A “Reconstitucionalização” do Direito Civil Brasileiro: Lei Nova e Velhos Problemas à Luz de Dez Desafios* Por Luiz Edson Fachin1 1 Introdução Ao eclipsar da primeira etapa dos efeitos da incidência de uma principiologia axiológica de índole constitucional que se projetou sobre as relações interprivadas no Brasil contemporâneo no interregno entre 1988 a 2003, impende apreender, na metodologia do Direito Civil Constitucional, um novo momento a partir daquilo que se propõe como eficácia do novo Código Civil brasileiro sobre o trânsito jurídico, as titularidades e o projeto parental. Deflui daí, tomado na dimensão espacio-temporal da atualidade brasileira, o objetivo da presente exposição. E nesse estimulante horizonte de renovação, proposto pela teoria crítica do Direito Civil, que se abre reflexão aqui contida como ponto de partida possível e não excludente. Instala, tão-só, banco de provas para captar, no princípio do século XXI, os influxos da lei nova sobre as questões não solvidas da modernidade tardia da lenta história brasileira. 1.1 Para encetar esse exame, eis, à guisa de introdução, a percepção que temos sustentado sobre a temporada que vive o Brasil, a partir de 11 de janeiro de 2003, sob a vigência da Lei 10.406. Lei nova, velhos problemas: assim pode se por no palco coetâneo o cenário da nova codificação. Temos defendido2 o seguinte: ao se introduzir o novo Código Civil brasileiro, é legitimo indagar sobre os efeitos reais e possíveis de uma necessária hermenêutica construtiva das relações jurídicas na família, na propriedade e nos contratos para os velhos problemas enfrentados no país. É certo que a validade dos negócios e atos jurídicos constituídos antes da entrada em vigor do Código Civil fica submetida às leis anteriores, mas os efeitos, diante da incidência imediata e geral da nova lei, ao novo Código se submetem. A questão que se coloca é a seguinte: quais mudanças práticas efetivas irão ser operadas na tríplice base que sustenta o Estado e a própria sociedade? A eventual resposta demanda explicitar essa tríplice base, a partir das lições de Jean Carbonnier, assentada no contrato, no patrimônio e na família; em sentido amplo, compreendem-se aí, em primeiro lugar, os atos e negócios jurídicos em geral, bem assim as obrigações, os títulos de crédito etc; em segundo lugar, nesse triplo horizonte se enfeixam a propriedade, a posse, a empresa, e, enfim e em termos amplos, os bens, as coisas e os direitos a eles inerentes; em terceiro e último lugar (sem que essa enumeração classifique tais elementos por ordem de importância), está a família tomada em sua pluralidade, aberta e sociológica, como exposto pelo tríplice vértice fundante das relações sociais na teoria crítica do Direito Civil. 1.2 Sabe-se que quem contrata não apenas contrata com quem contata, e que quem pactua não avenca tão-somente o que contrata; há uma transformação subjetiva e objetiva relevante nos negócios jurídicos. O novo Código traz a função social do contrato e os princípios de probidade e boa-fé. A jurisprudência e a doutrina futuras dirão se foram capazes de informar relações contratuais mais equânimes, justas e razoáveis, num país vincado por desigualdades materiais e concretas que arrostam qualquer intenção legislativa. Além disso, de há muito o Brasil tem clamado por uma impostergável reforma agrária que dê conta da redistribuição de terra, renda e crédito. No que concerne à propriedade imobiliária rural, o * Palestra do Professor Luiz Edson Fachin no VI Simpósio Nacional de Direito Constitucional. O texto reproduz em síntese as idéias expostas na 9a. Conferência do VI Simpósio Nacional de Direito Constitucional, promovido pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 04 à 07/10/2004. Foi mantida a estrutura da exposição oral, sem adaptações às fontes e a outros recursos mais afeitos à sistematização escrita. 1 Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPR – Universidade Federal do Paraná. 2 Na introdução (item I e seus desdobramentos), o autor reproduz, sistematizando, a análise que tem exposto sobre os limites e as possibilidades da eficácia do novo Código Civil brasileiro. novo Código condiciona o seu exercício às finalidades econômicas e sociais, com preservação da flora, da fauna, do ar, das águas, e do patrimônio histórico e artístico. Prevê, ainda, uma privação do direito de propriedade se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, com posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, considerada de interesse social relevante pelo juiz. Nada obstante, é pela atuação efetiva do Estado, mediante desapropriação por interesse social, que as áreas socialmente improdutivas serão destinadas à produção que combata a fome de terra e de justiça fundiária. De igual modo, a observação social dos fatos nas relações familiares revela dados novos, como as famílias monoparentais, as uniões entre pessoas do mesmo sexo, a filiação sócioafetiva, num horizonte que revaloriza a família desatando alguns nós. Clama-se e não é de agora, por um direito de família que veicule amor e solidariedade. Para isso, o novo Código não nasce pronto; ao contrário, nessa matéria faz rebrotar estigmas como a culpa na separação e nos alimentos. Uma lei se faz código no cotidiano concreto da força construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os princípios, ética e valores constitucionais. Será no porvir que a sociedade brasileira poderá nele ver uma família aberta e plural, até porque não pode haver família plenamente justa numa sociedade escancaradamente injusta. 1.3 O grande desafio é superar um velho problema, a clivagem abissal entre a proclamação discursiva das boas intenções e efetivação da experiência. Esse dilema, simploriamente reduzido ao fosso entre a teoria e a prática, convive diuturnamente na educação jurídica. Compreendê-lo corresponde a fazer de uma lei instrumento de cidadania na formação para o Direito, nas salas de aulas e de audiências, no acesso democrático ao Judiciário, e nos espaços públicos e privados que reclamam por justiça, igualdade e solidariedade. Naquilo que apresenta de positivo, ainda que não seja tudo o que se almejou para a nova lei, queira que a hermenêutica construtiva do novo Código Civil contribua para que o Brasil não chegue ao final do século XXI com pés atolados na baixa Idade Média. 1.4 Para tanto, eis os 10 (dez) desafios possíveis ao Direito Civil brasileiro contemporâneo. 2 Desafios Tais reptos podem ser assim sumariamente elencados: 1o.) Apreender a pluralidade das fontes, vencendo o reducionismo codificador; 2o.) Tomar a questão jurídica como Problema Social “genuinamente constitucional” (na expressão de Paolo Grossi): o que está “no coração da constituição do novo” é o fundamento constituinte do direito em movimento; 3o.) Superar a divisão burguesa dos poderes do Estado, e admitir que jurisprudência e doutrina são fontes de Direito; 4o.) Compreender que um Código Civil (e por isso, o “novo” Código Civil Brasileiro) é uma operação ideológica e cultural que deve passar por uma imprescindível releitura principiológica, RECONSTITUCIONALIZANDO o conjunto de regras que integre esse corpo de discurso normativo; 5o.) Denunciar a manualística pedestre que dos Códigos fez o “seu código” do pensar por repetições, memorizações e mitologias simplificadoras, num tocante pragmatismo rasteiro que vende parcos saberes, a peso de ouro, a famintos de pão e trigo verdadeiros; 6o.) Evitar o simplismo adotando, sem embargo, a clareza e a simplicidade para veicular as conquistas históricas numa hermenêutica emancipatória e numa principiologia axiológica de índole constitucional, sem reduzir o que é complexo nem identificar o direito à lei; 7o.) Descobrir o direito pela força criadora dos fatos - como escreveram na Itália Pietro Perlingieri e Vicenzo Franceschelli -, captando a legítima “revolta dos fatos contra o código” sem a irresignação que daí retirava Gaston Morin, apreendendo que o caráter ôntico do direito está na sociedade e na realidade social, econômica e política; 8o.) Emancipar o Brasil do legado codificador da Idade Moderna da Europa Continental e voltar-se para a dimensão espacio – temporal de uma sociedade plural, compreendida em nações indígenas, em muitos que nada têm, em “homens e mulheres do chão levantados”, como escreveu Saramago, e entende, ainda, como bem ensina Gustavo Tepedino, que a pior inutilidade de uma codificação é o seu descompromisso com a transformação social; 9o.) Apreender que a “constitucionalização”, que retirou o Direito Civil tradicional de uma sonolenta imobilidade, não se resume ao texto formal de 05 de outubro de 1988, mas passa pela dimensão substancial da Constituição e alcança uma visão prospectiva dos princípios constitucionais implícitos e explícitos, num processo contínuo e incessante de prestação de contas à realidade subjacente ao direito; 10o.) Não tomar desafios como propostas cegas a serem dogmaticamente seguidas e sim como problematização em um país que, ao início do século XXI, produz um código que se preocupa, ao mesmo tempo, com a paternidade “post mortem” de embriões excedentários e com a medieval enfiteuse. Dissecar esse e outros paradoxos, penetrar no campo histórico e sociológico do direito, e evitar produzir receitas prontas para problemas cujo conhecimento ainda está em curso, eis a essência do que se pode (e deve) arrostar no Brasil contemporâneo da civilística que presta contas ao seu tempo e à história. 3 Conclusões Para arrematar essa exposição, apresentamos duas sintéticas conclusões: 1a. Da morte por asfixia se salvou o Direito Civil contemporâneo ao abrir-se para além do neo-exegese. Do Direito formal chegou-se à legalidade constitucional. Nada obstante, de modo diferente dos civilistas tradicionais, o Direito Civil brasileiro contemporâneo tomou como norma vinculante os princípios constitucionais. Foi à fonte do novo constitucionalismo. O inverso também impende ser verdadeiro, para evitar que o Código Civil seja citado como sinônimo de Direito Civil, ou para os menos avisados que tomam o pretérito como presente, e ao fazerem caricatura do passado estão se projetando no objeto do que perdeu sentido. 2a. É preciso ir mais longe. Navegar outros mares e captar o “direito vivente”, evitando construir o futuro com a sombra do que passou. Eis as possibilidades da “reconstitucionalização” do Direito Civil, a partir do pluralismo de fontes, avançando mais nas dúvidas que nas certezas, e pondo em questão a ordem mundial da nova negotia e da lex mercatoria. Cumprir-se-á, assim, um belo sonho: sem querer “estabilizar o instável” (na expressão de Paolo Grossi), que é inerente à condição humana, o direito a ver um futuro diferente disso que aí está.