O CONCEITO DE MORTE: relevância para o direito civil e biodireito Maria de Lourdes Felix Pereira1 Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis, “morte” é o fim da vida animal ou vegetal, passando a definir algumas formas de morte, como, por exemplo, morte cerebral, como sendo o “conjunto de alterações neurológicas irreversíveis (ausência de atividade muscular espontânea, inclusive de respiração, calafrios etc.), completa falta de atividade cerebral, desde que tal conjunto de alterações não se deva a hipotermia ou intoxicação por substâncias depressoras do sistema nervoso central”. Para a Medicina Legal, morte é a paralisação definitiva de todas as funções cerebrais, atingindo a vida de relação, em que se pode conservar a vida vegetativa por meios artificiais, ou o dano irreversível global de todo o encéfalo, incluindo os troncos encefálicos, mantendo-se as atividades pulmonar e cardiovascular por processos artificiais (Avelino Medina). O Professor Odon Ramos Maranhão2 nos apresenta uma definição mais completa quando ensina que dizer que a morte é a cessação da vida é afirmar um truísmo, ao mesmo tempo, afirmar algo desprovido de senso: não sabemos o que é morte. Contudo, sabemos que ela se expressa por um complexo de fenômenos bioquímicos regidos por leis fixas, cujo funcionamento normal se traduz num equilíbrio biológico e físico-químico, bem como em valores orgânicos constantes. Quando ocorre a morte, essas leis deixam de ser válidas e o corpo inerte sofre influências de ordem física, química e microbiana, bem como do próprio meio interno. O organismo que consumiu suas reservas vitais e em que a morte se instalou em definitivo passa a ser um cadáver. Porém, órgãos, sistemas, tecidos etc. não morrem ao mesmo tempo: há graus de vida e há graus de morte. Assim a morte há de ser entendida mais como “processo” do que como “fato instantâneo” (MARANHÃO: 1999). 1 A autora é aluna do 3º semestre, período noturno, do curso de Direito do CEUNSP – Salto. Ex-Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Professor de Criminologia no curso de pós-graduação na mesma Faculdade, e também, Professor Titular da mesma cadeira na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie (1968/1970). Foi Presidente da Academia de Medicina de São Paulo (1984/1985). 2 Há, ainda, o conceito filosófico ou até mesmo antropológico, de que a morte é um processo biológico e necessário. É condição indispensável à sobrevivência da espécie humana sobre a terra, É através da morte que a vida se alimenta e se renova. Portanto, a morte seria não a negação da vida e, sim, um artifício da natureza para tornar possível a manutenção da vida. Em sentido jurídico, é o que nos interessa, morte é a cessação definitiva da vida humana, momento em que são interrompidas as funções cerebrais. Não é simplesmente o término da existência do homem, mas a condição em que é olhado, como não tendo existência. No entanto, a lei deixa a questão em aberto para que seja respondida pela medicina, cabendo ao médico determinar o momento da morte, pois é isto que interessa do ponto de vista jurídico. Assim, o conceito de morte tradicionalmente aceito constituiuse por muito tempo na certeza da cessação total e permanente de todas as funções vitais do organismo como indicativo da morte real. Hoje, a tendência é aceitar-se a morte encefálica ou morte cerebral, termo que passou a ser comumente usado a partir da era dos transplantes de órgãos e tecidos, ou seja, aquela que compromete irreversivelmente a vida, ou a perda irreversível das funções cerebrais, embora a vida vegetativa possa ser mantida artificialmente por períodos de tempo variáveis. O critério médico para estabelecer a morte de um individuo é a falta de atividade elétrica no cérebro e a perda irreversível da consciência, sem a menor possibilidade de retorno à vida. A preocupação jurídica é estabelecer o vínculo entre o fato biológico e as conseqüências jurídicas dele resultantes, pois com a morte física cessa a personalidade civil, dando lugar a uma série de outras conseqüências da mais alta relevância. De acordo com o Professor Genival de França (FRANÇA: 2001), é difícil precisar o exato momento da morte porque ela não é um fato instantâneo, e sim uma seqüência de fenômenos gradativamente processados nos vários órgãos e sistema de manutenção da vida. Porém, juridicamente, o momento da morte é de extrema relevância visto que pode determinar o início ou a extinção de um direito. Basta citar, por exemplo, a questão de transplantes de órgãos (Lei nº 9.434/97). Segundo a técnica jurídica existem vários tipos de morte, citando-se neste artigo apenas os mais relevantes para o momento: a morte civil, a morte presumida, a morte simultânea ou comoriência e a morte natural. 1. 2. 3. 4. Morte civil, abolida do nosso ordenamento, era uma pena imposta aos direitos do cidadão, por motivos políticos ou religiosos, onde a pessoa era considerada falecida, perdendo a cidadania e todos seus bens eram confiscados. Foi comumente usada pelos romanos quando o indivíduo tinha dívidas e não cumpria com sua obrigação de pagá-las. Morte presumida é aquela que a lei impõe, por presunção (art. 7º do Código Civil). Nesse caso a lei estabelece o transcurso de um prazo para que a morte se presuma. Comoriência: ou morte simultânea, como bem a descreve a doutrina, quando dois ou mais indivíduos falecem na mesma ocasião e devido à mesma causa. Sendo uma das formas importantes, tendo em vista a transmissão de direitos (sucessão e herança). Morte natural: é aquela que põe termo à vida de uma pessoa, seja qual for a causa que a produziu realmente. Dentro desse tipo de morte, admitemse várias expressões, segundo cada circunstância. • O próprio termo “morte natural” é usado para definir aquele tipo de morte causada pela seleção natural, ou seja, pela própria velhice ou doença. • Morte provocada ou violenta: quando a morte ocorre por mecanismos externos ou voluntários (ação criminosa de alguém, suicídio ou acidental). • A própria doutrina é concorde quanto às conseqüências da morte, ou seja, que esta extingue a personalidade jurídica. Como bem afirma Maria Helena Diniz, a pessoa deixa de ser sujeito de direitos e obrigações acarretando a dissolução de vínculo conjugal, extinção de pátrio poder, dos contratos personalíssimos, como locação de serviços, parcerias, mandato, sociedade, cessação da obrigação de alimentos. No caso de falecimento do credor, pois, com a morte do devedor, seus herdeiros assumirão o ônus até as forças de herança, obrigação de fazer, quando convencionado o cumprimento pessoal, extinção do usutrato e tantos outros (DINIZ: 2000). Portanto, por razões óbvias, é de grande relevância para o Direito a determinação do momento da morte, pois deste fato derivam-se conseqüências importantes, como a possibilidade de disposição gratuita do próprio corpo, no todo eu em parte, para depois da morte. Nesse sentido, o Artigo 14 do novo Código Civil faculta a disposição do próprio corpo, desde que seja feita em caráter altruísta e fins científicos, ou seja, em benefício da ciência e sem fins lucrativos. Sendo este direito - doar órgãos após a morte – ato voluntário, dependendo apenas da vontade do próprio individuo, poderá ser revogado a qualquer tempo. E por tratar-se de disposição não patrimonial, é facultado ao doador expressar sua vontade em vida por meio de testamento ou qualquer outro documento lícito. O artigo 4º da Lei 9.434/97 diz que a retirada de órgãos e tecidos de pessoas falecidas somente poderá ocorrer mediante diagnóstico de morte encefálica, efetuado por, no mínimo, dois médicos que não pertençam à equipe de transplante, por meio de critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e com a autorização de seus parentes maiores. Mister ressaltar que o direito ao próprio corpo é um dos direitos da personalidade e, portanto, de acordo com Carlos Alberto Bittar (BITTAR: 1999) a vontade da pessoa com referencia ao destino que deve dado ao seu próprio corpo precisa ser respeitada. Assim, vimos que, apesar do avanço tecnológico da medicina na atualidade, ainda não se chegou a uma definição concreta sobre a morte. Porém, chega-se à conclusão que, por todas as razões acima elencadas, mais importante do que entender o que é a morte é identificar o momento em que ela ocorre. BIBLIOGRAFIA BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 3. ed. rev. atual., p.78-82. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: parte geral. 26. ed., p.135-137. São Paulo: Saraiva, 2000. FLORÊNCIO, Gilbert Ronald Lopes. Novo dicionário jurídico. 2. ed., p. 300. São Paulo: Editora de Direito, 2006. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 3. ed. rev. atual., p.114-117. São Paulo: Saraiva, 2006. MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. p.247. São Paulo: Malheiros, 1999. MICHAELIS: Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 2002. RODRIGES, Silvio. Direito civil: parte geral. 29. ed. rev., p. 38-39. São Paulo: Saraiva, 1999. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 6. ed., p. 182-183. São Paulo: Atlas, 2006. http://www.portalmedico.org.br/Regional/crmpb/artigos/conc_etic_morte.htm *(Disponível em 20/05/2007) http://jus2.uol.br/doutrina/texto.asp?id=9190 (Disponível em 20/05/2007)