Um dos 20 autores mais talentosos de sua geração.
- The N e w York e r -
- BOOK L IST -
“Arrebatador, comovente, belo e trágico. Este
é o livro que fará a nova geração de escritores
reagir. Ninguém na América escreve assim.”
- GARY SHTE YNG ART AU TO R D E ABSU RDIS TAN E O PÍCARO RUS S O:
c om é di a e t r agé di a d e u m ju d eu ru sso n a a mérica .
Percorrendo quilômetros a fio, Tim vive uma
verdadeira batalha. A questão é quem sairá vencedor:
as urgências do corpo ou a força da alma?
JOSHUA FERRIS é autor de E nós chegamos ao
fim, seu primeiro romance, que lhe rendeu
os prêmios PEN/Hemingway Foundation e
Noble Discover e foi também finalista do
prêmio National Book. Sua obra, aclamada
pela crítica como “brilhante”, já foi traduzida
em mais de vinte idiomas, e a revista The
New Yorker o apontou como um dos jovens
escritores da atualidade que ditarão o futuro
da literatura contemporânea.
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ISBN 978-85-7734-182-5
o desconhecido
© Nina Subin
Um advogado muito bem-sucedido, casado com uma bela
mulher e pai de uma adolescente talentosa. Tim Farnsworth
tem uma vida confortável. Só que uma compulsão
misteriosa, sem precedentes nos anais da medicina,
priva-o do controle das próprias pernas e o leva num
calvário de caminhadas imprevisíveis e intermináveis.
Joshua Fer r is
Josh ua F e r ris
“Profundamente atraente... Com seu tom metafórico
devastador, ao abordar o anseio pela união e a dificuldade do
comprometimento, Ferris canaliza brilhantemente a angústia
suburbana de Yates e Cheever para o novo milênio.”
O
desconhecido
Tim Farnsworth é um homem bonito e
saudável, sócio de uma respeitável firma
de advogados em Manhattan. Jane, sua
esposa, o ama, e mesmo depois de tantos
anos o casal continua tão apaixonado
quanto no dia em que se conheceu. Becka,
sua filha adolescente, com seus complexos
e inseguranças, completa o que aparenta
ser uma família perfeitamente normal.
Mas um dia uma misteriosa
circunstância interfere em suas vidas.
O bem-sucedido advogado, de repente,
se levanta e sai andando. Suas pernas
parecem assumir vontade própria e o
obrigam a caminhar quilômetros sem
rumo, justificativa ou controle.
Tim observa, impotente, enquanto anda
indefinidamente até tombar, exausto, nos
fundos de uma loja de conveniência, em
um parque abandonado, no quintal de
outras residências, à beira de estradas...
A Jane e Becka, por sua vez, resta apenas
aguardar até que, a qualquer momento
do dia ou da noite, venha um telefonema
com a informação de seu paradeiro. A
incerteza, então, começa a fazer parte
do cotidiano da família e dá um novo
significado ao conceito de normalidade.
O desconhecido é um romance
sobre relações inesperadas de oposição
(resistência física e emocional, saúde e
paz), mas também sobre o amor de um
homem por sua família e os conflitos
que ele vive com o mundo que o cerca
e com a natureza que o fragiliza.
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OS PÉS, MECÂNICOS
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Era o mais cruel dos invernos. O vento soprava furioso pelos rios. O gelo caía como dardos envenenados. Quatro nevascas somente
em janeiro, e os blocos de neve congelavam formando barricadas cinzentas
e impenetráveis como as de guerra. Lápides estavam sepultadas pelos cemitérios e os carros estacionados junto às calçadas eram engolidos sem digestão. O antigo debate sobre a mudança do clima havia sido posto de lado pela
preocupação imediata com os idosos e as pessoas presas em casa, enquanto
as crianças passavam semanas sem aula. Entregas foram suspensas e os armazéns ficavam entupidos nos dias em que os aviões tinham autorização
para pouso. Havia filas nos supermercados, pessoas estressadas e um rancor
pela adaptação forçada a tais condições. Alguns serviços públicos inteligentes se dedicavam às preocupações cívicas, como o aquecimento de lares e
o trabalho voluntário de verificação das residências. O frio era a mãe da
invenção, uma mãe vingativa, que trazia lições na ponta do chicote.
O trajeto para casa foi lento por causa da neve e do trânsito. Ele geralmente trabalhava no carro, com a luz interna acesa, mas esta noite não levara
trabalho para casa; estava sentado em seu canto do carro, sem arquivo
aberto nem uma caneta na mão. Estavam esperando por ele. Não sabiam,
mas o aguardavam. O motorista sintonizou na estação 1010 wins, que
trazia chamadas do trânsito. Talvez estivesse nevando em algum lugar em
alto-mar, ou ao sul. Aqui, a neve caía envergada sobre o para-brisa, como
cinza branca de uma explosão estelar. A queimação voltara aos dedos das
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mãos e dos pés. Ele soltou o cinto de segurança e esticou o dorso largo no
banco traseiro, sem ligar para o que o motorista pensasse. O som do rádio
ficou abafado ao encostar a orelha no couro gasto, e então ele colocou
uma das mãos no tapete do carro, passando as pontas dos dedos e sentindo as pedrinhas presas na trama. Ele não havia ligado para contar a eles.
Tinha perdido o telefone. Eles o esperavam, mas não sabiam.
O motorista o acordou ao chegarem à sua casa.
Ele ia perder a casa e tudo que havia nela. O raro prazer de um banho, as
panelas de cobre penduradas sobre a bancada central da cozinha, sua família – outra vez, perderia sua família. Ele ficou em pé, do lado de dentro da
porta, observando ao redor. Não dera a devida importância a nada ali dentro. Como isso aconteceu novamente? Ele prometera a si mesmo dar importância a tudo e agora não conseguia lembrar o instante em que essa promessa
dera lugar ao cotidiano. Nem por um momento foi possível. Colocou suas
chaves na mesa abaixo do espelho e, de forma atípica, tirou os sapatos sobre a
longa passadeira persa que ele e Jane tinham comprado na Turquia. Haviam
passado uma semana na Turquia e uma semana no Egito. Estavam sempre
planejando alguma viagem. A próxima seria um safári no Quênia, mas agora
teria de ser adiada. Ele caminhava pela casa, de meias. Na cozinha, passou a
mão na longa bancada iluminada por uma luz fraca. Ele adorava sua cozinha,
as portas antigas dos armários, os azulejos marroquinos atrás da pia. Caminhou pela sala de jantar, onde eram anfitriões de festas para sua empresa.
A mesa comprida tinha 12 lugares. Chegou à escada e colocou a mão sobre
o corrimão de carvalho, dando um passo após o outro. E subiu olhando para
as fotos da família. O som do tique-taque do relógio antigo da sala cedeu
lugar ao som do riso na televisão, vindo do quarto, no fim do corredor.
Jane ainda era linda. Estava usando óculos de moldura vermelha, com
bolinhas coloridas e um estilo pop engraçado. Alcinhas de rolotê revelavam seus braços esguios e a camisola abrigava os seios firmes, logo abaixo
do colo sardento com clavículas delineadas. Ela estava fazendo palavras
cruzadas. Sempre que empacava, ela olhava para cima, para o programa
que passava tarde da noite na televisão presa à parede, e batia a caneta entre os dentes de cima e de baixo, como se tentasse despertar seu cérebro.
Quando ele entrou, ela o olhou, surpresa em vê-lo em casa tão cedo.
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– Oi, banana – disse ela.
Ele tirou o paletó como se fosse uma camiseta, puxando a parte de
trás por cima da cabeça e virando as mangas do avesso. Depois se viu
segurando a bainha, com uma das mãos em cada lado da fenda traseira,
rasgando a peça ao meio. Primeiro, foi difícil rasgar a bainha, mas depois
que arrebentou foi com tudo. Jane abriu a boca, mas não saiu nada. Ele
soltou o paletó rasgado no chão e subiu na cama, ficando de joelhos e cabeça baixa, como se fosse um homem esperando por uma explosão.
– O que foi? – perguntou ela. – Tim, o que foi?
Ele estava com a cabeça abrigada no meio dos braços.
– Tim? – Ela foi até ele e o enlaçou com os braços, como se estivessem
prestes a começar uma luta greco-romana. – Tim?
Ele disse a ela que havia sido tirado à força do prédio, levado para
a rua. Na esquina das ruas 43 e Broadway, ele fez sinal a um táxi para
que o levasse de volta ao escritório. Depois de fazer o táxi encostar,
esticou a mão e abriu a porta traseira. Mas depois continuou andando.
O motorista, um indiano de turbante cor-de-rosa, buzinou, olhando
pelo espelho retrovisor. Por que alguém faria sinal para um táxi, abriria a porta e sairia andando? Perto da Union Square, ele tentou chamar
uma ambulância, um recurso que haviam cogitado durante sua última
recaída. Ele estava na linha com um atendente, tentando explicar a
situação, quando escorregou no gelo, junto ao meio-fio, deixando cair
o telefone.
“Meu telefone!”, ele gritou, enquanto recuperava o equilíbrio. “Alguém...
Meu telefone!” Ele caminhava curvado. “Por favor, peguem meu telefone!”
Todos o ignoravam. Seu BlackBerry tinha aterrissado no meio da rua,
indefeso diante dos carros que passavam. Ele continuou seguindo em
frente. Contou a ela sobre todos os andaimes sob os quais andara, o trânsito enlouquecido do qual conseguiu desviar, a multidão de gente alheia
pela qual passou. Disse-lhe que ficara cansado, daquele jeito antigo, até
chegar a um banco, perto do East River, onde seu corpo desabou. Contou
sobre a forma como embolou o paletó, para fazer de travesseiro, suando,
apesar do frio. E como acordou aterrorizado, uma hora depois.
“– Voltou – disse ele.”
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Antes de tudo, ela precisava vesti-lo. Sabia que ele não
queria se vestir. Ele queria tomar banho, ir para cama, cair no sono – qualquer ação que resguardasse sua rotina. Escovar os dentes, buscar a luz. Ele
ainda estava em cima da cama, congelado em sua posição de soldado entrincheirado, com o traseiro para o ar, os braços ao redor da cabeça, como
se estivesse se protegendo de estilhaços voadores. Seus cabelos – ele ainda
tinha uma vasta cabeleira escura, uma de suas características mais singulares, era um homem bonito, saudável, ridiculamente saudável, envelhecendo
com a graciosidade de um ídolo de matinê – estavam desgrenhados.
– Tim – disse ela, olhando por cima do braço dele, fitando seu único
olho visível e vidrado –, você precisa se vestir.
Ele não se mexeu. Ela saiu da cama, foi até o banheiro e jogou um robe
sobre a camisola de seda. Ficou estarrecida pela complacência das loções,
sabões, cremes e desodorantes perfilados sobre a pia do banheiro, subitamente insultada pela promessa alegre dos produtos de beleza. Fez uma
lista, na cabeça, de todas as coisas de que precisaria e começou a pegá-las
dos lugares da casa onde podiam ser encontradas: de uma cômoda, pegou
as ceroulas térmicas dele para colocar por baixo das calças; do closet, um
moletom e um mantô de pele de carneiro, seu casacão pesado, seu chapéu,
luvas e cachecol. Colocou a máscara de esqui dentro de um dos bolsos do
casaco, junto a vários sacos aquecidos descartáveis que torcia para não estarem com prazo de validade expirado. Lembrou a si mesma de comprar
mais. Foi em direção às máquinas de lavar e secar e quase caiu em prantos.
Pegou o GPS e a mochila de alpinismo do porão, abastecendo-a rapidamente: poncho de chuva, colírio, loção hidratante, travesseiro inflável, kit
de primeiros socorros. E do armário ela tirou algumas misturas, barras de
cereais e uma garrafa de água ionizada. Incluiu fósforos sem um motivo
específico, fechou o zíper da mochila e voltou lá para cima.
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Foi até a cama e começou a movê-lo, como se ele fosse uma criança. Ela
o virou e desafivelou seu cinto, tirou suas calças e cuecas, desabotoou a camisa, tudo quase sem a ajuda dele. Logo ele estava deitado na cama, nu. Ela
aplicou uma camada de vaselina em seu rosto e pescoço, depois na genitália,
para amenizar tanto a fricção quanto o frio. Depois começou a vesti-lo com
o que havia separado, terminando com as meias e botas à prova d’água.
Colocou a mochila de alpinismo junto à porta, onde ele poderia facilmente
pegá-la ao sair, depois foi para a cama, deitando-se ao lado dele.
– Nada de doutor Bagdasarian, dessa vez – disse ele. – Nenhum tipo de
médico.
– Está bem – disse ela.
– Estou falando sério – disse ele. – Saí daquela roda de hamster e não
vou voltar.
– Tudo bem, Tim.
Ela esticou a mão para pegar o controle remoto e desligou a televisão.
– Eu a ignorei novamente, Jane?
Um silêncio pesado pareceu pairar no ar. Ele deitou-se de barriga para
cima, como uma criança excessivamente vestida, pronta para sair na neve
de inverno. Ela o olhava de seu travesseiro. Os olhos dele já não estavam
tão arregalados e sua respiração havia acalmado.
– Não vamos fazer isso – disse ela.
– Fazer o quê?
– Começar com a culpa e as mágoas.
Ele se virou para ela.
– Eu a ignorei?
– Todo mundo ignora todo mundo – disse ela. – É uma cláusula do
contrato.
– Como é que você me ignora?
– Ah, sei lá, Tim.
– Diga um jeito.
– Nem sei – disse ela. – Está bem. Nem por um decreto consigo lembrar o nome da ilha para onde fomos, nas melhores férias que já tiramos.
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Ele ameaçou sorrir.
– Ilha Scrub – disse ele.
– Preciso de você para isso.
– Isso é diferente de me ignorar.
– Ilha Scrub – disse ela. – Era um lugar tão limpo. Mas eu nunca consigo lembrar.
– Gostaria de voltar lá? – perguntou ele.
– Achei que a África seria o próximo destino.
Ambos sabiam que não haveria próximo destino, não agora, nem tão
cedo. E o silêncio voltou.
– Devíamos comprar uma casa na ilha Scrub – disse ele. – Que comida
deliciosa tinha lá. E você se lembra daquela menininha vestida de noiva,
andando na rua?
– A essa altura, ela deve estar crescida.
– E as avestruzes? Aquele homem as conduzia com um chicote de
gado. Você não quer voltar?
– Sim – disse ela. – Quando você estiver bem, nós voltaremos.
– Estou com calor – disse ele.
Ela saiu da cama e abriu as duas janelas. A realidade fria e chocante
do inverno soprou quarto adentro. Ela se virou de volta para a cama. E
se lembrou das algemas. Caminhou até a mesinha de cabeceira e as tirou
da gaveta.
– E isto aqui? – perguntou ela, em pé, ao lado da cama.
Ele desviou o olhar desfocado e vazio, no qual se perdera. Olhou
pesaroso para as algemas, como se pertencessem a alguém cuja morte
tivesse sido súbita, e agora observava, com imensa relutância, pensando sobre o que deveria guardar ou jogar fora. Ele apertou os lábios
e sacudiu a cabeça, voltando a encarar o teto. Ela colocou as algemas
de volta na gaveta.
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