sobre a representação da linguagem: a reflexiva, a intencional e a construcionista. A abordagem reflexiva é aquela que bus ca de uma forma trans parente, refletir os objetos e os significados da forma mais próxima possível daquilo que está no mundo real. Busca apresentar a realidade última num aspecto verdadeiro, fixo, imutável. [ ... ] O q u est i on a me n t o à ab or d a g e m r ef l ex i v a , p o st a p or Ha l l ( 1 9 9 7 ) , se d á n a me d i d a em q u e o si gn o já é u ma c on st r u ç ã o e n ã o p od e m o s op er ar co m a mat e ri al i d ad e c o m a q u al o si gn o se c on ec t a. P or ex e m p l o, q u an d o n o s r ef er i m o s a u m ob jet o , n ão é c o m el e q u e op er a m o s, ma s c o m o s i gn o q u e o r ep r e sen t a. [ ... ] ( BE RN A RDE S; HOE N I SC H, 2 0 0 3 , p . 1 0 0 ) . Quanto à segunda teoria, a da abordagem intencional, assegura que o autor é o único que detém o significado daquilo que ele próprio insere em seu texto, discurso, imagem. Ora, esta conceituação cria uma perspectiva de exclusividade, de individualidade, o que é imposs ível já que, a linguagem é comunicação, é construção coletiva, nunca acabada, sempre em processo. Já a terceira teoria básica aponta a cons trucionista, e reconhece nela o caráter coletivo, partilhado e público da linguagem. Ele intervém sobre as nossas concepções do mundo material, interpretando, decodificando e 19 constituindo. Pela linguagem, não apenas refletimos o que nos cerca, na verdade, o criamos ao nomeá-lo. Damos vida e forma ao verbalizar, construímos significados e sentidos. “ As coisas não significam em si mesmas; nós construímos as cois as pela mediação da linguagem, usando s istemas representacionais, conceitos e signos.” (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 101). O poder da linguagem e do discurso se assenta na perspectiva de que se constituem de praticas de significação, que instituem e que inventam como vemos, vivemos e nomeamos aquilo que vemos. Não se trata de julgar s e a linguagem é boa ou ruim, moral ou não, é a operacionalização da linguagem que se atribui valores. Nas inúmeras correntes e escolas diferenciadas existentes, vertentes as mais diferenciadas existem, porém, algumas vezes pode-se encontrar um atalho que evidência uma similaridade teórica. Neste aspecto: “ [...] A possibilidade de produção de sentidos fora da linguagem para os Estudos Culturais não é poss ível [...]” (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 107). Ora, isto também é uma verdade para Vygots ky, e desta forma há aqui uma convergência de pensamentos. A linguagem é também uma cultura, um constitutivo da vida social. Segundo Hall (1997 apud BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 112): Ar gu me n t a- se q u e o s p r oc es so s e c on ô mi c o s e soci a i s, p or d ep e n d er e m d o si gn i f i ca d o e t er e m c on s eq üê n ci a s e m n o ssa man e i r a d e vi ver , e m r az ã o d aq u i l o q u e so m o s – n os sa s i d e n t i d ad es – e d ad a a f or ma c o mo vi v e mo s t a mb é m t ê m q u e s er c o mp r een d i d o s c o m o p r at i c as cu l t u r ai s, c o mo p rá t i ca s d i s cu r si va s. Existe então uma forte imbricação entre a linguagem e a cultura já que ambas se alteram em linguagens, discursos, práticas sociais, práticas de significação que dão sentido ao mundo à medida que o desvelam. No caso específico desta pes quisa, não s e fala apenas do papel do homem e da mulher na sociedade, mas dos diferentes modos de se tornarem o que são pela imposição dos sentidos e da linguagem, de procedimentos que num process o evolutivo vão criando uma identidade, o que vem ao encontro 20 ao que Foucault (1997 apud BERNARDES; HOENISCH, 2003 p. 118) assevera: [ ... ] p ro ced i men t os , q u e, se m d u vi d a, e x i st e m e m t od a a ci vi l i zaçã o, p r es su p o st o s ou p re sc ri t o s a o s i n d i víd u o s p ar a f i x a r su a i d en t i d ad e , man t ê -l a ou t r an sf or má - l a em f u n ç ã o d e d et er mi n ad o s f i n s, e i s so gr a ça s à r el a çã o d e d o mín i o d e si sob r e si o u d e con h e ci men t o d e si p or si . A identidade passa, então a ser constituída através de uma determinada posição dentro da linguagem, constituindo-se a partir de uma diferença, ou seja, a identidade e diferença são oriundas do discurso, da linguagem, da cultura. A diferença não é produto da identidade, mas tanto uma quanto a outra são resultantes de um processo. (SILVA, 2000). A constituição de identidades, então, só são possíveis s e sujeitadas ao discurso, à linguagem, ás praticas de significação, mediante as quais, nos tornamos o que somos. En t en d e m os q u e a s p r á t i cas so ci a i s e o s a rt e f at o s cu l t u ra i s sã o con c eb i d o s c o mo l i n gu a gen s, c o m o d i sc u r so s q u e p r od u ze m ob jet o s d o s q u ai s f al a m, p or se r e m p r át i ca s d e si gn i f i caç ã o q u e at r i b u em sen t i d o a o m u n d o, n ã o só d o d o mí n i o d o c on h e ci men t o, d o ‘ mu n d o d as i d éi a s’ , ma s t a mb é m, m o d os d e vi v er n o mu n d o, n a ve rd a d e ‘ cr i am ’ o p r óp r i o mu n d o . ( BE R NA R DE S; HOE N ISC H, 2 0 0 3 , p .1 2 1 ) . Desta forma, podemos então dizer que a cultura é uma prática arguidora, interpelativa, que dentro deste arcabouço vai produzindo sujeitos e identidades, o que nos leva a pensar identidades e subjetividades através da cultura e do discurso, que es tão estreitamente entrelaçadas . [ ... ] Tal p r ox i mi d ad e é su ma men t e en t r el a ç ad a , p or c o n t a d i ss o, co m a s p r op o si ç õe s d a p si c ol o gi a S o ci a l con t e mp or ân e a, se en t e n d er mos a c o mp l ex i d ad e d o fe n ô me n o soc i a l co m o a l é m d e u m a d i men sã o ‘ a mai s’ d o s u jei t o , n a med i d a q u e n ão p od e h a ve r u ma l i n gu a g e m d e c ar át e r p r i vad o, c o mo t a mb ém n ã o o c or r e u m p r oc e ss o se mi ót i c o l i n g ü íst i c o p r i va d o q u e n o s i n t er p el a n a con st i t u i ç ão d e n o s sa mat r i z d e d e c o d i fi caçã o d o mu n d o . ( BE R NAR DE S; HO EN I S CH , 2 0 0 3 , p . 1 2 2 ) . A identidade e a subjetivação, não são apenas fatores externos neste processo. Não é apenas no aspecto exterior, mas há que também ocorrer uma interiorização desta constituição, envergar o manto identitário, não externo, 21 mas interno, dentro, e tornar-se assim aquilo que se diz eu ser. É preciso, portanto, subjetivar-se. “ Neste caso, assim como as identidades são o ‘outro’ no exterior, a subjetivação é esse outro s er experimentado, como um ‘outro em si mesmo’, um estranhamento, uma perturbação e uma transformação de determinados modos de ser” . (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 123). Nosso olhar está constituído de inúmeros dispositivos que nos fazem ver as coisas dentro de determinados padrões. “ O que determina o olhar tem uma origem, depende de certas condições históricas e práticas de possibilidade e, portanto, como todo contingente, está submetido à mudança e possibilidade de transformação.” (LARROSA, 1995 apud BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 123). Memória e Sociedade, de Ecléa Bosi (1994), foi com certeza a obra de maior s ensibilidade e que proporcionou maior proximidade, identidade e paixão no decorrer da pesquisa. “ A lembrança é a sobrevivência do pass ado” (BOSI, 1994, p. 53), perpassa e estimula no trabalho do pesquisador. As minhas lembranças são todas permeadas de lembranças de outros, que num processo somatório acaba por resultar numa lembrança comum. Dados, fatos, datas, pers onagens, locais, costumes, trajes, música, tempo e espaço, são socializados na busca de relembrar com a poss ível exatidão o que e como, quando e onde, quem e de que forma. A memória é socializada, é somada. Não é apenas pessoal, mas familiar, grupal, social. Em Verdade e Poesia, o imortal poeta alemão Goethe dizia: “ Quando queremos lembrar o que aconteceu nos primeiros tempos da infância, confundimos muitas vezes o que se ouviu dizer aos outros com as próprias lembranças [...]” Segundo Bosi (1994, p. 59): A i n t er p r et a çã o so c i al q u e Hal b wa ch s d á d a c ap aci d ad e d e l e mb r ar é r ad i ca l . En t en d a - s e q u e n ã o se t r at a ap en a s d e u m con d i c i on a men t o e x t er n o d e u m f en ô m en o i n t e r n o, i st o é, n ã o se t r at a d e u ma ju st a p o si ç ã o d e ‘ q u ad r o s s o ci ai s’ e ‘ i ma g en s ev o c ad a s’ . Mai s d o q u e i s so, en t en d e q u e já n o i n t er i or d a l emb r an ça , n o ce r n e d a i ma ge m e v oca d a, t r ab a l h a m n oç õ es g er ai s , vei c u l ad a s p el a l i n gu a g em , l o g o, d e f i l i ação i n st i t u c i on al . É gr a ça s ao car át e r ob jet i v o , t r an su b jet i v o , d e s sa s n o çõ e s g e r ai s q u e a s i ma gen s r esi st e m e se t r a n sf or ma m e m l e mb r an ç as. 22 Hegel já dizia que é o pass ado concentrado no presente que cria a natureza humana por um processo de contínuo reavivamento e rejuvenes cimento. A memória é algo extremamente flexível, subordinada àquilo que a pessoa vivenciou, de modo que o passado é modelado adequandose à forma desejada para então ingressar no domínio pessoal. O principal personagem de minha pesquisa é Fanny, que faleceu bem idosa, mas que, suscitava lembranças e comentários em todos. Homens e mulheres. Jovens e velhos . Principalmente nos velhos que são seus contemporâneos. Mas o que é ser velho? É ser “ de modé” ?, É ser ultrapassado? É s er silenciado por que as opiniões já não se coadunam com os mecanismos modernos? É ser banido da convivência atualizada, movimentada e festiva de um s istema que valoriza o corpo e o consumo? M as e as lembranças que só o velho tem? Ser velho é ser o guardião do passado, lembrar e rememorar, impedir que as lembranças desapareçam. Ser velho é ser um lutador para não ser esquecido, para que a sua memória e identidade não sejam olvidadas. In t e gr ad o s e m n o ssa ger aç ã o, vi ven d o e x p er i ên c i a s q u e e n ri q u e c e m a i d ad e mad u r a, d i a vi r á e m q u e a s p es soa s q u e p e n sa m c o m o n ós i r ão se a u se n t an d o, a t é q u e p ou ca s, b e m p ou c as, f i car ã o p ar a t est e mu n h ar n oss o e st i l o d e vi d a e p e n sa m e n t o. O s jo ven s n os ol h ar ã o c o m e st r an h ez a , cu r i o si d ad e ; n o ss o s val or e s m ai s c ar os l h e s p ar ec er ã o d i s son a n t e s e el e s e n c on t r ar ã o e m n ó s aq u el e ol h ar d es ga r r ad o c o m q u e , à s ve z e s, o s v e l h o s ol h a m se m ver , b u sc an d o amp ar o e m c oi sa s d i st a n t es e a u sen t e s. ( BO SI, 1 9 9 4 , p . 7 5 ) . Mister se faz, em os educadores levar estas memórias de velhos para a escola. É lá o espaço privilegiado onde as lembranças serão valorizadas, cantadas e decantadas. Construtores de uma identidade coletiva onde professores e escola se faz ao mesmo tempo; alunos recebem as lembranças dos que construíram o espaço em que vivem. Resulta daí uma valorização ímpar da memória, da identidade, da subjetividade construída e assimilada sem saber de onde veio. A lembrança não é apenas a sobrevivência do passado, é a sua revivificação, a s ua resignificação e s ua reassimilação. É saber nossa história, é conhecer nossa gente, é conhecer-nos a nós mesmos. Que lugar mais imortalizados. privilegiado do que este? É ali que seremos todos 23 Este estudo tem como objeto central Francisca dos Anjos de Lima e Silva, a Fanny e sua ligação com a educação e a formação dos rapazes na cidade de Brusque na década de 1960, contribuindo as sim, teórica e metodologicamente para a preservação da memória da escola naquele tempo/espaço e para a resposta de questionamentos tais como: a) A questão da formação, ocupava outros espaços educativos/formativos além das escolas , para além da educação formal, como eixo estruturante? b) A casa da Fanny era um destes outros espaços? c) Demandava o que este outro ambiente formativo? d) Propiciava novas práticas? Quais? De solidariedade? De comportamento s ocial que estivesse sendo gestado na cidade? Dança? Etiqueta? Comportamento masculino? e) Como a Fanny construiu sua identidade que acabou por ultrapassar do individual para o s ocial? Como s e deu essa visibilidade? Tornou-se vis ível realmente ou ficou velada essa interferência da desvirginadora de rapazes no contexto educacional? f) Qual era a representação social da mulher ness a época? Esses questionamentos foram também as minhas inquietações pessoais que tomei como inquirições para objeto do estudo ora apresentado. Para este projeto adotamos uma metodologia qualitativa, utilizamos entrevistas estruturadas e semi-estruturadas e depoimentos. O método utilizado é o da História Oral. Houve uma re-construção da história de vida do sujeito da pesquisa, dona Fanny, que por ser falecida, os dados foram fornecidos em entrevistas através de sua filha, dona Dalbérgia. Demais conhecedores do enfoque aqui pesquisado e desenvolvido, também participaram em entrevistas gravadas, através de depoimentos orais. Estas entrevis tas gravadas foram transcritas e de todo o material coletado foi realizada acurada análise. 24 Para coleta de dados, foram selecionadas quatro professoras e três estudantes que têm em comum o fato de conhecerem a Fanny e de estarem dentro do contexto escolar na década de 1960. Estes foram os critérios fundamentais para a escolha dos participantes da pesquisa, e mais: a) para as professoras: estarem no exercício da função de educadoras na década de 1960 na cidade de Brusque, conhecerem a Fanny e sua atividade, fazer essa relação educação/pros tituição e escola na década de 1960 e escola hoje. Localizar professoras, que estivessem no exercício de s ua profissão, que tivessem conhecido a personagem principal da pes quis a e que es tivessem dispostas a fazer uma relação entre a educação e a atividade desempenhada por ela, não foi tarefa das mais fáceis. Existem professoras que preenchem os requisitos , mas que se negaram a colaborar, existem aquelas que não exerciam o magistério ainda, mas que conheciam a Fanny, as que exerciam, mas que não conheciam. As que não eram de Brusque e ainda não moravam aqui, enfim, nes se processo de encontrar quem preenchesse os requisitos houve um grande desgaste; b) para os alunos: que fossem freqüentadores da escola na década de 1960, que tivessem conhecimento da figura da Fanny, freqüentado sua casa e que tives sem, a sua iniciação sexual feita por ela, e claro, que estivessem dispostos a falar sobre is so. Essa foi a maior dificuldade, já que os homens na faixa etária entre 50/60 anos, casados, pais e avôs não se sentem a vontade para falar de sua iniciação sexual há cerca de 40/45 anos atrás. Muitos foram contatados e convidados, mas negaram de forma radical: Não! Essa foi a resposta, ouvida muitas vezes. Foi no âmbito das relações familiares que se conseguiu lograr êxito em listar quatro sujeitos que acederam em falar de lembranças que ora causaram ris os ora causam rubor. Ficar incógnitos de modo a que não se saiba quem esta depondo foi, em todas as situações a condição sine qua non. Por isso, as três professoras, ficaram assim denominadas: Profess ora nº 1, nº 2 e nº 3 equatro estudantes de Depoente n o s 1, 2, 3 e 4. Desta maneira preserva-se a identidade dos colaboradores, atendendo-se os seus pedidos. 25 Quanto à pesquisa documental, elaborada em arquivos familiares, foi principalmente, de fotos , recortes de jornais de época e documentos, como certidões de nascimento e casamento. Tais provas, algumas com 80 anos, foram gravadas em CD-ROM, para ficarem à dispos ição da banca e, posteriormente integrar a dissertação. Para trabalhar com a memória e a identidade de pers onagens tão controversos e polêmicos, necessário fez-se desenvolver um process o de desconstrução de imaginários, que os personagens, desenvolveram ao longo de s uas conturbadas existências. Desta forma, foi necessário criar-se um processo de desmonte, de fracionamento com este imaginário ainda vigente, ainda ins tituído hodiernamente e, ademais abordando um tema tão delicado e tão impactante como é a prostituição. Segundo Hobsbawn (1990, p. 23), em sua obra A Outr a História: As mu d a n ça s n a me mór i a t o r n a m o c a mp o d a h i st ór i a ora l ex t r e ma men t e f u gi d i o. Sob r et u d o p or q u e, a me m ó ri a n ã o é u m me ca n i sm o d e gr a va çã o , m a s d e sel e ç ã o, q u e c on st an t e men t e s of r e al t e r açõ e s. A e n t r e vi st a l i vr e, t en d o c o mo p on t o d e p ar t i d a a h i st ór i a or al , f oi o i n st ru m en t o p r i vi l e gi a d o p a r a se r e sga t ar e ssa ou t r a h i st ór i a, q u e t e m, n a t r ad i ç ão or al o el e m e n t o fu n d a d or d e s eu r egi st r o e re p r o d u ç ã o. Professores ministrantes de aposentados , disciplinas de escolas particulares diversas, contribuíram na e públicas, elaboração deste trabalho. Suas participações foram essenciais no intuito de desvelar as identidades perquiridas, analisar as suas narrativas e posturas retirando assim as singularidades pessoais construtivas de configurações particulares de cada um. Utilizamos nesta dissertação de procedimentos biográficos como o caso de dona Fanny, por considerar que relato deste tipo se constitui em recursos metodológicos importantes para a recons trução de histórias de vida. As visões sobre si mesmo são, para Bruner (apud REGO, 2003, p. 79), “ uma maneira do sujeito expressar a forma de como se apropria dos conteúdos culturais” . As entrevistas possibilitam entrar em universos, a um só tempo, individuais e sociais, em que pesem s uas diferenças no estabelecimento dos significados. As professoras prestaram depoimentos a este pesquisador no silêncio das suas lembranças e na ponderação e cotejo de suas racionalidades 26 e emoções. Conversaram comigo sobre o tema que lhes propus. Nossas línguas se falaram e mutuamente resignificaram a memória de uma cidade através, principalmente, da vida de uma mulher. Sua vida é também nossa vida. Como diz Bosi (1994, p. 5), em seu texto clássico s obre a memória de velhos “ posto o limite fatal que o tempo impõe ao his toriador, não lhe resta senão reconstruir, no que lhe for pos sível, a fisionomia dos acontecimentos ” . O conjunto de noções presentes ness as nossas falas e pensamentos, “ nos obriga a avaliar (logo a alterar) o conteúdo das memórias” . As obras s imilares consultadas foram várias: Memórias de Escola – Cultura Escolar e Constituição de Singularidades, de Rego (2003); As Decaídas – Prostituição em Florianópolis, de Pereira (2004); Amar, Verbo Intransitivo, de Andrade (1927); Memórias da Educação na Cidade de Campinas de 1850 a 1960, de Bencostta (1990); Memória e Sociedade, de Bosi (1994); Manual de História Oral, de Alberti (2004) e; A Memória Coletiva, de Halbwachs (2004). A leitura do texto elaborado pela professora Dra. Marlene De Fáveri (2001), “ Questões para estudo de história, memória e gênero” publicado pela Revista Alcance da Univali, foi crucial. Através dele pude esclarecer e reforçar as concepções de memória, gênero e his tória oral enfocando as experiências humanas. Muitas outras obras foram extremamente pertinentes àquilo que me propunha, caso de Rego, Pereira, Bosi, Alberti e Halbwachs. Outras foram interes santes, como leitura, porém, seus contextos, e estrutura de história e enredo estavam um tanto distantes do que eu buscava. É o cas o da obra de Andrade e de Bencostta. A primeira, por ser no início do século, num contexto muito diferenciado da cidade de Brusque e do principal pers onagem de minha pesquisa. A Fanny não era uma figura que lembrasse a Fräulein naquela concepção de Andrade, se fosse para enquadrá-la neste aspecto, ela seria classificada como uma comum haussfrau (dona-de-casa). Fanny não atendia a domicílio, não s e imiscuía na vida familiar dos clientes , não trabalhava sozinha, não era estrangeira, não era preceptora, não vestia uma máscara de professora de família, e não agia disfarçadamente como a protagonista de Andrade. 27 Fanny era prostituta. Exercia sua atividade não s ó com rapazes imberbes, mas com todos os homens que a procurassem. Era de origem bugra, ou seja, brasileira. Tinha seu próprio estabelecimento onde exercia sua atividade auxiliada por outras moças. Não se disfarçava de professora de família. Era simplesmente o que era, e assim era conhecida e aceita. Por ser casada, apesar de estar s eparada, Fanny não poderia ser enquadrada como Fräulein (senhorita: tratamento exclus ivamente dado à moças s olteiras). Se fosse possível alguma comparação, Fanny seria Frau. No verdadeiro sentido da palavra: Senhora. Era como senhora que era vis ta e conhecida na cidade. Era como haussfrau (dona-de-casa) que recebia seus clientes e administrava sua casa com horta, pomar e jardim. Mesmo assim, amar, era um verbo intransitivo também para Fanny, e is so é explicitado em um capítulo próprio neste trabalho. Quanto à obra de Bencostta, extremamente rica, um exemplo de desafio intelectual, enfoca de maneira particular a intervenção de determinadas instituições educativas na região de Campinas, de 1850 a 1960, a partir de categorias teóricas como raça, etnia, gênero, class e s ocial e estratégia missionária. Por tudo isso, também está além do projeto de pesquisa por mim desejado. Porém, Rego, Pereira, Bosi, Halbwachs e De Fáveri me possibilitaram uma riqueza infindável de pesquisa e suporte de elaboração do projeto. Mas, mesmo as obras destes autores se diferenciam do teor, modo e forma des ta pesquisa. A obra de Rego, por ser memória da escola com suas culturas e constituição de singularidades, sem nenhuma inferência da educação com a prostituição; a obra de Pereira por ser da pros tituição na cidade de Florianópolis (minha pesquisa é em Brusque) e não haver nenhuma conotação com a educação; a obra de Bosi por ser a respeito de memórias, mas não precisamente da escola e da educação com as ligações com a prostituição, e Halbwachs por s er bem mais ampla, falando de educação e formação e, também sem nenhuma conotação com a prostituição. Os sujeitos e os procedimentos utilizados para a análise dos dados foi mais explicitado em um tópico específico que se antepõe à entrevista em si. Os personagens entrevistados, responderam a todos os questionamentos, alguns de forma mais extensiva, outros de modo mais 28 detalhado, algumas vezes complementando repostas anteriores com comentários em respostas seguintes. Outras vezes, lá adiante, retrocendendo a comentários anteriores, elucidando, rememorando, lembrando de detalhes que haviam esquecido, de pormenores que, com o decorrer da conversa iam surgindo. Muitas vezes também, pediam pra retornar a algum detalhe e ficavam cogitando se tinha se sido ou não, se realmente fora naquela ocasião ou contexto. Os questionários foram túneis do tempo, imersão no passado para os sujeitos entrevistados. Se para alguns foi muito cômodo despertar tais lembranças, para outros não o foi. Se alguns rememoraram com facilidade, para outros foi mais dificultoso, tendo muitas vezes, necessidade de quedar-se em silenciosa espera que aflorasse as lembranças. Das três professoras entrevistadas, a primeira teve mais dificuldades em lembrar, e no primeiro encontro no final chorou lembrando personagens, momentos, lugares. A entrevista com a filha da Fanny, Dona Dalbérgia, foi muito rica, com muitas fotografias , documentos e recortes de jornais que enriqueceram a entrevista. CAPÍTULO 2 PERSONAGEM HISTÓRICA: FANNY, RAINHA DA CI DADE Fi g ur a 1 – Fra nci s ca d o s A nj o s de Li ma e Si l v a , a Fa n ny , e m f o to g r a f i a de 1 9 / 0 1 / 1 9 8 1, a o s 8 1 a no s O vel h o n ã o t e m ar ma s. Nós é q u e t e m o s d e l u t ar p o r el e [ .. .] sã o a f on t e d e on d e jor r a a e s sê n ci a d a c u l t u r a, p on t o on d e o p assad o s e con se r va e o p r e sen t e s e p r ep a ra [ ...] p oi s s ó p er d e o sen t i d o a q u i l o q u e n o p r ese n t e n ã o é p er ceb i d o c o m o vi sa d o p e l o p a ssad o . O q u e f oi , n ã o é u m a c oi sa r evi st a p or n o s s o ol h ar , n e m é u ma i d é i a i n sp eci on a d a p or n o ss o e sp ír i t o – é a l ar g a men t o d a s f r o n t ei r as d o p r es en t e, l e mb r an ç a d e p r o m es sa s n ã o cu mp r i d a s [ ...] A f u n çã o s o ci al d o vel h o é l e mb r ar e a c on s el h ar – me mi n i , m on e o – u n i r o c o m eç o e o f i m, l i ga n d o o q u e f oi e o p r o vi r . M a s a s oci ed a d e c ap i t a l i st a imp ed e a l e mb r an ç a, u s a o b r a ç o ser vi l d o vel h o e r ec u sa o s seu s c on s el h o s. S oci e d ad e q u e , d i r i a Esp i n o sa , ‘ n ão mer e c e o n o m e d e C i d ad e, ma s o d e se r vi d ã o, sol i d ã o e b ar b ár i e ’ . A soc i ed ad e ca p i t al i st a d esar ma o v el h o m ob i l i z an d o me ca n i sm o s p el o s q u ai s op r i me a ve l h i ce , d e st r ói o s ap oi o s d a me m ó ri a e su b st i t u i a lemb r an ç a p el a h i st óri a of i ci a l ce l eb r at i va . ( B OS I, 1 9 9 4 , p . 1 8 ) . 30 Na foto acima, comemorando seus 81 anos, Fanny, idosa mas sempre cuidadosa com a aparência, jamais ficava sem baton, posou para uma fotografia comemorativa. “ Ainda não es tou velha e nem me sinto como uma. O que faz uma pessoa s er velha, é a sua cabeça!” , dizia ela. Na época da foto, em 1981, ela povoava o imaginário popular, sendo um símbolo na comunidade, uma identidade motivadora de curiosidade; respeitada, admirada, conflituosa. Ela era a diferente; motivo de conversas e de lembranças, de fuxicos e de impacto social por sua autenticidade. Representava autonomia e liberdade, especialmente para as mulheres, coragem e destemor para os homens . Fanny, nesta época, já era uma representação, um símbolo. Fanny já era história. Os papéis que representamos em noss a existência e nossas atividades, moldam nossas identidades, protagonizam tipos em dramas exis tenciais, constroem símbolos e linguagens representativas do meio em que vivemos e desempenhamos esses papéis. Neste sentido, Kathryn Woodward muito acertadamente diz que: Tr a t a- s e d e u ma h i st ór i a s ob r e a gu e rr a e o c on f l it o d e se n r o l ad a e m u m c en ár i o d e t u rb u l ên ci a s oci a l e p ol ít i c a. T r at a- se t a mb é m d e u ma h i st ór i a d e i d en t i d ad es. Ne s se c e n ár i o m o st r a m- se d u a s i d en t i d ad es d i f er en t e s, d e p en d en t e s d e d u a s p o si çõ es n aci on ai s sep a r ad a s [ . ..] Es sa s i d e n t i d ad e s ad q u i r e m s en t i d o p or m ei o d a l i n gu a g e m e d o s si st em a s si mb ól i co s p el o s q u a i s el a s s ã o r ep r e sen t a d a s. A r ep r es en t a çã o at u a si mb ol i ca men t e p ar a cl a ssi f i car o mu n d o e n o s sa s r el aç õ es n o seu i n t er i or . [ ... ] A l ut a p ar a af i r m ar as d i f er e n t e s i d e n t id ad es t e m cau sa s e con seq ü ên c i a s mat er i ai s: n e st e ex e mp l o i st o é vi s í vel n o c on f l i t o en t r e o s gr u p o s e m gu er r a e n a t u r b u l ên ci a e n a d esg r a ça s oci a l q u e a g u er r a t r a z . [ ... ] A i d en ti d a d e é f ix a? Po d e mos e n c on t r ar u ma ‘ ver d ad e i r a’ i d en t i d ad e? Seja i n v oca n d o al g o q u e s er i a i n er en t e á p e ss oa , se j a b u scan d o su a ‘ au t ên t ica’ f on t e n a h i st ór i a , a af i r m açã o d a i d en t i d ad e en v ol v e n e c essar i a m en t e o ap el o a al gu ma q u al i d a d e es se n ci al ? ( WOOD WA R D, 2 0 0 0 , p . 8 , 1 0 e 1 3 ) . No caso de Fanny, esse papel, esse simbolismo foi construído sobre a atividade da prostituição. Diferente das demais prostitutas, ela não foi associada à sua atividade. Não era a pros tituta, era simplesmente a Fanny. Nenhum dos adjetivos que, pejorativamente acompanham as “ decaídas” , era aplicado pela comunidade à Fanny. As doenças do meretrício não lhe eram 31 impingidas. Porque? Porque ela era a Fanny. E ser Fanny em Brusque era “ muita coisa” . Não encontrei registros de nenhuma queixa, nenhuma reclamação de ninguém; nem vizinhos, nem clientes, nem fornecedores, nem de “ suas moças” . Também não há registro da casa de Fanny como es tabelecimento comercial ou similar. Oficialmente, simplesmente não existia. Para as autoridades, a casa da Fanny era uma pensão, um estabelecimento lícito, “ normal” , uma casa como outra qualquer. Uma propriedade privada, sem nenhuma conotação pública. Então quem era a Fanny? E afinal, qual era essa relação de Fanny e sua cidade? Pereira (2004, p. 126), em seu livro As Decaídas, com muita propriedade comenta: H o je , c o m a ‘ l i b e ra çã o sex u al ’ , a p r o st i t u t a d eix a d e ser c on c e b i d a p el a so c i ed ad e c o mo u m ‘ ma l n ece ssár i o’ , aq u e l a q u e co n ser v ar i a a vi r gi n d ad e d a s ‘ d on z el as’ e ‘ i n i ci ar i a ’ os r a p az e s n o s as su n t os sex u ai s. Pe l o c on t r ár i o, é e st i g ma t i zad a p e l a so ci ed a d e c o m o ap e n a s u m ‘ mal ’ , p r o p ag ad or a d e p r át i ca s a i n d a con si d er ad as ‘ i m ora i s’ e su a at i vi d ad e p e r man e ceu a ss o ci ad a s à s d oen ça s ven é re a s, a s q u ai s se mu l t i pl i ca m e gan h a m n o va s c o n o t aç õ e s si mb ól i ca s e met a f ór i c a s (e x e m p l o a A ID S), ma s q u e n ã o d ei x a m d e ser as so c i ad as ( al é m d e ou t r os p er son a gen s) à f i gu r a d a p r o st i t u t a. Antes de se s aber quem era Fanny, temos que saber um pouco de quem é Brusque, ou melhor, de como é Brusque. A cidade de Brusque foi fundada em 04 de agosto de 1860 por colonos europeus , provenientes da Alemanha. Foram 59 colonos que navegaram o Itajaí-Mirim em canoas, acompanhados pelo primeiro diretor da Colônia Itajahy, o Barão Maximiliano von Schnéeburg. Instalaram-se na margem esquerda, no lugar denominado Vicente Só. Consta que da lista de 10 famílias dos imigrantes , nove dos chefes eram lavradores, três eram tecelões, cutileiro e carpinteiro. Um era alfaiate. A idade dos homens variava entre 28 e 58 anos e cinco famílias eram da religião luterana e quatro, eram da religião católica. 32 Todos os imigrantes trouxeram mulher e filhos, exceto um que era viúvo. Sete deles eram da Prússia, um de Hesse-Darms tadt e sobre dois não há dados . Posteriormente, em 1867, chegaram 98 irlandes es, trans migrados dos Estados Unidos e em 1869 chegaram 80 imigrantes poloneses. Brusque foi o primeiro chão brasileiro que os poloneses pisaram. Em 1875, proveniente de Bérgamo, Trento, Vêneto, Piemonte e Lombardia, chegaram os primeiros italianos. Foi em 1872 que surgiu a primeira escola, a Escola Alberto Torres, atual Colégio Cônsul Carlos Renaux. Nos primeiros tempos as aulas eram ministradas em alemão. A primeira escola da rede estadual foi o Colégio Feliciano Pires em 1919 e a primeira univers idade foi a Fundação Educacional de Brusque, inaugurada em 15 de janeiro de 1973 pelo diretor, Padre Orlando Maria Murphy. A presença dos imigrantes poloneses, provenientes de Lodz, com experiência em tecelagem, proporcionou à cidade o título de Berço da Fiação Catarinense. Além da agricultura e da pecuária nos minifúndios , foram os teares que ergueram a cidade. Renaux, Schlösser, Büettner, eram as grandes empresas de fiação e tecelagem na cidade. E por conseguinte, dominavam a economia local. Em 1960, Brusque vivia um período de grande prosperidade. No ano de seu centenário, a cidade era governada pelo médico Dr. Carlos Moritz, do partido da UDN. Ele foi seguido na adminis tração por Ciro Gevaerd, que por sua vez foi sucedido por Antônio Heil. 33 Fi g ur a 2 – Vi sta do R i o It a j a í- M i ri m e da a nt i g a po nte q ue l i g a v a o s do i s l a do s da ci da d e Em 1961, a cidade sofreu com uma grande cheia, que ficou registrada na memória de seus habitantes pela violência das chuvas que a antecedeu, quanto pelo volume de água que o rio Itajaí-Mirim trouxe para a cidade. Os morros que circundam o vale em que s e encontra a cidade, foi o refúgio da população. Cheias semelhantes ocorreram nos anos de 1983 e novamente em 1984, trazendo imens os prejuízos para a cidade. 34 Fi g ur a 3 – Cl u be de Ca ça e Ti r o d e Br u sq ue – SH CÜ T ZW E RE IN – na e nc he nt e d e 1960 Fi g ur a 4 – E nc he nt e e m 1 9 8 3 , v i st a do ce nt ro da c i da d e de Br u sque As festividades dos santos padroeiros, São Luiz Gonzaga, São José e Nossa Senhora de Azambuja, dominavam o calendário das festividades e congregava a comunidade em novenas, festa com barracas para rifas, 35 churrasco, polenta com galinha, marreco com purê e repolho roxo. Tudo “ abrilhantado” e animado pelas tradicionais bandas locais. Nada de assaltos, de violências , de sobress altos. A locomoção dos cidadãos dava-se especialmente nas bicicletas, mas carroças, carros-de-mola, e automóveis dis putavam o espaço das ruas com muita paciência e tranqüilidade. Nesse cenário, está a personagem Fanny. E quem era a Fanny? Fanny era a rainha da cidade para aqueles que freqüentavam sua casa e foram iniciados por ela. 2.1 FANNY Fi g ur a 5 – Fo t o de Fa nny , t i ra da e m 1 9 2 0 , a o s 2 0 a no s de i da d e, que Ed ua r do l h e env i o u qua ndo j á e st a v a e m Br u s qu e e m 1 9 3 9 , de po i s de a ba n do ná - l o . Na pa rt e po st er i o r do r et ra t o el e e scr ev e u um “v er si n ho ” d edi ca ndo a f o t o g ra f i a 36 “ Se alguém me pedisse, um dia, Retrato da ingratidão, Mostraria este retrato... Como obra de perfeição!” (Eduardo de Lima e Silva Hoerham) Este versinho é obra do neto de Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, que foi o único homem a chegar ao ducado na aristocracia brasileira, durante o período imperial. A história do duque é matéria obrigatória nas escolas. Lembrado, honrado e venerado em todos os quartéis do exército bras ileiro, é o seu patrono. É lembrado tendo seu nome em ruas, praças, escolas e cidades. Foi o sobrinho-neto do Duque quem, em caneta de pena vermelha escreveu as rimas na borda de uma fotografia tirada em 1920. Escreveu em 1939, portanto, 19 anos depois. No interior da caprichada embalagem do álbum para uma única foto, vê-se uma mulher belíss ima, jovem, com chapéu em que uma pequena cortina de rendas cai sobre o rosto. Seus ombros cobertos por estola de peles, sinal de opulência e requinte. Colar de pérolas, cabelo em estilo Chanel, tudo nela lembra Paris e as “ melindrosas ” do início do século, quando se buscava esquecer as agruras da I Guerra Mundial, da Revolução Bolchevique e do ass assinato de toda a família Romanoff. Paris exportava a moda, os costumes, os cortes de cabelos. As mulheres encurtavam as saias, fumavam em longas piteiras , abandonavam espartilhos. Encurtavam saias, ves tidos, cabelos e s ubmissão aos homens o que gerava grande polêmica e perturbação social. Na p r i m ei r a met ad e d o séc u l o, e sp e ci a l me n t e n a d éc ad a d e 2 0 [ .. .] , d i an t e d o q u e p ar e ci a ser u ma l i b e r aç ã o ca ó t i ca d o s p r i n cíp i os m or a i s d a so c i ed ad e , si mb ol i zad a p el a ‘ e man c i p açã o ’ d a ‘ mu l h e r m od e r n a’ , mu i t o s a r gu m en t ava m q u e já n ã o e r a m p o s sí v e l p rot e ger a h on e st i d ad e f e mi n i n a . ( C AU LFI E LD, 2 0 0 0 , p . 2 7 ) . O retrato da mulher é realmente belíssimo e expressa tudo isso. De fato, o que mais chama a atenção, além do verso na lapela do álbum, não são as vestes, as jóias, mas a mulher em si. 37 Ar altivo, nobre, voluntarioso, forte, desafiador. Seu olhar não foge, ela encara de frente e desafia. Não tem aquele ar submisso das mulheres do início do século XX. Foi para esta mulher que o rebento ducal escreveu os versos contristados acima. Ele, Eduardo de Lima e Silva Hoerham. Ela Francis ca dos Anjos. Ele filho da s obrinha do Grande Duque consorciada a um ilus tre aristocrata austríaco. Ela, filha de uma francesa com um “ bugre” . Ele nobre, cultíssimo, poliglota. Ela analfabeta. Ele rico, funcionário do Governo Federal. Ela pobre, de “ baixa extração social” . No entanto, a paixão foi maior que as barreiras sócio-culturais. Na verdade, foi avassaladora, e houve um casamento. Na verdade um cas amento desigual em vários aspectos: social, cultural, econômico, mas igual em vontade. O que não apagava as desigualdades “ vis íveis” . [ ... ] os p ai s es c ol h i am c u i d ad o sa me n t e os c ôn ju ge s d o s f i l h o s. .. O r egi st r o d e n a sc i me n t o e a p u r e za d e san gu e , q u e p ass ou a si gn i fi c ar au sên ci a d e a sc e n d ên c i a af r i can a o u i n d í gen a, er a m el e men t o s es se n ci ai s d e c on d i ç ã o s oci al e, p or c on se g u i n t e, d a h on r a d a f a míl i a, e mb or a ‘ ma n ch as’ p u d e s se m se r f r eq ü en t e me n t e l avad a s a d i n h ei r o. ( CA U LFI E LD, 2 0 0 0 , p . 2 9 ) . Ambos voluntariosos. Ambos orgulhosos. Ambos donos de vontades férreas. Poderia uma união tão des igual dar certo? Haveria honra para o descendente ducal em se unir a uma analfabeta, de origem obs cura, s em “ origem” ? Eduardo passou por cima de tudo isso, rompeu com todas as convenções, foi amaldiçoado pela mãe. Em Caulfield (2000, p. 31), novamente encontramos embasamento para uma resposta: É e vi d en t e t a mb é m q u e a h on r a, c o m seu s c o mp on en t e s s o b re p o st o s d e r el a ç õe s d e gên er o, cl a sse e r aça , er a u m p r i n cí p i o f u n d a m en t al n a or g an i z açã o d a soc i e d ad e b ra si l e i r a. A h on r a col on i al , r ef or ça d a p or l ei s c o mp l e x a s que est ab el e ci a m os p r i vi l égi os e r esp on sa b i l i d ad es d e d i f e re n t es gr u p o s s oci a i s, e r a o p r i n ci p a l mei o d e d i st i n gu i r a s d i ver sa s ca mad a s d e súd i t o s, ma n t e n d o a c o es ã o d a s cl a sse s p ri v i l egi ad a s. M a s e ssa c oe sã o e ra c on t i n u am en t e a me aç a d a p el o d e sen v ol vi m en t o d e soc i ed ad e s c ol on i a i s n as q u a i s o s l i mi t es en t r e a s c a t eg o r i as s o ci ai s n e m se mp r e e r a m mu i t o cl a r o s. As i d en t i d ad es r a ci ai s e d e cl as se e st a b el ec i d a s p e l a l e i er am mai s ou men o s f l u i d a s n a p rá t i c a, d ep en d en d o d a s c i rc u n st â n ci as h i st óri c as. O me s mo a p l i ca va - se a o s r eq u i si t o s mo r a i s n e ces sá r i o s a h o m en s h on r ad o s e mu l h e re s h o n e st a s. 38 Fi g ur a 6 – O jo v e m E dua rdo de Li ma e Si l v a H o erha m, so br i nho - net o do Duq ue de Ca x i a s, ma r i do da Fa n ny , e m 1 9 2 0 , é po ca de s eu ca sa me nt o Eduardo de Lima e Silva Hoerham, era funcionário do governo republicano. Aos 19 anos, em 1912, depois de uma esporádica tentativa de pacificação dos índios “ Caiuás” , do Paraná, aventurou-se a pacificar a então poderos a e feroz tribo dos “ Botocudos” , que dominava a região do Alto Vale do Itajaí. 39 Fi g ur a 7 – Índi o s Xo kl e ng s – Bo t o c u do s , na r ese rv a i n díg e na de Du qu e d e Ca x i a s, e m 1 9 2 0 , e m f o t o g ra f i a f e it a po r E d ua r do , ma ri d o de F a nny Criou assim o posto indígena de Duque de Caxias em Ibirama. Como ele mesmo afirmou décadas mais tarde “ Fui carioca, estou bugrificado” . No processo de “ bugrificação” , ele se tornou KATANGARÁ – apelido que os índios lhe deram e que significa “ caviúna” , uma árvore muito comum nas matas catarinenses, conhecida por sua resistência e rigidez. Ele trocou as comodidades da capital federal do Rio de Janeiro pelas inóspitas matas do Alto Vale do Itajaí, como funcionário do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), determinado a pacificar a então tribo dos ferozes botocudos que contava com cerca de 1000 homens . 40 Fi g ur a 8 – E dua r do , Fa n ny , a peque na Da l bérg i a e m s ua re si dê nci a de Ibi ra ma a co mpa n ha do s p el o s m es mo s bug r e s da f o t o n º 7 , a g o ra j á “ci v i l i za do s” Sem dúvida foi uma tarefa árdua. Além da antipatia dos índios, que não raras vezes tentaram atingi-lo com suas “ amistosas” flechas e lanças, Eduardo sofria a hostilidade da comunidade de Hamônia – eminentemente alemã – onde, na condição de brasileiro nato, não era visto com os melhores olhares. Mas para ele, a missão de pacificar os botocudos e, automaticamente, dar condições de colonização da região, recebia uma consideração tenaz, a qual, quando lhe interpunham obs táculos, era defendida com rigor, quando não pelo gatilho do revólver. Ele faleceu em Ibirama com 84 anos de idade. Pacificador dos Índios, digno descendente do Duque Pacificador. 41 Fi g ur a 9 – E d ua r do d e L i ma e Si l v a H o erha m, a o s 8 0 a no s, e m 1 9 8 0 O casamento permeado de forte paixão, deu como resultado quatro filhos, dois meninos e duas meninas: Dalbérgia, Setembrino, Generino e Laioneli. Um delas, a mais velha, Dalbérgia, reside em Brusque e tem 82 anos (ver apêndice B). Orgulhosa de sua ascendência, ela me fala: Mi n h a mã e er a f i l h a d e u m b u gr e e d e u ma f r a n ces a, m eu p ai , f i l h o d e u m of i c i al d o Ex ér ci t o I m p er i al Au st r ía c o c o m a sob r i n h a n et a d o Du q u e d e Cax i a s. Eu n a sci n o P ost o In d í g en a d e Du q u e d e Ca x i a s, q u e t i n h a e sse n o me p or cau sa d o me u t i o- b i sa v ô. Mi n h a mã e n a sc eu e m 1 9 d e jan ei r o d e 1 9 0 0 , e fa l ec e u em 1 9 9 4 a o s 9 4 an o s e me i o d e i d ad e . Er a f i l h a d e J o ã o Ra ym u n d o d o s An jo s e d e Th e od or a d a Si l va. C a sou - se c o m meu p a i e m I b i r ama n o d i a 2 2 d e set e mb r o d e 1 9 2 0 . Lá e m Ib i r a ma, m or á v a m os n o P o st o In d í g en a , p oi s me u p a i f oi o p r i m ei r o h o m e m c i vi l i za d o a t o ma r c on t at o c o m o s ín d i o s x o kl e n g, n o Val e d o It a jaí. Os ín d i o s o c h a ma v a m d e ‘ Kat an ga r á ’ , e m l ín gu a b ot ocu d a c a v i ún a, ár v or e r í gi d a e r ob u st a . N o f i n al d e t u d o, m eu p ai se a rr e p en d eu d e t er d o me st i cad o o s ín d i o s p or q u e a ch a v a q u e a cab ou p or a ju d ar o s b r an c o s a d est ru í - l o s 42 p el a mi sér i a e p el a fo m e. Ma s, n a q u el a ép oc a, q u an d o e u e r a b eb ê, n ão p en sa va a ssi m. Er a fu n c i on ár i o p úb l i c o d o g o v er n o fe d e r al e t r a b al h av a n o Se r v i ç o d e P r ot eç ã o a o Í n d i o ( S P I) q u e e r a d i r i gi d o p el o M a r ech al C ân d i d o Mar i a n o R on d on . El e mor r eu c o m 8 4 a n o s. Me u p ai er a u m h o me m, co m o se p od e ver p e l as f ot o gr a fi a s, u m h o me m mu i t o b on i t o, mu i t o l i n d o, re f i n ad o, c u l t o, f al a v a ci n c o l ín gu a s, l i a mu i t o, er a mu i t o el e gan t e. Mi n h a mã e e ra b e l í ssi ma , a s f ot o gr a fi a s m o st r a m i ss o t amb é m , mu i t o l i n d a , m as er a an a l f ab et a q u an d o c as ou c o m el e . Foi el e q u em e n si n ou t u d o p r a el a . Escr e v er , l e r , se v e st i r b em , s e t or n ar r e fi n ad a. El e f oi p r of e s sor d el a. Ma s a p e sa r d i ss o t u d o , se el e er a or gu l h o s o, el a e r a m ai s. O s d oi s se b ri ga va m mu i t o , c ad a u m d e r e v ól ver e m p u n h o sa b e? E l e e ra vi ol en t o co m el a , e e l a e ra f i r me , l u t ad or a, e n ér gi ca . Br i g a va m d e r e v ol ver e m p u n h o si m sen h or ! El e t re mi a e e l a ... fi rme . El a s e mp r e t i n h a u m r e v ol v er . Cu i d a va d e n ós q u at r o – os q u at r o f i l h os – c o m mu i t o cu i d a d o , ma s p as sa v a o c h i c ot e se a c oi s a n ã o i a c o mo e l a q u er i a . Mas se mp r e f oi u ma mã e mu i t o b oa, c u i d ad o sa, p r e sen t e . Ma s o c h i c ot e. .. e st a va se mp r e al i , el a n ã o c on t av a t e mp o. .. e e m q u al q u e r u m q u e e st i ve sse p or p e rt o f o sse q u e m f o sse. A aaa aa! E l a er a u ma mu l h e r f or a d aq u e l e t emp o . El a caç a va – d e t u d o – n ã o t i n h a m ed o d e n ad a , d a p r a v er p el a s f ot o s e l a c o m t r a je d e c aça , e sp i n gar d a e f a c ã o- d eca ça. Ti n h a su a p r óp r i a can oa ( cai a q u e) , c a v al g av a u m ca v a l o n e gr o mu i t o l i n d o e b e m t r at a d o. El a n ã o se p r e n d i a e n e m se i mp or t a va co m o q u e n i n gu é m ac h av a ou p e n sa v a. Se mp r e d i z i a a ssi m: A vi d a é d u ra e n ós n ã o p od e m o s ser m ol e s. Desta forma começa a saga de uma mulher notória em minha cidade. Ainda hoje, passados anos de sua morte, Fanny é assunto e conversa na comunidade. Fanny dona de um “ fogão-de-gato” (casa de prostituição no jargão dos profissionais do sexo), a Fanny dona de bordel, a Fanny desvirginadora dos meninos, a Fanny iniciadora sexual, a Fanny que andava de bicicleta pelas ruas da cidade como se fosse uma rainha. Mas poucos conhecem a Fanny mulher, a Fanny pessoa humana, a Fanny dona de dignidade ilimitada, a Fanny dama corajosa, a Fanny batalhadora. M as tantos predicados, penso, podem ser substituídos por Fanny: uma mulher muito a frente de seu tempo. Pode-se avaliar muito bem a Fanny, pelas fotos abundantes que tão gentilmente sua filha mais velha, dona Dalbérgia, me confiou para escrever esta pesquisa. Entre fotos, recortes de jornais de época e documentos são cerca de 50 itens que como amante da história reputo os mais preciosos . Quando naquela manhã, no apartamento de Dona Dalbérgia, em nos sa primeira conversa, ela me disse que separara algumas “ coisinhas” para minha pesquisa e fiquei muito contente pela gentileza. Mas quando ela “ derramou” aquela coleção de fotos e papéis na mesa à nos sa frente e eu peguei a primeira 43 foto, um arrepio mis to de felicidade, veneração e expectativa correu pelo meu corpo. Para se ter uma idéia, numa época em que fotografar era uma exclusividade de ricos, as fotos, postais, ricamente encartados em álbuns individuais, provam a vida opulenta que este casal levava naquele posto indígena isolado do mundo. São uma seqüência de retratos e documentos os mais variados em que fica evidente a paixão tórrida entre um homem e uma mulher. Uma mulher que nascera pobre e foi ambientada, reeducada a um mundo de luxo e conforto, de cultura e requinte pela formação e ação do marido. Ele a moldou, a refinou, a educou, a lapidou. Fi g ur a 1 0 – F a nny e m 1 9 2 1 , u m a no a p ós seu c a sa me nto co m E dua r d o 44 Bolsas, chapéus, sapatos, roupas, adereços, jóias, maquiagem, corte de cabelo, móveis, tudo evidencia uma mulher bem cuidada, bem tratada, mimada por um homem apaixonado. Em todas elas, evidencia-se, por outro lado também uma mulher apaixonada, mas ao mesmo tempo, insubmissa, voluntarios a, indomável. Fi g ur a 1 1 – Fa n ny , u m a no a p ó s se u ca sa me nt o ( 1 9 2 1 ) , t ra j a da de a c o rdo co m a mo da de Pa ri s Ele sentado, ela de pé. Ela s ó, paramentada à lá Paris. Os dois com a filha mais velha, minha amiga Dona Dalbérgia aos dois anos de idade. Aristocráticos, sentados os dois, Fanny com a filhinha no colo, rodeados por índios que portam bordunas mas já “ civilizados” , “ branqueados” , cobertos pelos trapos da civilização, aculturados, fantasiados de “ homem branco” . Algo de que Katangará se arrependeria mais tarde: “ Pequei ao pacificar os índios no Vale do Itajaí. Contribuí para a sua extinção.” 45 Fi g ur a 1 2 – E d ua r do , F a nny e a pe q ue na Da l b érg i a e m 1 9 2 2 É uma história que desfila frente aos olhos: ver, rever, avaliar, analisar essas fotografias. Rever novamente. Em todas a paixão é evidente. E o orgulho também. Desmedido; que um tinha do outro. Ele o criador, ela a criatura. Fotos da casa – imensa, um complexo na verdade. De uma mãe extremosa, mas rígida, com os quatro filhos, acompanhados por babá e serviçais , como feudatários . De carros de boi, novamente acompanhados por bugres – ora nus, ora vestidos . De hóspedes da capital federal, do exterior, de padres missionários que se hospedavam na residência da família “ ducal” . Uma família nobre, conservadora, patriarcal. É o que os retratos evidenciam. 46 Interessantíssima e extremamente pertinente esta observação de Caufield (2000, p. 36): ( ap ó s a I Gu er r a Mu n d i a l ) En q u a n t o as cap i t ai s d a E u r op a oci d en t al p ar ec i a m e st ar en t r an d o e m d e s or d e m e c on ô mi ca e d e v as si d ã o s oci al mu i t o s i n t el ec t uai s e p ol ít i c o s b r a si l ei r os o st e n t av a m a su p er i or i d ad e m o ra l e a t é me sm o mat er i al d o Br a si l , at r i b u i n d o amb a s à e st a b i l i d ad e d a f a m íl i a b r a si l e i ra t ra d i ci on a l . Ou t r o s at a ca va m a s m oç õe s t ra d i ci on a i s sob r e a s re l aç õe s d e g ên er o e h on r a d a fa mí l i a c o m o r esq u íci o s d e u m si st e m a s oci a l u l t r ap ass ad o q u e i mp e d i am q u e o p aí s se e q u i p ar as se a o mu n d o ci vi l i z ad o. Mi l it a n t es p ol ít i co s e p r of i ssi on ai s p r o gr e ssi st a s d a e l i t e q u e se op u n h a m á s e st r u t u ra s p ol í t i cas ol i gár q u i c a s n a c i on ai s cr i t i c ava m o q u e p a s sa r a m a c on si d e r ar t r ad i ç õ e s p at r i a r c ai s a r cai c a s, i n c l u i n d o a ve n er aç ã o d a vi r gi n d a d e e u ma su p er v al or i za ç ão d a h on r a sex u al . Os p a r t i d á r i os d e st a p o si çã o, i n c l u i n d o vá r i a s f e mi n i st a s, su st e n t ava m q u e as n o çõ es u l t r ap a ss ad a s d e h on r a f r u st r a v a m o s esf or ç os p r o gr e ssi st a s p ar a m od er n i zar a f a m íl i a d e u ma f or m a co mp at í ve l c o m o s a v a n ç o s ec on ô mi c o s e s oci ai s e a s t en d ê n ci as i n t er n a ci on ai s d a ép oc a . Fica evidente que o casamento de Eduardo e Fanny foram apanhados nesse cadinho, um turbilhão de transformações que afetaram principalmente as mulheres. Como afirma Caulfield (2000, p. 29), em sua obra: “ Aos olhos de seus pares, a reclusão das mulheres da elite, fazia-as moralmente superiores á mulheres do povo” . Fi g ur a 1 3 – Fa nny co m seu s f i l ho s Da l bé rg i a , Se te mb ri no , G en eri no , La i o nel i e a ba bá x o kl eng 47 Num tempo em que a boa mulher, a boa esposa e a boa mãe, ficavam em casa, o que era imprescindível para a sua boa reputação, vemos a Fann y revestida em trajes de caça, com calças cullotes, botas de cano longo, cinturão guarnecido de facão de caça, com es pingarda apoiada ao lado. Na cintura, pendurada, e nas mãos, em ostensiva pose de caçadora bem sucedida em s ua empresa, grandes jacupemas abatidas. Ela personifica Ártemis. É a própria deusa da caça. Fi g ur a 1 4 – Fa n ny e m 1 9 2 5 , e m t ra j e d e ca ç a , a pr es en ta c o m o rg ul ho , sua p re sa a ba t i da Mais adiante vemos Fanny, apresentando seu caiaque com o qual remava pelo revolto rio local. Uma desportista. Cavalgava um cavalo negro com sela masculina e não com cilhão como convinha a uma mulher de “ bom nome” . Uma guerreira. Seria Morrigam, a deusa guerreira dos celtas? 48 Fi g ur a 1 5 – E m 1 9 2 8 , F a nny co m se u c a i a que, no s r i o s de Ibi ra ma Numa época em que a maioria absoluta da população des conhecia o que era ter um automóvel, aparece Fanny e Eduardo sorridentes, em frente a um veículo de luxo, Ford, todo ele enfeitado por flores por aquela mulher incomum. Fi g ur a 1 6 – Fa n ny , E dua r do e u ma v i si ta nt e da c a pi ta l f eder a l co m se u v e íc ul o Fo r d e m Ibi r a ma , no a no de 1 9 2 5 49 Mas as constantes cenas de violência entre Eduardo e Fanny, as brigas com revólveres apontados um para o outro, acabaram por levá-la a uma decisão radical. Abandonou tudo. A casa luxuosa, as roupas elegantes de Paris , os es portes, o cavalo, o automóvel, os filhos, o marido e veio para Brusque rompendo com tudo e com todos. Rompeu com a classe s ocial a que estava ligada pelo casamento e lutou por si. Só! Fi g ura 1 7 – Pa dr e s M i ssi o n ári o s co m ín di o s bo t o c udo s, e m 1 9 3 0 , n a re se r v a i n díg ena Du que d e Ca x i a s. E ss es pa d re s que v i si t a v a m reg ul a r me n t e a re serv a pa ra ca t e q ui z a r o s í ndi o s e ra m se mp r e hó sp ed e s da Fa nny e de se u ma r i do , Ed ua r do Dona Dalbérgia relata: Br u sq u e n aq u e l e t e mp o er a u ma c i d ad e gr a n d e , i mp or t an t e sab e ? ( r i so s) . É si m! A f a m íl i a se mp r e vi n h a p ar a cá vi si t a r a c i d ad e. Da í, u m d i a el a c a n sou d e t u d o, d a s b r i ga s; d e t u d o sa b e? . .. M o n t ou a ca val o e f oi e mb or a . E m Águ a s Ne gr as el a en vi o u o c a v al o d e v ol t a p r a c asa e ve i o p r a B r u sq u e s e m n ad a .. . éééé ééé é! El a n ã o t i n h a med o d o p e r i g o, d e sc o n h eci a o q u e e ra m ed o. H o je e m d i a, o s h o men s meu fi l h o , só ve st e m c al ça p ar a en f e i t ar ou e sc on d er a s p er n a s ( mu i t o s r i s o s) . . . éé ééé é éé! Ni s so mi n h a mã e e ra mu i t o h o me m . Nã o t i n h a med o d e n a d a. Foi f ax i n ei r a , co zi n h e i r a, c o p e i r a t amb é m . C o m o e u d i sse e l a n ão t i n h a med o d e n ad a. Lá e m Ib i ra ma , n o P o st o, el a t i n h a t u d o, ma s n ã o t i n h a n ad a e n t en d e? Dep oi s e l a ab r i u a c a sa p ar a a s mu l h er e s. E c l ar o, a s mu l h e r es c o m e l a t i n h a m q u e an d ar n a l i n h a. 50 Fanny não poderia ter optado por uma mudança mais radical. Nem tão ofensiva ao marido que então, lhe enviou a foto com o versinho inserido na fotografia (Figura 5). Nunca mais se viram. Continuaram s e amando. No bairro Santa Terezinha, na época bem afastado do centro da cidade, a Fanny abriu s ua casa de tolerância. Óbvio está, que não poderia ser no centro da cidade, assim, Fanny foi se estabelecer na periferia. Fi g ur a 1 8 – E m 1 9 6 3 , j á h á mui t o se pa r a da d e E dua rdo , Fa n ny po sa c o m dua s j o v en s a ux i l i a re s e m Br usq ue Há uma necess idade das autoridades, da elite, das “ pessoas de bem” em deslocar para as periferias essas atividades, ditas desones tas. Ocorre na verdade, uma marginalização social e, em decorrência, geográfica também. O que não é aceito, o que deve ser oculto, é marginalizado, transformado em 51 suburbano (sub-urbano), periférico de forma a reforçar a condição de pária. Na Paris do século XIX, o Barão Hauss mann foi o responsável pela “ reurbanização” da cidade. Em Londres isso começou a ser feito, já durante o reinado de Charles II, logo após o grande incêndio, quando Sir Chris topher Wrenn ficou encarregado de vários dos projetos de modernização da City, isso no século XVII. Na verdade esta política é tão velha quanto a humanidade e no Brasil, que não é diferente de nenhum lugar neste as pecto de exclusão, sempre foi adotada. No Rio de Janeiro, foi traumática a histórica reforma levada a cabo entre 1902 e 1910, quando as autoridades republicanas trabalharam para transformar a capital federal em uma vitrina da nação moderna e civilizada. “ [...] a polícia e outras autoridades públicas empenharam-se em reforçar os limites que separavam as famílias honestas e atividades decentes de ‘classes perigosas’ e mulheres publicas desonestas. ” (CAULFIELD, 2000, p. 6). No mesmo contexto e momento, Pereira (2004, p. 46), em sua obra As Decaídas, apres enta Florianópolis na trama das mudanças urbanas para um reajus tamento s ocial, onde a “ arraia miúda” , a “ ralé” insiste em freqüentar um lugar que, se já fora, não é mais seu: [ ... ] n o v a i e ve m d e s e u c ot i d i an o, a q u el as p e s soa s c on st an t e me n t e t r an si t ava m p e l as a ven i d a s e r u a s on d e o u t r or a r e si d i am. El as se mp r e ap a re cer i a m e m c en a, sa i n d o d et r á s d o ‘l i x o u r b an o’ ; ou se ja, n ã o i r i am e mb or a , u m a vez q u e, al é m d e b u sc a r e m a l i mei os d e s ob r e vi vê n ci a, t a mb ém q u er i a m u m l u gar so b a l u z d a ci d a d e n o va . E continua: An t eon t e m, q u an d o i n ú me r a s f a m íl i a s f a z i a m o c o st u mad o c or s o n o J ar d i m Ol i v ei r a B el lo, al i a p ar e ce r a m d i ver sa s ‘ mu n d an a s’ b an c an d o ‘ p ose ’ . C on h ec i d ís si ma s n o n o s so m ei o, e ssa s mu l h er es d ev e m c o mp r ee n d er q u e al i e n t re f am íl i as n ão é o seu l u gar . ( P ERE IR A, 2 0 0 4 , p . 4 6 ) . Assim, era num terreno com três casas de madeira que surgiu o estabelecimento daquela que fora um dia a es posa de Eduardo de Lima e Silva Hoerham. 52 Numa casa morava a Fanny, noutra casa viria futuramente morar a filha viúva Dalbérgia com os três filhos, netos da Fanny, e na terceira casa moravam as moças. Que nunca eram em número superior a quatro. Dona Dalbérgia relembra: Ol h a q u a n d o eu f i q u ei v i úv a, e m 1 9 6 4 , eu vi m p r a Br u sq u e , p or q u e n ão t i n h a o n d e fi car . M i n h a mã e me a c ol h eu . E l a t i n h a l á n a Sa n t a Te r ezi n h a , t r ê s ca sa s d e ma d ei r a e m ci ma d o t e r re n o d e l a. Nu ma ca sa eu m o r a va c o m mi n h a f i l h a mai s n o v a, a R o se l i , q u e er a u ma men i n a n aq u el a ép o ca . N ou t r a c a sa mo r a va mi n h a mãe e n ou t r a ca sa m or a va m a s mu l h er es d el a e t i n h a os q u a rt os q u e er am al u gad o s p ar a q u e m ch e ga va ac o mp an h ad o. Tu d o d en t r o d o me sm o q u i n t al . Eu i n cl u si v e l a va v a a s r ou p a s d a s mu l h er e s n é ? Nu n ca t i n h a m m ai s d e q u at r o mu l h er e s. Er am se mp re t r ês ou q u at r o sab e? Nã o p o d i a p or mu i t as p or q u e el a s b r i ga v a m en t r e si , i n co m od a v a m mi n h a m ãe , en t ã o, s e mp r e n o má x i mo q u at r o. Os h o men s q u e c h e g a va m ac o mp a n h ad o s a l u g a va m u m q u a rt o . D e d i a h a v i a p ou c o ou n en h u m m o vi me n t o, mai s er a a n oi t e. O s h o men s j á vi n h am jan t ad o s, n ã o se ser vi a r e f e i çã o al i . Só b eb i d as. O s q u ar t o s er a m b e m b ar at os. P or q u e t u d o er a mai s b a r at o n aq u el a ép oc a , sab e ? . A procedência das moças era bem diversificada. Os dividendos vinham da venda das bebidas e a permanência no estabelecimento de cada moça, dependia do seu relacionamento com o proprietário. É ainda a filha de dona Fanny que informa: Vi n h am d o P ar an á , d aq u i d e Sa n t a C at a r i n a me sm o. .. d e Cu r i t i b a. Daí vi n h a m p e d i r p r a f i car al i . Os q u ar t os e r a m b ar at os , e os h o men s o s ocu p a va m e f i cav a m mai s ou men o s u ma s q u a t r o h or a s as si m.. . Na ca sa d e mi n h a mã e t i n h a a s b e b i d as, u m b a r zi n h o as si m.. . Aa aa a a! E l a s, a s m oç as, fi c a va m q u at r o a ci n co an os a l i . Qu an d o e r a m d e gên i o c al m o, ob ed i e n t es, f i c a v a b a st an t e t emp o, t i n h am mi n h a mãe c o m o u ma m ãe, p r ot et o r a, sa b e? Ma s se n ã o er a m ob ed i e n t e s f i ca v a m u ma se ma n a. E l a s c ob r a v a m e f i c a va m c o m o d i n h ei r o d os h o me n s, m i n h a m ãe g an h a va c o m a b e b i d a e o al u gu el d o s q u ar t os. C o mi d a e r a p ou c a c oi sa, t i n h a mu si ca , u m t o ca -d i s c os, se mp r e t i n h a mú si ca [ . ..] 53 Fi g ur a 1 9 – Fa n ny e d ua s de s ua s co l a bo ra d o ra s, e m 1 9 6 5 , no M o r r o do Ro sár i o , no Sa nt u ári o de A za mb u j a . Fa n ny er a u ma mu l her mui t o rel i g i osa e f reqüe nt a v a r eg ul a r m ent e a i g rej a c a t ól i ca de se u ba i rr o , Sa nt a Te r ezi n ha Logo, logo, aquela mulher altiva tornou-se uma figura conhecida na cidade. Circulava por todos os lugares na sua bicicleta. Era uma bicicleta interes sante aquela. Tinha redes de proteção no rodado traseiro pra que as saias não se prendes sem nos raios do aro. 54 Fi g ur a 2 0 – B i ci cl e t a i dênt i ca à qu el a qu e a Fa nny ut i l i z a v a pa r a s eu s “ d esf i l es” na ci da d e. Se mpr e co m v esti do s co l o r i do s e r o da do s, b e m ma qui a da , er a u ma f i g ura que c ha ma v a a t en ç ão Tinha também uma sineta que a condutora tocava sempre que via alguém conhecido. A sineta servia também para alertar os transeuntes da passagem daquela dama. Sim, porque a Fanny deixou o luxo da residência familiar, mas não perdeu a pos e: “ Quem foi rei nunca perde a majestade” . E era como uma rainha que ela circulava pela cidade. Não é por acaso que nos depoimentos, entrevistas e conversas informais , a palavra respeito sempre é evocada ao se mencionar aquela mulher incomum. As fotos dela já idosa comprovam isso. O porte altivo, o olhar firme, destemido. Saudosa, dona Dalbérgia diz: Mi n h a mãe e st a va se mp r e d e b i ci cl et a . A n d a v a p o r t u d o d e b i ci c l et a . Qu an d o v ol t ava p r a c a sa, t o ca v a a s i n et a d a b i ci cl et a e d i zi a : Vol t ei sal va e sã! Mi n h a mã e n u n ca p e r mi ti a q u e a s c o i sas se mi st u r a sse m . Eu vi vi a co m mi n h a f i l h a n u ma d as c a sa s, e n u n c a h ou ve n en h u m a b r i n ca d ei r i n h a d e n ad a , d e n i n gu é m c o m a g en t e . Cr i ei a l i mi n h a f i l h a e h o j e mor o aq u i , c o m mi n h a fi l h a R ose . Te n h o u m n et o e u ma n et a n a f acu l d a d e d e med i c i n a e u ma n a f acu l d ad e d e Di re i t o. Mi n h a mã e er a u ma p es s oa mu i t o al e gr e , se mp r e al e g re , s e mp re d e b e m c o m t u d o e c o m t od o s. Dona Fanny não apenas atendia aos meninos e rapazes no aspecto da iniciação sexual, mas também, de forma pedagógica, orientava no aspecto 55 comportamental. Como um jovem, um moço “ decente” , educado, deveria se comportar. Paradoxal? Talvez, mas o que esperar de uma mulher como ela? Fanny faleceu com 94 anos e meio, no dia 02 de julho de 1994. É perceptível o grande orgulho que Dona Dalbérgia sente de sua mãe quando fala que: Mi n h a mã e f oi mu i t o i mp or t an t e. Foi . Po r q u e el a n u n ca d e u mau ex e mp l o p r a n i n gu é m . Se mp r e d eu b on s c on se l h os p ar a o s j o v en s q u e i a m l á . Se mp re mu i t o d i re t a, mu i t o ob je t i va, n a d a d e mei a s p al a vr as. Foi u m e x e m p l o e se mp r e a ju d ou o s jo v en s ou q u a l q u er p es soa , h o me m ou mu l h e r q u e ch ega v a l á n a cas a, c o m seu s p r ob l e ma s. Ou vi a e at e n d i a a t od os c o m al e gr i a , c o m p r a zer , c o m u t il i d a d e e co m a m o r. C o m h on e st i d ad e. El a ac o mp an h a va t u d o. E r a u ma p e ss oa mu i t o b oa e con si d er ad a. N ã o f az i a ma l p a r a n i n gu é m , f r eq üen t a va a Igr e ja se mp r e q u e p od i a. N o s úl t i mo s mes e s d e v i d a r ece b i a a e u car i st i a se man al m en t e p orq u e o p ad r e i a l á e m ca sa vi si t á- l a. Fi g ur a 2 1 – Fa nny , a o s 8 1 a no s, e m 1 9 8 1 . U ma pe r so na g e m l e nd ári a na ci da de de Br u sque 56 E comenta ainda: Meu s f i l h o s e m eu s n et o s t ê m o r gu l h o d e l a. E l a er a u ma mu l h er d e f i b r a. U ma mu l h e r d e q u em a ge n t e p od e se or gu l h ar sa b e? Mi n h a mã e é u ma mu l h er p ar a n ã o s e e sq u e ce r n u n c a, e aq u i l o q u e e l a d i zi a ai n d a val e : A v i da é dura e n ós nã o po de mo s ser mo l e s. Fi g ur a 2 2 – Rec é m- ca s a da , Fa n ny so rri f el i z pa ra po sa r pa ra es t a f o t o g r a f i a , que se u ma r i do E d ua r do ma n do u t i ra r e m 1 9 2 2 . M es mo te ndo - o a ba n d o na do , Fa n ny se mp re o a mo u e f o i po r e l e a ma da CAPÍTULO 3 FANNY NA MEMÓRIA DOS PROFESSORES Foram três professoras entrevistadas. Todas aposentadas, figuras conhecidas na cidade, exerceram a atividade de educadoras por longos anos e hoje estão aposentadas. Os depoimentos foram tomados em suas casas em momentos diversos . Mesmo aposentadas , todas têm vários compromissos e familiares a quem se dedicam. Foram vários encontros em que as lembranças da cidade, de pers onagens, da escola, de alunos vieram à tona. As professoras apresentaram diferentes opiniões e perspectivas diante do tema da pesquisa. A faixa etária das participantes é bem regular variando entre 70 e 80 anos. São professoras de escolas particulares, municipais e estaduais na cidade de Brusque. As profiss ionais da educação entrevistadas foram selecionados de forma a que se enquadrassem dentro de um perfil bem definido: ser profess oras atuantes na cidade de Brusque na década de 1960, em es cola pública ou particular; na sua atuação como profissionais da educação terem conhecimento da Fanny e de s ua atividade na cidade de Brusque como iniciadora sexual dos rapazes. Nesses encontros com as professoras é notável como se percebe a relação existente entre a escola, a sociedade, o professor e o aluno. É assim que Rego (2003, p. 16), em s ua obra sobre Memórias da Escola se exprime nesse aspecto: [ …] a escol a é vi st a co m o t en d o u ma fu n çã o s oci a l p o r q u e co mp ar t i l h a co m a s f a m íl i as a ed u c aç ã o d as c ri a n ça s e jo ven s; u ma f u n çã o p ol ít i c a, p oi s c o n t ri b u i p a ra a f or ma çã o d e ci d a d ã os e u m a f u n çã o p e d a g ó gi ca , n a me d i d a e m q u e é o l o ca l p ri vi l egi ad o p a r a a t r an s mi ssã o e c o n st r u çã o d e u m c on ju n t o d e c on h eci men t os r el e v an t es e d e f o r m as d e op er ar i n t el e ct u al me n t e se gu n d o p ad r õ es d est e c on t ex t o soci a l e c u l t u r al . E continua Rego (2003, p. 16): “ […] a escolarização desempenha, portanto, um papel fundamental na constituição do indivíduo que vive numa sociedade letrada e complexa como a nossa […]” 58 É Rego (2003, p. 17), que ainda ensina: O e sf o r ç o e m ex a mi n a r e ssa s q u e st õe s – e sc o l a, al u n o, p r of e s s or, f a míl i a – p od e si gn i f i c a r u ma i mp or t an t e c on t r i b u i ção p ar a o e st u d o d as c o mp l ex a s r el a ç õ es ex i st en t e s en t r e o i n d i ví d u o, a ed u c a çã o e a cu l t u r a , ou se ja, d i sc u t i r q u al é o p ap e l d a esc ol a ri za çã o n a f or ma çã o d a s si n gu l ar i d a d es, e a s i n f l u e n ci a s q u e o i n d i vi d u o r ece b e . É ainda a mesma autora, que assim se exprime: É i mp or t an t e f r i sa r q u e, a s i n f l u en ci a s n ã o a g e m d e f or m a i sol a d a ou i n d e p en d en t e , t a mp ou c o sã o r e ce b i d as d e mod o p a ssi v o, n a med i d a e m q u e o i n d i ví d u o i n t er n al i z a, d e m od o at i v o e si n gu l ar , o r ep er t ór i o d e seu gr u p o cu l t u ra l . De ss e mod o, n o seu p r oce s so d e con st i t u i ç ão, p or m ei o d e i n ú m er a s i n t er aç õ e s s oci a i s, o su jei t o r ece b er á i n f or m aç õ es e i n f l u en ci a s d o s d i f er en t e s e l e men t o s, en t e n d i d os c o mo i mp or t an t es me d i ad or e s q u e c o mp õe m e sse gr u p o: d e d et e r mi n ad a s p e sso a s c o mo p ai s, mãe s, a v ó s, vi zi n h o s, c ol e g as d e esc ol a, a mi g o s d a ru a , p r of e s sor e s e ou t r os ad u l t o s. D e i n st i t ui çõe s p or ex e mp l o d a f a míl i a e d a e scol a; d o s mei o s d e co mu n i c a çã o, d o s i n st r u me n t o s c u l t u r ai s ( d o s l i vr o s) e d e o u t r o s d i sp on í vei s e m seu a mb i e n t e cu l t u ra l . ( RE GO, 2 0 0 3 , p . 5 5 ) A primeira professora que entrevistei tem hoje 80 anos de idade tendo sido professora e diretora de escola por mais 30 anos; sempre na rede publica estadual; fui ouvi-la em sua casa; ela fez a gentileza de deixar os bordados de lado para me atender por duas vezes. Inicia a sua fala falando da escola da década de 60, que na s ua opinião era totalmente diferente de hoje em dia.” Nós éramos regidos pela Lei de Diretrizes e Bases 3.735 de 16 de dezembro de 1946, que todo profess or e diretor tinha que saber de cor” A profes sora está convencida de que o rigor disciplinar da escola era algo intrínseco à educação da época “ não é porque havia o regime militar que tinha disciplina ou não , era a escola que fazia a diferença e hoje não faz mais” . Demonstra assim a crença na escola como instância independente das relações sociais e culturais, numa visão essencialista da escola e da cultura. Essa crença internalizada dava ares de autonomia para o professor da época: “Era a pr ofessora que conduzia o aluno para a sala de aula, em ordem, com disciplina, mas de for ma carinhosa.” 59 Continuando em seu depoimento, a professora prossegue dizendo: P el a Lei 3 .7 3 5 , t i n h a q u e h a ve r u m ‘ ser m ã o’ me n s al d a d i r eç ã o d a esc ol a p ar a o s p r o f e ss o r es, n a r eu n i ã o men sal . Ti n h a q u e se r d e d u as h or a s. Nã o p od i a ser ma i s, n e m men o s d e d u as h or a s. A Ed u c aç ã o er a t od a el a d e ac o r d o c o m a Lei , e Lei t e m q u e s er cu mp r i d a, p or t od o s e n ã o c ad a u m f az er o q u e q u er , co mo q u e r , d o jei t o q u e q u e r , c o m o a c o n t ece h o je e m d i a. A Lei é um dos inúmeros dispos itivos de controle, de cerceamento de sujeição. A professora enfatiza primeiramente a palavra “ sermão” proferido pela direção. Ess a pratica nada mais é do que uma admoes tação com o fito de moralizar, de criar parâmetros e assinalar linhas de ação. A infração de tais regras acarretava censura e repreensão. Por segundo ela enfatiza o tempo desprendido no “ sermão” dizendo que “ tinha” que ser de duas horas. E por ultimo ela enfatiza o aspecto da norma legal: “ A educação er a toda de acordo com a Lei, e Lei tem que ser cumprida, por todos e não cada um fazer o que quer, como quer, do jeito que quer...” Das palavras da professora em que a educação era toda ela dentro da Lei e que a Lei tem que ser cumprida depreende-se que ninguém escapava desse controle abs oluto reinante na educação em Brusque na década de 1960. Todos estavam sujeitos ao poder, à regra, à norma, à lei. No s eu depoimento a profess ora assevera que havia uma submissão perpassando toda a es trutura educacional atingindo indiscriminadamente mestres e alunos. “ .. . p or q u e é u m p od er cu jo mod e l o s er i a e s se n ci al men t e ju r íd i c o, ce n t r ad o ex c l u si va me n t e n o e n u n ci ad o d a l ei e n o f u n ci on a me n t o d a i n t er d i ç ão. Tod o s o s m od o s d e d o mi n a çã o, su b mi s sã o, su jei ç ã o se r ed u zi ri a m, f i n al m en t e , a o e f ei t o d e ob ed i ên ci a.” ( FO U CA U LT , 1988, p. 83) A profissionalidade docente vai então s endo delineada na fala da professora quando ela ressalta que a Educação Moral e Cívica era essencial na grade escolar, porque passava o embasamento do caráter do aluno, futuro cidadão. “ Não deveria faltar no currículo. É ali que o aluno aprendia o Hino Nacional, o Hino à Bandeira, o Hino da Independência. Apr endia a r espeitar o país e a sociedade em que vivia, e nessa sociedade, é claro estava o professor.” 60 Nota-se aí a centralidade da ação docente sendo depositada na identidade profissional dos professores. O currículo escolar compreendia Técnicas Comerciais “que ensinava tudo de que s e precisava aprender par a viver no mundo burocr ático, s em nunca ter trabalhado num escritório. Ali o aluno aprendia o que era um cheque, como preencher um, notas promissórias, duplicatas, notas fiscais”. Saberes endereçados aos meninos, pois as meninas, “ nas Artes Indus triais , as meninas aprendiam a bordar, a costurar ... tudo o que uma dona de casa devia s aber, ... e tinha s ido o Clube Agrícola, quando se aprendia a cultivar um jardim, como ter um galinheiro e uma vaca de leite” . A professora ainda acrescenta: “...tudo o que uma menina precis ava aprender, para quando chegasse a s er dona-de-casa foss e bem sucedida” . Os meninos não precis avam aprender nada disso, já que a função deles era, futuramente trabalhar para prover a casa e a família. “ Então eles tinham que matar o tempo fazendo ‘tripa-de-mico’ (enfiar rodinhas de madeira num barbante), ou pequenos trabalhos de serra ou pintura” Com relação à Fanny, a professora assinala que quando os meninos começavam a dar problemas “lá pelos 13 ou 14 anos, a direção chamava os pais; o pai dava uma surra no rapaz e depois levava ele na Fanny para aprender a se comportar como gente, como homem”. As concepções de gênero da professora ficam claras quando ela diz que “não era uma questão de educação sexual, e sim uma ques tão de educação para ser mulher e homem. Mulher é mulher, homem é homem”. Essa visão essencialista sobre homem e mulher no depoimento da professora tem sido o fulcro de muitos debates desde a década de setenta pelos estudiosos de gênero. Os es tudos de gênero têm colocado que a diferenciação entre os sexos s erve historicamente, a propósitos de diferenciação do poder mais do que propriamente diferenciação entre os sexos. É como se a diferença biológica entre os sexos foss e usada para justificar a desigualdade social; é neste sentido que gênero é uma categoria histórica (SCOTT, s /d). Através de tudo o que se pensou ou diss e sobre gênero, percebe-se que masculino ou f eminino são categorias construídas social e his toricamente, não tendo nada de natural ou essencial. As professoras do período analisado possuem uma compreensão hipostasiada de homem e mulher como características naturais , biológicas. 61 A história cultural vem revelando, apoiada nos estudos de Foucault que a separação nas escolas, por idade, por sexo, por fila, por classe, não tem outro objetivo que o de controle dos sujeitos, inclus ive de sua sexualidade. Esse controle é forma de exercer o poder e de uniformizar condutas e pensamentos. As lembranças sobre Fanny desta professora expressam uma respeitabilidade contraditória que fomos percebendo ao longo da pesquisa, presente também nos depoimentos das outras professoras: há um respeito indiscutível pela pessoa de Fanny mas é um respeito permeado por reticências. “ Me lembro da Fanny, é claro que sim. Quem não a conheceu? Era uma figura pública. Ela não era imoral, era uma pessoa nor mal” ; nota-se a distinção que a professora entrevistada faz entre a pessoa de Fanny e sua profissão: “ ... Imoral era o que ela fazia, quer dizer a profissão dela” . As professoras não conseguem admitir a pros tituição como valor ainda que ques tionam se deveriam: “ Daí tem gente que diz que é a pr ostituição é a profissão mais antiga do mundo, até pode ser, não sei, s er á que a profissão mais antiga do mundo não pode ser alguma atividade decente?” Mesmo assim, afirma que “ agora, é claro que nem prefeito, nem juiz, nem delegado nunca pensaram, pelo menos pelo que eu s ei, em fiscalizar ou repr ovar ou mesmo repr imir o que aquela mulher fazia” E outra vez a contraditoriedade aparece neste depoimento: “ ... ela era uma pessoa decente, indecente era a casa dela com aquelas mocinhas lá, sendo prostitutas. Eu via ela pas sar ... mas ignorava” .Em outro trecho da entrevista a profess ora diz: “ ... Via, mas não enxergava” . Na atividade da personagem Fanny, ao mesmo tempo que, em seu estabelecimento dava abertura para tudo aquilo que a escola refreava, proporcionava-lhe uma parcela no exercício desse poder. Jus tamente por permitir-se uma prof issão que todos rechaçavam, ela atría, e isto se constituía numa relação de poder. Se ela era um mal para a s ociedade brusquense, essa mesma sociedade admitia que era um mal necessário e nessa necess idade, Fanny exercia seu poder. Em contrapartida a sociedade exercia poder também sobre ela já que os freqüentadores pagavam pelos seus serviços e nesse pagamento es tavam inseridas uma série de liberdades que não se usufruía na sociedade. 62 No depoimento acima fica claro o enfoque disciplinador e uniformizador da escola; o colégio, tendo como função ins truir e educar, não deveria se limitar a ensinar a ler e escrever, mas deveria formar a cidadania dentro de moldes rígidos, com dis ciplina normalizadora e fundamentada na ordem. Na análise de Foucault (1988), nas primeiras escolas da idade moderna, a divisão por idade e por s exo, nada mais significava do que uma forma de tentar s e controlar a sexualidade das crianças e, conseqüentemente a sexualidade do futuro cidadão. Em Brusque essa divisão também está bem delineada, pois as meninas tinham atividades específicas e diferenciadas dos meninos, como este depoimento da primeira professora deixa trans parecer. A segunda professora entrevistada tem 70 anos de idade. Foi professora de línguas – inglês e alemão – por 45 anos. Recebeu-me em sua casa em duas tardes, quando relembrou toda a sua trajetória na atividade de professora de um colégio particular, em Brusque. O disciplinamento e a ordem são para ela exigências do contexto da época e da mesma forma que a primeira depoente, não vê relações entre as circunstâncias da época e o regime militar do Bras il da década de 60: “ A escola em que trabalhei, primava pela disciplina e não apenas pela influência da cultura alemã – aquele prussianismo tão famos o – mas porque o momento era assim” Para ela o momento era assim “ não exatamente pela ditadura militar, ... a ditadura, o regime militar influenciava, mas a influência mesmo, era a do momento... a cultura, o contexto pregavam aquilo...” Seria necessário comentar que o regime militar imposto a esta década era o momento his tórico brasileiro e deste momento emergem muitas circunstâncias; a cultura alemã estava aí perpassando a formação cultural de Brusque. “ ... a cultura alemã, a religião luterana, a situação política...a cultura daquele momento faziam com que a escola em que eu trabalhava foss e uma escola onde o comportamento era a espinha dorsal.” Novamente aparece, como no primeiro depoimento, a identidade docente envolta em respeitabilidade social: “ havia uma obediência absoluta ao profess or, um respeito ...o professor era pessoa conhecida e reconhecida na comunidade, era revestido de autoridade...a escola era um referencial” . Numa visão da sociabilidade da época, a professora fala das festas escolares , 63 e da participação da comunidade: “ ... as portas da escola estavam sempre abertas para a comunidade, hoje em dia, há muros, portões e câmeras. A escola é feita para atrair as pess oas e não para se fechar em si mesma, se isolando.” A professora está se referindo a fenômenos complexos das sociedades de controle; Diferentemente das sociedades disciplinares da modernidade, o que temos hoje é o poder exercido a dis tancia, sem dor e s em a necessidade de disciplinamento incisivo dos corpos; as câmeras óticas olham tudo e todos numa perpétua vigilância, onde todos controlam todos. O movimento da contra cultura dos anos setenta vai produzir alguns efeitos em Brusque a partir de 80: “ Não haviam temas transversais, não havia educação sexual. Isso só ocorreu anos depois.” Se a sociedade brus quens e sofria os efeitos da contra cultura atrasada como nos relata essa professora, lembremo-nos de que, o movimento da contra-cultura é típico da década de 60. “ Nós aqui em Brusque não sentimos de imediato as cons eqüências do rock, da mini-saia, das drogas, da liberação sexual. Isso só foi apar ecer por aqui, lembro-me bem, a partir de 80” . São famosos o maio de 68 em Paris onde estudantes e professores protestavam nas ruas contra as burguesias e os poderes de Estado, lutas que vemos acontecer também no Brasil; a Rua Maria Antonia em São Paulo também presenciou, nes ta época, conflitos entre estudantes, professores e militares . O clima de Brus que era de disciplinamento nesta época, mas as linhas de fuga para a sexualidade faziam-se sentir no ambiente extra-clas se. A e d u caç ã o s ex u al er a c oi sa ex t r a - sal a d e a u l a . E a p en as p a r a os men i n o s. As me n i n a s n ã o. De p en d en d o d a f a m íl i a a mã e p od er i a d ar al gu ma s d i ca s s ob r e men st r u aç ã o e i mp or t ân ci a d e m an t er a vi r gi n d ad e , p or q u e e st e d et al h e est a va l i ga d o à h o n ra f a mi l i a r , a o b o m n o me d a m oç a . Qu an t o a o s me n i n o s, e ss e s er a m en c a mi n h ad os à d on a Fa n n y. E r a a p ess oa m ai s r ec o men d á v e l p ar a a i n i ci aç ã o sex u al . Fi ca va l on ge d o l ar , d a f a m íl i a, e n ã o cr i av a r el aç õ es. Se a sociedade brusquense sofre os efeitos da contra-cultura apenas a partir da década de 80, é forçoso reconhecer que Fanny vivia à frente de seu tempo; a prostituição é tida como a mais antiga das profissões; mas, há outros elementos ness a prática exercida por Fanny, que não poderiam ficar restrita a apenas à prostituição, tal como ela é pensada no senso comum, como uma 64 categoria universal (a mais antiga das profis sões). Há especificidades na figura da prostituta Fanny que as categorias universais não conseguem dar conta; a própria história de vida da Fanny como relatada no capítulo anterior são indícios de uma vida singular antes e durante sua estada em Brusque. Também não é verdade que ela não criava relações como na compreens ão da professora. Hás relações estabelecidas entre Fanny e seu público ou entre as escolas e seus alunos ou ainda entre as professoras e Fanny, eram relações complexas, e, num olhar mais atento, mostraria a questão do poder imiscuídas nessas relações. Ou seja, o poder é, como afirma Foucault onipresente: “ O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque pr ovém de todos os lugar es.” (FOUCAULT, 1988, p. 89) Por exemplo, no depoimento dessa profess ora em análise, vemos a seguir o momento em que a professora concede “ poder” à Fanny: C o m r e l açã o a e ssa se n h ora , a d on a Fa n n y, a p al a vr a r e sp ei t o su r g e co m o s en d o o q u e s e s en t i a mai s f or t e a o se f al ar , e m v oz b ai x a , d el a . E u m mi st o d e su r p r es a, p or v ê- l a an d ar d e c ab eça er gu i d a , ex i gi n d o r e sp ei t o, ap e s ar d e su a c on h e ci d a p r of i s sã o e sc an d a l o sa . Qu an d o e u e r a ai n d a mu i t o n o va , p er gu n t ei sob r e el a a u ma con h e ci d a d e 8 0 a n o s. Su a r esp o st a: ‘ El a e n si n a va os r ap a ze s a f aze r a ‘c oi sa cer t a’ .’ E p o r i sso , a c o mu n i d ad e e q u e m c o m an d a v a a c o mu n i d ad e , a s au t or i d ad es, ac ei t a va m t a mb é m, d e b o m gr ad o aq u el a at i vi d a d e, sen ã o f o s se a Fan n y, t e ri a q u e t er h av i d o ou t r a. E q u em s ab e q u e m se ri a ? E n t ão e r a m el h or as si m. ( ri s os) . O poder, portanto, da maneira como Foucault entende não está localizado em nenhum s ujeito particular, mas circula: ora está com Fanny, ora com as professoras, ora com os meninos-homens, em complexas relações. Eu a vi si t ei , h á u n s 1 0 a n o s at r á s ( ai n d a s e v i a Fa n n y d e b i ci cl e t a p or aí , co m seu s 9 0 e t a n t os an o s d e i d ad e ) , e m c o mp an h i a d a esc r i t or a J an e Gi l b e rt . El a n os mo st r ou f ot os d e su a ju ve n t u d e, ( d e mai ô! ) , a n t es d e f u gi r d e se u b r u t al mar i d o Hö e rh a m, n et o d o Du q u e d e Cax i a s, c o m o i n c en t i vo d o s f i l h o s. Ti n h a san gu e i n d í gen a. E l a er a u ma mu l h e r f ora d o co mu m , à f r en t e d e se u t emp o. El a ca v al g ou at é P or t o Al e gr e, on d e e mb a rc ar i a p ar a a Al e m an h a , p ar a f azer u m cu r s o d e en f er m a ge m . O ecl od i r d a gu er r a e m 1 9 3 9 , fe z c o m q u e t i ve sse q u e d e si st i r , se n d o l e v a d a à vi d a d e ‘ me st r a e m sex u al i d a d e’ . El a c on t o u - m e cer t a v ez , q u e e n t r e seu s fi l h os h a vi a méd i c o s e en gen h e i ro s. E l a er a u m a e d u c ad or a a seu mo d o. 65 O depoimento des ta professora revela certa intimidade com a pessoa de Fanny, uma vez que relata uma visita pessoal à analisanda. Revela também que nossa personagem ins pirou res peito à professora. Respeito e coragem são os sentimentos com que a professora relata partes da vida da pers onagem. [ ... ] Qu an d o s e s ou b e q u e h a vi a f al eci d o, ‘r e sp ei t o’ f oi o sen t i m en t o m ai s p r óx i m o d o q u e sen t í a mo s; p or aq u el a mu l h er cor a j o sa q u e ou sar a ab r aç ar u m a p r ofi s sã o t ã o d i f er e n t e e m n oss o mei o, e mb or a, a ma i s a n t i ga. A Fan n y f oi u ma n ece s si d ad e so c i al . C or a jo s a, v al en t e. É como se nossa depoente, ela mesma abaixasse a voz para falar de Fanny. Reconhece a profis são escandalosa, mas, prefere falar de outros aspectos relacionados à vida de Fanny, como a construção de sua vida familiar, suas investidas em cursos profissionalizantes como o curs o de Enfermagem, a profissão dos filhos. A frase com que tenta ‘classificar’ o sentimento evidencia o cuidado com a classificação dos sentimentos: [...] respeito foi o sentimento mais próximo do que sentíamos [...] Novamente vemos na segunda profess ora entrevistada, um depoimento contendo elementos contraditórios de uma respeitabilidade reticente com a figura da Fanny, onde reconhece-se nela uma profissional mas que foi “ abraçar uma profissão tão diferente em nosso meio” . A terceira profess ora entrevistada tem 72 anos de idade; é aposentada pelo estado de Santa Catarina na área de educação; foi profess ora por 40 anos, s endo que 19 deles na área rural, onde começou a lecionar em 1951; é uma mulher integrada à vida da comunidade, ajuda a comandar também o posto de saúde que fica ao lado da escola, participa da vida da igreja e de várias outras atividades, porque continua, depois de tanto tempo a ser a “ professora” . “ Comecei a dar aula aos 18 anos após concluir o que se chamava o Curso Normal Regional.” Ela nos conta como era a realidade de uma escola rural: Qu an d o c o mec e i a l e ci o n ar , e u t i n h a n a e sc o l a 1 5 a l u n o s. S ei s er a p ar a al f ab et i zar ( 1 º a n o) , 5 er a m d o 3 º an o e 4 er am d o 4 º an o . Tu d o n a me s ma sal a d e au l a . Mu l t i ser i al . E mu l t i car e n t e. Nad a d e b an h e i r o, c ozi n h a, b i b l i ot eca. La b or a t ór i o en t ão n e m s e p e n sa va . Nã o t i n h a est ra t é gi as d e e n si n o, n ã o t i n h a r e cu r sos d e e sp éc i e al gu ma. M a s t u d o er a l i n d o, t u d o e ra mar a vi l h o so, e u vi n h a n a mi n h a b i ci c l et a c o m o se vi es se n u m a vi ão . Le v ei u m m ê s p ar a 66 p er ce b er q u e t i n h a t r ê s sé ri e s d i f er en t e s n a sa l a d e au l a. Ni n gu é m me p a s s ou n ad a . Er a mi n h a p r i me i r a t u r m a e n i n gu é m me f al o u . Após o susto de ser professora de três turmas ao mesmo tempo, ela reafirma a centralidade do profess or na sociedade da época: “ Assim, o professor devia ser muito criterioso no ensino, na temática, na postura, na moral. Porque a comunidade se espelhava nele e cobrava isso dele.” A relação entre o professor e a comunidade era de pertencimento: “ Aqui nesse fim de mundo naquele tempo, o profess or era o dono da comunidade e a comunidade er a a dona do professor” . A liderança docente no mundo rural se multiplicava: “ ele era o médico, o padre, quem dirigia a novena, que ajudava a lavar os mortos, quem segurava a vela na mão dos agonizantes ... er a para a vida e para a morte” . Com relação à sexualidade o mundo rural apres enta as suas peculiaridades: “ No geral, pelo menos aqui na área rural o ensino era o mesmo para as meninas e meninos...claro que quando se tocava no aspecto de repr odução, o process o reprodutivo era refer enciado pelo dos animais ...” Via-se em casa aves, suínos e vacas e “ apreciando aquilo tiravam suas conclusões... no aspecto de reprodução humana, nem pai, nem mãe e muito menos professor referenciavam sobre ‘aquilo’ era ‘mal -criação’ tabu ” . As meninas passavam por traumas com a chegada da menstruação e só iam descobrir realmente o que se passava entre um homem e uma mulher no dia do casamento. E os meninos eram encaminhados para a Fanny, exatamente como os meninos da cidade. “ ... Mes mo aqui no interior, se ouvia falar de que ‘fulano’ tinha ido com o pai ou um tio, fazer uma visita a uma certa mulher na cidade. Mas isso era assunto do pai, a mãe ignorava e não tomava par te” . Para Foucault, a sexualidade pode ser vista como um mecanismo que encerra relações de poder. Este poder que às vezes, pelos depoimentos parece estar nas mãos de Fanny: “ Eu me lembr o da Fanny, como se fos se hoje. cumprimentava a todos com uma leve deferência da cabeça e um leve sorr is o como uma rainha” . Outra vez o reinado de Fanny era rebaixado para uma inevitabilidade histórica e reticente: “ ... na ver dade er a prostituta, mas era a rainha da cidade. Ela era uma mal? Talvez. Mas um mal necessário entende?” 67 É esta respeitabilidade contraditória que nos faz crer na forma circular das relações de poder-saber tal como Foucault (1988) as analisa. Ao mesmo tempo que era um mal, gozava de certa impunidade relatada na fala da terceira professora entrevistada: Nu n ca s e ou vi u u m c o men t ár i o seq u er d e q u e a s a u t or i d ad e s t i ve sse m se q u er p e n sad o e m t o m ar a l gu ma at i tu d e r e p re ssi v a p ar a co m a Fan n y o u o se u est ab e l eci men t o, p or q u e t a n t o a p ess oa d a Fan n y, q u an t o o se u est a b el ec i me n t o e st av a m i n ser i d o n a co mu n i d ad e . Se o t i ve s se m t i r ad o, f a l t ar i a àq u el a p ar t i ci p a ção n a con st r u çã o d a s oci ed a d e , e n t en d e? Nã o ser i a a m es ma c oi s a. Foucault nos informa que é justamente o poder quem nos estimula a (re)velar nossa sexualidade através de instituições como a escola, a família, a Igreja, entre outras , e de saberes como o da medicina, da psicologia, da biologia, da psiquiatria, da pedagogia... Porém, este “ revelar-se” não significa a possibilidade de cada um de nós vivermos nos sa sexualidade com plena liberdade. Essas instituições, e a escola é uma delas, na perspectiva foucaultiana, aparecem como microespaços de poder, onde “ circula” um discurso visando a produção de uma sexualidade para o cidadão, e não sua supressão. O falar e o “ deixar falar” , em suas variadas formas, explícita, ou mesmo implicitamente, nada mais são do que formas de controle. O poder para Foucault não está localizado num único ponto, e sim disperso em toda a sociedade, agindo de forma circular. Assim, percebe-se que esta professora depoente concede poder à Fanny na medida em que jus tifica a sua casa de tolerância como necess ária, ao mesmo tempo que aponta a malícia com que a comunidade falava dela. A Fan n y f oi u m a me st r a , u ma p r ofe ss or a, u m a ed u c ad or a já q u e est á s f az en d o M e st r a d o e m E d u c aç ã o – n as a r t es d o a m or n u ma ép o c a e m q u e a vi r gi n d ad e se c on st i t u ía c o m o val or i n ab a l á v el d a s m oç a s e, n at u ra l me n t e , q u a n t o ao ma ch o, t u d o e ra p er mi t i d o. Naq u e l a ép oc a sa b e, as ch a mad a s ca sa s d e t ol er ân ci a ex er ci a m e sse p ap e l soci al , n o se n t i d o d e q u e r e s gu ar d a va m a h on r a d a s d on z el a s q u an t o a u m p o ssí vel ‘ a t aq u e’ d o n a m ora d o ou a t é d o n oi v o. E n t ã o er a a ssi m, o h o me m q u e ‘ p r eci s a va’ i a l á n a cas a d e t ol er ân ci a , p or q u e l á p o d i a- se. E o s ad ol e scen t e s er a m l e v ad o s l á p ar a t er a s p r i mei r a s l i ç õe s – o b a b a d o sex o . En t ã o, a l e mb r an ça q u e m e f i ca d a Fan n y é a d e mu l h e r d e al t íssi ma a u t o- e st i m a, mu i t o a f r en t e d o seu t e mp o, q u e c o mp r e e n d i a p er f ei t amen t e o seu p ap el n a s o ci ed a d e e q u e – f i q u e ch o ca d o se q u i se r – ga n h a va o seu d i n h ei r o mu i t o h on e st a men t e . A s p e s so a s se r ef er i a m a el a c o m u m a ce rt a ma l íci a , ma s i ss o é p r óp r i o d o ser h u man o c o m o s d i f er en t es. M a s, e n ão q u er o e x a g er ar , f al a va m d e l a t a mb é m c o m re sp e i t o e ad mi ra ç ã o. 68 A professora descreve a moral da época s em levantar grandes questionamentos. Com um “ então era assim” ela vai relatando o b a ba do sexo da época em ques tão. Centra mesmo sua atenção na pers onagem de Fanny com certo orgulho. As professoras anteriores falaram também desta moral vigente em décadas passadas onde o homem tinha sua iniciação sexual com as prostitutas . O que fica evidente neste depoimento da professora aposentada nº 3, é sua admiração por Fanny. A professora deixa entrever que há um lado jocoso que envolve esse viés da educação/iniciação sexual. Mas apesar disso, subsiste o respeito: [ .. .] a l emb r an ça q u e me fi c a d a Fan n y é a d e mu l h e r d e g r an d e au t o - e st i ma , mu i t o a f r en t e d o s eu t emp o, q u e co mp r een d i a p er f ei t a me n t e o se u p a p e l n a so ci ed ad e e q u e – f i q u e ch oca d o s e q u i ser – g an h a va o se u d i n h ei r o mu i t o h on est a men t e. As p es so a s s e r ef er i a m a e l a c o m u m a cer t a ma l í ci a, ma s i ss o é p r óp r i o d o se r h u man o c o m o s d i f er en t es n é? Mas , e n ão q u er o ex a g e ra r , fa l a va m d el a t amb é m c o m r e sp ei t o e a d mi r aç ã o. Os dois últimos depoimentos acima, de professoras aposentadas guardam em comum o respeito com a pess oa de Fanny, em lembranças que as levam a recordar a época em que viveram; é como se Fanny fizesse parte das suas vidas naturalmente, por serem da mesma época compartilhando a mes ma cidade. Notamos um tom de defesa e orgulho pela altivez, bravura e coragem da mulher lembrada na memória dessas duas primeiras professoras. O fato desses depoimentos docentes terem aspectos em comum reafirmam a dialética de uma memória coletiva tal como estudada por Halbwachs (2004), onde é possível estabelecer conexões entre as vidas particulares e a história coletiva. Ao longo das entrevistas com as professoras foi-se demonstrando uma fascinação pela Fanny e tal personagem também exerce sobre nós um fascínio... Por exemplo, fomos tomados de emoção ímpar no relato da filha de Fanny ao nos contar sobre a sua vida pregressa na reserva do Ibirama. Passamos a refletir sobre a constituição da subjetividade desta personagem e de como ela veio a se constituir na contraditoriedade de uma atividade socialmente inaceitável, embora necessária. Nossa resistência em admitir que s e tratava do tema da prostituição talvez se deva a que a personagem por nós analis ada, era e ainda é pessoa 69 respeitada na cidade. Lembremo-nos de que a s egunda professora entrevistada se refere a Fanny como “ Dona Fanny” . Não estávamos , portanto tratando de “ prostitutas” no plural, como é o caso da análise de Pereira (2004). Talvez isso influenciou nossa maneira de ver e sentir a Fanny. As entrevistas com as professoras evidenciaram tratar-se de uma respeitabilidade contraditória. Para umas exercia uma atividade s ocialmente inaceitável, para outras, uma atividade necessária à época. E aqui nos sa pesquisa se aproxima da pesquisa de Pereira quando a autora conclui que a prostituição em Florianópolis, no período 1900-1940 era considerada um mal neces sário. As professoras de nossa pesquisa também consideraram a pros tituição vivenciada em Brusque nas décadas de 60 e 70 um mal necessário. E hoje? Consideram-na ainda um mal, mas já nem tanto necessário. Hoje existe ainda uma interpretação desfavorável à prostituição. As discussões de sexualidade na escola s e deslocam para a disciplinarização dos corpos dos jovens, esclarecimentos quanto aos cuidados com a gravidez e as doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a AIDS. A liberação sexual tornou a pros tituta desnecessária à iniciação sexual dos rapazes. Como aponta Pereira (2004, p. 126), em seu es tudo s obre a prostituição em Florianópolis, com a liberação sexual, a prostituta deixa de ser concebida pela sociedade como um mal necessário; a prostituição vai ganhando novas “ conotações simbólicas e metafóricas (exemplo a AIDS), mas que não deixam de ser ass ociadas (além de outros personagens) à figura da prostituta” . Notamos várias outras similaridades entre os depoimentos das três professoras. Há intríns eco, nas falas uma satisfação pela atividade desempenhada como educadoras. Há uma lembrança de uma escola diferente da que é hoje e que, de certa forma, causa um s audosismo nas depoentes. E principalmente uma admiração reticente pela figura de Fanny, misto de respeito e condenação. CAPÍTULO 4 FANNY NA MEMÓRIA DOS ALUNOS Os alunos entrevistados foram em número de quatro. Pessoas conhecidas na comunidade, no primeiro momento foram reticentes em abrir suas lembranças de juventude, ligadas ao aspecto de iniciação sexual e prostituição, num momento em que já são avôs . O compromisso de manter a identidade absolutamente preservada foi um fator para a concordância. As relações de amizade com o pesquisador, foi outra. Por fim, a pos sibilidade de retornar no tempo e falar de experiências nunca antes comentadas, guardadas em espaços recônditos, ciosamente, foi outra. Aliás essa possibilidade de participar de um trabalho de pesquisa em que a memória acaba por ficar registrada e preservada tem um apelo irresistível. É o entrar para a história, ter sua exis tência, ainda que não identificada; escrita, descrita, relacionada e, portanto, tornada imortal. Os depoentes foram, a partir da resistência inicial, acolhedores e acessíveis, claro que cada um a seu modo. Uns mais expansivos e acessíveis, outros mais fechados, necessitando se fazer quase um trabalho arqueológico, onde se vai aos poucos descobrindo e desvendando o passado. Este primeiro aluno-depoente foi um depoente entus iasta, franco, espontâneo, objetivo, sem rodeios; porém, fez ques tão de que seu nome não fosse revelado, porque já tem neto; por isso me recebeu em sua cas a numa manhã, aproveitando que a mulher tinha ido à Aparecida com uma turma de senhoras; nosso personagem é natural de Brusque, tm 60 anos, está aposentado como funcionário público federal. Concedeu-me duas horas e meia de entrevista. Iniciou assim: “ eu tinha 15 anos quando fui na D. Fanny pela primeira vez. Eu tinha acabado a 8ª série do ginás io naquela época, is so em 1960... meu pai que autor izou, porque estava na hora de eu ir na Fanny, ‘ter uma conversa’.” Relata que a casa de Fanny “ era um ambiente muito bom, nada que lembr asse putaria, um lugar que se gostava de ficar...a casa funcionava só quando chegavam os clientes, pois era a casa onde moravam as meninas pra programa.” 71 A condição de rainha é logo res saltada pelo depoente: “ ali a dona Fanny reinava como uma rainha e a palavr a dela era a lei, ninguém, nem homem, nem mulher pensava em se meter com ela.” Se os alunos tinham reclamações da escola enquanto um lugar de disciplinamento, aqui na casa de Fanny, isto era quase elogiado: “ Todos os vizinhos conheciam o local como uma casa de divertimento mas nada de música alta, as vezes, é claro uma gar galhada mais alta, mas nada pra não incomodar a viz inhança” . Na lembrança do depoente, “ A Fanny não admitia que se perturbasse a vizinhança”. Os depoimentos dos alunos deram-nos acess o às primeiras lições ministradas por Fanny: “ A gente dançava, conversava, ria, er a um lazer na verdade...a Dona Fanny ensinava boas maneiras a todas, inclusive a nós quando começávamos a ir lá” . A recepção do jovem na casa de Fanny requeria uma recomendação de alguém mais velho “ ...o pai, um tio, um amigo mais velho, ou o cunhado, sempre tinha um cunhado pra levar o novato” . Mas ninguém chegava só na primeira vez. “ Sabe por que? Porque a dona Fanny era muito exigente. Não se entrava lá ass im só porque queria sabe? Não! Tinha que ser apresentado e, ela queria saber tudo.” Há momentos nos depoimentos onde percebe-se traços da pedagogia Fanny em suas marcações de parentesco e poder: “ Ela perguntava de quem era filho, se estudava... o que gostava de fazer se de dançar, de namorar, se gostava de ler... quando a gente dizia de quem er a filho, ela já sabia da família toda” . A pedagogia Fanny s eguia um ritual de descontração apontado na fala do depoente: “ ...a gente chegava lá como ‘bicho-do-mato’ e depois da terceira, quarta vez já era gente...ela conversava e depois quando via que a gente estava mais calmo ia para os finalmente.” O dispositivo de sexualidade tal como problematizado por Foucault (2005) se inscreve nas mais variadas relações de poder existentes na sociedade, do pai para o filho, do homem para a mulher, do professor para o aluno, do médico para o paciente, etc. Dessa maneira, a sexualidade mostra ser um dos elementos mais eficazes de controle sobre o sujeito e a s ociedade, atuando há mais de três séculos, assim é a análise foucaultiana da his tória da 72 sexualidade. Para Foucault, a sexualidade vista como dispositivo histórico é um mecanismo de poder. A pedagogia Fanny “ ensinava a gente a entrar na vida sexual sem isso que se chama hoje de trauma, de necessidade de terapia” O segundo depoente assim se expressou: “ Olha eu tinha 14 anos quando meu pai me levou na casa da Fanny. Eu era um diabo em casa... só queria era andar de lambr etta que eu tinha ganhado do meu avô” Um belo dia, “ meu pai mandou eu tomar banho que a gente ia sair depois da janta. Quando o pai parou a lambretta lá na (bairro)... eu nem sabia o que estava por acontecer....entr amos, e daí sim eu entendi foi a Fanny que veio nos receber” . Da mesma forma que o primeiro depoente, a recepção na casa de Fanny foi acompanhada pelo interrogatório investigativo da s ua pedagogia: “ Perguntou tudo de minha vida, mas pelo que eu entendi, meu pai já devia ter falado com ela antes , porque ela me passou uma repr imenda...” . As lições de Fanny eram assim assessoradas pelas relações familiares: “ me falou bem s ér ia que o meu jeito não era de homem, mas de rapaz que precisava ser botado na linha” . A pedagogia Fanny não era relacionada apenas às atividades sexuais ; incluía também modos de ser e estar da sociedade de Brusque na época analisada. Por isso era uma pedagogia respeitada e tolerada até mesmo entre as professoras. “ Falou comigo sobr e a lambretta, do perigo que er a, que eu podia morrer ou ficar aleijado, que eu devia deixar de ser moleque” . Nota-se as pectos de confissão próprios aos dispositivos de controle com que Fanny exercia seu poder frente aos meninos-homens, bem como os aconselhamentos maternais também controladores e construtores de um certo sujeito requerido na sociedade brusquense da década de 60. Ela sabia em que sociedade vivia. Ela respeitava as relações de parentesco e ensinava os meninos-homens a res peitar também. E por fim, ela mentia as mesmas concepções de gênero do seu tempo e da sociedade onde vivia, uma concepção fundamentada em modelos de homem e mulher construídos no século dezenove: “ Falou da escola, que eu devia ir pra escola porque era importante na minha vida, porque sem estudo nenhuma mulher iria me querer” . 73 Há um certo consentimento de Fanny às representações dominantes dos homens e mulheres de Brusque com relação às relações entre os sexos: “ Falou que mulher gosta de homem inteligente e que pra isso tinha que ir pra escola, falou de respeito, que a cas a dela era a casa da Fanny e não da mãe Joana” ; o comportamento e a produção de um certo sujeito eram o alvo da mãe e mestra Fanny: “ que pra eu ir ali e ser recebido ali, se eu quisesse eu teria que mudar meu comportamento porque ela não recebia rapaz pequeno e de cabeça virada (mal educado), só homem que sabia se comporta” . Os versículos bíblicos também compunham a pedagogia Fanny e é com certo estranhamento que o depoente lembra-se: “ Achei muito engraçado que uma hor a, naquela lição de moral toda ela dis se que na bíblia dizia assim, quando sou pequeno me compor to como guri pequeno, quando sou homem tenho que me comportar como homem.” As lições de Fanny incluíam dança e pos tura: “ Ela per guntou se eu sabia dançar. Disse que eu podia voltar ali quantas vezes eu quisess e que ela ia me ensinar a dançar” . O negócio da Fanny era, porém um empreendimento: “ ...e que quando ela estivess e ocupada as meninas da casa poderiam sempre me ensinar a aprender novas danças” . Fanny tirava vantagens da sua origem aculturada e com pos e de rainha ensinava os meninos a também comportarem-se como reis: “ A Fanny ensinava a gente até a sentar como homem, ereto, bem ajeitado, de pernas aber tas e pés bem firmados no chão.” Para o noss o depoente, “ ...ela podia ens inar porque tinha uma pose de rainha, sempre bem ves tida, elegante, cabeça erguida” . A casa dela era um lugar também para fazer amigos : “ Voltei lá nem sei quantas vezes, ia sempre com os amigos que acabei fazendo lá mesmo e que ainda hoje são meus amigos... hoje em dia já somos avós” Desenvolver a sociabilidade dos alunos incultindo-lhes novas maneiras de se comportar gerava respeito entre eles: “ ... era uma questão de respeito, não er a medo, era respeito mesmo o que a gente tinha por ela. Ela falava olhando bem nos olhos da gente e não tinha como não obedecer.” Na memória dos meninos-homens muitos fatos e sentimentos foram reconstruídos. Os sentimentos aparecem agora como respeito e não medo. Como precisá-los nas relações de poder-saber estabelecidas por Fanny? E nas 74 relações entre todos estes atores, incluindo aí a escola, a igreja, a vizinhança, o centro da cidade, o bairro afastado onde vivia Fanny? O terceiro depoente é aposentado e na sua residência moram além dele e espos a, a filha e o genro com dois netos. Apenas os dois netos estavam em casa no primeiro encontro. O depoente é um homem sério, circunspecto. De poucas palavras; o teor da pesquisa desencadeou nele uma introspecção ainda maior, com sudorese e palavras entrecortadas e gagueira. A recepção na casa de dona Fanny foi similar a dos outros depoentes: “ Lembro que quando eu entrei naquela noite estava tocando uma mús ica dos Fevers ... devia ter uns 6 caras mas quem veio receber a gente foi a própria Fanny, e os meus amigos me apresentaram pra ela” Mais uma vez confirma-se a contextualização que ela dava às suas atividades: “ ...me pegou pelo braço, perguntou o que eu queria beber, perguntou de quem eu era filho e logo foi falando o nome de toda a minha família. Ela conhecia todo mundo na cidade.” A delicadeza da pedagogia Fanny se mistura no machismo jocoso do depoente: “ Agora a hora h, como se diz, is so era uma coisa as sim bem discreta. Ela não te pegava e empurrava pro quarto e te jogava na cama (risos).” Novamente a pose de rainha misturado ao preconceito do depoente: “ ...puta, mas com pose de rainha, mas não se podia de forma alguma enquadr ar ela como puta.” As lições de Fanny eram aula de tudo: B o m! C o m o e u já f al e i an t es, e l a er a u ma mu l h er mu i t o el e gan t e, n ão ap e n as n o v est i r , m as e l e gan t e n a s man ei r a s sab e ? Sa b i a fa l ar b em , f al a v a o a l e mã o p er f ei t a men t e, u m a l em ão gr a m at i ca l , e o p or t u gu ê s d el a er a mu i t o r i c o, p or t u gu ê s d e p rof e ss ora d e l í n gu a p or t u gu e sa. Fa l a v a p a u sad o , s en t a va- se er et a, el a t i n h a u ma p ose d e mad a me. N o q u a rt o . ..s e n t am o s n a ca ma e el a f oi f al a n d o d e c o m o d evi a a gi r u m h o me m c o m a su a mu l h er ou n a mo r ad a . Qu e o h o m e m se mp r e f i ca va n o l ad o d e f or a d a cal ç ad a q u a n d o e st a va m ca mi n h a n d o. C o mo se d av a a mã o p ar a cu mp r i men t ar u ma p e s soa , u san d o a mã o i n t ei r a, u m cu mp ri men t o f i r me, n ã o p on t i n h a d os d ed o s c o m o se e st i ve s se c o m n o j o d a ou t r a p e ss oa. Qu e u m h o me m, se mp r e ab r i a a p or t a p r a u ma mu l h er , se mp r e d ei x a a mu l h er en t r ar p r i mei r o, se mp r e p õe a mu l h er n o l u g ar m el h o r , s e ja n a c a ma , n a sal a o i n u m b u t ec o. É! As si m e l a i a l e va n d o a g e n t e. 75 Novamente encontramo-nos diante dos conselhos de Fanny e suas concepções de gênero acerca do ideal de homem e de mulher. Chartier, autor da história cultural, nos convida a refletir sobre a adesão dos dominados às categorias que embasam sua dominação (CHARTIER apud SOIHET, 1997, p. 72); em seus estudos sobre a historia das mulheres discute um certo consentimento feminino às representações dominantes da diferença entre os sexos. Este consentimento é a um só tempo “ uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o s eu pr óprio dominador” . Assim entendemos que Fanny se servia da moral na qual ela foi educada, seja para impor-se como uma mulher fina e elegante, seja para impor aos seus dominados qual era a forma correta de tratar as mulheres em geral. Moral que ela abraçara em parte, estratégica e culturalmente. Para este depoente, as lições de Fanny foram inigualáveis e não estão mais disponíveis no mundo de hoje: B o m ma s v ol t an d o p r a Fan n y, q u an d o a ge n t e vi a já e st a va se m r ou p a e a c oi sa já e st a va ac on t ec en d o . El a se mp r e or i en t a n d o, f al a n d o, ex p l i c an d o. E r a u ma au l a d e t u d o , n é? Já q u e és p r ofe ss or , t u d eve s en t en d er i s s o. E r a u m a au l a co m p l et a . De t u d o. De b oa s man ei r as , d e sex o, d e d an ç a, d e c o m o b e b er , d e co m o t r at ar u m a mu l h er e f az er e l a f i c ar ap ai x on ad a p or t i . Mais uma vez vemos a contraditoriedade do depoente, a um só tempo respeitoso e jocoso: “ ela er a uma gueixa... ela er a uma artista naquilo que ela fazia, ela divertia o homem com uma conversa agradável, faz ia companhia, e ainda por cima, completava isso tudo na cama. Era uma mulher perfeita. Não é? O quarto depoimento foi tomado na empresa, sempre pela manhã; como o sujeito tendia sempre a desviar o depoimento para outros assuntos, criou-se a necessidade de ir cinco manhãs até sua empres a. O depoente é casado, tem filhos e netos e uma bem sucedida carreira como empresário na cidade. “ Eu depois da primeira vez que fui lá, fiquei viciado. Meu pai foi quem me deu dinheiro pra ir lá porque já tava na hora. Eu tinha 15 anos.” A música da casa de Fanny é lembrada neste depoimento: “ Sempre tocando Elvis Presley, Os VIPS, Bill Halley, Renato e seus Blue Caps, enfim ali a gente aprendia a gostar de dançar e a gostar de música. Mas, mais que 76 isso, havia também a interatividade: “ ...a gente mesmo podia levar os discos que gostasse pra tocar.” Os depoentes também se referem com freqüência à frente da casa, à chegada deles na casa: “ Na frente da casa tinha local pra por as bicicletas, e ali tinha um ou outro carro, mas tinham ves pas, lambrettas, motos ” . A recepção na casa de Fanny fazia-os entender que era uma casa freqüentada por rapazes jovens, que estavam iniciando a sua vida sexual, “ levados por pai, tio, cunhados, amigos. Também iam lá homens casados de vida social muito boa – os que tomavam whisky ou champange... a gente não tinha como competir.” As lições de Fanny eram tais que pareciam emanadas do divino. “ A Fanny naquela casa era como Deus. Estava em todos lugares ao mes mo tempo e ao mesmo tempo não se via ela” . Mesmo ass im, conversava-se de tudo na casa dela. “ ...ali era um lugar que se podia discutir política a vontade, porque tinha ARENA e MDB juntos... assuntos diversos como música que estava na moda, de futebol, de política, de comportamento. ” Todos sabiam e entendiam as necess idades dos jovens, mas todos também demonstravam claramente que esse assunto não era para ser discutido; era um discurso de silêncio: “ alguém tinha que ensinar alguma coisa sobre sexo pra alguém... não se podia ensinar para as moças de família, então se ensinava par a os rapazes.” É também Chartier (apud SOIHET, 1997, p. 76), que reflete sobre os poderes femininos de mulheres em situações restritas com perguntas de pesquisa relevantes para o tema do gênero na história; esta autoridade demonstrada por certas mulheres ou por grupos de mulheres ou mesmo por mulheres singulares era exercida às custas de outras mulheres? Tal autoridade limitava-se a alguma participação na autoridade masculina? Ou tal autoridade manifesta-se como contrapoderes sedutores, secretos e ilícitos? Esta terceira pergunta do autor res ponde em parte a autoridade emanada de Fanny em direção aos meninos e aos adultos com quem ela convivia. A sociabilidade vivida na casa de Fanny comum em todos os depoimentos dos meninos-homem: “ ...era uma coisa muito boa aquela casa... 77 não era só pensando em s exo não.. .a Fanny o tempo todo estava opinando, ensinando, alertando a gente se passava dos limites.” Em comum nos depoimentos dos quatro sujeitos está de forma clara, novamente, o sentimento de res peito e admiração pela pessoa de Fanny. Em alguns momentos, mais que respeito vislumbra-se afeto, gratidão. A Fanny e sua casa não eram uma vulgarização da atividade da prostituição, mas ao contrário criavam em torno de seu ambiente e de sua pessoa um halo de fineza, de cultura, de liberalidade de pensamento e de ação, que extrapolavam a representação sobre prostituição inves tigada em outras pesquisas. Tratavase da singularidade de uma mulher a um só tempo profess ora, vizinha, prostituta e companheira. Esses conceitos que os sujeitos fazem da Fanny remetem às hetaíras. Hetaíra é uma palavra de origem grega que quer dizer literalmente “ companheira” . Pelo menos em Atenas, a hetaíra verdadeiramente livre. Os gregos distinguiam, além era a mulher da dona-de-casa, dois tipos femininos: a prostituta (porné) e a companheira (hetaír a). Na verdade aos olhos de um grego, a hetaíra podia ser uma companheira ou uma cortesã. De qualquer modo, as hetaíras saíam livremente, participavam de reuniões com homens e também exerciam algumas atividades reconhecidamente masculinas, a de comerciar, por exemplo. Algumas hetaíras adquiriram renome, como foi o caso de Aspásia, mulher de Péricles, chefe dos atenienses no século V a.C. Os documentos antigos referem-se a elas sempre ressaltando a beleza e a inteligência; salientam autores que dominavam os políticos e inspiravam aos filósofos uma grande consideração. Fanny ainda é para aqueles que foram seus pupilos, uma ins piradora. CAPÍTULO 5 DAS CONCLUSÕES 5.1 DOS RESULTADOS E SURPRESAS DA PESQUISA Objetivou-se com es te trabalho investigar a identidade de uma cidade, no seu contexto e abrangência, dentro de uma característica societal do sul do Brasil, em as pectos como: educação, formação, escola, professores, alunos, pess oas, comportamentos, identidades, diferenças, lembranças, sexualidade. Das dificuldades para se levar a cabo este projeto, nas técnicas desenvolvidas , nos perfis, práticas e ess encialidades deparadas ao longo da pesquisa, des cortinou-se um panorama deveras interess ante, já que abrange situações diametralmente opostas . Pelo menos assim se supõe. Prostituição e Educação teriam algum liame, alguma ligação? Conforme o título que o projeto porta: “ Identidades Veladas: Fanny e a formação e a educação na cidade de Brus que na década de 60” , buscou-se nessa identidade encoberta pelo tempo, pelo rótulo, pelos conceitos e preconceitos, um desvendamento, um re-descobrir. Re-descobrir s ignificados e vidas, profissões e atividades, atitudes e reações . Nesse aspecto, a pesquisa buscou concretizar seu objetivo maior: desvelar a identidade da personagem trazendo à luz seu passado, sua vida, seu comportamento, suas oscilações e, a partir daí, as inferências dessa presença na formação, na educação e na memória da cidade de Brusque . Além dis so, esse trabalho também objetiva, resgatar e preservar memórias. Movimentando-se num proces so eterno, as pessoas vêm e vão e nesse movimento as memórias são esquecidas, dis torcidas, dispersadas ou perdidas. Poeira levada pelo vento... Memórias de sujeitos que, se não são celebrizados em nomes de lugarejos públicos, não são menos importantes e dignos de s erem preservados pela sua história, pela sua trajetória e influência legada na formação da comunidade. É o caso da personagem aqui enfocada e pesquisada. 79 Também no aspecto de desvelamento, a pesquisa apresenta resultados inesperados com revelações de parentes co inusitadas, de Fanny com o Duque de Caxias. As flutuações – os altos e baixos da existência, os descaminhos com que nos deparamos de forma inesperada, são explicitados aqui. Tivemos a intenção de resgatar, igualmente, a memória dos processos educativos de uma época e lugar. O resgate desta memória social, na fala de professoras e meninos-homens do tempo de Fanny traz à luz o contexto social em que escola, família e indivíduos singulares se entrelaçam na formação cultural de jovens brusquens es na década de 60. 5.2 CURRÍCULO, PODER E GÊNERO Os depoimentos revelam configurações curriculares distintos para meninos e meninas, tanto na escola como na vida extra-escolar; são particularidades que ultrapassam os documentos escritos; preterimos a consulta aos documentos escritos oficiais priorizando os depoimentos orais porque acreditávamos que “ nas questões de história, memória e gênero” as fontes orais nos levariam mais perto (DE FÁVERI, 2001, p. 67) do que buscávamos. Na escola as técnicas comerciais e as artes indus triais figuravam entre os saberes importantes de s erem transmitidos aos meninos; a economia doméstica era o saber neces sário para as meninas. Fora da es cola, a pedagogia Fanny funcionava como uma pedagogia paralela à es cola, mas como disse a primeira profes sora depoente: “ Não era uma questão de educação sexual, e sim uma questão de educação para ser mulher e homem” . Quando a primeira professora fixa os conceitos de homem e mulher de forma fundamentalista e metafísica dizendo “ gênero? não sei o que é iss o mulher é mulher, homem é homem” , tal cons ervadorismo não permanece quando se trata de analisar a mulher Fanny: “ Me lembro de Fanny, é claro que sim. Quem não a conheceu? Era uma figura pública. Ela não era imoral, era uma pessoa normal” (primeira professora no item 3.1.1.1: A es cola na década de 1960). 80 Já a segunda profes sora cons idera que Fanny era uma educadora “ a seu modo” , uma “ necessidade social” , destacando o lado profis sional de Fanny. É com o terceiro depoimento docente que Fanny é vista como a “ rainha da cidade” : “ Ela era um mal? Talvez mas um mal necessário, entende? Pois como nos esclarece a depoente, ‘tanto a Fanny quanto o seu estabelecimento estavam inseridos na comunidade. Se o tivess em tirado, faltaria àquela participação na construção da sociedade, entende? Não seria a mesma coisa’. ” Além dessa inserção natural do negócio de Fanny na cidade, queremos ress altar outros aspectos da pedagogia Fanny no depoimento dos meninoshomens iniciados por ela: a sua leveza, a sua delicadeza, a tal ponto que, segundo o depoente, ela “ estava em todos os lugares ao mesmo tempo não se via ela” (quarto depoente no item 3. 2.4.4: As lições de dona Fanny). Delicadeza que fazia parte da forma como Fanny exercia o seu poder. 5.3 DO AMOR, VERBO INTRANSITIVO? O respeito compartilhado que homens-meninos nutrem por Fanny até hoje pode ser explicado também pelas teorias ps icológicas ou psicanalíticas sobre a importância da pulsão sexual na existência humana. Percebe-se, porém, que o prazer sexual estava também mis turado com certo prazer social de ser e estar mais adulto, onde os sujeitos se experimentavam como dançarinos diante de uma nova sociabilidade. Eram “ aulas completas” como ates ta o terceiro depoente: “ Era uma aula completa de tudo de boas maneiras, de sexo, de dança, de como beber, de como tratar uma mulher e fazer ela ficar apaixonada por ti” (terceiro depoente). Outro destaque mencionado pelo terceiro depoente é que Fanny conhecia muitas famílias na cidade, o que, longe de os amedrontar, deixava-os à vontade na cas a de Fanny: “ Os meus amigos me apresentaram pr a ela” . E em seguida o depoente nos conta que Fanny s e antecipava, “ logo falou que era a pr imeira vez que eu ia ali... me pegou pelo braço, perguntou o que eu queria beber, per guntou de quem eu era filho...” 81 Ela s abia do peso familiar na sociedade brusquense “ e logo foi falando o nome de toda a minha família ela conhecia todo mundo na cidade...” (terceiro depoente). A análise destes aspectos tornava o empreendimento a um s ó tempo familiar e social fazendo lembrar de alguma forma uma certa maneira de amar, aquela que coloca o verbo na forma intransitiva. Como a Fräulein de Mário de Andrade, Fanny também ensinou o amar, intransitivamente, ou seja, a amar não importa qual seja o objeto, o alvo. É como se quisess e ensinar que o mais importante é aprender a amar intransitivamente para depois poder amar alguém, transitivamente. (EQUIPE FERANET21, 2005) Finalmente, na pesquisa evidencia-se que a escola não é uma instituição hermética em si mesma, mas de maneira osmótica, age e interage com a comunidade e seus personagens, sejam “ normais” ou “ diferentes” . Expõe que es ses personagens influenciam na memória e na formação das identidades e que a lembrança individual se desenvolve a partir de um lastro coletivo que sustenta e configura essas recordações. 5.4 DAS RELAÇÕES DE PODER-SABER Mas nada disso ocorre fora das relações de poder. Para Foucault o poder é onipresente. Há uma onipresença do poder, mas isto ocorre não porque es teja localizado em um único ponto, “ mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro” . (FOUCAULT, 2005, p. 89) Desta maneira, o “ poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provêm de todos os lugares” (FOUCAULT, 2005, p. 89). O que existe são dispositivos (mecanismos) de poder atuando s obre o indivíduo e a sociedade, adquirindo caráter “ normalizador” . Des ta forma, através da teoria posta e de ações práticas, um dispositivo se impõe na sociedade, “ normalizando” a vida do indivíduo e cons eqüentemente de todo o corpo social, construindo o cidadão neces sário a ela. Neste sentido, Foucault entende que a escola, o quartel, o hos pital e a prisão são microespaços de poder, onde o dispositivo se faz presente. Portanto, a sexualidade é um 82 dispositivo histórico muito concreto de poder. Em sua percepção, ela aparece nas s ociedades ocidentais como “ um ponto de passagem particularmente denso das relações de poder; entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre adminis tração e população.” (FOUCAULT, 2005, p. 74) O dis positivo de sexualidade s e inscreve nas mais variadas relações de poder existentes na sociedade, do pai para o filho, do homem para a mulher, do profes sor para o aluno, do médico para o paciente, do governo para a população etc. Desta maneira, a sexualidade mostra ser um dos elementos mais eficazes de controle sobre o sujeito e a sociedade, atuando há mais de três séculos: “ Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior ins trumentalidade; utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas es tratégias.” (FOUCAULT, 1990, p. 98) Assim, Fanny exercia poder sobre os menino-homens porque ela detinha saberes oriundos de sua formação refinada e cultivada na fortaleza de Ibirama; exercia poder também sobre os homens adultos porque os ameaçava moralmente de delatá-los financeiros com a casa. quando não cumpriam seus compromissos Mas também perdia poderes quando a sociedade a desprezava, ou a respeitava em tom jocoso. Havia na cidade de Brusque, como ainda há, escolas públicas e particulares. Nos dois colégios particulares, um de confissão católica e outro de confissão luterana, estudava a elite da cidade. No colégio católico, então denominado Santo Antônio, eram as freiras da Divina Providência que adminis travam. Era um colégio com internato para as alunas e externato para aqueles que res idiam com suas famílias. Mas fosse nos colégios particulares ou nos públicos, a base da educação era a dis ciplina. As crianças deveriam permanecer internadas, s ó saindo nas férias e quando terminass em a educação. O colégio era um lugar destinado e adaptado à educação higiênica do aluno – a educação física, a educação moral, a educação intelectual e a educação sexual da criança eram especialmente foco de atenção no ambiente colegial. A educação física, por exemplo, aconselhada por médicos e pedagogos, representava o enquadramento disciplinar do corpo. Corpo disciplinado e contido, s ociedade disciplinada e contida. Os pais 83 também eram orientados para não se contrapor ao s istema de educação recebidos pelos filhos. Os estudos de Foucault nos apontam que os colégios surgem no século XVIII, na Europa, como uma instituição disciplinar e normalizadora do corpo e do sexo. O autor pondera: “ Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos s e pareçam com as prisões.” (FOUCAULT, 1990, p. 99) No depoimento das professoras, especialmente da primeira, vê-se esse enfoque disciplinador da escola, onde ela salienta: “ Par a ser professor tinha que ter postura, ter disciplina consigo mesmo, senão como podia ensinar pr os alunos? Era a professora que conduzia os alunos para a sala de aula, em ordem, com disciplina...” Na década de 1960, na cidade de Brusque, uma dessas questões que não passavam de fatos do cotidiano era justamente a da sexualidade. Nas escolas, vê-se claramente nos depoimentos das professoras que a s exualidade não era tratado na escola. Era um tabu. Todos sabiam e entendiam as necessidades de se inteirar os rapazes do assunto, mas todos também demonstravam claramente que esse assunto não era para ser discutido. Era um discurso de silêncio. E nesse silêncio, efetivamente, a Fanny desempenhava o seu papel e, por conseguinte, exercia uma grande parcela de poder na sociedade local. “ ...o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições,; mas também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras.” (FOUCAULT, 2005, p. 96) Era um poder exercido dentro de um micro espaço, ou seja, dentro de sua propriedade, sobre “ suas moças” e sobre aqueles que freqüentavam o local e recorriam a seus serviços, mas era a prática de um poder. Certamente que muitos membros da sociedade brusquens e se insurgiam contra essa prática desempenhada pela Fanny, por entenderem que representava um mal; o fato de que apenas os rapazes eram levados a ser “ iniciados” sexualmente demonstra uma dicotomia ditada pelo gênero e pela conduta social de então: homens podem tudo, mulheres não podem nada. Os gêneros se constituem, segundo Lopes (1994, p. 41), nas e pelas relações de poder; assim, a normalização da conduta dos meninos e meninas e as táticas que garantem o governo e o autogoverno dos sujeitos ficaram depositadas nos gestos destes homens e 84 mulheres da cidade, que em suas relações alternadas de poder, foram nomeando suas diferenças e desigualdades. Os ventos de mudanças oriundos de várias partes do mundo trazendo grandes transformações sociais não demorariam a soprar também sobre Brusque. Vê-se que ess as transformações não abalaram o poder que a Fanny exercia sobre a comunidade. Na década de 1970 e 1980 sua figura ainda desfilava pela cidade e era apontada uma pessoa incomum, diferente. Como também todos reconheciam nela a prostituta da cidade, demonstrando as teses de Foucault sobre a circularidade do poder. Ao mes mo tempo que ela detinha poder sobre os meninos, a sociedade brusquense também impunha a ela suas normas; da mesma forma que as mulheres-professoras nutriam por ela respeito e admiração, também desprezavam a sua profissão, demonstrando as diferentes intensidades das relações de forças em que se cons titui o podersaber. Questões de gênero como as que aqui foram analisadas deram densidade para a reconstrução do conhecimento histórico da cidade de Brusque nos s eus aspectos educacionais e formativos, reafirmando a categoria gênero como útil para a análise histórica (SCOTT, s/d). Destacamos nesta pesquisa a individualidade de uma mulher como personagem histórica, evidenciando redes de poder e redes sociais nas quais essa individualidade esteve imbricada. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: FGV, 2004. BENCOSTTA, Marcus Levy Albino et al. Memórias da educação: Campinas (1850-1960). Campinas: UNICAMP, 1999. BERNARDES, Anita Guazzelli; HOENISCH, Júlio César Diniz. Subjetividade e identidades: poss ibilidades de interlocação da psicologia social com os estudos culturais. In: GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; BRUSCHI, Michel Euclides (Org.). Psicologia social nos es tudos culturais: perspectivas e des afios para uma nova psicologia social. Petrópolis (RJ): Vozes , 2003. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. 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Petrópolis (RJ): Vozes, 2000. 88 APÊNDICES APÊNDICE A – Memorial: História e Memória do Pesquisador .................. 89 APÊNDICE B – Roteiro de entrevista com Dalbérgia Deucher .................... 90 APÊNDICE C – Roteiro de entrevista com as professoras .......................... 91 APÊNDICE D – Roteiro de entrevista com os alunos ................................. 92 89 APÊNDICE A – Memorial: História e Memória do Pesquisador Memorial: História e Memória do Pesquisador “ Minha cidade, minha vida Personagens da cidade em minha memória Minha escola, minha infância” . (Autor desconhecido) Fi g ur a 1 – Ci da de de B r u sq ue e m 1 9 6 0 . Rua Ce nt ra l , e nt ão c ha ma da Co nse l he i ro R ui Ba r bo sa , ho j e Av e ni da C ôn sul Ca r l o s Re na ux Nasci aqui nesta cidade de Brusque no ano de s eu centenário, 1960. Aqui vivi até os 18 anos quando então me transferi para Blumenau onde estudei, trabalhei e me iniciei nos segredos da educação. Em 1997, a convite do Colégio São Luis, voltei para cá para s er profes sor de história no que era o segundo grau. Foi ali no São Luis que um dia conversando com a Carmen, diretora, coordenadora, professora e mais do que tudo, amiga, que fiquei sabendo do mestrado em educação na UNIVALI. Foi ela, e a ela eu agradeço, que me levou à UNIVALI, me apresentou às pessoas e me explicou adequadamente como funcionava tudo ali naquele novo universo, inclusive o estacionamento. Engraçado isso. Hoje, relembrando tudo esse processo parece muito simples, mas naquela situação era bem complicado. Emagreci 11 quilos no afã de estudar para as provas de alunos regulares, para elaborar um projeto de pesquisa lendo e pesquisando em autores que jamais ouvira falar. Aluno especial, provas e entrevis tas, aluno regular, projeto, aulas, trabalhos, pesquisas, seminários , mais aulas, mais trabalhos, muitos trabalhos, mais pesquisas. Idas e vindas de Brusque a Itajaí, Itajaí a Brusque. O carro hoje, sabe o caminho s ozinho. Nas terças-feiras era o melhor dia. Num s istema de rodízio eu, Mariane Zen e Rogéria Diegoli revezávamos nossos automóveis para as idas e vindas . Na “ ida” , os assuntos eram sempre sérios, acadêmicos, Foucault era passageiro no carro, como nós. Na “ frida” era a uma festa, falávamos de tudo inclusive, no caso de acidente como seria o funeral, com a Banda Marcial do São Luis tocando não a Marcha Fúnebre, mas Tico-Tico no Fubá. A ida e a volta é a forma como se exprime em todos os lugares; em Brusque, temos o hábito de falar a ida e a frida (volta), num trocadilho de palavras, já que Ida e Frida são nomes alemães bem comuns na região. Ao chegar em casa, antes de me dirigir para a universidade, onde lecionaria até as 22 horas, minha mãe sempre estava me es perando com o chá, e alguma surpresa gastronômica, e minha irmã Ili, sempre abrindo e fechando o portão. Aqui nesta minha cidade aprendi a viver em s ociedade. Aprendi a ver e sentir as diferenças, as relações e interligações de poder e verdade. Os discursos; discursos dominantes, discursos dominadores, ainda que de forma velada me foram apresentados. Discursos muitas vezes sussurrados, comentados entre as vizinhas em voz baixa, por serem “ inadequados para os ouvidos de criança pequena” . Lembro que uma amiga de minha mãe estava internada no hos pital de Azambuja e fomos vis itá-la. Na mesinha de cabeceira, a indefectível maçã vermelha embrulhada em papel de seda roxo. Maça era algo tão raro que todo doente ganhava um “ apffle” . A conversa toda em s ussurros . Em momento algum mencionou-se o tipo de doença. Mais tarde em cas a, naquela noite comentou-se em voz quase inaudível que era uma “ doença ruim.” No mesmo enfoque eram tratadas as outras “ doenças ruins” , principalmente as Doenças Sexualmente Transmiss íveis (DST) conhecidas como “ pereba” . Ai do sujeito que caísse na boca do povo por estar com alguma “ pereba” . Ficava estigmatizado e dificilmente encontraria uma namorada entre as moças de “ boa família” . Sem contar que o tratamento era algo próximo da lepra: isolamento total. O sabonete, a toalha, o assento ainda quente do corpo infectado, o toque da mão, tudo era forma de transmitir o mal, por isso a “ distância” era fundamental para s e preservar. Pornografia era algo inexistente: camisinha, drogas, filmes ou revistas pornô, contraceptivos, nada disso se falava ou mostrava. Prostituição era algo tão impensável que também não se comentava. Cl a r o q u e n ã o s e e sp e r av a q u e u m h o m e m n ão t i ve sse r el aç õe s sex u ai s a n t e s d o c a sa me n t o, ou q u e c a sa sse v i r ge m: H o me m é h o me m , l ev an t a a s cal ç as e va i e mb or a, n ã o f i ca f al ad o . Ma s mu l h er ? Aa aaa ah h h h ! D aí a c oi sa é d i f e r e n t e. Mu l h er t em q u e t er h on r a a z el a r p el o se u n o me e d a su a fa míl i a, se ca i a n a b oca d o p o v o, n ã o t i n h a je i t o. E n t ão a s p u t as, n aq u e l a é p oc a n é, t i n h am q u e ex i st i r p a ra b en e f i ci ar a s mo ç a s ‘ d i r ei t as’ , a g ora n ã o é p o r cau sa d i sso t a mb é m, q u e se i a a cei t a r el as n a vi vê n ci a d a s p e ss o as d e b em . Gen t e as si m, d e s se t i p o, t em q u e e x i st i r , ma s d e ve t r ab a l h ar d e n oi t e e su mi r, d o r mi r , se i l á, d e d i a. C ad a u m d e ve sab e r o s eu l u gar . É t ã o b on i t o q u an d o a s p e s soa s sab e m o se u l u gar n é? É b e m co m o d i z o d i t ad o: Cad a ma ca c o n o seu ga l h o. E v e ja l á, n ã o v a i b ot ar meu n o me aí ju n t o c o m o s n o me s d a s ‘ f a l ad a s’ q u e sen ã o m e ma r i d o m e mat a . Esta declaração é proveniente de uma professora aposentada, que me fala sorrindo e arfante. Sua colocação é peremptória. Lecionou muitos anos no antigo primário e hoje sua vida se divide entre a casa, os netos e a igreja. Lembro que uma noite minha mãe levou minhas irmãs a um baile num clube de classe média no centro da cidade, o Payssandú. Fi g ur a 2 – A qui l e s ( a u t o r de st a pe squi sa ) , a i r mã Ia ra , a mã e Li dy a e a i r mã Il i . D e pé o i r mã o Pé ri cl e s. B a i l e no Cl ube E spo rt i v o Pa y ssa n dú e m B ru squ e / SC – 1968 Claro que minhas irmãs, não poderiam ir ao baile s ozinhas, moças “ direitas” não faziam isso. Então lá fomos nós. Mãe, o irmão mais velho que estava no exército, as duas irmãs e eu com sete anos, morrendo de sono, numa apatia medonha. Só não foi o cachorro. Tudo ia seguindo de forma muito monótona até que, de repente, uma manifestação de desagrado varre o local. A grande pista de dança ficou praticamente vazia. Lá no centro apenas algumas moças dançando – escândalo – iê-iê-iê e pior, de ves tidos longos ou – pavor dos pavores – de mini-saia, muito maquiadas e – supremo escândalo – de “ frente única” . Axiomático na micro-história da comunidade brusquense dentro da macro-história da revolução sexual dos anos 60, do festival de Woodstock, do rock dos Beatles, da Guerra do Vietnã, da mini saia de Mary Quandt. E o resultado dessa invas ão de estranhos, de diferentes, de s ujeitos periculos os pelo fato de simplesmente ousarem s er o que eram? Louro (2003) refletindo s obre o “ normal” , o “ diferente” e o “ excêntrico” , discorre sobre este enfoque com muita propriedade: Est e a mb i en t e d e t r an s f or ma ç õe s a c el er a d a s e p l u r ai s, q u e h o je vi v e m o s, p a r ec e t er s e i n t en si f i ca d o d e sd e a d écad a d e 1 9 6 0 , p o s si b i li t ad o p o r u m c o n ju n t o d e c on d i ç õe s e l ev ad o a ef e i t o p or u ma sé ri e d e gru p o s soc i ai s t ra d i ci on al men t e su b met i d o s e si l en ci a d o s. As v o z e s d e sse s su jei t o s f a zi a m- se ou vi r a p a r t i r d e p o si ç õe s d e sv al ori z ad a s e i gn or ad a s; el a s ec o a v a m a p ar t i r d a s ma r gen s d a cu l t u ra e, co m d e st e mo r, p er t u r b a va m o c en t r o. U m a ou t r a p ol í t i ca p a ss a va a a c on t ec er , u ma p ol ít i c a q u e se f a z i a n o p l u r al , já q u e er a – e é – p r ot a g on i zad a p or v á r i o s g r u p os q u e se r ec on h e c e m e se or gan i z am , c ol e t i va men t e, e m t or n o d e i d en t i d ad es cu l t u r a i s d e gên er o , d e r aça , d e sex u a l i d ad e, d e et n i a . O ce n t r o , mat er i a l i zad o p el a c u l t u r a e p el a e x i st ê n ci a d o h o me m b ra n c o oci d e n t al , h e t er o ss ex u al e d e c l a sse méd i a , p assa a s er d e sa f i ad o e con t e st a d o. P or t a n t o, mu i t o m ai s d o q u e u m su je i t o, o q u e p a ssa a ser q u e st i on ad o é t od a u ma n oç ã o d e c u l t u r a, c i ên ci a, ar t e, ét i ca , est ét i c a, ed u caç ã o q u e , as soc i ad a a est a i d en t i d ad e , ve m u su f r u i n d o, ao l on g o d os t e mp o s, d e u m mod o p r a t i camen t e i n ab a l á v el , a p o si çã o p ri vi l egi ad a e m t or n o d a q u al t u d o ma i s gra vi t a. Ainda sobre a noite do baile, recordo-me bem que aquelas moças naquela noite ficaram praticamente sozinhas na grande pista de dança. O salão parecia uma colméia de abelhas que foi cutucada. Onde já se viu? Esse tipo de gente aqui, no meio de gente decente? Moças de família tendo que se misturar com esse tipo de moça perdida? Dançando iê-iê-iê? Foi um Deus nos acuda até que a direção do clube solicitou que as escandalosas se retirassem. Interessante que, nem mesmo os moços – prováveis clientes das jovens que ali estavam, meu irmão entre eles – que murmuravam os nomes de todas, não se aproximaram, não dançaram próximo, ou demonstraram conhecê-las. Foram simplesmente ignoradas e expuls as do ambiente. Mas falar de prostituição em voz alta? Nunca. Isso era tabu. Paras todos ali elas eram “ moças faladas” . Assim, nas palavras do pesquisador Artur Cés ar Isaia (2004): “ Essas mulheres tidas como ‘decaídas’ emergem da lateralidade projetada pelas elites, para afirmarem-se como protagonistas de um drama urbano inacabado” . Houve nes te caso da “ invasão” do baile, uma ins urgência contra o status quo. Os invisíveis, num ato de verdadeira sublevação, quiseram tornarse vis íveis, expor-se, mostrar-se. Há aqui, no terreno da cultura, um claro enfrentamento entre cultura dominante e subalterna. Porém, passados anos vejo que ocorre um movimento recíproco e contínuo que influencia os diferentes níveis culturais, pois o que ontem era “ indecoroso” , hoje é absolutamente aceitável. Porém, no enfoque histórico, vale a pena fazer uma retrospectiva de dois mil anos e ver que, o advento do cristianismo como religião oficial do Império Romano após o Édito de Milão em 313 e sua conseqüente aliança com o poder imperial criou novos conceitos ético-morais entre outras inúmeras conseqüências. Primeiramente, veio à tona o aspecto pecado em tudo, ou quase tudo dentro da vida das antigas religiões que a nova rotulou de paganismo. Os mais renomados historiadores da antiguidade mencionam, e inclusive a própria bíblia, falam dos templos de Ishtar (ou Astarté ou Astaroth) e de inúmeras outras divindades, onde a prostituição era uma atividade sagrada. As jovens e mulheres freqüentemente se disponibilizavam nos templos e essa atividade era encarada como uma forma de honrar a divindade, agradecer por dons recebidos e ou pedir outros. Os emolumentos percebidos do exercício da atividade de prostituição (sagrada) eram destinados ao templo como forma de doação, de agradecimento, de homenagem à divindade. Sim! Da mesma forma que hoje se faz e se cumprem as promessas para os santos, nas antigas religiões tinha-se o mesmo costume, com “ pequenas” dif erenças no aspecto cultural e de procedimento. O Édito de Milão do Imperador Cons tantino e mais tarde o do Imperador Teodósio, tiveram o condão, não só de interromper as perseguições aos cristãos, oficializar a nova religião e relegar à ilegalidade as antigas. Criaram também um problema para a igreja nascente. Sem martírios, sem perseguições, sem sangue na arena, sem mortes espetaculares, o que oferecer para o deus? O que usar como “ marketing” na divulgação, na motivação e na promoção da nova religião? Já que o céu só é alcançado através de entraves quase inexpugnáveis, os “ santos padres” , em suas minuciosas perquerições optaram pela castidade, pela virgindade, pela “ pureza” . Assim, num rompante, o sexo passou a ser pecado, o desejo sexual pass ou a ser pecado, as variações sexuais passaram a ser pecado, Maria Madalena foi criada a exemplificar a grande prostituta. O pecado povoou o mundo; a castidade e a pureza passaram a ser o máximo a ser atingido pelo ser humano para chegar ao “ céu” . Negar-se a si mes mo e às suas vontades pass ou a s er o martírio. E que martírio! Os grandes teólogos, os santos eruditos, os sagrados concílios discutiram e legislaram sobre tudo o que se refere a sexo. Interessante notar e ress altar que legislaram e dis correram sobre algo que, segundo asseveram veementemente, não praticavam. São Paulo em I Cor 7, 1 diz solenemente: “ Penso que seria bom ao homem não tocar mulher alguma” . A espécie agradece por ninguém ter dado ouvidos a tal tolice e assim ter perpetuado a raça. No rastro de São Paulo e de Santo Agostinho, vem Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, que afirma: “ O casamento sem relações carnais é mais santo.” (RANKE- HEINEMANN, 1996, p. 209). Com certeza deve ser mais santo mesmo, e mais impossível também. Imundície (immunditia), mancha (macula), porcaria (foeditas), torpeza (turpitudo), desonra (ignomínia), degeneração (deformitas), doença (morbus), corrupção da integridade (corr uptio integritatis ) são os termos usados por Tomás ao referir-se ao ato sexual. (RANKE-HEINEMANN, 1996, p. 208). “ Sábia e santamente” , ele ainda legislou sobre as posições do ato sexual. Para ele o desvio da posição s exual convencional é um de uma série de vícios antinaturais que foram classificados, num sistema que data de Agostinho como piores do que o coito com a própria mãe. Hummmm! Tomás aqui está relacionado com algo de Édipo? Mais adiante, o santo doutor dá continuidade a suas santas elocubrações. Em casos excepcionais, ele permite outras posições, quando os cas ais não podem fazer sexo de outra forma, por razões médicas, por exemplo, por causa de sua corpulência (vale lembrar aqui que os colegas chamavam este santo sábio de “ boi” devido à s ua corpulência). Essa exceção seria para se auto beneficiar? Outros vícios pecaminos os elencados por ele são: o incesto, o es tupro, o adultério, a masturbação, a bestialidade, o homos sexualismo, o coito anal e oral e o coitus interruptus . (RANKE-HEINEMANN, 1996, p.212). Anteriormente, o arcebispo Cesário de Arles (m. 542, apud RANKEHEINEMANN, 1996, p. 33) ensinava que: “ Quem tiver relações com a esposa durante a menstruação terá filhos que serão ou lepros os ou epiléticos ou possuídos pelo demônio. ” Já Santo Isidoro de Sevilha (m. 636, apud RANKEHEINEMANN, 1996, p. 34) afirma que: “ Depois de tocar-se em sangue menstrual, os frutos não brotam, as flores murcham, a relva seca, o ferro enferruja, o bronze enegrece, os cães que o cheiram contraem raiva.” O Concílio de Trier, realizado em 1227, ordenava que as mães de recém-nascidos deviam s er submetidas a uma reconciliação com a igreja numa cerimônia de purificação de seu pecado antes de voltar a freqüentar as celebrações. Igualmente às mulheres mortas de parto, eram negadas celebrações fúnebres, por terem morrido em conseqüência de pecado. Santo Alberto Magno (apud RANKE -HEINEMANN, 1996, p. 196) asseverava que “ o coito praticado com demas iada freqüência leva ao envelhecimento precoce e à morte prematura. O sexo em excesso rarefaz o cérebro, os olhos ficam fundos e fracos.” Ele dá uma prova disso: U m c er t o Me st r e Cl e m en t e d a B o ê mi a, c on t o u -m e q u e u m c er t o m on ge , já d e cab el o s g r i sal h o s sa ír a c o m u ma l i n d a mu l h er , c o m o u m h o m e m e sf o m ea d o . At é c o me ça r o of íci o d as m at i n a s e l e a d e se jo u ar d en t e me n t e 6 6 ve z e s. Ma s p el a man h ã c ai u p r o st r a d o d o en t e n a c a ma, e m or r eu n o me sm o d i a. P or s er u m n ob r e seu c o rp o f oi d i s s ecad o. E d e sc ob r i u se q u e se u cé re b r o f or a b ast an t e c on su mi d o e o q u e fi c ou e r a d o t aman h o d e u ma r o mã , e o s ol h o s f or a m b a st an t e d est r u íd o s. O c oi t o f r eq üen t e n os f az f i car ca l v o s mai s d ep r e ssa, p or q u e o sex o n o s r es se ca e n o s esf r i a . Al b er t o t a mb é m p er ce b eu q u e a s p e s soa s q u e p r at i c am sex o mu i t as ve ze s sã o s e gu i d as p or c ãe s. Ex p l i c a i ss o d i ze n d o q u e os c ãe s a d or a m o s ch ei r os f o rt e s e c or r e m a t r á s d e ca d á ver es , e o c or p o d e u ma p e s soa mu i t o d ad a a o c oi t o ap r ox i mase d a c on d i çã o d e c ad á v er p or cau s a d e t od o o s êm en p u t re f at o. Numa trajetória s ecular, esses ensinamentos vão produzindo cada vez mais frutos, proliferando em conceitos , normas, classificações, acusações, perseguições, julgamentos, execuções. A Igreja sacralizou tudo, inclusive a “ Santa Inquisição” , que ainda está aí, viva, atuante e produzindo frutos. Somos, realmente resultado de uma cultura que nos molda, formata e oprime. Resultado de dois mil anos de “ civilização cristã” que no intuito de nos levar ao céu acabou por tornar a vida aqui um inferno. Não é de se estranhar, portanto, que com ess e currículo tenhamos o comportamento que temos em relação ao diferente, ao que não se deixa reger pela cartilha da normalidade. Métodos contraceptivos, posições sexuais, sangue menstrual, procriação, enfim, toda uma gama de legislação proveniente da Igreja, sempre teve na verdade o objetivo de manter o povo sujeitado ao seu talante e de colocar a mulher numa posição inferiorizada ao homem. A punição de marcar com ferro em brasa as prostitutas e exilá-las para o Novo Mundo continua a ser praticada em formas mais sutis. Tão sutis que muitas vezes são imperceptíveis. Nesse sentido também na minha cidade, na minha infância. Era uma época interessante aquela. Televisão não exis tia, a novela era transmitida pelo rádio: O Direito de Nascer. Automóveis eram pouquíssimos, usava-se em caso de emergência um carro-de-molas, senão a bicicleta ou, a pé. Os namorados andavam de mãos dadas e sempre alguém ficava próximo para manter a reputação da moça – e do moço também – ilibada. Ela devia obrigatoriamente casar virgem, senão ficava falada, e ia para o ostracismo. Ainda hoje tenho uma foto de minha mãe com uma amiga que por ter engravidado ainda s olteira foi sumariamente recortada do cenário da foto: “ Como podia ter uma mulher que tinha engravidado de solteira numa fotografia junto comigo?” Jus tifica minha mãe. Mas na verdade tudo eram apenas as aparências. Hoje em dia com os ventos das mudanças e da liberalidade de linguagem se ouve falar que fulano “ comia” fulana atrás da lápide no cemitério, que fulana dava pra fulano, fulano e fulano em cima de um monte de bagaço de cana na garapeira, que fulano (isso mes mo, no masculino) adorava fazer sexo oral no fulano atrás dos teares. Mas isso não é importante. O importante, é que as aparências de decência eram mantidas. Ou s eria isto hipocrisia? Nu m gr u p o soc i al p od e - se se r e f az er q u a l q u er coi sa, d e sd e q u e se d ê a i mp r e s sã o d e q u e n ã o se e st á q u e b r an d o as n or ma s est ab e l eci d a s. O i mp o r t an t e é ser d i scr et o. Tod o mu n d o sa b er á, ma s t od o mu n d o f ar á d e c on t a q u e n ã o sab e, p o r q u e o p r i n c i p al p er s on a ge m d a t r ama n ã o d eu m ot i v o s p a ra q u e n i n gu é m sai b a. C o mp r e en d e u ? É desta forma que uma professora de ps icologia, que me fala de comportamento social. O des velamento, o apercebimento de todo esse vivenciar, experienciar, para mim, vai se efetivar no mestrado. Todas essas relações de poder, essas imbricações de sociedade e verdade, exclusão e inclusão, só se tornaram compreens íveis para mim nas obras de Tomás Tadeu da Silva como “ Identidade e Diferença” e “ Documentos de Identidade” . De Foucault como “ Vigiar e Punir” ; “ As Palavras e as Coisas ” , a “ Ordem do Discurso” e outros. Foi no mestrado que me apercebi de que s e o poder e a verdade estão ligados numa relação circular, se a verdade existe numa relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade, então todos os discursos podem ser vistos funcionando como regimes de verdade, como tão bem observa Tomás Tadeu da Silva em “ O Sujeito da Educação” . Neste sentido também ensina Foucault (1980 apud GORE, 1994, p. 10): Ca d a s oci e d ad e t e m seu r e gi me d e ve r d ad e , su a ‘ p ol ít i c a ger al ’ d e ver d ad e : i st o é , o s t i p o s d e d i scu r s o q u e ac e i t a e f az fu n c i on ar co m o v e r d ad ei r o s; o s me ca n i sm o s e i n st â n ci as q u e p er mi t e m d i st i n gu i r en t r e se n t en ç a s v e rd a d ei r as e f al sa s, o s m ei o s p el o s q u ai s ca d a u m d el es é sa n c i on ad o; a s t é cn i ca s e p r oced i men t os val or i za d o s n a aq u i si çã o d a v er d a d e ; o st at u s d aq u e l es q u e e st ã o en c ar r e g ad o s d e d i zer o q u e c on t a c o m o v er d ad e i r o. A despeito de toda esta explanação s obre poder e s aber, Foucault (1983 apud GORE, 1994, p. 210), é bastante enfático ao afirmar que poder e saber não são idênticos: Qu an d o l ei o – e eu sei q u e el a me t em si d o at r i b u íd a – a t ese d e q u e ‘ sa b er é p od er ’ ou ‘ p o d e r é sab e r’ , c o me ç o a d ar r i sa d a s, u ma ve z q u e e st u d a r su a r el aç ã o o p r e ci sa m en t e o m eu p r ob l e ma. Se el e s f o sse m i d ên t i c o s, e u n ã o t er i a q u e e st u d á - l o s e, co m o r esu l t ad o, eu me t er i a p ou p a d o u m b o ca d o d e can saç o . O p r ó p r i o f at o d e q u e eu col oc o a q u e st ã o d e su a r el a çã o p r o v a cl ar a men t e q u e e u n ã o o s t en h o c o m o i d ên t i c o s. Neste tocante, particularmente fico com o que Gore (1994, p. 11) afirma: “ O saber serve de contra-ataque aos males do poder” . Assim, nesta pequena cidade do Vale do Itajaí-Mirim, como em todos os lugares do mundo existem e sobejam as relações de poder. Entre as décadas de 60, 70 e 80, essas relações de poder/saber que eu percebia, eram apenas aquelas mais evidentes, a dos ricos e dos pobres , a dos industriais e seus operários, a dos homens e suas mulheres. Numa comunidade pequena, próspera, industrializada, de colonização eminentemente européia (alemã, italiana e polonesa) o que era ressaltado era a “ ordem e progresso” , “ trabalho e disciplina” , “ hierarquia e obrigação” , “ moral e decência” . Inúmeras vezes ouvi minha mãe responder aos queixumes de minhas irmãs que tinham que trabalhar na fábrica: “ A vida é feita de dever e não de prazer” . Fi g ur a 3 – Ci da de de Br u sque e m 1 9 5 0 . E m dua s co l i na s, co mo a t é ho j e, de u m l a do a Ig re j a Lut er a na e de o ut ro a Ig re j a Ca t ó l i ca A religião era outra forma de poder visível. Em duas “ colinas sagradas” no centro da cidade pontificavam as igrejas católica e luterana. Nas missas de domingo de manhã, as 9 horas Padre Theodoro Becker ou Valdemar, Vendelino ou Anselmo, vituperavam e invectivavam tudo o que não fosse acorde à moral e aos bons costumes. Detalhe: durante o ofício, mulheres (com a cabeça coberta de véus brancos se solteiras e negros, se casadas) e crianças à direita, homens (sempre de paletó à esquerda). Católicos e luteranos mantinham entre si uma dis tância dis creta e “ salutar” . Não se casavam fora de suas confissões, por exemplo. Fazê-lo constituía uma infração do préestabelecido. Minha amiga, Dona Marta, quando se casou há cerca de 54 anos trás com um luterano, teve seu nome divulgado no auto-falante da igreja católica como uma infratora da convenção religiosa. Conseqüência: “ Ex comunio” . P od e m o s d i zer q u e on d e ex i st e d i fe r en ci a çã o – o u se ja , i d en t i d ad e e d i f er en ç a – a í e st á p r esen t e o p od er . A d i fe re n ça é o p r oce s so ce n t r al p el o q u a l a i d e n t i d ad e é a d i f er e n ça s ão p r od u zi d a s. Há , en t r e t an t o, u ma sér i e d e ou t r os p r o ce ss os q u e t r ad u z e m e s sa d i f er en c i açã o ou q u e c o m el a gu ar d a m u m a e st r ei t a r e l açã o. Sã o ou t r a s t a n t as ma rc a s d a p r e sen ç a d o p o d er : i n cl u i r/ ex cl u i r ( ‘ est es p er t e n ce m, aq u e l e s n ã o’ ) ; d e m ar c a r fr on t e i r a s (‘ n ó s’ e ‘ el e s’ ) ; cl a ssi f i car ( ‘ b on s’ e ‘ m au s’ ; ‘ p u r o s’ e ‘i mp u r os’ ; ‘ d esen v ol vi d o s e p r i mi t i vo s’; ‘ r a ci on ai s e i r r ac i on ai s’ ) ; n or ma l i za r ( ‘ n ó s s o mo s n or ma i s; el es s ã o a n or m ai s’ ) . ( S I LV A, 2 0 0 0 , p . 8 1 -8 2 ) . Havia então aqui uma “ reciprocidade” , entre ambas as confissões no aspecto de inclus ão/exclusão. Mas algumas vezes – não muitas – o poder econômico aliado ao interes se, aplainava es tas diferenças, ou, de forma temporária, “ piedosa” , fazia com que todos tivessem o mesmo objetivo e fossem “ todos iguais” , simplesmente “ filhos de Deus” . Ainda hoje, vejo nas escadarias do Santuário de Azambuja, as inscrições em latim que apregoam a caridade das três esposas do onipres ente Cônsul Carlos Renaux (luteranos), em doações para aquela igreja (católica). Fi g ur a 4 – Co mpl ex o do Sa nt uár i o de Aza mbuj a e m 1 9 4 1 . Vê- s e à es quer da a a t ua l i g re j a e m co nst r uç ão Na verdade, olhando com os olhos de Tomás Tadeu da Silva, essas obras “ benemerentes” , foram também elas indicadores de posição-de-sujeito de poder. A af i r ma çã o d a i d en t i d ad e e a ma r c açã o d a d i f er en ç a i mp l i ca m, se mp r e a s op er aç õe s d e i n c l ui r e d e e x cl u i r . Co m o vi mo s, d i ze r ‘ o q u e s o m o s’ si gn i f i ca t amb é m d i zer ‘ o q u e n ã o so m o s’. A i d en t i d a d e e a d i f er en ç a se t r ad u z e m, a s si m, e m d ecl a r aç õe s s ob r e q u e m p er t e n ce e q u e m n ã o p e r t en ce, so b r e q u e m e st á i n cl u í d o e q u e m e st á ex c l u íd o. Af i r mar a i d e n t i d ad e si gn i f i c a d em ar c a r f r o n t ei r as, si gn i f i ca f az er d i st i n ç õe s e n t r e o q u e f i ca d en t r o e o q u e f i c a f or a . A i d en t i d ad e e st á se m p r e l i g ad a a u ma f or t e se p ar açã o en t r e ‘ n ós ’ e ‘ el e s’ . E s sa d e m ar c aç ã o d e f r on t ei r a s, e ss a sep a ra çã o e d i st i n çã o, su p õe m e, a o me s mo t emp o, af i r ma m e r e af i r ma m r el aç õe s d e p od er . ‘ N ó s’ e ‘ el es’ n ão s ã o, n est e c a so, si mp l e s d i st i n çõe s gr a m at i c ai s. O s p r on o me s ‘ n ó s’ e ‘ el e s’ n ã o sã o, a q u i , si mp l e s ca t eg o r i as gr a m at i c ai s, ma s e vi d e n t e s i n d i ca d o r es d e p o si çõ e s- d esu jei t o f or t e me n t e ma r c ad as p or r el a ç õe s d e p o d er . ( S I LV A, 2 0 0 0 , p . 8 2 ). Obviamente que todo este contexto de poder e de s aber se reproduzia também nas escolas. Para os ricos católicos havia o Colégio Santo Antônio (posteriormente São Luiz), para os ricos luteranos havia o Colégio Cônsul Carlos Renaux, ambos ciosamente resguardados próximos das respectivas igrejas. Fi g ur a 5 – E sco l a Al be r t o To r r e s, e m 1 9 5 7 , a t ua l me nt e Co l é g i o Cô n sul Ca rl o s R ena ux , pert en ce nt e à Co muni d a de L ut e ra na , e m B r usqu e Para a “ massa” , havia as escolas públicas municipais e estaduais. Nas escolas particulares, se preparava quem dirigiria a comunidade e nas públicas, quem produziria para ela se manter. E quando me utilizo da palavra “ massa” , expresso apenas o pensamento da elite, e não o meu. Então, as relações de poder sobre esta sociedade “ ordeira, disciplinada e trabalhadora” já s e prenunciavam nas escolas. Neste sentido, Foucault (1980 apud GORE, 1994, p. 12): Na ed u c a çã o p or e x e mp l o, é c l ar o, q u e o p od er n ã o e st á ap en a s n a s mã o s d a s p r of e ss o r a s. Os e st u d an t e s ( e a s m ãe s e o s p a i s e as ad mi n i st r ad or as e o g o v er n o ) t a mb é m ex e rc e m p od er n a s esc ol as . A f i m d e c o mp r e en d er o f u n ci on a me n t o d o p o d er e m q u a l q u er con t e x t o, p r eci s a m o s c o mp r een d e r o s p on t o s p a rt i cu l ar es at r a vé s d o s q u ai s el e p a s sa . É também Foucault quem chama atenção para a necessidade de reconsiderar alguns de nossos pressupos tos sobre a escolarização e de olhar de forma renovada e mais atenta para as “ micropráticas” do poder nas instituições educacionais. Enquanto o São Luiz utilizava uniformes de cor vermelho escuro (bordeuax) e branco e o Cônsul usava bege e branco, a massa das escolas públicas usava azul marinho e branco. Nessa visibilidade da cor do uniforme escolar já se explicitava a divisão e hierarquização de classes e poder. No apogeu do regime militar a escola era uma extensão do quartel. Educação Física obrigatória: rapazes de short azul com lis tas laterais brancas, meninas de “ bombachas” pretas, bem largas, para ser “ decente” e não “ retratar nada” e camisetas brancas. “ O objetivo da es cola é formar cidadãos decentes e saudáveis para o Brasil, por isso a educação física é obrigatória” , dizia entre uma flexão e outra, nossa professora “ dona” Zita Belli de Borba. Formatura, fila, tomar distância à frente, tomar distância ao lado, os mais altos à frente, regularidade nos sapatos (pretos), nas meias (pretas para o masculino e branca para o feminino), saudação à bandeira, cantos dos hinos e declamação de poesias exaltando “ heróis ” pátrios. Ah! Quanta poesia eu disse para o Duque de Caxias e só agora descobri que de “ caxias” ele não tinha nada. Hoje volto meu olhar para es tas situações, lembro de como ficávamos ufanados de patriotismo, como disputávamos para ir hastear a bandeira ou declamar o “ verso” . Era um poder disciplinador absolutamente invisível. Até mesmo nós, quando íamos para a missa aos domingos, ou nas procissões, minha mãe exigia: “ acertem o passo, direita, esquerda, direita, esquerda. O que as pessoas vão pensar da gente andando descompassados” . [ ... ] ‘se r ef er i a n ã o ap e n a s à s est r u t u ra s p ol ít i ca s ou à ad mi n i st r aç ã o d o s e st a d o s; d e si gn a v a e m ve z d i sso , a f or m a p e l a q u al a c on d u t a d o s i n d i víd u o s ou gr u p o s p o d i a se r d i r i gi d a; o g o ver n o d a s cr i a n ç as, d as al ma s, d a s c o mu n i d ad es , d a s f a mí l i as, d o s d o e n t es [ ... ] , Go v e rn a r n e sse sen t i d o, é est ru t u r a r o ca mp o p o s sí ve l d e a ç ã o d o s ou t r os .’ ( FO U CA U LT , 1 9 8 3 b a p u d G OR E, 1994, p. 12). Foucault argumenta que as formas modernas de governo revelam uma mudança do poder soberano, que é aberto, vis ível e localizado na monarquia, para o poder “ disciplinar” , que é exercido por meio de s ua “ invisibilidade” através das tecnologias normalizadoras do eu. Tradicionalmente, o poder é o que é visto, o que é mostrado e o que é manifestado: O p od e r d i sci p l i n a r, a o c on t r á ri o , s e ex er ce t o r n an d o -s e i n v i sí ve l : em c o mp e n sa çã o i mp õ e a o s q u e su b m et e u m p ri n c íp i o d e vi si b i l i d ad e ob r i ga t ór i a. Na d i sc i p l i n a, são o s s úd i t o s q u e t êm q u e ser vi st os . Su a i l u mi n a ç ã o a sse gu r a a ga rr a d o p od er q u e se ex e rc e s ob re el es. É o fa t o d e ser vi st o se m c e ss ar , d e se m p r e p od er se r vi st o, q u e ma n t é m su jei t a d o o i n d i ví d u o d i sci p l i n a r . ( FOU C AU LT , 1 9 7 7 b a p u d GO R E , 1 9 9 4 , p . 1 2 ) . Personagens da Cidade em Minha Memória Em toda esta configuração haviam personagens que, dentro da convivência social, eram os bons exemplos e, aqueles que, mesmo não sendo estigmatizados como tal, eram o que não se deveria ser. “ Aceitos” , circulando pelo meio, visíveis nas suas pessoas, mas nem sempre caracterizados nas suas posições, havia na cidade pessoas que eram “ folclóricas” , “ diferentes ” , que se “ cumprimentava” de forma normal, mas que justamente por suas posições pouco ou nada ortodoxas, com certeza exerciam poder nes sa “ microprática” . Eram personagens que circulavam pela cidade, admirados , respeitados, porque não dizer amados, mas também, aos nos sos olhos de moleques e das moçoilas, assustadores daquilo que por um desvio poder-se-ia vir a s er. Eram exercedores de poder, mas também através deles o poder exercia guantes férreos sobre todos os demais, tornando-os exemplos . Era absolutamente previsível, minha mãe, e não só ela, mas todas as mães conhecidas dizerem ao despontar a figura baixa, atarracada e imunda da Madalena Doida com seu indefectível saco nas costas e a caneca de esmalte lascada na cintura: “ Aaaaaaaah! Olhem só. Quem não obedece o pai e mãe tem esse des tino. Essa daí levantou a mão pra batê na mãe! A mãe dela rogou uma praga pra ela” . Tremíamos na base e ela continuava pontificando: “ Assim como as pedras rolam na rua, assim tu hás de rola também” . A Madalena parava em frente ao nosso pé de laranja-açúcar, ajuntava do chão as laranjas caídas, estragadas, comia, de pé mesmo abria bem as pernas e urinava, arrotava e ia embora... Pronto! Ela tinha cumprido o seu papel. Por um bom tempo seríamos ovelhas obedientes. Fi g ur a 6 – Ig r ej a Ma t r i z de B ru sq ue e m c o ns t ruç ão no a no de 1 9 5 9 . À di r ei t a , v ê - se pa rt e da a nt i g a Ca sa P a r o qui a l No final da missa, na pracinha da cidade se exibia o Timbé. Baixinho, magro, desmolambado. Por uns trocados ele engolia um sapo inteiro e vivo. “ Aaaaaah! Tão vendo? Nunca estudou, nunca quis trabalhar, agora tem que engoli sapo pra vivê. É isso que acontece com quem não estuda e não trabalha. Engole sapo” minha mãe invectivava e, ouvíamos outras, falando para seus filhos no mesmo tom. Pronto! O Timbé tinha cumprido o seu papel e nós, queríamos mais era estudar e trabalhar. Mec an i s mo s d e p od er - s ab er f u n ci on a m n ã o ap en as e m r el açã o a p ed a g o gi as d ef en d i d as em d i scu r s o s ed u c a c i on ai s, i st o é, e m r el a çã o a vi sõ es s oci a i s e p rá t i cas i n st r u c i o n ai s p ar t i c u l ar e s, p r o mu l gad a s e m n o m e d a p ed a g o gi a , ma s t amb é m e m r el aç ã o á p ed a g o gi a d o s a r gu m en t o s q u e c ar ac t er i za m d i s cu r so s ed u ca ci on ai s esp e cí fi c o s, i st o é , a os p r óp r i os ar gu me n t o s ( G or e , 1 9 9 3 ) . Fo u c au l t ( 1 9 8 5 a, p . 9 5 ) ar gu me n t ou q u e ‘ é j u st a m en t e n o d i scu r so q u e vê m a se ar t i c u l ar p od e r e sab e r ’ . ( G O RE , 1 9 9 4 , p . 1 4 ) . Fi g ur a 7 – Pra ç a Ce nt ra l Cô n sul Ca r l o s R en a ux , da ci da de de Br usq ue , e m f e st a do pa dr o ei ro da ci da de – S ão Lui z Go n za g a – no a no de 1 9 6 0 Podemos dizer que onde existe diferenciação – ou seja identidade e diferença – aí está presente o poder. E essa diferenciação tem uma continuidade, de pais para filhos. Recentemente, num dia de muita chuva, atravessando o pátio do colégio, pendurei meu guarda-chuva no braço. Um dos “ pequenos ” da oitava série passou por mim e falou: “ Com guarda-chuva assim, tu parecess es o Pedro Pellenz” . Parei, ri e perguntei: “ E por acaso tu conheces o que do Pedro Pellenz? ” Respondeu-me rindo também: “ Aaaaah! Não sei quem é, mas quando alguém lá em casa bota o guarda-chuva ass im, minha avó diz logo que parece o Pedro Pellenz e manda se ajeitar para não ser ‘feio’. ” A memória e a identidade de Pedro Pellenz, tantos anos após sua morte continuam a realçar as diferenças. A i d e n t i d ad e n ã o é mai s d o q u e o r esu l t ad o si mu l t an e ame n t e e st á vel e p r o vi s ór i o, i n d i vi d u al e c ol et i v o, su b je t i v o e ob jet i v o, b i o g rá f i c o e est r u t u r al , d o s d i v e r s o s p r oce s s o s d e so c i al i za ção q u e, e m con ju n t o, c on st r oe m o s i n d i v íd u os e d ef i n e m a s i n st i t u i çõe s. ( DU B AR , 1 9 9 8 , p . 1 0 5 ) . Já Pollak (1992, p. 212) afirma que: A me m óri a é u m el e me n t o c on st i t u i nt e d o se n t i men t o d e i d en t i d ad e , t an t o i n d i vi d u al c o mo c ol et i va, n a med i d a e m q u e e l a é t a mb é m u m f at or ex t r e m a men t e i mp or t an t e d o se n t i me n t o d e c on t i n u i d ad e e d e co e rê n ci a d e u ma p e ss o a ou d e u m gr u p o e m su a r ec on st r u çã o d e si . Pedro Pellenz, era outra dessas personagens destoantes dentro da normalidade citadina. Sempre de paletó, guarda-chuva pendurado no braço (usado como arma se necessário), e de chinelos havaianas amarrados no calcanhar com um barbante (o que hoje é lançamento da marca de chinelos ). E o Cantorinho? Cantorinho de Cantório, porque vivia cantando: “ Feliz Natal, Feliz Ano Novo, Feliz Natal, Feliz Ano Novo...” de forma infindável. E beijava tudo. Reverentemente. Os ônibus, as paredes, os muros, as portas, as janelas e se pudesse, as pess oas. Baixinho, moreno, tipo “ tijucano” , com sapatos bicudos, s empre de paletó e chapéu. Caus ava pavor, terror. Eu e todos os pequenos que o conheciam, nos escondíamos debaixo da cama, porque, a exemplo da Madalena Doida, o Cantorinho “ levava” as crianças que não s e comportavam, dava cabo nos meninos que eram desobedientes e que não iam bem na aula, que tinham “ orelha-de-burro” nos cadernos, que não faziam o dever de casa. “ Ele era uma forma de controlarmos a capetada” , me confessa a professora aposentada já citada anteriormente, que me diz novamente não entender porque me preocupo com “ esse tipo de gente” . Fi g ura 8 – Ca mpo d e Fut e bo l Co ns ul Ca rl o s Re na ux e m 1 9 5 5 , e m j o g o ent r e Ca rl o s Re na ux ( 1 1 ) X Av a i ( 0 ) Minha Escola, Minha Infância No primeiro semestre de 2004, na aula de Epistemologia da Educação tomei conhecimento de uma obra Fomos Maus Alunos, de Gilberto Dimens tein e Ruben Alves (2003). Foi amor a primeira vista e, através desta obra fiz uma retrospectiva na minha vida, revi cenas, pessoas, lugares, objetos e detalhes esquecidos e descobri o porque de minha paixão pela educação, pela pesquisa, pela história. Neste livro de Gilberto Dimens tein e Rubem Alves, fiz uma viagem retrospectiva à minha infância e adolescência na escola. No texto denominado “ Travessia” , Rubem Alves deseja ao leitor uma boa viagem e realmente o foi. Lembro-me muito bem de como era chato ter que fazer os deveres de casa, ter que decorar os verbos e pior do que tudo o mais, decorar a tabuada. O meu terror era a matemática; ou melhor, a profess ora de matemática no “ II Grau” , que não gostava de mim e me excluía porque eu era o menino pobre que estudava em colégio de rico. Jamais guardei qualquer fórmula de matemática, física ou química e mais, fui reprovado duas vezes no 1.º ano do Ens inoM édio nessas matérias. Em compensação s abia os 21 nomes de Pedro I e as capitais de quase todos os países, porque eu amava a professora de História e Geografia. “ A curiosidade é a voz do corpo fascinado com o mundo” escrevem os autores e curiosidade eu tinha muita. Não tínhamos televisão em casa, então os livros da biblioteca eram o meu veículo de viagem. Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai abandonou a família nos deixando numa situação crítica. Minha mãe e minhas irmãs foram trabalhar, meu irmão foi para o Quartel. Até os 10 anos, eu estudava de manhã e de tarde ficava com uma das irmãs em casa, mas, nessa época esta irmã também foi trabalhar e eu não podia ficar sozinho em casa. Foi então que uma amiga de minha mãe, que era a bibliotecária da Biblioteca Municipal s e ofereceu para cuidar de mim a tarde. Ela pertencia a uma das famílias “ de bem” da cidade. Tivera uma educação aris tocrática e toda ela refletia isso, apesar de uma série de problemas que enfrentara nos últimos anos. Portanto, a partir dos 10 anos todas as tardes de segunda à sexta-feira eu passava o período vespertino na Biblioteca Municipal rodeado de livros por todos os lados e a Dona Edla Schaefer separava os volumes que eu deveria ler. Em seguida devia fazer uma ficha de leitura para que ela pudesse analisar o meu desenvolvimento. Li todos os contos dos irmãos Grimm, todos os livros do Karl May e centenas de outros. Era a curiosidade que me impelia a pesquisar. Quando lia o nome de um país, bus cava s aber onde se localizava e todas as suas características, s aber os detalhes da vida dos pers onagens. Dona Edla só nunca me deixou chegar perto do “ armário proibido” ; minha maior curiosidade. Roma Corrupta e obras de Adelaide Carraro estavam ali encerradas a sete chaves e o acesso àqueles livros me era totalmente vedado. Nunca consegui abrir aquele armário, que permanece indevas sável para mim até hoje. Bom, s e a fria biblioteca municipal era o meu mundo de sonhos a escola era um mundo de medos. Não tinha só preguiça. Tinha medo. Naquele tempo as professoras batiam nos alunos e a disciplina era extremamente rigoros a. O “ livro negro” era o pavor de todos, ficar “ cheirando a parede atrás da porta” , ser expulso da sala de aula, as solenidades da Bandeira quando eu ra escolhido para dizer o verso, tudo me apavorava. A hora de ira para a escola era a hora do “ frio na barriga” . Será que os deveres estavam corretos? Uma colega, no “ segundo ano” apanhou de régua da professora por ter escrito bambu com n, e apanhou tanto que fez xixi no chão. Ficar com frio na barriga na hora de ir para a escola tinha boas razões. Eu até que gostava da escola, mas temia os rompantes da professora. Em Rego (2003, p. 349), justificam-se adequadamente essas lembranças: Fat os q u e f or a m ma rc an t es e si gn i f i can t es p a r a u n s sã o i r r el e van t e s p ar a ou t r o s ( al i á s, a me mó r i a d e ep i s ód i os p on t u ai s q u e f or a m ma r can t e s é mu i t o i n t er e ssan t e) . P or e x e mp l o, u n s l e mb r a m e d esc r e ve m d et al h es d o asp e ct o f í si c o d a e sc ol a , c o men t a m sob r e o t i p o d e con st r u çã o , a p r e se n ç a d e ár v o r e s, a s d i men s õ es d o p á t i o e d as sal a s d e au l a. Ou t r o s se r e c or d a m d o s t e mo re s, d o s ca st i g o s e d as p r i mei r a s d i f i cu l d ad e s e n c on t r ad a s; ou t r o s ai n d a se d et ê m n o t i p o d e r el a ç ã o e st ab e l e ci d a c o m o s p r o fe ss or e s ou e m d et e r mi n ad os ep i s ód i o s vi vi d os n a e sco l a, c o m o a al e gri a d e r ec eb er o p r i m ei r o l i vr o d e p oi s d e t e r mi n ad a a c ar t i l h a. Certa vez, esta mesma professora estava ensinando para a gente o hino de Brusque. Aproximava-se o dia da fundação da cidade e todos se preparavam para “ comemorar” a “ efeméride” . Tínhamos que treinar o canto à exaustão e conforme cantávamos, ela sacudia o alto “ coque” de cabelos ruivos grudados com “ laquê” . Tanto s acudiu que o “ coque” s e desfez, todos caímos na risada, todos ficamos de castigo depois do horário e quando cheguei em casa ainda apanhei por ter me comportado mal. Mas não era só de medo que era feita a escola. Era feita de preguiça também. Uma seleção de s aberes insípidos , fórmulas que deveriam ser decoradas e não saboreadas como tão bem escrevem os autores aqui. Ai! As fórmulas matemáticas . Os verbos, que deveriam ser cantados; o professor de geografia, dizia o país ou o estado e nós cantávamos a capital e vice-versa. Ah sim! Em pleno regime militar, obviamente que a escola também era disciplina e hierarquia. Quando a diretora, ou uma profess ora entrava na s ala de aula, incontinenti, todos devíamos nos por de pé e esperávamos que elas nos autorizass em a sentar. O uniforme de calça azul marinho (curta), camisa branca e sapatos pretos com meias, também pretas, devia ser impecável. Chegar à escola sem o uniforme era impens ável. Lembro-me bem que num 7 de Setembro fiquei de castigo junto com outros alunos “ indisciplinados” . Iss o porque meu sapato preto ficara encharcado na chuva do dia anterior e na tentativa de secá-lo no forno, ele fora torrado. Resultado: tive que ir de “ conga” e, a conseqüência foi o castigo de ter que desfilarmos separados dos demais na parada por estarmos de uniforme incompleto. Eu não era judeu mas não era rico. E o Ensino Médio eu fiz em colégio de rico, graças a uma bolsa de estudos que o atual governador do estado, na época, deputado estadual, me dava. E não rico, em colégio de rico era complicado. Todos chegavam ao colégio, levados pelos pais, de carro. Eu chegava só e de bicicleta. Em dias de chuva era humilhante porque chegava e ficava nas aulas todo molhado. Tínhamos uma vizinha, uma “ vózinha” , a Vó Carminatti, idêntica às vovós dos livros que eu lia, baixinha, corcundinha, gordinha, de cabelo branco com “ cóquezinho” , de óculos, que nunca deixou passar Natal, Páscoa ou aniversário sem que eu ganhasse alguma guloseima. E uma indefectível maçã Argentina embrulhada em papel roxo com letras vermelhas. Naquela época, as maçãs eram muito raras , a maioria importada e só se ganhava maçã quando s e estava doente. Eu guardava e polia aquela maçã por muitos dias antes de comer. Na sala de aula eu não era do fundão e nem da “ comissão de frente” . Era do meio, na tentativa de não chamar atenção. Se pudesse passava a aula inteira lendo livros de his tória. Alheio a tudo o que se passava. Nos livros eu me refugiava e criava um mundo só meu e contava os minutos para a aula acabar. Dona Mariquinha tocava o sino pelo pátio, acabava o suplício e eu podia ir para a biblioteca com a Dona Edla viajar pelo mundo das his tórias. Claro que li o Robinson Crusoé e toda a coleção da Abril “ Clássicos da Literatura Juvenil” , composta de 60 volumes. Há 10 anos atrás, comprei esta coleção num sebo em São Paulo e a trouxe para minha casa como um grande tesouro. Três Mosqueteiros, Robins on Suíço, Moby Dick, Ivanhoé, toda a coleção de Karl M ay e tantos outros que, agora es crevendo vejo a minha frente na estante. Ainda hoje sempre leio um livro dessas coleções para fazer o “ relax” da s emana. Aparentemente uma bobagem, mas me deu muita noção de his tória e de geografia nas notas de rodapé. Ah sim! E as obras de Charles Dickens? Quando li “ O Capital” , de Carlo Cafiero há meses atrás, lembrei imediatamente de Charles Dickens nas páginas 34 e 35, 96 e 97. É David Cooperfield e Oliver Twist que estão retratados ali. Mais tarde minhas leituras abrangeram o Morro dos Ventos Uivantes, Madame Bovary, O Amante de Lady Chaterly. E aprendi a gostar de música clássica: Bach, Häendel, Haydn e Mozart. Dona Edla gostava de óperas, e se esmerava para eu aprender a gostar de música de “ qualidade” . Tocava e eu devia adivinhar quem era o compositor, as vezes ela cantava, tinha uma belíssima voz de soprano. Suas preferidas e por “ coincidência” as minhas são o largo da ópera Xerxes de Häendel, Cânon de Johann Pachelbel, Só Teu é o Meu Coração de Franz Lehár e Schön Rosmarin de Fritz Kreisler. Eu lhe causei uma grande f rustração: nunca aprendi a tocar piano ou qualquer outra coisa. As notas musicais eram matemáticas e isso fugia à minha capacidade além de me causar aversão. Interessante ressaltar que ninguém freqüentava a biblioteca. Hoje, no mes trado, durante as aulas eu vejo desvelar-se como tudo isso foi importante e como foi formando o Aquiles que é hoje. Além do “ currículo” da Escola eu tive o currículo da Dona Edla Schaefer. Não li sobre pedagogia ou psicopedagogia, mas filosofia e arte, história e geografia, mitologia grega e romana, religiões antigas; tinha que saber para poder falar com a dona Edla. E o sotaque de francês, inglês e alemão devia ser impecável. A primeira palavra francesa que aprendi foi d’Erlau, um sobrenome francês que aparecia num livrinho de história sobre a revolução francesa. Custou-me muito para apreender o porque “ au” era “ ô” , “ ois” era “ oa” e assim por diante. Belíssimo esse texto da experiência de confluência em que o Rubem Alves fala que nasceu educador e que isso é uma experiência amorosa e justifica essa afirmação na Toráh. Realmente o conhecimento é uma experiência prazerosa. Minha mãe (tem 81 anos) me diz que está na hora de parar de estudar, (pergunta-me se vou me apos entar como estudante) e que está na hora de ganhar dinheiro, mas aprender, pesquisar, buscar faz parte de mim. Interessante que se em casa minha mãe era “ prevenida” com relação a “ certas pessoas” – negros (pretos), homos sexuais, prostitutas, gente “ desqualificada” , fui formado pela “ Dona Edla” a aceitar tudo e todos como são. Quando a Fanny passava pelas ruas de Brus que de bicicleta causando frisson, algumas pessoas “ de bem” até poderiam “ fechar a cara” porque ela era prostituta, dona de uma zona. Mas, perguntada por mim quem era aquela mulher, a Dona Edla me respondia tranqüilamente que ela era a proprietária de uma “ casa de tolerância” . Que interessante, ler hoje sobre o currículo, a forma como é elaborado e posto em prática, é como uma janela que se abre e pode-se então apreciar o que ela ocultava. O currículo é uma ditadura, é arbitrário e o que é pior, seleciona só o que há de mais aborrecido para ser transmitido. Sem falar que se tem que correr para cumprir a ementa. Quanto ao vestibular, vejo também como uma forma de exclus ão dos alunos oriundos de escola pública da possibilidade de cursar uma faculdade federal. Os meus alunos do Colégio São Luis têm uma ementa desonesta em relação aos das escolas do município ou do Estado. São dois profes sores de matemática, dois de português, quatro de ciências (dois de biologia, um de química e um de física). Aulas de manhã e de tarde, reforço, atualidades, laboratório de informática, de ciências, vis itas às principais faculdades. Lecionei um semestre no Estado e, além da deficiência de material há o desânimo do profess or que ganha uma ninharia, enfrenta uma sala com 50 alunos. Profess ores que trabalharam durante todo o dia, em atividades outras e, muitas vezes estão ali à noite para fazer um “ bico” . O ser educador não é a sua principal função, isto é secundário. Lembro que levei as minhas turmas do Colégio Estadual para vis itar a faculdade e um dos professores me falou que era “ perca” de tempo já que “ aqueles” alunos não eram “ feitos” para ir para uma faculdade. Eles deviam terminar o ensino médio e continuar nas fábricas... “ porque senão daqui há pouco todo mundo vai estar na faculdade e ninguém mais vai querer trabalhar. O que o senhor esta fazendo é perca (sic) de tempo” . Então a formação do próprio professor deve ser mais esmerada, mais valorizada, e ser professor deve ser assumido como profissão e não como “ bico” . Além disso, há uma cultura, uma mentalidade de que as “ exatas” são importantes e as demais disciplinas não. História, arte, geografia, são perfumarias. Os professores de matemática, fís ica e química tendem a estabelecer uma situação de hegemonia dentro da escola em relação às outras matérias. São as matérias “ difíceis” ou “ importantes” que deixam alunos em exame e em segunda época, o “ resto” não. Bonito o trecho que eles falam de que ser educador é ser amante, quer ser amante sempre. Se a gente gosta do que faz, faz com um prazer que repassa à quem se ensina esse prazer. Prazer de gostar de história, por exemplo, ou de Foucault. Tenho ess e relacionamento próximo com meus alunos, sejam os pequenos das oitavas séries, sejam os “ grandes” da faculdade. Freqüentam minha casa, me convidam para as festas. Acredito também que ser educador é ser também transmissor de uma conduta moral e ética que estabeleça critérios de exemplo, de preferência sem hipocrisias. Tenho colegas de profissão que dizem que isto é idealismo, mas o poeta catarinense Lindolfo Bell, poeta blumenauense, dizia que “ menor que meu sonho eu não pos so ser” . E o velho adágio que diz que, “ é fazendo que se aprende” , ainda é válido. Ser educador, ser professor não é apenas derramar, fórmulas e conceitos, dados e seguir uma apostila. Não s e lê mais livros, o conhecimento que se estipulou transmitir está todo ele condens ado em uma apostila tal qual um livro de receitas para culinária. Ainda com relação a Dimenstein e Alves (2003, p. 96); em sua obra Fomos Maus Alunos, falam da escola de Tocantins em que foi criado um programa de interação entre es cola e a comunidade. Esse é, a meu ver, um dos principais papéis da escola: o de interar-se com a comunidade. Muros altos, portões de ferro, vigias, câmeras lembram prisão e não formação. A escola deve bus car através da ação e do exemplo transformar a comunidade, o bairro, a rua. Da mesma forma que os autores sou cheio de boas pers pectivas em relação à escola e a educação. Tanto que escolhi fazer um mestrado em educação. Penso que todo professor deveria ter essa oportunidade porque é um divisor de águas, um diferencial na carreira e na cabeça do educador. Minha querida amiga Dona Edla teve um trágico fim, mas até hoje eu não me esqueço dela, das lições que me passou e da herança que me deixou. Talvez eu tenha saído do esquema estabelecido pela metodologia para elaborar uma resenha crítica. Mas o livro é tão envolvente que tudo o que escrevi aqui foi fluindo de uma forma tão natural que estou resolvido a arriscar e deixar assim como está. Durante todo um dia de sábado e grande parte de uma noite também, onde a chuva continua a cair, tive a agradável oportunidade de relembrar muita coisa de minha vida que estavam guardadas lá no fundo da memória. Tive oportunidade de trazer Dona Edla e outras pessoas que me são caras para perto de mim. O livro de Gilberto Dimenstein e Rubem Alves apresenta muitos questionamentos e responde ou propõe alternativas para o sistema educacional no Brasil de uma forma inus itada: um diálogo. E é dialogando que se resolvem os problemas. Hoje sou professor em duas universidades e em dois colégios particulares. Um de confissão católica e outro de confissão luterana. Vejo como foi longa a trajetória de estudar, continuar estudando, os primeiros dias como professor e as dificuldades de se deparar com uma s ala repleta de pess oas que esperam que o professor s aiba tudo e resolva todos os seus questionamentos. Nu n ca e s gar a vat e i a t e r á n em a n d ei à caç a d e n i n h o s, n ã o h er b or i z ei n em a t i r ei p ed r a s a os p á ss ar os . M a s o s l i v r o s f or a m o s meu s p as sa r i n h o s e o s meu s n i n h os, o s m eu s a n i ma i s d o mé st i c o s, o meu est áb u l o e o meu c a mp o; a b i b l i o t eca er a o m u n d o c ol h i d o; n e m esp el h o t i n h a a su a e s p es su r a i n f i n i t a , a su a va ri e d ad e e a su a i mp r e vi si b i l i d ad e . ( J ean - P au l Sar t r e) 90 APÊNDICE B – Roteiro de entrevista com Dalbérgia Deucher O r o t ei r o d a en t r evi st a r eal i zad a c o m D on a D al b ér gi a , fi l h a d e Fa n n y, n est a p esq u i sa f oi d esen v ol vi d o a p ar t i r d o s q u e st i on a me n t o s a b ai x o: 1) Qu al o se u n o me? 2) Dat a d e seu n a sc i me n t o? 3) Qu e m e r a m seu s p ai s? 4) Qu e a t i vi d ad e v ocê ex er ce u ? 5) Fal e d e su a i n f â n ci a e d o seu c ot i d i an o? 6) O q u e v o cê sab e d a i n fâ n ci a d e su a m ãe? 7) C o men t e p or q u e su a m ã e v ei o m o r ar e m Br u sq u e? 8) Fal e sob r e a t r a je t ór i a d e vi d a d e su a m ãe? 9) Qu e t i p o d e c o me n t ár i o s el a f azi a e, q u e c o men t á ri o s se f a zi a s ob r e e l a? 1 0 ) Qu al a f ai x a et á ri a d a s p es soa s q u e f al a va m sob r e a Fan n y? 1 1 ) Na su a op i n i ão q u a l a i mp or t â n ci a d e su a m ãe n a vi d a d o s h o m en s e r a p az es d e Br u sq u e? 1 2 ) As p e s soa s d a ci d ad e se i n c o m od a va m d e v e r a Fan n y ci r cu l a n d o p e l a c i d ad e e f r eq üen t a n d o l u g ar e s? 1 3 ) V ocê t e m a l gu m c o n h e ci men t o d e c o mo er a a re a çã o n a s e sc ol a s s o b r e o assu n t o Fan n y? 1 4 ) Em ge ra l , o q u e se c o m e n t a va s ob r e a Fa n n y n a v i d a d o s r ap az e s n a c i d a d e? 1 5 ) Qu e l u gar e s a Fan n y c o st u ma va f r eq üe n t ar ? 1 6 ) V ocê l e mb r a d e al gu m a sp ect o d a vi d a d a c i d ad e d e Br u sq u e, n a q u el e t e mp o? 1 7 ) E o p ap e l d a m u l h er n aq u el a ép oca c o m o e r a? 1 8 ) V ocê t e m al gu m a i d éi a d a ed u c a çã o e d a f or m aç ão n aq u e l a é p o ca? 1 9 ) Su a m ãe e r a u m a p e ss oa p op u l ar e b e m q u i st a n a c i d ad e? 2 0 ) V ocê p en s a q u e su a mã e é h o je u ma p e r son a ge m esq u e ci d a n a ci d ad e? 2 1 ) E sob r e se u p ai , o q u e a sen h or a t e m a n o s d i zer ? 2 2 ) P or q u e seu s p ai s se sep a r ar a m? 2 3 ) De su a f a míl i a o q u e v o cê p od e n o s c on t a r ? 2 4 ) C o m o er a su a f a míl i a a n t es d e seu s p ai s se sep ar a re m? 2 5 ) Ti n h a mu i t o s i r mã o s? 2 6 ) P or q u e v o cê vei o mor ar c o m su a mã e e m B r u sq u e? 2 7 ) Qu al a l e mb r an ç a m ai or q u e f i cou d e su a mã e? 91 APÊNDICE C – Roteiro de entrevista com as professoras O r ot ei r o d a en t r e vi st a r eal i z ad a c o m a s p r of e ss or a s n e st a p e sq u i sa f oi d e se n v o l vi d o a p ar t i r d os q u e st i on a me n t os a b ai x o: 1) Qu an d o e on d e v o c ê n a sce u ? 2) Su a i d a d e? 3) Qu al su a at i vi d a d e p r o f i ssi on al at u al ou a q u al p r of i s sã o se d ed i c ou ? 4) Fal e u m p ou c o d e v o cê? 5) C o m o e r a a es c ol a n a d é ca d a d e 1 9 6 0 ? Mu i t o d i f er en t e d a e sc ol a h o je? Qu e d i f er en ç a s v oc ê p or i a e n t r e a e sc ol a d e 1 9 6 0 e a e s c ol a at u a l ? 6) V ocê l e mb r a d a Fa n n y e m Br u sq u e? 7) Qu e a t i vi d ad e el a ex er c i a e c o m o i ss o se f az i a? 8) Qu al a su a op i n i ã o sob r e el a ? 9) Qu e t i p o s d e c o men t á ri o s se f a zi a m s ob re el a ? 1 0 ) As p e sso as n a ci d ad e ac e i t ava m a p r e sen ça e a a t i vi d ad e d e l a? 1 1 ) Qu al a op i n i ã o ma i s ma r c an t e ou vi d a s ob r e a Fa n n y n a c o mu n i d a d e d e B r u sq u e ? 1 2 ) Na s e sc ol a s c o mo e r a m o s c o me n t ár i o s sob r e a Fan n y? 1 3 ) Os a l u n os q u e er a m i n ici ad o s s ex u al men t e p el a Fan n y sof r i a m al gu m p re c on ce i t o d o s d em ai s? 1 4 ) Qu e l u gar e s a Fa n n y c o s t u ma va f r eq üe n t ar ? 1 5 ) El a er a r el i gi o sa? 1 6 ) C o m o er a a e d u c açã o d a mu l h er n a d é c ad a d e 1 9 6 0 ? Di f e re n t e d o s r ap a z es? 1 7 ) Qu al a i ma ge m q u e a c o mu n i d a d e b r u sq u e n se t i n h a d a Fan n y? 1 8 ) Qu al er a a c on ce p ç ã o d e ed u c a çã o n a d é c ad a d e 6 0 e m Br u sq u e ? 1 9 ) A p op u l ar i d a d e d a Fa n n y m ar c ou a p en a s u ma é p oc a n a so c i ed ad e b ru sq u en se ou ai n d a con t i n u a vi v a. 2 0 ) De ma n ei r a g er al a s a t i vi d ad e s d a Fa n n y e r a m vi st a s d e f or ma n e gat i v a ou p o si t i va? Al gu ma au t o ri d a d e, al gu ma vez b u sc ou f i sc al i z ar ou i mp ed i r su a a t u açã o ? 2 1 ) Qu al a i mp or t ân ci a q u e a Fan n y t e v e a ed u c a çã o / f or maç ã o d o s r ap aze s? 2 2 ) A ed u c açã o se x u al e a p r ev e n çã o d a s D ST er a m p ar t e d o cu r r íc u l o n a d é cad a d e 1 9 6 0 ? 2 3 ) Qu al a f or maç ã o p ed a g ó gi ca q u e a Fan n y p o d e t er ex er ci d o sob r e os r ap az e s, n e st e sen t i d o? 2 4 ) V ocê a ch a q u e a f u n çã o d a Fan n y t er i a al gu m e sp a ç o n a vi d a d o s r ap az es h o je e m d i a n a ci d ad e d e Br u sq u e? 2 5 ) O q u e ma i s v ocê g o st a r i a d e fa l ar sob r e a Fa n n y ou sob r e a ed u c a çã o q u e p u d e sse t r az er al gu ma c on t r i b u i ção si gn i f i c at i va ? 92 APÊNDICE D – Roteiro de entrevista com os alunos J á c o m os h o me n s, ex - al u n o s, ex - f r eq üen t a d or e s d a c a sa d a Fan n y, o q u e st i on á r i o f i c ou as si m e l ab or ad o: 1) Qu an d o e on d e v o c ê n a sce u ? 2) Su a i d a d e? 3) Qu al su a at i vi d a d e p r o f i ssi on al at u al ou a q u al p r of i s sã o se d ed i c ou ? 4) Fal e u m p ou c o d e v o cê? 5) C o m o e r a a esc ol a n a d é cad a d e 1 9 6 0 ? M u i t o d i f er en t e d a e sc ol a h o je? Qu e d i fe r en ça s v oc ê p or i a e n t r e a e sc ol a d e 1 9 6 0 e a e s c ol a at u a l ? 6) C o m o er a a c a sa d a Fan n y, on d e se l ocal i z a va? 7) C o m o o s f r eq üen t a d o re s c h e ga va m l á ? 8) P od er i a d e sc re ver o a mb i e n t e e o s f r e q üen t a d or e s? 9) Er a u m l ocal c ar o d e se f r eq üen t a r? Qu an t o cu st a v a? 1 0 ) De q u e m od o su r gi a a i d é i a d e se i r n a Fan n y? 1 1 ) Ha vi a al gu m p r e c o n cei t o d e s e f r eq ü en t a r o l o c a l ? 1 2 ) O q u e ac on t e ci a n a ca sa d a Fan n y en t r e o s f r eq ü en t a d or es? 1 3 ) Ha vi a al gu m p r e c o n cei t o ou r eaç ã o d o s vi zi n h o s c o m o l o cal ? 1 4 ) Qu al er a a f or m a d e se d i ve rt i r e d e se c o mp or t ar n a ca sa d a Fan n y? 1 5 ) Ha vi a c o m en t ár i o s n a ci d ad e sob r e o s f r e q üen t a d or e s? 1 6 ) Ha vi a c o m en t ár i o s n a ci d ad e sob r e a f i gu r a d a F an n y? 1 7 ) C o m o el a er a re c eb i d a n o s l o cai s q u e f r e q üen t a v a ? 1 8 ) C o m o el a s e d e sl o ca va? 1 9 ) C o m o er a a c i d ad e n e st a ép oc a? 2 0 ) A Fan n y e n si n a va t u d o sob r e s ex o? 2 1 ) Er a ap en a s s ob r e sex o q u e a Fa n n y f al av a ? 2 2 ) Sex o e ra o p r i n ci p al t e o r d a c o n v er sa n a ca sa d a Fan n y? 2 3 ) O q u e se b eb i a n o l o ca l ? E r a c a r o? 2 4 ) Ha vi a r ef ei çõ e s n o l o ca l t amb é m? 2 5 ) Ac on t e ci a m d e s en t en d i men t o s, b r i ga s, a g r e ssõ e s n o l ocal ? 2 6 ) C o m o a Fan n y r ec eb i a seu s cl i e n t es e c o m o ci r cu l a va p el a su a cas a en t r e o s f r eq üen t a d or e s? 2 7 ) Ha vi a mú si ca n o l oc a l ? Qu e t i p o? Er a m ú si ca mec â n i ca ou e ra co mp o st a p o r i n t eg ra n t es? 2 8 ) V ocê ach a q u e h a vi a a l g u ma r el aç ã o en t r e a c a sa d a Fan n y e a su a ? 2 9 ) V ocê ach a q u e h a vi a a l g u ma r el aç ã o en t re a c a sa d a Fa n n y, su a at i vi d ad e e a e sc ol a? 3 0 ) Ha vi a d i f er en ç a en t r e a e d u caç ã o d o s r ap a ze s e d as m o ça s?