2 Reflexões em torno de uma sociedade dos indivíduos 2.1 A modernidade e a construção da ideia de indivíduo A modernidade representou uma grande mudança no pensamento ocidental, devido à ideia de progresso e à valorização da noção de indivíduo, em substituição às tradições antigas e ao dogmatismo medieval (Marcondes, 2006). O indivíduo moderno surgiu a partir de influências humanistas, iluministas e românticas que o alçaram à condição de centro do universo, com autonomia de espírito e razão, liberdade, responsabilidade e subjetividade psicológica (Figueira, 1981; Bezerra, 2002). Dessa forma, através de um percurso que abarcou um período compreendido entre o Antigo Regime e a Revolução Francesa, entre a ascensão da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA burguesia e a criação do sujeito romântico-sentimental do século XIX, ocorreu uma série de transformações que consolidaram na época moderna a noção de indivíduo (Ariés, 1983; Elias, 1994). A ideia de indivíduo faz parte de uma mudança histórica que envolveu a passagem de uma visão de mundo alicerçada na religião, no transcendente e na diminuição do poder das instituições mais antigas, para dar lugar a concepções secularizadas e a um racionalismo cartesiano, centralizado nas potencialidades individuais (Elias, 1987). A fronteira que separou a sociedade moderna das sociedades tradicionais pode ser traçada a partir de uma revolução individualista que produziu no seio das sociedades uma profunda alteração de valores. A perda da supremacia político ideológica da Igreja, o surgimento dos Estados modernos, a formação do político enquanto domínio separado do religioso foram acontecimentos concomitantes que deram lugar ao surgimento do individualismo como ideologia. Assim, gradualmente foi sendo construído o conceito de indivíduo moderno, de forma que o individualismo como vemos hoje é historicamente determinado – nasceu fruto do Humanismo do Renascimento e dos ideais iluministas, representando uma grande ruptura com o passado. A revolução individualista efetuou um deslocamento na ênfase conferida à sociedade como um todo – holismo – para o indivíduo humano que passou a ser tomado como a encarnação da própria humanidade – individualismo (Figueira, 1981, p.59). Nas sociedades tradicionais, os valores se concentravam na ordem, na 21 hierarquia e na tradição orientando os seres humanos a agirem em conformidade com o social, contribuindo como homens coletivos, para o desenvolvimento global da sociedade. Figueira (1981) afirmou que nesse caso o homem era concebido como um ser social que derivava o que tinha de humano da sociedade como um todo, da qual é parte integrante. Já nas sociedades modernas individualistas, a ênfase encontrava-se nos atributos, nas exigências e no bemestar de cada indivíduo. Assim, o ser humano passou a ser visto como elementar e indivisível, ao mesmo tempo em que passou a ser um ser biológico e pensante. Cada homem em particular, enquanto “indivíduo da espécie (individuum) encarna o todo da humanidade, que é composta por indivíduos” (Figueira, 1981, p.60). Foi somente com o estudo realizado por Alexis De Tocqueville em 1835 sobre a sociedade americana e publicado como A Democracia na América, que a análise do individualismo, outrora vinculado a um “cego instinto egoísta, vício do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA coração” (Tocqueville, 2000, p.119) deixou de apresentar uma conotação pejorativa, passando a fazer parte de um corpo teórico, ligado ao pensamento democrático-liberal. Nesse sentido, Jasmin (2005) aponta que o conceito de individualismo passou a assumir uma nova conotação a partir de A Democracia na América (2000): O fenômeno particular do contexto da modernidade anunciado por Tocqueville teve como ponto de partida a noção de que a sociedade democrática está fundada no individualismo, um fenômeno particular ao contexto da modernidade e distinto do tradicional egoísmo (Jasmin, 2005, p.54). Jasmin (2005) afirma que em Tocqueville o individualismo tinha uma origem democrática e essa noção espraiava-se por todo corpo social, desenvolvendo-se à medida que se igualavam as condições dos indivíduos, terminando por configurar-se como algo intrínseco a sua própria natureza. Dumont (1985) acreditava que o individualismo era capaz de distinguir a ideologia moderna de todas as outras, ressaltando que a configuração individualista de ideias e valores que nos é hoje familiar nem sempre existiu, nem surgiu de um dia para o outro. Através de uma perspectiva histórica, o autor buscou as características do individualismo moderno na herança clássica e na tradição judaico-cristã, ressaltando as diferenças entre o mesmo e aquele encontrado entre os antigos cristãos: Algo no individualismo moderno está presente nos primeiros cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata exatamente do individualismo que nos é familiar. Na 22 realidade a antiga forma e a nova estão separadas por uma transformação tão radical e tão complexa que foram precisos nada menos de dezessete séculos de história cristã para completá-la, e talvez prossiga ainda em nossos dias (Dumont, 1985, p.36). Machado (2005) chama a atenção para a importância da citação de Dumont que apontava para as constantes transformações na ideia de indivíduo que abarcaram, desde os primórdios da tradição judaico-cristã, passando pelas concepções trazidas pela Reforma Protestante e Calvino, até os dias de hoje. Para compreender o ponto de vista de Dumont (1992), é necessário considerar a configuração de dois tipos de sociedades distintas que apresentam um deslocamento da ênfase valorativa da sociedade como um todo − holismo − para um tipo de sociedade onde o indivíduo humano passou a encarnar a humanidade como um todo − individualismo (Figueira, 1981, p.60). Entretanto, o que se deve PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA enfatizar na análise de Dumont é que o mundo moderno colocou todo um sistema de valores tradicionais “de cabeça para baixo”. A sociedade outrora organizada em torno de uma coletividade transformou-se na Modernidade, em uma associação de indivíduos autônomos. Se nas sociedades pré-modernas a ideia de indivíduo era algo da ordem do impensável e do não-humano, o mundo moderno tratou de transformar as realizações individuais em sociedade no objetivo maior da existência humana (Dumont, 1992). De fato, a ideologia moderna, baseada nos princípios cardinais de igualdade e liberdade, supôs como princípio único a representação valorizada da ideia do indivíduo, ou seja, a humanidade passou a ser constituída de homens e cada um desses homens, apesar de suas particularidades, carregava consigo a essência da humanidade. Assim, o indivíduo adquiriu um status quase sagrado, absoluto, sendo concebido como uma mônada (Dumont, 1992, p.52). Esta constatação levou Dumont a afirmar que todo grupo humano era constituído de mônadas e que a sociedade era nada menos que uma associação e, de certo modo, uma simples coleção de mônadas. Nesse sentido, sua análise caminhou para a crítica de um pretenso antagonismo existente entre indivíduo e sociedade, afirmando que esse tipo de visão era parte integrante da ideologia moderna, sendo pouco satisfatório para a observação da sociedade como um todo (Dumont, 1992). Criticando esse tipo de antagonismo, Dumont afirmou que “o mundo ideológico contemporâneo é tecido pela interação de culturas que teve lugar, 23 desde, pelo menos, o final do século XVIII, sendo feito através das ações e reações do individualismo e de seu contrário” (Dumont, 1985, p.30). Dessa forma, numerosas ideias e valores considerados modernos foram na realidade o resultado de uma história cujo transcurso, “modernidade e não modernidade, ou mais exatamente, as ideias e valores individualistas e seus contrários, combinaram-se intimamente” (Dumont, 1985, p.30). Nesse sentido, Coutinho (2009) ressalta que a análise de Dumont sobre o individualismo articulou a consolidação da concepção de indivíduo, enquanto ser uno, responsável pelos seus atos e autônomo, ao surgimento do cidadão moderno, célula mínima do Estado democrático da Modernidade. O individualismo em Dumont remontava, portanto, ao contrato social e às origens do pensamento democrático, fundamentando a sociedade política em bases onde os direitos eram iguais para todos, seguindo os postulados de Hobbes, Locke e Rousseau (Coutinho, 2009, p.57). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA Assim, o estudo do individualismo se mistura com a própria história da ideologia moderna, configurando-se como paradigma de organização social entre o século XVI e XIX. No entanto, sua conceitualização sofreu uma evolução nãolinear ao longo do tempo, através de movimentos articulados e simultâneos como “versões do mesmo processo de constituição das subjetividades modernas, através de lutas e acomodações, entre esferas públicas e privadas” (Figueiredo, 1996, p. 110), participando da constituição da ideologia moderna em seu caráter filosófico, político, econômico e religioso. De fato, na atualidade, tanto as ciências humanas quanto as ciências sociais fazem amplo uso do conceito e é possível observar na configuração social do mundo ocidental como a questão do individualismo perpassa as relações humanas. Entretanto, para Machado (2005), a visão de individualismo atual não se apresenta mais marcada pela visão de reconhecimento e cooperação entre os homens, conforme a tradição liberal, mas por um distanciamento cada vez maior entre eles. É como se na atualidade preponderasse uma indiferença entre os homens, algo como o que Simmel chamou de arrogância blasé (1902, p.18) ou que mais tarde Elias identificou através da parábola das estátuas pensantes (1987, p.86), que retrataram o isolamento decorrente da individualização do mundo moderno – Homo Clausus. De fato, Machado (2005) afirma que a indiferença entre os homens decorre da dinâmica estabelecida nas sociedades ocidentais, na qual os indivíduos vivem cada vez mais 24 próximos uns dos outros em termos espaciais, embora ao mesmo tempo permaneçam fechados em si mesmos. Em O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna (1985), Dumont analisou o processo histórico que originou a ideologia moderna do individualismo, utilizando o arcabouço teórico da antropologia social e empregando como metodologia a análise comparativa entre a sociedade moderna ocidental e a sociedade tradicional indiana. Estudando a hierarquia do sistema de castas na Índia e a figura emblemática do renunciante espiritual, investigou a cultura individualista ocidental desde seus primórdios (Dumont, 1992). A análise sociológica de Dumont (1992) teve que fazer uso de uma posição metodológica específica para conseguir levar a cabo a investigação do sistema social ocidental e do sistema de castas, visto que eram ideologicamente opostos. Dentro dessa perspectiva é impossível compreender a ideologia do sistema PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA de castas enquanto a ideologia moderna for tomada como verdade universal (Dumont, 1992, p.48). O individualismo é produto da cultura ocidental moderna e para uma efetiva análise sociológica é fundamental uma distinção do conceito de individualismo no plano ideológico – ou seja, como um sistema de ideias, crenças e valores do indivíduo – e no plano da realidade (Figueira, 1981, p.58). Assim, Dumont encontrou dois significados distintos para a palavra indivíduo. O primeiro remetia ao sujeito empírico da fala, do pensamento e da vontade, homem particular e amostra indivisível da humanidade, presente em todas as sociedades e matéria-prima da sociologia. O segundo significado se referia ao ser moral racional e independente, essencialmente não-social, sujeito normativo das instituições, tal como definido pela ideologia moderna e presente nas concepções ideológicas de indivíduo e sociedade (Dumont, 1992, p.57). Dumont observou que a palavra indivíduo envolvia, portanto, uma polissemia que permitia na análise sociológica confundir agentes empíricos com indivíduos, quer dizer, tomar como indivíduos sujeitos que não eram indivíduos e não se representavam como tal. Dessa forma, em uma sociedade como a indiana, não seria possível trabalhar com a categoria de indivíduo da mesma forma como poderia acontecer em uma análise antropológica realizada no mundo ocidental (Figueira, 1985, p.60). Então, Dumont considerava o individualismo um obstáculo para o conhecimento sociológico, na medida em que a categoria indivíduo acabava muitas vezes sendo utilizada na pesquisa em ciências sociais para descrever realidades onde não se 25 justificava seu emprego, como no estudo da sociedade de castas da Índia (Figueira, 1981, p.59). Esse tipo de visão generalizada, tipicamente moderna, produziu distorções e resultados pouco satisfatórios levando Dumont a afirmar que era tarefa da sociologia procurar “preencher a lacuna que a mentalidade individualista introduziu quando confundiu o ideal e o real” (Dumont, 1992, p.53). Foi, contudo, Georg Simmel (1971[1957]) quem, ainda no início do século XX, muito antes do estudo de Dumont, propiciou uma análise ampla e decisiva para a compreensão da questão individualista identificando na história ocidental duas revoluções individualistas. A primeira remontava ao contrato social de 1789, a partir do qual os indivíduos passavam a ser considerados unidades equivalentes diante do todo social, dando origem, no século XVIII, ao individualismo de singleness, centrado na liberdade e na igualdade entre os indivíduos. A segunda PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA ocorreu no século XIX, organizada em torno da liberdade e da desigualdade existentes entre os indivíduos, produzindo o individualismo de uniqueness. A primeira revolução aproximou-se mais dos ideais iluministas e apontava para uma revolução quantitativa, em que o indivíduo emergia destacado do conjunto social, representado através dos ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade. A segunda foi uma revolução individualista qualitativa, de uniqueness, que enfatizou a singularidade do indivíduo moderno, único, introspectivo, aos moldes do ideário romântico do século XIX (Figueira, 1981, p.91). No individualismo de singleness, ou individualismo latino (Simmel, 1989), ocorreu uma individualização que se processou a partir das mudanças da Modernidade e que teve como efeito o surgimento de um homem singular, mas que se apresentava como portador de um arquétipo de um caráter de um temperamento universal. Segundo Simmel, esse universal era ligado a um conceito uma forma uma lei que determinava as existências singulares, das quais cada indivíduo era representante, tanto por natureza quanto por vontade própria. Assim, nesse modelo de individualismo, a tendência do indivíduo era a de ser uma individualidade que tinha sua própria liberdade, mas que se percebia como um representante de um arquétipo humano. O ser humano universal, o ser humano em geral, mais do que o ser humano particular e diferenciado, encontrava-se, portanto, no centro do pensamento da época. Em todo ser humano, habitava o 26 humano universal, como elemento essencial que apresentava, no entanto, em sua essência, as leis gerais da matéria (Simmel, 1971[1957], p.219). Dessa forma, Simmel (1989) acreditava que o individualismo do homem do Renascimento era um individualismo sócio-biológico, baseado em uma igualdade natural dos indivíduos. De fato, o século XVIII encontrou o indivíduo preso a uma série de vínculos de caráter político, corporativo, agrário e religioso que haviam se tornado opressivos, destituídos de significado. Diante de tais restrições, “ergueu-se o grito de liberdade e igualdade e fez-se necessária uma mudança significativa, baseada na crença da plena autonomia dos indivíduos nas relações sociais e intelectuais” (Simmel, (1976 [1902], p.27). Assim, o individualismo de singleness foi o fruto de uma confluência de diversos fatores e, é possível considerar que, em sua elaboração político-econômica, houve por parte da sociedade a “valorização e a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA promoção da livre concorrência dos interesses individuais como ordem natural das coisas” (Simmel, 1971[1957], p.217). Já em sua elaboração sentimental, a influência das ideias de Rousseau – para quem a violência exercida sobre os homens pela sociedade historicamente constituída é a origem de toda decadência e de todo mal (Simmel, 1971[1957], p.218) – contribuiu ainda para a afirmação do indivíduo face à sociedade. Em termos políticos, os ideais igualitários da Revolução Francesa estiveram presentes e a influência da filosofia de Kant e Fichte produziu o eu como suporte do mundo, fazendo da autonomia absoluta o valor moral por excelência (Simmel, 1971[1957], p.218). Entretanto, ao longo do século XIX, ocorreu uma dissolução da síntese que fundamentava a constituição recíproca das noções de igualdade e liberdade, resultando em uma segunda revolução individualista (Simmel, 1971[1957]). Dessa forma, a ideia de liberdade se manteve, mas a de igualdade não mais se sustentou, emergindo a necessidade da diferença. Esse foi o individualismo de uniqueness, ou individualismo germânico (Simmel, 1989), que designava uma individualidade em torno de uma unidade única e insubstituível, tributário, ao lado do liberalismo econômico do século XVII, das influências do romantismo alemão no século XIX e das consequências da divisão econômica do trabalho. Liberados dos vínculos hierárquicos do passado, os indivíduos passaram a desejar distinguirse entre si. O importante não era mais o indivíduo livre como tal, mas o fato de este ser um ser único e distinto. A escala de valores humanos deixou de ser 27 constituída pelo ser humano em geral presente em cada indivíduo, passando a se valorizar a unicidade e a insubstituibilidade qualitativas de cada um. No individualismo de uniqueness, as influências da filosofia de Schopenhauer e da metafísica de Schleiermacher estavam presentes, contudo foi talvez através do romantismo (Goethe) que o individualismo alemão se inseriu na consciência do século XIX (Simmel 1971[1957], p.224). Na verdade, o ethos romântico criou a base da consciência da experiência desse individualismo, que encontrou na alma romântica do indivíduo absoluto, acabado e auto-suficiente, sua mais forte expressão (Simmel 1971[1957]. Dessa forma, o individualismo alemão decompôs a síntese do século XVIII que fundava a igualdade sobre a liberdade e vice-versa, introduzindo a desigualdade (Simmel (1971[1957]). Nesse sentido, Coutinho (2009) afirma que o pressuposto básico para a hipótese de Simmel sobre as duas revoluções individualistas foi a progressiva ênfase na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA desigualdade entre os indivíduos, diferentemente da igualdade preconizada nos lemas norteadores da Revolução Francesa. Assim, é possível afirmar que a segunda revolução individualista pode conferir maior ênfase à desigualdade entre os indivíduos – em substituição à proposta igualitária (presente nos lemas norteadores da Revolução Francesa) do individualismo de singleness. Em suma, a cultura europeia moderna produziu o conceito de indivíduo como equação entre o eu e o mundo. O individualismo de singleness permitiu a liberdade e a igualdade entre os indivíduos, o que determinou o liberalismo racionalista da França e da Inglaterra (Simmel, 1976 [1902]), enquanto que o individualismo de uniqueness propiciou a unicidade e a incomparabilidade entre os indivíduos, dentro de um ponto de vista germânico (Simmel, 1971[1957]). Na constituição dos princípios econômicos, o século XIX seguramente uniu as duas variações de individualismo. A doutrina da liberdade e da igualdade encontrava-se na base da livre concorrência, enquanto que a ideia de personalidades únicas e diferenciadas foi a base fundamental da divisão de trabalho. Esses dois grandes princípios – a concorrência e a divisão do trabalho – foram responsáveis ao mesmo tempo e de forma indissociável pela economia e pela constituição social dos indivíduos no século XX (Simmel, 1971[1957], p.225). As contribuições de Simmel sobre o individualismo foram ainda fundamentais para a compreensão das transformações sociais ocorridas ao longo do século XX, no qual a crescente industrialização e o crescimento das metrópoles 28 e da vida social serviram de palco para a consolidação da ideia de indivíduo tal como é pensado hoje (Elias, 1987; Figueiredo, 1996; Bezerra, 2002). É possível ainda afirmar que o individualismo de uniqueness descrito por Simmel, na medida em que se referia a uma dimensão subjetiva e singular do indivíduo, foi fundamental para o nascimento da psicanálise e para a constituição da ideia de sujeito (Figueiredo, 1996). 2.2 A sociologia de Georg Simmel Os trabalhos de Simmel datam do início do século XX, período em que a Sociologia ainda não havia adquirido status oficial, de maneira que, nessa época, diversos intelectuais apresentavam uma formação eclética e seus trabalhos versavam sobre filosofia, psicologia, história, sociologia e economia. Segundo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA Evaristo de Moraes Filho (1983), Simmel era um escritor prolífico e brilhante conferencista que se entregava ao estudo dos mais variados assuntos de forma enciclopédica. Faltava-lhe, no entanto, certa disciplina acadêmica, o que dificultou sua carreira universitária, acrescido ao fato de ser de ascendência judaica. Com Weber e Tönnies, fundou a Sociedade Alemã de Sociologia. Após sua morte, sua obra ficou um tanto obscurecida, em grande parte devido ao formalismo sociológico que consagrou Marx, Weber e Durkheim como pais fundadores da sociologia (Waizbort, 2006). Entretanto, nas últimas décadas, sua obra tem atraído atenção pela atualidade e relevância com que aborda temas de interesse para o mundo contemporâneo, como a filosofia do dinheiro, a vida nas grandes metrópoles ou a questão do individualismo. Ainda para Moraes Filho (1983), não é fácil apontar suas filiações teóricas, na medida em que Simmel raramente referia-se a suas fontes, entretanto a influência de Kant foi notória em seu pensamento. O dualismo entre forma e matéria está sempre presente em seus escritos, bem como um psicologismo e o vitalismo, que fizeram parte de sua obra até o final, quando já enfermo dirigiu então sua atenção para reflexões sobre a filosofia da vida. Da mesma forma que Moraes Filho, Vandenberghe (2005) acredita que a filosofia de Simmel apresentava uma síntese sofisticada de neokantismo, através da oposição entre formas, conteúdos e um vitalismo devido à ideia de interação. 29 2.2.1 A sociologia formal, o estudo das formas de sociação nas relações indivíduo-sociedade. Uma das preocupações de Simmel em Sociologia (1908) era a de apontar diretrizes para a construção da ciência da sociologia. Na época, a principal dificuldade era encontrar um conjunto de problemas singulares que, deixados de lado por outras ciências, tivessem no conceito de sociedade um elemento a partir do qual se visualizasse um ponto nodal comum. Entretanto, mesmo quando esses elementos apontavam para a possibilidade de uma unidade temática, uma investigação mais aprofundada esbarrava sempre na ideia de sociedade levando Simmel (1908) a indagar: como é possível a sociedade? A busca dessa resposta conduzia sempre para a ideia de indivíduo, na medida em que era notória a afirmação e a crença de que “só existem indivíduos e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA somente a eles podem ser atribuídas realizações e experiências” (Simmel, 1908, p.60). Dentro desse ponto de vista, a sociedade era uma abstração indispensável para fins práticos e para uma possível síntese dos fenômenos, mas não um objeto real que existisse além dos indivíduos e dos processos que eles vivenciavam. No entanto, se somente as existências individuais eram verdadeiras, não se podia falar de fenômenos que aconteciam na realidade em termos coletivos e a sociedade passava a ser, portanto, um conceito abstrato. Entretanto, todos os agrupamentos e configurações coletivas que eram objeto de investigação não poderiam ser constituídos apenas pelas particularidades das formas individuais de existência envolvidas (Simmel, 2006 [1917], p.12). A sociedade não era uma mera representação, ainda que ela só existisse graças aos elementos particulares diante dos quais assumia uma posição independente. De fato, o que se podia conhecer cientificamente sobre os indivíduos humanos eram apenas traços específicos e singulares que se apresentavam em situações de influência recíproca e que exigiam compreensões e deduções independentes. Entretanto, somente quando em interação, era possível realmente compreender esses elementos (Simmel, 1908). A sociedade em Simmel era, portanto, uma resultante das ações e das reações dos indivíduos entre si, isto é, de suas interações. Tratava-se de processos psíquicos “intermentais” (Moraes Filho, 1983, p.20), cujos suportes, como sujeitos de ação, eram os indivíduos, as suas consciências e a totalidade da sua vida psíquica (Moraes Filho, 1983). Assim, a sociedade significava que os 30 indivíduos estavam ligados uns aos outros por intermédio de influências mútuas que exerciam entre si e pela determinação recíproca que exerciam uns sobre os outros, formando uma unidade, uma sociedade (Simmel, 2006 [1917], p.18). Nesse sentido, para Simmel (1908), a sociedade não era algo estático e acabado, pelo contrário, era sempre algo que acontecia que estava acontecendo, em constante vir a ser. Esse processo fundamental Simmel nomeou de Verguellschaftung – socialificação, que significa mais do que sociedade. No Brasil, o termo foi traduzido, segundo Moraes Filho (1983, p.21), seguindo as sugestões dos simmelianos norte-americanos, por sociação, para evitar confusões com socialização e com associação 1 . Em Sociologia (1908), Simmel propôs como disciplinas científicas três espécies de sociologias que se completavam: a sociologia geral, a sociologia filosófica e a sociologia pura ou formal. A sociologia geral era um subproduto da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA sociologia formal e tinha como objeto a análise de processos particulares em diferentes estágios de desenvolvimento, bem como as bases das instituições sociais e da vida histórica a nível social e a nível individual (Simmel, 2006 [1908], p.26). Já a sociologia filosófica preocupava-se com os aspectos epistemológicos e metafísicos da sociedade, repensando os pressupostos metodológicos da disciplina, favorecendo a análise através de uma perspectiva trans-sociológica do indivíduo (Simmel, 2006 [1908], p.35). A sociologia pura ou formal, que receberá mais atenção nessa reflexão, tinha por objeto as formas sociais como organizadoras da matéria social, na medida em que conferiam a elas estrutura e continuidade. Tratava-se, portanto, de identificar relações duráveis, irredutíveis e independentes, isto é, formas que se diferenciavam dos conteúdos concretos que eram infinitamente variáveis e que se apresentavam no universo das relações intersubjetivas quer na família, na escola, no exército ou na igreja (Moraes Filho, 1983, p.24). O objetivo era sempre o de atingir a forma final. A sociologia formal de Simmel configurou-se então como disciplina autônoma, diferenciada das outras ciências sociais, especializada na análise das formas de sociação. Como estudo sistemático das formas estruturantes dos processos de interação, a sociologia formal era uma sociologia interacionista que 1 Embora, tanto Leopold Waizbort (2000, 2001), quanto Frédéric Vandemberghe (2005) não utilizem o termo sociação, preferindo traduzir Verguellschaftung por associação, seguiremos nessa reflexão a sugestão da tradução de Verguellschaftung por sociação, tal como apresentada por Moraes Filho (1983). 31 analisava não apenas as interações inter individuais, mas também as instituições e as organizações como interações de interações. O processo básico de sociação se constituiu através dos impulsos, interesses e objetivos dos indivíduos, e pelas formas que essas motivações assumiam. Dessa forma, no processo de sociação, tornava-se necessária a distinção entre a forma e o conteúdo, no entanto, assim como não existiam formas vazias, não havia conteúdo sem forma. Com essas noções, Simmel (1908) procurava encontrar não a matéria da vida social, mas a forma pela qual a sociologia era feita, ou seja, quais as formas de sociação que compunham a sociedade. A sociologia formal tinha como objetivo abstrair indutivamente as formas de sociação de seus conteúdos, isto é, dos materiais vivos, dos conteúdos que preenchiam essas formas, buscando encontrar aquilo que estruturava as interações (Vandenberghe, 2005, p.84). Ou seja, a sociação era a forma realizada PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA de diversas maneiras, em que os indivíduos se constituíam como uma unidade, na qual podiam realizar seus interesses. Assim, somente quando as formas de sociação humana fossem estabelecidas, poderia-se pensar em resolver a questão do que era sociedade. Através de dez capítulos e treze digressões, organizados e publicados em dois volumes da Sociologia de 1908, Simmel procurou analisar, descobrir e exemplificar essas condições formais, revelando as combinações e as interações entre os indivíduos e as distinções metodológicas entre forma e conteúdo no domínio da vida social. Levine (1971) aponta nada menos do que seiscentas formas de sociação diferentes apresentadas por Simmel ao logo de sua obra. Essas formas se reuniam em linhas gerais em torno de processos sociais (divisão do trabalho, encontro), tipos sociais (o estrangeiro, o pobre, o cínico) e formações desenvolvimentais (cruzamento de círculos sociais, desenvolvimento da personalidade, etc.) (Levine, 1971, p.54-55). Dentre alguns dos capítulos apresentados em Sociologia (1908), que exemplificavam algumas formas de sociação, encontra-se a Determinação quantitativa dos grupos sociais (1983[1908], p.90), no qual Simmel analisou tipos de interação entre membros de pequenos e de grandes grupos, procurando identificar características produzidas de acordo com condições numéricas grupais. No que se referia aos pequenos grupos, o autor apresentou exemplos relacionados à interação, tanto nas sociedades socialistas de pequeno porte, quanto nas seitas 32 religiosas ou nas inter-relações aristocráticas. Quanto aos grandes grupos, sua análise se reportava às massas e a questões relativas às interações e ao tamanho do grupo, bem como à coesão e ao radicalismo (Simmel, 1983 [1908], p.91). Os processos de dominação e subordinação que se referiam à dinâmica das interações entre dominante e dominado no interior da sociedade também foram objeto de análise das formas de sociação simmelianas. A dominação era uma forma de interação específica e estava diretamente relacionada à subordinação e a fatores de inclusão e exclusão, coerção e dominância, autoridade, prestígio e liderança, presentes nas inter-relações sociais (Simmel, 1983[1908], p.107). O conflito enquanto interação foi ainda outra importante forma pura de sociação (Simmel, 1983[1908], p.122) tão fundamental à vida coletiva quanto o próprio consenso. O conflito se destinava a resolver dualismos divergentes entre os componentes da sociedade e funcionava como um modo de atingir algum tipo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA de unidade, ainda que através da aniquilação do adversário. Para Simmel, o conflito era inerente às relações entre os homens e significava a própria negação da unidade embora acabasse funcionado como força integradora do grupo. Não era patológico, tampouco nocivo à vida social, pelo contrário, era condição para a sua própria manutenção, além de ser um processo fundamental para a mudança entre formas de organização (Moraes Filho, 1983, p.23). Já na análise da competição (Simmel, 1983[1908]), que também considerava uma forma indireta de conflito, Simmel atribuiu à mesma uma função sociativa e civilizadora. Isto é, se por um lado no conflito existia uma hostilidade que motivava a disputa e que poderia levar até a aniquilação mútua dos concorrentes, causando prejuízos à sociedade como um todo, por outro lado, do ponto de vista da sociedade, a competição oferecia uma motivação subjetiva produzindo valores sociais objetivos. Na competição, cada uma das partes concorrentes buscava uma aproximação, um conhecimento maior da outra parte, o que terminava por criar novos vínculos e conexões que produziam um efeito sociativo (Simmel, 1983 [1908], p.139). Existia ainda uma forma de sociação que se constituiu como importante ferramenta de análise das formas de interação social representada pelo jogo. De fato, para Simmel (2006 [1917]), as forças, as carências e os impulsos reais da vida produziam modalidades de comportamento que podiam se expressar através desse modelo, em que as formas tornavam-se autônomas em relação aos 33 conteúdos. A coqueteria revelou, por meio do erotismo e da arte da sedução, uma interação que envolvia um jogo dinâmico de aproximações e afastamentos do objeto de desejo apresentado através de um comportamento coeso, mas de oposições polares, composto de ações e reações interativas (Simmel, 2006[1917]). No caso da coqueteria, o importante eram as formas presentes no jogo de sedução e não o conteúdo que ela veiculava. Essas formas, apresentadas no jogo, eram formas de sociação que remetiam a outro importante conceito simmeliano no estudo da sociologia formal que era o conceito de sociabilidade (Simmel, 2006[1917], p.59). A sociabilidade funcionava como forma lúdica de sociação, ou seja, revelava um processo em que conteúdo e forma da existência social encontravamse separados. As formas adquiriam na sociabilidade uma vida própria, livre dos conteúdos materiais, revelando, através de uma sequência de ações e reações, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA configurações puras sem qualquer finalidade objetiva (Simmel,2006[1917], p.62). Na sociabilidade estava compreendido tudo o que se poderia definir com base na forma sociológica do jogo. Dessa forma, os jogos de sociedade (Simmel, 2006[1917], p.72) se constituíam como a livre expressão das formas de sociabilidade. Assim, em todas as formas de sociação estabelecidas entre os seres humanos – tais como o desejo de ganhar ou superar o outro, a troca, a formação de partidos, a oposição e a cooperação, o engodo, a revanche – era possível entrever a dinâmica de um jogo. Neste os elementos ganhavam vida própria e eram movidos por reações de atração e repulsa movimentos que faziam parte da interação mútua entre os indivíduos. Assim, para Simmel (1908), uma sociação resultava da interação do indivíduo com seus pares e o jogo de interações entre eles era o substrato vivo do social: “A sociedade como tal não existe; há somente indivíduos em interação” (Simmel, 1908, p.61). Dessa forma, as interações e a reciprocidade de ação entre os indivíduos eram a condição necessária e suficiente da sociedade. Assim, como a sociedade pressupunha o indivíduo, o indivíduo pressupunha a sociedade e a conexão entre eles realizava-se pela interação, sendo, portanto, veículo de sociação – quando os indivíduos formavam uma unidade em interação – e de socialização, porque era somente através de um agir entre eles que se tornavam produtores e produtos de uma sociedade. 34 Nesse momento a pergunta feita por Simmel no início de Sociologia (1908) retorna: como a sociedade é possível? Muitos anos mais tarde Norbert Elias procurou respondê-la. 2.3 Norbert Elias e o modelo de representação dos indivíduos interdependentes Segundo Heinich (2001), o lugar de Norbert Elias na história intelectual não é fácil de definir, devido à originalidade e diversidade de temas a que se dedicou. Judeu, nascido na Alemanha no final do século XIX, depois de estudar medicina e filosofia, graduou-se em sociologia. Sua trajetória de vida poderia ser confundida com a própria história do século XX, marcada pelas grandes guerras e pelo antissemitismo. Talvez sua biografia acidentada tenha levado seu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA pensamento a ultrapassar as fronteiras habituais de uma única ciência, englobando contribuições que envolveram diversas áreas do conhecimento. O pensamento intelectual de Norbert Elias obteve um reconhecimento tardio, no entanto, a multiplicidade de temas que abordou conduziu a campos inexplorados da pesquisa em ciências humanas e sociais. A sociologia de Norbert Elias sofreu influências diretas de Georg Simmel, Max Weber e Karl Marx (Garrigou, 2007) estando estreitamente vinculada à sociologia da cultura que no século XX encontrava-se em processo de formação e institucionalização na Europa (Neiburg & Waizbort, 2006). Embora suas contribuições tenham sido pouco utilizadas pela psicanálise, a influência freudiana estava presente em muitas de suas ideias. Elias desempenhou ainda um importante papel na construção do arcabouço teórico da grupanálise inglesa, visto que foi um dos principais articuladores, junto a Foulkes (1964), da fundação da Sociedade de Grupanálise de Londres. Em relação à questão do individualismo moderno, Norbert Elias apresentou ainda importantes contribuições para a análise das relações entre indivíduo e sociedade, na medida em que, ao conceber o mundo social como uma rede de relações, vislumbrou a dimensão coletiva das identidades individuais. 35 2.3.1 A individualização e a balança nós-eu na sociedade dos indivíduos A ideia de indivíduo, paradigmática da modernidade ocidental, bem como inúmeros conceitos utilizados hoje na vida cotidiana encontram-se impregnados pelo racionalismo moderno, transformando em oposições dualistas o que no passado era visto de forma mais integrada. Nesse sentido, a partir de três ensaios redigidos ao longo de 50 anos e reunidos em A Sociedade dos Indivíduos (1987[1939]), Norbert Elias apresentou uma importante contribuição para a sociologia do século XX quando propôs uma reflexão sobre a aparente oposição indivíduo-sociedade que norteava grande parte do mal-estar ocidental contemporâneo. De acordo com Elias (1970, 1987), a oposição entre indivíduo e sociedade transmitiu uma visão equivocada dessa relação na medida em que não seria PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA através de antinomias, mas através das interdependências entre os indivíduos e a sociedade que a análise deveria se encaminhar. Tomando essa premissa como base, o trabalho de Elias teve como meta principal a compreensão do processo social que conduziu ao desenvolvimento da individualização nas sociedades modernas. Segundo Heinich (2001), Elias empreendeu o que ele próprio denominou de uma “revolução copernicana” ao tratar das questões que envolviam indivíduo e sociedade, não como relações estanques, “mas como processos relacionais, portanto dessubstancializados, e evolutivos, no sentido de serem contextualizados e historicizados” (Heinich, 2001, p.130). No início de A Sociedade dos Indivíduos (Elias, 1987), Elias afirmou que a relação da pluralidade de pessoas com a pessoa singular, chamada de indivíduo, bem como a relação da pessoa singular com a pluralidade de indivíduos não pareciam ser nada claras no mundo moderno. Apesar do fato das análises sobre o assunto terem utilizado conceitos como indivíduo e sociedade, elas se apresentavam de maneira antagônica e dicotômica. O primeiro conceito concebia o ser humano como uma entidade existindo em pleno isolamento, enquanto que o segundo oscilava entre dois polos opostos e equivocados (Elias, 1987). Assim, por um lado, era possível compreender a sociedade como a mera acumulação de pessoas individuais e, por outro, ela podia ser vista como um objeto que existia para além dos indivíduos. Tal estado de coisas fazia com que “o ser humano singular, rotulado de indivíduo, e a pluralidade das pessoas, concebida como 36 sociedade, parecessem duas entidades ontologicamente diferentes” (Elias, 1987, p.7). De acordo com Elias (1987), a sociedade só existia porque reunia um grande número de pessoas e somente funcionava porque isoladamente as pessoas a faziam funcionar. No entanto, sua estrutura e suas grandes transformações históricas independiam das intenções de qualquer pessoa em particular. Partindo dessa definição, Elias (1987) afirmou que a resposta para essas questões conduzia a “dois campos opostos”. Por um lado, existia a ideia de que as “formações sóciohistóricas eram concebidas, planejadas e criadas por diversos indivíduos ou organismos, como se fossem uma criação racional e deliberada de uma obra realizada por pessoas individuais” (Elias, 1987, p.13). Já de acordo com outro ponto de vista, o indivíduo não desempenhava papel algum nas transformações sócio-históricas. Nesse caso, os modelos conceituais utilizados para a explicação da questão eram provenientes das ciências naturais, especialmente da biologia e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA visavam a interpretar e a explicar os processos sociais de longa duração através de uma cientifização do pensamento (Landini, 2005). Nesse ponto de vista, “a sociedade é considerada como uma entidade orgânica, supraindividual que avança inelutavelmente para morte” (Elias, 1987, p.14), ou seja, essas concepções viam como inevitável um percurso único de ascensão e de declínio das sociedades. Eram abordagens que procuravam explicar as formações e os processos sóciohistóricos pela influência de “forças supraindividuais anônimas” (Elias, 1987, p.18) e consideravam que “os processos sociais se constituíam como ciclos vitais que se repetiam inescapavelmente da mesma forma” (Elias, 1987, p.64). Em relação às visões psicológicas sobre o assunto, Elias apontou também para controvérsias. Por um lado, algumas tentativas de compreensão das relações entre os seres humanos viam o indivíduo singular, como “algo que poderia ser isolado e elucidado na estrutura de suas funções psicológicas sem relação com os demais indivíduos” (Elias, 1987, p.68). Por outro lado, correntes na psicologia social ou de massa não reservavam nenhum lugar às funções psicológicas individuais – atribuindo à sociedade uma origem supraindividual e às massas uma alma própria que transcendia as almas individuais – acreditando que as formações sociais possuíam uma anima coletiva ou uma mentalidade grupal e que a sociedade era uma mera acumulação aditiva de indivíduos (Elias, 1987, p.15). Na sequência, Elias (1987) afirmou criticamente que “é como se as psicologia do indivíduo e da sociedade fossem duas disciplinas completamente 37 distinguíveis, como se houvesse um abismo intransponível entre indivíduo e sociedade” (Elias, 1987, p.14) alertando para o fato de que esse abismo entre indivíduo e sociedade não existia na realidade, pois “ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade e que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos” (Elias, 1987, p.14). Nesse sentido, Henry (1997) ressalta que as palavras indivíduo e sociedade para Elias designam processos distintos e indissociáveis ressaltando que a reflexão sobre a questão deve passar de um ponto de vista substancialista para um modo de pensamento relacional (Henry, 1997, p.146). Entretanto, inúmeros entraves dificultam a reflexão sobre tais antinomias, já que tradicionalmente os seres humanos se percebem como indivíduos e têm uma noção do que é a sociedade embora suas ideias sobre esses conceitos nunca cheguem a coalescer (Elias, 1987, p.16). De fato, foram séculos de cartesianismo e de uma profunda e arraigada noção de indivíduo – livre uno e autônomo – PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA fundamentando a experiência do homem contemporâneo. Em 1939, época da confecção do primeiro ensaio da Sociedade dos Indivíduos, ganhava corpo e importância na psicologia a teoria da Gestalt, fundada em torno da ideia de que o todo é maior que a soma de suas partes (Lewin,1944). Embora as teorias gestálticas estivessem presentes desde o início do século na Alemanha entendendo os fenômenos psicológicos como um conjunto autônomo, indivisível e articulado em suas configurações, organizações e leis internas, Elias (1987, p.16) encontrou na Gestalt um elemento de apoio para a compreensão mais profunda do fenômeno indivíduo-sociedade. Dessa forma, através de exemplos retirados da dança e da música, analisou as relações entre a parte e o todo tanto em composições musicais quanto em passos de dança e coreografias e pôde construir modelos conceituais que facilitaram a reflexão sobre a intrínseca relação entre indivíduo e sociedade (Elias, 1987, p.25). Partindo dessas analogias, Elias (1987) revelou que a sociedade era mais do que a mera aglomeração de indivíduos. Na verdade, esses exemplos tinham em comum a ideia de que “é necessário desistir de pensar em termos de substâncias isoladas, únicas e começar a pensar em termos de relações e de funções” (Elias, 1987, p.25). Assim, partindo da premissa de que seria um erro aceitar sem questionamentos a natureza antitética dos conceitos de indivíduo e sociedade, Elias (1987) propôs-se a investigar a origem desses conceitos. Os termos 38 individual e social podiam ser encontrados em todas as línguas europeias, tendo uma origem comum em sociedades medievais (Elias, 1987, p.129). Esses termos, no entanto, nem sempre fizeram parte do vocabulário da sociedade ocidental e houve momentos na história em que as ideias de individual e social não existiam ou não faziam sentido. Dentro desse ponto de vista, as considerações de Elias conduzem às sociedades holistas, em especial à indiana, estudadas por Dumont, onde a ideia de indivíduo só podia ser atribuída (em seu negativo) à figura do renunciante espiritual (Dumont, 1985). O conceito de indivíduo é, portanto, recente, tendo sido construído ao longo de um processo no qual a identidade-eu e a identidade-nós (Elias, 1987, p.173) foram-se mesclando e diferenciando, num continuum sócio-histórico e evolutivo das sociedades primitivas para as sociedades modernas, dando a ideia de serem ontologicamente diferentes (Elias, 1987, p.56). Nas sociedades mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA primitivas, o sentido de nós era muito mais marcado e a vida e o trabalho em comunidade, as tradições e o panteísmo religioso conduziam a uma vida centrada na coletividade. O eu tinha pouca importância e a sobrevivência da comunidade era vital. A concepção do eu humano e do mundo, outrora alicerçadas na religião e no poder hierárquico, deram lugar na modernidade a concepções secularizadas e ao surgimento de novas formas de “autoconsciência”, autônomas e individuais, que se relacionam com o surgimento do individualismo moderno e com a crescente “individualização no processo social” (Elias, 1987, p.102). Essas transformações derivavam-se da comercialização crescente, da formação dos Estados, da ascensão de ricas classes aristocráticas e urbanas nas sociedades modernas. Nestas a divisão de funções e o monopólio dos bens e dos valores sociais acabaram se estabelecendo, gerando uma enorme modificação no caráter econômico e psicológico do comportamento humano que favoreceu um processo de individualização (Elias, 1987, p.56). Desse modo, Elias pode afirmar que a formação individual de cada pessoa dependia intrinsecamente das modificações históricas do padrão social e da estrutura das relações humanas, ou seja, para ele “a individualização era contingente ao processo civilizador” (Elias, 1987, p.102). Nesse sentido, os avanços no processo de individualização durante a Renascença não foram consequência de mudanças isoladas, mas foram eventos sociais resultantes de uma profunda transformação na sociedade, provocada pela desarticulação de antigos grupos hierárquicos e alterações na posição e no estrato 39 social desses grupos. Foram, em suma, fruto de uma reestruturação específica nas relações humanas. Assim, de forma gradual e principalmente construída, foi nascendo o conceito de indivíduo: A imagem que fazemos do homem hoje teve uma emergência tardia na história da humanidade, começando lentamente a partir de pequenos círculos na sociedade antiga (...) e a partir do Renascimento,quando foram se formando, lentamente, em diversas sociedades, até serem presumidas como um dado (Elias, 1987, p.81-85). Dessa maneira, o que hoje se assemelha a um conceito universalmente válido pode ser percebido como algo que foi instituído através de um processo histórico relativamente recente. De fato, a imagem que os seres humanos têm hoje de si enquanto indivíduo não deve ser presumida como dada a priori, mas como o resultado dessas transformações específicas que afetaram, segundo Elias (1987), as três coordenadas básicas da vida humana: a formação e posicionamento do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA indivíduo dentro da estrutura social, a própria estrutura social e a relação dos seres humanos sociais com os acontecimentos do mundo não-humano (Elias,1987,p.85). A relação entre a identidade-eu e a identidade-nós, denominada por Elias (1987) de balança nós-eu, não se estabeleceu tampouco de uma vez por todas no decurso da história, estando também sujeita a transformações muito específicas. Na atualidade, a função primordial da palavra indivíduo transmite a ideia de que todo ser humano é uma entidade autônoma, diferente dos demais. Desse modo, é característico na estrutura das sociedades ocidentais que as diferenças entre as pessoas, sua identidade-eu, sejam mais valorizadas do que aquilo que elas têm em comum, sua identidade-nós. Nas sociedades mais simples, ocorria justamente o contrário, já que era comum que a identidade-nós suplantasse a identidade-eu. O Estado romano republicano da Antiguidade foi um exemplo clássico de um momento histórico em que o sentimento de pertencer à família, à tribo e ao Estado, isto é, à identidade-nós de cada pessoa isolada, tinha muito mais peso do que hoje na balança nós-eu. Assim, a identidade-nós era praticamente inseparável da imagem da pessoa individual. A ideia de um indivíduo sem grupo, de uma pessoa despojada de referência ao nós fazia naquele momento muito pouco sentido (Elias, 1987, p.130). Consequentemente não havia nem a necessidade de um conceito universal relativo à pessoa isolada enquanto entidade “quase- 40 agrupal”, nem tampouco uma palavra nas línguas antigas que designasse o equivalente ao conceito de indivíduo (Elias, 1987). As transformações sociais e psíquicas de grupos relativamente pequenos, que agiam de forma imediatista, com necessidades simples e de satisfação incerta, em grupos mais populosos, com divisão mais nítida e especializada de funções e necessidades mais diversificadas, provocaram alterações significativas na balança nós-eu (Elias, 1987, p.102). Ao longo desse processo, um número cada vez maior de pessoas passou a viver em torno de uma crescente dependência mútua e com tarefas progressivamente mais especializadas ao mesmo tempo os indivíduos foram se diferenciando cada vez mais uns dos outros (Elias, 1987, p.108). Essas mudanças culminaram na individualização dos seres humanos no processo social, bem como propiciaram transformações psicológicas nas interrelações entre as pessoas e mesmo no interior de cada uma delas (Elias, 1987, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA p.113) que levaram ao “desenvolvimento da autoconsciência, a contenção de impulsos e a postergação de necessidades” (Elias, 1987, p.110). O processo de individualização bem como o crescente controle das forças naturais pelos seres humanos só foram possíveis, no entanto, dentro de um contexto e de uma estrutura social organizada, mediante novas e mais complexas interdependências, características das sociedades industrializadas que também possibilitaram “um processo crescente de autocontrole dos afetos e dos instintos de curto prazo ao longo do processo civilizador” (Neiburg & Waizbort, 2006, p.225). Assim, o processo civilizador seguiu em uma dada direção em que o autocontrole passou a ter um papel cada vez mais importante na construção de um mundo civilizado em detrimento de forças coercitivas externas (Landini, 2005, p.45). O estabelecimento de padrões sociais de comportamento, através de uma crescente internalização de hábitos e contenção de impulsos, determinou as mudanças psicológicas necessárias à criação de uma diferente estrutura social. De fato, o que ocorreu foi resultado da íntima conexão entre a estrutura social e a economia dos afetos, isto é, a inter-relação entre a dinâmica social e a dinâmica psicológica no processo civilizador (Landini, 2005). A teoria do processo civilizador e as noções de processo social foram alvo de severas críticas da comunidade científica que, através de uma compreensão errônea baseada no senso comum, insistiam em seu pretenso evolucionismo ou no caráter teleológico da sociologia eliasiana (Neiburg & Waizbort, 2006, p. 9). Tais 41 resistências baseavam-se na “dificuldade de compreensão da dimensão temporal das figurações sociais, identificando apressadamente ‘transformação’ e ‘gênese’ com ‘evolução’ (Neiburg & Waizbort, 2006, p.12). Na verdade, a teoria do processo civilizador descrevia as investigações sócio-genéticas e psicogenéticas sobre o processo de civilização de uma forma articulada e interdependente que possibilitava a análise de diferentes dimensões de um mesmo fenômeno históricosocial (Garrigou, 1997). Apesar de não nos determos em maior profundidade em considerações sobre as intrínsecas relações entre o processo civilizador e a relação indivíduo-sociedade, a ideia de processo – evolutivo, mas não linear (Menell, 1997) – foi fundamental na leitura de Elias sobre o indivíduo e a sociedade. Dentro dessa perspectiva, Elias (1987) postulou que a relação indivíduo-sociedade “era tudo menos imóvel” estando em constante transformação, refletindo as mudanças ocorridas ao longo do processo civilizador PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA tanto na maneira como a sociedade era compreendida quanto na maneira como as diferentes pessoas que formavam essas sociedades entendiam a si mesmas, isto é, como relacionavam-se com sua autoimagem e a composição social – aquilo que denominou de habitus (Elias,1987, p.150) – dos indivíduos. O conceito de habitus foi intensamente analisado por Elias em Os Alemães (1989) sendo largamente utilizado na sociologia contemporânea e tendo sido incorporado por Pierre Bourdieu (1986) à sua obra dentro de uma perspectiva conceitual bastante semelhante (Mennell, 1997). O habitus evidenciou a dependência do indivíduo em relação aos comportamentos ao mesmo tempo aprendidos e próprios de um determinado grupo não estando, contudo, relacionado à livre escolha do indivíduo. Assim, o conceito de habitus englobou desde os comportamentos mais individualizados até o comportamentos mais compartilhados pelos componentes de um mesmo grupo que, para Elias, poderiam ser os membros de uma mesma identidade-nós ou de uma identidade nacional específica (Elias, 1987, p.172;Heinich, 2001, p.131). O conceito de habitus em Elias possibilitou contornar as dicotomias entre indivíduo e sociedade, revelando que as emoções e disposições vividas a nível individual estavam estreitamente relacionadas a processos coletivos de incorporação inconsciente de padrões e comportamentos sociais (Heinich, 2001, p.132). Nesse sentido, Elias acreditava que o habitus social de um indivíduo fornecia o solo para o florescimento das diferenças pessoais e individuais de forma que a 42 individualidade de uma pessoa representava, num certo sentido, a elaboração pessoal de um habitus social comum (Elias, 1987, p.172). Essas questões fizeram parte de muitas das ideias veiculadas através da teoria sobre o processo civilizador, desenvolvidas na década de 30, mas somente publicadas em 1968. A ideia de processo civilizador vista em conjunto com a noção de processo social teve em Elias uma inspiração muito específica, ancorada na sociologia da cultura de Weber em processo de formação e institucionalização (Neiburg & Waizbort, 2006, p.8). Na apresentação para a língua portuguesa de O processo civilizador (1990, 1993[1939]), Renato Janine Ribeiro afirmou que Elias adotava a tese de que a condição humana era uma lenta e prolongada construção do próprio homem, rompendo assim com a ideia de uma natureza já dada, bem como com a ideia da inteligibilidade última do ser, ou seja, “nem a condição humana era absurda, pois ela descrevia um sentido, nem este era PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA conferido fora das relações humanas” (Elias, 1993, p.9). 2.3.2 A teoria das figurações O termo figuração ou configuração 2 foi cunhado por Elias como contraponto à noção de Homo Clausus – que significava homem fechado em si mesmo ou personalidade fechada – expressão que traduzia para o autor o estágio das ciências sociais no final do século XIX e início do XX (Elias, 1987). Nesse sentido, o conceito de figuração surgiu devido à necessidade de eliminar a dualidade entre sujeito e objeto e de afirmar a impossibilidade de priorizar o individual sobre o social ou vice-versa. Dessa forma, a noção de interdependência encontrava-se intimamente ligada à ideia de um equilíbrio de forças, relacionando-se ainda a processos de estigmatização e de tensões na desigualdade (Elias, 1970). Evidentemente apresentava uma inspiração estruturalista, mas sua dinâmica alterou o contexto da análise das oposições dualistas para relações entre sistemas e jogos de força. Em todo caso, promoveu o deslocamento do debate 2 Elias utiliza em inglês os dois termos figuration (figuração) e configuration (configuração) para designar o mesmo conceito. Durante grande parte de sua obra, empregava o termo configuração, entretanto, já no final de sua carreira, passou a questionar a palavra em si, devido ao significado do prefixo con em latim, passando a adotar daí em diante o termo figuração (Landini, 2005). No Brasil, as traduções utilizam ambos os termos, havendo uma tendência entre os tradutores oficiais e os estudiosos ao emprego de figuração, que será utilizada nesta tese. 43 outrora restrito a questões do indivíduo para a dinâmica dos grupos sociais em diferentes campos interpenetráveis (Elias, 1987, p.264). Em obras como Sociedade de Corte (1969) e A Sociedade dos Indivíduos (1987), Elias tratou das interdependências associando-as, na primeira obra, à organização da corte francesa durante o Antigo Regime e, no terceiro ensaio da Sociedade dos Indivíduos, à Guerra Fria. Elias acreditava que a compreensão sociológica da importância das interdependências ainda estava em seu início na medida em que o paradigma da tradição intelectual ocidental continuava a se basear em um duplo dualismo de sujeito/objeto, causa/efeito. Nesse sentido, o dualismo ontológico, a representação de um mundo cindido em sujeitos e objetos, dava a impressão de que os sujeitos poderiam existir sem os objetos. Assim, quando se observava, no plano ontológico, “unidades que se encontravam em relação de interdependência funcional estávamos diante de sistemas que não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA podiam ser apreendidos dentro de um modelo mecânico de causa e efeito” (Elias, 1987, p.82). Assim, a questão se tratava de mudar radicalmente de modelo de representação do mundo social – ou de paradigma sociológico – substituindo a causalidade linear que ligava substâncias separadas pela circularidade da “interdependência de funções” (Heinich, 2001, p.118). Aprender a pensar em termos de interdependências ou de figurações seria abandonar um raciocínio centrado em individualidades ligadas umas às outras para pensar em termos de relações, necessariamente variáveis, entre posições definidas pelo sistema entre essas relações. Em Introdução à Sociologia (1970), obra tardia do autor, mas que, para ele mesmo, “desenvolve-se como continuação das teorias anteriores e como ponto de partida crítico dessas” (Elias, 1970, p.11), Elias apresentou sua concepção sobre o que seria a sociologia criticando as polaridades que tradicionalmente envolviam a relação indivíduo-sociedade, apresentando como alternativa de análise a teoria das figurações e o modelo das relações interdependentes entre os indivíduos. Nesse sentido, afirmou a necessidade de substituição de uma relação egocêntrica (Elias, 1970, p.13) do indivíduo com a sociedade reorientando-a para a compreensão do conceito de sociedade através do modelo de representação de indivíduos interdependentes e da teoria das figurações (Elias, 1970, p.14). Sua preocupação fundamental residia na tentativa de promover novas formas de pensamento que escapassem do egocentrismo do indivíduo e da tendência à 44 antropomorfização dos conceitos para uma percepção das interconexões e das figurações encontradas nas relações entre as pessoas (Elias, 1970, p.28). Em Elias (1987), as inter-relações e as interdependências remetiam à ideia de que a sociedade consistia em uma rede de relações, um todo relacional, onde o social era concebido como um sistema de relações entre grupos e indivíduos interdependentes. As figurações possibilitavam que a reflexão escapasse de um monismo sociológico “que dicotomiza o indivíduo (encapsulado) e a sociedade (como ente externo) na medida em que valoriza as ligações entre as mudanças na estrutura da sociedade e a constituição psíquica dos indivíduos” (Carneiro, 2005, p.4). Valendo-se de um artifício metafórico para descrever a relação indivíduosociedade, Dalal (1998) propõe, a partir da observação da obra de Elias, que os indivíduos são ligados uns aos outros por uma série de elastic bands (Dalal, 1998, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA p.87) o que significa que suas atividades e seus pensamentos são determinados pelo grupo. De acordo com Dalal, a reflexão sobre as interdependências remete às relações de poder, ou seja, “a noção de figuração dá um tiro mortal contra o existencialismo e as ideias humanísticas de livre-arbítrio ou livre escolha de nosso destino, já que precisamos nos habituar à ideia de um outro dentro de nós mesmos” (Dalal,1998, p.90). Dalal afirma que o que Elias propunha com o conceito de figuração e com a rede de interdependências não era uma ênfase nas restrições exercidas pelas estruturas sociais, como se elas existissem como uma realidade objetiva, acima dos indivíduos que as produzissem. Na verdade, Elias evitava reduzir a sociedade aos indivíduos ou considerá-los meros “fantoches” do social procurando, ao contrário, demonstrar que as forças sociais eram exercidas pelas pessoas umas sobre as outras e, sobre elas mesmas, o que só poderia ocorrer através de relações de poder (Dalal, 1998). Desse modo, pensar em termos figuracionais seria complexificar os modelos de dominação e relações de poder existentes na sociedade, na medida em que o poder não poderia mais ser concebido como uma ação que viesse de fora e de uma só direção. Dentro de uma figuração, existiria um equilíbrio de forças que determinaria o comportamento de seus componentes. De fato, as ideias de Elias apontam para a sociogênese dos grupos sociais atenta às relações de tensão e poder que se estabelecem entre e intragrupos buscando examinar, no todo do campo social, as estruturas 45 fundamentais que imprimem aos acontecimentos uma orientação e uma morfologia específica. As relações de interdependência que ligam os indivíduos e que constituem os grupos sociais podem ser representadas pelo modelo do jogo (Garrigou, 1997, p.75). Um jogo nada mais é do que uma figuração particular em que os indivíduos estão unidos por vínculos de interdependências que dão sentido a suas ações. No jogo existe uma relação de forças em interação e nele cada parte desempenha uma função em relação às demais. Nunca se pode jogar sozinho, pois jogar é sempre um “jogar com” (Elias, 1970, p.77). Nesse sentido, em Elias (1970), as interdependências entre os homens ocorriam como equilíbrios de poder, como um jogo de forças diretamente ligado aos processos de diferenciação da sociedade. Através da dinâmica estabelecida entre os jogadores de um jogo coletivo como o futebol, o xadrez ou até mesmo dentro de uma sociedade hierárquica ou uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA nação, poderia ser encontrado um modelo didático para a análise dos diferentes níveis de integração nas sociedades (Elias, 1970, p.99). Assim, o tecido das relações humanas expresso pelo conceito de figuração seria constituído através de uma rede de jogadores interdependentes, compreendendo desde jogos mais simples, como os encontrados no nível da competição primária (Elias, 1970, p.83), até jogos sofisticados (Elias, 1970, p.108). A ideia da figuração como um jogo possibilitaria distinguir uma série de polaridades que definiriam um sistema de interdependências complexas o que tornaria possível analisar grupos sociais cujas grandes dimensões impediriam o observador comum de abarcá-los em sua totalidade. Em outros termos, a figuração não seria nada além de um sistema de interações, ou seja, seria a estrutura social observada ao nível do indivíduo (Elias, 1970, p.177). Segundo Neiburg e Waizbort (2006), foi no conceito de figuração que Elias revelou seu vínculo com a sociologia dos tempos de sua formação, isto é, com a sociologia simmeliana. Na verdade, trata-se da conceitualização formal de algo que, na sociologia de Simmel permanecera restrito ao registro analítico, como foi apresentado em Sociologia (Simmel, 1908). Embora Elias, ao formular o conceito de figuração, não se tenha se referido à obra de Simmel, Neiburg e Waizbort comentam que: Não são apenas as afinidades e diferenças eletivas e explícitas, mas também as implícitas que constituem a constelação de um pensamento; e a compreensão de 46 um autor depende tanto da percepção de sua linhagem – de quem se quer fazer herdeiro e o que quer herdar – como pelos ocultamentos que articula que revelam domínios figuracionais específicos, entrecruzados por relações de poder (Neiburg & Waizbort, 2006, p.9). De fato, tanto Simmel quanto Elias pertenciam a uma mesma tradição intelectual e, se o primeiro permaneceu pouco valorizado por algumas décadas, o segundo, por sua vez, obteve apenas um reconhecimento tardio e sua obra encontra-se atualmente submetida a compreensões teóricas errôneas que associam seu pensamento ao desenvolvimentismo histórico e a mecanismos de controle social (Ghiraldelli Jr, 2007). 2.4 Aproximações entre Georg Simmel e Norbert Elias PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA A concepção do social apresentada por Norbert Elias era muito semelhante à de Georg Simmel na medida em que para ambos o social era um conjunto de relações. De fato, Leopold Waizbort (2001) defende a tese de que os elementos fundantes e fundamentais da sociologia de Elias derivam da obra de Georg Simmel. Nesse sentido, tanto para Simmel quanto para Elias, o todo – seja ele uma sociedade, um grupo ou uma comunidade – é um todo relacional constituído pelo conjunto de relações que se estabelecem entre os elementos que o compõem. Essas relações são relações em processo que se fazem, desfazem e refazem em um constante vir-a-ser. Segundo Waizbort (2001) a primeira decorrência da concepção sociológica dos dois autores diz respeito à relação entre indivíduo-sociedade. Dentro dessa perspectiva, não existe indivíduo ou sociedade como entidades separadas ou autônomas, isto é, os indivíduos fazem a sociedade e esta faz os indivíduos. Assim, “os conceitos de indivíduo e sociedade isolados não existem sendo, portanto, da ordem do mito, pois o que faz a sociedade acontecer é o conjunto de relações que se estabelecem entre os indivíduos” (Waizbort, 2001, p.92). Em Simmel a unidade, o todo, consiste na interação entre as partes em relação mútua que se estende infinitamente, em processo, como um tecido que se tece continuamente. O mundo de Simmel é, portanto, um mundo de relações. Waizbort (2001) chama atenção para o fato de que, em Simmel, falava-se de sociação e não de sociedade, na medida em que a ênfase deveria recair sobre a 47 ideia de processo, de continuidade. Isto é, a sociologia simmeliana era uma sociologia de processos que postulava uma concepção dinâmica e relacional da sociedade como forma de sociação. A sociologia de Norbert Elias seguia o mesmo trajeto. Para Waizbort (2001), quando Elias se referia aos entrelaçamentos e às interdependências que configuravam a sociedade através do conceito de figuração, ele se referia na verdade às formas de sociação apresentadas por Simmel. Enquanto Simmel procurava compreender a gênese das interações humanas e dos conceitos relacionais, colocando em questão as concepções modernas de unidade, Elias, por sua vez, trabalhava as relações entre unidade e multiplicidade transpostas para o registro de indivíduo e sociedade através do conceito de figuração (Waizbort, 2001, p.103). Assim, a ideia de interação acabou assumindo um papel fundamental nas relações entre indivíduo e sociedade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA Em Simmel (1908, 1917), a ideia de jogo surgiu como forma de sociação, presente no contexto da sociabilidade (jogos de sociedade), nas relações de dominação e subordinação, na coqueteria e no conflito. Em Elias (1970), o jogo era utilizado como modelo através do qual os fenômenos de interdependência funcional e os entrelaçamentos que conectam os indivíduos se realizavam. O jogo serviria, portanto, para pensar os relacionamentos entre os grupos sociais, compreendidos como conjuntos de relações de interdependências. No entanto, Elias foi mais além ao afirmar que os jogos revelavam as relações de poder existentes no social (Elias, 1970, p.102) Essa noção, embora não explicitada na Sociologia (1908) de Simmel, pode ser, contudo, intuída em sua teorização. Assim, parece que quanto mais se adentra na sociologia simmeliana e eliasiana, mais se encontram pontos em comum. Na verdade, para ambos, tratavase de uma sociologia baseada na relação entre os grupos sociais e preocupada com relações de tensão e poder que se estabeleciam inter e intragrupos (Waizbort, 2001, p.109). Sua importância, dentre inúmeras contribuições para o campo da sociologia, residiu em desferir um golpe mortal no individualismo e nas dicotomias existentes desde a era moderna nas relações entre indivíduo e sociedade. Em suma, parece impossível avançar na pesquisa contemporânea em campos como os da sociologia, da psicanálise, da psicologia social ou da grupanálise enquanto “a construção teórica da ponte indivíduo-sociedade não for 48 investida de renovados esforços” (Rodrigues, 1991, p.12). Nesse sentido, especialmente no que diz respeito à psicanálise e a psicologia dos grupos, é fundamental um pensamento que elimine as dicotomias entre indivíduo e sociedade valorizando justamente as formas de sociação, as figurações e as interdependências. Assim, contando com um renovado arcabouço teórico, a reflexão poderá encontrar novas e mais integradas dimensões. Nesse sentido, a própria psicanálise oferece um caminho a ser retomado e não custa recordá-lo através das palavras proferidas por Freud logo no início de Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921) quando, se referindo ao contraste entre psicologia individual e psicologia social, afirmou: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0813312/CA Apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mais inteiramente justificável das palavras é, ao mesmo tempo, também psicologia social (Freud, 1921, p.91).