MEMÓRIAS DO CARANDIRU
Um ano e meio no inferno
Vidas do Carandiru - Histórias Reais,
de Humberto Rodrigues,
Geração Editorial, São Paulo, 2002.
A implosão do Carandiru não enterrou as lembranças dolorosas de um jornalista
preso e condenado injustamente, que usou os 514 dias passados atrás das
grades do maior presídio da América Latina para desenhar o retrato dos
personagens com quem conviveu. O resultado desta sofrida experiência está
agora no livro Vidas do Carandiru, da Geração Editorial.
Quem espera conclusões amargas deste enredo kafkiano se surpreende:
Humberto foi capaz de encontrar resquícios de esperança e humanidade entre
criaturas que, apesar de toda a dor, não desistiram da vida.
A descida ao inferno começou para Humberto Rodrigues na tarde de 23 de maio
de 2000, quando, aos 65 anos, foi levado por policiais, jogado numa cela infecta
e, em seguida, para sua perplexidade, condenado por crime que não cometera.
Era um jornalista respeitado, acostumado ao sucesso, aos melhores hotéis e
restaurantes e viu-se reduzido a quase nada. Ao contrário de outros relatos
célebres da perda da liberdade como Memórias do cárcere, de Graciliano
Ramos, Pavilhão 9, de Hosmany Ramos, e Estação Carandiru, de Dráusio
Varella, Vidas do Carandiru é um depoimento otimista.
Por trás dos muros
A população carcerária do Carandiru, antes de sua extinção, era de 7 mil presos,
o dobro da capacidade 80% deles tuberculosos e um em cada seis aidético. Mas
Humberto optou por falar das pessoas por trás dos números.
O ponto central do livro são as histórias de homens que chegaram à mais
extrema degradação. A primeira parte conta a saga do próprio Humberto em
forma de diário: primeiro, os 43 dias numa cela de delegacia "universidade da
violência", depois os 471 no Carandiru "um paraíso", comparado à vida no xadrez
do Depatri, onde conheceu o espancamento, a tortura e um tratamento que reduz
a zero a dignidade humana. No presídio Humberto deu aulas de Português e
Matemática, escreveu seu livro e concluiu que sem uma completa reforma dos
sistemas prisional e principalmente jurídico, tudo o que se faz no combater à
violência é mero paliativo. Na segunda parte do livro, Humberto conta a história
de 12 companheiros de infortúnio.
"É indispensável para a saúde da sociedade que o que está escondido por trás
dos muros seja trazido à tona", diz Luiz Fernando Emediato, dono e editor da
Geração Editorial. "Vejo com bons olhos a literatura que se tem produzido nos
presídios, por isso estamos lançando mais dois títulos nessa linha."
ENTREVISTA / HUMBERTO RODRIGUES
"Lá é tudo cinza, drama, tristeza"
Copyright Geração Editorial :
<http://www.geracaobooks.com.br/releases/entrevista_humberto.htm>
Como é estar em liberdade de novo?
Humberto Rodrigues - Depois que se perde a liberdade e a reconquista, os
valores mudam completamente. A gente ganha mais humildade, começa a dar
valor à folha da árvore que cai com o vento, o pastel com cana se torna delicioso.
As coisas mais simples têm um enorme valor. Ganha-se humildade,
compreensão e aprende-se a meditar. Aprende-se a dar muito valor a coisas
como a amizade, a família, a solidariedade. Embora traumática, a prisão foi uma
experiência muito valiosa.
Pois é, uma das coisas que surpreendem em Vidas do Carandiru é que não se
trata de um relato amargo e ressentido. Ao contrário, mesmo na cadeia o senhor
fala a maior parte do tempo sobre coisas positivas. Como o senhor conseguiu
isso?
H.R. - Eu já era um cara positivo, mas não tão intensamente como sou hoje. Mas
penso que psicologicamente eu estava preparado, tinha estrutura. Não busquei
a saída pela religião porque sempre pensei que Deus é a natureza, e não mudei
isso. O que mudou muito é que, antes de ser preso, tinha salário de 40 mil, era
executivo, tinha cavalos de corrida, comia nos melhores restaurantes, ficava nos
melhores hotéis; na cadeia, cheguei a ter que lavar a cela e o banheiro com 50
presos dentro porque não tinha 3 reais para pagar a faxina. Na prisão, uma
camiseta é uma dádiva. Hoje vivo com R$ 600 por mês e é para mim mais do
que suficiente. Além disso, o hábito de ler ajudou muito. Sempre li bastante.
Quando você me ligou para a entrevista, eu estava lendo.
O quê?
H.R. - As Memórias de Casanova, que também esteve preso, na Veneza do
século 16 para o século 17. O que era uma situação ainda muito pior que a
minha.
E escrever na cadeia, ajudou?
H.R. - Apesar de ter sempre trabalhado como jornalista, fui diretor da Gazeta
Mercantil, da Abril, do Globo, da Manchete e outras, não tive formação
acadêmica, pois na época nem havia. Sou formado em Publicidade. De modo
que a dificuldade em escrever um livro foi muito grande. O hábito da leitura foi a
minha formação. Sabia que tinha que ser bem objetivo e tornar útil o meu tempo
na prisão. Muitas vezes, como descrevo no livro, me sentia um pesquisador
trabalhando na cadeia. Não é fácil entrevistar um preso. Quando eu saí, tinha
uns 10 cadernos manuscritos. Depois copidesquei tudo, sem mudar a força que
aquilo tinha, pois ainda está tudo muito vivo dentro de mim.
Além das histórias de vida que você conta, sua e de outros presos Vidas do
Carandiru também aponta as falhas do sistema prisional e judiciário do país. Fale
a respeito.
H.R. - Assim que você chega na cadeia fica sabendo que existe uma lei chamada
LEP, Lei de Execuções Penais. O preso sabe que têm direitos, mas essa lei, em
muitos casos, não é cumprida. Daí começa a sensação de injustiça. Quanto mais
o tempo passa, mais o ódio aumenta. A prisão não regenera ninguém. Lá é tudo
cinza, drama, tristeza. Quando eu saí, tinha para onde ir para a casa da minha
ex-esposa e R$ 300 no bolso. E se não tivesse isso? Imagine sair só com uma
calça bege, sem dinheiro e sem perspectiva nenhuma.
Mas aí não é ser muito condescendente com o bandido?
H.R. - Uma infância e uma vida miserável tornam a pessoa embrutecida. Não
estou fazendo apologia do crime, mas conheci gente na prisão que tem bondade
no coração. Que precisa ser tratado como ser humano. Pra que tratar como
bicho? Tudo bem, a gente sabe que lá tem 10% que é sangue ruim mesmo.
Outros 20% são bandidos graves. O resto, é vítima de uma sociedade cruel. E o
que resolve tratar mal a todo o mundo? Existe um serviço na prisão que é feito
por psicólogos, para avaliar os detentos, os seus direitos na LEP. Todos
aguardam com a maior ansiedade. Vi muitas vezes psicólogos debochando de
presos, e fazendo um teste que exigiria muito critério, em um ou no máximo dois
minutos. Aí o preso é reprovado, perde os direitos e planta-se o ódio em seu
coração. Isso sem falar na superpopulação de um sistema prisional feito para 65
mil presos, no estado de São Paulo, e que hoje abriga 100 mil. Fora os 270 mil
que estão na rua com mandado de prisão expedido.
Quer dizer que o perfil do preso é diferente do que conhecemos aqui fora?
H.R. - Pois lá tem gente que chora, que se preocupa com os filhos e esposa, que
procura trabalhar, estudar. E muitas vezes nem isso é dado. O preso fica
zanzando para lá e para cá, e mente vazia é a oficina do diabo. Quem conhece
a realidade lá de dentro e eu mesmo antes não sabia que era assim, sabe que
há muita limpeza, solidariedade, respeito aos idosos. Há gente ruim, claro, como
aqui fora também. Veja o caso da menina que matou os pais. Mas é justo julgar
todo o mundo por causa de alguns? É justo que 150 pessoas tenham apanhado
feio por causa de um, como aconteceu no Depatri e eu narro no livro? O que a
gente vê é que o perfil do preso é da faixa etária de 23 anos, jogados lá sem
esperança e perspectiva nenhuma.
Como foi adequar-se à lei da prisão?
H.R. - Tem que ter um senso de percepção muito agudo. A lei dos presos é mais
rígida do que a daqui de fora. Tem que saber proceder. Se não respeitar, morre.
Vi 40 mortos lá dentro. Mas, em geral, mesmo em celas com 50 presos há
limpeza e não há desavenças. Eu encontrei muita solidariedade. E muito respeito
por ter dado aulas de Português e Matemática para eles.
Um dos verdadeiros "infernos" que o senhor relata no livro foi uma insistente e
grave gastrite enquanto esteve na cadeia. E agora, o estômago melhorou?
H.R. - Agora está legal. Estou fumando, tomando caipirinha, comendo feijoada e
o estômago não reclama. Era tudo psicológico.
Publicação autorizada pela assessoria de imprensa da editora.
Fontes:
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