Posfácio
A Inquietude de
Luiz Costa Lima
U m a das poucas constantes no estilo intelectual (e não só in­
telectual) de Luiz Costa Lima é á fascinação pela figura de Erich
Auerbach. Será graças a um hasard objectif (e intercontinental) ou
a uma apropriação espiritual exitosa, o fato é que já hoje — antes
mesmo de ter-se posto a preparar o esboço biográfico-histórico de
Auerbach que há alguns anos leva projetando — existe uma sur­
preendente semelhança entré a obra do pensador alemão (tão vene­
rável como difícil de localizar) e o pensamento in progress de
Costa Lima. Ambos dispõem de um conhecimento extenso e deta­
lhado de um número assombroso de ‘literaturas nacionais’ (in­
cluindo a Antigüidade clássica), que faz com que seus livros esca­
pem de toda classificação, segundo as disciplinas filológicas esta­
belecidas — é como se tal riqueza fosse subentendida por eles. No
discurso de ambos é impossível separar os níveis histor(iográf)ico e
sistemático: não há aproximação do passado sem orientação filosó­
fica, nem tampouco reflexões totalizadoras que não estejam satu­
radas de materiais concretos (que servem tanto de exemplo como
de resistência à totalização precipitada). Em ambos essa síntese
filosófico-histórica (que nunca cai na tentação da teleologia) ainda se
complexifica por uma consciência — no bom sentido da palavra
‘hermenêutica’ — sobre o lugar na tradição ‘crítica’ (dito à maneira
alemã: científica), em que se inscrevem seus pensamentos.
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LUIZ COSTA LIMA
Os paralelos acima referidos produzem uma última conver­
gência que, à primeira vista, poderia parecer um ‘efeito de superfí­
cie’, mas que identifico com um sintoma de uma afinidade mais ín­
tima: nos livros de Auerbach e de Costa Lima são freqüentes as
frases interrogativas (que não são ‘retóricas’) porque a complexi­
dade de suas abordagens se manifesta em uma irritabilidade e em
uma inquietude intelectuais que transformam cada ‘resultado’, seja
de um parágrafo, seja de todo um livro, em um problema que vai
muito além de suas afirmações.
De fato, a trilogia de Luiz Costa Lima, cuja primeira parte, O
Controle do imaginário, tem um título que me parece válido para
toda a série, se inicia com a volta a uma pergunta de Auerbach,
cuja ‘solução’ é desconstruída. É a pergunta por um novo conceito
de ‘literatura’ que servisse como um denominador comum e metaistórico, capaz de resistir à consciência refinada da ‘historicidade’ do que chamamos ‘literatura’. Se chamo a atitude de Costa
Lima frente à proposta de Auerbach ‘desconstrutivista’ não é por
referência a um certo estilo rive gaúche mas sim à capacidade com
que renuncia a aceitar uma resposta, preservando ao mesmo tempo
os elementos filosóficos que a compõem. Se Auerbach historicizou
o conceito de ‘mimesis’ (com ele ainda muito impregnado pela tra­
dição de interpretá-lo como ‘imitatio’) para encontrar uma base
metaistórica na configuração mental que denominamos ‘subjetivi­
dade ocidental’, a trilogia de Costa Lima, ao contrário, define o
discurso mimético como aquele que sempre marca diferenças, de
conteúdo variável, face às realidades institucionalizadas em cada
época e em cada sociedade, deixando de lado como uma mera lem­
brança histórica a subjetividade que a época ‘m oderna’ canonizara
como metaistórica. Essa solução por inversão não só coincide com
novas hipóteses sociológicas que atribuem à arte e à literatura a
função de apresentar estruturas de sentido caracterizadas por sua
‘alteridade’, criando um sentimento de contingência que afeta as
realidades institucionalizadas, como ainda possui — e sobretudo —
a virtude de marcar o lugar do trabalho de Costa Lima como um
espaço que não se deixa centralizar em torno da instância do sujeito
pretensamente onipotente. Pelo primeiro aspecto há pouco referi­
do, menciono aquela que é a única solução do problema definitório
central da teoria da literatura, capaz de manter a união — precária
— do interesse estético com o histórico, sem cair no risco de uma
historização total que hoje neutraliza, em tantos livros eruditos
(por exemplo, os meus), a distinção entre obras literárias e ‘fontes1
históricas cotidianas.
O CONTROLE DO IMAGINÁRIO
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Essa solução, contudo, não pôde evitar de ser, por sua vez,
vítima daquela inquietude, pela qual a trilogia do Controle se afas­
tou da problemática de uma definição metaistórica da ‘literatura’,
que fora a herança da crise da historiografia literária do século
XIX (causada pela dissolução do conceito de ‘nação’ como seu ho­
rizonte de referência indiscutido e indiscutível). Quem se meter
pelo caminho de reflexão que abre O Controle (muitas vezes tão
complexo que finge ser labiríntico), rapidamente esquecerá essa
venerável preocupação da teoria da literatura e acabará em uma sé­
rie de novas perguntas abertas que convergem no desejo (‘desejo’,
para mim, mesmo no sentido freudiano) de continuar a leitura com
um livro que apresentasse uma teoria do imaginário. E finalmente
ficará estupefato ao notar que O Controle já oferece implicitamente
uma explicação histórica para o surgimento desse desejo: se as so­
ciedades ocidentais, desde a polis grega, sempre conseguirá desen­
volver dispositivos para canalizar em rios seguros e tranqüilos a
potencialidade desestabilizadora de ‘realidades’, potencialidade
que é o imaginário (Costa Lima a circunscreve como energeia), pa­
rece plausível que um momento de transição epistemológica (de
‘crise cultural’, como dizem alguns com incerto critério) deve des­
pertar a vontade de captar essa “ faculdade da mente hum ana” , nas
palavras de Jean-Paul Sartre (mas quem disse que exclusivamente
humana?). O teórico que é Costa Lima fala melancólica e utopica­
mente, no último capítulo que encerra a série do Controle, i.e., em
O Fingidor e o censor, de um imaginário que fosse nem controlado
nem controlador, quando o mesmo desejo se articula, de forma
muito mais dramática, com nossas esperanças messiânicas e coti­
dianas de uma nova ‘criatividade’, capaz de conceitualizar e até
acabar com tantos problemas abertos que, hoje em dia, um a um,
põem em perigo a própria subsistência biológica da humanidade.
Se este é o lugar (ainda) histórico que serviu de desafio para a
reflexão sistemática que o Controle desencadeia, tropeçamos aqui,
afortunadamente, com uma diferença básica quanto ao estilo inte­
lectual de Erich Auerbach: em uma espécie de decalque do contí­
nuo vaivém de suas análises históricas, Luiz Costa Lima é capaz
de abordar a origem de sua reflexão a partir de dois lados: do lado
latino-americano e do lado ocidental; ou, dito com uma ênfase mais
política, do lado da dependência pós-colonial e do lado hegemôni­
co. Tal superação de Auerbach não se deve à circunstância de que
a pluralidade e as dependências político-econômicas não houves­
sem existido antes de sua morte em 1957. A diferença está em que
hoje em dia esses mundos estão muito mais enlaçados e próximos
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LUIZ COSTA LIMA
entre si do que costumavam estar até à metade de nosso século.
Nos anos 80, os brasileiros triunfam na competição ‘esportiva’ da
Fórmula 1 — que é um emblema da tecnologia mais sofisticada —
e o Bronx, em New York, assim como as vizinhanças de certas
metrópoles européias, cada vez mais se parecem com as favelas do
Rio. Por isso não creio que essa dupla perspectiva, que é o eixo da
obra de Costa Lima, seja meramente uma faceta a acrescentar à
complexa inquietude que forma sua identidade — privilégio que
concedemos com benevolência missionária a um colega do ‘ter­
ceiro mundo’ (que deixou de sê-lo!). Para mim, o estilo intelectual
de Luiz Costa Lima constitui uma norma obrigatória em nível in­
ternacional e intercultural — embora provavelmente no momento
inalcançável no ‘primeiro mundo’.
A dupla perspectiva permite-lhe ver que o que os europeus e
norte-americanos pós-modernos carinhosamente identificamos
como uma relativização do princípio da ‘razão’ (e de seus reducionismos) não é nada mais que um playground que a complexíssima
razão tecnológico-econômica dominante nos concede para seu me­
lhor funcionamento. Mas, ao mesmo tempo, e intentando
adaptar-me ao estilo intelectual de Costa Lima, pergunto-me se ele
descreve bem a situação do imaginário, por exemplo, no Brasil, ao
constatar que ali permanece sob o jugo de um controle religioso e
da moral ‘burguesa’. Não vou por certo renovar o sonho colonia­
lista com uma imaginação ‘selvagem’ e ‘autêntica’ dos povos tropij cais. Mas insisto que a ausência de uma teorização do corpo em reI lação ao imaginário na série do Controle me parece sintomática.
Sintomática porque justamente foi a obsessão de haver perdido
toda a corporalidade (em favor de uma razão ultra-sofisticada) que
começou a lançar este tema na Europa. Talvez, apesar de tudo, em
um país como o Brasil, continue havendo demasiada corporalidade
para que se tematize a questão.
Se esta minha crítica desse lugar a um novo matiz nos próxi­
mos projetos de Luiz Costa Lima, eu o tomaria como uma prova
concreta da ‘descentralização do sujeito’ no estilo intelectual que
ele representa. Porque seria a prova de que já nem o mestre é ca­
paz de controlar sua imaginação científica — e as lacunas dela.
Hans Ulrich Gumbrecht
Buenos Aires, 7 de setembro, 1988
(Trad. de Odo Castorp)
Pós-Escrito à 2.a edição
O Controle do imaginário é o primeiro volume do que veio a
ser uma trilogia, então completada por Sociedade e discurso fic ­
cional (1986) e O Fingidor e o censor (1988).
Agora que a série se encontra completa e tem o seu primeiro
volume já em língua estrangeira,1 toma-se possível e mesmo neces­
sário transmitir alguns esclarecimentos básicos ao provável leitor.
O primeiro concerne à própria feitura da trilogia.
Ao iniciar a composição de O Controle, eu não previa os vo­
lumes que se sucederam. Era capaz apenas de reconhecer que ha­
via atinado com uma hipótese ousada e para a qual não encontrava
antecedentes: a de que a razão moderna, constituída a partir do
Renascimento italiano, põe sob suspeita e daí busca controlar ou
domesticar os produtos da faculdade contraposta, o imaginário,
sobretudo o seu produto por excelência: a obra ficcional.
Não posso dizer que a hipótese tenha sido apreciada por mui­
tos. N a verdade, foram poucos os que a consideraram e menos
ainda os que admitiram nela ver um filão potencialmente fecundo.
Sou por isso extremamente reconhecido ao estímulo que encontrei
por parte de Hans Ulrich Gumbrecht, Haroldo de Campos, Karlheinz Barck, Paul Zumthor e Wlad Godzich. Sem seu apoio, pro­
vavelmente eu me teria convencido que tudo não passava de um
‘"Confro/ of the imaginary. Reason and imagination in modern times, col. Theory and History of literature, vol. 50, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1988.
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