FSS
Revista
da ADPPUCRS
Porto Alegre, nº. 5, p. 71-76, dez. 2004
Rede de atendimento para moradores em situação de rua
*
GLENY TEREZINHA DURO GUIMARÃES
RESUMO: Esta pesquisa utilizou como fonte de informação o banco de dados que
possui um cadastro de 2500 entidades1. Destas, constatou-se que 522 realizavam de
fato serviços gratuitos, constantes e sem fins lucrativos para a comunidade gaúcha.
Várias dessas entidades atendiam a um público específico: crianças e adolescentes,
idosos, pessoa portadora de deficiência, comunidade em geral.
Surge a questão: mas qual destas entidades presta assistência às pessoas em situação
de rua? Para responder a esta questão, desenvolvemos esta pesquisa durante o período de 2001-2002, objetivando caracterizar o tipo de serviço existente a essa parcela da população, que já se encontra numa situação de exclusão social.
A pesquisa demonstra que praticamente inexiste atendimento específico para essa
parcela da população.
*1
Todos os dias podemos ver “pedintes” nas ruas, geralmente nas sinaleiras, ou
podemos vê-los também batendo na porta
das residências, instituições, estabelecimentos comerciais, etc. Mas será que todos esses “pedintes” são pessoas que moram nas ruas? Afinal, quem é e o que caracteriza o morador de rua ?
*
Prof. Dra. da Faculdade de Serviço Social da PUCRS
Os resultados da pesquisa anterior foram publicados no livro
“Entidades Assistenciais: redes de serviço para a constituição de
uma Política de Assistência Social”, pela EDIPUCRS, 2002,
autora Gleny Guimarães.
1
É aquele segmento da população que vive em uma
situação de extrema pobreza e que, por contingência temporária ou de forma permanente, está habitando logradouros públicos de Porto Alegre, como praças, jardins, casas abandonadas, embaixo
de pontes ou viadutos, ”mocós”, entre outros locais
(BARBOSA, 1998:48).
Podemos dizer que o sujeito que vive
nas ruas encontra-se numa situação extrema de exclusão social, desprovido de qualquer necessidade básica, bem como lhe é
negado usufruir qualquer direito enquanto
cidadão. Portanto, analisar a questão social
que envolve os moradores de rua é analisar
o contexto sociopolítico da sociedade, enquanto manifestações determinantes do
processo de exclusão social.
Mas uma pergunta se levanta: a quem
os moradores de rua recorrem para satisfazer suas necessidades básicas? Será que usam as entidades assistenciais como recurso?
Os dados da pesquisa indicam que
50% das entidades assistenciais já receberam algum morador de rua e as outras 50%
nunca foram procuradas por eles.
Nas 50% das entidades que foram
procuradas por vários e diversos moradores
de rua, 39,42%, em pouquíssimas situações
acontece de ser o mesmo morador com
6,73% ou apenas um, com 3,85%.
Isso pode ser um indicador de que
uma rede informal de informações circula
entre os moradores, dessa forma, aonde um
vai e consegue um serviço, vai indicando
para o outro e estes passam a procurar o
mesmo recurso. Isso pode ser um indicador
da existência de uma rede de solidariedade
entre eles
Ao mesmo tempo é interessante observar que os dados indicam uma forte
rotatividade entre os moradores de rua. E
fica a pergunta: por que a maioria não retorna para a mesma entidade? Será que sua
condição de estar na rua é provisória, ou
suas constantes andanças o levam para lugares mais distantes?
É interessante observar que a população de rua
não menciona pedir comida em residências como
uma alternativa de alimentação (VIEIRA,
1992:107).
Se a maioria não solicita alimentação
nas residências, significa que a solicitam
para as entidades assistenciais ou estabelecimentos comerciais. O fato de a residência
não ser tão procurada pode ser um sinalizador de que a maioria não os atende.
Das entidades que são procuradas pelos moradores de rua, 23,08% as buscam
todos os dias. Deduz-se que eles, não possuindo outra alternativa de sobrevivência, vão
em busca das entidades que prestam apenas
uma assistência momentânea, em algumas
situações eles retornam diariamente, para
satisfação de suas necessidades imediatas.
A população de rua conhece e informa dias e horários de distribuição em cada ponto bem como a
qualidade e tipo de refeição servida, podendo as
pessoas, se quiserem, agendar-se de segunda a domingo (VIEIRA, 1992:107).
Viver na rua é viver uma condição de
imediatismo, pois a preocupação é obter o
recurso naquele momento, pois o amanhã
será buscado no amanhã. Sua situação
também não lhe permite estocar alimentos,
pois não possui infra-estrutura para tal.
Portanto, sua vida cotidiana é marcada pelo
imediatismo ao resolver as situações de vida
de acordo com o que vai lhe aparecendo.
Das entidades analisadas, 44,23%
não possuem critérios para atender os moradores de rua. Isso só confirma a análise
anterior, pois, prestando uma assistência
momentânea, as entidades não precisam
estabelecer critérios. Apenas 5,77% possuem algum tipo de critério, dentro desse
percentual estão as que prestam atendimento específico ao morador de rua. Mas
como a entidade identifica o morador de
rua? Segundo Rosa (1994), existem três
tipos de moradores de rua, que são assim
classificados:
! aqueles que ficam na rua,
eventualmente. Neste grupo estão tanto
migrantes pobres quanto aqueles que estão temporariamente sem trabalho e por
esse motivo não conseguem bancar um
domicílio fixo. Lançam mão dos albergues, pensões e plantões sociais, pois não
se identificam como moradores de rua.
Geralmente alocam sua força de traba-
lho à construção civil e aos trabalhos de
vigilância e conservação;
! aqueles que estão na rua alternadamente. Estar nessa situação significa já se permitir dormir na rua, alternando com pensões – quando conseguem algum tipo de trabalho - e albergues. Nessa fase, começam a freqüentar
locais de alimentação gratuita e instituições assistenciais e a estabelecer relações
com as demais pessoas da rua sem, contudo, se identificar com elas. Ainda buscam emprego, mas geralmente conseguem
trabalhos informais;
! aqueles que são da rua, ou
que elegem a rua como espaço, não só de
moradia, mas também como “(...) espaço
de relações pessoais, de trabalho, de obtenção de recursos de toda a sorte” Segundo a pesquisa, nessa etapa são visíveis os efeitos depauperadores (físico e
mental) da vida na rua, tanto por conta
das más condições de alimentação e higiene quanto pelo constante uso de álcool
(ROSA, apud SILVEIRA, 2002:4849).
Se a maioria das entidades não possui
critérios para atendê-los, possibilita o atendimento de qualquer tipo de morador de
rua: seja aquele que eventualmente está na
rua, ou aqueles que alternadamente se encontram na situação de estar na rua ou
ainda aqueles moradores fixos, que transformam o espaço público em espaço privado.
A maioria das entidades, 44,3%, não
possui critérios, também porque não oferece um serviço específico ao morador. Geralmente lhe é oferecida alguma doação,
informação essa que sempre é socializada
entre os próprios moradores de rua.
Observa-se que as entidades que possuem algum critério são as que oferecem
algum tipo de atendimento específico, por
exemplo, o principal critério utilizado nos
abrigos e albergues é a não-disponibilidade
ao atendimento em casos de teor alcoólico
e suspeita de uso de drogas.
Para doar alguma coisa, não é exigido
nada, o ato de ajudar o outro se concretiza
no ato da doação seja de um alimento, remédio ou roupa. Porém esta ação se caracteriza pelo assistencialismo, ato esse que só
perpetua a condição de exclusão social.
Numa perspectiva de inclusão social,
é necessário muito mais do que doar, é
preciso um trabalho efetivo para atender às
necessidades de um cidadão, enquanto
sujeito dessa sociedade.
As entidades percebem empiricamente que a maior procura pelas entidades é de
ambos os sexos com 26%, em seguida vem
do sexo masculino com 21%.O primeiro
dado nos indica que tanto o sexo masculino quanto o feminino estão na condição
de morador de rua. Isso significa que houve
um crescimento do sexo feminino nas ruas,
quando historicamente era uma situação
predominante do sexo masculino. Mas,
comparando os dois sexos, a predominância ainda é masculina.
Independentemente do sexo, um dos
fatores fundamentais de sobrevivência nas
ruas são os agrupamentos, isto é, viver em
um grupo, que passa a ser a referência de
convívio.
O agrupamento torna-se, nesses casos, estratégias
de sobrevivência, entendida enquanto proteção e
segurança, não sendo fundamental com quem se
agrupar e sim o ato de agrupar-se. Além disso, nos
grupos a pessoa recupera, até certo ponto, sua identidade pessoal e social; ela é aceita na condição de igual, enquanto que, por outros segmentos
sociais, é discriminada e inferiorizada (VIEIRA,
1992: 58) .
A faixa etária que mais procura atendimento é dos 30 aos 40 anos com 17%,
seguida pela faixa dos 19 aos 29 anos com
13%. Esses dados estão diretamente relacionados à faixa produtiva, ou seja, idade
em que o cidadão se insere no mercado de
trabalho. Esse é um dos indicadores da
exclusão do mundo do trabalho formal e
do desemprego.
Verifica-se também que a faixa de idade superior a 40 anos não procura as
entidades, porque a expectativa de vida
desses moradores tende a ser inferior à
média da população, se compararmos as
condições de vida que leva o morador de
rua, marcadas pela violência, falta de saúde,
falta de alimentação adequada, etc. Podemos analisar dois fatores para o ápice da
faixa etária ser entre os 19 e 40 anos: em
termos quantitativos, existem mais programas e leis que visam ao atendimento e à
recuperação da cidadania de crianças e adolescentes; e o outro fator é a baixa expectativa de vida desses sujeitos.
Os moradores de rua que procuram
as entidades em sua maioria são pessoas
adultas, o que lhes dá uma condição de
autonomia e liberdade, condição essa mais
difícil de se obter enquanto criança, adolescente ou idoso.
A rua, portanto, se torna o espaço
apropriado para moradia, para desenvolver
o trabalho informal, enfim para criar várias
estratégias de sobrevivência.
Quando a entidade é questionada
sobre o que faz com o morador de rua, nas
situações em que é procurada, ou em situações em que fosse procurada, o que faria:
27% o encaminharia para outro órgão,
51% o auxiliaria momentaneamente, 11%
não o atenderia em hipótese nenhuma e
9% não saberia o que fazer com esse morador de rua.
Fica evidente que essas entidades não
estão preparadas para lidar com esse contingente da população, embora as estatísticas demonstrem um aumento dessa situação em função do desemprego, da falta de
condições de moradia, etc.; as entidades
também possuem uma certa tendência às
especializações, ou seja, estão preparadas
para um tipo de população, atendendo
mais a crianças e adolescentes, idosos ou
pessoas portadoras de necessidades especiais.
Se a entidade não está preparada para
o atendimento ao morador de rua, geralmente sua atitude é de auxiliar momentaneamente no que for solicitado, seja um
prato de comida, uma roupa, etc.
A grande questão é que as entidades
também não sabem o que fazer com o morador de rua. Apenas 2% das entidades
prestam atendimento específico aos moradores de rua, um número alarmante comparado à quantidade da demanda e ao número de entidades assistenciais existentes.
Cabe ressaltar o trabalho que vem
desenvolvendo uma dessas entidades, pois,
através da assessoria de um grupo de profissionais, desenvolve junto a um grupo de
moradores de rua a publicação do jornal
“Boca de Rua”. Os moradores se responsabilizam pelas fotos, produção de textos, da
venda dos exemplares, cuja receita é revertida para os próprios moradores de rua.
Essa iniciativa valoriza os valores, a
vida, as experiências e os saberes de cada
morador de rua, proporciona um auxílio ao
seu sustento, valoriza sua criatividade e
ensina um ofício.
• Os tipos de atendimento oferecidos aos moradores de rua, conforme
foi explicitado pelas entidades, podiam ser vários, por exemplo, oferecer
moradia e tratamento médico ou cursos educativos, bem como oportunizar grupos de convivência.
O que podemos constar é que os oferecimentos de serviços ligados à área de
saúde, educação ainda são muito pequenos,
considerando a necessidade da demanda.
Sabe-se que essa é uma questão muito
séria, pois as condições de vida propiciam a
dependência química em função de múltiplos fatores: o álcool (pinga) é barato, mata
a fome, tira o frio, ajuda a esquecer pro-
blemas, enfrentar a solidão, esses efeitos
também são alcançados pelas drogas mais
baratas usadas como o loló ou a cola de
sapateiro, o crack e o pico (drogas injetáveis).
A família é importante, pois sabe-se
que, por mais frágeis e independentes das
razões que motivaram a saída de casa, um
novo contato ou vínculo se torna significativo, pois não é um fato indiferente ou
esquecido de suas vidas.
... o que se percebe é que mesmo estando em situação de rua e com a relação familiar comprometida, estas pessoas não rompem os laços afetivos,
por mais frágeis que estes pareçam ser. A experiência familiar anterior geralmente é forte e reforça
a vontade do retorno à família (MARTINS,
1998:135).
Para realizar o contato com os familiares, o maior recurso utilizado é através das
informações fornecidas pelo próprio morador de rua. Mas, quando o morador não
sabe onde se encontram seus familiares,
outros recursos são utilizados como buscar
o nome da família pela lista telefônica, ou
realizar uma visita ao último local de moradia do morador, ou conversar com os vizinhos para verificar se sabem para onde
aquela família se mudou, ou ainda procurar informações nos jornais, na seção de
desaparecidos.
Muitas dessas entidades que procuram a família do morador desenvolvem um
trabalho para restabelecer o vínculo familiar, quando essa é encontrada. No entanto,
na maioria dos casos em que a família é
encontrada, o morador permanece na instituição ou nas ruas. Pois, não podemos esquecer que um dos motivos que podem ter
levado esse sujeito a procurar a rua, podem
ter sido as relações familiares não resolvidas.
A relação familiar quase sempre se encontra comprometida. Quando uma pessoa decide viver o cotidiano de rua é por que geralmente houve satura-
ção no relacionamento familiar (MARTINS,
1998: 134).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão “pessoas em situação de
rua” não deve ser compreendida com um
fato isolado ou como conseqüência das
ações do sujeito, numa perspectiva de culpabilização de sua situação. Pelo contrário,
é uma das facetas da questão social que
deve ser analisada a partir de múltiplos
fatores e da complexidade gerada pelo próprio sistema que, para se sustentar, vive de
suas mazelas e desigualdades sociais.
Analisar a rua é também aprender
uma riqueza infinita de relações sociais
desencadeadas no nível local, nacional e
internacional, ou seja, as constantes transformações societárias.
Esta pesquisa nos aponta para um série de indicadores:
• praticamente inexistem entidades
assistenciais que desenvolvem um
trabalho específico de atendimento
aos moradores de rua;
• a necessidade da existência de
uma política pública de inclusão dos
moradores de rua;
• um subsídio para que um número maior de entidades assistenciais
possa disponibilizar serviços de qualidade ao morador de rua;
• a necessidade de contratação de
um maior número de profissionais
das áreas humanas e da saúde para
desenvolver um trabalho em conjunto com essas entidades assistenciais;
• ampliar a oferta de serviços na área psicológica, educativa, artística,
grupos de convivência, social, tratamento médico, moradia, alimentação;
• criação de uma rede de atendimento ao morador de rua, mas que
esta rede não seja com bases cliente-
listas e assistencialistas e sim que
promova a condição de cidadão desse
morador de rua, a partir do desenvolvimento de projetos de trabalho.
Esses trabalhos podem ser assessorias
às iniciativas dos moradores de rua,
assessorias na formação de cooperativas, fortalecimento da Associação dos
Moradores de Rua.
É importante ressaltar que o fato de
praticamente inexistirem serviços para moradores de rua não quer dizer que agora a
solução para essa questão seja aumentar o
número de entidades oferecendo serviços
ou institucionalizar esses sujeitos.
Isso significa ampliar o debate em
torno da inexistência de políticas públicas
para essa parcela da população, pois as implicações sociais são mais complexas e ao
mesmo tempo é necessário dar voz e vez aos
sujeitos da rua.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, E.M. Pobreza Urbana. Porto Alegre,
FEE, 1998.
MARTINS, C.H.B., MAMMARELLA, R. Espacialização da exclusão social urbana. Porto Alegre : FEE,
1997.
VIEIRA, M.A. (org) et al, População de Rua: quem é,
como vive, como é vista, ed. Hucitec, São Paulo,
1992.
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