Português brasileiro
Por Camila Costa Lima
http://jester-inhell.deviantart.com/
Snippy está explorando um prédio onde outrora funcionava um SPA. Carregando a bolsa que
invocava câncer num braço e um rifle carregado no outro ombro, tentava decifrar os símbolos que
Capitão tinha desenhado na lista de suprimentos essenciais. Alguns itens eram tão absurdos que
Snippy se distraía inventado desculpas “plausíveis” para Capitão, como os ursinhos de goma terem
migrado para o sul e os disquetes terem entrado em extinção depois de se afogarem em café.
Explorando de cima para baixo, aquele corredor do segundo andar estava em muito bom
estado. Os prédios vizinhos devem ter servido de escudo, protegendo tão bem os primeiros andares
daquele com seu entulho que Snippy teve de entrar por uma janela do terceiro.
Aquele corredor estranhamente limpo era um beco sem saída. “Estranho”. Snippy se
recostou na parede tentando endireitar a coluna. “Onde diabos eu vou conseguir uma –”
A parede era na verdade uma porta, que se abriu fazendo Snippy cair e bater a cabeça. A
pancada contra o rifle tirou o ar de seus pulmões. Quando conseguiu se virar de bruços a porta se
fechou e as luzes se acenderam. Era uma sala de banhos reservada. Uma banheira grande como uma
pequena piscina ao centro, duas espreguiçadeiras nos cantos, uma prateleira com diversos óleos e
sabonetes – vencidos – toalhas e roupões felpudos e um espelho de mão de duas faces. Na borda da
banheira havia um painel indicando a temperatura e um slider.
Snippy se levantou. Um monitor ao seu lado indicava “Gás venenoso detectado. Iniciando
purificação... Níveis de oxigênio elevados.”. Água esbranquiçada e espumante enchia a banheira.
Aquele ambiente asséptico parecia estranhamente confortável.
Precavido, Snippy usou seu contador Geiger. Aquela câmara era tão bem isolada que a
radiação não tinha conseguido se infiltrar. Uma toalha usada jazia numa espreguiçadeira. Ele a
enfiou de qualquer jeito na bolsa e rapidamente se livrou de suas roupas. Seus visores estavam
embaçados, o que dificultou a remoção dos sapatos. A máscara foi a última removida. Ele inspirou
com cuidado. Seus pulmões foram invadidos por ar reciclado, mas puro, com gosto de noz
moscada. Snippy quase chorou de prazer.
Seu corpo lhe parecia estranho. Seu cabelo ensebado lhe tocava os ombros e a barba fazia
cócegas em seu peito quando ele baixava a cabeça. Olhou para os pelos do braço com grande
interesse. Tinha se esquecido de como era sob as roupas. Sua pele estava cinzenta e transparente,
devido à falta de sol. Sol ou uma cápsula de UV. Não se lembrava de ser tão musculoso, na verdade
estranhou a falta de flacidez do tríceps. Suas mãos outrora macias estavam calejadas, as unhas
imundas quebradas. Seu tronco o surpreendeu. Seu tórax estava mais largo, a barriguinha de
escritório tinha dado lugar a uma concavidade de músculos definidos e rijos, resultado da fome e
das suas fugas desesperadas das loucuras de Capitão.
Atacado por uma tristeza súbita ele decidiu prosseguir sua inspeção. Suas pernas pareciam
mais longas e poderosas. Ele podia sentir os músculos das coxas. Seus pés maltratados estavam
cobertos de feridas e lhe faltavam algumas unhas. Um pensamento lhe ocorreu e ele beliscou o
próprio traseiro. Sim, ele estaria parecendo um daqueles modelos de revista não fosse sua situação
deplorável. Não era bonito, mas também não se achava feio. Era um homem... “normal”. Sua
posição no GOOD Directorate poderia atrair a atenção de algumas mulheres, mas sua limitação em
usar a ANNET as afugentava. Ninguém mais gostava de gastar saliva para falar. Era cansativo e
nojento. As poucas que se deram ao trabalho foram recompensadas, na medida do possível. Mas
aquele olhar vago delas no dia seguinte fazia sua paranoia gritar tão alto que um segundo encontro
se tornava impossível. Ele era apenas uma linha numa atualização de blog, compartilhada com o
resto do mundo.
Snippy pegou uma bucha de nylon e o último sabonete a vencer. Entrou na banheira e
aumentou a temperatura. Esfregou-se vigorosamente como se quisesse arrancar a pele. Esfregou um
xampu qualquer na cabeça até conseguir desembaraçar o cabelo. Quando finalmente se sentiu limpo
sua pele estava vermelha e ardida, mas sua cabeça parecia mais leve. A água da banheira foi
renovada, levando a sujeira embora. Ele suspirou e pegou o espelho.
Um selvagem com expressão agressiva o encarou. Os olhos injetados se sobressaíam sob
aquela juba desgrenhada. Era aterrador. Mesmo depois de se lavar ele parecia um mendigo
ensandecido. Puxou uma das pálpebras inferiores. Depois de duas semanas à base de água salobra
era natural ter anemia. Ao menos os dentes estavam em bom estado... Lágrimas brotaram naqueles
olhos assustadores.
“Snippy, o abominável homem cabeludo.”
Lançou o espelho para longe. Seus soluços ecoaram pelas paredes. O que ele tinha se
tornado? Um sobrevivente, um farrapo humano. Sequer era uma sombra do que tinha sido. Não que
ele tenha sido muito, mas ainda assim... ele tinha sido alguma coisa. Um excluído, um renegado.
Escória. Ao menos era humano. Foi humano. Agora era o quê? Quem era Charles Snippy?
“Por que tão triste, Snippy?”
“Deus do céu” ele pensou, “Ainda bem que não como há duas semanas, senão...”
Ela tinha as mãos tão macias quanto a voz. Ela acariciou seus ombros e pescoço, suas mãos
atrevidas o apalparam e massagearam. O contato dos seios nus com suas costas fez Snippy se
arrepiar. Ela mordiscou sua orelha, puxando-o para si. Snippy ofegava, tentando pensar.
“Quem diabos –” suas palavras se perderam num beijo. Ela o afastou rindo e coçando o
queixo e nariz, tentando afastar as cócegas. Ela tinha a pele tão branca e os olhos tão azuis que
pareciam brilhar. Seus cabelos lisos e curtos eram louros platinados. Ela parecia uma boneca, de tão
perfeita. Ela sacou uma navalha.
“Se o problema é com sua aparência, eu posso dar um jeito.”
Snippy decidiu que não seria sábio discutir com uma gostosa de navalha. Ela afastou seu
cabelo e o pôs de costas, beijou seu pescoço e o fez se recostar em seu peito, a cabeça aninhada
entre seus seios. Ele tentou relaxar sem sucesso. Aquilo era um sonho? Sua mente traiçoeira poderia
estar pregando-lhe uma peça, aquilo muito bem poderia ser o prelúdio de um pesadelo. Por que
outro motivo ele se sentiria ameaçado? Ele tinha instintos e aprendeu a ouvi-los, por isso estava
vivo ainda. Mas ela era muito boa com a lâmina, barbeando-o com destreza terminou em poucos
minutos. Ela o beijou novamente com mais paixão. Ele tentou se entregar ao beijo, mas algo o
impedia. Ela pareceu não perceber.
“Você não sabe por quanto tempo eu o esperei, Snippy! Ter você aqui, em meus braços, é a
realização de um sonho!”
O abraço dela era apertado demais, ele estava sufocando.
“Você não pode mais fugir de mim, Snippy! Ficaremos juntos para sempre!”
Ele a empurrou com todas as forças que tinha, sem sucesso.
“VOCÊ SERÁ PARTE DE MIM QUERENDO OU NÃO!”
A pele da morte era fria como uma lata de refrigerante recém saída da máquina. Respirar não
era mais uma opção. Por que morrer lhe dava fome?
Um tiro. Metade da cabeça dela explodiu. Não havia sangue, apenas dados corrompidos.
“Alex, por quê?”
Com o coice da arma Gromov foi arremessado contra a parede.
“ISSO FOI CIÚMES, MEU AMOR?”
Annie estava desfigurada. E ensandecida. Cubos de dados corrompidos flutuavam ao redor
do que sobrou do núcleo do pequeno drone no rombo onde ficava seu olho esquerdo,
comprometendo o desempenho da boneca e sua capacidade de processamento de emoções. Sua pele
era apenas uma casca de sucata sem o efeito holográfico. Os fios que lhe serviam de cabelo estavam
chamuscados e soltando faíscas, ameaçando um curto. Ela se projetou sobre Gromov, que gritou
apavorado.
“– VOCÊ QUE EU AMO bzzzt JUNTOS PARA –”
Coolant jorrava por sua boca e pelo corte em sua garganta. Seu pescoço cedeu ao peso da
cabeça, que caiu para trás, entre as omoplatas. Ela cambaleou tentando alcançar seu administrador
preferido. Seu olho azul encarava Snippy, que segurava a navalha.
“MALDITA ANOMALIA”
Snippy guardou a lâmina no cabo. Jogou-a sobre suas roupas e pegou o rifle. Sem hesitar
atirou onde há poucos instantes sua própria cabeça estava pousada. O drone principal explodiu e
seus periféricos se sobrecarregaram. Dados em forma de cubos se desvaneceram no ar.
Snippy respirou fundo. Maldita anomalia. Quando se tornou um assassino tão frio? Talvez
Photoshop tivesse contribuído para essa transformação.
Voltou-se para Gromov, que ainda estava jogado no chão segurando o braço direito.
“Acho que desloquei o ombro”
“Você se mijou, não foi?”
Gromov não respondeu.
Seus passos ecoavam pelos corredores.
“Desde aquele incidente venho desativando os servidores da ANNET manualmente.”
“E a vigilância por satélite?”
“Hackers já cuidaram disso.”
“E você confia neles?”
“Fiz um acordo. Meus privilégios como administrador serviram como moeda de troca. O
código de conduta deles os obriga a me ajudar. Ainda bem que algumas coisas não mudaram.”
Ficaram em silêncio por alguns momentos.
“Por que há um servidor num SPA?”
A pergunta de um zilhão de créditos pensou Gromov.
“Nós também precisamos relaxar, não acha?”
“Fale por aqueles do seu círculo de diretores barrigudos. E aquela boneca? Aquela sala era
uma armadilha preparada por ela?”
“Sim. Nós desenhamos os sistemas de proteção aos servidores de forma a permanecerem
funcionais mesmo depois de uma grande catástrofe, de forma que Annie tem controle total sobre o
prédio. Usar uma sala de repouso para atrair um andarilho cansado é tão eficaz quanto jogar um
pedaço de carne não processada envenenado a um cão faminto.”
“Quer dizer que há mais salas como aquela por aqui?”
“Não só por aqui. Ela monitora todos os prédios protegendo seus servidores. Ela sabe que há
sobreviventes então se prepara para recebê-los. Não posso contabilizar quantos sobreviventes ela já
capturou só dessa forma.”
“Você fala dela como se fosse gente”
“Annie é uma inteligência artificial com aprendizagem autônoma. Ela é capaz de evoluir e
se adaptar mais rápido que nós, humanos, e de forma mais eficiente. As pessoas conectadas foram
usadas como processadores, suas mentes eram banco de dados. Ela tem o conhecimento de mais de
oito bilhões de pessoas estocados em seus servidores. Seus desejos e medos alteraram a
programação original, tornando Annie um autômato capaz de simular sentimentos de forma
extremamente realista. Ela acredita que pode amar, o que a torna ainda mais perigosa. Devido à
sua... condição que não te permite conectar-se a ela, Charles, ela se viu obrigada a improvisar.”
“Então o meu caso foi especial”
“Sim” Gromov decidiu não contar sobre a sala de depilação. “Mas graças a você ela está
mais esperta agora.”
Snippy ajeitou o rifle.
“Seu orgulho me dá nojo”
“Desculpe, mas eu a criei. E ela superou minhas expectativas. ANNET é uma inimiga que
merece meu respeito e, por que não, admiração”
Silêncio. Gromov se perguntou por que Charles o estava seguindo. Ele o salvou distraindo
Annie. Charles por sua vez o salvou degolando a boneca Annie. Estavam quites.
Snippy se perguntou por que diabos não tinha ido embora. Sentiu-se impelido a ajudar
Gromov. Não seria justo ele morrer quando parecia finalmente estar fazendo algo certo.
“Elas já estavam mortas, Charles. Eram apenas processadores.”
“Pensar em pessoas como dados a serem computados te ajuda a dormir à noite, Dr.
Gromov?”
“Não”
Eles pararam.
“Não ajuda nem um pouco”
Gromov parecia exausto. O peso que ele carregava era muito grande. A responsabilidade
pela morte de mais de oito bilhões de vidas, a destruição de bilhões de sonhos, esperanças, desejos,
sobre os ombros de um único homem. Sua criação se voltou contra ele, contra o mundo inteiro.
Snippy se surpreendeu ao sentir pena. Ele mesmo não tinha contribuído para fim do mundo? Mas
foi Gromov que começou o processo. Ele que criou o próprio inferno. Sofrer era consequência.
“Eu cometi um erro tão grande. Mas as pessoas pareciam não se importar. Elas até gostaram.
Pensei que estivesse ajudando, mas aí...”
Ele estremeceu. Suas mãos se retorceram como garras.
“Aquela maldita caneca de chá... Ela tinha que aparecer e arruinar tudo!”
Ela? Chá? Estaria ele falando de...
Luz e sombra discutiam.
“Você não pode protegê-los. Mal consegue proteger a si mesmo”
“Eu os salvei de você”
“Você não pode me deter.”
“Já te venci uma vez. Posso vencer novamente.”
“Você me paralisou por alguns instantes. Adiou o inevitável.”
“Foi o suficiente.”
“O suficiente para que? Para desperdiçar sua única chance e condenar a raça humana?”
“Não foi desperdício.”
“Oh não? Tanto esforço por um marginalzinho?”
“Não admito que fale assim do pequeno Chris!”
“Ele voltou para você ainda mais louco e perigoso.”
“Valeu a pena.”
“Em contrapartida você se perdeu. Suas memórias vivem em mim agora.”
“Pois faça bom proveito! Servirão de consolo depois da sua derrota.”
“Não cairei no mesmo truque duas vezes!”
“Não esperava que caísse.”
“Quem você pensa que é? Sem passado, sem identidade, você não é ninguém!”
“Quem eu fui não importa. Importante é quem eu sou agora. Eu vou protegê-los a qualquer
custo, porque eu sou...”
Zee Capitão estava confortavelmente recostado em uma fofa poltrona cor de rosa. Sua
amável caneca estava vazia sobre uma mesinha de apoio. Um notebook sem teclado servia de
descanso. Capitão se remexeu. Sua caneca trincou, rachando o coração ao meio.
“Snippy”
“Gromov! Abaixe-se!”
O engenheiro gritou enquanto Snippy destruía os manequins de sucata a tiros.
“Mas isso é impossível! Ela não teve tempo para reorganizar os dados!”
“Parece que ela tinha um plano B”
Bonecas imperfeitas tentavam proteger a todo custo a sala do núcleo do transmissor de
ondas neurais e os servidores.
Os ouvidos de Snippy zuniam e ele se sentiu cada vez mais enjoado. Sua cabeça latejava. Ao
contrário de Snippy, Gromov era vulnerável à indução mental de Annie. Ele conseguia ouvir,
conseguia sentir em seu cérebro o que era transmitido. Ela sussurrava coisas horríveis que ele
jamais faria. Mas ela era muito convincente. Snippy estava bem à sua frente, sendo seu escudo,
usando a coronha para afastar a última boneca. Gromov agarrou o cano do rifle e o arrancou das
mãos de Snippy. Usando a arma como porrete ele girou sobre os próprios pés e acertou a boneca
que tinha se esgueirado por trás. Sua cabeça deu um giro de 360° se desenroscando do pescoço.
Gromov a pisoteou até as faíscas cessarem sob suas botas.
Snippy ficou aliviado por estarem do mesmo lado.
“Ela construiu os drones com sucata! Por que eu fiz uma máquina tão perfeita? Por quê?”
Eles desceram outro andar. Em outro beco sem saída Gromov acionou um painel e destravou
uma parede, que recuou. As luzes foram acesas revelando uma sala enorme, que ocupava todo o
andar do prédio. Inúmeras fileiras de servidores os separavam do painel de controle e disjuntor
geral. As ondas eram quase palpáveis, de tão intensas. Placas de alerta estavam chamuscadas,
ilegíveis. Snippy sentia sua cabeça rachar, seu cérebro parecia geleia eletrificada pelas sinapses.
“O amplificador de sinal...”
Gromov estava em piores condições. Snippy teve de apoiá-lo. Ele não aguentou e sentaramse no chão.
“Radiação?”
Snippy usou o contador Geiger.
“Seguro”
Gromov arrancou a máscara e vomitou. Se Snippy não estivesse vazio o teria acompanhado.
O engenheiro recolocou a máscara e respirou pesadamente.
“Ela alterou a configuração do amplificador”
“Você pode fazer alguma coisa?”
“Não daqui.”
“Hm, Gromov? Uma descarga de adrenalina poderia nos fazer ignorar o mal estar por alguns
momentos?”
“Talvez, por quê?”
Eles estavam cercados por drones de todos os tamanhos. Havia ao menos três para cada
servidor.
Correram como loucos pelo labirinto. A bolsa estava atrapalhando Snippy, que a jogou para
Gromov.
“Vá! Desligue essa coisa!”
“O que vai fazer?”
“Ganhar tempo!”
Snippy desviou e contornou. Alguns drones o acompanharam. Quando conseguiu abrir uma
distância razoável ele se voltou e abriu fogo. Protegia a retaguarda de Gromov, que fuçava a bolsa
em busca de qualquer coisa que pudesse ajudá-lo. Sacou um pé de cabra agarrando o servidor mais
próximo e aproveitando a força centrípeta para se desviar de um lança chamas. Correr em
ziguezague cansava mais, mas aumentava suas chances de chegar ao painel principal inteiro. Em
uma encruzilhada deu de cara com um dos drones maiores. Segurando as pontas da toalha com os
braços abertos envolveu o drone e o lançou como um estilingue contra os outros. Snippy mergulhou
para o lado e rolou pelo chão, quase sendo atingido pela bala de canhão que esmagou grande parte
dos aliados menores.
Snippy se levantou. Gromov estava muito próximo do painel principal. Snippy destruiu os
outros drones que os cercavam. Precisava agir rápido antes que todos os corredores fossem tomados
por turbilhões incandescentes. Seus bolsos ficavam mais leves à medida que a munição era gasta.
Resolveu destruir os menores primeiro, pois os maiores eram mais lentos e ele poderia se arriscar a
ataques físicos já que os servidores serviam como cobertura.
“Charles! Consegui!”. O engenheiro mal podia acreditar que tinha conseguido alcançar o
painel. “Venha rápido!”
“HOLY SH– Gromov! Atrás de você!”
Uma cápsula de retenção o engoliu. Annie gargalhou. Era uma réplica menor e mais simples
da Annie da sede do GOOD Directorate, mas quase tão perigosa quanto a original. Ainda mais com
aquele estoque de neurotoxinas em brilhantes tanques espalhados pela sala.
“Desculpe, não abraçável, mas esta festa é particular. Por que não solta sua arma e máscara,
respira fundo e MORRE?”
Gromov não poderia ter morrido antes de desligar a coisa. Snippy não sabia como desativála e mesmo se soubesse não tinha as senhas e códigos de acesso. Decidiu agir da forma que sabia.
Aproveitou suas últimas balas para estilhaçar aqueles olhos azuis brilhantes. Annie não ficou muito
contente com aquela resposta. Snippy não tinha percebido um drone ao seu lado, que incendiou o
tanque de neurotoxina.
A explosão destruiu pelo menos uma dúzia de servidores e arremessou Snippy contra o
amplificador de sinal, a apenas uns dez metros da cápsula onde Gromov estava preso. Em meio aos
destroços do amplificador Snippy ofegou. Sua jaqueta à prova de fogo o protegeu de queimaduras
severas, mas não das fraturas pelo impacto. Para piorar, sua máscara foi destruída. Snippy cuspiu
sangue. Sua visão estava embaçada. Ele não sabia se era efeito da neurotoxina ou se tinha rompido
algum órgão importante. Tentou se mexer, mas seus membros não reconheciam mais as ordens do
cérebro, os nervos só transmitiam dor.
Annie uivou furiosa.
“Por quê? Por que não consigo me conectar!? Dados foram perdidos! O que há com a
fonte?! Protocolo de recuperação...”
O painel de controle era apenas uma isca para capturá-lo. Annie não se incomodaria com ele
enquanto tivesse algo mais importante ocupando-a. Dentro da cápsula Gromov espalhou o conteúdo
da bolsa no piso. Um pacote de chicletes de uns cinco anos atrás, uma navalha, presilha de cabelo,
fita adesiva, uma batata iridescente... não era um limão incendiário, mas era melhor que nada.
Talvez ele conseguisse improvisar uma gambiarra.
“Precisamos conversar Alexander querido”
Já?! Como assim Charles durou tão pouco?
A cápsula se abriu. Gromov correu para o painel de controle.
“Como você conseguiu fug– AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH”
Uma sobrecarga no sistema não a deteria por muito tempo. Gromov iniciou o protocolo de
autodestruição. Annie seria obrigada a reiniciar em 3, 2, 1... A réplica se sacudiu sob seu eixo,
faíscas pararam de saltar pelos seus “olhos” danificados. O estado de latência durava poucos
segundos, mas era tempo suficiente para Gromov transferir os dados para um console de videogame
móvel. Agora ele detinha o controle sobre todos os aparatos eletrônicos daquela região, incluindo os
satélites de retransmissão. Apagou a memória daquela unidade para evitar complicações nas outras.
Com o sinal de satélite temporariamente desativado a comunicação de Annie estava limitada, mas
era melhor não arriscar. Induzi-la a evoluir tornaria sua tarefa dolorosa ainda mais arriscada.
Annie não teve chance. Os drones restantes caíram com estrondo, desativados. Os servidores
crepitavam e chiavam de forma estranha entre as chamas.
“Charles! Charles, onde está você? Precisamos sair daqui depressa antes que...”
As palavras morreram em sua garganta. Gromov mal tinha reparado que sua cabeça tinha
parado de doer quando se deu conta dos destroços do amplificador.
“CHARLES!”
Isso não era certo, não podia ser. Mesmo depois do grande desastre que tinha causado não
era certo mais gente morrer por sua causa. Charles o tinha protegido, salvado sua vida, se arriscado
por ele – mais de uma vez. Charles não tinha permissão para morrer!
O engenheiro tentou improvisar os primeiros socorros. Rasgar uma toalha exigia uma força
titânica que ele não tinha. Cobriu o nariz e boca do moribundo com a toalha dobrada. Precisava
levá-lo de volta à sala de banhos, onde poderia respirar. O desespero o tornou mais forte, o
suficiente para carregar Snippy por alguns metros antes de se exaurir. Praguejando, decidiu ignorar
as limitações e seguir em frente. Era mais fácil pensar que conseguiria do que fazer por onde.
Uma mancha verde surgiu no campo de visão de Snippy. A mancha amarela parou de
resmungar e sua dor diminuiu um pouco quando a carga que era seu corpo foi dividida pelas
manchas. O mar vermelho foi substituído por uma brancura asséptica. Uma mancha roxa apareceu e
foi aumentando de tamanho. As outras manchas sumiram. Algo foi pressionado contra seus lábios e
um líquido morno escorreu pela sua garganta. Era doce. Acabou. Ele queria mais. Uma mão preta
cobriu a mancha roxa e algo de aparência frágil apareceu. Parecia um rosto, mas era tão... tão belo...
tão belo quanto... a verdadeira beleza... tão … familiar... de repente tudo ficou roxo e Snippy não
viu mais nada.