UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO OLGA CORBO UM ESTUDO SOBRE OS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO PROFESSOR DE MATEMÁTICA PARA A EXPLORAÇÃO DE NOÇÕES CONCERNENTES AOS NÚMEROS IRRACIONAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA SÃO PAULO 2012 OLGA CORBO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA UM ESTUDO SOBRE OS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO PROFESSOR DE MATEMÁTICA PARA A EXPLORAÇÃO DE NOÇÕES CONCERNENTES AOS NÚMEROS IRRACIONAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA Tese apresentada ao Curso de PósGraduação em Educação Matemática, Linha de Pesquisa “Formação de Professores”, UNIBAN, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação Matemática. SÃO PAULO 2012 O Corbo, Olga Um estudo sobre os conhecimentos necessários ao professor de Matemática para a exploração de noções concernentes aos números irracionais na Educação Básica / Olga Corbo. -- São Paulo: [s.n.], 2012. 289 f. : il. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Bandeirante de São Paulo, Curso de Pós-Graduação em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Ruy César Pietropaolo 1. Educação Matemática 2. Números Racionais 3. Números Irracionais 4. Formação de Professores de Matemática 5. Conhecimento matemático para o Ensino. I. Título. Olga Corbo UM ESTUDO SOBRE OS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO PROFESSOR DE MATEMÁTICA PARA A EXPLORAÇÃO DE NOÇÕES CONCERNENTES AOS NÚMEROS IRRACIONAIS NA EDUCAÇÃO BÁSICA TESE APRESENTADA À UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO COMO EXIGÊNCIA DO CURSO DE DOUTORADO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Banca Examinadora: Prof. Dr. Ruy César Pietropaolo UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO Profª. Drª. Iole de Freitas Druck UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Prof. Dr. Marcelo Câmara dos Santos UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Profª. Drª. Vera Helena Giusti de Souza UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO Profª. Drª. Maria Elisabette Brisola Brito Prado UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO São Paulo, ____ de _____________de_____ Dedico a: Mingo, Téia, Ruda, Miriam e Ruy AGRADECIMENTOS Quero dizer obrigada principalmente ao meu orientador, Professor Doutor Ruy César Pietropaolo, com quem partilhei cada etapa, cada detalhe desta pesquisa... porque me ensinou tanto, me ouviu, me corrigiu e acreditou em mim, muito mais do que eu mesma... eu nunca vou esquecer... Às Professoras Doutoras Iole de Freitas Druck e Vera Helena Giusti de Souza, pela delicadeza em aceitar participar da Banca Examinadora e, igualmente, pela atenção que dispensaram ao meu trabalho, sobretudo no que se refere ao objeto matemático. As sugestões e as considerações que nos fizeram foram preciosas. Não sei como agradecer! Ao Professor Doutor Marcelo Câmara dos Santos, porque, da mesma forma, atenciosamente se dispôs a avaliar esta pesquisa e contribuiu para que eu refletisse a respeito de outros aspectos que ainda não haviam sido considerados. Muito obrigada! À Professora Doutora Tânia Maria Mendonça Campos, cujas contribuições são sempre valiosas! Quero expressar também a minha gratidão à Professora Doutora Maria Elisabette Brisola Brito Prado, que destacou pontos relevantes para a nossa reflexão... Preciosa também foi a presença de Angélica, Nielce, Marcelo Kruppa, Rosana Magni, Paulo e Rodrigo, durante o nosso experimento... eu agradeço muito... Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNIBAN, agradeço pelo conhecimento que me ajudaram a construir. Aos funcionários da UNIBAN, sempre tão atenciosos... Sou grata, também aos meus amigos – todos! Pelo carinho, incentivo e apoio... vou sentir falta disso... Agradeço muito, aos professores participantes do Observatório da Educação, que me acolheram no grupo, gentilmente aceitaram participar de nosso estudo e me ensinaram... À Ruda, minha irmã... companheira de viagem... Muito obrigada... RESUMO Esta pesquisa teve o propósito de investigar os conhecimentos necessários ao professor de Matemática, para ensinar números irracionais na Educação Básica. Trata-se de estudo que envolveu um grupo formado por 23 professores dos Ensinos Fundamental e Médio, da rede pública do Estado de São Paulo, em um curso de formação continuada desenvolvido no âmbito do Observatório da Educação da CAPES/UNIBAN. A primeira fase da coleta de dados constituiu-se da aplicação de um instrumento diagnóstico. A segunda fase, que denominamos Intervenção, foi realizada segundo princípios da metodologia Design Experiments e teve o objetivo de investigar se uma sequência de atividades que explore a percepção de que os pontos de coordenadas racionais não esgotam toda a reta numérica poderia favorecer a ampliação e/ou reconstrução do conhecimento dos professores, relativo aos números irracionais. Além disso, teve a finalidade de promover reflexões sobre o processo de ensino e de aprendizagem dos números irracionais na Educação Básica. Na terceira e última fase da coleta, o grupo de professores procedeu à análise de orientações pedagógicas constantes do Currículo do Estado de São Paulo (2010), a respeito da abordagem desse conteúdo, no Ensino Fundamental, tendo em vista o fato de que os professores estavam incumbidos da implementação dessas inovações em sala de aula. Cabe ressaltar que, além de uma análise das pesquisas existentes sobre esse tema, desenvolvidas com alunos e professores, foram examinados também documentos recentes de referência curricular e propostas apresentadas em livros didáticos, para a abordagem dos irracionais. Em relação à fundamentação teórica, no que diz respeito à apreensão de um conteúdo, utilizou-se a noção de imagem conceitual, segundo Tall & Vinner (1981) e também as ideias defendidas por Fischbein (1994) sobre a importância de integrar os componentes formais, intuitivos e algorítmicos, na atividade matemática. Relativamente aos conhecimentos que devem ser de domínio do professor, foram consideradas as categorias estabelecidas por Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008), tais como: conhecimento do conteúdo comum/especializado, conhecimento do conteúdo e do estudante, conhecimento do conteúdo e do ensino e conhecimento curricular. Finalmente, no que se refere à formação de professores reflexivos, em um ambiente de estudo de inovações curriculares, foram utilizadas as ideias defendidas por Zeichner (1993). As respostas dos professores ao instrumento diagnóstico revelaram concepções inconsistentes sobre os números racionais e, consequentemente, sobre os irracionais, constituindo-se em ponto de partida para o processo de formação, ao longo da segunda fase. As discussões e reflexões propostas durante essa fase ampliaram a imagem conceitual dos professores, relativa aos números racionais e irracionais, bem como ao seu ensino, sobretudo no que concerne à importância do componente formal, no desenvolvimento de noções relativas a esse conteúdo. Palavras-chave: Educação Matemática; Números Racionais; Números Irracionais; Formação de Professores de Matemática; Conhecimento Matemático para o Ensino. ABSTRACT This work aimed to investigate the knowledge required for mathematics teachers to be able to teach irrational numbers at elementary levels. This study involved a group of twenty three teachers of elementary and high school levels in the public schools of the state of São Paulo. They were attending a continued education program developed by Observatório da Educação at CAPES/UNIBAN institution. The first phase of data collection consisted of applying a diagnostic tool. The second phase, which we named Intervention, was performed according to Design Experiments methodological principles and had as its aim to investigate whether the use of a sequence of activities exploring the perception that the points at rational coordinates cannot account for the totality of a line could broaden and/or rebuild the teachers’ knowledge about irrational numbers. Besides this, it had the purpose of promoting reflections about the teaching-learning process of irrational numbers at elementary levels. In the third and last phase of data collection, the group of teachers performed the analysis of pedagogical guidelines included in the syllabus of the state of São Paulo (2010), specifically with regard to irrational numbers content for elementary levels, having in mind that this group was in charge of implementing the suggested innovations in their classes. It is important to notice that, besides analyzing the existing researches about this theme with teachers and students, we also examined recent syllabus references and proposals to approach irrational number presented in textbooks. The theory foundation chosen for content retention was the conceptual image notion as developed by Tall & Vinner (1981) and also by the ideas presented by Fischbein (1994) about the importance of integrating formal, intuitive and algorithmic components in mathematical teaching. Regarding the knowledge that teachers should master, we chose the knowledge categories proposed by Shulman (1986, 1987) and Ball et al (2008) such as: knowledge of ordinary/specialized content, knowledge of content and of student; knowledge of content and of teaching; and, knowledge of syllabus. Finally, regarding the development of reflective teachers in an environment of syllabus innovation, we used the ideas proposed by Zeichner (1993). The teachers’ responses to the diagnostic tool revealed inconsistencies in the conceptions about rational numbers and, hence, about irrationals, establishing the starting point for the teachers’ development process throughout the second phase. The discussions and reflections presented during this phase broadened the teachers’ conceptual image regarding rational and irrational numbers, as well as their teaching practice, mainly with regard to the importance of the formal content for the development of notions related to this content. Key words: Mathematical Education; Rational Numbers; Irrational Numbers; Mathematics Teacher Development; Mathematical Knowledge for Teaching. RESUMEN Este estudio tuvo como propósito investigar los conocimientos que son necesarios para que el profesor de Matemáticas enseñe números irracionales en la Educación Básica. Se trata de un estudio que involucró a un grupo formado por 23 profesores de los ciclos de Enseñanza Primaria y Secundaria, de la red pública del Estado de São Paulo, en un curso de formación continuada desarrollado en el ámbito del Observatorio de la Educación de CAPES/UNIBAN. La primera fase de recopilación de datos consistió en la aplicación de un instrumento diagnóstico. La segunda fase, que denominamos de intervención, se realizó según los principios de la metodología Design Experiments y tuvo el objetivo de investigar si una secuencia de actividades que explore la percepción de que los puntos de coordenadas racionales no agotan toda la recta numérica podría favorecer la ampliación y/o reconstrucción del conocimiento de los profesores, relativo a los números irracionales. Además, tuvo la finalidad de promover reflexiones sobre el proceso de enseñanza y de aprendizaje de los números irracionales en la Educación Básica. En la tercera y última fase de recopilación, el grupo de profesores procedió al análisis de orientaciones pedagógicas constantes del currículos del Estado de São Paulo (2010), a respecto del abordaje de ese contenido, en la Enseñanza Primaria, teniendo en cuenta el hecho de que los profesores estaban incumbidos de la implementación de esas innovaciones en el aula. Cabe destacar que, además de un análisis de las investigaciones existentes sobre ese tema, desarrolladas con alumnos y profesores, se examinaron también documentos recientes de referencia curricular y propuestas presentadas en libros didácticos, para el enfoque de los irracionales. Con relación a la fundamentación teórica, en lo que se refiere a la retención de un contenido, se utilizó la noción de imagen conceptual, según Tall & Vinner (1981) y también las ideas defendidas por Fischbein (1994) sobre la importancia de integrar los componentes formales, intuitivos y algorítmicos, en la actividad matemática. Con respecto a los conocimientos que deben ser de dominio del profesor, se consideraron las categorías de conocimientos establecidas por Shulman (1986, 1987) y Ball et al (2008), tales como: conocimiento del contenido común/especializado, conocimiento del contenido y del estudiante, conocimiento del contenido y de la enseñanza y conocimiento curricular. Finalmente, en lo que se refiere a la formación de profesores reflexivos, en un ambiente de estudio de innovaciones curriculares, se utilizaron las ideas defendidas por Zeichner (1993). Las respuestas de los profesores al instrumento diagnóstico revelaron concepciones inconsistentes sobre los números racionales y, por consiguiente, sobre los irracionales, constituyéndose en el punto de partida para el proceso de formación, a lo largo de la segunda fase. Los debates y reflexiones propuestos durante esa fase ampliaron la imagen conceptual de los profesores, a respecto de los números racionales e irracionales, así como su enseñanza, sobre todo en lo concerniente a la importancia del componente formal, en el desarrollo de nociones relativas a ese contenido. Palabras claves: Educación Matemática; Números Racionales; Números Irracionales; Formación de Profesores de Matemática; Conocimiento Matemático para la Enseñanza. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 10 Figura 11 Figura 12 - Figura 13 Figura 14 - Figura 15 Figura 16 Figura 17 Figura 18 Figura 19 Figura 20 Figura 21 Figura 22 - Figura 23 - Figura 24 - Figura 25 Figura 26 Figura 27 Figura 28 Figura 29 Figura 30 Figura 31 Figura 32 Figura 33 Figura 34 Figura 35 Figura 36 Figura 37 Figura 38 Figura 39 Figura 40 Figura 41 Figura 42 Figura 43 Figura 44 Figura 45 Figura 46 Figura 47 Figura 48 Figura 49 Figura 50 Figura 51 Figura 52 - Correspondência entre categorias do conhecimento do conteúdo estabelecidas por Shulman (1986) e Ball et al (2008)............................ Introdução do conceito de número irracional.......................................... Localização de números reais sobre a reta............................................. Abordagem geométrica dos números irracionais.................................... Atividade sobre a identificação de números irracionais.......................... Representação gráfica de números racionais e irracionais.................... Abordagem experimental do Teorema de Tales..................................... Representação do número ¾ - significado de parte/todo (a).................. Representação do número ¾ - significado de parte/todo (b).................. Representação do número ¾ - significado de parte/todo (c).................. Representação do número 3/8 – significado de razão............................ Figura auxiliar na discussão do aspecto intuitivo da igualdade 0,9999... = 1............................................................................................ Representação gráfica da média aritmética de números racionais........ Construção geométrica de segmentos de medida irracional. Espiral de Teodoro de Cirene.................................................................................. Construção de segmento de medida irracional....................................... Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (a)........... Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (b)........... Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (c)........... Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (d)........... Auxiliar na demonstração da incomensurabilidade de segmentos (a).... Auxiliar na demonstração da incomensurabilidade de segmentos (b).... Auxiliar na abordagem da correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta (a)..................................................... Auxiliar na abordagem da correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta (b)..................................................... Auxiliar na abordagem da correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta (c)..................................................... Representação auxiliar na prova da enumerabilidade de Q................... Questão 1. Protocolo Prof. (C)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (U)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (G)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (B)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (H)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (O)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (R)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (S)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (V)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (J)................................................................. Questão 1. Protocolo Prof. (K)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (N)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (Q)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (I).................................................................. Questão 1. Protocolo Prof. (A)................................................................ Questão 1. Protocolo Prof. (M)................................................................ Questão 2. Protocolo Prof. (M)................................................................ Questão 2. Protocolo Prof. (I).................................................................. Questão 2. Protocolo Prof. (B)................................................................ Questão 2. Protocolo Prof. (E)................................................................ Questão 2. Protocolo Prof. (P)................................................................ Questão 4. Protocolo Prof. (I).................................................................. Questão 5. Protocolo Prof. (P)................................................................ Questão 8. Protocolo Prof. (O)................................................................ Questão 9(A). Afirmação (a). Protocolo Prof. (E).................................... Questão 9(A). Afirmações (a), (b), (c). Protocolo Prof. (I)....................... Questão 9(A). Afirmações (d), (e). Protocolo Prof. (H)............................ 46 80 82 84 85 86 88 94 94 95 96 100 108 112 113 127 127 127 127 129 131 133 133 133 137 147 147 148 149 149 150 150 151 151 151 152 152 153 154 154 155 157 157 158 158 160 167 170 179 181 181 182 Figura 53 Figura 54 Figura 55 Figura 56 Figura 57 Figura 58 Figura 59 Figura 60 Figura 61 Figura 62 Figura 63 Figura 64 Figura 65 Figura 66 Figura 67 Figura 68 Figura 69 Figura 70 - Figura 71 - Figura 72 - Figura 73 - Figura 74 - Figura 75 - Figura 76 - Figura 77 - Questão 9(A). Afirmações (c), (d), (e), (f). Protocolo Prof. (E)................ Questão 9(A). Afirmações (c), (d), (e), (f). Protocolo Prof. (L)................. Questão 9(B). Protocolo Prof. (Q)........................................................... Questão 9(B). Protocolo Prof. (O)........................................................... Questão 9(B). Protocolo Prof. (E)............................................................ Questão 9(B). Protocolo Prof. (A)............................................................ Questão 9(B). Protocolo Prof. (I)............................................................. Questão 9(B). Protocolo Prof. (C)........................................................... Questão 10. Protocolo Prof. (E).............................................................. Questão 10. Protocolo Prof. (Q).............................................................. Questão 5. Protocolo Prof. (U)................................................................ Atividade 1. Protocolo Prof. (A)............................................................... Atividade 2. Protocolo Prof. (C)............................................................... Atividade 5. Protocolo Prof. (M)............................................................... Atividade 5. Protocolo Prof. (O)............................................................... Atividade 5. Protocolo Prof. (T)............................................................... Atividade 5. Protocolo Prof. (V)............................................................... Atividade sobre incomensurabilidade de segmentos de reta (após nossa intervenção) Protocolo Prof. (E).................................................... Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (W).................................................................................. Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (U)................................................................................... Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (M).................................................................................. Prova da irracionalidade de (após nossa intervenção). Protocolo Prof. (M)................................................................................................... Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (E)................................................................................... Prova da irracionalidade de (após nossa intervenção). Protocolo Prof. (E)................................................................................................... Auxiliar na prova da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer............................................................................ 183 184 186 186 186 187 188 188 190 192 194 206 212 219 220 220 221 222 224 225 226 227 228 229 230 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Quadro 2 Quadro 3 Quadro 4 Quadro 5 Quadro 6 Quadro 7 Quadro 8 Quadro 9 Quadro 10 Quadro 11 Quadro 12 Quadro 13 Quadro 14 Quadro 15 Quadro 16 Quadro 17 Quadro 18 Quadro 19 Quadro 20 Quadro 21 - Aplicação do algoritmo de Euclides para a obtenção de frações contínuas..................................................................................... - Etapas para a obtenção de aproximações decimais de ........ - Correspondência biunívoca entre Z e N (a)................................ - Correspondência biunívoca entre Z e N (b)................................ - Síntese das respostas dos professores ao item 1 do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 2 do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 3 do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 4 do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 5 do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 6(A) do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 6(B) do instrumento diagnóstico.............................................................. - Síntese das respostas dos professores ao item 8 do instrumento diagnóstico.............................................................. - Retomada da definição de número racional. Intervenção (Fase 2)....................................................................................... - A influência do divisor na determinação da representação decimal dos números racionais. Intervenção (Fase 2)............... - A inserção de números entre dois racionais dados. Intervenção (Fase 2)....................................................................................... - Fragmento de diálogo sobre a Atividade 4 (g). Intervenção (Fase 2)....................................................................................... - Discussão sobre a prova da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer. Intervenção (Fase 2) - Comparação entre protocolos Prof. (U)...................................... - Comparação entre protocolos Prof. (P)...................................... - Fragmento de diálogo sobre dificuldades enfrentadas por alunos, para compreender o conceito de densidade de Q........ - Rol de conteúdos construído com o grupo, contendo itens considerados indispensáveis a um aluno do Ensino Fundamental.............................................................................. 105 116 135 136 156 161 164 168 171 174 175 179 207 208 215 216 230 239 240 244 247 LISTA DE SIGLAS CNE/CEB - Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica CNE/CES - Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno EF - Ensino Fundamental EHPO - Estudo Histórico Pedagógico Operacionalizado EM - Ensino Médio ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC - Ministério de Educação OCEM - Orientações Curriculares para o Ensino Médio PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais PCNEM - Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação PNLD - Programa Nacional do Livro Didático SBM - Sociedade Brasileira de Matemática SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................... CAPÍTULO 1 A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE NÚMERO IRRACIONAL UM OLHAR SOBRE PESQUISAS ANTERIORES.................................... 1.1. Investigações sobre o ensino de números irracionais....................... 1.2. Investigações relativas à formação de professores............................ CAPÍTULO 2 NÚMEROS IRRACIONAIS ORIENTAÇÕES CURRICULARES E ABORDAGENS DE LIVROS DIDÁTICOS............................................................................................... 2.1. Orientações curriculares para o ensino de números irracionais na Educação Básica....................................................................................... 2.1.1. Os números irracionais no Ensino Fundamental............................. 2.1.2. Os números irracionais no Ensino Médio........................................ 2.2. Currículo do Estado de São Paulo...................................................... 2.2.1. Cadernos do 9º ano do Ensino Fundamental.................................. 2.2.2. Cadernos do Ensino Médio.............................................................. 2.3. Números Irracionais: uma síntese da análise de orientações curriculares................................................................................................. 2.4. Diretrizes para Cursos de Licenciatura em Matemática..................... 2.5. A abordagem do conceito de número irracional apresentada em Livros Didáticos......................................................................................... 2.5.1. Resultados da análise da coleção: TUDO É MATEMÁTICA........... 2.5.2. Resultados da análise da coleção: A CONQUISTA DA MATEMÁTICA-Edição Renovada.............................................................. 2.6. Números irracionais: uma síntese da análise de Livros Didáticos CAPÍTULO 3 UMA INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DOS NÚMEROS IRRACIONAIS SOB A PERSPECTIVA DE FISCHBEIN.................................................... 3.1. Sobre os números racionais............................................................... 3.1.1. Definição e significados................................................................... 3.1.2. Representações............................................................................... 3.1.3. Localização de números racionais na reta numérica....................... 3.1.4. A densidade do conjunto dos números racionais............................ 3.2. Sobre os números irracionais............................................................. 3.2.1. Definições e representações........................................................... 3.2.2. O tratamento formal no estudo dos números irracionais................. 3.2.3. Sobre o uso da calculadora como recurso para a abordagem dos números irracionais................................................................................... 3.2.4. Sobre as operações com números racionais e irracionais.............. 3.2.5. Números algébricos e números transcendentes............................. 3.3. Sobre a incomensurabilidade de segmentos de reta.......................... 3.4. A correspondência biunívoca entre os pontos da reta e o conjunto dos números reais..................................................................................... 3.5. A enumerabilidade do conjunto dos números racionais e a não enumerabilidade do conjunto dos irracionais............................................ 3.6. Uma medida para o conjunto dos números racionais......................... CAPÍTULO 4 UM OLHAR SOBRE OS DADOS DE NOSSA INVESTIGAÇÃO DIAGNÓSTICA. FASE 1............................................................................ 4.1. Caracterização dos sujeitos de nossa pesquisa................................. 4.2. O primeiro instrumento de coleta de dados........................................ 4.3. Fundamentação teórica para a análise dos dados da primeira fase.. 4.4. Uma análise dos conhecimentos dos professores sobre o processo de ensino e aprendizagem do conceito de número irracional na Educação Básica....................................................................................... 4.4.1. Sobre o conhecimento dos professores a respeito dos conjuntos numéricos.................................................................................................. 4.4.2. Sobre o conhecimento dos professores a respeito do processo de ensino dos números irracionais................................................................. 4.4.3. Sobre o conhecimento dos professores a respeito da aprendizagem dos números irracionais..................................................... 14 22 23 42 51 52 52 58 64 67 71 73 74 78 79 84 89 91 93 93 97 105 106 109 109 117 120 121 125 127 132 134 140 143 143 144 145 145 146 156 161 4.4.4. Sobre a relevância atribuída pelos professores ao ensino dos números irracionais, no Ensino Fundamental............................................ 4.4.5. Sobre o conhecimento dos professores a respeito de uma abordagem geométrica para o ensino dos números irracionais................ 4.4.6. Sobre o conhecimento dos professores a respeito das orientações curriculares para a introdução do conceito de número irracional..................................................................................................... 4.4.7. Sobre o conhecimento dos professores a respeito da incomensurabilidade de grandezas e seu ensino...................................... 4.4.8. Sobre o conhecimento dos professores a respeito da densidade do conjunto dos números racionais........................................................... 4.4.9. Análise realizada pelo grupo de professores, de respostas elaboradas por alunos, envolvendo a ideia de sucessor de um número... 4.4.10. Análise de afirmações sobre números racionais, realizada pelo grupo de professores................................................................................. 4.4.11. Sobre os conhecimentos dos professores a respeito da localização de números sobre a reta numérica......................................... CAPÍTULO 5 UM OLHAR SOBRE OS DADOS DE NOSSA INVESTIGAÇÃO INTERVENÇÃO FASE 2 ANÁLISE DE ORIENTAÇÕES CURRICULARES FASE 3........................ 5.1. Sobre os procedimentos metodológicos............................................. 5.2. Intervenção (Fase 2)........................................................................... 5.2.1. Definições e representações............................................................ 5.2.2. Densidade de Q............................................................................... 5.2.3. Abordagem geométrica dos números irracionais............................ 5.2.4. O tratamento formal no estudo dos números irracionais................. 5.2.5. Conhecimentos necessários sobre números irracionais.................. 5.3. Análise de orientações curriculares (Fase 3)...................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................... ANEXO 1 Instrumentos de coleta de dados .............................................................. ANEXO 2 Versão inicial dos instrumentos de coleta de dados.................................. ANEXO 3 A conceituação de número, segundo Conway (2001)............................... ANEXO 4 Orientações curriculares sobre a abordagem dos números irracionais ANEXO 5 Cronograma de realização da coleta de dados......................................... 165 168 172 176 177 179 189 193 198 199 203 204 212 216 223 232 241 250 263 271 281 284 289 311 14 INTRODUÇÃO Este estudo teve o propósito de investigar os conhecimentos necessários ao professor de Matemática, para explorar noções relativas ao conceito de número irracional na Educação Básica. Trata-se de investigação inserida na linha de pesquisa “Formação de Professores” do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO – UNIBAN, realizada no âmbito do Observatório da Educação – projeto financiado pela CAPES que constituiu um grupo de formação e pesquisas sob a proposta de contribuir para o desenvolvimento profissional de professores de Matemática dos Ensinos: Fundamental II 1 e Médio2 e também de promover a reflexão a respeito da implementação de inovações curriculares em suas práticas pedagógicas. Os professores participantes desse grupo de formação compuseram também o grupo de sujeitos de nosso estudo. Julgamos que esta pesquisa seja relevante, uma vez que a compreensão e apropriação do conceito de número irracional constitui etapa essencial para a ampliação da ideia de número, pois propicia – senão exige – a retomada e, de certa forma, em alguns casos, a reelaboração de noções concernentes ao número racional, como processo indispensável à construção do conceito de número real. Para o desenvolvimento deste estudo, tomamos como ponto de partida a ideia de que o desempenho do papel de mediador, entre o aluno e as noções relativas aos irracionais, requer do professor um repertório abrangente de conhecimentos, que permita fazer as adequações necessárias ao nível de compreensão dos alunos e favoreça articulações dessas noções com outros conteúdos já estudados. 1 Ensino Fundamental II: período entre o 6º e o 9º anos da Educação Básica, que atende alunos da faixa etária entre 11 e 14 anos. 2 Ensino Médio: etapa escolar correspondente aos três anos finais da Educação Básica, que atende alunos da faixa etária entre 15 e 17 anos. 15 A literatura que traz os registros da construção da Matemática, ao longo do tempo, mostra que é fato histórico a dificuldade em aceitar a existência de grandezas incomensuráveis e aceitar, da mesma forma, que o conjunto dos números racionais, conquanto seja denso em toda a reta, não cobre todos os pontos da reta. Os autores3 contam que a descoberta da existência de grandezas incomensuráveis foi perturbadora e desconcertante para os pitagóricos – contrariava o senso comum, pois intuitivamente acreditavam que a medida de qualquer grandeza poderia ser representada por algum número racional. Essa dificuldade de aceitação da existência de grandezas incomensuráveis, ou de grandezas análogas, que não admitem uma unidade de medida segundo a qual as medidas das mesmas possam ser expressas por números inteiros e a dificuldade de compreensão do número irracional foram obstáculos enfrentados durante séculos e são experimentados ainda hoje, nas aulas de Matemática. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais4 – PCN (BRASIL, 1998) uma das finalidades primordiais do ensino da Matemática consiste no desenvolvimento de habilidades que permitam a leitura, a interpretação e a compreensão do mundo, com vistas à sua transformação. (p. 47). Na perspectiva expressa nesse documento, o conhecimento sobre os números deve ser construído pelo aluno, não apenas como ferramenta para resolver determinados problemas, mas também como objeto de estudo em si mesmo, levando-se em conta suas propriedades, inter-relações e o modo como foram constituídos ao longo da História. (p.50). Esse é o desafio: como proporcionar, ou, como oferecer aos alunos a oportunidade do impasse que provoca a percepção da insuficiência dos números racionais para resolver certos problemas, havendo, pois, necessidade de alargar esses conhecimentos, pelo acréscimo de um novo conceito – neste caso, um novo tipo de número – o irracional? Dessa forma, justifica-se, igualmente, a escolha dos sujeitos de nossa pesquisa, uma vez que essa transposição difícil – mas indispensável –, essa “desconstrução” e reconstrução de noções relacionadas aos números racionais, que fará ampliar o olhar do aluno para a posterior compreensão do conjunto dos reais é 3 Ver, por exemplo, Ifrah (1998, p.329-332) e Costa (1971, p. 219-221). 4 Parâmetros Curriculares Nacionais – Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental: Matemática. 16 passagem que, a nosso ver, requer o auxílio do professor – o aluno não poderá fazê-la sozinho – e, assim sendo, tal reconstrução será imprescindível também no repertório de saberes acumulados por esse professor. As pesquisas que vêm sendo realizadas com respeito ao ensino e à aprendizagem do conceito de número irracional, tendo como público, não apenas estudantes da Educação Básica, mas também futuros professores e professores em exercício, expõem resultados que enfatizam dificuldades cujas raízes estão, provavelmente, na abordagem introdutória desse conceito, indicando assim que a complexidade que envolve a construção desse conhecimento requer uma reflexão não apenas a respeito das estratégias utilizadas para a sua apresentação a alunos do Ensino Fundamental – etapa em que esse estudo deve ser iniciado –, mas também a respeito dos conhecimentos indispensáveis ao professor para a escolha e aplicação dessas estratégias. Nosso interesse por esse tema decorre de nossa vivência como professora da Educação Básica, como participante de grupos de estudo e de projetos de formação de professores, experimentando – nós também –incertezas e dificuldades no que diz respeito à busca de caminhos e estratégias que sejam, de fato, eficazes e convincentes, para a abordagem dos irracionais. Decorre, igualmente, das constatações resultantes de estudo que realizamos com um grupo de futuros professores, tendo o objetivo de refletir sobre as possibilidades de abordagem da noção de incomensurabilidade de segmentos de reta, pela exploração das características e propriedades do retângulo áureo. Tomamos em conta, para o desenvolvimento daquela pesquisa, a necessidade e importância de que o professor de Matemática da Educação Básica tenha domínio do conteúdo “incomensurabilidade entre grandezas”, para poder selecionar, organizar e elaborar problemas que propiciem a construção do conceito de número irracional, sob uma perspectiva que não seja restrita a cálculos envolvendo radicais. (CORBO, 2005). O exame dos resultados desse estudo nos levou a concluir que, embora tenham sido detectados avanços em relação às respostas apresentadas no 17 instrumento de sondagem5, foram também evidenciadas limitações que mereciam uma averiguação mais minuciosa e aprofundada. Não obstante estivessem cursando o último ano do Curso de Licenciatura em Matemática, os sujeitos daquela investigação não dominavam noções importantes relacionadas aos números irracionais e à incomensurabilidade de grandezas. (ibid., p.206). A nosso ver, esses dados colocam em evidência o fato de que, em geral, não é dada a atenção merecida a esse conteúdo, também nos cursos de formação de professores. Não se pode perder de vista que esses cursos preparam futuros professores que provavelmente irão auxiliar seus alunos da Educação Básica, no processo de retomada, discussão – e talvez de reelaboração – de ideias já formadas sobre os racionais, com o objetivo de construir os conceitos de números irracionais e de números reais. Tais reflexões constituíram o princípio, o embrião deste estudo, que teve o objetivo de investigar os conhecimentos necessários ao professor, sob os pontos de vista do conteúdo, didático e curricular, para ensinar o conceito de número irracional na Educação Básica. Desse objetivo, deriva um segundo, que seria refletir sobre o tipo de formação que um professor precisaria receber para selecionar, organizar e elaborar situações que favoreçam a aprendizagem de ideias fundamentais relativas aos números irracionais. Para alcançar esses objetivos, propusemo-nos a buscar respostas a duas questões de pesquisa, quais sejam: Uma sequência de atividades que explore a percepção de que os pontos de coordenadas racionais não esgotam todos os pontos da reta pode favorecer a ampliação/reconstrução dos conhecimentos de professores de Matemática sobre os números irracionais? Que tipo de experiências um professor precisaria vivenciar nos cursos de formação inicial e/ou continuada, para compreender as dificuldades que 5 Instrumento de coleta de dados utilizado no início da referida pesquisa (CORBO, 2005) com a finalidade de investigar os conhecimentos dos licenciandos a respeito dos números irracionais sob os pontos de vista numérico e geométrico. 18 os alunos enfrentam na construção do conceito de número irracional e para ajudá-los a superar essas dificuldades? Tendo em vista o fato de que os professores participantes de nossa pesquisa estavam, naquele momento, imbuídos da ideia de implementar em sua prática pedagógica as orientações contidas no Currículo do Estado de São Paulo (2010) e o fato de ter sido esse Currículo elaborado com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998, 2000, 2002), a metodologia adotada para a busca de respostas a essas duas questões incluiu uma pesquisa documental, pela análise das orientações curriculares do MEC, como as contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, nas Diretrizes Curriculares Nacionais, no Currículo do Estado e em livros didáticos, levando em conta a dimensão dada aos números irracionais, nos currículos prescritos; as expectativas de aprendizagem estabelecidas para esse conteúdo; os períodos sugeridos para a introdução e o desenvolvimento desse conteúdo; as orientações e as recomendações didáticas apresentadas por esses documentos, em relação à abordagem e ao desenvolvimento desse conteúdo. Por outro lado, a coleta dos dados atendeu a princípios do Design Experiment, segundo Paul Cobb et al (2003), conforme será clarificado no corpo deste trabalho e foi realizada em três fases. A primeira delas consistiu na aplicação de um questionário ao grupo de professores, sujeitos desta pesquisa, visando identificar seus conhecimentos a respeito do conceito de número irracional e do ensino desse conteúdo a alunos da Educação Básica. Ao longo da segunda fase, foi proposta uma sequência de atividades aos sujeitos, com a finalidade de provocar discussões sobre o processo de ensino e aprendizagem do número irracional e, ao mesmo tempo, investigar em que medida essa nossa intervenção produziria transformações nos saberes do grupo, com respeito a esse conteúdo. Além disso, pretendíamos criar oportunidades de reflexão sobre as possíveis dificuldades enfrentadas por alunos, quando iniciam a construção do conceito de número irracional e também discutir sobre estratégias que possam auxiliar os alunos a superar essas dificuldades. Propusemos também, nesta fase, 19 uma reflexão a respeito dos conhecimentos sobre número irracional que um aluno deve dominar ao concluir o Ensino Fundamental e sobre os conhecimentos necessários ao professor de Matemática para ensinar esse conteúdo a alunos da Educação Básica. Por fim, durante a terceira fase, o grupo de professores procedeu à análise das orientações oferecidas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por meio do Caderno do Professor do 9º ano do Ensino Fundamental (1º bimestre), adotado em escolas públicas estaduais, cujo conteúdo sugere ações específicas para a introdução do conceito de número irracional. As atividades desenvolvidas nessa última fase tiveram o objetivo de avaliar se a intervenção realizada pela proposta da sequência de atividades (segunda fase) contribuiu para o desenvolvimento de habilidades relativas à análise de materiais pedagógicos e à seleção, organização e elaboração de um plano de ensino contendo itens que, segundo a opinião do grupo de professores participantes deste estudo, são indispensáveis à compreensão do conceito de número irracional, por alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Em nosso ponto de vista, tendo construído/reconstruído/retomado conhecimentos do conteúdo específico, necessários ao professor, pela vivência e discussão de situações de aprendizagem relativas aos irracionais, ao longo da segunda fase, os professores teriam ampliado, igualmente, seus conhecimentos pedagógicos referentes à introdução e ao desenvolvimento desse conteúdo. Em todo o processo de elaboração, reelaboração e recriação dos passos que compuseram nosso estudo, quer para a preparação do questionário aplicado inicialmente, quer para a organização das atividades propostas e exame dos resultados, tomamos como fundamentação teórica no que se refere à formação de professores, as ideias de Shulman (1986, 1987) relativas aos conhecimentos necessários ao professor, tais como: conhecimento do conteúdo específico, conhecimento pedagógico do conteúdo e conhecimento curricular do conteúdo; em relação ao caso específico da formação de professores de Matemática, levamos em conta as categorias estabelecidas por Ball et al (2008), que constituem um refinamento daquelas apresentadas por Shulman: 20 conhecimento do conteúdo comum/especializado; conhecimento do conteúdo e de estudantes; conhecimento do conteúdo e do ensino; e conhecimento curricular; em relação à construção dos conhecimentos matemáticos pelos professores, apoiamo-nos na noção de imagem conceitual estabelecida por Tall e Vinner (1981); também no que diz respeito aos conhecimentos dos professores sobre o objeto matemático tratado neste estudo, baseamo-nos em Fischbein (1994) que enfatiza a importância da interação entre três componentes básicos da Matemática, como atividade humana: o intuitivo, o algorítmico e o formal; consideramos também os argumentos apresentados por Zeichner (1993) quanto à importância da formação de professores como processo de preparação de profissionais reflexivos em relação à sua prática pedagógica, aos currículos prescritos e à possibilidade de um ensino que alcance todos os alunos. Dessa forma, nossa pesquisa está organizada em cinco capítulos, cuja distribuição se fez na seguinte ordem: Destacamos, no capítulo 1, pesquisas que também tomaram por objeto de estudo o ensino e a aprendizagem dos números irracionais, cujos resultados motivaram o desenvolvimento de nossa pesquisa. Além disso, destacamos também estudos relacionados à formação de professores, que forneceram subsídios para o exame dos dados. O capítulo 2 traz os resultados da pesquisa documental realizada com o objetivo de identificar, em documentos de referência curricular, elementos que pudessem favorecer a análise dos dados de nossa investigação. São especificadas neste capítulo, as recomendações relativas à abordagem dos irracionais e as expectativas de aprendizagem estabelecidas nesses documentos, para esse conteúdo. São apresentadas também, neste capítulo, considerações a respeito das propostas indicadas em livros didáticos, para o desenvolvimento desse tema. O capítulo 3 é dedicado a uma reflexão sobre o objeto matemático de nossa pesquisa. Apoiamo-nos nas ideias defendidas por Fischbein (1994), quanto à 21 importância dos componentes: intuitivo, algorítmico e formal na atividade matemática, para elaborar considerações sobre tópicos que julgamos essenciais, relativos aos números irracionais, particularmente aqueles que se constituíram em temas de discussão ao longo de nosso experimento. O capítulo 4 contém esclarecimentos a respeito da primeira fase da coleta dos dados de nossa investigação. Justificamos nossas escolhas relativas ao grupo de sujeitos e ao instrumento de coleta de dados – de caráter diagnóstico – utilizado nesta fase. Em seguida, apresentamos uma análise desses dados à luz das ideias de Shulman (1986, 1987), Ball et al (2008) no que se refere aos conhecimentos necessários ao professor para o ensino de números irracionais e das ideias de Tall & Vinner (1981) no que diz respeito à apropriação desse conteúdo, por uma pessoa. No capítulo 5, explicitamos as razões que motivaram a escolha da metodologia que pautou as decisões tomadas ao longo da intervenção (fase 2) e apresentamos nossa avaliação dos resultados observados durante essa etapa, sob o olhar dos autores referidos anteriormente. Também neste capítulo, são expostas as justificativas e os resultados da terceira fase da coleta de dados, que consistiu em uma reflexão do grupo de professores sobre as orientações curriculares oferecidas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, no que se refere ao tema deste estudo. As considerações finais expressam uma síntese da trajetória necessária ao desenvolvimento deste estudo e também apresentam nossas reflexões sobre as respostas às questões de pesquisa. Indicamos, além disso, aspectos que, embora não tenham sido discutidos aqui, por não constituírem escopo deste estudo, merecem, por sua importância, ser objetos de futuras investigações. 22 CAPÍTULO 1 A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE NÚMERO IRRACIONAL UM OLHAR SOBRE PESQUISAS ANTERIORES We would like our students to get the feeling of the grandeur, the beauty of mathematics as a fundamental human achievement, not only its utility for practical matters. Certainly, theorems and proofs are taught – not only solving procedures – but the image of an organized whole, the image of the infinitely ingenious endeavors spent by the human mind in thousands of years, in order to create this dynamic, coherent and harmonious structure is mainly lost in the day to day teaching process. Fischbein E. et al6 Thus, teaching necessarily begins with a teacher’s understanding of what is to be learned and how it is to be taught. Shulman. L. S.7 Tendo em vista o objetivo de nosso estudo, no sentido de investigar os conhecimentos necessários ao professor, para ensinar números irracionais na Educação Básica, este capítulo tem a finalidade de apresentar resultados de pesquisas realizadas que, de algum modo, estão relacionadas à nossa investigação. 6 Gostaríamos que nossos estudantes adquirissem o sentimento da grandeza, da beleza da matemática, como uma realização humana fundamental, não apenas sua utilidade para problemas práticos. Certamente, teoremas e provas são ensinados – não apenas procedimentos de resolução – mas, a imagem de um todo organizado, a imagem do esforço engenhoso infinitamente despendido pela mente humana em milhares de anos, para criar essa estrutura dinâmica coerente e harmoniosa é significativamente perdida no dia a dia do processo de ensino. (FISCHBEIN et al, 1995, p. 29, tradução nossa). 7 Assim, ensinar necessariamente começa com a compreensão de um professor sobre o que deve ser aprendido e como isso deve ser ensinado. (SHULMAN, 1987, p.7, tradução nossa). 23 Nosso interesse, no percurso desta investigação, está voltado para as questões concernentes ao ensino e à aprendizagem do conceito de número irracional, tendo como foco principal a formação que o professor precisaria receber, para propiciar aos alunos uma aprendizagem eficaz desse conteúdo. Com esse propósito, o exame de cada uma dessas investigações levou em conta as razões que motivaram o esforço da pesquisa, as teorias que deram suporte à análise e discussão dos resultados e as contribuições que esses estudos oferecem para a nossa reflexão. 1.1. Investigações sobre o ensino de números irracionais Por razões que julgamos de particular importância, ligadas à fundamentação teórica escolhida para sustentar a análise dos resultados de nossa pesquisa, constituiu ponto de partida para a revisão bibliográfica, o estudo realizado por Fischbein et al que investigou as concepções de um grupo de estudantes dos graus 9 e 108 e de futuros professores sobre números irracionais. Em seu texto, os autores enfatizam o papel do professor no sentido de propiciar aos alunos a oportunidade de compreender e apreciar a Matemática, como ciência bela e harmoniosa e, mais do que isso, fruto da criação e do trabalho do homem, acrescentando, em contrapartida, que “a ideia da Matemática, como um corpo coerente de conhecimentos, estruturalmente organizado, não é sistematicamente transmitida para o estudante 9” (FISCHBEIN et al, 1995, p.29, tradução nossa). No que se refere ao tratamento dispensado à organização do sistema numérico e especificamente quanto à atenção que se dá aos números irracionais, esses pesquisadores acrescentam: se uma pessoa pretende transmitir aos estudantes o sentido da estrutura da matemática, essa pessoa precisa enfatizar, antes de tudo, o quadro coerente do sistema numérico, com sua estrita hierarquia. [...] Se nós passamos dos números naturais para os inteiros e destes para os números racionais, o termo “número racional” em si mesmo, impõe que é o conceito oposto de número irracional. Como seria possível passar dos números 8 9 Etapa escolar correspondente à faixa etária entre 15 e 16 anos. “The idea of mathematics as a coherent, structurally organized body of knowledge, is not systematically conveyed to the student.” (FISCHBEIN et al, 1995, p.29). 24 racionais para o conjunto dos números reais, sem descrever o conjunto dos números irracionais?10 (FISCHBEIN et al,1995, p.27). Os números irracionais são uma parte do sistema e, sem eles o conceito de número real é incompleto. É suficiente negligenciar os números irracionais e todo o sistema cai por terra11 (ibid., p.30, tradução nossa). Tais considerações refletem, a nosso ver, não apenas uma preocupação em relação aos prejuízos resultantes das práticas pedagógicas que subestimam a importância do conceito de número irracional na constituição do sistema numérico como um todo, mas, sobretudo, sugerem que um tratamento adequado e satisfatório dos números reais decorre também de uma construção robusta – igualmente adequada e satisfatória – do conceito de número irracional. Essa inquietação vem sendo registrada em outras pesquisas que investigam diferentes questões ligadas aos processos de ensino e de aprendizagem de noções concernentes aos números irracionais e reais, quer relacionadas às formas de abordagem, quer relacionadas aos conhecimentos indispensáveis à compreensão dessas noções – por exemplo, diferentes significados e representações dos racionais, aproximações, intervalos, tipos diferentes de infinitos –, quer relacionadas aos entraves que o estudante deve enfrentar, auxiliado pelo professor, quando da construção desse conhecimento. É bastante expressivo o número de pesquisas que vêm sendo realizadas, tanto no Brasil quanto em outros países, a respeito da construção do conceito de número racional, incluindo um exame dos obstáculos que permeiam os processos de ensino e de aprendizagem desses números e de abordagens que possivelmente favoreceriam a apreensão dos diferentes significados a eles atribuídos. Dentre essas pesquisas, é de nosso interesse destacar o estudo desenvolvido por Kindel (1998), tendo como objeto de análise as concepções – ainda que 10 If one intends to convey to the students the feeling of the structurality of mathematics, one has to emphasize, first of all, the coherent picture of the number system with its strict hierarchy. (...) If we pass from the natural numbers to that of integers and from them to the rational numbers, the term “rational number” itself imposes that opposite concept of irrational numbers. How would it be possible to pass from the rational numbers to the set of real numbers without describing the set of irrational numbers? (FISCHBEIN et al, 1995, p.27). 11 The irrational numbers are a part of the system and without them the concept of real numbers is incomplete. It suffices to neglect the irrational numbers and the whole system falls apart. (FISCHBEIN et al, 1995, p.30). 25 intuitivas – de estudantes de 7ª série12 do Ensino Fundamental, sobre a densidade do conjunto dos números racionais e, por acréscimo, sobre as noções de aproximação, intervalo, limite, infinito, proporcionalidade, ordenação, máximo e mínimo que, necessariamente, estariam presentes – implícita ou explicitamente – em qualquer abordagem voltada para a densidade desse conjunto de números. Para justificar sua proposta de abordagem dos racionais pela exploração da noção de densidade, a autora argumenta que, convencionalmente, a matemática escolar apresenta os conjuntos numéricos de forma hierarquizada, com ênfase para a relação induzindo tanto professores quanto alunos à certeza de que “se ‘compreendemos bem’ os números naturais, a construção dos outros conjuntos numéricos flui naturalmente, acreditando os estudantes na aplicação direta de propriedades dos naturais a outros conjuntos” (STREEFLAND, 1993, apud KINDEL, 1998, p.3). A autora ressalta, assim, a influência – não desejável – que as concepções elaboradas sobre os naturais podem exercer no processo de construção do conceito de número racional, dizendo que ... o aluno é levado a achar que o conjunto dos racionais funciona exatamente como o conjunto dos naturais, com a diferença que agora podemos fazer a divisão entre dois números naturais quaisquer, desde que o denominador não seja zero. Não fica evidenciado que se trata de um novo campo de saber onde outras formas de pensar devem ser legitimadas (KINDEL, 1998, p.137). Assim, um tratamento com ênfase para o aspecto hierárquico do sistema numérico seria, segundo Kindel (1998), um dos responsáveis pela falta de compreensão do significado genuíno – ou por uma aprendizagem despida de significado – do conceito de número racional. A pesquisadora destaca, por exemplo, que o cálculo do sucessor de um número natural, pela adição de uma unidade, foi ideia que persistiu durante o desenvolvimento de uma atividade em que os sujeitos foram solicitados a interpolar alguns números entre 2 e 5 (KINDEL, 1998, p. 122, 123). 12 Série correspondente ao 8º ano do Ensino Fundamental. 26 Essa influência das concepções formadas sobre números naturais, foi demonstrada pelos sujeitos daquela pesquisa, pela tentativa de encontrar números que tivessem a mesma diferença entre si, constituindo-se, a nosso ver, um obstáculo epistemológico, na visão de Bachelard (1938) 13. Conforme observa a pesquisadora, o que parecia apenas um “critério estético”, na verdade revelava uma tentativa de utilizar, em uma situação nova, um modelo que é válido no conjunto dos números naturais (ibid., p. 137). Resultados semelhantes foram apresentados por alunos de 4ª a 8ª 14 séries do Ensino Fundamental, pesquisados em estudo realizado por Santos (1995), em que sucessões de números racionais se comportam de acordo com regras observadas para os naturais: quando solicitados a indicar os sucessores de números como: 2/3; 0,5; 3,69 alguns estudantes de 5ª a 8ª séries responderam: 3/3; 0,6 e 3,70. Esses mesmos sujeitos, para 3,4444..., indicaram como sucessores: 3,44444..., 3,5555... e 3,5, revelando a presença de dificuldades no sentido de identificar as naturezas diferentes dos dois tipos de números – os naturais e os racionais. (SANTOS, 1995, p.131). No que se refere aos fatores que interferem ou podem constituir entraves na construção de noções relativas aos irracionais, outras questões têm sido investigadas. Sirotic (2004, p. 194), avaliando a compreensão explicitada por futuros professores de Matemática do curso secundário15, no que se refere à abordagem geométrica de números racionais e irracionais, salienta que para muitos participantes de sua pesquisa, a noção de incomensurabilidade de grandezas 13 A noção de obstáculo epistemológico foi discutida pela primeira vez em 1938, pelo epistemólogo francês Bachelard. Em sua obra “A formação do espírito científico”, Bachelard defende a ideia de que o pensamento científico se desenvolve pela superação de obstáculos, dizendo que “no fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização”. (BACHELARD, 1938, p.11). Por sua vez, a influência das concepções formadas durante a construção de noções relativas aos naturais tem sido interpretada, de acordo com Brousseau (1976), como obstáculo epistemológico, constituindo-se em efeito de um conhecimento construído anteriormente (válido em determinado contexto), mas que se mostra falso em outra situação, resistindo em se adaptar a um novo contexto, para a construção de um novo conhecimento. (IGLIORI, 1999, p.89-113). 14 Séries correspondentes ao período do 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental. 15 Etapa escolar correspondente à faixa etária entre 14 e 18 anos. 27 mostrou-se bastante estranha, complexa – não havia quase respostas aos itens que envolviam o conceito de número irracional sob uma perspectiva geométrica. A esse propósito, Sirotic & Zazkis (2005, p.2) observam que os sujeitos desse estudo demonstraram uma crença generalizada no sentido de que a irracionalidade de um número depende de sua representação decimal, acrescentando que a representação geométrica dos números irracionais estava estranhamente ausente das imagens conceituais de muitos participantes. A concepção comum da reta numérica real parecia ser limitada à reta numérica racional, ou mais especificamente, à reta de números racionais decimais, em que apenas decimais finitos receberam suas representações como ‘pontos 16 sobre a reta numérica’ . São resultados que, provavelmente, decorrem de explorações desse conteúdo que não levaram em conta o problema que originou a necessidade da construção dos irracionais – situação específica da geometria quer tenha ocorrido a descoberta pela aplicação do Teorema de Pitágoras ao triângulo retângulo isósceles, quer tenha ocorrido pela consideração de um dos lados do pentagrama e uma de suas diagonais. Por outro lado, Santos (1995, p. 53) considera os prejuízos decorrentes de se colocar o foco em outro extremo, dizendo que ver os números racionais e irracionais apenas na perspectiva métrica, como segmentos comensuráveis ou incomensuráveis, quando referidos a um segmento unidade, apresenta dificuldades, como a possibilidade de realizar operações, identificar propriedades e estender a ideia de número. Ou seja, um tratamento isento de referências às questões do campo numérico privaria os alunos da oportunidade de explorar e ampliar outros aspectos igualmente necessários a uma compreensão mais abrangente do número irracional. De qualquer forma, é certo que nenhuma abordagem que privilegie apenas um aspecto ou apenas uma representação, tanto dos racionais quanto dos irracionais, resulta na aprendizagem de noções atinentes a esses campos numéricos. Essa nossa interpretação está fundamentada nas ideias defendidas por Fischbein (1994), no que se refere à importância de abordar um conteúdo, 16 The geometric representation of irrational numbers was strangely absent from the concept images of many participants. The common conception of real number line appeared to be limited to rational number line, or even more strictly, to decimal rational number line where only finite decimals receive their representations as “points on the number line”. (SIROTIC & ZAZKIS, 2005, p.2). 28 contemplando distintos aspectos, que se complementam, no processo de aprendizagem, conforme será visto no capítulo 3. Outros questionamentos são postos por pesquisadores que têm se debruçado sobre o tema, revelando inquietações não apenas quanto à forma de abordagem, mas quanto à época mais adequada para o desenvolvimento do conceito de número irracional. Sirotic (2004), por exemplo, finaliza as considerações sobre seu estudo, dizendo que embora não seja essa a sua posição, seria interessante averiguar, por meio de investigação mais completa se, de fato, o conceito de número irracional deveria ser introduzido no ensino secundário17, uma vez que, na maioria, os sujeitos de sua pesquisa – prováveis professores –, segundo os resultados analisados, não compreendiam o conceito, por si mesmos. A esse respeito, a autora acrescenta: “haveria alguma perda, se os estudantes não houvessem escutado nada sobre números irracionais, até chegar à universidade?”18 (SIROTIC, 2004, p.195, tradução nossa). Resultado análogo foi observado em nossa pesquisa de mestrado (2005), que investigou a possibilidade de utilizar a seção áurea como contexto para o desenvolvimento da noção de incomensurabilidade de segmentos de reta. Nesse estudo, não obstante o grupo de sujeitos fosse constituído por estudantes do último ano do curso de Licenciatura em Matemática, foram evidenciadas limitações no que diz respeito à distinção entre grandezas comensuráveis ou incomensuráveis e à estreita relação entre os números irracionais e a incomensurabilidade de grandezas. Por exemplo, durante a realização de uma das atividades propostas para a obtenção dos dados, o lado e a diagonal de um quadrado qualquer foram indicados, por alguns dos participantes, como sendo segmentos incomensuráveis, sob justificativas como: “não existe divisor comum entre o lado e a diagonal, pois a diagonal do quadrado sempre será um número irracional” (CORBO, 2005, p. 167). Ao realizar a análise dos dados, avaliamos tais respostas como um indício de que as noções relativas às grandezas incomensuráveis e aos números irracionais haviam 17 18 Etapa escolar correspondente à faixa etária entre 14 e 18 anos. Would there be anything lost if students did not hear about irrational numbers until they reached university? (SIROTIC, 2004, p.195). 29 sido desenvolvidas, provavelmente, a partir de poucos exemplos, dentre os quais, o caso em que a medida do lado de um quadrado é sempre expressa por um número racional. Essa lacuna no conhecimento dos sujeitos poderia ser atribuída a uma intenção – a nosso ver, ingênua - de apresentar aos alunos um enfoque “mais acessível” dos números irracionais, por meio de definições vinculadas à representação – número irracional é aquele cuja representação decimal é infinita e não periódica –, colocando assim, em segundo plano, a perspectiva geométrica dos números irracionais. O estudo de Fischbein et al (1995), por sua vez, realizado com o propósito de analisar a compreensão de números irracionais, revelou que os sujeitos – incluindo futuros professores – não dominavam noções relacionadas às definições de números racionais e irracionais, à classificação de números (naturais, inteiros, racionais, irracionais, reais) e à identificação de características que diferenciam racionais de irracionais. Esses dados levaram os pesquisadores a refutar sua hipótese inicial, segundo a qual a apreensão do conceito de número irracional enfrenta dois grandes obstáculos intuitivos (noção apresentada mais adiante): o de aceitação da existência de grandezas incomensuráveis e o de aceitação de que em um intervalo podem coexistir dois conjuntos infinitos inteiramente distintos. (p. 29). Contrariamente a essa hipótese, os autores observaram que a percepção da relação entre incomensurabilidade de grandezas e números irracionais se revelou ausente na maioria dos estudantes que, por outro lado, também não se surpreenderam com a existência de segmentos incomensuráveis. Ou seja, não transpareceu, na maioria das respostas, a intuição que poderia ter levado os sujeitos daquela pesquisa a afirmar, categoricamente, que dois segmentos de comprimentos diferentes são sempre múltiplos inteiros de uma mesma unidade de medida, bastando para isso reduzir indefinidamente essa unidade, ou que, havendo infinitos pontos entre dois racionais quaisquer, por mais próximos que sejam, pode-se concluir que o conjunto desses números deve, necessariamente, cobrir toda a reta numérica. A dificuldade intuitiva que poderia gerar tais afirmações não é, segundo Fischbein et al (1995), uma dificuldade primária, banal, rudimentar. Pelo contrário, seria um indicativo de que a pessoa já 30 atingiu um desenvolvimento intelectual relativamente alto, conforme explicitam os pesquisadores: ...tais intuições errôneas (uma unidade comum pode sempre ser encontrada, se diminuirmos indefinidamente essa unidade e “em um intervalo é impossível haver dois conjuntos infinitos diferentes de pontos [ou números]”) não têm uma natureza primitiva. Elas implicam certo 19 desenvolvimento intelectual . (ibid., p. 29, tradução nossa). “Um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado”, conforme expressa Bachelard (1938). Nesse caso, ideias anteriores relativas a um conhecimento construído sobre números racionais – a densidade de Q na reta numérica, por exemplo – quando defendidas cegamente, sem serem questionadas, poderiam representar um impedimento à compreensão da existência de pontos, na reta numérica, que não correspondem a números racionais. Assim sendo, constituiriam um obstáculo epistemológico a que Fischbein et al (1995, p. 29) se referiram como obstáculo intuitivo. Segundo Fischbein (1987), ideias intuitivas indubitáveis, evidentes e consistentes em si mesmas, constituem o mais forte e resistente componente do sistema cognitivo de um indivíduo, podendo se tornar um obstáculo para que a pessoa controle suas inferências a respeito de um assunto. (p.36-42). A divisão de frações ou a multiplicação de números inteiros negativos, por exemplo, não têm significado intuitivo. Da mesma forma, não se pode captar, intuitivamente, a ideia de que existem pares de segmentos de reta que não podem ser medidos por meio de uma unidade de medida comum, que caiba um número inteiro de vezes nesses dois segmentos (uma pessoa pode alimentar a crença “cega” de que sempre é possível encontrar um segmento, ainda que muito... muito pequeno, que caiba um número inteiro de vezes nesses segmentos). Além disso, o estudo dos números irracionais e, finalmente, dos números reais, leva à discussão sobre a completude da reta e sobre 19 “... such erroneous intuitions (a common unit can always be found by indefinitely decreasing it and ‘in an interval it is impossible to have two different infinite sets of points [or numbers]’) have not a primitive nature. They imply a certain intellectual development.” (FISCHBEIN et al, 1995, p.29). 31 a continuidade – ideias ligadas ao conceito de infinito atual 20 – que também não é intuitivo. Essa ausência de significado intuitivo na ideia de coexistirem, num mesmo intervalo, dois conjuntos infinitos de números que se definem de formas distintas, têm características e propriedades distintas e são ambos densos na reta numérica, é dificuldade que deve ser enfrentada e não evitada na educação matemática, como enfatizam Fischbein et al (1995, p.44): ... gostaríamos que os estudantes ficassem atentos a respeito de que, para a lógica usual e também intuitivamente, é impossível aceitar que, em um intervalo, pode-se ter uma infinidade de certo tipo de elementos e, a despeito disso, ser capaz de acrescentar, ao mesmo intervalo, uma outra infinidade de um tipo diferente de elementos21. (tradução nossa). A dificuldade relativa à noção de infinito foi analisada também por Kindel (1998, p. 139) durante a realização de uma atividade, por alunos de 7ª série do Ensino Fundamental: A ideia de infinito surge exatamente porque os alunos se permitem entrar no mundo da matemática, isto é, dividir uma tora ao meio, em seguida pegar esta metade e dividi-la ao meio, depois pegar esta metade e novamente cortá-la ao meio e assim sucessivamente. Este processo só é possível se a “serra é mágica”, se a “tora é encantada”, pois concretamente esbarraremos no limite físico deste cortar. No momento em que literalmente mudam a forma de produzir significado para o problema, eles começam a resolvê-lo. Este aspecto fica bem evidente quando a aluna S, para representar a situação na reta, diz que seria necessária uma ponta mais fina, um apontador mais afiado até que a ponta seja tão “fininha quanto a gente quiser” e depois que “se eu quiser continuar só dá para fazer na cabeça”, dessa forma começando a pensar em aproximação e limite. No entanto, ainda que se tenha esperado uma compreensão intuitiva de tais noções, como: infinito, aproximação, intervalo e limite, a percepção de que essa compreensão se dá, de fato, em estudantes do Ensino Fundamental, se mostra frágil de certa forma e exige esforço do pesquisador nesse sentido. Conforme analisa Kindel (1998, p. 136, 137), “só é possível observar o que os alunos falam sobre 20 As ideias de infinito potencial e infinito atual são retomadas no capítulo 3 que trata do objeto matemático de nosso estudo. 21 ... we would like that the students become aware that for usual logic and also intuitively it is impossible to accept that in an interval one may have an infinity of a certain type of elements and, despite this, to be able to add in the same interval another infinity of a different type of elements. (FISCHBEIN et al, 1995, p.44). 32 intervalos, porque a sequência foi proposta com esse objetivo e porque a professora estava atenta ao mesmo objetivo quando fazia suas intervenções”. Por outro lado, segundo a pesquisadora, a organização da classe, a sequência proposta e o papel desempenhado pela professora contribuíram, fundamentalmente, para a emergência de discussões valiosas que permitiram uma antecipação de conteúdos prescritos para séries posteriores, como é o caso da interpolação de elementos em uma sequência, assunto que pertence ao currículo do Ensino Médio. A densidade dos racionais na reta numérica racional (nas séries iniciais do Ensino Fundamental) e na reta numérica real (a partir dos dois últimos anos do Ensino Fundamental) foi explorada também no estudo realizado por Santos (1995), com alunos de 7ª e 8ª séries, pela proposta de atividades que envolviam a localização de números em um intervalo dado, sob a intenção de apresentar argumentos que justificassem a importância de introduzir noções relacionadas ao infinito desde os primeiros anos da Educação Básica. A respeito do desempenho dos alunos, o pesquisador observa que estes demonstraram ter ideias incompletas e dispersas sobre os números reais. Igualmente, não explicitaram conhecimentos concernentes à relação entre os números já conhecidos, as dízimas periódicas, os irracionais e a correspondência bijetiva entre os números reais e os pontos da reta. Conforme acrescenta o autor, tais noções “são tomadas como assuntos diferentes e, do que sabemos, quando são relacionadas é através de estruturas e da relação de inclusão entre conjuntos” (SANTOS, 1995, p. 133). Esse mesmo pesquisador argumenta que a discussão sobre aspectos importantes relativos ao infinito numérico envolve noções atinentes às dízimas periódicas, às aproximações, à identificação dos irracionais, acrescentando no entanto, que Perde-se de vista o tipo de problema que resultou na construção dos números naturais e dos racionais, ou a diferenciação entre número racional e irracional, para se buscar uma explicação, quando é dada, a partir de aspectos teóricos dos conjuntos numéricos, tomados como estruturas bem definidas. (ibid. p.113). Quanto à abordagem que em geral se dá aos conjuntos numéricos, o autor acrescenta que 33 ...o processo de construção dos campos numéricos na escola, enriquecido com os problemas, controvérsias que favoreceram ou retardaram a sua aceitação e a caracterização de sua infinitude, a densidade dos números racionais e reais, os processos de aproximação cada vez mais finos que são próprios das grandezas contínuas, quer estejamos quantificando comprimentos, áreas ou volumes, são abandonados ao longo do ensino ou são enfatizados aspectos particulares que resultam numa ideia truncada do infinito. (SANTOS, 1995, p. 112). Levando em conta a referência que fizemos, anteriormente, à ligação estreita entre a compreensão dos conceitos de número irracional e de infinito e considerando a argumentação apresentada por Santos (1995, p.112), poderíamos supor que tal abandono resulte, igualmente, em uma construção apenas superficial e, de certa forma, incompreensível do conceito de número irracional – não apenas no Ensino Fundamental, mas ao longo de todo o processo de aprendizagem da Matemática, incluindo o Ensino Médio e o Superior. Sirotic (2004, p. 187), por exemplo, ao analisar as respostas dos sujeitos de sua pesquisa – futuros professores do Ensino Secundário – observa que, em geral, os conhecimentos sobre o conjunto dos números irracionais se mantêm como que “cimentados”, no mesmo nível em que foram apresentados no Ensino Secundário. Outro aspecto que, segundo Sirotic, constitui um dos maiores obstáculos para a compreensão do conceito de número irracional diz respeito à ausência de vínculo entre as definições normalmente apresentadas em livros didáticos para introduzir o conjunto dos irracionais na Educação Básica, quais sejam: número irracional é um número cuja representação decimal é infinita e não periódica e número irracional é um número que não pode ser representado na forma de razão entre dois inteiros a e b, sendo b não nulo. Conforme observa a pesquisadora, são definições de caráter didático, que levam em conta a “relativa imaturidade matemática” de alunos que iniciam o estudo desses números e, entretanto, foram usadas de maneira idêntica pelos sujeitos daquela pesquisa, quando solicitados a classificar números racionais e irracionais. (SIROTIC, 2004, p.40). A mesma pesquisadora relata que, tendo sido solicitados a classificar como racional ou irracional o resultado da divisão de 53 por 83, os participantes apresentaram argumentos como “não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente. Os dígitos 34 poderiam terminar em um milhão de casas decimais ou eles poderiam começar a repetir depois da milionésima casa 22” (ibid., p.105, tradução nossa). Ou seja, a definição de número racional como número que pode ser representado em forma de fração também não havia sido apreendida. Na avaliação da pesquisadora, muitos dos erros apresentados pelos sujeitos de seu estudo se devem a definições incompletas - erros causados pela memorização de regras para identificar números racionais ou irracionais. Por exemplo, definir número racional como razão entre dois números, sem levar em conta a exigência de que eles sejam inteiros (ibid., p. 107). Essas conclusões revelam quão falha e insuficiente pode ser uma abordagem do número irracional, a partir de definições que, muitas vezes, são memorizadas pelos alunos sem que haja compreensão do significado desses números, nem de suas articulações ou relações. Outras críticas são feitas por Ripoll (2004)23, em artigo submetido à II Bienal da SBM24, sobre as definições de número irracional geralmente encontradas em livros didáticos, como (A) “Um número é irracional se não puder ser escrito na forma a/b com e b não nulo”. “Irracional é o número que não pode ser escrito na forma de fração”. (B) “Irracional é o número cuja representação decimal é infinita e não periódica”. “Todo número escrito na forma de um decimal infinito e não periódico é um número irracional”. (C) “Os números irracionais representam medidas de segmentos que são incomensuráveis com a unidade”. (p.1), indicando pontos que poderiam levar à formação de concepções incorretas, que podem interferir inclusive na construção de conceitos que serão desenvolvidos em 22 There is no way of telling if 53/83 is rational – unless you actually do the division which could take you forever. Digits might terminate at a millionth place or they might start repeating after a millionth place. (SIROTIC, 2004, p.105). 23 Ripoll (2004) apresenta projeto de minicurso sobre a construção do conceito de número real nos Ensinos Fundamental e Médio, por meio de tentativas de expressar a medida exata de qualquer segmento de reta. 24 SBM – Sociedade Brasileira de Matemática. 35 etapas posteriores da escolaridade. A autora alega, por exemplo, que além da definição (A) pressupor habilidades relativas à identificação de números que podem (ou não) ser representados por frações, pode também induzir à ideia de que números não reais (como são irracionais, uma vez que o mesmo processo de argumentação utilizado para a prova da irracionalidade de serve para provar que não pode ser representado em forma de fração. Em Sirotic (2004), no entanto, percebe-se opinião mais favorável à apresentação dos números irracionais por meio da definição (A): Baseados nos resultados de nossa pesquisa, nós sugerimos que seria melhor ensinar apenas uma definição de número irracional, a saber, que número irracional é um número que não pode ser expresso como razão de dois inteiros com um divisor não nulo e omitir completamente a outra (decimal). Se a segunda “definição” tiver que ser ensinada, então deveria ser derivada da primeira e, nesse caso, seria vista como uma propriedade representacional de um número irracional quando expresso como um decimal e não como uma definição.25 (SIROTIC, 2004, p.189-190, tradução nossa). Essa mesma pesquisadora acrescenta que, se a ênfase é posta sobre a representação decimal, sem que haja, de fato, compreensão da relação entre dízimas periódicas e suas respectivas geratrizes, há uma propensão para a elaboração de concepções incorretas: Por exemplo, a prática comum de identificação de números racionais como aqueles números que têm um “padrão repetido”, frequentemente leva à confusão em casos em que a expansão decimal exibe um padrão, mesmo que seja não periódico e também em casos de períodos longos e não facilmente detectados. Em acréscimo, ter a “definição decimal” como a única definição que funciona resulta em uma percepção de que tudo isso é apenas um jogo de inútil rotulação. O conceito de número irracional continua oculto. (SIROTIC, 2004, p.190, tradução nossa)26. 25 Based on the results of our research, we suggest that it would be better to teach one definition of irrational only, namely, that an irrational number is a number that cannot be expressed as a ratio of two integers with a non zero divisor, and completely omit the one (decimal). If the second “definition” is to be taught, then it should be derived from the first one, in which case it would be seen as a representational property of an irrational number when expressed as a decimal, and not as a definition. (SIROTIC, 2004, p.189-190). 26 For example, the common practice of identifying rational numbers as those numbers that have a “repeating pattern” often leads to confusion in cases where the decimal expansion exhibits a pattern, yet it is aperiodic, and also in cases of long and not easily detected periods. In addition, having the “decimal definition” as the only working definition results in a perception that all this is just a game of useless labeling. The concept of irrationality remains hidden. (SIROTIC, 2004, p.190). 36 É certo que se trata de conceito intrinsecamente difícil, cuja abordagem deve, necessariamente, merecer adequação, em virtude do grau de maturidade dos alunos para os quais esse conteúdo está indicado nos currículos oficiais. Entretanto, como Tall & Schwarzenberger argumentam, alguns conflitos observados nos estudantes emergem do processo – talvez não cuidadoso – de transposição, visto que, quando se toma um conceito de nível sutilmente elevado e se discorre sobre ele, de uma forma mais simples, informal, mais acessível aos alunos – algumas vezes com o “auxílio” de uma linguagem coloquial –, corre-se o risco de perda de precisão e, consequentemente, pode-se contribuir para aumentar, ainda mais, a dificuldade de compreensão do conceito em questão. (TALL & SCHWARZENBERGER, 1978, p.1). O grau de abstração necessário à compreensão do significado de número irracional é muito alto, considerando-se que se trata de conteúdo cuja introdução está prescrita para os dois anos finais do Ensino Fundamental. Em meio a todos os entraves que vêm sendo investigados, é necessário também considerar que abordagens que envolvam apenas a experimentação, – por exemplo, por meio de medição de segmentos – ou a obtenção de aproximações decimais com o auxílio da calculadora, embora permitam iniciar a construção desse conhecimento, exigem uma complementação formal. Caso contrário corre-se o risco de induzir o aluno à construção de uma ideia incompleta – senão incorreta – sobre números irracionais. A representação da expansão decimal de , por exemplo, obtida por meio de algoritmo, não permite qualquer afirmação a respeito de sua não periodicidade. Ainda que o processo se prolongue até uma quantidade muito grande de casas decimais, nada garante que em nenhum momento haverá um período que irá se repetir indefinidamente. Não bastaria, então, dizer aos alunos que é um número irracional. Seria necessária uma prova formal que permitisse ao estudante construir a convicção de que esse número não pode ser representado na forma de uma fração a/b, com a e b inteiros e b não nulo. Essa prova formal requer conhecimentos relacionados à argumentação e à demonstração. Uma das demonstrações possíveis para esse convencimento é a prova clássica por redução ao absurdo, cuja estrutura acentua o conflito vivenciado pelos alunos, entre frações e números irracionais. De acordo com Tall & Schwarzenberger (1978, p.9), 37 é muito desleal esperar que os estudantes entendam tais provas quando eles têm pouca experiência em relação à prova matemática e sua conversação diária contém tal imprecisão de pensamento dedutivo. A prova por redução ao absurdo requer que uma pessoa suponha que uma coisa verdadeira seja falsa na prática e depois, mostre que tal suposição leva a uma contradição27 (tradução nossa). Assim, para amenizar tais conflitos decorrentes da escolha de estratégias de abordagem e de convencimento, relativas aos irracionais, os mesmos pesquisadores sugerem que, inicialmente, sejam apresentadas aos alunos provas por absurdo tão diretas quanto possível. 28 (TALL & SCHWARZENBERGER, 1978). Nesse sentido, os pesquisadores observam que o papel do professor na resolução desses prováveis conflitos é de fundamental importância e mais determinante do que a escolha do currículo, do livro didático ou de outros recursos alternativos (ibid., p. 12). Ou seja, cabe ao professor selecionar estratégias de aproximação que não sejam conflitantes com os conhecimentos prévios dos alunos e tal seleção exige o domínio de conhecimentos específicos relacionados ao desenvolvimento de uma prova formal. A esse respeito, é importante fazer referência ao estudo desenvolvido por Pietropaolo sobre a (re) significação da demonstração nos currículos da Educação Básica e da formação de professores de Matemática, cujos dados levaram-no à conclusão de que, em geral, os cursos de Licenciatura não estão em condições de oferecer uma formação de qualidade que prepare o futuro professor para a tarefa de desenvolver, em seu aluno, as habilidades necessárias para construir uma prova formal (PIETROPAOLO, 2005, p. 226). Isso significa que, à complexidade que envolve o tema números irracionais, acrescenta-se outra necessidade, não menos importante, que envolve o desenvolvimento de um trabalho com a argumentação e a elaboração de provas. Cabe registrar aqui outros pesquisadores que se debruçaram sobre a tarefa de analisar ou identificar estratégias mais adequadas ou mais profícuas para 27 It is most unfair to expect students to understand such proofs when they have little experience of mathematical proof and their everyday conversation contains such imprecision of deductive thought. Proof by contradiction requires one to suppose something which is true is actually false, then showing that such a supposition leads to an impossibility. (TALL & SCHWARZENBERGER, 1978, p.9). 28 Um exemplo de prova, conforme foi sugerido por Tall & Schwarzenberger (1978) é exposto no Capítulo 3, que trata do objeto matemático de nosso estudo. 38 introduzir o conceito de número real. Por exemplo, Fonseca (2010), em pesquisa desenvolvida com o intuito de contribuir para a reflexão acerca da conceituação de número real, mais especificamente no Ensino Superior, estuda a teoria desenvolvida por John Horton Conway (2001), que apresenta uma conceituação de número, dos naturais aos transfinitos, segundo duas perspectivas: uma por meio da teoria dos conjuntos (caráter intensional) e outra por meio de uma classe de jogos (caráter extensional). Ou seja, nessa teoria, por um lado, os números são construídos a partir de cortes, tomando-se como ponto de partida os cortes de Dedekind e, por outro lado, são interpretados como jogos entre dois jogadores29. Estabelecendo uma relação entre a teoria de Conway (2001) e as abordagens clássicas: a axiomática, os cortes de Dedekind e as classes de equivalência de sequências de Cauchy de números racionais, Fonseca propõe a reflexão sobre uma nova conceituação de número real, fundamentada na noção de complementaridade, que diz respeito aos caracteres intensional e extensional, como conceitos opostos que se integram e, de forma recíproca, se ajustam no processo de construção do conceito de número (FONSECA, 2010, p. 77-78). Segundo Otte (1993, p.225), citado por Fonseca (2010, p.83), o saber nem pode ser identificado com experiências e intuições individuais [visão extensional], nem pode ser completamente reduzido a significados conteudísticos isolados [visão intensional], isto é, ser concebido como reflexo direto de um objeto. Assim, uma abordagem de objetos matemáticos – números reais, por exemplo –, além de relações estruturais dadas pela axiomática, deve conter prováveis interpretações e aplicações. Nesse estudo, as abordagens clássicas dos números reais foram avaliadas como incompletas por Fonseca (2010), visto que priorizam o caráter intensional dos números (p.123-129). No entanto, não se propõe o abandono dessas abordagens, mas sim sua complementação pelas ideias de Conway (2001) que acrescentam ao caráter intensional (axiomas e definições, com base na teoria dos conjuntos), o caráter extensional, por meio de uma classe de jogos. 29 O Anexo 3 contém exemplos de jogos associados aos números inteiros, racionais e irracionais, que podem fornecer uma ideia inicial sobre a Teoria construída por Conway (2001) referida por Fonseca (2010). 39 Sob esse ponto de vista, o estudo do conceito de número irracional careceria de estratégias que envolvessem também aplicações, para complementar a construção de noções cuja existência, nas perspectivas clássicas, só é comprovada por argumentos formais, como é o caso das grandezas incomensuráveis. Destacamos, igualmente, a pesquisa realizada por Miguel (1993) que também resultou do interesse por outra forma de abordagem do conceito de número irracional. O “amontoado de regras de operar com radicais” isentas de justificativas convincentes, conforme se expressa o autor, à página 168, a que são, em geral, reduzidas as abordagens apresentadas em livros didáticos, provoca nos alunos a impressão de conhecimento pouco útil e desligado de outros temas já estudados. A superação dessa dificuldade foi a motivação do autor, para a escolha do tema “números irracionais”, como objeto de investigação de seu terceiro estudo em “Três estudos sobre história e educação matemática”. O autor apresenta uma reconstituição histórica da descoberta da existência de segmentos incomensuráveis e, paralelamente, discute o que chamou de Estudo Histórico Pedagógico Operacionalizado (EHPO), que ilustra uma forma de estabelecer a relação entre a história e a Educação Matemática, no que se refere à abordagem dos números irracionais30. Trata-se de conteúdo apresentado no conjunto de fascículos elaborados por Miguel e outros, sob o título de “Tópicos de Ensino de Matemática”31, que vinham sendo utilizados como material de apoio por alguns professores das redes pública e particular, na cidade de Campinas. Nesse estudo, o diálogo que se estabelece ao longo do texto entre historiadores como von Fritz (1900-1985) e Knorr (1945-1997) entrelaça-se às considerações do autor sobre as atividades postas aos alunos, convidando estes últimos, de certa forma, a participar da conversa. 30 O conjunto de atividades que compõem a abordagem proposta por Miguel (1993) encontra-se no EHPO, a partir da página 245, recebendo uma nova numeração de 1 a 72. 31 Essa coleção de fascículos, em 1993, já havia tido sua terceira reelaboração, levando em conta as sugestões tanto dos próprios autores, quanto de professores que utilizavam esse material em suas aulas. (MIGUEL, 1993, p. 169). 40 Como exemplo, comentando a atividade que daria início ao assunto (p.3 do EHPO), em uma classe do último ano do Ensino Fundamental, em que, para instigar a curiosidade dos alunos, se nega o resultado de obtido com o auxílio da calculadora, o autor acrescenta: “Logo em seguida a essa provocação inicial, o aluno é remetido ao ano 500 a.C., através da leitura da história contada por Jâmblico32...” (MIGUEL, 1993, p. 198, grifo nosso), apontando, dessa forma, a porta de entrada que coloca em cena os pitagóricos. Mais adiante, quando no texto estão em discussão o descobridor e o contexto em que se deu a descoberta dos segmentos incomensuráveis, novamente o autor nos coloca diante dos alunos em sala de aula, dizendo-nos que a discussão dessas questões não é feita imediatamente. Ela é adiada temporariamente e coloca-se em pauta uma outra questão, aparentemente desligada do contexto em que, até então, o pensamento do aluno vinha movimentando-se. Trata-se de desafiá-lo a responder se, dados dois quadrados quaisquer, é sempre possível construir um único quadrado cuja área seja igual à soma das áreas dos dois quadrados dados [p.8-10 do EHPO]. Isto é, trata-se de desafiar o aluno a verificar a validade do teorema de Pitágoras, enunciado de um modo geométrico não habitual. (MIGUEL, 1993, p. 209). Assim, ao leitor que acompanha no texto o desfiar da história e a reflexão que o autor aos poucos alinhava sobre os caminhos pedagógicos escolhidos para sua proposta de trabalho, é permitido observar ao mesmo tempo a forma em o assunto é posto diante dos alunos e as questões que ainda poderiam ampliar a discussão. (ibid., p. 245). Quanto ao aluno, ao mesmo tempo em que avança para o interior da história por meio das leituras propostas, vive o enfrentamento de conflitos, referidos no texto como “dissonâncias cognitivas” (ibid. p. 178) – dentre elas, a “dissonância decorrente da incompatibilidade entre um fato singular e aquilo que a experiência passada parece confirmar” (loc.cit.), que poderia ser exemplificada pela descoberta de que não é sempre que existe uma unidade de comprimento, não importando quão pequena ela seja, da qual dois segmentos de reta quaisquer sejam múltiplos inteiros. 32 Jâmblico, filósofo, nascido na Síria, no século III, conhecido por sua obra sobre a filosofia pitagórica. 41 As considerações feitas no texto, por exemplo, sobre a atividade que antecede a apresentação dos segmentos comensuráveis e, posteriormente, dos incomensuráveis, ajudam a identificar não apenas pontos de dissonância como também os propósitos pelos quais essas dissonâncias foram estrategicamente situadas ao longo da sequência de atividades: O propósito da atividade 10 é o de provocar uma nova dissonância cognitiva. O problema da localização exata das placas de sinalização equivale, é claro, à determinação por parte do aluno do maior segmento de reta que caiba simultaneamente nos segmentos KL e PJ. Entretanto, o conhecimento que eventualmente o aluno já possua a respeito de processos algorítmicos de extração do maior divisor comum revela-se, nesse caso, insuficiente uma vez que esses processos, quando aprendidos, limitaram-se ao domínio dos números naturais, isto é, a um domínio discreto. Entretanto, as grandezas a serem comparadas agora são contínuas e o único instrumento que lhe é permitido usar é o compasso. Ainda que o aluno tente “subornar” o enunciado e utilizar uma régua graduada a fim de transformar o problema geométrico em aritmético através da medição dos segmentos, a dissonância persistiria uma vez que, propositalmente, as medidas dos segmentos KL e PJ são expressas por números racionais não naturais. (ibid., p. 221; 222). Assim, considerando o possível alcance de compreensão dos alunos para os quais é destinada esta abordagem, a superação das dissonâncias distribuídas ao longo da proposta deve permitir ao aluno um vislumbre de como se deu a construção desse conhecimento na história, sem que, para isso, seja esperado que esse aluno “adivinhe” – termo escolhido pelo autor – por exemplo, a forma como Dedekind no século XIX superou a dissonância causada pela descoberta da existência de segmentos incomensuráveis. Neste estudo, a História da Matemática consiste em fator de contextualização e fonte de explicação, para atribuir significado aos números irracionais e, igualmente, para convencer os estudantes da relevância do estudo desses números. A esse respeito, o autor argumenta que ...quando, pedagogicamente, nos situamos voluntariamente no interior do paradigma histórico – que de modo algum influenciou a formação dos professores e dos estudantes de matemática que aí estão – a questão que se coloca é menos de viabilidade que de necessidade; é menos de viabilidade que de abertura de novos horizontes e perspectivas. (MIGUEL, 1993, p. 170). 42 1.2. Investigações relativas à formação de professores Quanto aos conhecimentos necessários ao professor, para ensinar números irracionais, destacamos as pesquisas desenvolvidas por Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008), que escolhemos como base teórica para a elaboração dos instrumentos de coleta de dados e, ao mesmo tempo, como parâmetros para a análise dos resultados obtidos ao longo de nosso estudo. Em suas investigações sobre como estudantes33 aprendem a ensinar, Shulman (1986) concentrou a atenção sobre tipos de habilidades e conhecimentos necessários para o ensino, identificando categorias de uma base de conhecimentos necessária para fundamentar a compreensão do conteúdo pelos professores, a fim de promover uma adequada compreensão também por parte dos alunos. Segundo Shulman, (1987, p.8), essa base de conhecimentos deveria incluir, no mínimo, conhecimento do conteúdo; conhecimento pedagógico geral, com referência especial para aqueles princípios amplos e estratégias de gestão e organização de sala de aula, que parecem transcender o conteúdo; conhecimento curricular, com particular domínio dos materiais e programas que servem como “ferramentas do ofício” para professores; conhecimento pedagógico do conteúdo, amálgama especial de conteúdo e pedagogia que é ramo do saber unicamente de professores, sua forma própria especial de entendimento profissional; conhecimento de estudantes e suas características; conhecimento de contextos educacionais, que vão desde o funcionamento do grupo ou da sala de aula, a governança e o financiamento dos distritos escolares, para o caráter das comunidades e culturas; e conhecimento dos fins educacionais, propósitos e valores, e seus fundamentos filosóficos e históricos34. (tradução nossa). 33 Os estudos de Shulman (1986) aqui referidos envolveram professores iniciantes de disciplinas distintas: Inglês, Biologia, Matemática e Estudos Sociais. 34 - content knowledge; - general pedagogical knowledge, with special reference to those broad principles and strategies of classroom management and organization that appear to transcend subject matter; - curriculum knowledge, with particular grasp of the materials and programs that serve as “tools of the trade” for teachers; - pedagogical content knowledge, that special amalgam of content and pedagogy that is uniquely the province of teachers, their own special form of professional understanding; - knowledge of learners and their characteristics; - knowledge of educational contexts, ranging from the workings of the group or classroom, the governance and financing of school districts, to the character of communities and cultures; and 43 Quatro fontes são destacadas pelo autor, para a construção dessa base de conhecimentos: (1) o conhecimento do conteúdo, (2) o conhecimento de materiais e estruturas educacionais - orientações curriculares, materiais didáticos; organização, mecanismos e hierarquias vigentes em instituições de ensino; (3) o conhecimento educacional formal, que diz respeito à compreensão e à exploração de resultados de pesquisas relativas ao ensino e à aprendizagem; e, finalmente, (4) a sabedoria da prática, que envolve princípios, ações, padrões elaborados pelo próprio professor, ao longo de sua vivência diária. (SHULMAN, 1987, p.8-12). No que se refere ao conhecimento do conteúdo, que deve incluir a compreensão dos princípios de organização do objeto de ensino e das ideias fundamentais relativas a esse objeto, Shulman acrescenta que ... o professor tem especial responsabilidade em relação ao conhecimento do conteúdo, servindo como primeira fonte da compreensão do conteúdo pelo estudante. A maneira pela qual essa compreensão é comunicada transmite ao estudante o que é essencial sobre um assunto e o que é periférico. Em face da diversidade dos alunos, o professor deve ter uma compreensão flexível e multifacetada, adequada para dar explicações alternativas dos mesmos conceitos ou princípios. O professor também comunica, conscientemente ou não, as ideias sobre as maneiras em que a “verdade” é determinada em um campo e um conjunto de atitudes e valores que influenciam marcadamente a compreensão do aluno. Essa responsabilidade coloca exigências especiais sobre a profundidade de compreensão pelo próprio professor, das estruturas do assunto, bem como sobre as atitudes de entusiasmo do professor em relação ao que está sendo ensinado e aprendido. Estes muitos aspectos do conhecimento do conteúdo, portanto, são devidamente entendidos como uma característica central da base de conhecimento de ensino35. (SHULMAN, 1987, p.9, tradução nossa). Nesse caso, esse tipo de conhecimento diz respeito à “quantidade e organização do conhecimento na mente do professor”, ao domínio profundo que um professor precisa ter, não apenas sobre fatos, conceitos e procedimentos relativos a - knowledge of educational ends, purposes, and values, and their philosophical and historical grounds. (SHULMAN, 1987, p.8). 35 The teacher has special responsibilities in relation to content knowledge, serving as the primary source of student understanding of subject matter. The manner in which that understanding is communicated conveys to students what is essential about a subject and what is peripheral. In the face of student diversity, the teacher must have a flexible and multifaceted comprehension, adequate to impart alternative explanations of the same concepts or principles. The teacher also communicates, whether consciously or not, ideas about the ways in which “truth” is determined in a field and a set of attitudes and values that markedly influence student understanding. This responsibility places special demands on the teacher’s own depth of understanding of the structures of the subject matter, as well as on the teacher’s attitudes toward and enthusiasms for what is being taught and learned. These many aspects of content knowledge, therefore, are properly understood as a central feature of the knowledge base of teaching. (SHULMAN, 1987, p.9). 44 um conteúdo, mas sobre a forma em que esse conteúdo é organizado e estruturado no corpo da Matemática e também sobre a relação entre esse conteúdo e os demais temas da Matemática e de outras áreas do conhecimento. Não é suficiente, por exemplo, que o professor saiba que determinado conceito ou procedimento “é assim” – ele precisa saber “por que é assim” e precisa ser capaz de elaborar argumentos que dão a garantia para que seja assim. (SHULMAN, 1986, p. 9). Por outro lado, o conhecimento pedagógico do conteúdo diz respeito ao ensino desse conteúdo, incluindo a capacidade de seleção, organização e gestão dos componentes que farão uma abordagem mais compreensível ao aluno, tais como representações, explanações, analogias, argumentações e provas. Assim, é desejável que o professor disponha de um acervo variado de exemplos e formas distintas de abordagens que resultem de sua vivência como professor ou da investigação. A identificação de pré-concepções trazidas pelos alunos e o conhecimento de estratégias que permitam superar e transformar essas concepções também são constituintes do conhecimento pedagógico do conteúdo, assim como a previsão de equívocos e a influência que estes podem exercer no processo de aprendizagem de novos conteúdos. Dessa forma, o raciocínio pedagógico, segundo Shulman (1987, p.15), ocorre num processo que inclui: a compreensão de uma ideia pelo professor sob várias perspectivas; a transformação dessa ideia para que seja compreendida pelos estudantes; a instrução que envolve a organização e gestão da sala de aula, os questionamentos e as interações, a avaliação que exige a compreensão do material e dos processos de aprendizagem, para analisar o desempenho do aluno e ajustar as experiências, a reflexão, envolvendo a análise crítica do trabalho dos alunos e do trabalho do próprio professor e uma nova compreensão do assunto, dos objetivos, dos alunos e do próprio professor. 45 Quanto ao conhecimento curricular do conteúdo, está relacionado à familiaridade necessária ao professor, no que se refere às orientações e recomendações curriculares para a introdução e desenvolvimento de um conteúdo e à exploração de materiais didáticos, recursos e estratégias alternativas para as intervenções que se fizerem necessárias. Da mesma forma, o professor deve conhecer a distribuição desse conteúdo nos currículos prescritos, prevendo possíveis conexões entre esse conteúdo e os demais assuntos estudados simultaneamente, pelo aluno, em outras disciplinas (conhecimento curricular lateral) e também articulando questões relacionadas a esse conteúdo, mas pertinentes aos currículos de anos anteriores ou posteriores (conhecimento curricular vertical). (Shulman, 1986, p.10). Um refinamento das categorias definidas por Shulman foi apresentado por Ball et al (2008), dedicando atenção especificamente à forma em que os professores necessitam saber determinado conteúdo, para ensiná-lo e além disso, “o que mais os professores necessitam saber sobre Matemática e como e onde poderiam os professores usar tal conhecimento, na prática”36 (BALL et al, 2008, p.4, grifos dos autores, tradução nossa). Assim, o foco dos estudos desenvolvidos por Ball et al está sobre o “trabalho de ensinar” ou seja, sobre o que os professores fazem quando ensinam Matemática e sobre as percepções, a compreensão e o raciocínio matemático necessários para esse trabalho. (loc.cit.). A figura a seguir explicita a correspondência entre as categorias iniciais estabelecidas por Shulman (1986) e as categorias definidas por Ball et al (2008) para o conhecimento do conteúdo necessário ao ensino: 36 “... what else do teachers need to know about mathematics and how and where might teachers use such mathematical knowledge in practice?” (BALL et al, 2008, p.4). 46 Figura 1 - Correspondência entre categorias do conhecimento do conteúdo estabelecidas por 37 Shulman (1986) e Ball et al (2008) Fonte: Ball et al (2008, p.5, tradução nossa) Nessa distribuição, fez-se o desmembramento do conhecimento do conteúdo (em conhecimento do conteúdo comum e conhecimento do conteúdo especializado) e do conhecimento pedagógico do conteúdo (em conhecimento do conteúdo e dos estudantes, conhecimento do conteúdo e do ensino e conhecimento curricular do conteúdo), que se definem conforme segue. Conhecimento do conteúdo Conhecimento do conteúdo comum O conhecimento do conteúdo comum se caracteriza pela compreensão essencial (básica) da Matemática, que capacita o professor para o desenvolvimento 37 Fonte : Ball et al (2008, p.5) 47 das tarefas propostas aos estudantes, para a utilização correta de termos, representações e notações e para a identificação de incorreções ou inadequações quer em produções dos alunos, quer em materiais didáticos. Conhecimento do conteúdo especializado O conhecimento do conteúdo especializado é distinto do conhecimento especializado necessário ao matemático, visto que tem estreita ligação com a prática docente e também distinto do conhecimento pedagógico do conteúdo, pois prescinde do conhecimento dos estudantes. Constitui-se da capacidade não apenas de perceber os erros, mas de analisar e identificar prováveis causas desses erros e apresentar, imediatamente, aos alunos, esclarecimentos precisos e respostas convincentes, a fim de ajudá-los a enfrentar e superar suas dificuldades. Essa categoria de conhecimento inclui, igualmente, as habilidades necessárias à proposição de trabalhos aos alunos e à classificação desses trabalhos, ao confronto de estratégias e soluções distintas e à identificação de linhas de raciocínio que seriam matematicamente corretas (ou não) ou que funcionariam sempre (ou não). Essas são, conforme observam Ball et al (2008, p.7-8) exigências específicas do trabalho do professor – não são necessárias, por exemplo, a uma pessoa que tenta solucionar uma situação do cotidiano. Não são conhecimentos necessários ao professor porque devem ser ensinados aos alunos. São necessários para que o professor desempenhe eficazmente o seu papel de ensinar. Ball et al (2008, p.8) se expressam a esse respeito, dizendo: “nosso ponto aqui não é sobre o que os professores precisam ensinar, mas, sobre o que eles por si mesmos necessitam saber e ser capazes de fazer para levar a cabo uma forma responsável de ensinar”38. (tradução nossa) 38 “Our point here is not about what teachers need to teach, but about what they themselves need to know and be able to do in order to carry out any responsible form of teaching”. (BALL et al, 2008, p.8). 48 Conhecimento pedagógico do conteúdo Conhecimento do conteúdo e dos estudantes O conhecimento do conteúdo e dos estudantes associa a compreensão da Matemática ao conhecimento do pensamento matemático desses estudantes – advindo da experiência –, permitindo ao professor a previsão e interpretação de erros típicos e a busca de estratégias para a sua superação. Conhecimento do conteúdo e do ensino Em complementação, o conhecimento do conteúdo e do ensino combina a compreensão de conteúdos específicos da Matemática com a compreensão de assuntos pedagógicos que podem interferir no processo de ensino e aprendizagem. Diz respeito à capacidade de organização da instrução, à avaliação das vantagens de utilizar determinadas representações e exemplos e à decisão e escolha de encaminhamentos para a abordagem de um conteúdo. As fronteiras entre essas categorias são linhas tênues que permitem interpretações distintas a respeito dos conhecimentos necessários ao ensino de Matemática. No entanto, independentemente disso, como ignorar questões como: Onde, por exemplo, os professores desenvolvem o uso explícito e fluente da notação matemática? Onde eles aprendem a inspecionar definições e estabelecer a equivalência de definições alternativas para um dado conceito? Eles aprendem definições para frações e comparam sua utilidade? Onde eles aprendem o que constitui uma boa explicação matemática? Eles aprendem por que 1 não é considerado primo, ou como e por que o algoritmo da divisão pelo processo longo funciona? Os professores precisam saber esses tipos de coisas, e precisam se engajar nessas práticas matemáticas, por si mesmos, para ensinar e eles precisam também aprender a ensiná-los aos estudantes. O conhecimento explícito e as habilidades nessas áreas são vitais para o ensino 39. (BALL et al, 2008, p.12, tradução nossa). Finalmente, importa-nos acrescentar considerações sobre a necessidade de auxiliar os professores, na construção desses conhecimentos. 39 Where, for example, do teachers develop explicit and fluent use of mathematical notation? Where do they learn to inspect definitions and to establish the equivalence of alternative definitions for a given concept? Do they learn definitions for fractions and compare their utility? Where do they learn what constitutes a good mathematical explanation? Do they learn why 1 is not considered prime, or how and why the long division algorithm works? Teachers must know these sorts of things, and engage in these mathematical practices themselves in order to teach and they must also learn to teach them to students. Explicit knowledge and skill in these areas is vital for teaching. (BALL et al, 2008, p.12). 49 O estudo desenvolvido por Zeichner (1993) é voltado para questões relacionadas ao modo como os professores aprendem a ensinar e à maneira como os cursos de formação de professores promovem o desenvolvimento de atitudes, saberes e capacidades essenciais ao desenvolvimento de um trabalho que seja eficaz para ensinar uma população variada de estudantes. Em sua obra “A formação reflexiva de professores: ideias e práticas” (1993, p.16), Zeichner defende a ideia de que os professores precisam cultivar uma postura reflexiva, em relação à sua vivência como docentes, desempenhando papel ativo, tanto no estabelecimento dos objetivos de seu trabalho, como na escolha das estratégias que serão utilizadas para alcançar esses objetivos. Nesse sentido, conceber o professor como prático reflexivo significa, segundo o mesmo pesquisador, reconhecer a riqueza de sua experiência e também sua capacidade de elaborar teorias/conhecimentos sobre o que pode ser um ensino de qualidade (p.16,17). Sob essa perspectiva, o professor prático reflexivo é igualmente capaz de analisar e julgar a pertinência de sugestões e propostas de ensino formuladas por terceiros, a fim de adequá-las às suas próprias teorias e à sua realidade escolar. É nesse sentido que o olhar emprestado de Zeichner nos permitiu interpretar o processo crescente de reflexão, no grupo de professores participantes de nosso estudo, não apenas sobre a própria prática, mas também sobre orientações curriculares relativas à abordagem dos números irracionais. Assim, outros aspectos das ideias defendidas por Zeichner, considerados mais especificamente em relação ao nosso experimento, são destacados no capítulo 5, que contém a análise dos resultados das fases 2 e 3 desta investigação. Dessa forma, a opção por fundamentar nossa investigação, no que concerne à formação de professores, nas ideias defendidas por Shulman (1986, 1987) sobre os conhecimentos necessários ao ensino, de forma geral, por Ball et al (2008) sobre os conhecimentos necessários especificamente ao ensino de Matemática e por Zeichner (1993) sobre a importância da atitude reflexiva, é justificada pelo interesse de nosso estudo, no sentido de investigar os conhecimentos necessários ao professor para o ensino dos números irracionais, a partir das discussões promovidas 50 durante um processo de formação continuada de um grupo de professores que estavam vivenciando um momento de implementação de inovações curriculares. Esse estudo deveria, a nosso ver, oferecer ao grupo a oportunidade de desenvolver uma atitude crítica, reflexiva, sobre sua prática pedagógica em relação aos números irracionais e também em relação às orientações contidas no novo currículo prescrito, para o ensino desse conteúdo – ideias discutidas em Zeichner (1993). Deveria, igualmente, favorecer ao grupo e a nós, a reflexão sobre os conhecimentos necessários ao professor para ensinar esse conteúdo – ideias discutidas em Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008). 51 CAPÍTULO 2 NÚMEROS IRRACIONAIS ORIENTAÇÕES CURRICULARES E ABORDAGENS DE LIVROS DIDÁTICOS Neste capítulo, são expostos os resultados da pesquisa documental que se constituiu como parte necessária à identificação de elementos que poderiam indicar: a dimensão atribuída aos números irracionais nos currículos de Matemática da Educação Básica, as expectativas de aprendizagem estabelecidas para esse conteúdo em documentos oficiais de referência curricular, bem como as orientações e recomendações constantes desses documentos para a abordagem desse conteúdo. Apresentamos também considerações a respeito das abordagens dos números irracionais contidas em livros didáticos adotados por professores participantes de nosso estudo. Conforme referido anteriormente, para a escolha desses documentos, levamos em conta o fato de que os professores estavam incumbidos de implementar as orientações contidas no novo Currículo do Estado de São Paulo (2010), em sala de aula. Esse Currículo, por sua vez, está fundamentado nos documentos curriculares de referência nacional divulgados pelo MEC. Assim, optamos por analisar os PCN (1997, 1998), PCNEM (2000), PCN+(2002), as OCEM (2006), as Diretrizes Curriculares (2010, 2011), além do Currículo do Estado de São Paulo (2010). No que se refere aos cursos de nível superior, examinamos as Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de Licenciatura em Matemática (2001, 2002, 2003). Essa etapa de nosso estudo teve o propósito de reunir subsídios para o exame dos dados concernentes ao conhecimento específico sobre números 52 irracionais e aos conhecimentos didáticos e curriculares também relativos a esse conteúdo, dos sujeitos da nossa pesquisa. Embora não faça parte do escopo desta investigação uma análise minuciosa de orientações curriculares, apresentamos, a seguir, uma interpretação dos documentos vigentes no Brasil, no que se refere ao ensino do conteúdo objeto de nosso estudo – os números irracionais. 2.1. Orientações curriculares para o ensino de números irracionais na Educação Básica Conforme o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 40 (LDBEN nº 9.394/96), os currículos do Ensino Fundamental e Médio devem constituir-se de uma base nacional comum que, em cada sistema de ensino ou estabelecimento escolar, será complementada por uma parte diversificada, no sentido de garantir a construção de saberes indispensáveis a todos os estudantes e a adequação dos conhecimentos escolares à realidade de diferentes comunidades. Em atendimento a essa determinação, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) foram implementados pelo MEC, a partir de 1997, contendo inovações destinadas a oferecer um conjunto flexível de diretrizes que norteassem a elaboração de currículos e conteúdos – como base nacional comum – destinados ao Ensino Fundamental. 2.1.1. Os números irracionais no Ensino Fundamental Os itens que seguem dizem respeito às orientações apresentadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental sobre a abordagem dos irracionais nessa etapa escolar. 40 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, regulamentada em 1998 pelas Diretrizes do Conselho Nacional de Educação e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), que dispõe sobre a construção dos currículos para o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. A LDB nº 9.394/96 foi complementada por outras leis específicas que determinam, por exemplo, a inclusão de temas como saúde, sexualidade, direitos dos idosos, educação para o trânsito. 53 Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998) Para o interesse de nossa investigação, destacamos que um dos objetivos estabelecidos nos PCN (BRASIL, 1998), para o ensino de Matemática ao longo dos dois últimos anos41 do Ensino Fundamental, é o desenvolvimento do pensamento numérico que resulte na consolidação e ampliação dos significados dos números, pela percepção da existência de números que não são racionais (p.81). A ausência de situações do cotidiano ou verificações empíricas que possam ser tomadas como pontos de partida para a introdução do número irracional e o grau de abstração necessário à compreensão da noção de densidade do conjunto dos racionais na reta numérica racional são apontados no texto, como alguns dos responsáveis por dificuldades enfrentadas no processo de aprendizagem do conteúdo números irracionais. Ressalta-se também a importância de confrontar o aluno com situações que mostrem a insuficiência do conjunto dos racionais, por meio de uma abordagem que não enfatize os cálculos com radicais, observando-se que O importante é que o aluno identifique o número irracional como um número de infinitas “casas” decimais não periódicas, identifique esse número com um ponto na reta, situado entre dois racionais apropriados, reconheça que esse número não pode ser expresso por uma razão de inteiros; conheça números irracionais obtidos por raízes quadradas e localize alguns na reta numérica, fazendo uso, inclusive, de construções geométricas com régua e compasso. Esse trabalho inicial com os irracionais tem por finalidade, sobretudo, proporcionar contraexemplos para ampliar a compreensão dos números (PCN, 1998, p.83). Além disso, os autores chamam a atenção para a importância do trabalho com as aproximações racionais para números irracionais, que pode favorecer a discussão sobre o arredondamento de números representados na forma decimal e sobre suas consequências para os resultados de operações com números racionais e irracionais (ibid., p.83, 84). Sugere-se, igualmente, a proposição de atividades que favoreçam o desenvolvimento da capacidade de analisar, interpretar, formular e solucionar problemas que envolvam significados distintos dos números naturais, inteiros, 41 Os dois últimos anos do Ensino Fundamental correspondem às 7ª e 8ª séries, respectivamente, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental – período indicado como 4º ciclo do Ensino Fundamental, nos PCN (1998). 54 racionais e irracionais e das operações válidas nesses conjuntos numéricos (ibid., p.87). Nos campos da Geometria e das Grandezas e Medidas, as ações indicadas neste documento incluem Estabelecimento da razão aproximada entre a medida do comprimento de uma circunferência e seu diâmetro (ibid., p.88) Verificações experimentais e aplicações do teorema de Tales (ibid., p.89). Estabelecimento da relação entre a medida da diagonal e a medida do lado de um quadrado e a relação entre as medidas do perímetro e do diâmetro de um círculo (ibid., p.90). Tais recomendações são acompanhadas de orientações didáticas postas sob a intenção de contribuir para a reflexão sobre como ensinar, contendo uma análise de parte dos conceitos e procedimentos indicados e considerações sobre como esse conhecimento é elaborado ou construído pelos alunos. Por exemplo, sobre a obtenção da medida da diagonal de um quadrado de lado unitário, complementando considerações a respeito da inadequação de um tratamento formal dos irracionais nesta etapa da escolaridade, os autores observam que Nesse caso, pode-se informar (ou indicar a prova) da irracionalidade de , por não ser uma razão de inteiros. O problema das raízes quadradas de inteiros positivos que não são quadrados perfeitos, , etc., poderia seguir-se ao caso particular de . (ibid., p.106). Assim sendo, dado que não se propõe um trabalho com o desenvolvimento de justificativas formais, nesta fase escolar, entendemos que, ainda que o professor informe ou indique uma prova formal da irracionalidade de , espera-se que o aluno “aceite” o fato de que um número irracional não pode ser representado na forma a/b com a e b inteiros e b não nulo. No que concerne à abordagem experimental do número , que em geral se faz pela observação da regularidade nos quocientes entre as medidas do comprimento e do diâmetro de circunferências distintas, os autores fazem referência ao risco de sugerir ao aluno a ideia de que é racional, visto que os resultados obtidos por medições são números racionais. De acordo com o texto, isso 55 constituiria obstáculo para o aluno aceitar a irracionalidade do número . (ibid., p. 106, 107). Em substituição a essa abordagem, são sugeridas atividades que favoreçam a obtenção de aproximações sucessivas de , com o auxílio de calculadoras distintas, a fim de que os alunos percebam a ausência de período em sua expansão decimal. (ibid., p.107). Todavia, a indicação dessas atividades não alerta o professor para a insuficiência da calculadora, como recurso para a introdução do conceito de número irracional (e não apenas do número ), ou como recurso que precisaria ser utilizado com reservas, associado a outras estratégias de abordagem, a fim de evitar a construção de ideias incorretas sobre esses números. Nas atividades a que se refere o texto, por exemplo, por maior que seja a quantidade de dígitos das calculadoras que possam ser utilizadas, não há garantia da ausência de período na parte da expansão decimal que não fica visível na calculadora. Ou seja, ainda que se faça essa exploração, o fato de ser número irracional terá de ser aceito pelo aluno, quer por meio de esclarecimentos do professor, quer por pesquisas em livros, na internet, ou outro material didático, uma vez que a prova formal da irracionalidade de não seria compreensível nesta fase escolar, visto que exige conhecimentos que só em estudos posteriores poderão ser construídos. Além disso, essa exploração também envolveria apenas aproximações racionais do número , o que, de qualquer forma, poderia resultar na conclusão de que é racional. Por outro lado, com o propósito de evitar a construção da ideia de número irracional reduzida a poucos representantes como , os autores sugerem que o trabalho sobre as operações com racionais e irracionais inclua uma exploração de números da forma a + b. , com a e b racionais, como recurso que pode contribuir para a percepção da possibilidade de obter infinitos números irracionais a partir de um único irracional – no caso, . (ibid., p.107). Destaca-se, ao mesmo tempo, a importância de estabelecer conexões entre os diferentes blocos em que se organiza o currículo de Matemática – Números e 56 operações, Espaço e forma, Grandezas e medidas e Tratamento da informação –, por meio da articulação entre aspectos distintos dos conteúdos, a fim de ampliar a compreensão do aluno a respeito dos mesmos. (ibid. p.53). Tendo em conta essas orientações, pensamos que um dos aspectos dos números irracionais que permitiria a conexão entre blocos distintos de conteúdos é o que envolve a incomensurabilidade de grandezas – interpretação geométrica dos números irracionais. Como exemplo, o estudo do Teorema de Tales, proposto inicialmente como atividade experimental, poderia posteriormente avançar para a discussão sobre o caso que envolve segmentos incomensuráveis. Dessa maneira, além de constituir oportunidade para a construção de conceitos e procedimentos poderia ajudar o aluno a compreender melhor a ampliação dos campos numéricos. Não se faz, todavia, referência a segmentos incomensuráveis, ao longo do texto e também quando os autores aludem à razão entre a diagonal e o lado de um quadrado qualquer, não há menção à incomensurabilidade desses dois segmentos. Esse tema exigiria um tratamento formal que – interpretamos, nós – segundo a abordagem sugerida neste documento, configura-se prematuro, nesta fase da escolaridade. A esse respeito, os autores esclarecem que as orientações oferecidas não contemplam todos os aspectos dos conteúdos a serem desenvolvidos no Ensino Fundamental II, devendo ser complementadas e ampliadas com a leitura de documentos que discutam resultados de pesquisas desenvolvidas sobre o tema (ibid., p.95). Esclarecem, igualmente, que a organização dos conteúdos pressupõe que se levem em conta alguns pontos como: Os conteúdos organizados em função de uma conexão não precisam ser esgotados necessariamente de uma única vez, embora deva-se chegar a algum nível de sistematização para que possam ser aplicados em novas situações. Alguns desses conteúdos serão aprofundados, posteriormente em outras conexões, ampliando dessa forma a compreensão dos conceitos e procedimentos envolvidos; Os níveis de aprofundamento dos conteúdos em função das possibilidades de compreensão dos alunos, isto é, levando em conta que um mesmo tema será explorado em diferentes momentos da aprendizagem e que sua consolidação se dará pelo número cada vez maior de relações estabelecidas. (ibid., p.53). 57 Tais considerações poderiam, a nosso ver, justificar a ausência de quaisquer orientações relativas à proposição de atividades que envolvam grandezas incomensuráveis, neste nível de escolaridade. Dessa forma, embora historicamente a existência de grandezas incomensuráveis tenha sido a causa da criação do conjunto dos números irracionais42, interpretamos que, em virtude da complexidade que envolve esse tema, seu estudo seria postergado para o Ensino Médio ou para a universidade, quando os estudantes provavelmente teriam conhecimentos prévios suficientes para compreender esse conteúdo. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (2010) e Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos (2010) Como resultado de novas discussões com respeito à organização e funcionamento da Educação Básica, à qualidade da educação, tendo em vista o acesso, a permanência, a inclusão e o sucesso de todos os estudantes na instituição de ensino e visando o estabelecimento de bases comuns nacionais para a Educação Básica, foram formuladas as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (2010) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos (2010). Segundo esses documentos, os conteúdos que compõem o currículo do Ensino Fundamental, denominados por componentes curriculares, se organizam e m quatro áreas que abrangem alguns objetos de estudo comuns, por meio dos quais se estabelece a interdisciplinaridade: Linguagens Matemática Ciências da Natureza Ciências Humanas. (Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos, 2010, p.13) 42 A esse respeito, ver, por exemplo, Caraça (2000, p. 47-61) e Lakoff & Núñez (2000, p. 70-71). 58 Não há, no entanto, nesses documentos, orientações quanto aos possíveis encaminhamentos para o desenvolvimento de conteúdos que venham a compor cada uma dessas áreas, nem quanto ao nível de aprofundamento desejável para os mesmos. Sequer há indicação dos conteúdos que seriam distribuídos em cada uma dessas áreas, ao longo do Ensino Fundamental. Por outro lado, um exame das recentes orientações do MEC para a avaliação do desempenho dos alunos nesta etapa escolar pode oferecer pistas a respeito desses conteúdos. É certo que a matriz de referência utilizada para a elaboração das questões que compõem tais avaliações não inclui itens cuja resolução requer certas habilidades e competências que, conquanto sejam importantes, não poderiam ser medidas por meio de questões de múltipla escolha. Entretanto, ainda que se leve esse fato em consideração, observa-se que o destaque dado para os números irracionais é reservado para as aproximações racionais desses números. Citamos como exemplo, a Prova Brasil de 2011 que avaliou os conhecimentos de alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Um único descritor 43 se refere aos números irracionais e, de certa forma, os trata como racionais, visto que exige apenas o domínio de aproximações racionais de radicais não exatos. É o descritor D-27: “efetuar cálculos simples com valores aproximados de radicais”, que avaliou “a habilidade de o aluno resolver expressões com radicais não exatos, resolvendo os radicais com aproximações, como no caso dos números irracionais”. (BRASIL, PDE: 2008 p.153; 183; 184). 2.1.2. Os números irracionais no Ensino Médio Destacamos, a seguir, as recomendações apresentadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nas Orientações Curriculares publicadas pelo MEC e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio sobre a abordagem dos irracionais nessa etapa da escolaridade. 43 Descritor: termo utilizado para descrever, indicar, detalhar as habilidades e competências relativas a determinado conteúdo que deve ser dominado pelos estudantes. Os descritores permitem a mensuração das aprendizagens que se esperam dos alunos, no período avaliado por meio de uma prova. (Matrizes de Referência para a Avaliação SARESP, 2009, p.13). 59 Documentos referentes aos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM, 2000), são finalidades da formação que se pretende oferecer ao aluno: a aquisição de conhecimentos básicos, a preparação científica e a capacidade de usar tecnologias, num processo que visa preparar o aluno como cidadão e como autor de seu próprio conhecimento, pelo desenvolvimento de competências relativas à abstração, à organização do pensamento, à elaboração de estratégias para a resolução de problemas e pelo desenvolvimento de atitudes como disposição para trabalhar em equipe, para a comunicação e para a busca de novos conhecimentos. Essas são competências básicas que permitem desenvolver no aluno a capacidade de “aprender a aprender” num processo contínuo de formação que favorece a leitura, interpretação e compreensão do mundo. (Parte I - Bases Legais, p.15, 16). Por outro lado, segundo o artigo 35 da LDB (Lei 9.394/96), uma das finalidades do Ensino Médio como etapa final da Educação Básica é a “consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”. O “aprofundamento dos conhecimentos adquiridos”, a que se refere o artigo 35 acima, diz respeito, conforme esclarecem os PCNEM (2000), ao desenvolvimento da capacidade de aprender, ao aperfeiçoamento do uso de linguagens no processo de construção desses conhecimentos e à formação de atitudes e valores (p.73). Esse documento, organizado em: Parte I – Bases Legais; Parte II – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Parte III – Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Parte IV – Ciências Humanas e suas Tecnologias, apresenta uma descrição das competências específicas a serem desenvolvidas por meio das disciplinas, não contendo, no entanto, um detalhamento dos conteúdos a serem trabalhados nessas disciplinas ou orientações pedagógicas para o desenvolvimento dos conteúdos, nessa etapa da escolaridade. Com a finalidade de suprir essa lacuna, foram publicados os PCN+ (2002) que reiteram considerações explicitadas no documento anterior, a respeito da importância do ensino dos conteúdos, visando o desenvolvimento de competências para a resolução de problemas (ler, compreender e interpretar formas textuais diferentes, dominar códigos e nomenclaturas da linguagem matemática, elaborar 60 estratégias de resolução, argumentar e expressar ideias), que permitam aprimorar formas de pensar em Matemática. (PCN+, 2002, p.112). Além disso, esse documento propõe uma seleção dos temas a serem trabalhados, a fim de que os alunos possam avançar em seus conhecimentos, a partir do ponto em que se encontram e, ao mesmo tempo, sejam capazes de articular ideias e conceitos distintos e estabelecer relações entre os conteúdos desenvolvidos. O conjunto de temas nomeados nesse documento, para favorecer o desenvolvimento das competências estabelecidas, foi organizado em três eixos ou “temas estruturadores”: (1) Álgebra: números e funções; (2) Geometria e medidas e (3) Análise de dados. O desenvolvimento do primeiro eixo (Álgebra: números e funções) é organizado em duas unidades temáticas: 1. Variação de grandezas: noção de função, funções analíticas e não analíticas; representação e análise gráfica; sequências numéricas: progressões e noção de infinito; variações exponenciais ou logarítmicas; funções seno, cosseno e tangente; taxa de variação de grandezas. 2. Trigonometria: do triângulo retângulo; do triângulo qualquer; da primeira volta. (ibid., p.122, 123, destaque dos autores). Com respeito aos números reais e às funções de variáveis ou incógnitas reais, que constituem objetos de estudo desse eixo, os autores esclarecem que Os procedimentos básicos desse tema se referem a calcular, resolver, identificar variáveis, traçar e interpretar gráficos e resolver equações de acordo com as propriedades das operações no conjunto dos números reais e as operações válidas para o cálculo algébrico. Esse tema possui fortemente o caráter de linguagem com seus códigos (números e letras) e regras (as propriedades das operações), formando os termos desta linguagem que são as expressões que, por sua vez, compõem as igualdades e desigualdades. (ibid., p.121). No que se refere, especificamente, ao conjunto dos números reais, acrescenta-se que Ainda neste tema, é possível alargar e aprofundar o conhecimento dos alunos sobre números e operações, mas não isoladamente dos outros conceitos, isto é, pode-se tratar os números decimais e fracionários, mas mantendo de perto a relação estreita com problemas que envolvem medições, cálculos aproximados, porcentagens, assim como os números irracionais devem se ligar ao trabalho com geometria e medidas. (ibid., p. 122, grifo dos autores). 61 Dessa forma, o estudo dos números irracionais estaria inserido também no segundo eixo (Geometria e medidas), que inclui a quantificação de determinadas grandezas, estabelecendo a relação entre o estudo dos números e o estudo das formas geométricas. Quanto às “estratégias para a ação” destinadas ao desenvolvimento dos conteúdos indicados, as orientações fornecidas neste documento são de caráter geral, acerca da importância de escolher a resolução de problemas como perspectiva metodológica, da exploração de trabalhos em grupos, do desenvolvimento de projetos e da avaliação. Em 2006, com a finalidade de complementar as recomendações apresentadas nos documentos destacados nos parágrafos anteriores, foram publicadas as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), que tratam da seleção dos conteúdos para o Ensino Médio e acrescentam recomendações sobre o tratamento a ser dispensado a esses conteúdos. Além disso, discutem questões ligadas ao projeto pedagógico e à organização curricular. Nesse documento, os conteúdos de Matemática estão organizados em quatro grandes blocos: Números e operações; Funções; Geometria; Análise de dados e probabilidade, cabendo ao professor a tarefa de explorar meandros que permitam as articulações possíveis entre eles, e também retomar, em determinados pontos desse processo, temas já abordados ao longo do Ensino Fundamental, a fim de consolidar ideias cuja compreensão exige maior maturidade. (OCEM, 2006, p.70). Nessa disposição, além do trabalho com a resolução de problemas que envolvem números inteiros e racionais em suas diversas representações, recomenda-se a inclusão de problemas que tratam da necessidade de ampliação dos campos numéricos e suas operações. Essa abordagem permite ao professor a introdução do conjunto dos números irracionais como “uma necessidade matemática que resolve a relação de medidas entre dois segmentos incomensuráveis, sendo apropriado tomar o caso dos segmentos lado e diagonal de um quadrado como ponto de partida.” (OCEM, 2006, p.71). Ou seja, estas orientações representam um avanço em relação àquelas apresentadas em documentos anteriores, como os PCNEM (2000) ou PCN+(2002), no que se refere ao tratamento a ser dispensado ao conceito de número irracional, 62 como “etapa” fundamental para a introdução dos números reais. Segundo estas orientações, o estudo dos números irracionais é retomado no Ensino Médio, pela exploração de situações que envolvem raízes quadradas não exatas ou o número , pela caracterização dos números racionais e irracionais por suas expansões decimais e pela localização de alguns deles na reta numérica (ibid., p.71). Além disso, esse estudo é ampliado pela discussão sobre segmentos incomensuráveis, o que pode favorecer o aprofundamento e a consolidação de conhecimentos cuja construção foi iniciada no Ensino Fundamental, constituindo assim, uma oportunidade para o estabelecimento da relação entre números irracionais e incomensurabilidade de grandezas. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio44 (2011) Reiteram-se, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2011), os objetivos explicitados nos documentos referidos nos parágrafos anteriores, no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades indispensáveis ao exercício pleno da cidadania e também à continuidade dos estudos. Em suas considerações sobre o currículo, por exemplo, os autores dessas Diretrizes observam que Além de uma seleção criteriosa de saberes, em termos de quantidade, pertinência e relevância, e de sua equilibrada distribuição ao longo dos tempos de organização escolar, vale possibilitar ao estudante as condições para o desenvolvimento da capacidade de busca autônoma do conhecimento e formas de garantir sua apropriação. Isso significa ter acesso a diversas fontes, de condições para buscar e analisar novas referências e novos conhecimentos, de adquirir as habilidades mínimas necessárias à utilização adequada das novas tecnologias da informação e da comunicação, assim como de dominar procedimentos básicos de investigação e de produção de conhecimentos científicos. É precisamente no aprender a aprender que deve se centrar o esforço da ação pedagógica, para que, mais que acumular conteúdos, o estudante desenvolva a capacidade de aprender, de pesquisar e de buscar e (re) construir conhecimentos. (p.40, 41). Para atender a esses objetivos, os componentes curriculares são organizados em quatro áreas de conhecimento: (I) Linguagens; (II) Matemática; (III) Ciências da Natureza; (IV) Ciências Humanas (ibid., p.57,58), diferentemente das indicações 44 As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PARECER CNE/CEB Nº 5/2011, aprovado em 04/05/2011), atualizam a Resolução CNE/CEB nº 3, de 26/06/1998, revogando disposições em contrário. 63 contidas nos PCNEM (2000), em que Matemática e Ciências da Natureza fazem parte da mesma área de conhecimento. Os objetos de conhecimento da área de Matemática, conforme estabelece a Matriz de Referência para o ENEM 2011, distribuem-se em cinco blocos: Conhecimentos numéricos; estatística probabilidade; e Conhecimentos geométricos; Conhecimentos Conhecimentos algébricos; de Conhecimentos algébricos/geométricos. No que concerne ao bloco Conhecimentos numéricos, espera-se que, ao concluir o Ensino Médio, um estudante domine conceitos relativos às “operações em conjuntos numéricos (naturais, inteiros, racionais e reais), desigualdades, divisibilidade, fatoração, razões e proporções, porcentagem e juros, relações de dependência entre grandezas, sequências e progressões, princípios de contagem”. (Matriz de Referência para o ENEM 2011). Tais conteúdos não são indicados como obrigatórios de um currículo mínimo, conforme esclarecem as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2011, p.52). No entanto, são vistos como direito dos estudantes, podendo, portanto, ser exigidos por eles. O domínio desses conteúdos inclui a capacidade de utilizar a Matemática como ferramenta para “resolver situação-problema envolvendo conhecimentos numéricos” e também a capacidade de “reconhecer, no contexto social, diferentes significados e representações dos números e operações – naturais, inteiros, racionais ou reais” (Matriz de Referência para o ENEM 2011). Em nossa interpretação, está incluído nessas indicações o estudo dos números irracionais – ainda que se atribua a esse conjunto uma importância restrita à “ponte” que permite a passagem dos racionais para os reais. Contudo, não se apresentam, nesse documento, indicações sobre a condução de abordagens que favoreçam o desenvolvimento das habilidades esperadas nos alunos. Cabe então, ao professor ou aos livros didáticos, a escolha de encaminhamentos e do nível de aprofundamento que se irá conferir ao tratamento desse conteúdo, ao longo do Ensino Médio. Acrescentamos, finalmente, que as orientações e recomendações contidas nos Parâmetros e Referenciais Curriculares para a Educação Básica publicados pelo 64 Ministério da Educação são a base sobre a qual foi elaborado o Currículo do Estado de São Paulo (2010)45, que interpretamos conforme o que está exposto a seguir. 2.2. Currículo do Estado de São Paulo O ensino a que se refere o Currículo do Estado de São Paulo (2010) é pautado no compromisso de promover a construção do conhecimento como ferramenta que deve ser mobilizada em competências (p.11). Ou seja, as ações que se realizam no âmbito escolar devem articular os conteúdos, as medidas pedagógicas e a mediação do professor, tendo como parâmetros os conhecimentos que se espera que os alunos construam. Propõe-se, então, a elaboração de um currículo com ênfase nos conteúdos que sejam considerados relevantes no repertório de todos os alunos, ao final do processo, levando-se em conta a necessidade de abordagens distintas, que respeitem a diversidade dos estudantes. Dessa forma, a atuação do professor deve consistir na mobilização de metodologias e saberes específicos de sua área de conhecimento, tendo como propósito orientar o aluno no processo de desenvolvimento das competências necessárias à identificação de objetos que são próprios de uma área de conhecimento e ao reconhecimento da importância de estudar e explorar esses objetos. (Currículo do Estado de São Paulo, 2010, p. 12, 13). Três eixos devem nortear a ação educacional, com vistas ao desenvolvimento de competências básicas, no que se refere à Matemática, conforme especifica o texto: Expressão/compreensão – diz respeito à capacidade de ler, interpretar, entender e expressar ideias relativas a números, formas, grandezas, tabelas e gráficos, com vistas à compreensão da realidade; 45 O Currículo do Estado de São Paulo (2010) é a versão final da Proposta Curricular do Estado de São Paulo, cuja primeira versão foi publicada em 2008, embora os Cadernos que integram esse Currículo ainda estejam em sua versão de 2009. 65 Argumentação/decisão – trata da capacidade de analisar, sintetizar e estabelecer relações entre informações disponíveis, bem como elaborar argumentos lógicos, obter conclusões e propor soluções; Contextualização/abstração – se refere à capacidade de abstrair a partir de situações concretas, e de contextualizar os temas estudados no ambiente escolar. (ibid., p. 31-33). Adotam-se, nesse Currículo, como competências básicas, conforme aquelas especificadas pelo Enem46 (1998), e que atendem o que está estabelecido nos três eixos referidos anteriormente, a capacidade de expressão pessoal, de compreensão de fenômenos, de argumentação consistente, de tomada de decisões conscientes e refletidas, de problematização e enraizamento dos conteúdos estudados em diferentes contextos e de imaginação de situações novas.(Currículo do Estado de São Paulo, 2010, p.35). Cumpre esclarecer que a estrutura do Currículo do Estado de São Paulo (2010) distingue-se das demais propostas elaboradas anteriormente, visto que se constitui em um conjunto de orientações metodológicas, acompanhadas de sugestões de atividades exemplares, que foram distribuídas em quatro cadernos por série, do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio (volumes 1, 2, 3 e 4, destinados respectivamente ao 1º, 2º, 3º e 4º bimestres). Dessa forma, integram o Currículo do Estado de São Paulo (2010) 16 Cadernos do Aluno e os correspondentes Cadernos do Professor, para o Ensino Fundamental II e 12 Cadernos do Aluno e os correspondentes Cadernos do Professor, para o Ensino Médio. Para o desenvolvimento das competências mencionadas anteriormente, os conteúdos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio foram organizados em três grandes blocos temáticos: Números, Geometria e Relações. Com respeito à introdução dos números irracionais – estudo que se insere no bloco denominado Números –, tendo como principal objetivo a ampliação do campo numérico, os autores sugerem a proposta de situações que problematizem a necessidade de representar, por meio de uma raiz, a medida de determinados 46 Exame Nacional do Ensino Médio. 66 segmentos – por exemplo, a diagonal de um quadrado de lado unitário. (Currículo do Estado de São Paulo, 2010, p. 40). Desde o 3º bimestre do 7º ano do Ensino Fundamental, sem que haja menção aos irracionais, faz-se uma antecipação desse conteúdo, pelo contato do aluno com raízes não exatas, como e em atividades experimentais que envolvem a proporcionalidade entre o lado e a diagonal de quadrados, utilizando régua e calculadora para obter valores aproximados (Caderno do aluno, 6ª série/7º ano, v.3, 2009, p.28). No mesmo caderno, outros experimentos por meio de medições são propostos com a finalidade de apresentar aos alunos os números e Φ47, culminando em sua classificação, como números irracionais – que não podem ser gerados por uma divisão entre inteiros (ibid., p.30-39). Embora se proponha o cálculo de valores aproximados de e com o auxílio da calculadora, não se faz, no texto, nenhuma referência a essas raízes, como números irracionais – o que poderia sugerir, para o aluno, uma ideia inicial de que apenas e Φ são irracionais. Essa iniciação aos irracionais é retomada, efetivamente, no 1º bimestre do 9º ano do Ensino Fundamental, pelo estudo que se divide em Conjuntos numéricos Números irracionais Potenciação e radiciação em R Uma análise mais detalhada dos cadernos referentes ao 9º ano do Ensino Fundamental, que contêm orientações específicas para a introdução e o desenvolvimento do conceito de número irracional é apresentada a seguir. 47 Φ (minúscula: φ) ou phi é a vigésima primeira letra do alfabeto grego utilizada para representar o número de ouro, em homenagem ao escultor Phideas (Fídias), que a teria utilizado para conceber o Parthenon. Trata-se do número irracional . 67 2.2.1. Cadernos do 9º ano do Ensino Fundamental As orientações dirigidas ao professor sugerem, inicialmente, uma exploração da representação de conjuntos por meio de diagramas de Venn48, sob a justificativa de que essa abordagem favorece a percepção de relações entre conjuntos ou entre elementos e conjuntos, como as de inclusão, intersecção, complementaridade, pertinência, etc. Trata-se de uma antecipação ao estudo da ampliação dos conjuntos numéricos – ideia que permeia as atividades propostas no Caderno – sob a perspectiva da estrutura algébrica desses conjuntos. Nota-se, igualmente, uma ênfase para as possíveis representações dos números racionais, cuja exploração tem início no 8º ano, com a construção da fração geratriz de dízimas periódicas, expandindo, no 9º ano, para a possibilidade de representar qualquer racional na forma de dízima periódica e na forma de uma soma infinita de frações decimais e, finalmente, por meio de uma fração contínua – processo finito que envolve números inteiros e frações com numerador igual a 1. Todavia, a sugestão dessa abordagem, que introduz a importante discussão sobre a possibilidade de obtenção de aproximações racionais para números irracionais, é posta, a nosso ver, sob frágeis argumentos, como Finalizada esta breve apresentação sobre o assunto, queremos ressaltar, mais uma vez, que o tratamento dado nesta Situação de Aprendizagem aos números racionais e irracionais por meio de frações contínuas consiste em uma alternativa à abordagem tradicional conduzida por boa parte dos programas curriculares e livros didáticos. Deve ficar claro que a decisão sobre incorporar ou não essa abordagem (ou parte dela) caberá ao professor (Caderno do Professor, 8ª série, v.1, 2009, p.30). São acrescentadas, em seguida, considerações sobre a utilização da calculadora como recurso para encontrar aproximações de raízes como “uma interessante porta de entrada para a expansão do conhecimento numérico de um aluno de 8ª série” (loc.cit.). O que poderia progredir para uma discussão sobre a densidade do conjunto dos números racionais na reta numérica, a nosso ver necessária para introduzir a ideia de completude da reta. Isso poderia ser a base para o que é dito quando se inicia o trabalho com a construção geométrica de segmentos de medida irracional: 48 Diagramas de Venn: nome dado às representações gráficas de classes de objetos, em referência ao lógico inglês John Venn (1834-1923). (ver Eves, 2004, p. 451). 68 Agora que a reta real está completamente preenchida, nos debruçaremos sobre um problema que remonta à geometria da Grécia Antiga. Sabe-se que os gregos antigos se interessavam por construções geométricas feitas com o uso de dois dos instrumentos geométricos mais simples de todos: a régua sem escala e o compasso. (ibid. p. 34). Ou seja, nesta proposta, o aluno é antes informado de que na reta estão representados todos os números racionais e irracionais, para depois localizar estes números sobre a reta numérica, com o auxílio das construções geométricas. Faz-se, é verdade, uma referência à correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta numérica, como “uma propriedade importante, que será amplamente utilizada daqui para a frente. Para cada número real, é possível associar um único ponto de uma reta numerada” (ibid., p.20), mas não há sugestão de ações que permitam ao aluno, ainda que intuitivamente, a construção da ideia de que cada número real representa a medida de um único segmento representado sobre a reta. Percebe-se, assim, um compromisso com a inovação, que, de certa forma, parece desvinculado da preocupação de proporcionar aos alunos a oportunidade de melhor compreender conteúdo tão complexo como os números irracionais. Por exemplo, como razão para a introdução dos conceitos de números algébricos e transcendentes no 9º ano do Ensino Fundamental, os autores explicam que seria uma forma de ...justificar para o aluno a diferença entre números irracionais como eo . Enquanto é um número irracional algébrico, não há uma equação algébrica com coeficientes inteiros que tenha como solução o número , o que o caracteriza como irracional não algébrico (irracional transcendente: quando um número real não é algébrico dizemos que ele é transcendente). Todo número racional é algébrico, mas nem todo número irracional é algébrico (Caderno do Professor, 8ª série, v.1, 2009, p.34). É certo que em diversos pontos do texto há indicações de que o professor tem autonomia para optar por esta abordagem (ou não) e é certo também que algumas orientações contidas neste material, independentemente de serem incorporadas à prática do professor, podem enriquecer seus conhecimentos – e talvez tenham sido inseridas no texto sob essa intenção. Essa nossa interpretação poderia ser justificada pelo período: existem inúmeros exemplos de irracionais transcendentes, porém, até o final do Ensino Fundamental o aluno terá contato com apenas alguns 69 poucos deles. Pode-se demonstrar matematicamente que são irracionais transcendentes números como e (loc.cit.). Entretanto, levando-se em conta, como exemplo, o fato de que o número irracional , necessariamente introduzido no Ensino Fundamental, para a compreensão das ideias de perímetro e área do círculo, e que, em nosso ponto de vista, deve ser “aceito” pelo aluno por um ato de fé, uma vez que a demonstração formal de sua irracionalidade não convém - nem é viável – nesse nível de escolaridade, como justificar a introdução dos irracionais transcendentes, ainda que sejam “apenas” os indicados nesse material: e ? A esse respeito, os autores observam que não veem grandes obstáculos em apresentar aos alunos do 9º ano a classificação dos números reais em algébricos e transcendentes, “especialmente se houver interesse do professor em tratar o assunto sob o ponto de vista da história da Matemática” (ibid., p.33). Todavia, as orientações concernentes à abordagem da incomensurabilidade de grandezas, cuja descoberta exigiu – na história da construção desse conhecimento – a criação do conjunto dos números irracionais, se reduzem a duas menções de certa forma “tímidas”, como “nem toda medida pode ser expressa na forma de uma razão entre números inteiros. A descoberta da existência dos segmentos incomensuráveis foi um dos fatos mais surpreendentes da história da Matemática” (ibid., p.19) e “a existência de segmentos incomensuráveis implicou a criação de um conjunto complementar aos números racionais e que foi denominado irracional” (ibid., p.20, grifo dos autores). Além disso, ao introduzir as orientações sobre a demonstração do Teorema de Tales – Cadernos da 7ª série –, os autores já se referem aos segmentos incomensuráveis como conteúdo que será tratado na 8ª série: A partir de situações que exploram essa proporcionalidade de forma intuitiva, é sugerida uma demonstração desse teorema com o objetivo de validar as ideias adquiridas de maneira informal. Para contornar o problema de segmentos incomensuráveis que a demonstração formal exige, e que é tema do 1º bimestre da 8ª série, os argumentos da demonstração encontram-se apoiados em cálculos de áreas de triângulos (Caderno do Professor, 7ª série/8º ano, v.4, 2009, p.9). ............................................................................................... 70 A vantagem dessa abordagem é não precisar se referir a segmentos incomensuráveis, nem à noção de semelhanças de figuras, temas da 8ª série (Caderno do Professor, 7ª série/8º ano, v.4, 2009, p.32). Essas referências aos segmentos incomensuráveis abririam possibilidades de questões por parte dos alunos, que poderiam, a nosso ver, ser exploradas não apenas no 9º ano, mas também posteriormente, ao longo do Ensino Médio. Por outro lado, enfatiza-se a importância de ampliar o significado do número , por meio, por exemplo, de atividades experimentais para a obtenção de seu valor como razão entre o comprimento e o diâmetro de uma circunferência, ou atividades que tratam da distribuição não periódica dos algarismos em sua representação decimal. Faz-se também a sugestão de outras situações para que o aluno perceba a possibilidade de aproximações tão precisas quanto desejarmos para o valor de pelo método de aproximações sucessivas desenvolvido por Arquimedes 49 , (séc.III a.C). Essa seria, segundo os autores, uma estratégia de convencimento de que a representação decimal de é infinita e não periódica, em substituição à prova formal da irracionalidade desse número – inviável nesta etapa escolar. (Caderno do Professor, 8ª série, v.4, 2009, p. 13-15). Além disso, são propostas outras atividades que envolvem o número como um conhecimento já construído, nos cadernos do Ensino Médio, conforme observações que faremos mais adiante. Outras sugestões feitas no texto para complementar a introdução do conceito de número irracional, durante o 1º bimestre do 9º ano50, deixam visível o fato de que este conteúdo merece ser retomado ao longo do ano, na medida em que são trabalhados outros temas. É o caso da construção geométrica de raízes cujo índice é uma potência de 2, diferente de 1, como , , por exemplo, que exigiria a relação métrica h² = m.n no triângulo retângulo (sendo h a altura do triângulo relativa à hipotenusa e m e n, as projeções dos catetos sobre a hipotenusa) – estudo prescrito para o 3º bimestre do 9º ano do Ensino Fundamental. 49 50 Trata-se de método que envolve a construção de polígonos regulares inscritos e circunscritos a uma circunferência dada. Conhecidos os perímetros dos polígonos inscritos e circunscritos a essa circunferência, Arquimedes tentou definir um intervalo no qual estaria contida a medida do perímetro do círculo. Caderno do Aluno, 8ª série, v. 1, 2009, p. 37. 71 Essa retomada de noções relativas aos irracionais, no material destinado aos demais bimestres do 9º ano, consiste na proposição de situações contextualizadas que conduzem à dedução de fórmulas envolvendo o número , ou que exigem a aplicação das mesmas para o cálculo de perímetro, área e volume de figuras circulares planas ou espaciais. Outras atividades exploram a fórmula de Buffon 51, pela conexão entre a geometria métrica e a probabilidade, em situações que permitem ao aluno a percepção da presença da constante nas fórmulas obtidas. (Caderno do Professor, 8ª série, v.4, 2009, p.41-43). Além da ênfase dada ao número , são propostas atividades sobre probabilidade em situações que envolvem coroas circulares. Estas situações exigem a construção de segmentos de medida irracional com o auxílio de régua e compasso – assunto sugerido para o 1º bimestre. (Caderno do Professor, 8ª série, v.4, 2009, p.44-46). Finalmente, é nossa interpretação que, conquanto o professor tenha liberdade para enriquecer qualquer proposta de trabalho, ele corre o risco de, seguindo esta abordagem no curso do 9º ano do Ensino Fundamental, apresentar, de forma superficial, algumas ideias que são fundamentais, concernentes aos números irracionais e que apenas eventualmente serão aprofundadas nas etapas posteriores da escolaridade, dependendo do grau de importância que se dê a esse conteúdo. 2.2.2. Cadernos do Ensino Médio Sob as orientações referidas nos parágrafos anteriores, a expectativa de aprendizagem que se estabelece é de que o aluno, ao terminar o Ensino Fundamental, “reconheça e saiba operar no campo numérico real, o que constituirá a porta de entrada para aprofundamentos, sistematizações e o estabelecimento de novas relações no Ensino Médio” (Currículo do Estado de São Paulo, 2010, p. 40, 41). 51 O método utilizado por Conde de Buffon, naturalista francês do século XVIII, consistiu em observar o número de agulhas lançadas sobre um plano contendo linhas paralelas. Jogando ao acaso algumas agulhas de comprimento menor do que a distância entre as linhas paralelas, o Conde de Buffon registrou o número de agulhas que caíam sobre as linhas paralelas e o número de agulhas que caíam nos intervalos entre as paralelas. Seu propósito era descobrir a probabilidade de jogar ao acaso uma agulha sobre o tabuleiro e essa agulha cair sobre uma das paralelas. (ver Eves, 2004, p. 145). 72 No entanto, nos cadernos do Ensino Médio, não há um trabalho de retomada de noções concernentes aos irracionais e tampouco se faz um aprofundamento desse conteúdo, não obstante sejam apresentadas recomendações nesse sentido, nas OCEM (2006), conforme referido anteriormente. Observa-se também que a abordagem das funções logarítmicas e trigonométricas52 proposta nesses documentos não favorece a discussão sobre esse conteúdo, embora os valores dessas funções sejam irracionais, exceto para alguns elementos do domínio. São feitas apenas observações como Os logaritmos dos números que não são potências inteiras da base são números irracionais e, na prática, são expressos em termos aproximados, com um número fixo de casas decimais” (Caderno do Aluno, 1ª série do EM, v.3, 2009, p. 18). ................................................................................................................ Existem métodos de cálculo para os logaritmos dos números que não são potências inteiras de 10. Tais valores (aproximados, pois são números irracionais) podem ser obtidos por meio de calculadoras (ou encontrados em tabelas de logaritmos) e estão disponíveis para o uso de todos. (ibid., p.19). Quanto às funções trigonométricas, embora sejam solicitados valores aproximados, por exemplo, para os lados de polígonos inscritos ou circunscritos a uma circunferência de raio 1, com o auxílio da Tabela Trigonométrica, não se faz uma observação explícita sobre o fato de serem quase sempre números irracionais. (Caderno do aluno, 1ª série EM, v.4, 2009, p.26 e 37-39). Outro destaque é dado ao número e, apresentado ao longo da discussão sobre grandezas cujo crescimento (ou decrescimento) ocorre com rapidez diretamente proporcional ao valor da grandeza considerada, em cada instante, acrescentando-se que Tal como o número , o número é irracional e transcendente. Isso significa que irracionais, como , não são razões entre inteiros, mas são raízes de equações algébricas com coeficientes inteiros (por exemplo, x² - 2 = 0); um irracional é transcendente quando não existe equação algébrica com coeficientes inteiros que o tenha como raiz, e esse é o caso de números como e e. Tais fatos, no entanto, não nos interessarão no presente momento. Interessa-nos apenas conhecer uma função exponencial particular, que vai ampliar significativamente o repertório de recursos para o tratamento 52 Funções: exponencial e logarítmica (v.3, 1ª série do EM) e funções trigonométricas, (v.4, 1ª série do EM e v.1, 2ª série do EM). 73 matemático de diversos fenômenos em diferentes contextos. (Caderno do Aluno, 3ª série do EM, v. 3, 2009, p.42). Observamos, no entanto, que as ideias de números algébricos e transcendentes – cuja discussão não seria interessante neste momento, conforme diz o texto acima – já foram sugeridas anteriormente, no Caderno do Professor que contém orientações referentes ao 9º ano do Ensino Fundamental (ocasião em que são introduzidos os números irracionais) e talvez pudessem ser clarificadas na 3ª série do Ensino Médio. Acrescentamos finalmente que, conquanto seja demonstrada preocupação no sentido de contemplar aspectos distintos dos números irracionais, as recomendações oferecidas no Currículo do Estado de São Paulo (2010), bem como nos Cadernos que dele fazem parte integrante, concentram no 9º ano, sobretudo no 1º bimestre, sugestões de discussões importantes, potencialmente ricas, que poderiam ser distribuídas e aprofundadas ao longo do Ensino Médio, quando a compreensão desse conteúdo provavelmente seria melhor. 2.3. Números irracionais: uma síntese da análise de orientações curriculares Apresentamos, a seguir, uma síntese de nossas reflexões a respeito das recomendações contidas nos documentos analisados, sobre o ensino do conceito de número irracional. Consideramos apropriado ressaltar que esses documentos apresentam pontos comuns em suas orientações, a despeito da época em que foram elaborados e do fato de haverem sido organizados por equipes distintas. Alguns desses pontos são assinalados a seguir. Conforme considerações feitas anteriormente, os PCNEM (2000) e os PCN+(2002) apresentam uma lacuna em relação ao processo de ensino dos números irracionais no Ensino Médio, solucionada por indicações constantes das OCEM (2006), para a retomada e o aprofundamento desse tema, nessa etapa escolar. Entretanto, o Currículo do Estado de São Paulo (2010) não segue as sugestões desse último documento. No que se refere à abordagem desse conteúdo no Ensino Fundamental, o Currículo do Estado de São Paulo (2010) incorpora as sugestões para a introdução 74 dos irracionais contidas nos PCN (1998), propondo, além disso, um aprofundamento que inclui, por exemplo, a representação de números racionais e irracionais por meio de frações contínuas e a classificação dos irracionais em algébricos e transcendentes – itens que, a nosso ver, precisariam de uma investigação quanto à sua viabilidade em sala de aula. Por outro lado, a densidade na reta, como característica do conjunto dos números racionais, não ganha destaque, nestes documentos, como recurso que, em nossa opinião, poderia ser explorado para favorecer a discussão em sala de aula sobre a existência de pontos na reta que não correspondem a números racionais, ampliando, posteriormente, para considerações também sobre a densidade dos conjuntos dos irracionais e dos reais. Outro ponto diz respeito à incomensurabilidade de grandezas. Trata-se de tema que não figura no rol de conteúdos indicados para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais e, embora sejam feitas indicações nas OCEM (2006) para a sua introdução no Ensino Médio, a abordagem contida no novo Currículo de São Paulo é restrita à definição de segmentos comensuráveis ou incomensuráveis (que ocorre no 9º ano do Ensino Fundamental). Apesar da indicação da apresentação da prova da irracionalidade de , por redução ao absurdo, esses documentos não apresentam orientações para o tratamento formal com a finalidade de convencer um aluno de que determinados pares de segmentos não são múltiplos inteiros de um segmento tomado como unidade de medida comum, por menor que este seja. Isto posto, cabe agora uma análise do tratamento indicado para os números irracionais em cursos de Licenciatura em Matemática. 2.4. Diretrizes para Cursos de Licenciatura em Matemática Apresentamos a seguir, uma análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de formação de professores, no que se refere ao ensino dos números irracionais. As diretrizes estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (2001-2010) para a formação de profissionais que atuarão na área da educação, em quaisquer 75 de seus níveis ou modalidades, indicam, dentre os princípios a serem atendidos por cursos de formação de professores, a “sólida formação teórica nos conteúdos específicos a serem ensinados na Educação Básica, bem como nos conteúdos especificamente pedagógicos”. (ver seção 10.2 desse documento). Por sua vez, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (2002)53, em seu artigo 5º, determinam que o projeto pedagógico de cada curso de formação terá em conta os seguintes pontos: I – a formação deverá garantir a constituição das competências objetivadas na educação básica; II – o desenvolvimento das competências exige que a formação contemple diferentes âmbitos do conhecimento profissional do professor; III – a seleção dos conteúdos das áreas de ensino da educação básica deve orientar-se por ir além daquilo que os professores irão ensinar nas diferentes etapas da escolaridade; IV – os conteúdos a serem ensinados na escolaridade básica devem ser tratados de modo articulado com suas didáticas específicas; V – a avaliação deve ter como finalidade a orientação do trabalho dos formadores, a autonomia dos futuros professores em relação ao seu processo de aprendizagem e a qualificação dos profissionais com condições de iniciar a carreira. (grifos nossos). Em seu artigo 10, o mesmo documento acrescenta que A seleção e o ordenamento dos conteúdos dos diferentes âmbitos54 de conhecimento que comporão a matriz curricular para a formação de professores, de que trata esta Resolução [CNE/CP Nº 1, de 18/02/2002], serão de competência da instituição de ensino, sendo o seu planejamento o primeiro passo para a transposição didática, que visa a transformar os conteúdos selecionados em objeto de ensino dos futuros professores. Da mesma forma, a Resolução CNE/CES 3, de 18/02/200355, esclarece que as Diretrizes Curriculares para os cursos de Bacharelado e Licenciatura em 53 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena: Resolução CNE/CP Nº 1, de 18 de Fevereiro de 2002. 54 Conteúdos dos diferentes âmbitos: “cultura geral e profissional; conhecimento sobre crianças, jovens e adultos; conhecimento sobre a dimensão cultural, social e política da educação, conteúdos das áreas do ensino; conhecimento pedagógico; conhecimento advindo da experiência”. (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. PARECER CNE/CP 009/2001, aprovado em 08/05/2001, p.38). 55 Diretrizes Curriculares para os cursos de Matemática. RESOLUÇÃO CNE/CES 3, de 18/02/2003. 76 Matemática (2001)56 deverão orientar a elaboração do projeto pedagógico pelos cursos, que explicitarão “as competências e habilidades de caráter geral e comum e aquelas de caráter específico” e “os conteúdos curriculares de formação geral e os conteúdos de formação específica”. (art. 1º; art. 2º itens b e c). Constitui, portanto, responsabilidade dos cursos de formação de professores não apenas a determinação de um rol de conteúdos que vá além dos prescritos para a Educação Básica, mas também a apresentação de didáticas que contribuam para o desenvolvimento de competências – algumas delas, de caráter mais geral, como as referentes à “compreensão do papel social da escola” e outras mais específicas do conhecimento do conteúdo, como III – as competências referentes ao domínio dos conteúdos a serem socializados, aos seus significados em diferentes contextos e sua articulação interdisciplinar; IV – as competências referentes ao domínio do conhecimento pedagógico; V – as competências referentes ao conhecimento de processos de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica; (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena, 2002, Resolução CNE/CP Nº 1, 18/02/2002, art. 6º). Os cursos de licenciatura para a formação de professores dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem atender também às Diretrizes Curriculares Nacionais próprias de cada campo de conhecimento ou de atuação profissional, conforme estabelece o artigo 7º do PARECER CNE/CP nº5/2006 57. Assim, no que concerne à área de Matemática, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática, Bacharelado e Licenciatura (2001)58 as habilidades e competências esperadas de um educador licenciado consistem em: a) elaborar propostas de ensino-aprendizagem de Matemática para a educação básica; b) analisar, selecionar e produzir materiais didáticos; 56 As Diretrizes Curriculares para os cursos de bacharelado e licenciatura em Matemática integram o Parecer CNE/CES 1.302/2001. 57 PARECER CNE/CP Nº 5/2006, aprovado em 04/04/2006, propõe normas referentes à Formação de Professores para a Educação Básica. 58 Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática, Bacharelado e Licenciatura PARECER Nº CNE/CES 1.302/2001, aprovado em 06/11/2001 e homologado em 04/03/2002. 77 c) analisar criticamente propostas curriculares de Matemática para a educação básica; d) desenvolver estratégias de ensino que favoreçam a criatividade, a autonomia e a flexibilidade do pensamento matemático dos educandos, buscando trabalhar com mais ênfase nos conceitos do que nas técnicas, fórmulas e algoritmos; e) perceber a prática docente de Matemática como um processo dinâmico, carregado de incertezas e conflitos, um espaço de criação e reflexão, onde novos conhecimentos são gerados e modificados continuamente; f) contribuir para a realização de projetos coletivos dentro da escola básica. (p.4) Além dessas competências, esse documento coloca em destaque a necessidade de aprofundar a compreensão dos significados dos conceitos matemáticos, a fim de que o futuro professor possa contextualizar esses conceitos, de forma adequada. (loc.cit.) Poderíamos então, supor que tópicos relativos aos números irracionais estariam incluídos no rol dos conteúdos específicos, a respeito dos quais um futuro professor de Matemática deve construir uma base sólida. Mais do que isso: o que se espera desse professor, conforme se vê nos parágrafos anteriores, é um domínio profundo desse conteúdo, que abarque não só os itens prescritos para as etapas em que irá ministrar suas aulas, mas também que inclua possibilidades diversificadas de estratégias de abordagem e permita justificar, argumentar, fundamentar suas argumentações e convencer seus alunos da importância de estudar esse conteúdo. A essas habilidades e competências são acrescentadas aquelas relativas ao conhecimento curricular dos conteúdos que serão ensinados, para o estabelecimento das necessárias relações de determinado tema da Matemática com os abordados em outras disciplinas do ano em curso, ou com outros temas constantes dos currículos dos anos anteriores ou posteriores. (loc.cit.) Essas mesmas Diretrizes estabelecem como conteúdos comuns a todos os cursos de Licenciatura em Matemática, os que estão a seguir relacionados, podendo ser distribuídos ao longo do curso de acordo com o currículo estabelecido pela instituição: Cálculo Diferencial e Integral Álgebra Linear Fundamentos de Análise Fundamentos de Álgebra 78 Fundamentos de Geometria. Geometria Analítica. (Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática, Bacharelado e Licenciatura, PARECER Nº CNE/CES 1.302/2001, aprovado em 06/11/2001 e homologado em 04/03/2002, p.5,6). A essa parte comum, conforme estabelece o mesmo documento, seriam acrescentados: conteúdos matemáticos presentes na educação básica nas áreas de Álgebra, Geometria e Análise; conteúdos de áreas afins à Matemática, que são fontes originadoras de problemas e campos de aplicação de suas teorias; conteúdos da Ciência da Educação, da História e Filosofia das Ciências e da Matemática. (ibid., p.6). Dessa forma, entendemos que a exploração de noções relacionadas aos números irracionais teria lugar nos estudos de Fundamentos de Análise, quando poderiam ser discutidos e aprofundados tópicos que, conquanto não sejam indicados como conteúdos de ensino para a Educação Básica, devem necessariamente, constar do repertório de domínio do professor, em cumprimento ao que se estabelece nos documentos por nós examinados. Assim, tendo em vista que constitui competência de cada Instituição de Ensino Superior a seleção dos conteúdos dos diferentes âmbitos do conhecimento, conforme referido anteriormente, (incluindo conteúdos das áreas de ensino e conhecimento pedagógico), restaria investigar se as Instituições de Ensino Superior preveem, quando da elaboração de seus currículos, estudos referentes aos números irracionais, com vistas à complementação e aprofundamento de conhecimentos cuja construção teria sido iniciada nos dois últimos anos do Ensino Fundamental e consolidada ao longo do Ensino Médio. 2.5. A abordagem do conceito de número irracional apresentada em Livros Didáticos Em complementação à pesquisa documental, foram escolhidas duas coleções de livros didáticos destinadas aos quatro últimos anos do Ensino Fundamental, aprovadas pelo PNLD59(2011) e adotadas em escolas, nas quais os participantes de 59 PNLD – Programa Nacional do Livro Didático 79 nosso estudo trabalham, com o propósito de examinarmos a abordagem proposta para a introdução do conceito de número irracional no Ensino Fundamental: TUDO É MATEMÁTICA Luiz Roberto Dante Editora Ática A CONQUISTA DA MATEMÁTICA – EDIÇÃO RENOVADA Giovanni, Castrucci e Giovanni Jr. Editora FTD Levamos em conta que, sendo indicado como material de apoio para a relação que se estabelece entre o aluno, o saber e o professor, o livro didático pode, em alguns casos, ser o principal indicador de parâmetros e orientações para a realização do trabalho do professor em sala de aula. Em virtude disso, nos interessamos por investigar nessas coleções: a) os aspectos enfatizados no tratamento dos números irracionais: as definições apresentadas; as distintas representações utilizadas; o destaque dado à densidade do conjunto dos números racionais; o estabelecimento da relação entre as interpretações numérica e geométrica dos números irracionais; a introdução da ideia de correspondência biunívoca entre o conjunto dos números reais e o conjunto dos pontos da reta. b) a exploração dos componentes: intuitivo, algorítmico e formal nas atividades propostas; c) as relações que se estabelecem entre números irracionais e outros campos da Matemática e também entre números irracionais e outras áreas do conhecimento. 2.5.1. Resultados da análise da coleção: TUDO É MATEMÁTICA Segundo a proposta de trabalho apresentada nesta coleção, a transição entre o conjunto dos racionais e o conjunto dos reais é sistematizada no 8º ano do Ensino Fundamental, pela introdução do conceito de número irracional. 80 Retomam-se, no texto, conjuntos numéricos abordados anteriormente, para justificar o estudo de um “novo” conjunto, destacando-se, por exemplo, a insuficiência do conjunto dos inteiros na representação de valores monetários, para dar lugar à exploração de diferentes representações dos racionais em situações retiradas do cotidiano. (DANTE, 8º ano, 2011, p.21). Contudo, como é observado no Guia de Livros Didáticos: PNLD (2011, p.87), “...nem sempre são dadas oportunidades ao aluno para experimentar, refletir, conjecturar e fazer inferências, pois os conceitos, definições e procedimentos são apresentados precocemente”. Na introdução do conceito de densidade do conjunto Q, por exemplo, tendo chamado a atenção do aluno para a ausência de números inteiros entre dois inteiros consecutivos e observando que entre dois racionais sempre existe outro número racional, o autor da coleção acrescenta: “essa é a propriedade da densidade dos números racionais. Dizemos, por isso, que o conjunto dos números racionais é denso. No entanto, os números racionais ainda não completam a reta numerada.” (DANTE, 8º ano, 2011, p.24). Essa abordagem pode não provocar uma reação de desconcerto, ou de espanto, pela “descoberta” de que, não obstante Q seja denso em toda a reta, existem, nessa mesma reta, pontos que não correspondem a números racionais. Consequentemente, não se explora essa característica do conjunto Q, como ponto de partida para a introdução do conjunto dos números irracionais. Os números irracionais são definidos no 8º ano do Ensino Fundamental, por meio de sua representação decimal infinita e não periódica: Figura 2 - Introdução do conceito de número irracional Fonte: Tudo é Matemática (DANTE, 2011, 8º ano, p.26) No entanto, desde os anos anteriores, os autores anunciam o estudo de números que não são racionais, independentemente de nomear tais números como irracionais. Como exemplo, as atividades propostas no volume do 6º ano incluem 81 uma referência ao número de ouro, a partir da observação da regularidade nos quocientes obtidos entre termos consecutivos da sequência de Fibonacci 60 (p.195) e incluem igualmente, a introdução do número por meio de experimento que envolve a medição do comprimento e do diâmetro de objetos circulares (p.273, 274). No 7º ano, após definir o conjunto dos números racionais, acrescenta-se que É importante saber que existem números que não são racionais, e que serão estudados futuramente. Por exemplo, o número pi ( = 3,14159...), que você já viu no cálculo da medida de comprimento de uma circunferência, não é número racional. As raízes quadradas não exatas de números naturais também não são números racionais. Exemplos: = 3,16227...; = 6,708203...; e outras. (DANTE, 7º ano, 2011, p.57) Desde o 6º ano, são propostas questões que envolvem cálculos relativos ao comprimento e ao diâmetro de circunferências, recomendando-se o uso de No 8º ano, prioriza-se o aspecto algorítmico, no tratamento dado aos irracionais, por meio de cálculos de valores aproximados de raízes quadradas, incluindo a proposta de atividades que requerem aproximações sucessivas (em décimos, em centésimos, etc.), a decomposição em fatores primos ou a utilização da calculadora. (DANTE, 8º ano, 2011, p.28-29). Em complementação, o autor define o conjunto dos números reais como reunião do conjunto dos números racionais (Q) com o conjunto dos números irracionais (Ir), fazendo menção à correspondência um a um entre o conjunto dos reais e o conjunto dos pontos da reta e também à completude da reta, que passa a ser chamada de “reta real”. (ibid., p.31) A localização de números irracionais sobre a reta é feita, considerando-se suas representações decimais aproximadas por décimos, conforme se vê no excerto a seguir: 60 Leonardo de Pisa (cerca de 1180-1250), conhecido como Fibonacci ou “filho de Bonaccio”, escreveu o Liber abaci (ou livro do ábaco), considerado como um tratado sobre métodos e problemas algébricos. Um dos problemas propostos nesse livro, enunciado por: “Quantos pares de coelhos serão produzidos num ano, começando com um só par, se em cada mês cada par gera um novo par que se torna produtivo a partir do segundo mês?” dá origem à “sequência de Fibonacci”, indicada por 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, ... Nessa sequência, cada termo, a partir do terceiro, é a soma dos dois termos imediatamente precedentes. (ver Boyer, 1996, p. 174). 82 Figura 3 - Localização de números reais sobre a reta Fonte: (Dante, 8º ano, 2011, p. 31) Quanto ao restante, no 8º ano, os conteúdos são tratados no contexto dos números reais. No 9º ano, o conceito de número irracional é ampliado, tomando-se como ponto de partida o cálculo de raízes quadradas e cúbicas exatas, explorado no 8º ano. Retomam-se os procedimentos para a determinação de valores aproximados de raízes quadradas não exatas (por falta e por excesso), para a discussão sobre radicais com índices maiores do que 2. Essa abordagem resulta na exploração de propriedades, comparação e operações com radicais. Nesse sentido, observa-se uma preocupação com a integração entre os aspectos intuitivo e algorítmico, no tratamento dispensado a esse conteúdo. Por outro lado, verifica-se também um cuidado com o aspecto formal, que inclui a apresentação de propriedades, justificativas e, em seção destinada à leitura, uma prova (por redução ao absurdo) da irracionalidade do número . (DANTE, 2011, 9º ano, p.42). Percebe-se também, na coleção, uma atenção no sentido de estabelecer a conexão entre conteúdos de campos distintos da Matemática e de outras áreas do conhecimento. A razão áurea/divina proporção, por exemplo, constitui-se em contexto para a aplicação da equação do segundo grau (ibid, p.62) e também para o estudo do conceito de proporcionalidade (ibid., p.116), favorecendo a percepção dos números irracionais em cálculos com medidas observadas em situações da vida real: em obras de arte, na arquitetura, no corpo humano e em elementos da natureza. 83 Além de situações que envolvem a aplicação do Teorema de Pitágoras para a obtenção da medida de um dos lados de triângulos retângulos, o contexto geométrico em que se faz a abordagem dos irracionais, nesta coleção, inclui a construção (com régua e compasso) de segmentos de medida irracional, pela aplicação da relação h² = m.n, em que h é a altura relativa à hipotenusa de um triângulo retângulo e m e n são as projeções de seus catetos sobre a hipotenusa. Tais situações são tomadas como pontos de partida para a localização de números irracionais sobre a reta numérica. (ibid., p. 177). Também a espiral pitagórica é apresentada ao aluno, como possibilidade de obtenção da medida irracional (com n natural) de determinados segmentos, para a localização de números irracionais sobre a reta numérica, com “precisão razoável”. (ibid., p.187). De resto, os números irracionais estão presentes em atividades que envolvem, por exemplo, cálculos do comprimento, área ou volume de figuras circulares ou esféricas ou a determinação da medida de segmentos pela aplicação do Teorema de Pitágoras. Finalmente, consideramos importante observar que, nesta coleção, optou-se por uma abordagem que não contempla a interpretação geométrica dos irracionais pela introdução do conceito de grandezas incomensuráveis. A exploração da razão áurea, por exemplo, que estabelece conexões importantes entre campos distintos da Matemática (numérico, geométrico, algébrico) não inclui uma discussão sobre segmentos incomensuráveis. Da mesma forma, a apresentação do Teorema de Tales se restringe aos segmentos comensuráveis, embora o autor acrescente (sem mencionar segmentos incomensuráveis) esclarecimentos sobre a existência da prova desse mesmo Teorema, para o caso em que os segmentos determinados pelas paralelas sobre as transversais têm medidas irracionais. (ibid., p.125). Não observamos, no entanto, o favorecimento da integração entre os componentes intuitivo e formal, em atividades experimentais que envolvem a medição de segmentos ou os cálculos com a calculadora, propostas como 84 verificação de propriedades já introduzidas por meio de exemplos e da apresentação de fórmulas.61 2.5.2. Resultados da análise da coleção: A CONQUISTA DA MATEMÁTICA – Edição Renovada A proposta de trabalho contida nesta coleção introduz os números irracionais no 8º ano do Ensino Fundamental, no campo numérico, a partir da comparação entre representações decimais finitas ou infinitas e periódicas e representações decimais infinitas e não periódicas. Não se faz, no entanto, menção aos números irracionais nas orientações ou nos comentários sobre essa atividade. Essa introdução é complementada, no campo geométrico, pela discussão sobre as áreas de quadrados que se justapõem sobre os lados de triângulos retângulos isósceles construídos em malhas pontilhadas (ver excerto a seguir), resultando na conclusão de que “dado um triângulo retângulo isósceles qualquer, a área do quadrado construído sobre o seu maior lado é igual à soma das áreas dos quadrados construídos sobre os outros dois lados” (GIOVANNI, CASTRUCCI, GIOVANNI JR., 8º ano, 2007, p.21). Figura 4 – Abordagem geométrica dos números irracionais Fonte: Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr., 8º ano, (2007, p.21) A aplicação dessa mesma propriedade ao triângulo retângulo cujos catetos medem 1u permite a introdução dos números irracionais representados na forma com n , N. Essa apresentação constitui ponto de partida para a investigação de valores aproximados (por falta e por excesso) de raízes quadradas não exatas de números 61 Ver, por exemplo, a abordagem do irracional , em Dante, 2011, 6º ano, p.273-275. 85 naturais e resulta na definição do número irracional como “número cuja representação decimal é sempre infinita e não periódica” (ibid., p.24). Acrescentam-se a essa definição, duas observações: (1) Um número irracional nunca pode ser escrito na forma de fração com numerador e denominador inteiros. (2) Nem todo número que representa a raiz quadrada de outro número é número irracional, ou seja: As raízes quadradas de números quadrados perfeitos são números racionais. (GIOVANNI, CASTRUCCI, GIOVANNI JR., 8º ano, 2007, p.24) Tais observações complementam a definição de número irracional e podem favorecer a identificação de números racionais ou irracionais. Há, no entanto, uma valorização da representação decimal em atividades que tratam da identificação dos racionais e irracionais – por exemplo, em questões que envolvem resultados obtidos por meio da calculadora. Destacamos, a seguir, uma das atividades propostas: Figura 5 - Atividade sobre a identificação de números irracionais Fonte: Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr., 8º ano (2007, p.25) Para o aluno, pode parecer que existe uma contradição entre o enunciado e a imagem que acompanha o texto, pois a calculadora não exibe reticências (como mostra o enunciado) e também não são feitos esclarecimentos sobre a representação aproximada exposta na calculadora, em virtude da limitação do visor. Considerando apenas o resultado visível na calculadora, um estudante pode concluir que se trata de número racional. Se levar em conta a representação decimal indicada no enunciado (6,324555320...), poderá concluir que é número irracional. Assim, o que levaria o aluno a concluir que a representação decimal é infinita e não 86 periódica, seria apenas a percepção de que o radicando (40) não é quadrado perfeito e, finalmente, que é número irracional. Além das raízes quadradas não exatas, o número é introduzido como um “número irracional importante”, pela apresentação de exemplos que tratam da razão entre as medidas do comprimento e do diâmetro de circunferências (p.26, 27). Também a fórmula para o cálculo do comprimento de qualquer circunferência é apresentada por meio de exemplos, seguida da proposta de situações que trazem a indicação de uma aproximação racional para o número . Finalmente, o conjunto dos números reais é apresentado como reunião dos racionais e dos irracionais, seguido da observação: “Em uma reta numérica podem ser representados todos os números racionais e todos os números irracionais, ou seja, podem ser representados todos os números reais” (p.30). Figura 6 - Representação gráfica de números racionais e irracionais Fonte: Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr. 8º ano (2007, p. 30) A observação citada no parágrafo anterior e a indicação da posição de alguns representantes sobre a reta numérica, como se vê na figura, poderiam levar um estudante a acreditar que sobram pontos na reta, que não são racionais nem irracionais. Ou seja, não se faz menção à correspondência biunívoca entre o conjunto dos números reais e o conjunto de pontos da reta. Trata-se, a nosso ver, de abordagem introdutória dos irracionais, com vistas à apresentação do conjunto dos números reais – contexto em que são tratados os demais assuntos deste volume. No 9º ano, é retomada a definição de número irracional, como número cuja representação decimal é infinita e não periódica, apresentando-se como exemplos, os irracionais: , cuja representação decimal é 1,414213562... , cuja representação decimal é 1,73205... , cuja representação decimal é 3,1415926... (GIOVANNI, CASTRUCCI, GIOVANNI JR., 9º ano, 2007, p. 53). 87 Há uma ênfase no aspecto algorítmico, pela exploração de propriedades e operações com radicais, sob a justificativa de que utilizando radicais para representar números irracionais, trabalhamos com valores exatos. No demais, os números irracionais estão presentes como elementos do conjunto dos reais - por exemplo, no estudo das equações e funções no campo real (p.101, p.159) e em situações que requerem a aplicação do Teorema de Pitágoras, para o cálculo da medida de determinados segmentos (p.248). Nota-se uma preocupação no sentido de articular aspectos algorítmicos e formais, pela apresentação de justificativas das propriedades e dedução de fórmulas que permitem a generalização de determinadas ideias que envolvem os irracionais. São, por exemplo, apresentados aos alunos (como aplicações importantes do Teorema de Pitágoras) os processos de obtenção das fórmulas para o cálculo da medida da diagonal de um quadrado qualquer e da altura de um triângulo equilátero qualquer, cuja aplicação é sugerida em situações que envolvem a construção geométrica de segmentos de medida irracional e a composição da espiral pitagórica (p.255-257). Essa abordagem resulta na localização de pontos na reta, cuja abscissa é um número irracional, propiciando a interação entre os campos numérico e geométrico (p.257). Quanto à interpretação geométrica dos números irracionais, há um destaque para os segmentos comensuráveis ou incomensuráveis, no estudo sobre a proporcionalidade entre segmentos de reta. A esse respeito, os autores esclarecem: Como as medidas de dois segmentos são expressas por números positivos, a razão entre dois segmentos também é sempre um número real positivo. Sendo um número real, a razão pode ser: um número racional. Nesse caso dizemos que os segmentos são comensuráveis. e são segmentos comensuráveis. número racional um número irracional. Nesse caso dizemos que os segmentos são incomensuráveis. e são segmentos incomensuráveis. número irracional (GIOVANNI, CASTRUCCI, GIOVANNI JR., 9º ano, 2007, p. 198, destaques dos autores). 88 Contudo, os segmentos incomensuráveis não são definidos como segmentos que não podem ser medidos por meio de uma unidade de medida comum que caiba um número inteiro de vezes nos segmentos considerados. Também não são propostas questões que envolvem a identificação de segmentos comensuráveis ou incomensuráveis. Mesmo em questão que solicita a razão entre as medidas da diagonal e do lado de um quadrado, sugere-se a utilização de valor racional aproximado para o irracional: = 1,414, não havendo menção à incomensurabilidade entre esses dois segmentos. (p.214). Ainda no campo geométrico, as noções relacionadas a feixes de retas paralelas intersectadas por transversais são apresentadas aos alunos, por meio de abordagem que “sugere” um caráter experimental, sem que se reserve ao aluno a oportunidade de “descobrir” propriedades que servirão como base para o desenvolvimento do Teorema de Tales. São feitas, por exemplo, em relação à figura apresentada a seguir, observações como “medindo os segmentos AB = BC = CD = DE = 1 cm com uma régua, obtemos: ” e “medindo os segmentos, obtemos: MN = NP = PQ = QR = 1,5 cm , como parte da estratégia de convencimento de que “se um feixe de retas paralelas determina segmentos congruentes sobre uma transversal, também determina segmentos congruentes sobre qualquer outra transversal” (ibid., p.203, 204). Figura 7 - Abordagem experimental do Teorema de Tales Fonte: Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr., 9º ano, 2007, p.204 Essa introdução “experimental” é complementada por uma prova formal que constitui a base para a posterior apresentação do Teorema de Tales, que também se faz formalmente, restringindo-se aos segmentos comensuráveis. (p.205). 89 Em síntese, a abordagem dos números irracionais proposta nesta coleção enfatiza o aspecto algorítmico – sobretudo no tratamento dispensado aos radicais. O componente formal também é valorizado, notando-se um cuidado com respeito à justificação de regras e propriedades, favorecendo assim, a interação entre esses dois componentes, no estudo desse conteúdo. 2.6. Números irracionais: uma síntese da análise de Livros Didáticos Resumindo nossas reflexões sobre a abordagem dos números irracionais apresentada nas coleções escolhidas, destacamos que há uma valorização dos aspectos algorítmico (por exemplo, em cálculos com radicais ou com valores decimais aproximados) e formal (justificativas de regras e propriedades), restando, de certa forma, enfraquecido o aspecto intuitivo. Não percebemos, por exemplo, uma preocupação no sentido de oferecer aos estudantes a oportunidade de conjecturar e elaborar suas próprias conclusões, no que se refere à existência de pontos irracionais na reta, a despeito da densidade de Q nessa mesma reta, ou no que se refere à correspondência um a um entre o conjunto dos números reais e o conjunto de pontos da reta. Nas duas coleções, os números irracionais são definidos como números cuja representação decimal é infinita e não periódica, havendo em Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr. (2007) apenas uma observação sobre a impossibilidade de representálos na forma a/b com a e b inteiros e b não nulo. Embora a densidade de Q seja destacada em Dante (8º ano, 2011, p.24), não se explora essa característica para iniciar uma discussão sobre os irracionais. Por outro lado, as duas coleções atendem as orientações constantes dos PCN (1998) no que se refere à importância do trabalho com as aproximações racionais de números irracionais, incluindo atividades que são desenvolvidas com o auxílio da calculadora. Relativamente à abordagem geométrica dos irracionais, também em consonância com recomendações fornecidas pelos PCN (1998), há nas duas coleções um destaque para os números na forma , com n natural, a partir da determinação da medida da diagonal de um quadrado de lado 1u e da construção de 90 segmentos de medida irracional. O traçado da espiral pitagórica (em Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr., 2007) e a obtenção da média geométrica de dois números, com régua e compasso (em Dante, 2011) resultam na localização de pontos irracionais na reta numérica. Embora em Giovanni, Castrucci, Giovanni Jr. (2007) se estabeleça a relação entre números irracionais e segmentos incomensuráveis, o conceito de incomensurabilidade de grandezas não é apresentado aos alunos. A correspondência um a um entre o conjunto dos números reais e o conjunto de pontos da reta numérica e a completude da reta real são mencionadas explicitamente apenas em Dante (2011). Quanto ao demais, o número irracional é tratado como conhecimento já construído, em situações que envolvem, por exemplo, cálculos relativos à circunferência e ao círculo ou noções da Trigonometria. Esclarecemos, por fim, que os resultados apresentados neste capítulo constituíram parâmetros para a elaboração dos instrumentos de coleta de dados e, da mesma forma, para a análise dos dados, que são expostos nos capítulos 4 e 5. 91 CAPÍTULO 3 UMA INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DOS NÚMEROS IRRACIONAIS SOB A PERSPECTIVA DE FISCHBEIN Intuition is not the primary source of true, certain, cognition but it appears to be so because this is exactly its role: to create the appearance of certitude, to attach to various interpretations or representations the attribute of intrinsic, unquestionable certitude. 62 Fischbein. E. O leitor já está prevenido de que é perigoso entrar no domínio do infinito unicamente armado da sua intuição, do seu bom senso... a lâmina aguda da razão não pode aqui descansar um instante. Caraça, B. J.63 Este capítulo é fruto do estudo de temas relativos aos números irracionais, com ênfase naqueles que se constituíram em objetos de reflexão e discussão com o grupo de professores participantes do Observatório da Educação, ao longo de nosso experimento. Trata-se, portanto, do resultado de compreensões decorrentes das leituras de textos e pesquisas, do trabalho desenvolvido com o grupo de professores do Observatório e de nossa prática na área da educação, a respeito do que seria imprescindível e do que poderia ser tratado como periférico ou em segundo plano, no estudo do conceito de número irracional, considerando-se duas frentes: os tópicos que deveriam figurar na apresentação desse conteúdo a alunos dos últimos anos do Ensino Fundamental e 62 63 A intuição não é a fonte primeira da verdade, certeza, conhecimento, mas ela parece ser assim porque esse é exatamente seu papel: criar a aparência de certeza, para dar a várias interpretações ou representações o atributo de certeza intrínseca e inquestionável. (FISCHBEIN, 1987, p.12). Caraça, 2000, p.85. 92 os assuntos que poderiam ser explorados em cursos de Licenciatura em Matemática, tendo em vista o preparo de futuros professores para ensinar esse conteúdo a alunos da Educação Básica. Apoiando-nos em Fischbein (1994), procuramos identificar, nas possíveis abordagens e estratégias de enfrentamento de situações que envolvem números irracionais, elementos característicos dos aspectos: intuitivo, algorítmico ou formal da atividade matemática. O componente formal diz respeito aos conhecimentos relativos às definições, axiomas, teoremas e provas, que devem ser aprendidos, organizados e aplicados pelo aluno. Nesse sentido, conforme acrescenta o autor, um processo educativo adequado é indispensável, visto que a compreensão do que é rigor e coerência em Matemática não é adquirida espontaneamente pelo estudante. (Fischbein, 1994, p. 232). O componente algorítmico, por sua vez, concerne às habilidades relativas à aplicação de técnicas e procedimentos padronizados de resolução, cujo desenvolvimento também requer uma formação meticulosa. A respeito desses dois componentes, Fischbein (1994, p.232) observa que a exploração da íntima relação entre o aspecto algorítmico (relativo ao funcionamento de técnicas) e o aspecto formal (que justifica por que essas técnicas funcionam) constitui-se em condição básica para o desenvolvimento de um raciocínio matemático eficiente. Isto é, o conhecimento de componentes formais não garante o necessário para o enfrentamento de quaisquer problemas e, por outro lado, o domínio de técnicas, isento do conhecimento de argumentos que justificam essas técnicas, pode não ser suficiente para a resolução de problemas que fogem ao padrão. Quanto ao componente intuitivo (compreensão intuitiva, cognição intuitiva, solução intuitiva) diz respeito a uma compreensão que o individuo considera autoevidente, que o faz aceitar um conhecimento ou uma ideia sem questionar a necessidade de qualquer tipo de justificativa que legitime essa ideia. Em virtude disso, a aceitação de um conceito com base unicamente na intuição pode gerar um entrave para o processo de aprendizagem de outros conceitos, como será referido mais adiante. 93 Fischbein, em sua obra de 1994, enfatiza a importância da interação entre os componentes algorítmico, formal e intuitivo, como aspectos que se complementam, na realização da atividade matemática. Esclarecemos que as situações consideradas ao longo deste texto são tomadas como exemplos, nos quais se podem destacar os componentes intuitivo, algorítmico e formal, não significando que esses três aspectos devem, necessariamente, ser explorados num mesmo momento do processo de instrução. Cabe ao professor adequar os três componentes à situação que está sendo trabalhada em aula e aos alunos, de acordo com a fase escolar em que se encontram, o que favorecerá a distribuição do estudo dos números irracionais, não apenas nos dois últimos anos do Ensino Fundamental, mas também ao longo do Ensino Médio. 3.1. Sobre os números racionais No que segue, são destacados aspectos dos números racionais, que consideramos necessários para iniciar a discussão sobre os irracionais. 3.1.1. Definição e significados A construção do conceito de número racional está vinculada à ideia de divisão entre dois números inteiros, com exceção do caso em que o divisor é nulo. Assim, uma abordagem que toma como ponto de partida o reconhecimento do número racional no contexto diário pode, segundo orientações apresentadas nos PCN (1997, 2º Ciclo64, p.68), iniciar pela proposta de situações em que o aluno seja convidado a dividir 1 por 2, 1 por 3, 1 por 4, utilizando uma calculadora. Ou seja, segundo esta proposta, o estudo dos racionais teria início pela exploração de suas representações decimais. Interpretando sob o olhar de Fischbein (1994), no que diz respeito aos aspectos: intuitivo, algorítmico e formal da atividade matemática, situações como as mencionadas no parágrafo anterior ferem a intuição, contrapõem-se à lógica válida no conjunto dos números naturais – podem parecer contraditórias, a um aluno que, antes, não podia dividir um número menor por um maior. 64 Período escolar correspondente às 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental. 94 No entanto, o aspecto algorítmico da proposta dessas atividades, caracterizado pela obtenção de resultados decimais, com o auxílio da calculadora, pode favorecer a entrada do componente formal, pela percepção da extensão de regras do sistema de numeração decimal e o estabelecimento da relação entre essas representações decimais e aquelas utilizadas para o sistema monetário e para a indicação de medidas. Por outro lado, uma abordagem do número racional na representação fracionária, que envolva dobraduras ou recortes de figuras em partes iguais (grandeza contínua) pode favorecer uma ideia intuitiva de número racional, sob o significado de parte/todo. Por exemplo, para pintar ¾ de um retângulo, um aluno pode dobrá-lo paralelamente aos lados, conforme indica o desenho a seguir, para depois colorir três partes. Dobras paralelas aos lados do retângulo Representação de ¾ do retângulo Figura 8. Representação do número ¾ - significado parte/todo (a) Fonte: Acervo pessoal Entretanto, considerando outra representação figural da fração ¾, como a apresentada a seguir, é nosso ponto de vista que a intuição não ajudaria um aluno a perceber que as três partes pintadas são equivalentes (têm áreas iguais). Figura 9. Representação do número ¾ - significado parte/todo (b) Fonte: Acervo pessoal Nesse caso, se um aluno representar a parte pintada por meio da fração ¾, é possível que ele tenha percebido que o retângulo está dividido em quatro partes equivalentes, sendo três delas pintadas, mas também pode ser que esse aluno tenha considerado suficiente a divisão do retângulo em quatro partes (não necessariamente iguais) e três delas pintadas – o que configura uma concepção incorreta do conceito de fração. 95 Se o aluno subdividir a figura, obtendo oito triângulos menores, como mostra a figura a seguir, pode perceber – intuitivamente – que são todos congruentes, concluindo que a parte pintada é igual a 6/8 da área total do retângulo. Figura 10. Representação do número ¾ - significado parte/todo (c) Fonte: Acervo pessoal A simplificação dessa fração, por um processo algorítmico, poderia auxiliar o aluno a perceber que a parte pintada corresponde a ¾ do retângulo inteiro. Finalmente, a concepção de número racional sob o significado de parte/todo, assim como a justificativa de que os oito triângulos obtidos pela subdivisão da figura são congruentes (com base nos casos de congruência de triângulos) e o reconhecimento das propriedades de frações equivalentes, que garantem o processo de simplificação de frações, mencionado no parágrafo anterior, poderiam caracterizar o componente formal, nesta atividade. A apresentação formal do conjunto dos números racionais seria dada pela definição: Em língua materna: Número racional é qualquer número que pode ser representado na forma a/b, com a e b inteiros e b distinto de zero. Em linguagem simbólica: Em estudos65 relativos ao ensino e à aprendizagem dos números racionais, recomenda-se a exploração de contextos que permitam, ao aluno, compreender distintos significados dos números racionais. No mesmo sentido, em orientações didáticas contidas nos PCN (1998, p.71), são destacados os seguintes significados: 65 Kieren (1988) propõe uma classificação dos números racionais em quatro subconstructos (objetos mentais construídos a partir de ideias mais simples, que se complementam): medida, quociente, razão e operador. Behr, Lesh, Post e Silver (1983) distinguiram os significados: medida, razão, taxa, quociente, coordenadas lineares; decimal; operador. Nunes (2003) apresenta quatro significados distintos para as frações: parte-todo, quociente, medida, operador multiplicativo. (Silva, 2007, p.82-88). 96 Parte/todo: relação entre um número de partes e o total das partes. Trata-se de significado presente quando um todo é dividido em partes iguais (equivalentes no que se refere à área ou à quantidade de elementos), conforme exemplos apresentados nos parágrafos anteriores. Quociente entre dois inteiros a e b, sendo b distinto de zero. Por exemplo, a divisão de três folhas de papel idênticas entre oito pessoas, de tal forma que todas recebam a mesma quantidade de papel, tem como resultado folha para cada pessoa. Ou seja, de . Razão entre dois inteiros: índice comparativo entre duas quantidades. Por exemplo, (i) a indicação de 3 ovos para cada 8 colheres de açúcar no preparo de um bolo, pode ser entendida como razão entre quantidade de ovos e quantidade de colheres de açúcar, que indicamos por: (ii) (três para oito); considerando que em uma caixa há 3 bolas brancas e 5 bolas verdes, a probabilidade de retirar, aleatoriamente, uma bola branca, pode ser representada por ; (iii) considerando os segmentos de reta AB e CD indicados na figura a seguir, tais que: AB = 8u e CD = 3u. A B u C D u Figura 11 - Representação do número 3/8 – significado de razão Fonte: Acervo pessoal A medida do segmento CD, tomando AB como unidade de medida poderia ser representada da seguinte forma: = x = x 97 Operador: a fração desempenha um papel transformador sobre outro número. Por exemplo, buscando um número que multiplicado por 8, tenha resultado 3, teríamos: . Neste caso, o número racional opera uma transformação sobre o número 8. Ou ainda, os cálculos que permitem determinar de um número dado também conferem ao número racional o significado de operador, visto que realizam uma transformação sobre esse número. A fração é resultado para todas essas situações, assumindo, no entanto, um significado diferente em cada uma delas. 3.1.2. Representações A representação decimal, como uma decorrência do significado de quociente, atribuído aos números racionais: = , pode favorecer a percepção das diferentes representações de números racionais: = = = . (decimal finito) = = (dízima periódica simples) (dízima periódica composta) Assim, uma atividade que solicite dos alunos uma investigação sobre a representação decimal de números racionais, dados na forma fracionária, pode ser essencialmente algorítmica, se o aluno efetuar a divisão do numerador pelo denominador para examinar o resultado e verificar a ocorrência de um resto zero em determinado ponto da divisão ou se essa divisão continua indefinidamente. Contudo, essa estratégia (em que prevalece o caráter algorítmico) pode despertar também a atenção do aluno para regularidades relacionadas aos fatores que compõem o denominador: se o denominador da fração considerada contém apenas fatores 2 e/ou 5, a representação decimal será finita. Esse aluno poderá, da mesma forma, elaborar conclusões a respeito da expansão decimal (infinita e periódica) de frações cujo denominador apresenta também fatores distintos de 2 e 5. 98 Essas conclusões podem constituir uma base para o aluno, posteriormente, argumentar sobre a representação decimal (finita ou infinita e periódica) de números racionais, independentemente de realizar a divisão. O componente formal constituir-se-ia na percepção e compreensão da equivalência entre as representações: fracionária e decimal (finita ou infinita e periódica) dos números racionais. Ou seja, A representação Um número pode ser representado na forma , com decimal é finita ou infinita e periódica. Nesse caso, teríamos: a) (Condição necessária) Se a representação decimal de um número é finita ou infinita e periódica, então, esse número pode ser representado na forma a/b com a e b inteiros e b não nulo. A argumentação a respeito desta proposição inclui conhecimentos sobre a notação polinomial de números representados na forma decimal, as propriedades de frações equivalentes, as operações com números na forma fracionária (para o caso da representação decimal finita) e também conhecimentos sobre progressões geométricas infinitas de razão (para o caso da representação decimal infinita e periódica). Cada etapa necessária à transformação dos dois números abaixo, por exemplo, seria justificada com base nesses conhecimentos, o que consistiria na presença do aspecto formal, no desenvolvimento desta atividade. 0,25 = 0,2 + 0,05 = 2. 1,333... = 1 + 3. = 1 + 3. b) + 5. + 3. + + 3. = 1 + 3. = + = + ... + 3. + ... = = 1 + 3. = 1 + = (Condição suficiente) Se um número é da forma com então, sua representação decimal é finita ou infinita e periódica. e , 99 Os conhecimentos necessários para fundamentar esta proposição incluem os significados distintos dos números racionais, as propriedades de frações equivalentes que permitem a introdução dos fatores 2 e 5 no denominador, em quantidade suficiente para obter uma potência de 10 (no caso da representação decimal finita) e também incluem noções relativas ao algoritmo da divisão de Euclides66, segundo o qual a quantidade máxima possível de restos distintos no processo da divisão (a b) é igual a (b – 1), que coincide com a quantidade máxima de algarismos do período (no caso da representação decimal infinita e periódica). O domínio desses assuntos permitiria fundamentar, por exemplo, as etapas necessárias para os desenvolvimentos a seguir: = = 0,75 ou = = 0,75 (representação decimal finita) = 0,0588235... (representação decimal infinita e periódica) Neste último exemplo, ainda que não esteja visível o período, na expansão decimal, o algoritmo da divisão de Euclides garante que a maior quantidade possível de restos distintos no processo de divisão seria 16. A partir disso, os algarismos começam a se repetir, formando o período da dízima. A possibilidade de representar qualquer número racional como dízima periódica Primeira parte: Examinando, inicialmente a igualdade: 0,9999... = 1. Sob o aspecto intuitivo: Suponhamos que 0,9999... < 1. Nesse caso, deve existir algum número entre 0,9999... e 1. Considerando a representação gráfica de alguns números racionais, temos: 66 Algoritmo de Euclides. Teorema: “Se a é qualquer inteiro e b é qualquer inteiro maior do que 0, então podemos sempre encontrar um inteiro q tal que a = b.q + r, onde r é um inteiro que satisfaz a desigualdade 0 r < b.” (COURANT & ROBBINS, 2000, p.50). 100 1 0 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 0,6 0,7 0,8 0,9 0,99 Figura 12 - Figura auxiliar na discussão do aspecto intuitivo da igualdade 0,9999...= 1 Fonte: Acervo pessoal Nesse caso, temos: 0 < 0,9 < 1 Subdividindo o intervalo entre 0,9 e 1 em dez partes iguais, temos: 0,99 < 1 Analogamente, teríamos: 0,999 < 1 0,9999 < 1 e assim, por diante. Os números considerados até agora têm representação decimal finita. Consideremos, agora, 0,9999... Se 0,9999...< 1, então, para obter um número entre 0,9999... e 1, seria necessário substituir um algarismo 9 por outro algarismo maior do que ele. Como não existe esse algarismo, concluímos que 0,9999... não pode ser menor do que 1. Essa seria uma forma intuitiva de aceitação da igualdade: 0,9999... = 1. Sob os aspectos: algorítmico e formal Uma abordagem possível consistiria no processo de obtenção da fração geratriz da dízima periódica 0,9999... Por exemplo 67: Supondo que: 0,9999... = 67 (i) Variação da abordagem sugerida no Caderno do Professor: Matemática, 7ª série, v.1, 2009, p.2527. 101 Multiplicando os dois 9,9999... = (ii) membros por 10: Calculando (ii) – (i): 9 = = 1= 1 = 0,9999... Ou, de outra forma, “um pouco surpreendente”, conforme se expressa Niven (1984, p.53): Sabemos que = 0,3333... Multiplicando os dois membros da igualdade por 3, temos: = 1 = 0,9999... A nosso ver, essa última estratégia pode causar, no aluno, uma estranheza ou uma impressão de “truque” do professor, considerando especificamente a fração , para chegar à dízima 0,9999... É certo que a construção da fração geratriz de uma dízima periódica é conteúdo prescrito para os dois últimos anos do Ensino Fundamental e antecede a introdução do conjunto dos números reais como reunião dos conjuntos dos racionais e irracionais. Contudo, o repertório de conhecimentos formais em que se assentam as justificativas e os argumentos utilizados pelo professor nessa abordagem, deve, necessariamente, incluir a concepção do conjunto dos números reais como corpo, em que se definem as propriedades da igualdade, assegurando a possibilidade de escrever 0,9999... = , com a e b inteiros e b não nulo e também garantindo a conservação da igualdade, quando multiplicamos, simultaneamente os dois membros por um mesmo número real distinto de zero. Ou seja, a técnica para a obtenção da fração geratriz de uma dízima periódica pela multiplicação dos dois membros da igualdade por uma potência de base 10 (indicada em muitos livros didáticos) só é possível porque o número que estamos 102 considerando é número real. Melhor dizendo, essa estratégia só é possível porque a série considerada (0,9999... = 0,9 + 0,09 + 0,009 + 0,0009 +...) é convergente. Por exemplo, aplicando essas mesmas propriedades, para determinar a soma dos termos da progressão geométrica , teríamos: Multiplicando os dois membros da igualdade, por 10, teríamos: Colocando 11 em evidência: E, então, teríamos o caso em que a soma de infinitas parcelas positivas é um número negativo – o que consiste em um absurdo. Esse absurdo decorre , de da aplicação, propriedades válidas à série apenas divergente para séries convergentes. Trata-se, segundo Ball et al (2008), de conhecimento do conteúdo especializado, necessário ao professor, para que ele possa avaliar a viabilidade (ou não) de propor essa discussão em sala de aula. Uma abordagem mais propícia para justificar a igualdade 0,9999... = 1 poderia ser feita no Ensino Médio, quando os estudantes já se apropriaram de noções relativas às Progressões Geométricas. No desenvolvimento apresentado a seguir, a compreensão das propriedades que sustentam cada uma das etapas constituiria o componente formal: 0,9999... = 0,9 + 0,09 + 0,009 + 0,0009 + ... 103 0,9999... = + + 0,9999... = + + + + + ... + ... + + ... 0,9999... = Calculando a soma dos termos da PG infinita, indicada entre parênteses, em que = e , temos: = = Assim, 0,9999... = = = . =1 A elaboração desta última justificativa requer a aplicação de técnicas e presume, conforme foi dito anteriormente, a mobilização de conhecimentos relativos à representação polinomial do número 0,9999..., ao reconhecimento dos termos da PG infinita, bem como à utilização da fórmula para o cálculo da soma de seus termos. Não traçamos uma linha divisória entre os aspectos algorítmico e formal, que aqui, em nosso entender, se exigem e se complementam. Segunda parte: A extensão da representação 0,9999... = 1 para outros números racionais. Consideramos, inicialmente, a igualdade 0,9999... = 1 (dividindo os dois membros por 10) temos: 0,09999... = 0,1 (dividindo os dois membros por 100) temos: 0,009999... = 0,01 (dividindo os dois membros por 1000) temos: 0,0009999... = 0,001 E assim, sucessivamente. A partir dessas igualdades, podemos escrever qualquer número racional em forma de dízima periódica: Por exemplo, 0,45 = 0,44 + 0,01 0,45 = 0,44 + 0,009999... = 0,449999... 2,8 = 2,7 + 0,1 2,8 = 2,7 + 0,09999... = 2,79999... 104 Representação de um número racional em forma de fração contínua A representação de qualquer número racional, em fração contínua, é obtida por meio de um processo (finito) de busca pela soma de um número inteiro com uma fração cujo numerador seja igual a 1. Considerando, por exemplo, a fração a) 1 < <2 =1+ b) Nesse caso, (com x > 1) , temos: = -1 = =1+ c) Por outro lado, 1 < < 2 d) Da mesma forma, 2 < =1+ <3 = -1 =2 + = = - 2 = z=2 e) Temos: z = 2. Logo, =2+ =2+ f) y = . Logo, y = 2 + g) h) =1+ =1+ . Logo, = 1 + . Logo, =1+ Uma fração contínua finita representa um número racional. Esta forma de representação de números racionais, como antecipação para o estudo de aproximações racionais de números irracionais, conforme será discutido mais adiante, é conteúdo indicado para o 9º ano do Ensino Fundamental, de acordo com o Currículo do Estado de São Paulo (2010)68. A abordagem desse conteúdo, conforme se encontra nesse material de orientação didática, é algorítmica. Todavia, o professor pode auxiliar o aluno a compreender o método de obtenção de frações contínuas, justificando cada uma das etapas com base no algoritmo de Euclides utilizado para o cálculo do máximo divisor comum de dois números inteiros69. 68 69 Caderno do Aluno, Matemática: 8ª série/9º ano, v.1, 2009, p.21, 22. Ver Courant & Robbins, 2000, p.58. 105 Aplicando o algoritmo de Euclides ao exemplo exibido nos parágrafos anteriores, teríamos: 1 1 2 2 12 = 1x7 + 5 =1+ = 7 = 1x5 + 2 12 7 5 2 5 2 1 0 1 = 1+ = 1+ 5 = 2x2 + 1 2 = 2x1 + 0 Quadro 1 – Aplicação do algoritmo de Euclides para a obtenção de frações contínuas Fonte: Acervo pessoal A substituição dos valores obtidos, conforme estão indicados na terceira coluna desse quadro permite obter a representação da fração como fração contínua, da seguinte forma: =1+ 3.1.3. Localização de números racionais na reta numérica À solicitação da posição do número racional 0,375, por exemplo, sobre a reta numérica, um estudante poderia dizer que está em algum lugar entre os números inteiros 0 e 1, mais próximo de 0 do que de 1, o que caracterizaria a presença mais acentuada do componente intuitivo, no enfrentamento da questão. Por outro lado, um estudante pode transformar 0,375 na fração irredutível 3/8 e, em seguida, utilizar construções geométricas, pela aplicação, por exemplo, do Teorema de Tales, para localizar na reta o ponto correspondente a 3/8, concluindo que esse mesmo ponto representa o número 0,375. Teríamos, assim, um procedimento algorítmico que pressupõe a mobilização de conhecimentos de caráter formal, como a compreensão do significado de parte/todo atribuído ao número 3/8 e a utilização do Teorema de Tales. 106 3.1.4. A densidade do conjunto dos números racionais A partir da relação de ordem no conjunto dos números racionais, Courant & Robbins (2000) referem-se à densidade do conjunto Q, na reta numérica racional, dizendo que Um fato de importância fundamental é expresso na seguinte proposição: Os pontos racionais são densos sobre a reta. Com isto queremos dizer que, dentro de cada intervalo, por menor que seja, existem pontos racionais. Precisamos apenas tomar um denominador n suficientemente grande de modo que o intervalo [0, 1/n] seja menor do que o intervalo [A, B] em questão; assim, pelo menos uma das frações m/n deve ficar dentro do intervalo. Portanto, não existe qualquer intervalo na reta, por menor que seja, que não contenha pontos racionais. Segue-se, além disso, que deve haver infinitos pontos racionais em qualquer intervalo; isto porque, se houvesse apenas um número finito, o intervalo entre quaisquer dois pontos racionais adjacentes estaria destituído de pontos racionais, o que, acabamos de ver, é impossível. (p.68-69). Neste estudo, nossa atenção está voltada para a densidade do conjunto dos números racionais na reta racional (ou simplesmente, à densidade do conjunto Q), para as discussões relativas, por exemplo, à inexistência de sucessor de um número racional e, por outro lado, tendo em conta o objeto de nosso estudo, destacamos em outros pontos do texto, a densidade de Q na reta numérica real (ou densidade de Q em R), para as discussões relativas à existência de pontos na reta, que não são racionais, ou relativas à obtenção de aproximações racionais para números irracionais. A média aritmética de números racionais, como recurso para abordar a densidade de Q O cálculo da média aritmética de dois números pode favorecer um princípio de discussão sobre a densidade do conjunto dos números racionais, pois permite a percepção de que é possível encontrar infinitos números racionais entre dois racionais dados. A nosso ver, seria intuitiva a ideia de que a média aritmética entre dois números quaisquer está situada entre esses dois números na reta numérica, provavelmente, porque associamos média aritmética de dois números a ponto médio de um segmento. 107 Essa mesma questão, tratada sob o aspecto algorítmico, consiste em cálculos que, de certa forma, confirmam essa intuição. Um estudante que domina a técnica para o cálculo da média aritmética de dois números pode verificar que o número obtido estaria entre os dois números dados, se fossem localizados sobre a reta numérica. No entanto, é a generalização dessa ideia que permite convencer um aluno de que entre dois números racionais, ainda que estejam infinitamente próximos, na reta, existem infinitos outros números racionais. Assim, esse é um conhecimento intuitivo que pode ser justificado logicamente (introduzindo o componente formal), conforme segue: Sejam a e b, dois números racionais distintos quaisquer. A média aritmética de a e b é um número racional c situado entre a e b, na reta numérica. Hipótese: a e b são números racionais distintos quaisquer, tais que a < b. c é a média aritmética de a e b. Tese: c é número racional a, b, c representados na reta numérica são da forma: a < c < b. Demonstração: Representando a e b sobre a reta numérica, temos: b a a<b O número c é a média aritmética de a e b. Então, . Primeira parte: c é número racional a) Por hipótese, a e b são números racionais quaisquer. b) Q é fechado para a adição e para a multiplicação, logo, (a + b) Q e .(a + b) Q Q. Segunda parte: a < c < b a) Suponhamos que c < a. Nesse caso, <a b) Suponhamos que c > b. Nesse caso, > b ⟹ a > b. Contradiz a hipótese. c) Logo, a < c < b. b < a. Contradiz a hipótese. 108 Esse tipo de atividade que envolve a localização de pontos sobre a reta numérica pode suscitar a discussão (ao menos introdutória) sobre tipos distintos de infinito (infinito potencial e infinito atual), a respeito dos quais, Fischbein (1994, p.233) observa que Um processo é dito ser potencialmente infinito se uma pessoa assume que ele pode ser realizado sem que alguém possa interrompê-lo. O infinito atual se refere aos conjuntos infinitos de elementos considerados em sua totalidade. O processo de divisão de um segmento geométrico é potencialmente infinito, enquanto que a totalidade dos números naturais, racionais, ou reais constitui exemplo de infinito atual.70 Assim, o processo iterativo de determinação da média aritmética de dois números representados sobre a reta numérica, conforme está indicado na figura a seguir, seria um exemplo de infinito potencial que, segundo o mesmo pesquisador, pode ser intuitivamente aceito por crianças de 11 a 12 anos de idade. (loc.cit.) A G F E D C B H Figura 13 - Representação gráfica da média aritmética de números racionais Fonte: Acervo pessoal Nessa figura, o ponto C corresponde à média aritmética dos números correspondentes aos pontos A e B; o ponto D corresponde à média aritmética dos números correspondentes aos pontos A e C, e assim, sucessivamente, num processo infinito, cuja aceitação ocorre intuitivamente. Por outro lado, as atividades que envolvem a inserção de números entre dois racionais conhecidos, independentemente de sua representação gráfica, podem desenvolver o aspecto algorítmico da busca de soluções. Considerando, por exemplo, um dos itens da atividade 4, proposta na fase 2 de nosso experimento: Indique cinco números que estejam localizados entre 6,25631 e 6,25632, na reta numérica. A possibilidade de inventar números, como: 6,2563101; 6,2563121; 6,256310000064, pode convencer um aluno da existência de outros infinitos 70 A process is said to be potentially infinite if one assumes that it can be carried out without ever stopping it. Actual infinity refers to infinite sets of elements considered in their totality. The process of division of a geometrical segment is potentially infinite, while the totality of natural, rational, or real numbers constitute examples of actual infinity. (FISCHBEIN, 1994, p.233). 109 números entre os dois racionais dados. Além disso, pode levá-lo a generalizar essa ideia para quaisquer números racionais, independentemente de serem localizados, na prática, sobre a reta numérica. Neste caso, o componente algorítmico da busca de outros números que atendam às condições impostas na questão estaria fundamentado em propriedades do sistema de numeração decimal que permitem a comparação de números racionais representados na forma decimal, caracterizando assim, o componente formal, no enfrentamento desta atividade. Finalmente, consideramos necessário observar que, se por um lado, a compreensão da densidade do conjunto Q em toda a reta numérica é fundamental para a introdução dos números irracionais e, consequentemente, para o estudo da ampliação dos campos numéricos, por outro lado, a aceitação da densidade de Q na reta pode levar uma pessoa a acreditar “cegamente” na ideia de que os números racionais preenchem toda a reta e essa crença, por sua vez, pode constituir um obstáculo (referido por Fischbein como obstáculo intuitivo 71, conforme já esclarecemos no capítulo 1) para a aceitação da existência de infinitos pontos na reta, que não correspondem a números racionais. 3.2. Sobre os números irracionais São apresentadas a seguir, nossas reflexões sobre aspectos que, em nossa opinião, precisam ser considerados, quando da abordagem do conceito de número irracional. 3.2.1. Definições e representações Primeira parte: conhecendo os irracionais no campo numérico Tendo sido discutida e explorada a questão da equivalência entre as representações fracionária e decimal (finita ou infinita e periódica), para os números 71 “It has been assumed, on historical and psychological grounds, that the concept of irrational numbers faces two major intuitive obstacles: a) the difficulty to accept that two magnitudes (two line segments) may be incommensurable (no common unit may be found); and b) the difficulty to accept that the set of rational numbers, though everywhere dense, does not cover all the points in an interval: one has to consider also the more “rich” infinity of irrational points.” (FISCHBEIN et al, 1995, p.29, grifo nosso). 110 racionais, a mesma proposta de inserção de números entre dois números dados, mencionada nos parágrafos anteriores, poderia “provocar” a construção de números irracionais, por alunos que ainda desconhecem esse conjunto de números. Se os números dados são 1,234 e 1,3333... por exemplo, o aluno pode perceber a possibilidade de inventar também números cuja representação decimal é infinita. Talvez possa criar números como 1,2345, ou 1,234555555555... (racionais) e essa “liberdade” para a invenção pode levá-lo a perceber que, usando os algarismos de 0 a 9 (conhecidos), ainda pode construir outros, também com representação decimal infinita, mas que não apresentam repetição: 1,23456789101112131415... Pode também criar outros, de representação decimal infinita, que exibem alguma regularidade, mas não periódica, como: 1,234505005000500005... ou 1,33301011011101111... Esta primeira abordagem (que interpretamos como algorítmica, porque os estudantes provavelmente terão a preocupação de “jogar” com os algarismos conhecidos (de 0 a 9), para criar números diferentes), favorece a percepção da existência de outros números, com os quais o aluno ainda não trabalhou e, além disso, permite ao aluno concluir que esses “outros” números são em quantidade infinita, porque variando a posição dos algarismos, é possível inventar outros infinitos números. Nenhum destes “outros” números é racional, visto que têm representação decimal infinita e não periódica. Assim, uma primeira definição formal do número que o aluno está conhecendo agora – como número irracional – seria feita de acordo com estes números construídos pelo aluno, diferentemente de abordagens que, em geral, são propostas em materiais pedagógicos, que introduzem primeiro os irracionais ou Φ por exemplo, por meio de experimentos práticos de medição. Ou seja, essa definição seria feita com base na representação decimal: número irracional é todo número cuja representação decimal é infinita e não periódica. 111 Segunda parte: conhecendo os irracionais no campo geométrico Como dissemos, uma primeira definição de números irracionais seria baseada na representação decimal. Todavia, Sirotic & Zazkis (2005) defendem a ideia de que a abordagem dos irracionais deve incluir uma discussão sobre a representação geométrica de irracionais construtíveis com régua e compasso. Essas pesquisadoras, em seu artigo sobre a localização de números irracionais na reta numérica, argumentam que a ênfase sobre a representação decimal de números irracionais, seja esta explícita ou implícita, não contribui para a compreensão conceitual do número irracional. Com números irracionais, uma pessoa é colocada diante dos números decimais infinitos de um tipo especial – números que não podem ser escritos ou totalmente desconhecidos. Sobre isso, Stewart (1995) desafia a sabedoria de chamar números irracionais de reais; isto é, como pode alguma coisa ser real se ela não pode sequer ser escrita completamente? Nesse sentido, a representação geométrica poderia vir quase como um alívio no processo de aprendizagem dos números irracionais.72 (p.6-7, tradução nossa). A figura exposta a seguir esboça uma construção geométrica, que consiste na obtenção de segmentos de medida irracional. A medida desses segmentos é obtida pela aplicação do Teorema de Pitágoras ao primeiro triângulo retângulo (de catetos com medida 1u) e aos triângulos retângulos subsequentes, que têm um cateto de medida 1u e outro cateto formado pela hipotenusa do triângulo retângulo anterior. 72 emphasis on decimal representation of irrational numbers, be it explicit or implicit, does not contribute to the conceptual understanding of irrationality. And with irrational numbers one is faced with infinite decimal numbers of a special kind – numbers that cannot be written down or known fully. On this note, Stewart (1995) challenges the wisdom of calling irrational numbers real; that is, how can something be real if it cannot be even written down fully? In this sense, geometric representation should come almost as a relief in the process of learning about irrationals. (SIROTIC & ZAZKIS, 2005, p.6-7). 112 Figura 14 – Construção geométrica de segmentos de medida irracional 73 Espiral de Teodoro de Cirene Fonte: Caderno do Professor, 8ª série, v.1, 2009 O processo de construção do primeiro triângulo retângulo e de todos os demais requer um domínio de técnicas de desenho, que não prescinde do conhecimento sobre definições, classificações e propriedades de figuras geométricas, como: posições relativas de retas, ângulos, triângulos e aplicação do Teorema de Pitágoras. A nosso ver, deve haver aqui uma interdependência entre as técnicas (que pertencem ao componente algorítmico, segundo Fischbein (1994)) e os argumentos que fundamentam essas técnicas (pertencentes ao componente formal) para que se dê a percepção da possibilidade de construção de infinitos segmentos de medida irracional. Por outro lado, a construção da média geométrica de dois números dados pode favorecer a obtenção de um segmento de medida irracional, sem que haja necessidade de construir a espiral de triângulos retângulos. Por exemplo, um segmento de medida u pode ser obtido pela construção de um triângulo retângulo em que as projeções dos catetos sobre a hipotenusa tenham medidas 3u e 5u. 73 Segundo Platão (séc. IV a.C.), Teodoro de Cirene (que viveu por volta de 390 a.C.), foi o primeiro a provar a irracionalidade das raízes quadradas dos números inteiros não quadrados perfeitos de 3 a 17, inclusive. (BOYER, 1996, p. 59). 113 a B A 3u H O 5u C Figura 15 - Construção de segmento de medida irracional Fonte: Acervo pessoal O triângulo ABC é triângulo retângulo em B, pois está inscrito em uma semicircunferência. Assim, vale a relação métrica: BH² = (AH).(HC) BH² = (3u).(5u) BH = u Complementando, o transporte de segmentos de medida irracional para a reta numérica pode acrescentar a percepção da existência de pontos na reta – infinitos pontos – que não correspondem a números racionais, muito embora seja denso, na reta, o conjunto dos racionais. A representação geométrica de números irracionais, conforme observam Sirotic & Zazkis (2005, p.7), além de ser acessível ao aluno, visto que exige conhecimentos relativos ao Teorema de Pitágoras, revela a ideia de correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta e, dessa forma, desperta a atenção dos estudantes para uma representação concreta do número irracional, como um objeto: um ponto sobre a reta, uma distância irracional do zero – muito diferente do processo de construção da representação decimal infinita. Terceira parte: aproximações racionais de números irracionais Os exemplos de números que poderiam ser criados pelos alunos, representados na forma decimal e aqueles construídos com régua e compasso colocam em cena os números irracionais sob duas representações (na forma decimal e em forma de radical). 114 Os processos algorítmicos de busca por aproximações racionais sucessivas para números irracionais, na escrita decimal ou na escrita fracionária, podem facilitar ao aluno a percepção da ausência de precisão, quando se pretende encontrar a representação decimal correspondente, por exemplo, à raiz quadrada de um número não quadrado perfeito. Tanto a obtenção de aproximações decimais por falta e por excesso (com o auxílio da calculadora), como a construção de frações contínuas correspondentes a números irracionais, são procedimentos infinitos, conforme exemplificamos a seguir: Obtenção de aproximações decimais de Considerando que 2 < : < 3, a busca de valores aproximados por uma casa decimal, cujo quadrado é igual a 5, pode resultar em: 2,2 < número 2,1 2,2 2,3 2,4 quadrado 4,41 4,84 5,29 5,76 < 2,3 (valores aproximados por falta e por excesso, com uma casa decimal). Buscando resultados aproximados para 2,23 < , com duas casas decimais, temos: número 2,21 2,22 2,23 2,24 2,25 quadrado 4,8841 4,9284 4,9729 5,0176 5,0625 < 2,24 (valores aproximados por falta e por excesso, com duas casas decimais). Finalmente, as aproximações de , com três casas decimais: número 2,231 2,232 2,233 2,234 2,235 2,236 2,237 2,238 quadrado 4,977361 4,981824 4,986289 4,990756 4,995225 4,999696 5,004169 5,008644 2,236 < < 2,237 (valores aproximados por falta e por excesso, com três casas decimais). A partir desses cálculos, não obstante as limitações da calculadora, um aluno pode perceber que, mesmo considerando aproximações racionais com muitas casas decimais, o quadrado de uma fração não será exatamente 5. 115 Obtenção de aproximações de a) 2 < <3 por meio da fração contínua74: = (1) . Substituindo (2) em (1), temos: (2) = (3) b) Transformando o denominador (2 + em uma soma de um número inteiro com uma fração de numerador 1, temos: 4<2+ <5 2+ =4+ – (4) (5) Substituindo (5) em (4), temos: 2+ =4+ (6) c) Substituindo (6) em (3), = d) Neste caso, deveríamos transformar novamente o denominador (2 + em uma soma de um número inteiro com uma fração de numerador 1. No entanto, de (2) e (5) notamos que x = y. Pelo mesmo raciocínio, teríamos x = y = z = w = ... = . e) Assim, a fração contínua referente ao número pode ser escrita da seguinte maneira: 74 Abordagem proposta no Currículo do Estado de São Paulo (2010), Caderno do Aluno. Matemática, 8ª série/9º ano, v.1., 2009, p.24-27. 116 A tabela a seguir contém as aproximações obtidas pela construção da fração contínua: Erro em relação ao valor decimal de Aproximações de 2 0,236067977 2 + = = 2,25 0,013932022 = 2,235294 0,00077385985 0,00004313361 0,00000240373 Quadro 2 – Etapas para a obtenção de aproximações decimais de Fonte: Acervo pessoal Nada nesses processos assegura a ausência de um período na representação decimal desse número. Ou seja, esses processos não garantem a irracionalidade de . O que permite afirmar que é irracional é a negação das características que fariam desse número um racional. Nesse sentido, o aspecto formal se sobrepõe ao algorítmico. Isto é, a irracionalidade de só pode ser garantida por meio de argumentos formais. 117 3.2.2. O tratamento formal no estudo dos números irracionais Discutindo sobre a prova da irracionalidade de , por redução ao absurdo, Tall (1979) argumenta que as ideias devem ser apresentadas aos alunos, em qualquer fase do desenvolvimento, de tal forma que sejam potencialmente significativas. Segundo esse pesquisador, “a prova inicial pode ser mais pesada, menos agradável esteticamente, desde que prove mais significativamente para o estudante no estágio específico considerado.”75(p.1, tradução nossa). Dessa forma, cumpre ao professor a escolha dos encaminhamentos, de acordo com o nível de compreensão dos alunos para os quais será apresentada a prova. Uma prova algébrica da irracionalidade de Prova da irracionalidade de é apresentada a seguir. por redução ao absurdo: Hipótese: Todo número racional pode ser representado na forma a/b com a e b inteiros e b não nulo. Tese: é número irracional Parte A: x é par x² par. Demonstração: a) Se x é par, então, x² par. x é par, logo, existe um número inteiro p, tal que x = 2p. nesse caso, x² = (2p)² = 4p² = 2(2p²). Ou seja, x² também é par. b) Se x² é par, então, x é par. se x² é par, existe q inteiro, tal que x² = 2q. considerando a forma fatorada de x, temos x=a.b.c.d.... Nesse caso, a forma fatorada de x² é x² = a.a.b.b.c.c.d.d.... Ou seja, cada um dos fatores primos de x deve se repetir um número par de vezes em x². 75 The initial proof may be more cumbersome, less aesthetically pleasing, yet prove more meaningful to the learner at the particular stage under consideration.” (TALL, 1979, p.1). 118 teríamos então: a.a.b.b.c.c.d.d.... = 2q. pelo Teorema Fundamental da Aritmética76, a forma fatorada de qualquer número natural diferente de 1 é única. Assim, se a igualdade a.a.b.b.c.c.d.d.... = 2q é verdadeira, então o número inteiro q deve ter pelo menos um fator igual a 2, para que a quantidade de fatores 2 também seja par. Dessa forma, q também é par e, consequentemente, x também será par. Parte B: é irracional. Demonstração: a) Suponhamos que seja número racional. Nesse caso, existem p e q inteiros, sendo q , m.d.c.(p,q) = 1, tais que = . b) Elevando ao quadrado os dois membros da igualdade 2= é par c) p é par = , temos: é par. (i) ( d) Substituindo em , temos: é par q é par. (ii) e) De (i) e (ii), concluímos que p e q são pares, o que contradiz a suposição inicial de que m.d.c. (p,q) = 1. f) Assim, a igualdade = a/b não pode ser válida e, consequentemente, não pode ser número racional. Logo, o número é irracional. Tall (1979) observa que esta prova muitas vezes causa nos estudantes um vazio, uma sensação de falta de explicação, em relação às razões pelas quais o número que é irracional, posto que o absurdo a que se chega consiste não no fato de não pode ser representado por a/b com a e b inteiros e b não nulo, mas no fato de que não pode ser representado por a/b com a e b inteiros e b não nulo, sendo a/b uma fração irredutível. 76 Teorema Fundamental da Aritmética: “Todo número natural, diferente de 1, pode ser decomposto em fatores primos de modo único, a menos da ordem dos fatores.” (NIVEN, 1984, p.17). 119 Também sobre a apresentação da prova da irracionalidade de , Tall & Schwarzenberger (1978, p.9) argumentam que “a própria estrutura da prova acentua o tipo de conflito que estamos ansiosos por evitar, pelo fato de uma proposição e sua negação serem afirmadas simultaneamente 77” (tradução nossa). Em virtude disso, estes pesquisadores defendem a ideia de que, inicialmente, as provas por absurdo deveriam ser apresentadas de forma tão “direta” quanto possível. (loc. cit.). Desenvolvemos, a seguir, uma prova da irracionalidade de , conforme as sugestões apresentadas por Tall & Schwarzenberger. Hipótese: Todo número inteiro maior do que 1 possui uma única representação em forma de produto de números primos, a menos de permutações de seus fatores (Teorema Fundamental da Aritmética) Tese: é número irracional. Demonstração: a) Considerando uma fração qualquer, decompomos seu numerador e seu denominador em fatores primos e cancelamos os fatores comuns. A fração obtida é irredutível. Representemos essa fração por b) Elevando a fração ao quadrado, temos . em que: tem os mesmos fatores primos de m, mas a quantidade de cada fator primo em é o dobro da quantidade desse mesmo fator em m; também tem os mesmos fatores primos de n, e a ocorrência de cada fator primo em é o dobro de sua ocorrência em n; Consequentemente, o quadrado de um número racional é uma fração cujos termos contêm número par de fatores primos. c) Quadrando o número 77 temos: =2= . “The very structure of the proof accentuates the kind of conflict which we are anxious to avoid, because of the fact that a statement and its negation are affirmed simultaneously.” (TALL & SCHWARZENBERGER, 1978, p.9). 120 Na fração o numerador e o denominador não contêm quantidades pares de fatores primos. Logo, 2 não é o quadrado de um número racional. Portanto, é número irracional. Essa prova se estende para , ou qualquer raiz quadrada , sendo uma fração irredutível com pelo menos um termo não quadrado perfeito. Por exemplo, , . Pode também ser generalizada para raízes cúbicas ou raízes de índice mais alto. É neste ponto, a nosso ver, que pode ser convincente dizer aos alunos que um número irracional não pode ser representado na forma a/b, com a e b inteiros e b distinto de zero. Ou seja, simplesmente definir os irracionais como números que não podem ser representados como razão entre inteiros, sem desenvolver uma demonstração que seja compreensível aos estudantes, implica esperar a aceitação dessa sentença como verdadeira, sem que haja significado para esses alunos. 3.2.3. Sobre o uso da calculadora como recurso para a abordagem dos números irracionais Embora a calculadora constitua ferramenta auxiliar no processo de obtenção de aproximações racionais para números irracionais, conforme foi visto anteriormente, trata-se de recurso que deve ser visto com reservas, uma vez que a quantidade limitada de dígitos oculta, em determinados casos, a formação do período de uma dízima, podendo induzir o aluno a uma interpretação incorreta do resultado exposto no visor. A expansão decimal de 1/17, por exemplo, poderia ser interpretada como representação de um número irracional, pois o período dessa dízima contém 16 algarismos e em uma calculadora, não poderia ser identificado. Não há orientações nos PCN (1998), por exemplo, que alertem o professor no sentido de promover a discussão com seus alunos sobre possibilidades diferentes de formas fracionárias, que correspondam a uma mesma expansão decimal obtida com o auxílio da calculadora. Como exemplo, o número 0,3333333 corresponderia a 1/3 ou a 1000/3000 ou a 3333333/10000000? 121 Trata-se, assim, de recurso que precisa ser associado a outras estratégias que se complementem, na constituição dos aspectos algorítmicos (por exemplo, por meio da divisão de números inteiros, sem o auxílio da calculadora, para que o aluno compare a quantidade de restos distintos possíveis e a quantidade de algarismos que formam o período) e dos aspectos formais (por exemplo, definições e representações de números racionais e irracionais e prova da irracionalidade de um número). 3.2.4. Sobre as operações com números racionais e irracionais O caráter algorítmico presente no estudo das operações com números racionais e irracionais, integrado à exploração das propriedades válidas para essas operações, pode favorecer a percepção da importância dos argumentos formais, no trabalho com os números irracionais; o estabelecimento de relações entre os racionais e os irracionais; a percepção da possibilidade de construir infinitos números irracionais, a partir de um único número cuja irracionalidade já foi aceita (já foi provada). Pode, por exemplo, auxiliar na distinção entre proposições cuja avaliação, como verdadeiras ou falsas, exige o desenvolvimento de uma prova formal e proposições para as quais bastaria um contraexemplo. Exemplificamos com afirmações extraídas da atividade 6 proposta na fase 2 de nosso experimento. A soma de dois números racionais é sempre racional. A soma de dois números irracionais é sempre irracional. A intuição pode levar um aluno a classificar a primeira delas como verdadeira. Será capaz também de apresentar exemplos para mostrar que a soma de dois racionais é sempre racional – o que caracterizaria o aspecto algorítmico associado ao intuitivo, na elaboração da resposta. A apresentação de argumentos algébricos, indicando a generalização dessa ideia constituiria o componente formal. Uma justificativa poderia ser desenvolvida como segue: 122 Hipótese: número racional é todo número que pode ser representado por a/b, com a e b inteiros e b distinto de zero. e são números racionais; , e Tese: Demonstração: a) Por hipótese, , b) , + e = . ; Z é fechado para a adição e para a multiplicação, logo, Para a segunda proposição, “A soma de dois números irracionais é sempre irracional.”, um contraexemplo: +( )=0 poderia justificar formalmente a classificação da sentença como falsa. Por outro lado, a exploração das propriedades de operações que envolvem números racionais e irracionais pode também auxiliar na percepção da necessidade de recorrer à prova por redução ao absurdo. Por exemplo, uma prova formal para a afirmação: “A soma de um número racional com um número irracional é sempre um número irracional” poderia ser desenvolvida da seguinte forma: Hipótese: Tese: é irracional Demonstração: Supondo que Mas, seja racional ⟹ é irracional, por hipótese. p, q , tais que: = 123 Logo, é um número racional e irracional ao mesmo tempo. Isso é um absurdo que decorre de havermos suposto que é racional. Logo, esse número é irracional. De forma análoga, pode-se chegar à conclusão de que, dados um número racional e um número irracional , então, , e são números irracionais. Esses resultados podem ser a base para o aluno criar infinitos números irracionais, a partir de um único número irracional: é irracional e 2 é racional é irracional; é irracional; é irracional. Outros conteúdos, cujo estudo é prescrito para o Ensino Médio, também podem ser o contexto para o aluno perceber a possibilidade de construir infinitos números irracionais. Considerando as funções trigonométricas, por exemplo, o teorema a seguir permite fundamentar essa construção: Se um ângulo é tal que cos(2 ) é irracional, então, sen , cos irracionais. Hipótese: Tese: cos (2 ) é irracional cos (2 ) = cos (2 ) = cos² - sen² cos é irracional. sen é irracional. tg é irracional. e tg também são 124 Demonstração: a) Supondo que cos Q. b) cos Q cos² (cos² - sen² ) Q. c) (cos² - sen² ) Q (1 - cos² ) cos (2 ) Q sen² Q Q. d) Por hipótese, cos (2 ) é irracional. e) Nesse caso, cos (2 ) é racional e irracional ao mesmo tempo. Isso é um absurdo que decorre de havermos suposto, inicialmente, que cos f) Logo, cos é racional. é irracional. Analogamente, podemos provar que sen a) Supondo que sen é irracional: seja racional, concluímos que sen racional e, consequentemente, é racional, 2sen é também é racional. b) Uma vez que cos (2 ) = , teríamos cos (2 ) racional. c) Como por hipótese, cos (2 ) é irracional, chegamos a um absurdo, que decorre de havermos suposto que sen d) Logo, sen é racional. é irracional. A prova da irracionalidade de tg pode ser desenvolvida, de forma análoga, pela aplicação de relações trigonométricas. Com base nesse teorema, o aluno pode obter infinitos números irracionais, a partir de um único irracional. Como exemplo, cos cos = (é irracional). Pelo teorema mencionado, podemos concluir que , cos , cos , cos Da mesma forma, sen , etc. também são irracionais. , sen E também são irracionais: tg , sen , tg , sen , tg , tg , etc. também são irracionais. , etc. 125 3.2.5. Números algébricos e números transcendentes Na Educação Básica, o conjunto dos números reais é definido como reunião dos conjuntos dos números racionais e irracionais – assunto que será retomado neste texto. Uma outra classificação para os números reais constitui-se em separá-los em números algébricos e números transcendentes, conforme especificamos a seguir. Números algébricos são raízes de equações polinomiais com coeficientes inteiros, do tipo: . + . + . +...+ . + . + . + . =0 e Números transcendentes são aqueles que não satisfazem a nenhuma equação polinomial com coeficientes inteiros. Todo número racional é algébrico. Justificativa: Seja a equação polinomial ax + b = 0 com a, b raiz dessa equação é o número racional e a . A . Assim, todo número racional é algébrico, porque é raiz de uma equação polinomial com coeficientes inteiros do tipo ax + b = 0. Todo número transcendente é irracional. Justificativa: Todo número racional é algébrico é número não racional Todo número não algébrico Todo número transcendente é número irracional. Existem números irracionais que são algébricos. A equação x² - 2 = 0 é algébrica, com coeficientes inteiros. O número raiz dessa equação. Logo, é irracional e é algébrico. Da mesma maneira, podemos constatar que , são algébricos. é 126 Sucessões de , como 1 + , , também são raízes de equações polinomiais com coeficientes inteiros – também são irracionais algébricos. Números como são irracionais transcendentes. Um esboço das duas classificações para o conjunto dos números reais é exposto a seguir: ou A classificação dos números reais em algébricos ou transcendentes também permite reconhecer a existência de infinitos números irracionais. Consideremos o seguinte Teorema: Se e são números algébricos e transcendente, se Esse é um número irracional, então, é e teorema permite gerar infinitos números transcendentes – consequentemente permite gerar infinitos números irracionais, apenas variando a base e o expoente, de acordo com as condições estabelecidas no enunciado. Por exemplo: transcendente). (2 e são algébricos. é irracional, e logo, é 127 3.3. Sobre a incomensurabilidade de segmentos de reta Tomando dois segmentos de reta quaisquer: AB e CD, A B C D Figura 16 - Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (a) Fonte: Acervo pessoal consideremos três situações distintas: E CD cabe um número inteiro de vezes em AB. Por exemplo, A C B D Figura 17 - Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (b) Fonte: Acervo pessoal A medida de AB, tendo CD como unidade de medida seria representada por: E AB = 4CD. CD não cabe um número inteiro de vezes em AB. Por exemplo, B A C D Figura 18 - Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (c) Fonte: Acervo pessoal Uma opção seria dividir CD em partes menores de comprimento x, de tal E forma que esses segmentos menores de comprimento x caibam um número inteiro de vezes tanto em AB quanto em CD. Teríamos, por exemplo, a seguinte situação: B A x C D x Figura 19 - Abordagem: conceito de incomensurabilidade de segmentos (d) Fonte: Acervo pessoal. O segmento de medida x é um submúltiplo comum de AB e CD – cabe um E número inteiro de vezes em AB e outro número inteiro de vezes em CD. 128 Podemos escrever: e assim, a medida de AB, tomando CD como unidade de medida seria representada por: AB = CD. Dois segmentos de reta, nessas condições, são chamados de segmentos comensuráveis, pois são ambos múltiplos inteiros de um mesmo segmento (que pode ter medida racional ou irracional), tomado como unidade de medida. Interpretando essa situação sob o ponto de vista prático, alguém poderia argumentar que sempre existe um segmento (ainda que infinitamente pequeno) que cabe um número inteiro de vezes em AB e em CD. Bastaria, para isso, aumentar o número de partes em que eu divido CD, obtendo segmentos cada vez menores e em determinado ponto desse processo, a precisão limitada dos instrumentos de medir não permitiria ir além de um certo comprimento mínimo. Então, poderíamos dizer que AB e CD são múltiplos inteiros desse segmento de comprimento mínimo. Intuitivamente, seria razoável imaginar que sempre há de existir um segmento, por menor que seja, de medida y, por exemplo, que caiba um número inteiro de vezes em AB e em CD. No entanto, do ponto de vista teórico, isso não é verdade. Existem pares de segmentos que não são múltiplos inteiros de um mesmo segmento tomado como unidade de medida. Esses pares de segmentos são chamados de segmentos incomensuráveis. Exemplos desses pares de segmentos são: o lado e a diagonal de qualquer quadrado, o lado e qualquer diagonal do pentágono regular, os lados consecutivos do retângulo áureo. A ideia de que dois segmentos quaisquer são comensuráveis é um exemplo de cognição intuitiva. Emprestando o olhar de Fischbein (1994), a aceitação incondicional dessa ideia (baseada na intuição) pode constituir um obstáculo para a compreensão do conceito de grandezas incomensuráveis, ou da existência de segmentos de reta cuja medida é representada por meio de um número irracional. O que concerne ao conceito de segmentos incomensuráveis pertence ao âmbito interno da Matemática. Ou seja, uma abordagem sobre a incomensurabilidade de segmentos de reta (ou de qualquer outra grandeza) deve, necessariamente, envolver o componente formal da atividade matemática. 129 Duas provas da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer são apresentadas a seguir. Na primeira delas, prevalecem os argumentos algébricos. Hipótese: ABCD é um quadrado Tese: AC e AD são segmentos incomensuráveis O B A C D Figura 20 - Auxiliar na demonstração da incomensurabilidade de segmentos (a) Fonte: Acervo pessoal Demonstração: a) Suponhamos que AC e AD sejam segmentos comensuráveis. Nesse caso, existe um segmento de medida x, que cabe um número inteiro de vezes, tanto em AC, quanto em AD. Isto é, existem m e n inteiros, tais que: AC = n.x AD = m.x b) Suponhamos que m e n sejam tais que m.d.c. (m,n) = 1. (Se m e n não forem primos entre si, basta eliminar seus fatores comuns, até que se tenha m.d.c. (m, n) = 1). c) Vamos representar a medida da diagonal AC, tomando AD como unidade de medida. Nesse caso, (i) d) Por outro lado, o triângulo ACD é retângulo. Aplicando o Teorema de Pitágoras, temos: 130 AC² = AD² + CD² AC² = AD² + AD² AC² = 2.AD² (ii) e) Substituindo (i) em (ii): AC² = 2.AD² Logo, n² é par; consequentemente, n também é par. Nesse caso, como m.d.c. (m,n) = 1, então, m deve ser ímpar. (iii) f) Como n é par, então, n = 2p, sendo p inteiro. g) Substituindo n = 2p em n² = 2m², temos: n² = 2m² (2p)² = 2m² 4p² = 2m² Logo, m² é par e, consequentemente, m também é par. (iv) h) De (iii) e (iv) concluímos que m é par e ímpar ao mesmo tempo. Isso é um absurdo que decorre de havermos suposto que existe um segmento de medida x, que cabe um número inteiro de vezes em AC e em AD. i) Consequentemente, AC e AD não são múltiplos inteiros de nenhum segmento de medida x, por menor que ele seja. Assim, AC e AD são segmentos incomensuráveis. Esta outra demonstração, também por redução ao absurdo, prioriza os argumentos geométricos: Hipótese: ABCD é um quadrado Tese: BD e AB são segmentos incomensuráveis Demonstração: a) Suponhamos que BD e AB sejam segmentos comensuráveis. Nesse caso, existe um segmento XY, submúltiplo comum de BD e AB, tal que: BD = m.(XY) e AB = n.(XY), com m e n inteiros e m > n. 131 b) Construindo um arco com centro em B e raio AB, obtemos o ponto E sobre BD, tal que AB = BE. c) Seja EF, tal que F AD e FE BD. d) Traçando o segmento BF, temos os triângulos ABF e EBF, ambos retângulos e congruentes pelo caso especial de congruência de triângulos retângulos, pois AB = BE (catetos) e BF (hipotenusa comum). A B F 45° G E 45° C D Figura 21 - Auxiliar na demonstração da incomensurabilidade de segmentos (b) Fonte: Acervo pessoal e) , logo, os lados correspondentes são congruentes: AF = FE. (i). f) No triângulo DEF, retângulo em E, temos: = 45°. Logo, = 45°. Nesse caso, o triângulo DEF é isósceles, com FE = DE. (ii). g) De (i) e (ii), AF = FE = DE. h) Consideremos o ponto G, tal que DEFG seja um quadrado. i) Temos: BD = BE + DE DE = m.(XY) - n.(XY) Como m,n DE = (XY).(m – n). Z e m > n, então, (m – n) j) Por outro lado, AD = AF + FD FD = n.(XY) – (XY).(m – n) m, n Z, então, (2n – m) DE = BD – AB BD = AB + DE . Logo, DE é múltiplo inteiro de XY. AB = DE + FD FD = (XY).(n – m + n) FD = AB – DE FD = (XY).(2n – m). Como . Ou seja, FD também é múltiplo inteiro de XY. k) Dos dois itens anteriores, DE e FD (respectivamente, lado e diagonal do quadrado DEFG) são múltiplos inteiros de XY. 132 l) Se construirmos outro quadrado menor, conforme mostra a figura, com as mesmas características do quadrado DEFG, provaremos, usando os mesmos argumentos, que o lado e a diagonal desse quadrado menor também são múltiplos inteiros de XY. m) Pelo mesmo raciocínio, podemos construir uma sequência de quadrados, cada vez menores (infinitamente menores), cujos lados e diagonais sejam múltiplos inteiros de XY. n) Isso é um absurdo, pois esses quadrados podem ter lados e diagonais menores do que XY, o que impede que sejam múltiplos inteiros de XY. o) Esse absurdo decorre de havermos suposto que BD e AB são segmentos comensuráveis. p) Logo, BD e AB são segmentos incomensuráveis. 3.4. A correspondência biunívoca entre os pontos da reta e o conjunto dos números reais Na Educação Básica, a compreensão da densidade dos pontos racionais 78 na reta numérica e a percepção da existência de infinitos pontos irracionais nessa reta podem culminar na apresentação do conjunto dos números reais, como reunião dos conjuntos dos números racionais e irracionais. Assim, estabelecendo uma relação entre números reais e pontos da reta e tendo em conta a densidade dos racionais na reta numérica, um aluno poderia levantar dúvidas sobre a possibilidade de, por ocasião da localização de um ponto irracional sobre a reta, esse ponto coincidir com outro, racional. Nessa etapa escolar, a ideia de correspondência bijetiva entre o conjunto dos números reais e o conjunto dos pontos da reta pode receber uma abordagem intuitiva. Por exemplo, Tomamos os pontos O e A, distintos, sobre uma reta r e consideramos o segmento AO, como unidade de medida. 78 A expressão “pontos racionais” é utilizada aqui, como referência a pontos que correspondem a números racionais, conforme sugestão feita em Courant & Robbins, 2000, p.68. 133 O A r Figura 22 - Auxiliar na abordagem da correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta (a). Fonte: Acervo pessoal. Dividindo a unidade AO em 5 partes iguais e marcando o ponto correspondente a 3 dessas partes, temos um outro ponto, que chamamos de B. O número 3/5 é a medida do segmento OB, considerando AO, como unidade de medida. Dessa forma, associamos o número 3/5 a um único ponto B, que é o extremo do segmento OB. O B A r 3/5 Figura 23 - Auxiliar na abordagem da correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta (b). Fonte: Acervo pessoal Transportando dois segmentos para a reta numérica, com medidas e por exemplo, associamos cada um desses números a um único ponto que denominamos P e Q, de tal forma que: a distância entre o ponto P e a origem O seja igual ao comprimento do segmento de medida . Ou seja, associamos o ponto P ao número irracional , que é único, pois um segmento não pode ter duas medidas diferentes. a distância entre o ponto Q e a origem O seja igual ao comprimento do segmento de medida . Associamos o ponto Q ao número irracional , que também é único. Figura 24. Auxiliar na abordagem da correspondência biunívoca entre os números reais e os pontos da reta (c). Fonte: Acervo pessoal. Dessa forma, a cada ponto da reta corresponde um único número racional ou irracional que indica a distância entre esse ponto e a origem. Como cada ponto da reta está a alguma distância da origem, fica intuitivamente claro que existe um único número associado a cada um destes 134 pontos, ou seja, existe uma correspondência um a um entre os números reais e os pontos da reta. Uma abordagem formal da correspondência bijetiva entre o conjunto dos números reais e o conjunto dos pontos da reta deveria envolver questões relativas à completude da reta, aos cortes de Dedekind, aos intervalos encaixantes que, não tendo sido discutidas em nossa pesquisa, estão previstas para estudos posteriores, com o grupo de professores participantes do Observatório. 3.5. A enumerabilidade do conjunto dos números racionais e a não enumerabilidade do conjunto dos irracionais O conceito de cardinalidade “Fazer corresponder” é, segundo Caraça (2000, p.6), uma das operações mentais mais importantes que utilizamos todos os dias. O ato de contar, um a um, os objetos de uma coleção, baseia-se na ideia de correspondência entre esse conjunto de objetos e o conjunto dos números naturais - uma das ideias que formam a base da Matemática. Conjuntos equipotentes são conjuntos entre os quais é possível estabelecer uma correspondência bijetiva. Por exemplo, dados dois conjuntos finitos A e B, indicando por n(A) o número de elementos de A e n(B) o número de elementos de B, se n(A) = n(B), é possível estabelecer uma correspondência um a um entre A e B e então, os conjuntos A e B são equipotentes. Nesse caso, dizemos que A e B têm a mesma cardinalidade. Se n(A) > n(B), então, A tem cardinalidade maior do que B. Assim, quando se trata de conjuntos finitos, o todo não é equipotente à parte. Por outro lado, não é intuitiva a relação um a um entre os elementos de conjuntos infinitos como: N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7... } P = {0, 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16... }. O conjunto P é parte do conjunto N e, no entanto, é possível estabelecer uma correspondência bijetiva entre os elementos de N e os de P, bastando para isso associar a cada número natural, o seu dobro. 135 Nesse caso, dizemos que N e P têm a mesma cardinalidade e, por isso, são equipotentes. Isto é, para conjuntos infinitos, o todo pode ser equipotente à parte. É possível também fazer corresponder de forma bijetiva, o conjunto dos números naturais: {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6,... } e o conjunto dos números naturais ímpares: {1, 3, 5, 7, 9, 11,...}, por meio da relação 2n + 1, em que n representa cada um dos elementos do primeiro conjunto. Assim, estes dois conjuntos também têm a mesma cardinalidade e são equipotentes. O conceito de enumerabilidade Se um conjunto P qualquer tem a mesma cardinalidade do conjunto dos números naturais, então P é um conjunto enumerável. A enumerabilidade de Z Z = {..., -4, -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, 4, 5,...} N = {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, ....} O estabelecimento de uma correspondência um a um entre os elementos de Z e os de N poderia ocorrer como segue: 0 0 -1 -2.(-1) – 1 = 1 1 2 -2 -2.(-2) – 1 = 3 2 4 -3 -2.(-3) – 1 = 5 3 6 -4 -2.(-4) – 1 = 7 4 8 -5 -2.(-5) – 1 = 9 5 10 -6 -2.(-6) – 1 = 11 ... ... ... ... x 2x x –2x – 1 ... ... ... ... Quadro 3 – Correspondência biunívoca entre Z e N (a) Fonte: Acervo pessoal Dessa forma, uma relação entre os elementos do conjunto Z e os elementos do conjunto N poderia ser representada por: 136 f: Z ⟶ N x⟼f(x) Assim, Z tem a mesma cardinalidade de N Z e N são equipotentes Zé um conjunto enumerável. De outra forma, poderíamos representar o conjunto Z em uma “fila”, e estabelecer a correspondência como indica o quadro a seguir: Números 0 -1 +1 -2 +2 -3 +3 -4 +4 -5 +5 -6 +6 ... 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 ... inteiros Números naturais Quadro 4 – Correspondência biunívoca entre Z e N (b) Fonte: Acervo pessoal A enumerabilidade de Q Nossa intuição não permite conceber a ideia de estabelecer uma correspondência um a um quando se colocam em discussão os conjuntos N e Q. Q é denso. N não o é. Parece impossível associar os números naturais (que, localizados na reta, se configuram isolados uns dos outros) aos pontos racionais (que se distribuem sobre a reta, em quantidade infinita, entre pontos infinitamente próximos). No entanto, conforme observa Caraça (2000, p.88), a noção de correspondência é indiferente, insensível à densidade, conferindo também ao conjunto Q a característica de conjunto enumerável. No final do século XIX, Georg Cantor apresentou a demonstração da equipotência entre os conjuntos Q e N. Embora não seja possível escrever os números racionais em ordem, visto que entre dois números racionais existem infinitos números racionais, é possível dispôlos em uma “fila”, de tal forma que se possa dizer: este é o 1º da fila, este é o 2º, este é o 3º e assim por diante. Assim, cada número racional estará representado 137 uma única vez, o que, finalmente, permite a correspondência entre estes números e os naturais. Descrevemos a seguir, a disposição dos números racionais, conforme foi elaborada por Cantor79: Escrevendo os números racionais positivos na forma , com a na a-ésima coluna e b na b-ésima linha, temos: 1 2 3 4 5 6 7 ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Figura 25 - Representação auxiliar na prova da enumerabilidade de Q Fonte: Acervo pessoal. Acompanhando a “linha poligonal” indicada pelas setas, os números racionais positivos podem ser organizados em uma sequência, da seguinte forma: Mantendo na sequência apenas os números racionais em sua forma irredutível, temos , 79 Ver: Courant & Robbins(2000, p.96, 97) 138 Nesse caso, a sequência é formada por todos os números racionais positivos, sendo cada um representado uma única vez, permitindo associar cada um desses números a um único número natural. Logo, o conjunto dos números racionais positivos tem a mesma cardinalidade de N e, consequentemente, é um conjunto enumerável. Essa estratégia permite dispor os racionais em uma “fila”, como segue: e permite, igualmente, estabelecer a correspondência bijetiva entre os elementos do conjunto Q e os números naturais. A partir desta conclusão, é possível provar que a reunião de dois conjuntos enumeráveis também é um conjunto enumerável. A não enumerabilidade de R Intuitivamente, não é possível admitir a possibilidade de fazer corresponder, de forma bijetiva, os números naturais e os números reais, por razões semelhantes àquelas mencionadas anteriormente, quando nos referimos à correspondência entre os naturais e os racionais. Q é denso e N não é. Contudo, foi provada a enumerabilidade de Q. R é denso e N não é. O que diferencia Q de R? Q é denso em R, mas não preenche toda a reta. Há “buracos” na reta – infinitos pontos que não correspondem a números racionais. R é denso e existe uma correspondência bijetiva entre todos os seus elementos e os pontos da reta. Novamente o componente formal é indispensável como estratégia de convencimento, para provar a não enumerabilidade de R. O que segue é um esboço da prova de Cantor, relativa à não enumerabilidade do conjunto dos números reais80. 80 Ver Courant & Robbins (2000, p.97, 98). 139 a) Supondo que o conjunto R seja enumerável, construímos uma sequência composta por todos os números reais, dispondo-os numa tabela, em sua representação decimal infinita: 1º número 2º número 3º número 4º número ... ... Nessa representação, N é a parte inteira e as letras minúsculas são os algarismos que compõem a parte decimal de cada número. b) Vamos construir um número real que difere de todos os números reais organizados nessa sequência: esse número será diferente do 1º número da 81 tabela pelo algarismo dos décimos pelo algarismo dos centésimos dos milésimos , diferente do 2º número da tabela , diferente do 3º número pelo algarismo e assim sucessivamente. Construído dessa forma, o número é distinto de todos os números reais relacionados na tabela. c) Essa possibilidade de criar um “novo” número, diferente de todos os números reais representados na tabela, atesta que, nessa sequência, não estão presentes todos os números reais, conforme havia sido suposto inicialmente. Ou seja, essa suposição inicial era falsa. d) Logo, o conjunto dos números reais não é enumerável. A não enumerabilidade do conjunto dos irracionais Considerando que: (i) a reunião de dois conjuntos enumeráveis também é um conjunto enumerável; 81 Nesse caso, o algarismo dos décimos deve ser substituído por outro algarismo, que seja também diferente de zero ou de nove, a fim de evitar ambiguidades decorrentes da igualdade 0,9999... = 1. Da mesma forma, esse cuidado deve estar presente, quando da substituição dos algarismos etc. 140 (ii) R é definido pela reunião dos conjuntos dos números racionais e irracionais; (iii) Q é conjunto enumerável; e (iv) R é conjunto não enumerável, conclui-se que o conjunto dos números irracionais não é enumerável. 3.6. Uma medida para o conjunto dos números racionais As questões propostas a seguir, de certa forma, retomam os temas tratados ao longo deste capítulo: Considere dois pontos A e B, muito, muito próximos, marcados sobre a reta numérica. Quantos números racionais existem entre A e B? Reduzindo ainda mais a distância entre A e B, quantos números racionais existem entre A e B? Agora, considere o intervalo [0, 1]. Suponha que eu coloque a ponta do lápis, aleatoriamente, sobre um ponto qualquer desse intervalo. Qual é a probabilidade de ser marcado um ponto racional? Justifique sua resposta. 82 O que dirá a intuição de uma pessoa que, durante esta nossa trajetória, se deixou convencer sobre a existência de infinitos pontos racionais entre dois racionais dados (ainda que infinitamente próximos), e que alimentou – talvez, com alguma razão – a ideia de que existem mais racionais do que irracionais? Novamente, o componente formal se sobrepõe à intuição. Não há outra estratégia de convencimento, sobretudo porque a última questão pede resposta exata, para assunto que diz respeito ao infinito. O que foi visto anteriormente, neste capítulo, é conhecimento utilizado para compor a justificativa que apresentamos a seguir. a) Consideremos a reta real, totalmente preenchida por números racionais e irracionais. 82 Atividade proposta para discussão, no final da fase 2. 141 b) Se o conjunto de números racionais é enumerável, então o conjunto dos pontos racionais também é enumerável e assim, podemos representá-los em uma “fila”. c) Indicando os pontos P1, P2, P3, P4, P5, P6 em uma “fila”, podemos dizer: este é o 1º da fila, este é o 2º da fila, este é o 3º da fila e assim por diante. d) Consideremos um intervalo arbitrariamente pequeno que contenha cada um desses pontos. Por exemplo, o intervalo de medida: e) O intervalo de medida , com f) O intervalo de medida comprimento P1 , com P2 , com > 0, contém o ponto P1; > 0, contém o ponto P2; , com > 0, contém o ponto P3; o intervalo de > 0, contém o ponto P4; e assim por diante... P4 P3 P5 P6 ... g) Se somarmos todos esses intervalos, que são tão pequenos quanto se queira, todos os pontos racionais estarão incluídos nessa soma. h) Temos: i) Colocando em evidência, temos: j). Calculando a soma dos termos da progressão geométrica infinita representada entre os colchetes, temos: = = Logo, a soma de todos os intervalos que contêm os pontos racionais é igual a e a soma de todos os pontos racionais é menor do que qualquer > 0. Como é 142 arbitrariamente pequeno (pode ser infinitamente pequeno), dizemos que o conjunto Q tem medida nula em R. Assim, retomando a questão que exigiu esses argumentos, pode-se afirmar que a probabilidade de se tocar um ponto racional é zero e, consequentemente, a probabilidade de se tocar um ponto irracional é 1. Uma complementação das discussões e reflexões iniciadas durante nosso experimento deve contemplar tópicos que, em nossa opinião, seriam indispensáveis à imagem conceitual relativa aos números irracionais, constituída por um professor de Matemática. Dentre esses tópicos, estariam, por exemplo, as abordagens dos números reais por meio dos Cortes de Dedekind e dos Intervalos Encaixantes, que, embora estivessem previstos em nosso estudo, foram adiados para o próximo experimento com o grupo. 143 CAPÍTULO 4 UM OLHAR SOBRE OS DADOS DE NOSSA INVESTIGAÇÃO DIAGNÓSTICA FASE 1 Ninguém promove a aprendizagem de conteúdos que não domina nem a constituição de significados que não possui ou a autonomia que não teve oportunidade de construir.83 Este capítulo é dedicado à exposição de nosso estudo, no que concerne à coleta de dados em sua primeira fase, em caráter diagnóstico. Fazemos uma apresentação inicial dos sujeitos de nossa pesquisa e, em seguida, exibimos as questões que compuseram o primeiro instrumento de coleta de dados, acrescidas dos propósitos pelos quais decidimos sobre sua pertinência em relação ao nosso estudo e acompanhadas da análise dos resultados, necessária à continuidade de nossa investigação. 4.1. Caracterização dos sujeitos de nossa pesquisa Nosso estudo foi realizado com a colaboração de um grupo de 23 professores de escolas públicas estaduais de Ensino Fundamental II e Ensino Médio da Região Norte da cidade de São Paulo. Trata-se de grupo constituído segundo as normas de organização do Projeto Observatório, que promove reuniões quinzenais entre pesquisadores em Educação Matemática e professores de Matemática, nas dependências da UNIBAN de São Paulo. Doze professores do grupo são efetivos e exercem a função docente há um tempo médio de 13 anos, dos quais, 8 anos (em média) incluíram o trabalho com classes do Ensino Fundamental. Neste texto, as referências aos professores, são feitas por professor (A), (B), (C), etc., a fim de salvaguardar a identidade dos mesmos. 83 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. PARECER NÚMERO CNE/CP 009/2001, p. 37. 144 4.2. O primeiro instrumento de coleta de dados Visando engendrar um perfil dos professores participantes de nosso estudo, esta primeira fase da coleta dos dados compôs-se da aplicação de um questionário84, durante o encontro realizado em 14/09/2010, contendo itens que, a nosso ver, permitiriam a identificação de suas concepções sobre o conceito de número irracional e sobre o ensino de noções concernentes a esse conteúdo a alunos da Educação Básica. Os dados obtidos por meio desse questionário constituíram ponto de partida para a elaboração e aplicação de uma sequência de atividades, com a finalidade de nortear as reflexões do grupo, no decorrer do experimento realizado durante as fases 2 e 3, que serão detalhadas no capítulo 5. Tendo em vista a sua finalidade, como primeiro instrumento de nossa investigação, esse questionário foi composto por 11 questões abertas, que versam sobre o conhecimento específico dos números racionais, irracionais e reais, incluindo definições, caracterização, representações, significados e estabelecimento de relações entre os conjuntos. Ao mesmo tempo, essas questões foram elaboradas sob a intenção de averiguar os conhecimentos pedagógicos do grupo de professores, no que concerne às possíveis abordagens dos números irracionais, às dificuldades que são próprias do processo de aprendizagem desse conteúdo e à interpretação e análise de produções de alunos em fase de construção desse conhecimento. Além disso, ao elaborar esse documento, levamos em conta a possibilidade de analisar os conhecimentos curriculares do grupo de professores, no que respeita aos números irracionais. Assim, dado que o caráter desta etapa de nosso estudo era diagnóstico, escolhemos propor o questionário aos professores, como tarefa individual, cuja realização teve a duração de aproximadamente três horas. Importa observar que as questões propostas aos professores, em sua maioria, são propositalmente abrangentes para oferecer-lhes a liberdade de 84 Ver Anexo 1. 145 manifestar suas concepções, restringir ou ampliar suas respostas, ou ainda selecionar e aprofundar um único aspecto da questão. Acreditamos que, mais do que elaborar respostas às nossas questões, esta primeira fase se constituiu em oportunidade de reflexão a respeito da própria prática, sobre o ato de ensinar os números irracionais aos estudantes. 4.3. Fundamentação teórica para a análise dos dados da primeira fase Para a elaboração e análise das questões que compõem o questionário proposto nesta fase, apoiamo-nos em Tall & Vinner (1981), que definem imagem conceitual como estrutura cognitiva total que se constrói na mente de uma pessoa, a respeito de determinado conceito matemático, abrangendo todas as impressões, ideias, imagens mentais, representações visuais e descrições verbais relativas a propriedades e processos que envolvem aquele conceito. A imagem conceitual se constitui ao longo do tempo por meio de experiências de todos os tipos e evolui continuamente pelo enfrentamento de novos estímulos (p.2). Assim sendo, a imagem conceitual relativa aos números irracionais explicitada pelos professores em respostas ao questionário poderia, de certa forma, definir o ponto de partida para o nosso experimento, no que se refere aos conhecimentos desse conteúdo específico, nas perspectivas de Shulman (1986, 1987) e de Ball et al (2008). Também no que diz respeito aos conhecimentos necessários ao ensino desse conteúdo, foram consideradas as categorias apresentadas por Shulman (1986, 1987) e por Ball et al (2008), conforme foi explicitado no capítulo 1, dedicado à revisão de pesquisas que influenciaram o desenvolvimento de nosso estudo. 4.4. Uma análise dos conhecimentos dos professores sobre o processo de ensino e aprendizagem do conceito de número irracional na Educação Básica Tendo em vista a nossa intenção de delinear um perfil dos professores participantes, a fim de planejar as próximas ações de nosso experimento, explicitamos a seguir a nossa interpretação das respostas apresentadas ao questionário e também as decisões decorrentes dessa análise. 146 Assim, as reflexões sobre os resultados desta primeira fase, que apresentamos a seguir, deverão servir como esclarecimento para as ações que compuseram, posteriormente, a fase de intervenção. Na análise a seguir, quando possível, apresentamos um quadro-síntese das respostas dos professores, sem que haja a intenção de quantificar ou classificar exatamente essas respostas, mas com a finalidade de indicar as ideias que percebemos (ou interpretamos) como prevalecentes neste grupo, naquela ocasião, a fim de planejar nossas ações para a fase da intervenção. 4.4.1. Sobre o conhecimento dos professores a respeito dos conjuntos numéricos A fim de identificar concepções dos sujeitos de nossa pesquisa, sobre números racionais, irracionais e reais e, eventualmente, sobre ideias relacionadas à ampliação dos campos numéricos, foi proposta a seguinte questão: 1. Como você define (ou definiria), em suas aulas, os conceitos de número racional, número irracional e número real? As respostas indicaram lacunas nos conhecimentos relativos à ampliação dos campos numéricos, desde o conjunto dos números naturais, conforme se percebe nas seguintes respostas: O número racional é encontrado na forma . O número irracional – não tem período. Número real – números naturais/positivos. Prof. (F). 147 Figura 26 - Questão 1. Protocolo Prof. (C) Fonte: Acervo pessoal. Figura 27 - Questão 1. Protocolo Prof. (U) Fonte: Acervo pessoal. Segundo se expressou o professor (U), neste último excerto, o conjunto dos números irracionais não estaria contido em R, o que dispensaria a criação deste último. Tais afirmações lançam dúvidas sobre a consolidação, inclusive do conceito de número natural, por alguns desses professores. Mostram, igualmente, dificuldades relacionadas à classificação de números em racionais, irracionais ou reais, em virtude de uma caracterização ambígua desses números, deixando pontos 148 vulneráveis que poderiam levar os alunos a formar ideias incompletas ou incorretas sobre esses conjuntos numéricos. Nas definições apresentadas pelo professor (G), por exemplo, indicadas no protocolo a seguir, o zero não foi incluído como número inteiro nem como número natural. Além disso, não há uma indicação clara sobre o fato de ser finita, ou infinita e periódica, a representação decimal dos números racionais, o que permitiria classificar um número como 0,101001000100001... como racional. Figura 28 - Questão 1. Protocolo Prof. (G) Fonte: Acervo pessoal Finalmente, levando em conta os exemplos apresentados por este professor ( ; e raízes não exatas) poderíamos supor que, ao dizer “nrs. irracionais são números atribuídos a símbolos matemáticos com valores grandes”, ele esteja se referindo à representação decimal desses números, que contêm quantidade infinita de algarismos. Essa mesma imprecisão pode ser observada na resposta apresentada pelo professor (B) – protocolo a seguir –, cuja leitura poderia induzir um aluno a concluir 149 que qualquer raiz é número racional. Parece haver, nessa definição, uma associação da palavra “racional” com a palavra “raiz”, que deixa transparecer fragilidades relacionadas à definição de número racional e, em nossa interpretação, também ao significado de número racional como razão entre inteiros. Figura 29 - Questão 1. Protocolo Prof. (B) Fonte: Acervo pessoal. A resposta apresentada por (H), exposta a seguir, também é vaga no que se refere ao tratamento que se dá à ampliação e à caracterização dos conjuntos numéricos, ao longo do Ensino Fundamental: Figura 30 - Questão 1 - Protocolo Prof. (H) Fonte: Acervo pessoal. Neste último extrato, provavelmente o professor se refere a alunos que utilizam números naturais, inteiros, racionais e reais na resolução de problemas, mas talvez não saibam classificar esses números ou definir, por exemplo, um número 150 racional como número que pode ser representado na forma a/b com a e b inteiros e b distinto de zero. Parece-nos também que a ideia de número real, segundo a resposta apresentada pelo professor (H), é construída antes e independentemente da construção do conceito de número irracional. Outras definições apresentadas também sugerem a introdução ou o trabalho com o conjunto dos números reais, independentemente do estudo dos irracionais. Interpretamos dessa forma, visto que, para estes professores, os números irracionais não fazem parte do conjunto dos reais, como se pode observar nos protocolos a seguir: Figura 31 - Questão 1. Protocolo Prof. (O) Fonte: Acervo pessoal. Figura 32 - Questão 1. Protocolo Prof. (R) Fonte: Acervo pessoal 151 Figura 33 - Questão 1. Protocolo Prof. (S) Fonte: Acervo pessoal. Figura 34 - Questão 1. Protocolo Prof. (V) Fonte: Acervo pessoal Alguns professores se referem apenas à infinidade de algarismos, em suas definições de número irracional. Por exemplo, Figura 35 - Questão 1. Protocolo Prof. (J) Fonte: Acervo pessoal 152 Figura 36 - Questão 1. Protocolo Prof. (K) Fonte: Acervo pessoal Na forma como estão elaboradas, essas definições permitiriam a um aluno a classificação de dízimas periódicas como números irracionais. Além disso, restringem a caracterização de números irracionais à sua representação decimal (com infinitos algarismos) – o que, de certa forma, limita a abordagem desse conjunto de números, afastando a possibilidade de um aprofundamento que inclua, por exemplo, a prova formal da irracionalidade de um número. Por outro lado, algumas definições se referem apenas à representação fracionária, mas indicam a necessidade de uma reflexão melhor, uma vez que omitem condições indispensáveis, que devem ser observadas para essa representação. O protocolo do professor (N), a seguir, ilustra essa nossa observação: Figura 37 - Questão 1. Protocolo Prof. (N) Fonte: Acervo pessoal 153 Não havendo, em definições como essa, a restrição que indica o conjunto a que devem pertencer os termos da razão , o número , por exemplo, poderia ser classificado como racional. Fazemos constar ainda que apenas um professor apresentou a definição de número irracional incluindo uma menção às representações: decimal e fracionária, conforme se vê no excerto a seguir: Figura 38 - Questão 1. Protocolo Prof. (Q) Fonte: Acervo pessoal As definições explicitadas pelo professor (I), conforme se pode examinar no protocolo a seguir, também fazem referência às formas: fracionária e decimal, para racionais e irracionais; no entanto, estão incorretas, uma vez que as dízimas periódicas, segundo estas definições, seriam irracionais e dessa maneira não poderiam ser representadas por a/b, com a e b inteiros e b não nulo. 154 Figura 39 - Questão 1. Protocolo Prof. (I) Fonte: Acervo pessoal Quanto às demais definições, no geral, fazem menção à forma fracionária para os racionais e à forma decimal para os irracionais, como mostra o extrato a seguir: Figura 40 - Questão 1. Protocolo Prof. (A) Fonte: Acervo pessoal Uma observação, que consideramos necessária, refere-se aos diagramas de Venn apresentados por alguns professores que, embora expressem a reunião dos conjuntos dos números racionais e irracionais, deixam margem para interpretações incorretas e podem levar os estudantes a formar uma ideia equivocada a respeito do conjunto dos números reais. Como exemplo, o protocolo a seguir (incompleto, pois o 155 professor se esqueceu de acrescentar à representação do conjunto Q a indicação de que qualquer número racional pode ser representado na forma a/b), traz uma das representações por diagrama de Venn, que mereceria atenção especial. Figura 41 - Questão 1. Protocolo Prof.(M) Fonte: Acervo pessoal Um aluno, ao observar esse desenho, poderia imaginar que existem outros números reais que não são racionais nem irracionais. Em nossa interpretação, esses resultados evidenciaram lacunas nos conhecimentos dos professores deste grupo, no que se refere às definições, às representações e à classificação de números racionais, irracionais e reais, o que compromete qualquer abordagem, ainda que introdutória, que pretenda discutir a ampliação dos campos numéricos, em uma classe de alunos da Educação Básica. Embora tenha sido observada uma diversidade de respostas a este primeiro item do questionário, apresentamos a seguir, um quadro-síntese contendo as principais concepções sobre números racionais, irracionais e reais, explicitadas pelos professores. 156 Quantidade de professores 17 Concepções sobre números racionais, irracionais e reais Ideia de número irracional essencialmente baseada na representação decimal. 6 Concepção do conjunto dos números reais desvinculada da ideia de reunião dos conjuntos dos racionais e dos irracionais. 5 O diagrama de Venn apresentado nas respostas pode induzir alunos à formação de concepção incorreta sobre a ampliação dos campos numéricos. 4 Definição de número irracional como número que não pode ser representado em forma de fração. 2 Definição de número irracional com menção à representação decimal infinita e não periódica e à impossibilidade de representá-lo na forma fracionária. (apenas uma resposta correta). Quadro 5 – Síntese das respostas dos professores ao item 1 do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal 4.4.2. Sobre o conhecimento dos professores a respeito do processo de ensino dos números irracionais Com a intenção de averiguar os conhecimentos do grupo de professores a respeito do ensino de noções concernentes aos números irracionais e, possivelmente, sobre os tipos de abordagens experimentados em suas aulas, propusemos a questão que segue: 2. Que estratégias você considera que um professor deveria utilizar, para propiciar a alunos de 8ª série do Ensino Fundamental, a construção do significado de número irracional? Interpretando sob a perspectiva de Shulman (1986, 1987), os conhecimentos necessários ao professor, para o ensino dos números irracionais incluiriam a escolha de representações mais adequadas, a formulação de definições, as explicações e justificativas mais convincentes, a seleção de exemplos e ilustrações que poderiam facilitar a compreensão desse conteúdo por alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Com a abrangência desta questão, tivemos a intenção de oferecer a oportunidade de respostas que poderiam incluir a especificação de estratégias utilizadas pelos próprios professores, pela convicção de que, de fato, produzem a compreensão do conceito de número irracional. Por outro lado, poderiam incluir 157 abordagens que, conquanto sejam avaliadas como ideais, são tidas como inviáveis nessa fase da escolaridade e, por isso, não são postas em prática. As respostas de nove professores a essa questão sugerem atividades empíricas que envolvem a medição de segmentos, ou do comprimento e do diâmetro de circunferências, para a apresentação do número sem, no entanto, qualquer menção a respeito da obtenção de valores aproximados ou a respeito de como seriam feitos esclarecimentos sobre a insuficiência dessa abordagem, para uma caracterização dos números irracionais. Os protocolos expostos a seguir ilustram as indicações desses professores. Figura 42 - Questão 2. Protocolo Prof. (M) Fonte: Acervo pessoal Figura 43 - Questão 2. Protocolo Prof. (I) Fonte: Acervo pessoal Embora não tenha sido explicitada pelo professor (I), a atividade indicada em sua resposta parece sugerir uma introdução às ideias de comensurabilidade e incomensurabilidade de grandezas, pela tentativa de encontrar uma unidade de medida que caiba um número inteiro de vezes, simultaneamente, em dois segmentos de reta. 158 Por outro lado, as operações com resultados irracionais são mencionadas por sete professores, conforme exemplificam os protocolos a seguir, provavelmente como estratégia que resulte num impasse caracterizado pela impossibilidade de se obter um resultado racional. Figura 44 - Questão 2. Protocolo Prof. (B) Fonte: Acervo pessoal Figura 45 - Questão 2. Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal 159 Em nosso ponto de vista, respostas como estas indicam pontos que precisariam ser discutidos nos conhecimentos dos professores, relacionados às definições de números racionais e irracionais e às suas possíveis representações, visto que, indiretamente, admitem a possibilidade de representar um número irracional em forma de fração. Também sugerindo uma abordagem por meio de operações, o professor (P) propõe: “... podemos resolver uma raiz quadrada não exata até cairmos no decimal não periódico”, em estratégia que, supostamente, indica o uso da calculadora (com resultado aproximado por um racional) ou a aplicação do algoritmo para o cálculo da raiz quadrada (que não figura entre os conteúdos indicados para o trabalho em sala de aula). A expressão “até cairmos no decimal não periódico” utilizada pelo professor (P) sugere uma garantia que não existe: a de que, a partir de certa quantidade de algarismos na parte decimal, seria possível afirmar que não haverá formação de período. Assim, interpretamos que essa estratégia não favorece a percepção ou a “descoberta” de que o resultado é um número diferente do racional. Dentre os sete professores que apontaram as operações como estratégia de abordagem dos irracionais, destacamos um que, embora não explicite, parece sugerir a ideia de cálculo da raiz quadrada por aproximação, indicando: “exemplos de números de raiz quadrada exata e depois raiz quadrada não exata, ou seja, um número que se aproxime da raiz exata, e nesse intervalo multiplicar os números decimais...” (prof. S). Três professores mencionaram a calculadora como recurso para abordar o conceito de número irracional, sem, no entanto, manifestar alguma intenção no sentido de iniciar esse estudo por meio da obtenção de aproximações racionais para números irracionais e também sem esclarecimentos sobre as estratégias que induziriam os alunos a perceber que os valores obtidos com o auxílio da calculadora representam uma aproximação de um número cuja representação decimal é infinita e não periódica: Usar a calculadora facilita os cálculos com números irracionais, que tal uma competição??!! (Prof. C) 160 Propor aos alunos calcular a F). e de . Usar a calculadora também. (Prof. Pedir ao aluno que digite na calculadora: (1) a tecla do (2) a raiz quadrada de 2 (3) a raiz quadrada de 3. (Prof. O). A História da Matemática, como estratégia para a abordagem dos números irracionais foi indicada nas respostas de três professores: Ele deve explorar a reta numérica. Também pode contar histórias sobre como surgiu esse número que provocou até morte, eles adoram este tipo de história, falar sobre a escola Pitagórica entre outros. (Prof. Q). Para que o aluno entenda o significado do número irracional, ou de qualquer outro conjunto numérico, é interessante que o professor conte a história dos números, assim ele entenderá que a necessidade humana levou o Homem a criar todos os conjuntos numéricos que hoje conhecemos. (Prof. R). Através da história dos números. (Prof. V). Estes professores não se estenderam em suas considerações sobre a História da Matemática, mas sugerem, em suas falas, que atribuem importância às questões relacionadas à ampliação dos campos numéricos e às necessidades que provocaram essa ampliação. Por outro lado, dentre as sugestões explicitadas pelos professores, apenas uma se refere à inserção de números entre dois inteiros dados, que poderia resultar na exploração da ideia de densidade do conjunto dos racionais na reta numérica e, posteriormente, na introdução do conceito de número irracional. Sua resposta está no excerto a seguir. Figura 46 - Questão 2. Protocolo Prof. (P) Fonte: Acervo pessoal Observamos finalmente, que, em resposta a esta questão, nenhum dos professores participantes mencionou a possibilidade de introduzir o conceito de número irracional por uma abordagem geométrica que envolva, por exemplo, a aplicação do Teorema de Pitágoras e construções com régua e compasso, que 161 permitam ao aluno perceber a existência de pontos na reta que não correspondem a números racionais. O quadro a seguir resume as indicações explicitadas pelo grupo, para a abordagem dos números irracionais. Quantidade de professores 9 Sugestões de abordagens do número irracional no Ensino Fundamental Abordagem experimental, a partir da medição de segmentos ou da medição do comprimento e do diâmetro de circunferências. 7 Abordagem por meio de operações de divisão ou de extração da raiz quadrada não exata para a obtenção de resultado decimal infinito e não periódico. 3 Abordagem com o auxílio da calculadora. 3 Abordagem por meio do relato da História da Matemática. 3 Ausência de sugestões. 1 Apresentação de fotos de fractais para sugerir a ideia de números irracionais. 1 Definição de número irracional com base em sua representação decimal, seguida de exemplos. Comparação entre representações decimais de números racionais e irracionais. 1 Inserção de números entre dois inteiros (possível exploração da densidade de Q na reta numérica). Quadro 6 – Síntese das respostas ao item 2 do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal 4.4.3. Sobre o conhecimento dos professores a respeito da aprendizagem dos números irracionais Com o objetivo de investigar a maneira como os professores interpretavam as dificuldades inerentes à construção do conceito de número irracional, propusemos a questão exposta e analisada a seguir. 3. Que dificuldades os alunos apresentam, em relação aos números irracionais ou à incomensurabilidade de grandezas? Esperávamos que os professores reconhecessem, como possíveis dificuldades, aquelas relacionadas à aceitação da existência de pontos na reta que não correspondem a números racionais, à percepção da necessidade de ampliação dos conjuntos numéricos pela criação do conjunto dos números irracionais, à aceitação de que existem pares de segmentos que não são múltiplos inteiros de 162 nenhum segmento tomado como unidade de medida (por menor que seja), ao desenvolvimento de argumentos formais. Um exame das respostas apresentadas por dez professores permite perceber que algumas dificuldades identificadas em seus alunos, embora mencionadas de forma relativamente vaga, referem-se a habilidades que carecem de abstração. Por exemplo, citam dificuldades relacionadas à imaginação de grandezas incomensuráveis e à aceitação e compreensão de “números infinitos”, “muito grandes ou muito pequenos”: Eles não veem o seu uso na prática e nem conseguem imaginar grandezas incomensuráveis. (prof. C) O aluno tem dificuldades de lidar com o que não é concreto, e também tem dificuldades de lidar com números muito grandes ou muito pequenos. (prof. F). Com relação aos números irracionais, a identificação de números infinitos, o aluno não tem noção de grandezas. (prof. J). Acredito que eles confundem os conjuntos. Os primeiros conjuntos vistos como naturais e inteiros são confundidos, mas acabam assimilando no decorrer das séries, mas com relação aos racionais e irracionais eles não conseguem imaginar, mesmo com o passar das séries, ou seja, existe a incomensurabilidade de grandezas. (prof.A). Por outro lado, aludindo ao uso dos números irracionais na prática, o professor (T) deixa transparecer certa dúvida sobre a finalidade [ou indispensabilidade?] da apresentação desse conjunto aos alunos, conforme se verifica na resposta a seguir: A identificação real dos outros conjuntos numéricos. A importância do número . Qual a utilização dos números irracionais? ‘Só para saber o que é?’ Definir bem o que é grandeza com exemplos do cotidiano e situações de aprendizagem. (prof. T). Foram mencionadas também, por dez professores, dificuldades relacionadas à definição de números racionais, irracionais e reais e, consequentemente, à identificação e classificação desses números, conforme se expressa o professor (R): “a maior dificuldade dos alunos é quando eles precisam diferenciar os números irracionais (identificar) de outros”. Nota-se uma coerência entre as dificuldades apontadas nesta questão 3 e as respostas apresentadas para as questões anteriores, que tratam das definições e da 163 abordagem de números racionais, irracionais e reais. Isso pode ser observado pela comparação entre as respostas dadas pelo professor (H), às questões 1 e 3: Para iniciar os números irracionais, digo que é um número que não tem fim. Mostro alguns exemplos, como (prof. H, questão 1). Eles encontram dificuldades para entender o porquê daquele número ser infinito. (prof. H, questão 3). A expressão “é um número que não tem fim”, utilizada por esse professor, sugere uma definição baseada na representação decimal, mas, os exemplos dados ) podem não parecer, ao aluno, que correspondem a essa definição – os ( alunos poderiam perguntar: “como não têm fim?”. Além do mais, segundo essa definição e esses exemplos, como um aluno classificaria o número 0,124545454..., que também tem representação decimal infinita? Pode parecer aos alunos que há uma contradição entre a definição e os exemplos apresentados pelo professor (H) e essa poderia ser uma das causas das dificuldades apontadas. Essa aparente contradição também figura na resposta apresentada pelo professor (G) expressa por: “pelo fato de os números terem valores já estabelecidos e além de serem números escritos sem fim (grandes)”, possivelmente em referência a números irracionais indicados por radicais (“valores já estabelecidos”) e indicados por meio da representação decimal (“escritos sem fim”). Ou seja, são dificuldades relativas também às representações de números irracionais. Por fim, acrescem-se a essas dificuldades aquelas relativas à localização de números irracionais na reta numérica, conforme se verifica nas respostas que seguem: As dificuldades que os alunos apresentam em relação aos números irracionais é que para eles é difícil localizar na reta numérica número com infinitas casas decimais. (Prof. M). é trabalhar com abstração. (o nº não tem fim) que só posso determinar o espaço entre dois nºs não irracionais; onde ele ficara. (Prof. O). Observamos, no entanto, que, embora os professores tenham apontado dificuldades relacionadas às grandezas – inclusive as incomensuráveis –, esse tema parece não figurar na prática destes professores, pois não consta das estratégias por eles indicadas na questão 2, para a introdução de números irracionais. 164 Ademais, as referências às grandezas incomensuráveis foram feitas de maneira bastante vaga, levando-nos a conjecturar sobre a ausência de uma definição (ou de uma compreensão) para esse conceito e, da mesma forma, sobre a ausência de conexão entre números irracionais e grandezas incomensuráveis no repertório de conhecimentos deste grupo de professores. Assim sendo, as dificuldades reconhecidas pelos professores em seus alunos constituíram, para nós, indicações de que seria necessário acrescentar aos nossos estudos uma discussão a respeito da incomensurabilidade de grandezas como parte indissociável do estudo dos números irracionais, senão para o trabalho com alunos do Ensino Fundamental, ao menos para o domínio dos professores que trabalham com estes alunos. Além disso, levando em conta as respostas a esta questão, uma exploração de estratégias que permitem determinar a localização de números racionais ou irracionais na reta numérica também deveria constar da pauta de nossos estudos. Conforme foi dito anteriormente, apresentando o quadro que segue, não pretendemos mostrar exatidão na quantidade de indicações das dificuldades identificadas pelo grupo de professores em seus alunos. Algumas dificuldades foram apontadas por diversos professores assim como alguns professores apontaram diferentes dificuldades. A intenção é apresentar, de forma geral, as dificuldades que se evidenciaram nas indicações feitas pelos professores. Quantidade de professores 10 Dificuldades apontadas pelos professores Abstração: compreensão do significado de grandezas, “imaginação” de grandezas incomensuráveis, compreensão da noção de infinito, utilização de números muito grandes ou muito pequenos. 10 Definições, identificação, representação, classificação. 3 Operações com números irracionais. 2 Localização de números irracionais sobre a reta. 1 Em branco. 1 Falta de clareza quanto à utilização de números irracionais. Quadro 7 – Síntese das respostas dos professores ao item 3 do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal 165 4.4.4. Sobre a relevância atribuída pelos professores ao ensino dos números irracionais, no Ensino Fundamental A fim de promover a reflexão a respeito de razões que poderiam justificar a presença dos números irracionais nos currículos de Matemática do Ensino Fundamental, foi proposta a seguinte questão: 4. Você considera importante/indispensável introduzir o conceito de número irracional no Ensino Fundamental? Por quê? Ao propor esta questão, supúnhamos que a reflexão necessária à elaboração de respostas para as questões anteriores pudesse constituir ponto de partida para uma avaliação, por parte dos professores, quanto à relevância de introduzir o conjunto dos números irracionais no Ensino Fundamental, conforme está prescrito nos documentos de referência curricular. Ou seja, poderia haver dentre os professores, alguém que, não tendo nunca sido questionado sobre a indispensabilidade desse conteúdo nessa fase da escolaridade, também não houvesse antes refletido sobre a possibilidade de uma disposição diferente dos conteúdos nos currículos de Matemática. Esta pergunta está diretamente ligada a uma das questões que deveriam permear as discussões ao longo da realização de nosso experimento, no que diz respeito aos conhecimentos sobre número irracional que um aluno precisa ter construído, ao terminar o Ensino Fundamental. Em nossa interpretação, as respostas dos professores não demonstram a presença de um exame crítico a respeito da indispensabilidade dos irracionais no currículo de Matemática prescrito para os dois últimos anos do Ensino Fundamental. Todos eles consideraram importante a introdução e o estudo dos irracionais nesse nível de ensino, observando, entretanto, que esse estudo deve ter restrições. Por exemplo, oito professores avaliaram como adequada/suficiente uma abordagem apenas introdutória que proporcione um primeiro contato com os irracionais e permita o acesso a um outro conteúdo – por exemplo, os números reais, as grandezas incomensuráveis, ou algum assunto tratado no Ensino Médio. Os extratos expostos a seguir contêm respostas nesse sentido: 166 Eu considero importante a partir do momento que, eles precisam ter essa noção pelo menos do que é um número irracional, pois no ensino médio usa-se o conjunto dos números reais e dentro deste conjunto tem os números irracionais. (prof. A, o destaque é nosso). Sim, pelo menos introduzir a noção básica, para que ele possa entender determinados assuntos que serão trabalhados nas séries seguintes. (prof. J, o destaque é nosso). Acho importante trabalhar só com o conceito, porque assim os alunos poderão ter uma noção de grandezas incomensuráveis. (prof. M) Introduzir sim, mas não se aprofundar, pois nesta fase ainda é muito complicado para o aluno esses conceitos, no entanto, é importante que ele tenha um primeiro contato e algumas noções para que consiga diferenciálos dos outros. (prof. R, o destaque é nosso). Parece-nos, além disso, que para alguns professores, a abrangência considerada suficiente para o estudo dos irracionais configura-se bastante reduzida, envolvendo a observação de elementos da natureza, cuja forma lembra a noção de infinito, ou envolvendo uma quantidade pequena de exemplos. Essa nossa ideia pode ser confirmada pelo exame dos excertos: Acho importante que os alunos conheçam os números I [irracionais], conheçam a história deles. É importante eles observarem uma concha, uma colmeia, elementos da natureza que dão esta noção de infinito, do que é um número irracional. (prof. H) Eu acho que é importante introduzir sim, porque o aluno já vai se familiarizando com a ideia. Quando chega no E. M. ele vai ver o e já vai saber o que é realmente os números irracionais. (prof. P, o destaque é nosso). Outros comentários postos pelo grupo, a esta questão, revelam preocupação no sentido de atribuir um significado aos números irracionais que, em algumas respostas, parece associado à utilização dos irracionais na resolução de situações concretas, o que, em última instância, reduziria o tratamento dos irracionais às aproximações racionais: Eu considero importante termos no currículo o conceito de número irracional no ensino Fundamental, desde que se encontre um significado para este aluno. Seja despertado o interesse no aluno em saber o porquê temos o número irracional e onde podemos usá-lo na prática. O uso da calculadora ajuda muito o aluno nos exercícios. (prof.C, grifo do professor). Importante sim, mas indispensável não. Será importante iniciar o conteúdo com os alunos, colocando o que é o conjunto, onde usamos, alguma atividade concreta (jogo, atividade com calculadora, etc.). (Prof. W). 167 Além disso, identificamos, nas respostas, outras ideias que mereceriam melhor reflexão. Por exemplo, o professor (G) se refere aos benefícios de introduzir os irracionais nas séries iniciais, dizendo: “Creio que sim, porque assim, desde pequenos (séries iniciais) vão se habituando com este conjunto de nºs. A ordem de grandeza deles. E sua importância na utilização de cálculos”. Seis professores apresentaram argumentos bastante vagos para dizer da importância dos números irracionais no currículo do Ensino Fundamental. Por exemplo: É importante manter o conceito de número irracional no ensino fundamental, porque o aluno um dia irá deparar com o número irracional. (prof. L). Todo conhecimento a mais sempre é bom. Pois só irá ajudá-lo na continuação do curso ele estará adicionando conhecimentos. (prof. N). A nosso ver, as ideias explicitadas pelos professores mostram que estes consideram satisfatória uma introdução dos números irracionais, incluindo definições e alguns exemplos, com vistas à familiarização dos estudantes com esse conjunto numérico – apenas o suficiente para estabelecer a ponte entre os racionais e os reais, como “preparo” para o estudo dos conteúdos prescritos para o Ensino Médio. Destacamos, finalmente, a resposta do professor (I) que, não obstante tenha sido elaborada de forma imprecisa, aponta a necessidade de ampliação dos campos numéricos como justificativa para a introdução dos números irracionais no Ensino Fundamental: Figura 47 - Questão 4. Protocolo Prof. (I) Fonte: Acervo pessoal Com o quadro seguinte, procuramos destacar as ideias que prevalecem neste grupo de professores, sobre a indispensabilidade de ser introduzido o conceito de número irracional, no Ensino Fundamental: 168 Quantidade de professores 8 Opinião dos professores sobre a importância de introduzir o conceito de número irracional no Ensino Fundamental É necessária apenas uma abordagem introdutória, suficiente para estabelecer a transição dos racionais para os reais ou para permitir o acesso a conteúdos trabalhados no Ensino Médio. 7 É importante introduzir números irracionais como preparo para estudos posteriores. 6 É importante introduzir os irracionais, por razões não compreensíveis. 1 A abordagem é necessária para o estudo da ampliação dos campos numéricos. É importante a introdução dos irracionais, pela observação de exemplos retirados da natureza que lembram a ideia de infinito. Quadro 8 – Síntese das respostas dos professores ao item 4 do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal 1 4.4.5. Sobre o conhecimento dos professores a respeito de uma abordagem geométrica para o ensino dos números irracionais Visando investigar as concepções dos professores, no que se refere às possíveis abordagens geométricas dos números irracionais, ou suas opiniões sobre abordagens já experimentadas, foi elaborada a questão a seguir: 5. Você acha importante incluir nas aulas de Matemática uma abordagem geométrica do conceito de número irracional? Como seria essa abordagem? Tínhamos a expectativa de que os professores, em suas respostas, se referissem à localização de números racionais ou irracionais sobre a reta numérica, por meio de construções geométricas; à incomensurabilidade de segmentos de reta; e à relação entre números irracionais e grandezas incomensuráveis. As respostas dos professores revelaram que não houve compreensão sobre os tipos de abordagens geométricas a que estávamos nos referindo. Três professores mencionaram como possível recurso geométrico, para a compreensão do conceito de número irracional, a apresentação do número (provavelmente por meio de experimento prático de medição de objetos circulares), como indicam os excertos que seguem: 169 Acredito que uma boa tentativa seria abordar o número Pi. (prof.K) Sim, como já citei na questão 2, ao introduzirmos a circunferência, a medida de seu comprimento, já estamos trabalhando ou introduzindo o Pi ( ). O cálculo da hipotenusa de determinado triângulo retângulo, conforme as medidas dos catetos chega-se a um número irracional. (prof.E). Apenas um professor, além de (E), explicitou a ideia de construção geométrica de segmentos de medida irracional, a partir de um triângulo retângulo, dizendo: Com certeza, pode ser introduzida com a construção da diagonal de um quadrado de lado um e depois dar sequência a diagonal dos quadrados que têm diagonal de números irracionais. Proposta do livro Vol. 1 da 8ª série. (prof. Q). Os professores (U) e (V) também se referem à determinação da medida da diagonal de um quadrado de lado “l”, como se expressou (V) em: “Sim. Mostrar o valor da diagonal do quadrado ( )”, sem, no entanto, fazer indicação de uma continuidade para essa abordagem, que inclua, por exemplo, a construção de outros segmentos de medida irracional e também sem fazer menção à localização de pontos na reta que correspondam aos números irracionais que representam essas medidas. É possível que o professor (B) também tenha considerado a mesma figura do quadrado de lado 1u, quando sugeriu a abordagem do número irracional por meio da demonstração. Sua resposta foi apenas: “Sim, demonstração.” Outra estratégia, que foi sugerida por quatro professores, refere-se à localização de números irracionais na reta numérica, provavelmente considerando a representação decimal: Sim, para os alunos visualizarem a grandeza dos números irracionais precisaria mostrar geometricamente na reta a sua extensão. (prof.A). Sim, podemos pedir a localização dos números irracionais na reta numérica, com aproximações. (prof. F). Sim, colocando valores irracionais numa reta comparando sua grandeza com números inteiros, e decimais (exatos). (prof.G). É possível que, ao dizer “grandeza dos números irracionais”, os professores estivessem se referindo à quantidade de algarismos utilizados para a representação decimal de um número. 170 Outros professores referem-se a atividades práticas no campo da Geometria, como facilitadoras da compreensão dos números irracionais. Contudo, não esclarecem os propósitos e os encaminhamentos que poderiam ser utilizados para a realização dessas atividades, conforme se verifica nos comentários a seguir: Eu acho importante ter uma abordagem geométrica do conceito de número irracional, nas aulas de Matemática, pois eu vejo que através da geometria teremos fatos e ideias do porquê que esse número irracional é tão diferente dos outros números; a parte prática é muito importante pois o aluno consegue “apalpar”/”visualizar”/”comensurar” o tamanho de um número irracional através da Geometria, onde temos figuras e medidas. (prof.C, grifo do professor). Acho importante porque quando trabalhamos com a geometria fica mais fácil a compreensão dos números irracionais. (prof.M). Sim. Essa abordagem será colocando os números irracionais nas figuras geométricas, observando a colocação na própria figura, ou chegar a um resultado. (prof. L). Um professor indicou a utilização do diagrama de Venn como única abordagem geométrica do conceito de número irracional, representando a relação de inclusão entre os conjuntos numéricos: Figura 48 - Questão 5. Protocolo Prof. (P) Fonte: Acervo pessoal De resto, observa-se certo afastamento da geometria, quando se trata da abordagem do conjunto dos números irracionais, quer por limitações reconhecidas pelos próprios professores, quer pela previsão das dificuldades que serão enfrentadas pelos alunos. Por exemplo, Eu acredito que se possa incluir alguns conceitos, mas não tão aprofundados, pois como disse na resposta anterior, nossos alunos, principalmente da escola pública, não estão preparados para tal. (prof.R). 171 Sinceramente, não, pois não domino geometria e nem tenho noção de como eu faria essa abordagem. (prof. J). Deve ser. Não sei. (prof.O). Acho que ia ser bem legal, mas não sei como fazê-lo. (Quero aprender). (prof. W). Acho complicado explicar número irracional através da geometria para uma turma da 8ª série ou até do E. M.. Porque o aluno tem uma noção de que Geometria é algo que se trabalha com medidas. O conceito do aluno em Geometria é o conceito de “medir”, calcular uma “área” para colocar um piso, um tapete. Nesta idade que o aluno está a Geometria é muito concreta. (prof.H, grifo do professor). Parece-nos que o professor (H) – autor desta última resposta – não estabeleceu um vínculo entre números irracionais e grandezas incomensuráveis, visto que não leva em conta a necessidade desses números para a representação das medidas de grandezas incomensuráveis. Finalmente, conquanto quatro professores tenham mencionado a exploração de atividades que envolvem a determinação da medida da diagonal de um quadrado de lado unitário ou de lado “l”, nenhum dos participantes do grupo se referiu ao estudo da incomensurabilidade de segmentos de reta, como parte do trabalho dedicado à construção do conceito de número irracional, possivelmente indicando a ausência desse conhecimento no repertório deste grupo de professores. O quadro que segue permite visualizar, de forma geral, as opiniões dos professores sobre a abordagem geométrica do conceito de número irracional: Quantidade de professores Estratégias geométricas indicadas para a abordagem do conceito de número irracional 8 Não indicam estratégias. 4 Localização de números irracionais sobre a reta numérica, em sua representação decimal. 3 Abordagem experimental para a obtenção do valor aproximado de . 3 Utilização de situações que envolvem figuras geométricas, sem especificação das estratégias. 2 Construções geométricas de triângulos retângulos para a obtenção de segmentos de medida irracional. 2 Determinação da medida da diagonal de um quadrado de lado 1 l. 1 Utilização da demonstração. 1 Utilização do Diagrama de Venn. Quadro 9 – Síntese das respostas dos professores ao item 5 do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal 172 4.4.6. Sobre o conhecimento dos professores a respeito das orientações curriculares para a introdução do conceito de número irracional A fim de tornar perceptível o vínculo entre os estudos que pretendíamos desenvolver ao longo de nosso experimento e as orientações contidas no Currículo do Estado de São Paulo, sobre a introdução do conceito de número irracional, submetemos à apreciação e análise dos professores, uma atividade escolhida dentre aquelas propostas no Caderno do Professor destinado ao 9º ano do Ensino Fundamental, publicado em 2008. 6. O Caderno do Professor (2008) destinado à 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental sugere que o professor inicie o estudo do conceito de número irracional, propondo a seguinte questão: “É sempre possível representar a razão de dois segmentos quaisquer com um número racional? Como isso pode ser feito? (Para quaisquer segmentos AB e CD é sempre possível l , ou seja, AB = , com p e q .................................................................................................................................................... É muito provável que os alunos, nesse momento, afirmem que ‘é sempre possível representar a razão de dois segmentos quaisquer com um número racional’, principalmente pelo fato de poder subdividir a Unidade quantas vezes quiserem; em outras palavras, eles poderão utilizar submúltiplos cada vez menores” (p. 13). (A) Como você avalia essa abordagem para o conceito de número irracional? (B) Com que finalidade um professor poderia propor essa questão? (C) Você já experimentou iniciar uma abordagem do conceito de número irracional de acordo com essa sugestão? Que dificuldades os alunos demonstraram, ao responder a essa questão? Nossa intenção ao propor esta questão, era buscar, nas análises ou comentários que os professores iriam apresentar, elementos que permitissem perceber críticas positivas ou negativas, sugestões de mudanças, hipóteses de prováveis resultados, previsões de dificuldades que, segundo o olhar de Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008), compõem os conhecimentos necessários ao professor, neste caso, para o ensino do conceito de número irracional. Assim, uma vez que se tratava de avaliar uma atividade sugerida no Caderno do Professor, proposta com a finalidade de introduzir o conceito de número irracional sob uma perspectiva geométrica, supúnhamos que as respostas dos professores a esta questão deveriam guardar estreita relação com as respostas dadas à questão anterior, que também se refere à incomensurabilidade de grandezas. 173 Quanto ao item (A), que solicita uma avaliação da abordagem proposta, para o conceito de número irracional, oito professores deixaram em branco ou disseram que não sabiam como explicar. Dois outros não haviam conseguido desenvolver essa atividade com seus alunos, como afirma o professor (H): “Eu não consegui trabalhar este conceito com meus alunos. Consegui trabalhar a parte geométrica da divisão dos segmentos. Mas levá-los a observar o número irracional através deste processo o meu alunado não conseguiu concluir”. Quatro professores avaliaram a atividade como inadequada ou difícil, dizendo, por exemplo, que é “muito complexa, poderia abordar com valores na prática” (prof.K). Oito professores avaliaram a atividade de forma bastante vaga, dizendo ser interessante, mas acrescentaram comentários que não deixam claro se foi feita uma reflexão mais profunda sobre a atividade. Isso pode ser observado nas respostas a seguir: É uma forma interessante, apesar de não ser a única. (prof. V). Muito boa. Vai ficando claro para eles os números racionais. (prof. D). Acho que é uma abordagem interessante, pois abre discussões que levam os alunos a refletirem mais sobre o verdadeiro conceito de números irracionais. (prof. R). Considero esta maneira de abordar o conceito dos irracionais através dos conceitos sobre razão e proporção, desde que estes conteúdos forem [sic] bem trabalhados na 6ª série e 7ª série, uma maneira interessante de explicar a existência de números irracionais. (prof.U). Finalmente, as respostas apresentadas por três professores, conforme exibimos a seguir, embora requeressem discussão, indicam questionamentos que poderiam ser tomados como pontos de partida para a reflexão do grupo, sobre o desenvolvimento desta atividade com seus alunos. Todo número não pode ser dividido por 0. Nem todo número racional dividido por número racional poderá dar número racional. (prof.S). É razoável, mas nem sempre os alunos chegarão a uma razão que represente um número irracional, mesmo usando os submúltiplos cada vez menores. Eles precisam aprender a assimilar estes conceitos. Mas é preciso já estarmos trabalhando isto com os alunos. (prof.E). 174 Acho que é uma abordagem muito boa. O aluno pode não precisar de outro número, além do racional, em um caso, em outro, mas terá um momento que esse número não vai dar conta. (prof.I). Conforme dissemos inicialmente, quando explicitamos nossos propósitos para esta questão, nossa suposição a respeito da coerência entre as respostas apresentadas à questão anterior (5) e a esta questão, foi confirmada. Ou seja, estes resultados indicam que ainda não havia domínio de noções importantes relacionadas ao conceito de número irracional, sobretudo no que se refere à incomensurabilidade de grandezas. O quadro a seguir apresenta, de forma sucinta, a opinião dos professores acerca do item (A). Quantidade de professores 8 Como os professores avaliaram a atividade proposta no Caderno da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Item (A) Deixaram em branco ou responderam que não sabiam explicar. 8 Consideraram a atividade interessante, apresentando argumentos vagos. 4 Consideraram a atividade inadequada/muito complexa. 3 Apresentaram considerações relevantes, que deveriam ser retomadas ao longo da fase de intervenção. 2 Não conseguiram trabalhar essa atividade com seus alunos. Quadro 10 – Síntese das respostas dos professores ao item 6 (A) do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal Para o item (B), que requer dos professores uma reflexão a respeito da finalidade de propor essa atividade aos alunos, doze professores deixaram em branco ou responderam que ainda não haviam trabalhado essa questão com seus alunos. Nove professores apresentaram respostas vagas, que não permitem avaliar sua convicção a respeito do potencial desta atividade, para a introdução do conceito de número irracional por meio da incomensurabilidade de segmentos de reta. Por exemplo, o professor (D), em sua resposta, afirma que a finalidade de propor essa atividade seria “para diferenciar os números racionais dos irracionais” e o professor (O) supõe que seria para “mostrar que não existe um valor exato”. Outras respostas restringem ainda mais a finalidade de aplicar a atividade, como “observar por exemplo o por quê do número ser irracional” (prof. H). 175 Finalmente, as respostas dos professores (C) e (I) indicam uma reflexão sobre a atividade, contendo condições de viabilidade e até alguma previsão de resultados. Se a ideia inicial é dar o pontapé do estudo do conceito de número irracional, esta questão me parece bem apropriada de início. Contanto, que os alunos saibam ler e interpretar o enunciado; eles podem concluir que a questão propõe subdividir uma unidade em quantas vezes quiser, sempre indo utilizar cada vez números menores (submúltiplos da divisão da unidade cada vez menores). (prof.C) Para aproveitar o que o aluno conhece, número racional, e mostrar que nem sempre é possível chegar em um número que pode ser expresso com finitas casas decimais. (prof.I). De forma geral, as respostas dos professores ao item (B) desta questão são as seguintes: Quantidade de professores Como os professores avaliaram a atividade proposta no Caderno da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Item (B) 12 Deixaram em branco ou responderam que ainda não trabalharam essa questão com seus alunos. 9 Respostas vagas. 2 Respostas relevantes que deveriam ser retomadas ao longo da fase de intervenção. Quadro 11 – Síntese das respostas dos professores ao item 6(B) do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal Quanto ao item (C), que diz respeito à implementação – pelo menos em caráter experimental – das sugestões apresentadas no Caderno, para a introdução do conceito de número irracional, apenas um professor respondeu afirmativamente, dizendo que já tentou, mas não conseguiu que seus alunos chegassem a uma conclusão: “...conseguiram dividir o segmento, entender, mas não concluir o número irracional” (prof.H). Destacamos as considerações feitas pelo professor (M), cujos argumentos deveriam ser retomados em nossas discussões posteriores, não apenas em relação à questão proposta no Caderno, mas também em relação à definição de número racional: “Eu nunca sugeri deste jeito, porque acho que os alunos irão responder que nem sempre a divisão de um nº inteiro por outro nº inteiro nem sempre o resultado será um nº racional”. 176 4.4.7. Sobre o conhecimento dos professores a respeito da incomensurabilidade de grandezas e seu ensino Para investigar se os professores abordavam, em suas aulas, a noção de incomensurabilidade de grandezas, utilizando alguma estratégia diferente daquela avaliada na questão 6, foi proposto o item que segue: 7. O estudo do conceito de número irracional, em suas aulas, inclui uma discussão a respeito da incomensurabilidade de grandezas? Esta questão complementa as questões 5 e 6. A palavra “discussão”, no enunciado, poderia, em nossa opinião, suscitar comentários ou considerações a respeito de experiências feitas pelos professores, concordantes (ou não) com a abordagem sugerida no Caderno. No entanto, as respostas apresentadas pelos professores ficaram restritas a um “sim” ou “não”, acrescidos de algum comentário bastante vago, como Às vezes faço alguns comentários de Universo, cosmos, planetas e fractais. É o máximo que eu consigo. (prof.H) Deve incluir, uma vez que fica evidente o número irracional em atividades desse tipo. (prof.I). Sim. A medida em que se descobre os irracionais se percebe as relações de suas grandezas. (prof.K). Sim, mas ainda é um grande mistério para os nossos alunos, tanto os números irracionais, quanto a incomensurabilidade de grandezas. (prof.R). Sim, eu explico sobre o nº que é uma grandeza incomensurável. (prof.B). Por outro lado, as respostas de dois professores, expostas a seguir, contêm reflexões que, provavelmente, indicariam uma concepção de grandezas incomensuráveis como grandezas que não podem ser medidas. Sim, eu costumo falar de alguns exemplos de grandezas incomensuráveis, porém no momento não vem um exemplo que eu possa citar aqui. (Talvez medir uma dor de cabeça; talvez medir o nosso sistema solar ou o Universo; será que são grandezas incomensuráveis??). (prof.C). – O que pode ser medido? – O que não pode ser medido? – O conceito de número racional como representante de números ‘sem fim’. (prof.T). 177 Os resultados das questões 5, 6 e 7 indicam, em nosso ponto de vista, que o conceito de incomensurabilidade de grandezas – interpretação geométrica do número irracional – não fazia, na época da aplicação deste questionário, parte da imagem conceitual do grupo de professores participantes de nosso estudo. Analisando sob o ponto de vista de Shulman (1986), a ausência de domínio desse conteúdo específico implicaria igual ausência de conhecimentos para o seu ensino. Ou seja, a ausência de conhecimentos sobre a interpretação geométrica dos números irracionais significa também desconhecimento das necessidades que impulsionaram a criação desse conjunto de números e, consequentemente, implica a falta de argumentos para convencer os alunos da importância do estudo desse conteúdo, quer no Ensino Fundamental, quer em fase escolar posterior. Além disso, limita a rede de conexões possíveis entre os números irracionais e outros campos da Matemática – por exemplo, entre o campo dos Números (que envolveria as definições, as representações, a classificação de números, as operações) e o campo da Geometria (que permitiria ao aluno a percepção da indispensabilidade dos irracionais, para a realização – matematicamente, falando – das medidas de quaisquer grandezas). Restringe, igualmente, as possibilidades de seleção e organização de atividades – um professor que não conhece a ideia de segmentos incomensuráveis não pode selecionar ou elaborar atividades que envolvam essa ideia –, empobrecendo assim, também as possibilidades de ampliação da imagem conceitual que está sendo constituída na mente dos alunos, pela qual o professor é, a nosso ver, o principal responsável. Isto é, mesmo que se opte por uma abordagem apenas inicial que leve em conta o nível de compreensão dos alunos, é o domínio que o professor tem a respeito desse assunto que permitirá a transformação desse conhecimento em conhecimento a ser ensinado – acessível, compreensível aos alunos. 4.4.8. Sobre o conhecimento dos professores a respeito da densidade do conjunto dos números racionais Com a intenção de investigar como os professores definiriam a densidade do conjunto dos números racionais e também, eventualmente, perceber se a 178 exploração desse tema já fazia parte de suas experiências em sala de aula, foi proposta a seguinte questão: 8. Que estratégias um professor poderia utilizar para auxiliar os alunos de 8ª série a perceber a densidade do conjunto dos números racionais na reta numérica? As respostas de doze professores a esta questão são imprecisas, indicando, provavelmente, uma ideia incompleta – ou inexistente – do conceito de densidade do conjunto Q. São exemplos desse tipo de respostas: Desenhar reta? Comparar as divisões? (prof.K). Divisão de 1 pizza. Coisas do dia-a-dia deles. (prof. D). 1º localizar na reta os números inteiros depois os números racionais e irracionais. (prof. M). O professor pode demonstrar através da divisão dos números e ir posicionando na reta. (prof. R). No entanto, a ideia de densidade do conjunto dos racionais em R está presente nas respostas de sete professores, como estratégia possível de ser desenvolvida com os alunos, conforme se constata a seguir: Não é fácil e muito menos simples. Para a 8ª série, acredito, que seja um pouco complexo entender a densidade, principalmente, dos irracionais. Com os racionais o professor pode mostrar, por exemplo, que entre dois números inteiros, existem, muitos, muitos racionais. (prof.I). Utilizaria como exemplo, uma régua, explicando que entre uma unidade e outra, existem infinitos números. (prof.J) Coloco ou desenho uma reta numérica na lousa e vou dividindo por exemplo de 0 a 1, divido ao meio, depois de 0 a ½ ao meio, de 0 a ¼ ao meio até o aluno conseguir perceber que posso dividir na metade infinitamente. (prof.H) 179 Figura 49 - Questão 8. Protocolo Prof. (O) Fonte: Acervo pessoal O quadro a seguir resume os resultados que acabamos de comentar: Quantidade de professores 12 Respostas dos professores, referentes à densidade de Q Respostas imprecisas, indicando conhecimento inconsistente sobre a densidade de Q. 7 Respostas contendo elementos indicativos de conhecimento sobre a densidade de Q. 2 Em branco. 2 Não sabiam. Quadro 12 – Síntese das respostas dos professores ao item 8 do instrumento diagnóstico Fonte: Acervo pessoal 4.4.9. Análise realizada pelo grupo de professores, de respostas elaboradas por alunos, envolvendo a ideia de sucessor de um número Para averiguar se, analisando afirmações de alunos, referentes ao sucessor de um número racional, os professores identificariam como causa dos erros, a ausência de conhecimentos sobre a densidade de Q, caracterizada pela crença de que um número racional tem sucessor, foi proposta a seguinte questão: 9. (A) As seguintes afirmações foram feitas por alunos de 4ª a 8ª série 85. a) Os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5. b) Os números que vêm depois de ½ são 2/2, 3/2, 4/2, 5/2, ... 85 As afirmações constantes desta atividade foram construídas com dados emprestados dos resultados do estudo desenvolvido por Santos (1995, p.130-131). 180 c) Os sucessores de 2/3; 0,5; 3,69 são, respectivamente: 3/3; 0,6 e 3,70. d) O sucessor do número 3,4444... é 3,44444... e) O sucessor do número 3,4444... é 3,5555... f) O sucessor do número 3,4444... é 3,5. Analise e comente cada uma dessas afirmações. As ideias explicitadas nas afirmações que seriam analisadas pelos professores evidenciam uma transferência, para os números racionais, de concepções formadas anteriormente sobre números naturais: a ideia de sucessor de um número. Nosso intuito ao propor essa análise aos professores estava ligado ao interesse de nosso experimento – a abordagem do conjunto dos irracionais pela exploração da densidade dos racionais na reta numérica. Analisando as afirmações: a) Os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5 e b) Os números que vêm depois de ½ são 2/2, 3/2, 4/2, 5/2, ... Supúnhamos que estas duas frases fossem analisadas pelos professores, tendo em conta a ideia de sucessor de um número racional. Ou seja, esperávamos que, ao examinar, por exemplo, a afirmação “os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5” (e não “alguns dos números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5”, e não “os números 1/3, 1/4, 1/5 vêm depois de ½”), os professores fizessem conjecturas a respeito da possibilidade de os alunos (autores das afirmações) haverem se baseado na crença de que números racionais têm sucessor. No entanto, as respostas apresentadas pela maioria dos professores indicam uma avaliação das duas afirmações sob o ponto de vista da ordenação de números racionais. Os extratos a seguir exemplificam os comentários feitos por esses professores: Se o exercício pediu para colocar em ordem decrescente, o aluno acertou. Senão, o aluno pensou somente no número de baixo (denominador)”. (Prof. A, afirmação (a)). 1/3, ¼, 1/5, vêm antes do ½, os alunos não dividiram 1 por 3, 1 por 4 e 1/5 e sim associaram os 1/3, ¼ e 1/5 maiores que 1/2. (Prof. F, afirmação (a)). Meio é menor do que q.q. um dos outros. (Prof. O, afirmação (b)). 181 Neste caso se ele estiver observando em ordem crescente o aluno está certo. Cada vez ele come um pedaço a mais do chocolate. (Prof. H, afirmação (b), grifo do professor). Figura 50 - Questão 9(A). Afirmação (a). Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal Analisando respostas desse tipo, concluímos que é possível que esses professores tenham respondido dessa forma (considerando apenas a ordem dos números), independentemente de saber que um número racional não tem sucessor. Assim sendo, teria falhado o nosso propósito para esta questão. Por outro lado, dois professores avaliaram a afirmação (a), reconhecendo uma transferência para o conjunto dos racionais, de concepções válidas para os números naturais, como se observa a seguir: No 1º caso o aluno ainda associa as ideias de fração a números naturais tomando como base o denominador, é como se ele escrevesse qual é o sucessor de 2... Neste caso o professor precisa intervir no sentido de demonstrar e comparar o que representa cada fração, associando quantidade e fração. (prof.Q, afirmação (a)). Figura 51 - Questão 9(A). Afirmações (a), (b), (c). Protocolo Prof. (I) Fonte: Acervo pessoal Três professores (H, S e J) perceberam a causa do erro do aluno, na afirmação (a), embora não tenham se referido explicitamente à transferência para o conjunto Q, de propriedades válidas em N. O professor (J), por exemplo, expressouse dizendo: “não [não está correto], pois o aluno acha que aumentando o denominador, os números aumentam e isso não acontece, pois fazendo a divisão de cada número encontraremos números menores”. 182 Assim, tendo em conta a interpretação feita pela maioria dos professores às duas primeiras afirmações, não foi possível perceber se a imagem conceitual de número racional construída por esses professores incluía o fato de que número racional não tem sucessor. Seria, portanto, uma questão a ser discutida posteriormente, ao longo da fase de intervenção. Analisando as afirmações que deixam evidente a crença de que um número racional tem sucessor: c) Os sucessores de 2/3; 0,5; 3,69 são, respectivamente: 3/3; 0,6 e 3,70. d) O sucessor do número 3,4444... é 3,44444... e) O sucessor do número 3,4444... é 3,5555... d) O sucessor do número 3,4444... é 3,5. A análise feita pelo grupo de professores revelou dúvidas relacionadas à comparação de números racionais, à densidade de Q e também à ideia de sucessor de um número. O professor (H), por exemplo, ao mesmo tempo em que demonstra compreensão da ideia da densidade de Q, expõe dúvidas relacionadas à possibilidade de existência de sucessor para um número racional: A criança aprende na 4ª série (só conhece) que o sucessor de um número é o seu consecutivo. Ex.: sucessor de 3 é 4. Se este aluno nas séries mais avançadas, por exemplo, 8ª série, o conceito que o aluno tem que entre o número 1 e 2 existem infinitos números, como ficaria esta explicação de sucessor?. (prof. H) Este mesmo professor (H), examinando as afirmações (d) “O sucessor do número 3,4444... é 3,44444...” e (e) “O sucessor do número 3,4444... é 3,5555...” considera que: Figura 52 - Questão 9(A). Afirmações (d) e (e). Protocolo Prof. (H). Fonte: Acervo pessoal 183 Ou seja, parece restar a dúvida de que existe sim, a possibilidade de um número racional ter sucessor. Analisando a afirmação “O sucessor do número 3,4444... é 3,44444...”, outros professores deixam transparecer dúvidas relacionadas à comparação de números racionais representados na forma decimal, conforme se observa no comentário feito pelo professor (C): “o sucessor do número 3,4444... é 3,444... e não 3,44444..., que na verdade é o seu antecessor; ao selecionar mais casas decimais de um número decimal infinito, ele é cada vez menor; exemplo: 0,2 é maior do que 0,22; etc.”(grifo do autor). O argumento elaborado por esse professor não leva em consideração a equivalência entre frações, que garante a igualdade entre 0,2 e 0,20. A lembrança dessa propriedade poderia ter ajudado o professor a perceber que 0,2 é menor do que 0,22. De qualquer forma, restaria ainda (para este professor) a ideia de que 3,4444... tem sucessor. Assim, embora o professor tenha avaliado como incorreta essa afirmação, não é válido o argumento em que baseou sua justificativa. Percebe-se, também, certa contradição nas respostas apresentadas por (E), conforme protocolo a seguir: Figura 53 - Questão 9(A). Afirmações (c), (d), (e), (f). Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal A análise do item (c), em que o professor diz: “estes nºs estão após, mas não são precisamente seus sucessores”, poderia ser interpretada como manifestação de 184 que em sua concepção, esses números (ou um número racional qualquer) não têm sucessor. Entretanto, sua resposta ao item (d) acrescida da observação “sucessor é sempre o +1” revela que, no entender deste professor, existe o sucessor de um número racional. A associação da ideia de sucessor com “maior do que” está presente também na resposta apresentada pelo professor (L): Figura 54 - Questão 9(A). Afirmações (c), (d), (e), (f). Protocolo Prof. (L) Fonte: Acervo pessoal Por outro lado, percebe-se nos professores interesse em superar eventuais limitações no que se refere a esse conteúdo, conforme se expressou o professor (K) que, após calcular: “ ”, provavelmente para determinar o sucessor de 2/3, complementa: “diante dessas afirmações também tenho que pensar nos meus conceitos pois vacilei e não cheguei a nenhuma conclusão plausível”. Consideramos importante observar que o enunciado da questão pode ter contribuído para que ocorressem algumas dificuldades que ficaram visíveis nas avaliações explicitadas pelos professores. Por exemplo, não foi indicado claramente no enunciado que o conjunto em foco era o dos números racionais – havíamos julgado desnecessária essa informação, uma vez que todos os números envolvidos na questão eram racionais representados quer na forma fracionária, quer na forma decimal – mas, talvez por isso, tenham sido feitas algumas observações como: depende do conjunto de números que estou trabalhando.... (prof.O, para a afirmação (c) do enunciado), ou se forem números fracionários (Q), o aluno está certo. (prof.A, para a afirmação (b) do enunciado). 185 Além disso, nesse enunciado, incluímos afirmações feitas por alunos de 4ª a 8ª séries, tomando por base os resultados da pesquisa realizada por Santos (1995). Talvez seja intervalo de tempo muito amplo e, provavelmente por isso, tenham ocorrido avaliações como “um aluno de 4ª série que sabe o conceito de sucessor de um número natural, analisando esta situação, a resposta está correta” (prof. J, para a afirmação (c) do enunciado). Mesmo assim, esses argumentos não seriam pertinentes, visto que a construção de noções relativas aos números racionais faz parte dos conteúdos prescritos para a 4ª série, incluindo representações fracionárias e decimais. Ou seja, ainda que se trate de um aluno de 4ª série, que domina a ideia de sucessor de um número natural, a afirmação não poderia ser considerada correta, pois os números indicados no enunciado estão representados na forma fracionária ou decimal. Concluindo, as justificativas apresentadas por alguns sujeitos de nossa pesquisa demonstram que não perceberam, nas afirmações analisadas, a manifestação da transferência para o conjunto dos racionais, de conhecimentos construídos sobre os naturais. 9 (B). Em resposta a uma questão que solicitava a inserção de um número entre 0,08 e 0,081, foram observados os resultados: 0,09 (alunos de 5ª/6ª séries) 0,080 (alunos de 7ª/8ª séries) Analise e comente as respostas apresentadas por esses alunos. Neste caso, supúnhamos que os professores poderiam interpretar as respostas considerando a possibilidade de o aluno haver tomado 0,09 por sucessor de 0,08 e 0,080 por antecessor de 0,081. Embora não o tenham feito explicitamente, três professores (O, E, Q) parecem basear seus argumentos na ideia de densidade de Q, como se pode verificar nos protocolos que seguem: 186 Figura 55 - Questão 9(B). Protocolo Prof. (Q) Fonte: Acervo pessoal Figura 56 - Questão 9(B). Protocolo Prof. (O) Fonte: Acervo pessoal Figura 57 - Questão 9(B). Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal 187 Outros seis professores, que também avaliaram as respostas como incorretas, apontaram dificuldades relativas à representação e à comparação de números racionais, como ilustra o protocolo: Figura 58 - Questão 9(B). Protocolo Prof.(A) Fonte: Acervo pessoal Nove professores apresentaram argumentos bastante imprecisos para justificar suas avaliações. Os excertos que seguem exemplificam esses argumentos: Os alunos de 5ª/6ª séries têm dificuldades para observar e trabalhar com decimais. Os alunos de 7ª/8ª séries tentaram explicar. Eles estão mais perto da resposta exata. (prof. H). Há uma enorme dificuldade encontrada pelos alunos na questão de saber entre os decimais, quais são os maiores ou menores números entre eles. (prof.R) Eles têm que saber o conceito de nºs irracionais e também o conceito de unidade, dezena e milhar. Então os alunos de 7ª e 8ª estão certos. (Prof.S). Apenas o professor (I) (protocolo a seguir) atribuiu os erros cometidos pelos alunos à influência das concepções construídas sobre números naturais (ideia de sucessor, por exemplo), no estudo dos números racionais. Sua resposta foi a seguinte: 188 Figura 59 - Questão 9(B). Protocolo Prof. (I) Fonte: Acervo pessoal Também fazendo referência ao sucessor de um número racional, o professor (C) fez as seguintes considerações: Figura 60 - Questão 9(B). Protocolo Prof.(C) Fonte: Acervo pessoal Destacamos que o argumento apresentado pelo professor (C), neste último protocolo, guarda uma coerência com o raciocínio apresentado pelo mesmo professor em resposta ao item (A) desta questão, em que afirma que “...ao selecionar mais casas decimais de um número decimal infinito, ele é cada vez menor; exemplo: 0,2 é maior do que 0,22” (Prof.C). Provavelmente, para construir o gráfico exibido no último protocolo, o professor se baseou nessa ideia. 189 Assim, este professor baseia seus argumentos em concepções equivocadas, como afirmar que “0,09 é sucessor do número 0,08” (ver protocolo anterior) e indicar que 0,081 < 0,08, embora tenha avaliado as respostas dos alunos, como incorretas. Acrescentamos, finalmente, que as considerações feitas pelos professores nos levaram a crer que a ideia de densidade de Q, que sete professores do grupo demonstraram possuir (ainda que implicitamente) em suas respostas à questão 8, não estava suficientemente consolidada para levá-los a perceber que número racional não tem sucessor. Não apresentamos um quadro-síntese para esta questão, devido à pluralidade das respostas apresentadas pelos professores. Contudo, a análise exposta nos parágrafos anteriores permite concluir que os professores não associaram os erros identificados no enunciado à falta de conhecimentos sobre a densidade do conjunto dos racionais. 4.4.10. Análise de afirmações sobre números racionais, realizada pelo grupo de professores A atividade a seguir foi proposta com a finalidade de examinar como os professores analisariam frases contendo justificativas sobre a racionalidade ou irracionalidade de um número. 10. Analise e comente cada uma das afirmações abaixo 86. 86 “53/83 é irracional porque não há padrão no decimal 0,63855421687. 53/83 é racional porque ele termina (a calculadora mostra 0,63855421687). 53/83 pode ser racional ou irracional – eu não posso ver se os dígitos irão se repetir porque muito poucos dígitos são mostrados. Eles podem se repetir ou não. Não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente. Os dígitos poderiam terminar em um milhão de casas decimais ou eles poderiam começar a repetir depois da milionésima casa. É possível que um número seja racional e irracional ao mesmo tempo. Por exemplo, há frações que têm casas decimais infinitas e não periódicas, mesmo que elas sejam representadas por a/b”. As afirmações constantes desta atividade foram emprestadas dos resultados do estudo desenvolvido por Sirotic (2004, p.104, 105). 190 Todas as afirmações são falsas e sua análise requer conhecimentos sobre as definições de números racionais e irracionais e, consequentemente, sobre suas representações. Os argumentos dos professores, para justificar sua concordância (ou não) com as afirmações, poderiam fornecer elementos para a identificação de habilidades relativas aos conhecimentos classificados por Ball et al (2008) como conhecimentos do conteúdo especializado, caso fossem explicitadas, por exemplo, as prováveis causas desses erros ou uma análise do raciocínio matemático que teria levado alguém a responder dessa maneira. Se fossem indicadas intervenções possíveis para sanar as dificuldades reveladas nas afirmações, teríamos também elementos para avaliar conhecimentos pedagógicos do conteúdo, segundo Shulman (1986) e Ball et al (2008). As respostas a esta questão reiteram dúvidas que foram reveladas em respostas às questões anteriores, sobre as definições de números racionais e irracionais e sobre suas representações. Como exemplo, 9 dos 23 professores concordaram com a ideia de que “não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente...” (4ª afirmação, no enunciado) e um deles efetuou a divisão, antes de concluir que a afirmação é verdadeira, conforme é possível ver no protocolo a seguir. Figura 61 - Questão 10. Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal Percebem-se contradições inclusive em respostas de professores que apresentaram definições corretas para números racionais, anteriormente. Por exemplo, o professor (A), ao mesmo tempo em que afirma: “53/83 é uma fração, 191 sendo assim, pelo meu conceito de racional, não é um irracional”, classifica como verdadeira a 4ª afirmação (“Não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente...”). Mesmo aqueles que não concordaram com a 4ª afirmação (“não há forma de dizer se 53/83 é racional...”), não apresentaram argumentos adequados. O professor (C), por exemplo, se expressou dizendo: “não sei se está correta inteiramente; fazer a divisão com um milhão de casas decimais, só com a ajuda do computador potente”. Sete professores avaliaram como correta a 3ª afirmação do enunciado – “53/83 pode ser racional ou irracional. Eu não posso ver se os dígitos irão se repetir...” Quanto à 2ª afirmação (“53/83 é racional porque ele termina (a calculadora mostra 0,63855421687”)), inclusive os professores que a avaliaram como incorreta, apresentaram argumentos inconsistentes, como: “racional como um número que é possível de representar na forma a/b com finitas casas decimais” (prof.I). Esse argumento indica que o resultado exibido no visor da calculadora não é reconhecido como uma aproximação e além disso, de acordo com essa definição, o número 53/83 não seria racional, uma vez que sua expansão decimal é dízima periódica. O professor (C) também refutou a 2ª afirmação, dizendo que: Esta afirmação é incorreta, pois o número irracional pode ter mais casas decimais [do] que a calculadora pode registrar, o problema da calculadora ter somente 12 dígitos para exibir, não pode-se concluir que o número decimal termina ali mesmo. Ou seja, por parte deste professor, não há certeza de que a expansão decimal de 53/83 é infinita e periódica e também não há reconhecimento de que a representação decimal de um número irracional é infinita, pois o professor diz que “o número irracional pode ter mais casas decimais [do] que a calculadora pode registrar...” (prof.C, grifo nosso). Destacamos também que cinco professores classificaram 53/83 como número irracional, avaliando como verdadeira a 1ª afirmação e todos aqueles que a consideraram falsa apresentaram argumentos incorretos, como: “não podemos afirmar, pois em dado momento, pode ser racional” (prof.D) e “para ser irracional não pode ser finito” (prof. P) – significando o pensamento explicitado nesta última 192 resposta, que não foi considerada a aproximação no resultado exposto no visor da calculadora. Finalmente, apenas um professor apresentou um comentário que poderia ser interpretado como demonstração de reconhecimento do número 53/83 como racional. Sua resposta está no protocolo a seguir: Figura 62 - Questão 10. Protocolo Prof. (Q) Fonte: Acervo pessoal Os argumentos deste professor são fundamentados não apenas em definições e representações de números racionais e irracionais, mas também em conhecimentos relativos ao Teorema Fundamental da Aritmética. De qualquer forma, sua justificativa também precisaria ser discutida, posto que não considera a possibilidade de o período conter menos de 83 algarismos. Além disso, este mesmo professor avaliou como verdadeira a afirmação “53/83 é irracional porque não há padrão no decimal 0,63855421687” e, da mesma forma, considerou verdadeira a afirmação “53/83 pode ser racional ou irracional – eu não posso ver se os dígitos irão se repetir...”. Cinco professores deixaram todos os itens em branco. Conforme foi dito anteriormente, esta questão foi elaborada a partir de respostas apresentadas por futuros professores de Matemática do Ensino 193 Secundário, em estudo sobre o mesmo tema desenvolvido por Sirotic (2004). Percebe-se, assim, nas respostas de nosso grupo de pesquisa, uma confirmação desses resultados, no que se refere à fragilidade nas concepções construídas a respeito dos conjuntos numéricos. Aqui também não é apresentado um quadro contendo a síntese, em virtude da diversidade de respostas apresentadas pelos professores. No entanto, conforme se observa nos parágrafos anteriores, ninguém argumentou corretamente, para justificar suas respostas. 4.4.11. Sobre os conhecimentos dos professores a respeito da localização de números sobre a reta numérica Para investigar as concepções dos professores, relativas à localização de pontos irracionais sobre a reta numérica, como parte dos conhecimentos necessários para o ensino desses números, foi proposta a atividade que segue: 11. Para a questão: “É possível encontrar a localização exata de reta numérica?” foram apresentadas as seguintes respostas: (I) (II) (III) (IV) (V) (VI) sobre a Deve ser arredondado antes de ser localizado sobre a reta. É impossível, porque sua representação decimal é 3,605551275. É impossível, porque sua expansão decimal possui infinitos dígitos. É impossível, porque nenhum número irracional tem localização exata sobre a reta. É possível apenas indicar a localização aproximada. É possível apenas indicar um intervalo em que esse número está localizado sobre a reta. Quais respostas você classificaria como corretas? Por quê? Para a elaboração deste item, nos inspiramos em tarefa proposta a 46 futuros professores do Ensino Secundário, participantes do estudo desenvolvido por Sirotic (2004), assim enunciada: “Mostre como você poderia encontrar a exata localização de 87 sobre a reta numérica”87. The task: “Show how you could find the exact location of em Sirotic & Zazkis (2005). on the number line.” - questão discutida 194 Esta questão complementa nossa investigação inicial, a respeito dos conhecimentos dos professores, no que se refere à abordagem geométrica do conceito de número irracional, tratada na questão (5). Assim, um professor que houvesse mencionado, como resposta à questão (5), uma abordagem geométrica, por exemplo, pela construção de triângulos retângulos, para obter segmentos de medida irracional, seria – em nossa opinião –, capaz de analisar proposições sobre a localização de números irracionais na reta numérica – solicitação feita nesta questão. Tendo examinado as respostas dos professores (E), (U) e (V) que, na questão (5), sugeriram abordagens geométricas a partir do cálculo da medida da hipotenusa de triângulos retângulos, pareceu-nos que essa estratégia não estava associada à localização de números irracionais na reta numérica. Isso pode ser notado, se compararmos as respostas do professor (E), às questões (5) e (11). Na questão (5), este professor sugere: “o cálculo da hipotenusa de determinado triângulo retângulo, conforme as medidas dos catetos chega-se a um número irracional” e à questão (11), tendo classificado III, V e VI como verdadeiras, acrescenta: “porque consideramos apenas alguns algarismos da parte decimal e não temos elementos suficientes para sua localização exata, a colocamos no local aproximado.” (grifo nosso). Esse argumento mostra que o professor não associou a estratégia indicada na questão (5), à localização de números irracionais sobre a reta numérica. O professor U, em sua resposta à questão (5), como exemplo de abordagem geométrica do conceito de número irracional, apresentou o seguinte esquema: Figura 63 - Questão 5. Protocolo Prof. (U) Fonte: Acervo pessoal 195 No entanto, essa resposta parece indicar apenas que o professor sabe que a diagonal de um quadrado qualquer de lado “l” é igual a (embora devesse ter l ). Não indica, por exemplo, que o professor conhece os procedimentos escrito para a construção da raiz quadrada de qualquer número natural. Em resposta à questão 11, esse mesmo professor avaliou como verdadeiras as afirmações (V) e (VI), indicando que considera possível apenas a localização aproximada de e que essa aproximação só pode ser indicada por meio de um intervalo. Semelhantemente, o professor (V) respondeu à questão (5), dizendo que a abordagem geométrica do conceito de número irracional poderia “mostrar o valor da diagonal do quadrado ( )” e indicou como corretas as alternativas (V) e (VI) da questão (11), acrescentando: “porque sua expansão decimal possui infinitos dígitos”. Quanto ao restante do grupo, um deixou em branco e os demais fizeram indicações com base na representação decimal de números irracionais, apresentando argumentos como “localização exata é impossível por ser um decimal infinito e não periódico” (prof. A, que indicou II, III, IV, V e VI como verdadeiras) ou “se arredondar, dá pra representar” (prof. F, que indicou I e V como verdadeiras). Somente o professor (Q) que, em resposta à questão (5) sugere: “com certeza, pode ser introduzida com a construção da diagonal de um quadrado de lado um e depois dar sequência a diagonal dos quadrados que têm diagonal de números irracionais”, classificou como verdadeira apenas a afirmação (V): “É possível apenas indicar a localização aproximada”, em uma avaliação que é correta, sob o ponto de vista prático. No entanto, sendo questão proposta a professores, seria razoável esperar também que, dentre eles, alguém argumentasse dizendo, por exemplo, que: matematicamente, sim... é possível determinar a posição exata de sobre a reta. Ou seja, deveria fazer parte do conhecimento construído pelo professor a ideia de que, embora por razões práticas não se possa obter a posição exata de um número sobre a reta, isso é possível sob o ponto de vista da Matemática. Acrescentamos que, conquanto os resultados que acabamos de comentar corroborem aqueles já discutidos em diversas pesquisas que vêm sendo desenvolvidas a respeito do ensino e da aprendizagem dos números irracionais, 196 julgamos importante fazer constar essa análise do corpo de nosso estudo, pois, conforme foi dito, as etapas seguintes seriam planejadas e organizadas segundo os parâmetros dados por esses resultados. Analisando tais resultados na perspectiva de Tall & Vinner (1981), concluímos que a imagem conceitual relativa aos números racionais e irracionais, que havia sido construída pela maioria dos professores participantes de nosso estudo, antes da aplicação do questionário, era prevalentemente constituída por noções que pertencem ao campo numérico, contendo, em alguns casos, concepções incorretas – por exemplo, relativas às representações e à classificação desses números, conforme considerações feitas ao longo deste texto. No que se refere ao ponto de vista geométrico do conceito de número irracional, por exemplo, as noções relativas à incomensurabilidade de grandezas e a ideia de número irracional como medida de grandeza incomensurável com a unidade não estavam (por ocasião da aplicação deste questionário), entre os elementos que compunham a imagem conceitual construída pelo grupo de professores, a respeito do conjunto dos números irracionais. Assim, embora não houvesse intenção de estabelecer uma dicotomia entre o conhecimento do conteúdo específico – conjunto dos números irracionais –, e o conhecimento pedagógico desse conteúdo, interpretamos que seria necessário dispensar atenção especial, em primeiro lugar, à construção de noções fundamentais relacionadas a esse conteúdo para, posteriormente, propor ao grupo qualquer reflexão a respeito da didática para o seu ensino. Ou seja, não teria sentido oferecer alternativas e possibilidades diferenciadas de abordagens do conjunto dos números irracionais, a fim de que os professores selecionassem a abordagem melhor, uma vez que não havia domínio do conteúdo específico. Seria antes necessária uma intervenção que proporcionasse a esse grupo de professores uma oportunidade de construir ou reformular parte de suas concepções a respeito dos números racionais e irracionais. Assim sendo, decidimos incluir, em nossos procedimentos metodológicos, a aplicação de uma sequência de atividades que foi, inicialmente, delineada em termos gerais, sob a intenção de que a realização das atividades propostas em cada encontro preparasse o cenário para as reflexões e discussões que seriam feitas no 197 encontro seguinte. Nesse processo, as dúvidas, as descobertas, as discussões que poderiam emergir das atividades discutidas em cada encontro deveriam contribuir para o planejamento, a elaboração e as previsões necessárias à realização das atividades que seriam propostas a seguir. 198 CAPÍTULO 5 UM OLHAR SOBRE OS DADOS DE NOSSA INVESTIGAÇÃO INTERVENÇÃO FASE 2 ANÁLISE DE ORIENTAÇÕES CURRICULARES FASE 3 “Teaching is, essentially, a learned profession” Shulman88 Tendo em conta os resultados das pesquisas que nos motivaram a desenvolver esta investigação e considerando os conhecimentos demonstrados pelos professores, conforme análise exposta no capítulo anterior, apresentamos a seguir, esclarecimentos relativos à segunda fase de nosso estudo – de caráter interventivo – destinada à formação continuada do grupo de professores. Nessa etapa, foi proposta uma sequência de atividades aos professores participantes, com o propósito de promover discussões e reflexões a respeito do ensino e da aprendizagem dos números irracionais na Educação Básica. Além disso, são apresentadas também neste capítulo, considerações sobre a terceira fase da coleta de dados, dedicada ao exame – realizado pelos professores – de orientações curriculares para o ensino dos números irracionais, a alunos do 9º ano do Ensino Fundamental. Explicitamos nossas intenções e as razões de nossas escolhas quanto à metodologia e especificamos características que julgamos relevantes nas atividades propostas, apresentando os resultados que, finalmente, produziram a urdidura do tecido que, aos poucos, foi sendo construído, para permitir o estudo necessário aos propósitos desta pesquisa. Fazemos, ao longo do texto, referência à fundamentação teórica que deverá sustentar nossos argumentos, emprestando-nos um novo olhar para o exame dos resultados observados. 88 Ensinar é, essencialmente, uma profissão aprendida. (Shulman,1987, p.9, a tradução é nossa). 199 Nesse sentido, baseamo-nos, para a análise dos resultados destas duas fases, na noção de imagem conceitual estabelecida por Tall e Vinner (1981); nos aspectos intuitivo, algorítmico e formal do conhecimento, discutidos por Fischbein (1994) e na categorização dos conhecimentos necessários ao ensino, defendida por Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008). Serviram-nos, igualmente, como apoio, as ideias defendidas por Zeichner (1993), sobre a importância de oferecer aos professores, uma formação que favoreça o cultivo da atitude reflexiva individual e coletiva em relação à prática de ensino. 5.1. Sobre os procedimentos metodológicos Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, além da análise documental e da aplicação do questionário, cujos resultados se encontram nos capítulos 2 e 4, respectivamente, foram adotados princípios da metodologia Design Experiments, segundo a perspectiva de Cobb et al (2003), que consistiram na concepção e realização de uma abordagem de noções relativas aos números irracionais, com o propósito de investigar se um trabalho que explore a percepção de que os pontos de coordenadas racionais não esgotam todos os pontos da reta pode favorecer a ampliação e/ou reconstrução dos conhecimentos de professores da Educação Básica sobre esse assunto. Assim, neste capítulo, fazemos considerações sobre os vários elementos que interagiram ao longo desta etapa de nosso estudo, quais sejam, todas as atividades propostas, as distintas representações utilizadas por nós e pelos sujeitos desta pesquisa, os registros que permitiram a interpretação e análise dos resultados, os argumentos formulados pelos professores, as regras de organização do grupo para o desenvolvimento das tarefas, os materiais utilizados e as formas de mediação que buscamos promover entre os sujeitos e o nosso objeto de estudo – todos esses, componentes de um organismo denominado por Cobb et al (2003) de ecologia da aprendizagem. A escolha dessa metodologia decorreu de nosso interesse por uma investigação cuja realização ocorresse no próprio contexto de construção e/ou desenvolvimento do conhecimento e, nesse sentido, fomos favorecidos pelo duplo propósito do Design Experiments, que é uma metodologia de ensino e de pesquisa. 200 Trata-se, segundo Cobb et al (2003), de metodologia de pesquisa formativa, caracterizada por um refinamento progressivo do projeto elaborado inicialmente. Ou seja, a avaliação contínua de resultados parciais determina as reformulações necessárias ao projeto, no decorrer do experimento, até que sejam trabalhados todos os pontos que, eventualmente, se constituam em entraves ou em concepções equivocadas do conteúdo que está sendo explorado. Elabora-se uma versão inicial do projeto, não definida completamente, que é revista e aprimorada, ao longo do experimento, em função dos resultados que vão sendo observados. Esse processo cíclico de concepção, análise, revisão e reinvenção da sequência, ao longo do experimento, resultou na elaboração de uma pequena teoria – pequena, porque restrita ao conteúdo específico dos números irracionais e seu ensino – que explicitamos e justificamos ao longo deste capítulo e nas considerações finais e que, a nosso ver, pode produzir a compreensão de ideias fundamentais relativas ao ensino desse conteúdo, sendo passível de nova aplicação a outros sujeitos. Finalmente, outra razão que julgamos importante para explicar nossa opção por essa metodologia diz respeito à fundamentação teórica que amparou a realização de nosso estudo, no que se refere à formação de professores. Conforme referido anteriormente, as categorias de conhecimentos necessários ao ensino, propostas por Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008) serviram-nos como baliza para a concepção do projeto inicial e para as modificações que se mostraram necessárias no decorrer de nossa investigação. Além disso, serviram como parâmetros de avaliação dos resultados parciais e finais de nosso experimento. Como já foi observado, os dados obtidos por meio do questionário constituíram ponto de partida para a elaboração e aplicação de uma sequência de atividades, que teve a finalidade de nortear as reflexões do grupo, no decorrer do experimento. Duas questões permearam as nossas discussões. A primeira delas refere-se aos conhecimentos que um aluno do Ensino Fundamental precisa, de fato, construir, sobre números irracionais, para ser capaz de se apropriar de conhecimentos que serão desenvolvidos no Ensino Médio e, eventualmente na universidade. Quanto à segunda questão, diz respeito aos conhecimentos necessários a um professor, para 201 auxiliar seus alunos da Educação Básica a compreender o conceito de número irracional. Assim, as ações que envolveram o grupo de professores, durante nosso experimento, tiveram os seguintes objetivos: Refletir sobre noções que consideramos fundamentais para a compreensão do conceito de número irracional. Procurar identificar e compreender as dificuldades que um aluno do Ensino Fundamental enfrenta, ao iniciar o estudo desse conteúdo. Discutir sobre possíveis estratégias que um professor poderia utilizar para auxiliar os alunos a superar essas dificuldades. A intervenção (fase 2) ocorreu ao longo de seis encontros, no período de 28/09/2010 a 07/12/2010 e a análise e discussão sobre as orientações curriculares (fase 3) foram realizadas pelo grupo em três encontros, no período de 17/03/2011 a 28/04/201189. O tempo de duração de cada encontro foi de aproximadamente quatro horas. Participaram de cada um desses encontros o grupo de professores sujeitos de nosso estudo e, pelo menos, dois pesquisadores da UNIBAN, tendo estes últimos o papel de acompanhar os trabalhos realizados em cada encontro, por meio da observação do grupo e/ou do registro de dados considerados relevantes. Dessa forma, o conjunto de dados em que nos apoiamos para a análise final inclui as produções dos professores participantes, as filmagens dos encontros e os apontamentos realizados a partir das observações feitas por nós e pelos pesquisadores que estiveram presentes durante os encontros. No que se refere à organização do grupo de professores, em geral, as atividades propostas durante a fase de intervenção foram desenvolvidas em grupos de 3 ou 4 pessoas. Nesse contexto, as discussões entre os participantes de cada grupo permitiram, igualmente, a identificação de dificuldades experimentadas pelos próprios professores e a oportunidade de buscar, com os professores dos outros grupos, soluções para essas dificuldades. 89 Ver cronograma no Anexo 5. 202 Cabe destacar que, embora as discussões tenham sido realizadas no interior de cada grupo, foi solicitado que cada professor elaborasse seu relatório. Essa estratégia possibilitou que, mesmo após o debate de ideias entre os componentes dos grupos, cada professor tivesse a liberdade de refletir e expressar suas próprias impressões, favorecendo a nós, como pesquisadores, a análise posterior de detalhes individuais que poderiam passar despercebidos, caso todos os relatos fossem elaborados em grupos. Além disso, favoreceu a percepção de pontos que precisariam ser colocados em pauta, para a reflexão do grupo inteiro. Esclarecemos, todavia, que esses agrupamentos não eram fixos. Ou seja, nem sempre os mesmos professores constituíram um grupo em todos os encontros, o que, de certa forma, contribuiu para fortalecer a unidade do conjunto de professores. Assim, salvo casos em que a organização do grupo tenha ocorrido de forma diferente, não faremos menção a esse elemento da ecologia da aprendizagem. Conforme observam Collins et al (2004), as pesquisas desenvolvidas segundo a metodologia Design Experiments ocorrem em ambientes reais de aprendizagem, como salas de aula ou grupos de professores, com a finalidade de melhorar as práticas educacionais. Diferem, portanto, de outros tipos de pesquisas cujos dados são coletados, por exemplo, pela aplicação de questionário a um grupo de sujeitos em local separado, sem qualquer interferência externa. Em virtude disso, há um grande número de variáveis em jogo, que, dificilmente, seriam controladas totalmente. Dessa forma, a análise dos resultados exposta a seguir decorre essencialmente de observações qualitativas que levaram em conta a forma como interagiram ou funcionaram os elementos da ecologia de aprendizagem de nosso experimento, à luz das teorias que fundamentaram nosso estudo. Consideramos importante explicitar que a opção por apresentar parte do relato, em forma de quadros, decorre de havermos suposto que essa configuração poderia permitir uma percepção mais clara das ações que se encadearam, durante a fase de intervenção. Procuramos explicitar, nesses quadros, a forma como foram conduzidos os questionamentos para provocar a reflexão e a discussão do grupo sobre pontos que deveriam ser aprofundados. 203 5.2. Intervenção (Fase 2) Conforme foi dito, a fase 2 consistiu na proposta de uma sequência de atividades90, cuja elaboração inicial tomou em conta, não apenas as respostas apresentadas pelo grupo de professores ao nosso primeiro instrumento de coleta de dados, mas também os resultados de pesquisas que tratam de questões relativas aos conjuntos numéricos, tendo em vista a retomada e exploração de ideias que consideramos relevantes no processo de abordagem e desenvolvimento do conceito de número irracional na Educação Básica. São elas: As definições, representações e significados de números racionais e irracionais. A densidade do conjunto dos números racionais na reta numérica. A construção de segmentos de medida irracional, com o auxílio de régua e compasso. As definições de segmentos comensuráveis e incomensuráveis. O desenvolvimento de provas formais da irracionalidade de um número e da incomensurabilidade de segmentos de reta. A apresentação dos resultados da intervenção (fase 2) é feita segundo as cinco categorias especificadas a seguir, que, no entanto, se interseccionam ao longo do texto, quer pela estreita relação entre os temas, quer por nossa interpretação, que estabelece uma passagem entre uma categoria e outra. É certo que não existem as fronteiras divisórias capazes de estancar um tema – suas raízes estão afundadas em outros temas. Além disso, não era essa, a nossa intenção. Trata-se da organização que escolhemos para dar conhecimento ao leitor, das conclusões a que chegamos. Assim sendo, a apresentação da análise de dados de maneira categorizada não deve esconder o fato de que um mesmo assunto tenha sido abordado e retomado durante a discussão de temas que pertencem a categorias distintas e tenha sido analisado sob óticas também distintas, tendo em conta o interesse de nossa pesquisa. Nesse sentido, o que será exposto a seguir deverá ser interpretado como resultado de constantes retomadas de ideias por parte dos professores e também como resultado da reorganização de concepções, ao longo do experimento. 90 A primeira versão da sequência de atividades está disponível no Anexo 2. 204 As categorias em que nossa análise foi disposta são as seguintes: definições e representações; densidade de Q; abordagem geométrica dos números irracionais; o tratamento formal no estudo dos números irracionais; conhecimentos necessários sobre números irracionais. Convém ressaltar que nas considerações a seguir, são examinados aspectos referentes aos conhecimentos específicos e pedagógicos de cada uma dessas categorias. 5.2.1. Definições e representações A fim de discutir questões relativas às definições e representações de números racionais e irracionais e, consequentemente, relativas à identificação e classificação desses números, foram propostas as seguintes atividades: ATIVIDADE. Retomada do item 10 do questionário Analise e comente cada uma das afirmações abaixo. 53/83 é irracional porque não há padrão no decimal 0,63855421687. 53/83 é racional porque ele termina (a calculadora mostra 0,63855421687). 53/83 pode ser racional ou irracional – eu não posso ver se os dígitos irão se repetir porque muito poucos dígitos são mostrados. Eles podem se repetir ou não. Não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente. Os dígitos poderiam terminar em um milhão de casas decimais ou eles poderiam começar a repetir depois da milionésima casa. É possível que um número seja racional e irracional ao mesmo tempo. Por exemplo, há frações que têm casas decimais infinitas e não periódicas, mesmo que elas sejam representadas por a/b. ATIVIDADE 1 Usando uma calculadora, se você dividir 1 por 253, o visor mostrará o valor 0,00395256917. Esse número é racional ou irracional? É possível localizá-lo sobre a reta numérica? Justifique sua resposta. 205 ATIVIDADE 2 (A). Explique como você faria para localizar os números abaixo sobre a reta numérica: ; ; - 0,6; 0,123456789; ; 0,77777...; 0,1494949... 0 r (B). Suponha que se mantenha a regularidade observada na parte decimal do número 1,141141114111141... Você classificaria esse número como racional ou irracional? Justifique. A proposta dessas atividades antes da intervenção teve como propósito oferecer a oportunidade de iniciar uma discussão nos pequenos grupos. Em princípio, foram observadas em suas argumentações e registros, as mesmas convicções e concepções que haviam se revelado na fase diagnóstica. Como exemplo, em resposta à Atividade 1, nenhum professor classificou o número 0,00395256917 como racional, levando em conta apenas o fato de que esse número é quociente entre 1 e 253. Ao elaborar a resposta contida no protocolo a seguir, por exemplo, embora o professor (A) tenha se apoiado na definição de número racional como número que pode ser representado como razão entre inteiros para justificar sua classificação, parece ter buscado uma garantia no algoritmo da divisão: 206 Figura 64 - Protocolo: Atividade 1, prof.(A) Fonte: Acervo pessoal Por outro lado, a busca de uma confirmação por meio da divisão, presente também nas respostas de outros professores pode caracterizar a ideia de número racional construída essencialmente, com base na representação decimal. Analisando sob o olhar de Fischbein (1994) essa forma de justificar a classificação de um número como racional, que se apoia no desenvolvimento da divisão, deixa visível a prevalência do caráter algorítmico sobre o caráter formal, no conhecimento de números racionais. O componente formal, aqui caracterizado pela definição de número racional, dispensaria a realização da divisão. Os resultados observados nos levaram a concluir que seria necessário iniciar nosso estudo, retomando a definição e os distintos significados dos números racionais. O quadro a seguir explicita os encaminhamentos para a discussão realizada com a finalidade de construir uma definição de número racional a partir das definições adotadas pelos professores em suas aulas. 207 Ações do Pesquisador Questões propostas: “Quando eu divido 1 por 253, na verdade o que é que eu estou calculando? O que é que eu tenho aqui? Não é uma divisão? Esse resultado não é o quociente entre 1 e 253?” “Vamos ver o que é que diz a definição de número racional. Me ajuda a escrever uma definição de número racional”. O pesquisador escreve no quadro: “Número racional é todo número na forma , com b ”. Questões propostas: a) “Que significados diferentes um número racional pode ter? b)“Por exemplo, a fração 3/8 pode significar o quê, exatamente?” Falas/registros/ações dos professores participantes de nossa pesquisa Finalidade: “Construir” com o grupo de professores a definição de números racionais, identificando componentes dessa definição, cuja ausência pode gerar concepções incorretas desse conjunto de números. Prof.: “Número racional é todo número na forma a sobre b, com b diferente de zero”. Finalidade: Rever os distintos significados dos números racionais. Silêncio. Os professores se referem à situação em que alguma coisa é dividida em oito partes iguais e são tomadas três dessas partes. O pesquisador retoma significados distintos dos números racionais: Parte/todo; Quociente; Razão; Operador. Interpretação: Pareceu-nos que alguns professores não haviam associado o significado de quociente atribuído aos números racionais, à representação fracionária. Questões propostas e conclusão: “E quando eu divido 1 por 253, o que é que eu tenho? Não é um quociente? Um dos significados do número racional não é o de quociente? Então, nesse caso, eu posso escrever 1:253 = Finalidade das questões propostas/interpretações/ observações do pesquisador Finalidade: Mostrar que é suficiente que eu possa escrever um número na forma a/b com a e b inteiros e b não nulo, para que esse número seja classificado como racional. que é um número racional”. Questões: “ é um número racional?” “Mas está na forma a/b... Não é racional?” ”Mas, então, o que é que está faltando aqui?” (aponta para a definição “ditada” pelos professores) O pesquisador retoma a definição de número racional, Prof.: “Não!” Prof.: “É irracional.” Prof. “Mas é irracional...” Prof. “Têm de ser números inteiros...” Finalidade: Mostrar a necessidade de especificar a que conjunto devem pertencer os termos da razão utilizada para representar um número racional. 208 “ditada” pelos professores, para dizer da necessidade de especificar a que conjuntos devem pertencer os números a e b, quando definimos um número racional como número que pode ser representado na forma . Questões: “ é número racional?” é número racional? é irracional?” é número racional?” Aproximadamente 50% dos professores afirmam que são números racionais. Os demais discutem em voz baixa, sem explicitar para o grupo, as suas opiniões. Finalidade: Mostrar que é possível obter um número racional a partir da divisão entre dois irracionais. Observações: Constatou-se uma compreensão e uma superação das dificuldades reveladas no diagnóstico. Os professores perceberam que a divisão de dois números inteiros, sendo o segundo diferente de zero, é necessariamente, um número racional. Quadro 13 - Retomada da definição de número racional. Intervenção (Fase 2). Fonte: Acervo pessoal Para complementar a discussão sobre questões relacionadas às representações (fracionária e decimal) de números racionais e enfatizar a importância de justificar regras que muitas vezes são apenas memorizadas, foram retomadas as afirmações contidas no item 10 do instrumento diagnóstico. O quadro que segue mostra parte das questões e dos diálogos que ocorreram durante a discussão dessas atividades. Ações do Pesquisador Falas/registros/ações dos professores participantes de nossa pesquisa Questões propostas: a).”Quando uma pessoa diz que a divisão termina, o que ela quer dizer? É verdade que ela termina? Será que eu preciso continuar dividindo para saber se é decimal finito? Até quando eu preciso dividir? Eu preciso dividir até obter resto zero?” b).”Que números eu preciso ter no denominador de uma fração, para ter certeza de que a expansão decimal é finita, sem efetuar a divisão?” Proposta de divisões: O pesquisador propõe que os professores dividam alguns números dados por 2, por 5, por 10, por 20, por 3, por 6, por 15. Finalidade das questões propostas/interpretações/ observações do pesquisador Finalidade: Discutir sobre as características necessárias ao denominador de uma fração, para que sua expansão decimal seja finita, ou infinita e periódica. Os professores participantes efetuam as divisões com o auxílio de calculadoras. Há uma discussão entre os professores participantes, a respeito da quantidade de dígitos nas calculadoras que 209 estão utilizando. Os professores, com poucas exceções, dizem que quando o denominador é 2, 5, 10 ou 20, o resultado é decimal finito. Questões propostas: ”O que nós podemos concluir sobre a representação decimal de 53/83? Pode ser finita?” Questões propostas: a). “Qual é a maior quantidade possível de restos distintos, no processo da divisão 53:83?” b).”Por exemplo, quantos restos distintos você tem no processo da divisão 1:7? E na divisão 1:17? E na divisão 5:11? E em 8:3?” O pesquisador pede para os professores compararem a quantidade de restos distintos com a quantidade de algarismos que formam o período nos quocientes das divisões propostas. Questões propostas: a).”Qual é o maior número possível de restos distintos para a divisão 53:83? b). “Vocês acham que haveria alguma possibilidade de começar a aparecer um período depois da milionésima casa decimal?” Respostas dos professores: Argumentam que 83 é primo. Concluem que a expansão decimal é uma dízima periódica simples. Silêncio. Os professores efetuam as divisões, com o auxílio de calculadoras ou com lápis e papel. Apenas os professores que realizaram as divisões com lápis e papel perceberam que a quantidade de restos distintos em 1:17, é igual a 16. Exceto poucos professores, que não se manifestaram, o grupo concordou que não haveria essa possibilidade. Finalidade: Levar os professores a perceber que a). o divisor determina a quantidade máxima possível de restos distintos no processo de uma divisão; b). no caso de uma divisão não exata, a quantidade de restos distintos que ocorrem no processo da divisão, determina a quantidade de algarismos que formam o período da dízima. Finalidade: Favorecer a percepção de que bastaria analisar o denominador da fração 53/83 (item 10 do questionário) ou o divisor 253 (atividade 1), para concluir se a representação decimal é finita, ou infinita e periódica. Conclusão: As finalidades estabelecidas para essa discussão foram alcançadas. Observações: Todos os professores declararam que não abordavam esses aspectos em sala de aula e não se lembravam de haver estudado essas propriedades em sua formação anterior. Quadro 14 - A influência do divisor na determinação da representação decimal dos números racionais. Intervenção (Fase 2) Fonte: Acervo pessoal Também para destacar a importância do tratamento formal na identificação de números racionais e irracionais, consideramos oportuno analisar, com o grupo, a resposta do professor (T), para a seguinte questão: “Que estratégias você considera 210 que um professor deveria utilizar, para propiciar a alunos de 8ª série do Ensino Fundamental, a construção do significado de número irracional?”. 91 Como possível abordagem do conceito de número irracional, esse professor indicou: “inventar um número ‘estranho’ e tentar colocá-lo em forma de fração”. A nossa proposta para o grupo foi encontrar uma justificativa para a irracionalidade do número 1,14114111411114..., utilizando o Algoritmo da Divisão de Euclides. A justificativa que resultou dessa discussão foi a seguinte: Supondo que o número 1,141141114111141... possa ser representado como razão entre inteiros, temos: 1,141141114111141... = com a e b inteiros e b Nesse caso, 1,141141114111141... é o resultado da divisão de a por b. Representando essa divisão, temos: a b parte inteira, parte decimal (periódica) Como 1,141141114111141... é infinito, o resto dessa divisão não pode ser zero. Se 1,141141114111141... é racional (se pode ser representado por b com a, e o resto não é zero, então, o resultado dessa divisão deve ser uma dízima periódica e a parte decimal deve conter um algarismo ou um grupo de algarismos que se repete infinitamente. De acordo com o algoritmo da divisão de Euclides, o maior número possível de restos distintos de zero, no processo de divisão de a por b, é (b – 1), que coincide com a quantidade máxima de algarismos do período. Assim, embora haja uma regularidade na parte decimal desse número (porque os algarismos que formam essa parte são sempre 1 e 4), se nós considerarmos: 14, 114, 1114, 11114, etc. como períodos, devemos chegar a um ponto em que o período vai conter mais do que (b – 1) algarismos – o que indicaria que o resto da divisão é maior do que o divisor, contradizendo o algoritmo de Euclides. Logo, o 91 Item 2, proposto no instrumento diagnóstico aplicado na fase 1 de nosso experimento. 211 resultado da divisão de dois números inteiros não poderia ser um número do tipo 1,141141114111141... e, então, esse número não pode ser representado na forma com a e b inteiros e b não nulo. Assim, esse número é irracional. As reflexões sobre essa abordagem introduziram a discussão sobre a importância do tratamento formal, no estudo dos irracionais. Na perspectiva de Ball et al (2008), estes são conhecimentos do conteúdo especializado – envolvem um tipo de raciocínio matemático além daquele exigido, por exemplo, para a execução de tarefas do cotidiano. Isto é, são conhecimentos necessários ao ensino dos números racionais e irracionais, no que diz respeito à identificação e comparação de possibilidades distintas de solução para determinada situação ou à decisão sobre a aplicabilidade de um procedimento a qualquer situação. Da mesma forma, a escolha de estratégias para a representação gráfica de números racionais (Atividade 2, item A) exigiu dos professores a mobilização de conhecimentos, não apenas do campo dos Números (como formas diferentes de obtenção da fração geratriz de uma dízima periódica), mas também relativos à Geometria (em procedimentos que envolveram a construção de mediatrizes de segmentos ou o Teorema de Tales). O registro contido no protocolo a seguir exemplifica a busca por uma estratégia adequada para a localização de números racionais sobre a reta numérica. 212 Figura 65 - Atividade 2. Protocolo Prof. (C) Fonte: Acervo pessoal Em síntese, no que se refere à caracterização, representação e identificação de números racionais e irracionais, percebe-se nos argumentos utilizados pelo grupo, uma ênfase no aspecto algorítmico e/ou intuitivo. No entanto, foi possível observar que parte do grupo avançou no que se refere à escolha de estratégias diversificadas para abordar os problemas propostos e também no esforço pela busca de justificativas formais para os procedimentos que foram utilizados. 5.2.2. Densidade de Q Com o propósito de iniciar a discussão sobre a densidade do conjunto Q, foram propostas as seguintes atividades: 213 ATIVIDADE. Retomada do item 9 do questionário (A) As seguintes afirmações foram feitas por alunos de 4ª a 8ª série. a) Os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5. b) Os números que vêm depois de ½ são 2/2, 3/2, 4/2, 5/2, ... c) Os sucessores de 2/3; 0,5; 3,69 são, respectivamente: 3/3; 0,6 e 3,70. d) O sucessor do número 3,4444... é 3,44444... e) O sucessor do número 3,4444... é 3,5555... f) O sucessor do número 3,4444... é 3,5. Analise e comente cada uma dessas afirmações. (B) Em resposta a uma questão que solicitava a inserção de um número entre 0,08 e 0,081, foram observados os resultados: 0,09 (alunos de 5ª/6ª séries) 0,080 (alunos de 7ª/8ª séries) Analise e comente as respostas apresentadas por esses alunos. ATIVIDADE 3 a) Indique cinco números que estejam localizados entre 6,25631 e 6,25632, na reta numérica. b) Indique cinco números racionais que estejam entre os números racionais 6,256 e 6,2561, na reta numérica. c) Indique cinco números que estejam localizados entre 6,26 e 6,2562, na reta numérica. ATIVIDADE 4 a) Quantos números racionais existem entre dois números racionais quaisquer? b) Existem números racionais entre 0,999888... e 0,9999...? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. c) Existem números racionais entre 0,888999... e 0,9999...? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. d) Existem números racionais entre 0,9999 e 1? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. e) Existem números racionais entre 0,9999... e 1 ? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. f) Quantos números racionais seria possível localizar no intervalo ] 0, 1 [ ? E quantos números irracionais? g) De todos os números maiores do que 1, qual é o que está mais próximo de 1, na reta numérica? 214 Segundo os estudos desenvolvidos por Ball et al (2008, p.7), a habilidade de identificar erros em respostas de alunos não é suficiente para uma compreensão matemática dos problemas que um aluno pode enfrentar, na construção de um conhecimento. É necessário que o professor seja capaz de perceber também a fonte desses erros – habilidade que faz parte do conhecimento do conteúdo especializado. Assim, uma base essencial para o ensino da Matemática, na visão desses pesquisadores, consistiria na prática de alimentar um diálogo interior, em busca de respostas a questões como: Isso funciona sempre? É mais fácil para alguns números do que para outros? Como descrever o método que o estudante está usando e como justificar esse procedimento, matematicamente? Nesse sentido, nossa intenção ao propor a retomada do item 9 do questionário era que o grupo refletisse sobre a influência que a ideia de sucessor de um número inteiro (muitas vezes associada à adição de uma unidade a esse número, em vez de ser associada ao número seguinte maior, considerando-se o conjunto organizado em ordem crescente) pode exercer sobre o processo de construção do conceito de número racional. Essa reflexão serviria como ponto de partida para considerarmos a importância de explorar a noção de densidade do conjunto dos racionais e a consequente ausência de sucessor para um número racional. As observações formuladas pela maioria dos grupos a respeito do raciocínio que poderia ter gerado as afirmações contidas no enunciado dessa questão indicaram, em princípio, a presença de dúvidas quanto à existência (ou não) do sucessor de um número racional: Qual é o sucessor de 3,4444...? Não existe o sucessor ou não é possível determinar o sucessor de um número racional? Quanto à densidade do conjunto dos racionais percebemos nos grupos, ideias iniciais relacionadas à exploração de situações práticas que envolvem dinheiro (para mostrar que existem outros valores entre 0,5 e 0,6) ou que envolvem a divisão de um chocolate em partes, cada vez menores. No entanto, a compreensão da densidade de Q se manifestou de forma mais consistente pela indicação de números que poderiam ser inseridos entre os racionais dados nas atividades 3 e 4. 215 Parte dos encaminhamentos adotados para a discussão da Atividade 3, exposta no quadro (15) a seguir, evidencia que não há dúvidas a respeito da possibilidade de inserir infinitos números entre os números dados, revelando, no entanto, a necessidade de introduzir o componente formal, para a conclusão da atividade. Ações do Pesquisador Falas/registros/ações dos professores participantes de nossa pesquisa Item (A) Finalidade das questões propostas/interpretações/ observações do pesquisador Finalidade: O pesquisador escreve na lousa: 6,25631 e 6,25632 Os professores ditam números: “6,256314; 6,2563125; 6,25631 001; 6,25631000001; 6,2563125631, 6,25631111111111...”. Questões: a). Poderia ser 6,25631999999999? b) Poderia ser 6,25631999999999...? “Poderia”. “Poderia”. a). Verificar se o conceito de densidade do conjunto Q fazia parte da imagem conceitual dos professores participantes. b). Levar o grupo à conclusão de que qualquer número racional pode ser representado por meio de uma dízima periódica. Conclusão: Embora os professores já houvessem discutido sobre a obtenção da fração geratriz de dízimas periódicas, nenhum deles recorreu a essa estratégia para comparar os números indicados. Quadro 15 - A inserção de números entre dois racionais dados. Intervenção (Fase 2) Fonte: Acervo pessoal Ainda em relação ao quadro, todos concordaram quanto à possibilidade de inserir 6,256319999... entre 6,25631 e 6,25632 (item A) ou 6,256099999... entre 6,256 e 6,2561 (item B). Estas respostas sugerem a prevalência do aspecto intuitivo sobre o aspecto formal. A nosso ver, a igualdade 0,9999... = 1 não é intuitiva e, assim, dificilmente, uma pessoa afirmaria que 6,256099999... = 6,2561, a menos que já houvesse sido discutida a possibilidade de representar qualquer número racional na forma de uma dízima periódica, ou, a menos que se mostrasse que não é possível substituir um nove por um dígito maior do que nove. Apesar de havermos constatado avanços na compreensão dos professores, em relação à densidade de Q, percebemos que para alguns deles ainda restavam dúvidas relacionadas à inexistência de sucessor para um número racional. O quadro a seguir pode fundamentar essa nossa interpretação: 216 Pesquisador (lê o item g).” De todos os números maiores do que um, qual é o que está mais próximo de um, na reta?” Prof.(S): ”0,9999999999999...” Prof.(K): “Maior do que um é: um vírgula...” Prof. (U): “Um vírgula zero, zero, zero, zero, zero...” Pesquisador. “Espera um pouquinho, que eu quero escrever... Fala pra mim...” Prof.(U): “Um vírgula, infinitos zeros, e eu parei lá no um...” Pesquisador: (escrevendo na lousa): “1,0000000000000........1.” Pesquisador: “...Tem alguém que escreveu algum outro? Esse é o que está mais próximo do um?” Prof.(U): “Encostado...” Quadro 16 - Fragmento de diálogo sobre a Atividade 4(g). Intervenção (Fase 2) Fonte: Acervo pessoal Outras respostas apresentadas pelo grupo incluíram 1,01; 1,09 e . Essas respostas parecem manifestar que a ideia de densidade do conjunto dos racionais ainda não estava associada à inexistência de sucessor de um número racional. Contudo, no decorrer da discussão sobre a possibilidade de representar qualquer número racional na forma de uma dízima periódica, percebemos que, para uma parte deste grupo, ganhava contorno e se enriquecia a imagem conceitual referente à densidade do conjunto dos números racionais. Essa nossa interpretação é baseada em comentários como “...você sempre acha um menor, teoricamente...”(prof. C) “...não existe esse número. Número racional não tem sucessor...” (prof. Q). Cabe reiterar que a densidade de Q não estava presente na imagem conceitual de 16 dos 23 professores, por ocasião da fase diagnóstica. Houve um avanço na compreensão do grupo, a esse respeito que, embora ainda não fosse totalmente satisfatória quando discutimos estas questões, foi se aprimorando ao longo do experimento. 5.2.3. Abordagem geométrica dos números irracionais As atividades destacadas a seguir foram propostas com o objetivo de propiciar, ao grupo, a oportunidade de: analisar uma possibilidade de abordagem dos irracionais, a partir da necessidade de construção de um segmento de medida irracional; estabelecer a relação entre a construção de segmentos de medida irracional e a localização de pontos irracionais sobre a reta e perceber a relação entre números irracionais e grandezas incomensuráveis. 217 ATIVIDADE 5 (A) O lado de cada um dos quadrados que compõem o retângulo PQRS tem medida u. Construa um quadrado cuja área seja igual à área desse retângulo. Q P u S u (B) Encontre a localização exata dos números numérica. 0 R , e sobre a reta r (C) Utilizando esse mesmo procedimento, quantos números irracionais poderiam ser localizados sobre a reta numérica? (D) Quais são os conteúdos envolvidos nesta atividade, ou que conhecimentos são necessários para o desenvolvimento desta atividade? ATIVIDADE 7 Considere o quadrado construído na ATIVIDADE 5. (A) Que relação pode ser estabelecida entre o lado e a diagonal desse quadrado? (B) O lado e a diagonal desse quadrado são segmentos comensuráveis ou incomensuráveis? Por quê? (C) Como um professor poderia explicar aos seus alunos do Ensino Fundamental, o que são segmentos comensuráveis e o que são segmentos incomensuráveis? A escolha da Atividade 5, nesta etapa de nosso estudo, se justifica por nossa intenção de proporcionar ao grupo a oportunidade de refletir sobre o desafio que os alunos experimentam quando, após terem se apropriado da noção de densidade do conjunto dos racionais na reta numérica, percebem que há pontos na reta – infinitos pontos – que não correspondem a números racionais. Trata-se de “descoberta” que pode parecer contraditória para os alunos, pois, intuitivamente, se contrapõe aos conhecimentos construídos anteriormente. 218 Além disso, nossa intenção era que este estudo constituísse para o grupo de professores uma oportunidade de enriquecimento da imagem conceitual sobre números irracionais, pela vivência de situações formuladas em contextos distintos (no campo dos Números e no campo da Geometria). Pretendíamos também que essa atividade favorecesse a percepção da possibilidade de construir infinitos segmentos de medida irracional, utilizando apenas régua sem escala e compasso e, consequentemente, favorecesse a percepção de que é possível determinar, com uma “precisão prática” (segundo se expressam Tall & Schwarzenberger, 1978), a posição dos números irracionais correspondentes a essas medidas sobre a reta numérica. No texto que segue, destacamos algumas das estratégias utilizadas pelo grupo, para a resolução da atividade 5: Aproximação aritmética, que envolve tentativas de encontrar aproximações racionais para o número , revelando uma valorização do aspecto algorítmico, na busca de solução do problema proposto, conforme se vê na resposta expressa a seguir: 219 Figura 66 - Atividade 5. Protocolo prof. (M) Fonte: Acervo pessoal Aproximação geométrica, que consiste na realização de recortes do retângulo PQRS e na busca de uma possível composição do quadrado (como um quebra-cabeça), de tal forma que as áreas (do quadrado e do retângulo) sejam iguais. Trata-se de abordagem de caráter intuitivo, que envolve uma “medida a olho” – na expressão utilizada por Sirotic & Zazkis (2005) –, que logo foi abandonada, dando lugar à investigação de valores aproximados, cujo quadrado é igual a 6. Construção geométrica de uma espiral de triângulos retângulos isósceles – estratégia que resultou ineficaz, visto que não permite a obtenção da raiz esperada, conforme se observa no protocolo a seguir: 220 Figura 67 - Atividade 5. Protocolo Prof. (O) Fonte: Acervo pessoal Construção de triângulos retângulos sobrepostos, pela aplicação sucessiva do Teorema de Pitágoras, tendo todos os triângulos, um cateto de medida 1u e o outro cateto com a mesma medida da hipotenusa do triângulo construído na etapa anterior. Figura 68 - Atividade 5. Protocolo Prof. (T) Fonte: Acervo pessoal 221 Construção geométrica, com régua sem graduação e compasso, da média geométrica92 dos segmentos de medidas 2u e 3u, estratégia utilizada por um grupo apenas: Figura 69 - Atividade 5. Protocolo Prof. (V) Fonte: Acervo pessoal Tendo em conta as estratégias de abordagem expostas nos protocolos anteriores, percebe-se que a representação geométrica de números irracionais não estava completamente ausente da imagem conceitual constituída anteriormente por uma parte do grupo de professores, embora essas estratégias não tenham figurado em suas sugestões para a introdução do conceito de número irracional, no instrumento diagnóstico. Observamos, por outro lado, que os registros apresentados por alguns grupos indicam que haveria necessidade de aprofundar o estudo dos números irracionais, especialmente no que diz respeito à incomensurabilidade de grandezas. Percebemse inconsistências em suas respostas, revelando que não ficou suficientemente clara a relação entre números irracionais e segmentos incomensuráveis. Tomamos por 92 A construção da média geométrica das medidas de dois segmentos de reta é discutida no capítulo 3. 222 base os resultados apresentados à seguinte questão, proposta após a discussão das atividades constantes desta categoria: O segmento de reta PQ e o segmento de reta RS são comensuráveis se existe um segmento de reta u, tal que as medidas de PQ e RS, tomando u como unidade, são números inteiros positivos. Desse modo, são comensuráveis (A) (B) (C) (D) a diagonal de um quadrado de lado 4 com o seu lado. a altura de um triângulo equilátero de lado 1 com o seu lado. a mediana de um triângulo equilátero de lado 3 com o seu lado. um segmento cujo comprimento é igual ao de uma circunferência de raio 10 com o seu raio. (E) a diagonal de um retângulo de lados 2,5 e 1,2 com qualquer um de seus lados. O exame das respostas revelou que para a maioria dos participantes, haviam restado dúvidas sobre a incomensurabilidade de segmentos de reta. O professor (E), por exemplo, conforme protocolo a seguir, embora houvesse considerado o lado e a altura de um triângulo equilátero, tanto no item B, quanto no item C, obtendo h = e , respectivamente, classificou-os, em B, como comensuráveis e em C, como incomensuráveis: Figura 70 – Atividade sobre incomensurabilidade de segmentos de reta (após nossa intervenção) Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal Interpretamos esse resultado como uma decorrência do não reconhecimento dos valores indicados na calculadora, como aproximações de números irracionais. Ou seja, o uso da calculadora para a obtenção da representação decimal dos números, na resolução desta atividade, não favoreceu a identificação dos resultados 223 como números irracionais. Não favoreceu, igualmente, uma reflexão sobre a incomensurabilidade entre os segmentos envolvidos em cada item desta questão. Em resumo, esta sequência de atividades favoreceu aos professores, a ampliação de conhecimentos relativos à abordagem geométrica dos irracionais, pela percepção da possibilidade de construir infinitos segmentos de medida irracional e também pela percepção da possibilidade de localizar na reta a posição de números irracionais que indicam as medidas de segmentos construtíveis com régua e compasso. O nível de compreensão a esse respeito pôde ser aprofundado durante a discussão de outras atividades, desenvolvidas posteriormente, sobre a incomensurabilidade de grandezas. 5.2.4. O tratamento formal no estudo dos números irracionais A fim de introduzir em nosso estudo uma discussão sobre o desenvolvimento de provas formais relativas aos números irracionais, foram propostas as seguintes atividades: ATIVIDADE 6 Classifique as afirmações abaixo em verdadeiras (V) ou falsas (F). Se a afirmação for verdadeira, justifique sua resposta e se for falsa, apresente um contraexemplo. a) b) c) d) e) f) g) a soma de dois números racionais é sempre racional. a soma de dois números irracionais é sempre irracional. o produto de dois números irracionais é sempre irracional. o quociente de dois números irracionais é sempre irracional. a soma de um número racional com um irracional é sempre irracional. o produto de um número racional por um irracional é sempre irracional. o quociente entre um número irracional e um número racional é sempre um número irracional. ATIVIDADE 8 O número é irracional. Você pode provar que essa afirmação é verdadeira? Fischbein (1994, p. 232) sustenta que axiomas, definições e provas devem ser componentes ativos no processo de raciocínio dos alunos. Por outro lado, esses conhecimentos, na visão de Ball et al (2008, p.10), seriam classificados como conhecimentos do conteúdo especializado, necessário ao professor, ainda que não sejam prescritos para o trabalho com os alunos. Ou seja, 224 deveriam ser componentes ativos, sobretudo, no repertório de conhecimentos do professor. Assim, propondo a atividade 6, tínhamos a intenção de sublinhar a importância da incorporação, acima de tudo em nossos estudos, da prática de argumentar e elaborar justificativas. Embora o enunciado da questão 6 solicitasse uma justificativa, a classificação inicial das sentenças analisadas pelos professores se resumiu às palavras “verdadeira” ou “falsa”, indicando, a nosso ver, uma prevalência da atitude intuitiva no enfrentamento da questão. Também durante a discussão sobre as provas 93que justificavam essa classificação, embora o grupo demonstrasse interesse, observamos certo cuidado na exposição de suas opiniões. Quanto às provas da irracionalidade de (atividade 8) apresentadas pelos grupos antes de uma intervenção, revelaram uma tendência para o tratamento algorítmico, quer buscando aproximações racionais, quer realizando o cálculo da raiz quadrada (sem calculadora). Uma ilustração dessas respostas está nos protocolos a seguir: Figura 71 - Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (W) Fonte: Acervo pessoal 93 O capítulo 3 apresenta provas para algumas dessas afirmações. 225 Figura 72 - Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (U) Fonte: Acervo pessoal É preciso registrar, todavia, que a compreensão de parte dos professores a esse respeito se aprimorou durante as discussões sobre as demais atividades. Destacamos as respostas de dois professores (M) e (E), para exemplificar a modificação em suas argumentações. A prova apresentada por (M) traz um desenvolvimento circular que, provavelmente, foi percebido pelo professor, pois, em seguida, recorreu ao algoritmo da multiplicação, para “provar” o que não foi possível, formalmente: 226 Figura 73 - Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (M) Fonte: Acervo pessoal Este mesmo professor, para provar a irracionalidade de , após nossa intervenção e as discussões entre os participantes de seu grupo, apresenta argumentos que, embora precisassem ser discutidos, representam uma evolução na abordagem da questão: 227 Figura 74 - Prova da irracionalidade de (após nossa intervenção) Protocolo Prof. (M) Fonte: Acervo pessoal Comparando, da mesma forma, as argumentações desenvolvidas pelo professor (E), para provar a irracionalidade de e para provar a irracionalidade de (questão 8 – antes da intervenção) (atividade realizada após nossa intervenção), é possível avaliar como foram percebidas também por este professor, outras possibilidades de expressão de suas convicções. Antes da intervenção, seus argumentos são basicamente algorítmicos, conforme se verifica no extrato que segue: 228 Figura 75 - Atividade 8. Prova da irracionalidade de (antes da intervenção) Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal Embora a argumentação apresentada pelo professor (E), neste último protocolo, tenha sido desenvolvida por meio do algoritmo de extração da raiz quadrada, a observação que acrescenta logo a seguir período” (grifo nosso) “sei que não formará deixa transparecer o caráter intuitivo em sua resposta. Após a intervenção, no entanto, esse mesmo professor apresentou a sequência de argumentos registrada no extrato a seguir, indicando um acréscimo nas representações mentais que compõem seu repertório de conhecimentos, em relação ao número irracional. 229 Figura 76 - Prova da irracionalidade de (após nossa intervenção) Protocolo Prof. (E) Fonte: Acervo pessoal Esse avanço nas argumentações elaboradas por parte dos professores pôde ser percebido também quando foi discutida a prova da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer. A fim de elucidar essa nossa interpretação, esclarecemos que: A figura seguinte foi utilizada como auxiliar no processo de demonstração da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado; 230 A B F 45° G E 45° D C Figura 77 - Auxiliar na prova da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer94 Fonte: Acervo pessoal Conforme a discussão que se fez dessa prova (por redução ao absurdo), chega-se à conclusão que, assumindo que exista um segmento XY, do qual AB e BD (respectivamente, lado e diagonal do quadrado ABCD) são múltiplos inteiros, então, esse mesmo segmento também caberia um número inteiro de vezes no lado e na diagonal do quadrado DEFG e também caberia um número inteiro de vezes no lado e na diagonal de qualquer quadrado que se construa com as mesmas características de DEFG – o que consiste em um absurdo. O quadro a seguir contém fragmentos do diálogo entre pesquisador e professores, a esse respeito: Ações do pesquisador Falas dos participantes de nossa pesquisa Observações: [...] “...quando eu quero provar que um número é irracional, eu suponho que ele seja racional. “Quando eu quero provar que dois segmentos são incomensuráveis...” [...] 94 Finalidade das questões propostas/interpretações/ observações do pesquisador Finalidade: Estabelecer uma relação entre a prova da irracionalidade de números da forma sendo n natural e não quadrado perfeito) e a prova da incomensurabilidade de segmentos de reta. Prof.(U): “Eu suponho que eles são comensuráveis.” Prof.(W): “Você está supondo, aí, né?” Questão proposta: “O que é que eu quero dizer com isso?” Prof. (U). “Que existe um segmento que cabe...” Pesquisador: “...que existe um Prof. “Um número inteiro de Finalidade: Retomar, com o grupo, a definição de segmentos comensuráveis discutida durante o encontro anterior. Interpretação: Uma prova da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer é apresentada, de maneira pormenorizada, no capítulo 3. 231 segmento que cabe...” vezes...” Percebe-se um esforço do grupo, em contribuir para a elaboração da argumentação. Pesquisador: “que cabe um número inteiro de vezes, tanto em BD quanto em AB. Eu vou escrever assim: Então, existe um... vou chamar assim de XY, um segmento menorzinho, que é submúltiplo comum de BD e AB.” O pesquisador registra na lousa: “Supondo que BD e AB sejam comensuráveis, então, existe XY que é submúltiplo de BD e AB. Ou seja, BD = a.(XY) e AB = b.(XY), com a, b . [...] Prof.(S):“Já achou o submúltiplo?” Prof.(M): “é . a diagonal.” Prof.(R): “vai achar o submúltiplo?” Prof.(U): “não pode sobrar nenhum pedacinho...” Observações sobre o desenvolvimento da prova: “...eu iria continuar provando que o mesmo segmento XY é submúltiplo do lado e da diagonal desse quadradinho menor... eu posso continuar isto, infinitamente, e vou provar que esse mesmo segmento é submúltiplo até do lado e da diagonal de um quadrado insignificante, que tenha lado e diagonal menores do que esse segmento XY. Isso é um absurdo.” Prof. (C): “Quando chega a um quadrado menor que tudo... Menor do que o XY que você considerou...” Pesquisador: “O submúltiplo XY é maior do que o lado e a diagonal desse quadradinho...” Prof. (U): “O XY é maior do que o quadrado que você construiu na conclusão final, né?” Prof.(C): (explicando para os outros professores) “A medida do submúltiplo XY... é maior do que o lado e a diagonal do quadrado menor, que você construiu depois... entendeu? O submúltiplo XY que ela usou, é submúltiplo da diagonal, ali do quadrado menor DEFG que ela construiu... E alí... fala que XY também é um submúltiplo de FD... Quem é FD? É a diagonal do quadrado menor... Só que o submúltiplo XY... é que a gente não tem a medida... mas, é uma medida maior do que a diagonal e o lado do quadradinho que ela ia construir no final... Porque de onde eu parti? Do quadrado grande, então, o que que é isso? entendeu? Como é que eu posso construir Interpretação: Há um interesse do grupo em acompanhar o desenvolvimento da prova. Os professores procuram associar ideias discutidas anteriormente, à abordagem que se faz aqui, no campo geométrico. Interpretação: Os argumentos explicitados por estes professores revelam que houve compreensão da prova desenvolvida e, além disso, mostram o esforço no sentido de encontrar palavras mais compreensíveis para convencer os demais. 232 um submúltiplo de uma coisa maior, se eu estou indo pro infinito... ou menor? Você entendeu?” Quadro 17 - Discussão sobre a prova da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado qualquer. Intervenção (Fase 2) Fonte: Acervo pessoal Há, em nosso ponto de vista, um avanço – ainda que pareça tímido – nas argumentações do grupo neste momento da intervenção, se comparadas com respostas apresentadas durante a discussão de atividades realizadas anteriormente. 5.2.5. Conhecimentos necessários sobre números irracionais No que se refere à importância dos números irracionais no currículo de Matemática do Ensino Fundamental, foram propostas as sequências de questões expostas nos itens a seguir: Conhecimentos necessários ao professor, para ensinar o conceito de número irracional a alunos do Ensino Fundamental Com o propósito de promover a reflexão sobre a necessidade de domínio, por parte do professor, de um repertório abrangente de conhecimentos, que vá além dos conteúdos prescritos para o ensino dos números irracionais, na Educação Básica, propusemos as seguintes questões: QUESTÕES RELATIVAS AOS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO PROFESSOR 1. Que conhecimentos você considera necessários e/ou indispensáveis ao professor, para introduzir o conceito de número irracional na 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental, sob uma perspectiva que não seja voltada apenas para questões que envolvem operações com radicais, mas que favoreça ao aluno também uma percepção inicial da importância da argumentação formal no tratamento desse conteúdo? 2. Tendo em vista a complexidade que envolve o conceito de número irracional, não é possível restringir seu estudo à 8ª série. A seu ver, que conhecimentos o professor precisaria dominar para propiciar aos seus alunos um avanço na compreensão do conceito de número irracional ao longo do Ensino Médio? 3. Que conteúdos, que atividades, que práticas adotadas nos cursos de graduação você avalia como indispensáveis, ou que práticas deveriam 233 ser introduzidas nos cursos de graduação para preparar um futuro professor para a tarefa de ajudar seus alunos na construção de noções concernentes aos números irracionais e à incomensurabilidade de grandezas? Em suas considerações a respeito dos conhecimentos pedagógicos do conteúdo, Shulman (1986, p.9) observa que o professor deve dominar formas alternativas e úteis de representação de ideias, deve ser capaz de selecionar exemplos, estabelecer relações, explicar e demonstrar essas ideias, de tal forma que se tornem compreensíveis aos outros. Além disso, o professor deve conhecer estratégias criativas, que permitam organizar ou reorganizar concepções, porventura equivocadas, dos estudantes. Na visão de Ball et al (2008, p.10), essas habilidades pertencem à categoria do conhecimento do conteúdo especializado. A esse respeito, estes pesquisadores acrescentam que Para ajudar os estudantes a aprender, os professores necessitam ser capazes não apenas de fazer matemática, mas eles necessitam “desfazer” os elementos daquela matemática, para tornar suas características aparentes para os estudantes. 95 (tradução nossa). Nesse sentido, nossa intenção ao propor essas questões era criar uma oportunidade para que os professores refletissem também sobre seus próprios conhecimentos a respeito dos números irracionais e, eventualmente, identificassem aspectos desses conhecimentos que, após a fase de intervenção, poderiam ser considerados como avanços ou ainda precisariam ser aprimorados. Para seis participantes, os conhecimentos necessários ao professor, para ensinar números irracionais em classes do Ensino Fundamental se restringem a apenas uma parte dos conteúdos prescritos para essa fase escolar, nos documentos de referência curricular. Dois excertos ilustram suas respostas: Conhecimentos necessários e/ou indispensáveis ao professor: Todo número escrito na forma de um decimal infinito e não-periódico são os números irracionais. Este conceito deve ser mostrado em paralelo com os números racionais, ou seja, primeiro o aluno deve saber as características deste número. 95 To help students learn, teachers need to not only be able to do mathematics but they need to unpack the elements of that mathematics to make its features apparent to students. (BALL et al, 2008, p.10). 234 Números Racionais (fracionários) decimal finito dízima periódica Se existe a dízima e ela não é periódica, conclui-se que é irracional. (Prof. A) Conhecimentos sobre: * Dízimas periódicas finitas e infinitas * Frações * Conjuntos Numéricos. (Prof. G) Nas respostas de quatorze professores, foram acrescentados itens que, inicialmente, não faziam parte dos conhecimentos deste grupo e foram explorados durante nosso experimento, como exemplificam os extratos que seguem: O professor precisa ter o conhecimento sobre um pouco de Desenho Geométrico para explicar divisão de segmento (medida “u” comensurável). Para encontrar qualquer ponto na reta, usando compasso e régua sem graduação. Para que desta forma o aluno “visualize” isto. Eu acho que não precisa construir, mas ao menos visualizar. (Prof. H). Conjuntos, abrangendo o cjto dos nºs racionais e irracionais, nºs comensuráveis, incomensuráveis. Divisão de segmentos. Construção de figuras geométricas. (Prof. V) 1º Definição, localização, transformação, surgimento – um pouco da História da Matemática. 2º Saber porque da sua complexidade. 3º Relacionar racionais com irracionais. 4º Transformações: são importantes. 5º O conceito das raízes não exatas, o nº , o nº , assim por diante. 6º A localização na reta numerada é importante, assunto com certa dificuldade dos alunos. 7º Comparação de números de forma geral. 8º Quantidade: quem é maior? Q ou Irracionais? (Prof. T) Concordando com ideias defendidas por Ball et al (2008, p.8), quanto aos conhecimentos que devem ser de domínio dos professores, independentemente de serem ensinados aos alunos, três professores acrescentaram comentários como: O prof. precisa ter um domínio e aprofundamento sobre os nºs irracionais que ultrapassem o conteúdo que ele pretende transmitir ao aluno, pois o conj. dos nºs irracionais é bem complexo e de difícil assimilação. Dominar conceitos, definições, demonstrações e transformar os mesmos em exercícios ou tarefas, que ajudem o aluno a ter uma compreensão e um domínio mínimo que seja para ele poder caminhar. (prof. O). 235 O que constatamos como resultado das reflexões deste grupo de professores é uma percepção da importância do componente formal, no corpo de conhecimentos necessários ao professor, sobre números irracionais. Importa destacar que, em relação ao aspecto formal da atividade matemática, discutido por Fischbein (1986), um avanço nos conhecimentos dos professores foi observado, não apenas por nós, mas foi percebido pelo próprio grupo, conforme alguns expressaram durante as discussões sobre a importância e a viabilidade de introduzir números irracionais no Ensino Fundamental, dizendo, por exemplo: E o resto do bimestre? O que é que eu vou fazer com o resto do conteúdo? Tudo bem... eu sei que números irracionais é importante... Mas, você concorda? Quanto tempo a gente ficou aqui aprendendo o bimestre passado com a Olga? Aprendendo... Aprendendo, mesmo. Eu nunca tinha visto. Muito menos trabalhar em demonstração... Com hipótese, tese... (prof. C). Da mesma forma, o reconhecimento da importância do componente formal, também na formação de professores, é demonstrado por um grupo de onze participantes, em respostas como: Essas aulas onde aprendemos a fazer demonstrações, também deveriam ser indispensáveis. Exercícios ou atividades com figuras geométricas, como fizemos na incomensurabilidade. Creio que deve ter uma certa quantidade de aulas com demonstrações e tb aulas com exercícios práticos, assim mesclando os futuros professores terão mais facilidade em passar esse conteúdo. (Prof. G). Os conteúdos: as demonstrações, eu acho importante sim, já que não temos exemplos práticos, do cotidiano, e precisamos de realizar um tratamento mais formal para provar e demonstrar algumas “verdades” do conceito dos números racionais e irracionais; (Prof. C). Outros aspectos relativos aos irracionais foram indicados como conteúdos que deveriam figurar nos currículos de cursos de graduação: incomensurabilidade de grandezas; construções geométricas com régua e compasso; frações contínuas; classificação dos números reais em algébricos e transcendentes; correspondência biunívoca entre o conjunto dos pontos da reta e o conjunto dos números reais. 236 As duas respostas transcritas a seguir representam, em nossa interpretação, uma justificativa para os resultados apresentados neste texto: Para os números irracionais seria necessário, o professor de um curso de graduação, aplicar de forma mais contextualizada atividades que desenvolvam os aspectos e características dos números irracionais. Trabalhos e pesquisas mais intensos e exercícios mais dinâmicos. Na graduação há mais tempo para estes assuntos serem explorados. Não me lembro de ter explorado este assunto, na minha graduação, e só hoje consegui conhecer melhor os conjuntos numéricos. Lembro apenas das derivadas e integrais, dos limites que tendem ao infinito, mas as características desse conjunto foi tudo novidade pra mim. (Prof. Q). Na graduação, não me recordo de atividades que possam ajudar os alunos na construção de noções concernentes aos números irracionais e à incomensurabilidade de grandezas. O que nós temos na graduação são conteúdos aprofundados. Ensinar os alunos do fundamental e médio aprendemos com a prática, estudando e preparando aulas referentes a aquele conteúdo. (Prof. A). Examinando as respostas dos professores às questões discutidas nos parágrafos anteriores, acrescidas de observações como: “com este módulo percebi que não sabia nada sobre Q e I, (acho que agora sei um pouquinho mais)” (prof. W, grifo do professor), entendemos que os conhecimentos demonstrados, inicialmente, pelo grupo, em resposta ao diagnóstico proposto na fase 1, são, conforme se expressou o professor (A), aprendidos “com a prática, estudando e preparando aulas referentes a aquele conteúdo” – o que pode indicar a necessidade de se dedicar mais atenção a esse assunto, nos programas praticados em cursos de Licenciatura. Observa-se nas respostas apresentadas pelo grupo a percepção da importância e da necessidade de inclusão dos números irracionais em estudos oferecidos por cursos de formação de professores. No entanto, quando se referem aos alunos, essa necessidade é bastante relativizada, como podemos ver nos parágrafos que seguem. Conhecimentos necessários ao estudante que conclui o Ensino Fundamental A fim de identificar modificações nas concepções do grupo de professores a respeito do ensino de noções relativas ao conceito de número irracional, foram propostas as seguintes questões: 237 QUESTÕES RELATIVAS AOS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO ALUNO DO ENSINO FUNDAMENTAL 1. Você considera importante/indispensável introduzir o conceito de número irracional no Ensino Fundamental? Por quê? Se sua resposta for negativa, que fase da escolaridade você considera mais adequada para a introdução desse conteúdo? Haveria alguma perda significativa, caso os estudantes desconhecessem esse conteúdo até chegar à universidade? Explique. 2. Em sua opinião, o que um aluno do Ensino Fundamental, no final da 8ª série/9º ano, precisaria, de fato, saber sobre números irracionais, para ser capaz de compreender os conteúdos que serão desenvolvidos ao longo do Ensino Médio? Explicite as noções que você considera indispensáveis para a compreensão de outros conteúdos (especifique os conteúdos). 3. (A) Você acha relevante incluir nas aulas de Matemática uma abordagem geométrica do conceito de número irracional? Que tipo de abordagem? (B) A seu ver, essa abordagem seria adequada/viável, na 8ª série? Por quê? Conforme referido anteriormente, aos olhos de Shulman (1986), um professor deve ser capaz de distinguir tópicos que são centrais de outros que podem ser tratados em segundo plano, a fim de decidir sobre os aspectos de um conteúdo que merecem ser enfatizados e também a fim de compreender e avaliar a adequação da distribuição desse conteúdo na organização curricular. (Shulman, 1986, p.9,10) Nesse sentido, entendíamos que, respondendo a essas questões após a intervenção, os professores teriam a oportunidade de reconsiderar e, eventualmente, modificar concepções explicitadas anteriormente sobre o ensino dos números irracionais. Um exame dos resultados permite perceber que se mantém, para a maior parte deste grupo de professores, a opinião de que é necessário introduzir o conceito de número irracional no Ensino Fundamental, sugerindo, todavia, que não haveria necessidade de aprofundar ou ampliar esses conhecimentos, para muito além de uma abordagem que envolvesse definição, representações e cálculos com radicais: Acho que [é] importante saber que há - infinitos irracionais. - conhecer os básicos - que o número irracional não escrevo na forma . - saber racionalização. (Prof. H). 238 Conceito. localização na reta numérica. fazer cálculos com todas as operações, aplicando as propriedades operando também com radicais. aplicar na trigonometria, logaritmo, radicais, etc. (Prof. E). Eu acho que só o fato de eles saberem que o número irracional é um número infinito e não periódica [sic] seria o suficiente. (Prof. A). Eles devem ter o conhecimento do que é um número irracional, como identificá-lo, mas nada que influencia muito no E.M. para o seu rendimento. A aritmética, os conhecimentos básicos fazem mais falta a eles na resolução dos exercícios e também a compreensão dos temas abordados. (Prof. K). Na opinião do autor desta última resposta, não haveria perda ou prejuízo para a compreensão dos conteúdos do Ensino Médio, se o aluno conhecesse, dos números irracionais, apenas a definição e a representação que permitissem distingui-los dos racionais. Por outro lado, oito professores explicitaram certa descrença quanto à possibilidade de introduzir o conceito de número irracional em sua interpretação geométrica, no Ensino Fundamental, tendo em conta a ausência de habilidades nos alunos para compreender essa abordagem. Dois exemplos dessas respostas são apresentados a seguir: Não acho que seja relante [relevante] no ensino fundamental, pois eles terão muita dificuldade em compreender. No ensino médio é mais viável, pois aborda-se geometria mais a fundo. (Prof. R). Acho importante, mas não sei se conseguiria passar através da abordagem geométrica do conceito de nº irracional. Os alunos sabem muito pouco sobre a geometria. Para eles tudo que é complicado, perdem a motivação em compreender. (Prof.A). De forma geral, a abordagem geométrica avaliada por este grupo de professores como importante no Ensino Fundamental envolveria a construção, com régua e compasso, de segmentos de medida irracional e a localização de números irracionais sobre a reta numérica. Os professores (C) e (K) se expressaram sobre isso, dizendo que A abordagem geométrica do conceito de número irracional deve ajudar o aluno a compreender a importância do número irracional, na resolução de alguns problemas. 239 Localizar um número na reta (não numérica) usando régua, lápis e compasso. (Prof. C). Achei muito interessante a localização na reta, isso eles gostariam de aprender. E na utilização do teorema de Pitágoras. (Prof. K). Apenas dois professores (U e P) fizeram referência à introdução do conceito de incomensurabilidade de segmentos de reta, como parte da abordagem dos irracionais, no Ensino Fundamental. Uma comparação de suas respostas, em fases distintas de nosso experimento, permite perceber uma mudança de concepção a respeito do tratamento geométrico dos números irracionais: Item 5. Diagnóstico.Fase 1 (Indicação de abordagem geométrica para a introdução do conceito de número irracional) Questão 3(A). Fase 2. (sobre conhecimentos necessários ao aluno do Ensino Fundamental) Quadro 18 - Comparação entre protocolos Prof. (U) Fonte: Acervo pessoal 240 Item 5. Diagnóstico. Fase 1. (Indicação de abordagem geométrica para a introdução do conceito de número irracional) Questão 2. Fase 2. (sobre os conhecimentos necessários a um aluno do Ensino Fundamental) Quadro 19 - Comparação entre protocolos Prof. (P) Fonte: Acervo pessoal O confronto das respostas do professor (P), por exemplo, revela um enriquecimento em suas concepções relativas ao ensino dos números irracionais. Ambos os protocolos fazem referência à ampliação dos campos numéricos. Entretanto, apesar da concisão da segunda resposta, percebem-se conexões entre 241 ideias que são fundamentais para um tratamento desse tema, que não seja, por exemplo, limitado ao campo numérico e, além disso, a abordagem geométrica envolveria não apenas a construção de segmentos de medida irracional para a localização de números sobre a reta, mas também a introdução da ideia de incomensurabilidade de grandezas. De qualquer forma, em suas discussões, os professores adiantaram que precisariam vivenciar, experimentar em suas aulas e refletir sobre a viabilidade de uma abordagem que envolva alguns dos tópicos explorados durante nosso experimento. 5.3. Análise de orientações curriculares (Fase 3) Três encontros, de aproximadamente quatro horas, compuseram esta fase – de 17.03.2011 a 28.04.2011 – e foram dedicados à análise das atuais orientações curriculares para a abordagem dos números irracionais no Ensino Fundamental e à elaboração de um plano para o ensino desse conteúdo, nessa etapa escolar. A abordagem dos números irracionais, segundo o Currículo do Estado de São Paulo – uma análise feita pelo grupo de professores Com o intuito de proporcionar a oportunidade de examinar e refletir, coletivamente, sobre a abordagem dos números irracionais, sugerida pelo Currículo do Estado de São Paulo (2010), foi proposta a seguinte atividade: ATIVIDADE 1 Considerando que as sugestões apresentadas nos Cadernos não têm o propósito de esgotar um conteúdo, o professor pode selecionar, complementar ou enriquecer as atividades, adaptando-as ao nível de interesse e de desenvolvimento da classe e segundo o que ele próprio considera importante e necessário que o aluno aprenda. Ou seja, não existe uma única abordagem eficaz, não há apenas um caminho para a construção de um conhecimento. Assim, tendo em vista o que foi discutido ao longo dos encontros anteriores, analise de forma geral, as atividades propostas no Caderno do Professor, do 1º bimestre da 8ª série/9º ano do Ensino 96 Fundamental (p. 18 a 39) , para a introdução do conjunto dos números irracionais. A proposta desta atividade atendeu à solicitação feita por alguns professores do grupo, interessados em ampliar seus conhecimentos sobre os tópicos abordados nos Cadernos que integram o material de implementação desse Currículo. Assim, 96 O material submetido à análise do grupo de professores, extraído do Caderno do Professor destinado à 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental está disponível no Anexo 4. 242 propondo esta atividade após a intervenção, nossa intenção era identificar eventuais mudanças nas concepções dos professores, sobre as possibilidades de abordagem dos números irracionais, no Ensino Fundamental. Segundo Zeichner (1993, p.27), é importante que se criem situações em que os professores se sintam à vontade para analisar criticamente as investigações feitas por terceiros, sejam livres para refletir a respeito dos pressupostos implícitos em propostas educacionais e possam aceitar ou discordar dessas propostas. Nessa perspectiva, professor reflexivo seria aquele que questiona os objetivos, a seleção dos conteúdos, as estratégias sugeridas, os currículos prescritos e que toma parte das decisões em relação ao currículo a ser adotado. Interpretando à luz das ideias defendidas por Shulman (1986, 1987) e Ball et al (2008), os conhecimentos necessários a essa reflexão, classificados como conhecimentos curriculares do conteúdo, incluiriam a capacidade de analisar criticamente o tratamento dado aos números irracionais em documentos de orientação curricular, o reconhecimento de conexões importantes ou etapas indispensáveis e, da mesma forma, a identificação de concepções incorretas, pontos obscuros ou encaminhamentos inadequados e a reflexão sobre possíveis mudanças nesses encaminhamentos. Como etapa final, a reflexão sobre essas orientações e também sobre as discussões realizadas durante nosso experimento deveria resultar na concepção de um plano de abordagem do número irracional nos anos finais do Ensino Fundamental. Percebe-se, conforme já foi dito, nas considerações elaboradas pelos professores, um reconhecimento da importância dos números irracionais nos currículos de Matemática, mas, ao mesmo tempo, há uma apreensão no que se refere à sugestão de atividades nos Cadernos, que requerem o conhecimento prévio de determinados assuntos que, muitas vezes, não são de domínio dos estudantes ou estão prescritos para anos posteriores da escolaridade: Eu achei o número de aulas insuficiente pra tanto conteúdo. Porque olha gente, Diagrama de Venn, com os exercícios que tem lá, pra eles aprenderem, que nem, eles falam lá... Eu li, gente, “Avaliação”... é uma coisa que vai ser estudada lá, ah.... intersecção, união, contido, não está contido... É uma simbologia que eles vão estudar lá no Ensino Médio. Bom, é um exercício pro aluno... Pede pra ele falar se é verdadeiro ou falso... N, 243 intersecção com Z, N intersecção com R... Entendeu? Quer dizer... Você precisa explicar, não adianta... Tem a simbologia, usou... Eu vou ter de entrar no conteúdo... Não dá pra... Tem de explicar... (prof. C). Por outro lado, este último extrato mostra que o exame realizado pelo professor exigiu o estabelecimento da relação entre o conhecimento matemático especializado e o modelo de instrução proposto no material examinado – característica do conhecimento do conteúdo e do ensino –, a respeito do que Ball et al (2008, p.9) argumentam: Os professores necessitam sequenciar o conteúdo particular para a instrução, decidir com qual exemplo começar, e quais exemplos usar para aprofundar o conteúdo com os estudantes. Eles necessitam avaliar as vantagens instrucionais e desvantagens de representações usadas para ensinar uma ideia específica. Durante uma aula de discussão, eles devem decidir quando perguntar para maior clarificação, quando usar um comentário de estudantes para fazer uma observação matemática e quando perguntar uma nova questão ou colocar uma nova tarefa para complementar a aprendizagem dos estudantes. Cada uma dessas [tarefas] requer uma interação entre a compreensão matemática específica e uma compreensão de assuntos pedagógicos que afetam a aprendizagem do estudante. 97. (tradução nossa). Outras considerações foram feitas pelos professores, dentre as quais destacamos algumas que se referem à exploração de situações que envolvem a representação de números racionais e irracionais na forma de frações contínuas. Na avaliação deste grupo de professores, esta abordagem não favorece a aprendizagem desse conteúdo, por razões assim explicitadas: Frações contínuas: esse conteúdo além de ser muito difícil, não consigo encontrar sua aplicabilidade, e quando não podemos informar sua utilidade aos alunos, o aprendizado se torna mais difícil e menos interessante. (Atividade 1, Fase 3. Prof. G). No ensino médio trabalhamos muito com os valores aproximados de , e , o que torna importante uma aproximação melhor. Acreditamos, também, que o excesso de cálculos pode desmotivar tanto ensino como aprendizagem. (Nós professores não vimos em nossa graduação o conceito de frações contínuas). Talvez possa haver um método mais simples de aproximação (fácil compreensão). (Atividade 1, Fase 3, Prof. P). 97 Teachers need to sequence particular content for instruction, deciding which example to start with and which examples to use to take students deeper into the content. They need to evaluate the instructional advantages and disadvantages of representations used to teach a specific idea. During a classroom discussion, they have to decide when to ask for more clarification, when to use a student’s remark to make a mathematical point, and when to ask a new question or pose a new task to further students’ learning. Each of these requires an interaction between specific mathematical understanding and an understanding of pedagogical issues that affect student learning. (BALL et al, 2008, p.9). 244 Da mesma forma, o diálogo contido no quadro a seguir indica familiarização do professor com dificuldades encontradas por seus alunos, em relação aos conjuntos numéricos: Pesquisador: “Como é que a densidade do conjunto dos números racionais na reta numérica é trabalhada nesse material? [...] Vocês acham que é importante tratar a densidade do conjunto dos números racionais?” Prof. (G): “Eu acho confuso...” Pesquisador: “Confuso?” Prof. (G): “Pra colocar na cabeça do aluno que entre dois números existem infinitos números... eu acho que a palavra é complexa, é complexa a informação pra eles... porque eles acham que entre um e dois existem algumas frações, vai ter um meio, 0,1... mas, você colocar que entre dois números... Entre um quarto e um oitavo, existem infinitos números ali dentro, sabe acho que é demais pra cabeça deles, eles conseguirem essa imaginação toda... Eu penso assim... Eu não sei se isso é o correto ou não...” Quadro 20 – Fragmento de diálogo sobre dificuldades enfrentadas por alunos, para compreender o conceito de densidade de Q Fonte: Acervo pessoal Esse tipo de conhecimento que combina a compreensão de um conteúdo e a percepção/previsão das dificuldades dos estudantes é classificado por Ball et al (2008) como conhecimento do conteúdo e de estudantes, a respeito do qual esses pesquisadores acrescentam que Ao escolher um exemplo, os professores precisam prever o que os estudantes irão achar interessante e motivador. Quando atribuem uma tarefa, eles [os professores] necessitam antecipar o que os estudantes provavelmente farão com ela e se eles irão achá-la fácil ou difícil. Eles devem também ser capazes de escutar e interpretar os pensamentos emergentes e incompletos dos estudantes. Cada uma dessas tarefas requer uma interação entre a compreensão matemática específica e a familiaridade 98 com estudantes e seu pensamento matemático. (p.9, tradução nossa) O que se observa, finalmente, nos comentários formulados pelos professores é a manifestação de um avanço também em relação aos conhecimentos especializados sobre números irracionais demonstrados na fase inicial de nossa pesquisa. Ou seja, em suas argumentações a respeito da insuficiência do tempo para o desenvolvimento dos conteúdos prescritos ou a respeito da ordem em que são postas as discussões sobre determinados tópicos, no Caderno, os professores 98 When choosing an example, teachers need to predict what students will find interesting and motivating. When assigning a task, they need to anticipate what students are likely to do with it and whether they will find it easy or hard. They must also be able to hear and interpret students’ emerging and incomplete thinking. Each of these tasks requires an interaction between specific mathematical understanding and familiarity with students and their mathematical thinking. (BALL et al, 2008, p.9). 245 incluem observações sobre conteúdos que, segundo os resultados do primeiro instrumento de coleta de dados, não estavam presentes em sua imagem conceitual de números irracionais. Um plano para a abordagem dos irracionais, segundo o grupo de professores participantes de nosso experimento Com a finalidade de estabelecer um paralelo entre o nosso experimento e a abordagem proposta no Caderno da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e também favorecer a criação de um plano de ensino do conceito de número irracional que contemplasse tópicos avaliados pelo grupo como indispensáveis para alcançar os alunos de suas classes, foi proposta a atividade que segue: ATIVIDADE 2 Considerando as discussões realizadas ao longo de nosso experimento e as orientações curriculares analisadas pelo grupo, o que você considera importante/indispensável que o aluno domine sobre o conjunto dos números irracionais, ao término do Ensino Fundamental, para compreender os conteúdos que serão desenvolvidos durante o Ensino Médio? Justifique. É possível desenvolver esse conteúdo na 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental? Justifique. Conforme foi dito, a fase 2 constituiu-se em etapa destinada à vivência de situações que poderiam provocar a reflexão sobre a importância do estudo dos números irracionais e sobre os conhecimentos necessários aos estudantes e aos professores, a respeito desse conteúdo. Assim, era nossa expectativa que as discussões promovidas durante os encontros anteriores e a análise das orientações curriculares para a abordagem desse conteúdo teriam, como resultado, um aprofundamento das concepções do grupo de professores sobre o ensino desse tema. Em resposta à atividade 2, foram apontados pelo grupo como conteúdos indispensáveis a um aluno que conclui o Ensino Fundamental: Encontrar a fração geratriz de um número racional. Identificar números racionais e irracionais. Números irracionais algébricos e transcendentes. 246 Localização de números na reta, com o auxílio de régua sem graduação e compasso. Densidade dos números irracionais e representação na reta real. Saber operar com números irracionais. A indicação destes itens exigiu dos professores não apenas uma reflexão sobre as propostas de trabalho examinadas até então. Foi necessário também que considerassem suas práticas pedagógicas, as possibilidades de implementação dos tópicos indicados em suas salas de aula e as dificuldades já experimentadas individualmente e que agora são partilhadas, discutidas, expostas coletivamente. Zeichner (1993) referiu-se a esse tipo de reflexão coletiva, dizendo que Uma maneira de pensar na prática reflexiva é encará-la como a vinda à superfície das teorias práticas do professor, para análise crítica e discussão. Expondo e examinando as suas teorias práticas, para si próprio e para os seus colegas, o professor tem mais hipóteses de se aperceber das suas falhas. Discutindo publicamente no seio de grupos de professores, estes têm mais hipóteses de aprender uns com os outros e de terem mais uma palavra a dizer sobre o desenvolvimento da sua profissão. (p.22) Nesse sentido, o desenvolvimento desta atividade favoreceu a exteriorização de ideias/teorias que foram partilhadas pelos grupos, resultando em conclusões como a que foi expressa pelo professor (P), a seguir: Nós achamos que todo o conteúdo dos irracionais é importante mas se o aluno não tiver esse conteúdo no E.F., ele consegue acompanhar toda matéria do E.M. Vamos supor que ele nunca viu os números irracionais e estamos agora no 2º ano E.M. resolvendo problema com prisma: ao achar por ex: o seu volume (V = , o resultado daria 48 + 3. cm³ sem conhecer que é um número irracional não iria atrapalhar em nada o seu raciocínio, na resolução do problema dos Prismas. Mesmo na resolução dos radicais na hora de racionalizar o denominador, se ele não souber que o denominador é um número irracional mas sabe racionalizar, também não vai atrapalhar em nada. Essa foi a opinião do meu grupo. (Prof. P). Zeichner (1993) valoriza elaborações como esta, que foi feita pelo professor (P), argumentando que: Para além do saber na ação que vamos acumulando ao longo do tempo, quando pensamos no nosso ensino quotidiano, também estamos continuamente a criar saber. As estratégias de ensino que usamos na sala de aula encarnam teorias práticas sobre o modo de entender os valores educacionais. A prática de todo o professor é o resultado de uma ou outra teoria, quer ela seja reconhecida quer não. Os professores estão sempre a teorizar, à medida que são confrontados com os vários problemas 247 pedagógicos, tais como a diferença entre as suas expectativas e os resultados. Em minha opinião, a teoria pessoal de um professor sobre a razão por que uma lição de leitura correu pior ou melhor do que era esperado, é tão teoria como as teorias geradas nas universidades sobre o ensino da leitura: ambas precisam ser avaliadas quanto à sua qualidade, mas ambas são teorias sobre a realização de objetivos educacionais. (p.21). Finalmente, o desenvolvimento dessa atividade culminou na formulação de um plano para o ensino dos números irracionais, contendo itens avaliados pelo grupo, como indispensáveis e suficientes a um aluno concluinte do Ensino Fundamental, como preparo para a continuidade dos estudos. Como um último “exercício” de organização das ideias retomadas/reelaboradas/reconstruídas relativamente aos números racionais e irracionais, ao longo de nosso estudo, construímos com os professores participantes um rol único de conteúdos, a partir das indicações feitas por eles, conforme segue: 1. Retomada dos conjuntos numéricos: naturais, inteiros e racionais. 2. Definição de números racionais. 3. Representações de números racionais: Fracionária Decimal finita Decimal infinita e periódica Dízima periódica simples Dízima periódica composta Transformação de representação decimal em fracionária e vice-versa. 4. Potenciação e Radiciação Raízes exatas Raízes não exatas Operações e propriedades dos radicais Potências com expoente fracionário 5. Raízes não exatas: definição de número irracional: 6. Distinção entre as representações decimais de números racionais e números irracionais 7. Localização de números racionais na reta numérica Com régua graduada Com régua sem graduação Densidade de Q na reta numérica 8. Construção geométrica de segmentos de medida irracional 9. Localização de números irracionais na reta numérica. Quadro 21 – Rol de conteúdos construído com o grupo, contendo itens considerados indispensáveis a um aluno do Ensino Fundamental Fonte: Acervo pessoal 248 Convém, no entanto, destacar que, embora o grupo tenha avaliado como importantes esses tópicos, percebe-se ao mesmo tempo, em comentários formulados por alguns professores, um ceticismo quanto à possibilidade de cumprir (ou de realizar) uma proposta de trabalho que tenha em vista o desenvolvimento desse programa. eu... eu... esse bimestre, por exemplo, essa parte de raízes aí, eu só trabalhei com raízes exatas. Só fiz uma retomada sobre as raízes... raiz quadrada... a quadrada... porque ela tem... eu acho que é o sentido... Potenciação também... as propriedades, eles sempre acham que a base é multiplicada pelo expoente, e não que a base é multiplicada, tantas vezes quanto for o expoente... essas relações são muito comuns... e o fato de aquele elemento elevado a zero é um... eles não guardam... isso também eles não guardam... então, em fiz essa retomada, não entrei nas raízes não exatas... não entrei... eu só mostrei pra eles a diferença entre um número racional e um irracional, através dos racionais... eu só cheguei até aí. Eu sei como é difícil pra eles... Até pra gente fazer pra eles, é complicado... Mas, eles num... Sabe? Se eu começar a dar pra eles, eu tenho certeza de que eles vão desistir... É em vão... Então, eu já parto assim... Pra mim... Qual é o objetivo desta aula? É eles saberem diferenciar o que é que é número racional do que é número irracional. Pra mim, isso é o suficiente... (Prof. A). Mas, olha... é o que ela falou [aponta para o professor A]. Eu estava comentando aqui, que a gente parece que estava fazendo as apostilas... Isso, pros nossos alunos, é surreal... (Prof. K). Considerações como estas revelam, a nosso ver, a presença de uma “tensão” entre a dúvida – quase uma descrença – quanto à viabilidade de aplicação de determinados tópicos discutidos em nosso experimento e, ao mesmo tempo, a incumbência de colocar em prática as inovações propostas no atual Currículo de Matemática. Por outro lado, expressam pontos de vista congruentes que, embora deixem à vista a conservação de concepções anteriores, resultam de reflexões que se fizeram ao longo de nosso experimento, primeiro individualmente e, depois, coletivamente. Compartilhamos da ideia de Zeichner (1993), quando se refere ao professor, em sua condição individual como prático reflexivo, dizendo que o processo de compreensão e transformação do ensino deve começar pela reflexão sobre a sua própria experiência e que o tipo de saber inteiramente tirado da experiência dos outros (mesmo de outros professores) é, no melhor dos casos, pobre e, no pior, uma ilusão (p.17). Todavia, conquanto tenhamos iniciado nosso estudo a partir de experiências vividas por outros professores, examinando respostas apresentadas por alunos que 249 não eram nossos, foi possível perceber, durante o experimento, o crescimento da disposição manifestada pelos professores, que demonstraram reconhecer que “o processo de aprender a ensinar se prolonga durante toda a carreira do professor” – atitude apontada também por Zeichner como característica da reflexão. (1993, p.17) Procuramos, ao longo de nosso experimento, “provocar” os professores por meio de questionamentos que permitissem, ao grupo, considerar possíveis encaminhamentos para ajudar seus alunos a construir uma ideia inicial de número irracional. Escolhemos essa forma para conduzir nossas discussões sobre a densidade do conjunto dos números racionais na reta numérica e sobre a possibilidade de localizar, na reta, pontos que não correspondem a números racionais, com a intenção de incentivar uma reflexão que não fosse apenas individual – cada professor considerando sua própria prática –, mas que se estendesse e envolvesse o grupo inteiro, que fosse partilhada e ponderada coletivamente, para que os encontros constituíssem oportunidades de ajuda e enriquecimento de todos os participantes do grupo, no que se refere às dificuldades que precisamos enfrentar, quando apresentamos aos nossos alunos os números irracionais. Acrescentamos, a esse respeito, que as reflexões decorrentes das atividades propostas foram realizadas coletivamente, como prática que foi se estabelecendo naturalmente, possivelmente por perceberem, uns professores, os próprios questionamentos, nas palavras dos outros. 250 CONSIDERAÇÕES FINAIS The goal of teacher education, he argues, is not to indoctrinate or train teachers to behave in prescribed ways, but to educate teachers to reason soundly about their teaching as well as to perform skillfully. Sound reasoning requires both a process of thinking about what they are doing and an adequate base of facts, principles, and experiences from which to reason. Fenstermacher 99 O texto que segue sintetiza a trajetória que se fez necessária à realização de nosso estudo e sumariza nossas reflexões a respeito das questões de pesquisa que nos propusemos a responder, com base nos resultados de nosso experimento. Destacamos também aspectos que, em nosso ponto de vista, precisam ser aprofundados em estudos posteriores e indicamos questões que, conquanto não tenham sido abordadas nas discussões aqui expostas, merecem, por sua relevância, ser tomadas como objetos de novas investigações. Consideramos que o desenvolvimento desta pesquisa se justifica pela relevância da compreensão do conceito de número irracional, para a ampliação da ideia de número, visto que favorece e, em alguns casos, impõe a reconstrução e a reelaboração de noções relativas aos números racionais, como etapa necessária à construção do conceito de número real. Propicia, igualmente, uma interpretação da Matemática, não apenas como ferramenta útil e necessária para a resolução de problemas práticos, mas também como ciência organizada, coerente, harmoniosa, que se constrói pelo esforço do homem. 99 “O objetivo da formação de professores, ele argumenta, não é para doutrinar ou treinar os professores para se comportarem da maneira prescrita, mas para educar professores para raciocinar profundamente sobre o seu ensino, bem como para executá-lo habilmente. Raciocínio lógico requer tanto um processo de refinamento sobre o que estão fazendo, quanto uma base adequada de fatos, princípios e experiências, para raciocinar a partir dos mesmos.” (FENSTERMACHER, 1978, 1986, apud SHULMAN, 1987, p.13, tradução nossa.). 251 Uma síntese da trajetória deste estudo Quanto aos procedimentos metodológicos empregados nesta investigação, utilizamos a pesquisa documental e orientamo-nos por princípios do Design Experiments, que favoreceram o desenvolvimento simultâneo da investigação e da formação continuada de um grupo de 23 professores de Matemática da rede pública estadual, constituído pelo Observatório da Educação, em projeto financiado pela CAPES, com o propósito de promover a reflexão a respeito da implementação de inovações curriculares em suas práticas pedagógicas. Com a pesquisa documental, tivemos o objetivo de averiguar a importância conferida aos números irracionais nos currículos de Matemática da Educação Básica, assim como as recomendações pedagógicas e as expectativas de aprendizagem que se estabelecem, para o desenvolvimento desse conteúdo, em orientações contidas em documentos oficiais de referência curricular vigentes no Brasil. Além disso, procedemos à análise das abordagens dos irracionais apresentadas em livros didáticos adotados por professores que participaram de nosso experimento. A investigação desses documentos amparou-nos no que se refere à elaboração dos instrumentos de coleta de dados e ao exame dos resultados de nosso experimento. Como resultado dessa análise, destacamos que as orientações constantes do Currículo do Estado de São Paulo (2010), para a abordagem dos números irracionais no Ensino Fundamental, incorporam as sugestões apresentadas nos PCN (1998), no que se refere à importância de explorar diferentes representações, de promover a interação entre os campos dos Números, da Geometria e das Grandezas e Medidas e de oferecer oportunidades de verificações experimentais para a identificação de regularidades que podem resultar na introdução de noções relativas aos irracionais (como o valor do número e a razão áurea). O novo Currículo do Estado de São Paulo (2010) acrescenta, além dos conteúdos indicados nos PCN (1998) para o Ensino Fundamental, a sugestão de um aprofundamento que inclui, por exemplo, a classificação de números reais em algébricos e transcendentes e a exploração de frações contínuas como possibilidade de representação de números racionais e irracionais e como forma de obter aproximações racionais para números irracionais. 252 Uma futura investigação que avaliasse os resultados da implementação dessas orientações, em sala de aula, poderia contribuir para um estudo das possibilidades de seu desenvolvimento. Acrescentamos ainda que não há, nos documentos examinados, um destaque para a densidade do conjunto Q na reta real – característica tomada em nossa pesquisa como fator que pode ser explorado como ponto de partida para promover a discussão sobre a existência de pontos na reta que não são racionais. Quanto ao Ensino Médio, observamos que, embora as OCEM (2006) contenham recomendações sobre a retomada e o aprofundamento de noções relativas aos irracionais (incluindo sua interpretação geométrica, pela introdução da incomensurabilidade de grandezas), a atenção dedicada a esses números, no novo Currículo do Estado de São Paulo (2010), é restrita à sua utilização como números reais no estudo de outros conteúdos, como a Trigonometria. Tendo em conta a complexidade que envolve o tema “números irracionais”, entendemos que seu estudo deveria, necessariamente, figurar entre aqueles propostos para o Ensino Médio – o que favoreceria a continuidade, a consolidação e o aprofundamento de habilidades e conhecimentos construídos ao longo do Ensino Fundamental, conforme a lei. (LDB 9.394/96, artigo 35). As reflexões que fizemos ao longo desta pesquisa nos levaram a concluir que o estudo dos números irracionais deveria ganhar especial atenção também nos cursos de Licenciatura em Matemática, visto que têm a finalidade de preparar futuros professores para ensinar esse conteúdo aos alunos. Ademais, ainda que seja prescrita, nos documentos curriculares, uma abordagem apenas introdutória dos números irracionais – como “ponte” que se faz necessária à transição dos racionais para os reais –, as próprias Diretrizes para cursos de formação de professores determinam que a seleção de conteúdos para esses cursos deve ir além daqueles que os professores irão ensinar em suas aulas, nas diferentes etapas da escolaridade. A esse respeito, as mesmas Diretrizes para Cursos de Licenciatura estabelecem que a seleção dos conteúdos (tanto das áreas de ensino, quanto pedagógicos) é de competência de cada Instituição de Ensino Superior. Assim sendo, a oferta de um estudo que poderia favorecer aos futuros professores o 253 aprimoramento e a ampliação dos conhecimentos sobre números irracionais e sobre seu ensino dependeria das Instituições de Ensino. Outras pesquisas poderiam investigar se um estudo dos números irracionais, em toda a sua complexidade, – que leve em conta, por exemplo, a importância do tratamento formal e a necessidade de articular as interpretações numérica e geométrica desses números – faz parte dos currículos dos cursos de Licenciatura em Matemática, visto que, concluindo esses cursos, os estudantes, possivelmente, irão para a sala de aula e deverão estar preparados para ensinar esse conteúdo. Dentre as pesquisas que nos motivaram, foram particularmente relevantes os resultados e as análises apresentados por Sirotic (2004) e Santos (1995), constituindo-se em parte do material submetido à apreciação dos professores participantes de nosso estudo. Da mesma forma, as investigações concernentes à formação de professores, no que diz respeito à importância da atitude reflexiva em relação à prática pedagógica (ZEICHNER, 1993) e aos conhecimentos necessários ao professor (SHULMAN, 1986, 1987 e BALL et al, 2008) são a base em que nos apoiamos para planejar e replanejar o nosso experimento e, igualmente, para analisar os resultados. Uma interpretação dos dados de nosso experimento O diagnóstico realizado na primeira fase da coleta de dados revelou que a imagem conceitual referente aos números racionais e irracionais, elaborada, até então, pela maioria dos participantes, era predominantemente constituída por noções pertencentes ao campo numérico, apresentando inconsistências, por exemplo, relativas às definições, às representações e à ampliação dos campos numéricos. No que concerne às definições e representações de números racionais, irracionais e reais, os conhecimentos acumulados pela maioria dos professores eram os mesmos indicados por currículos e livros didáticos, para o Ensino Fundamental, havendo uma prevalência dos componentes intuitivo e/ou algorítmico, sobre o formal, que transparece, por exemplo, em protocolos nos quais, embora o 254 professor tenha enunciado formalmente a definição de número racional como número que pode ser representado na forma a/b, com a e b inteiros e b não nulo, efetuou em seguida, a divisão possivelmente para confirmar a ocorrência de um período. Em nossa opinião, esses resultados indicam também a construção da ideia de número racional, essencialmente baseada em sua representação decimal. Também o conceito de incomensurabilidade de grandezas e a relação entre números irracionais e grandezas incomensuráveis se revelaram ausentes do repertório do grupo de professores, nos resultados do diagnóstico. Essa análise corrobora os resultados discutidos em outros estudos, como os desenvolvidos por Fischbein et al (1995) e Sirotic (2004), que também investigaram questões relativas ao ensino e à aprendizagem dos números irracionais. A fase de intervenção realizada em nossa pesquisa teve a finalidade de propor ao grupo de professores uma reflexão a respeito do ensino dos números irracionais, no Ensino Fundamental, tendo como objeto de discussão a abordagem desses números pela exploração de situações que favorecessem a percepção da existência de pontos na reta que não são racionais. Os resultados observados ao longo dessa fase, a partir das discussões e reflexões nos grupos de professores, não só indicaram avanços no que diz respeito às definições, representações e classificação de números racionais e irracionais, mas também ampliaram a compreensão da densidade do conjunto dos racionais na reta numérica e a percepção da possibilidade de construir, com régua e compasso, infinitos segmentos de medida irracional, como estratégia que pode favorecer a localização de pontos irracionais sobre a reta. Dentre os avanços registrados, é importante mencionar também aqueles relacionados à argumentação. Teria ficado vazia a discussão sobre os irracionais se a atenção do grupo não fosse despertada para a importância do aspecto formal, na abordagem desse conteúdo. O esforço e o interesse do grupo a esse respeito resultaram em avanço na compreensão das provas discutidas e, posteriormente, na elaboração de justificativas sobre a irracionalidade de determinados números. Nesse sentido, seria importante considerar a possibilidade de outras pesquisas que investigassem o desenvolvimento de habilidades relativas à 255 argumentação e à elaboração de provas, envolvendo professores da Educação Básica. Quanto ao conceito de incomensurabilidade de grandezas, embora tenhamos percebido que houve compreensão por alguns participantes, grande parte do grupo demonstrou, em suas discussões e registros, que ainda restaram dúvidas, especialmente no que se refere à relação entre números irracionais e grandezas incomensuráveis. Seria, a nosso ver, um tema que precisaria ser retomado e aprofundado. Após a intervenção, grande parte do grupo indicou como conhecimentos necessários ao professor, para ensinar números irracionais, conteúdos que não estavam presentes em suas respostas ao instrumento diagnóstico – por exemplo, o desenvolvimento de provas formais e a relação entre números irracionais e segmentos incomensuráveis. Esses resultados foram avaliados por nós como um avanço, que foi reconhecido também pelo grupo. Igualmente no que diz respeito aos conhecimentos necessários ao professor, para ensinar números irracionais, é importante registrar que a análise de orientações curriculares para a abordagem desse conteúdo, realizada pelos professores, revela conhecimentos do conteúdo e do estudante, conforme classificados por Ball et al (2008). Por exemplo, quando identificam, nesse material, abordagens que seriam, na opinião do grupo, desprovidas de aplicabilidade – como é o caso do estudo das frações contínuas. Da mesma forma, os argumentos apresentados pelos professores demonstram conhecimentos referentes à organização curricular, quando criticam, por exemplo, a abordagem dos irracionais a partir dos diagramas de Venn e das relações de pertinência e inclusão entre elementos e conjuntos – conteúdos prescritos para o Ensino Médio. Acrescentamos, finalmente, que as reflexões que se deram ao longo da formação continuada e da análise de orientações curriculares, provocaram uma reelaboração de concepções anteriores relativas aos números racionais e irracionais e o reconhecimento da necessidade de incorporá-los ao repertório construído anteriormente, pelo grupo. 256 Por outro lado, ao mesmo tempo em que se percebe uma valorização do número irracional dentre os conteúdos que deveriam compor o repertório do professor, constata-se certa cautela na indicação de conteúdos que seriam esperados de um aluno concluinte do Ensino Fundamental. Ou seja, para a maior parte dos professores, se mantém a ideia de que seria suficiente, para o Ensino Fundamental, uma abordagem introdutória dos irracionais, que envolvesse definições, representações e cálculos com radicais. É importante ressaltar que, nas respostas e argumentações explicitadas pelos professores, há uma dualidade caracterizada, de um lado, pela percepção e compreensão das dificuldades enfrentadas pelo aluno no estudo dos irracionais (enfrentadas também por eles, ao longo da intervenção) e, de outro lado, pela responsabilidade de implementar em suas aulas as inovações propostas no novo currículo de Matemática – como tarefa que deve ser cumprida. Respostas às questões de pesquisa Nossas reflexões sobre os resultados expostos nos parágrafos anteriores constituíram a base para elaborar respostas às nossas questões de pesquisa, formuladas por: Uma sequência de atividades que explore a percepção de que os pontos de coordenadas racionais não esgotam todos os pontos da reta pode favorecer a ampliação/reconstrução dos conhecimentos de professores de Matemática sobre os números irracionais? Que tipo de experiências um professor precisaria vivenciar nos cursos de formação inicial e/ou continuada, para compreender as dificuldades que os alunos enfrentam na construção do conceito de número irracional e para ajudá-los a superar essas dificuldades? O design baseado nessas questões revelou-se como boa estratégia, que possibilitou reflexões a respeito de vários conceitos que os professores não dominavam – não apenas para a construção de noções relativas aos irracionais, 257 cuja ausência no repertório dos professores foi observada inicialmente, mas sobretudo para a reorganização, consolidação e reelaboração de conhecimentos sobre números racionais. Também propiciou, ao grupo, a percepção da importância de integrar aos componentes intuitivo e algorítmico (prevalecentes, nas respostas e reflexões iniciais dos professores), o componente formal, como estratégia indispensável de convencimento, por exemplo, sobre a irracionalidade de um número ou sobre a incomensurabilidade de segmentos de reta. Além disso, favoreceu um princípio de reflexão, uma atitude crítica a respeito de orientações pedagógicas – não apenas a atitude que examina o material para compreender os conteúdos indicados ou as estratégias sugeridas, mas a que toma posse da liberdade de esquadrinhar, avaliar, concordar, discordar, sugerir, aceitar, recusar, modificar, decidir. Contudo, é necessário acrescentar que outros aspectos precisariam ser abordados em nosso estudo, ou poderiam ser enfatizados em outros processos de formação com este grupo, no Observatório. Nossa pesquisa não incluiu, por exemplo, a observação dos resultados, na prática do professor. Não acompanhamos um processo de aplicação de atividades em sala de aula, a fim de observar até que ponto as ideias discutidas em nosso experimento, quando postas em prática, seriam discutidas e analisadas pelo próprio professor, num processo de reflexão interior, pessoal e também analisadas e discutidas com outros professores. Também não avaliamos a reflexão que estes professores fariam sobre sua prática, conforme era antes de nosso experimento e como passou a ser, depois disso. Assim, um aprofundamento desta pesquisa poderia envolver a aplicação de parte desta sequência a classes dos anos finais do Ensino Fundamental, a fim de verificar se as discussões realizadas durante nosso estudo também ocorrem com alunos do Ensino Fundamental. Em nosso caso, optamos por oferecer ao grupo de professores uma formação direcionada para a construção de noções específicas do conteúdo “números racionais e irracionais”, em virtude dos resultados apresentados na fase diagnóstica. É certo também que, durante a discussão e a reflexão sobre as orientações curriculares para a abordagem dos números irracionais, no 9º ano do Ensino 258 Fundamental, alguns conceitos foram retomados e clarificados. Todavia, dado que se trata de um processo de formação continuada de professores, os aspectos do conteúdo específico e didáticos deveriam, necessariamente, ser discutidos concomitantemente e não separadamente. Outro ponto a ser considerado diz respeito ao tempo de duração de uma formação que pretenda propor reflexões e discussões sobre esse tema. Nossa experiência com este grupo mostrou que, em virtude da diversidade de noções relacionadas a esse conteúdo, dos conhecimentos que devem ser mobilizados para a sua compreensão, dos diversos aspectos que precisam ser destacados, tais como: interação entre campos distintos, formas de abordagem, articulação entre diferentes componentes da atividade matemática (algorítmico, formal, intuitivo), esse assunto não poderia ser trabalhado todo de uma vez, em um único módulo. Ou seja, este trabalho precisaria ter uma continuidade, em que alguns aspectos fossem retomados, como o conceito de incomensurabilidade de grandezas, a relação entre números irracionais e as grandezas incomensuráveis, a enumerabilidade do conjunto Q e a não enumerabilidade dos conjuntos dos irracionais e dos reais. Essa retomada poderia favorecer a ampliação e o aprofundamento desse tema, por meio de discussões, por exemplo, sobre tipos distintos de infinito e a completude da reta, sobre os Cortes de Dedekind ou os Intervalos Encaixantes. Esses resultados mostram, além disso, que o conceito de número irracional, em toda a sua riqueza, precisaria ser tratado ao longo das diferentes etapas da escolaridade e não em um único módulo de formação continuada. Consideramos importante ressaltar também que não foi aplicado um instrumento de coleta de dados destinado a computar o grau de avanço de cada professor, no que se refere ao conteúdo específico tratado neste estudo. Tampouco, no que diz respeito às suas concepções individuais sobre aspectos pedagógicos e curriculares desse conteúdo. Ou seja, tendo sido respeitados o ritmo e o potencial de cada um, o grupo avançou – como grupo. No que se refere à segunda questão de pesquisa, acrescentaríamos a todas as considerações feitas anteriormente que, em nosso ponto de vista, os cursos de formação deveriam, necessariamente, oferecer aos futuros professores oportunidades que garantissem um domínio de noções concernentes aos números 259 irracionais, sob o ponto de vista formal, para que esses futuros professores pudessem justificar para os alunos, não apenas a validade de ideias que são postas, mas também a presença dos números irracionais no currículo de Matemática. A abordagem de noções relativas aos racionais e aos irracionais exposta no capítulo 3, permite a compreensão das razões pelas quais foram elaboradas e organizadas, dessa maneira, as questões que alimentaram as discussões do grupo, podendo constituir material de reflexão em processos de formação inicial e/ou continuada de professores. Conforme foi dito, o encadeamento dessas ideias foi projetado, ao longo de todo o experimento, tendo em conta os resultados parciais observados, os resultados de pesquisas anteriores e as orientações curriculares relativas aos números irracionais, sob a expectativa de que o grupo avançasse em relação às dificuldades observadas na fase diagnóstica. Por sua vez, as experiências vivenciadas pelos professores, as reflexões resultantes da proposta das atividades, a elaboração das argumentações e dos questionamentos pelos professores serviram-nos como norte para a sistematização e para a formulação do texto que compõe o capítulo 3. Assim, a proposta de análise desse material no interior de grupos de formação de professores poderia favorecer a percepção de outras possibilidades de organizar a abordagem dos números irracionais na Educação Básica, a depender do interesse e do nível de compreensão dos alunos e também poderia promover a reflexão sobre a importância de integrar os aspectos intuitivo, algorítmico e formal no estudo desse conteúdo. Além disso, os impasses, os obstáculos que permeiam o processo de aprendizagem do conceito de número irracional também deveriam ser objetos de discussão nos cursos de formação. As pesquisas desenvolvidas sobre os irracionais consistiriam em fontes ricas de dados para essa discussão e também poderiam auxiliar na investigação das causas dos erros, dos equívocos e das pré-concepções trazidas pelos alunos, em decorrência de estudos anteriores. Da mesma forma, o futuro professor também precisaria vivenciar situações que permitissem a experiência das dificuldades vividas pelos estudantes, quando estes começam o estudo dos números irracionais. Isso permitiria ao futuro professor a percepção e a 260 compreensão dessas dificuldades e a reflexão sobre estratégias que poderiam auxiliar um aluno a enfrentá-las e a superá-las. Pensamos ainda que os cursos de formação deveriam oferecer oportunidades de avaliação de indicações curriculares a respeito da abordagem dos números irracionais, com a finalidade de discutir sobre a distribuição desse conteúdo no Currículo de Matemática e também de iniciar nos futuros professores a prática da reflexão e da análise crítica de recomendações pedagógicas relativas a esse conteúdo. Finalmente, em virtude de todo o exposto, é nosso ponto de vista que, dada a importância dos números irracionais para a compreensão da ampliação dos campos numéricos, seu estudo não pode receber uma atenção descuidada, que enfatize um único aspecto (por exemplo, o algorítmico), sob pena de provocar a elaboração de uma concepção desses números despida de significado. Isto é, a abordagem dos irracionais não pode ser feita por meio de um trabalho aligeirado, fraco, ainda que se considere toda a complexidade inerente à construção desse conhecimento. Refletindo sobre a questão posta por Sirotic (2004), a respeito das perdas que poderiam advir do fato de um estudante não haver ouvido sequer falar dos números irracionais, até a universidade, pensamos que se se pretende apresentar, aos alunos, a Matemática como estrutura logicamente organizada – realização do homem, que resulta do trabalho, do enfrentamento de dificuldades e do tempo despendido nesse esforço – e não como um apanhado de fragmentos esparsos... desconectados, então, a transição dos racionais para os reais não pode ser feita sem que se diga dos números irracionais, de seus significados numérico e geométrico e, sobretudo, de sua necessidade e importância para a solução do problema das medidas de grandezas incomensuráveis. Se é necessário que se faça a introdução dos números reais desde o Ensino Fundamental, visto que uma parte dos conteúdos estudados nessa etapa escolar se constrói no campo real, assim como todo o conteúdo do Ensino Médio, como falar, por exemplo, sobre a correspondência biunívoca entre o conjunto dos números reais e o conjunto dos pontos da reta, sem ao menos ter iniciado uma discussão sobre a completude da reta, ainda que isso ocorra em caráter intuitivo? Como promover essa discussão, sem antes introduzir noções relacionadas aos irracionais? 261 Ainda a esse respeito, consideramos necessário reiterar o que foi dito anteriormente, sobre a importância de distribuir o estudo dos números irracionais não apenas nos dois últimos anos do Ensino Fundamental, mas também ao longo do Ensino Médio e nos cursos de Licenciatura em Matemática, para que se deem a consolidação e a ampliação desse conhecimento em etapas escolares subsequentes, nas quais os estudantes certamente já desenvolveram outras habilidades necessárias à compreensão e ao aprofundamento desse assunto. Nós, como parte do grupo Desempenhamos um duplo papel, ao longo deste experimento: apresentando – como pesquisadora – uma proposta de trabalho a ser experimentada e discutida com os professores e, ao mesmo tempo, colocando-nos diante do grupo, explicitamente, como um de seus participantes, visto que, como eles, exercemos a profissão docente, trabalhando com alunos da Educação Básica. Em nossa avaliação, esta característica do grupo se constituiu como ponto fundamental para a realização de nosso estudo, porque todos aprendemos uns com os outros. Despimo-nos, por assim dizer, das cerimônias e expusemos nossas fragilidades, nossas dúvidas e inseguranças em relação à experiência difícil de ensinar especificamente o conteúdo objeto de nossas discussões, que é o conceito de número irracional. Constituindo-nos como um grupo de estudos: pesquisador e professores – iguais – avançamos juntos. De certa forma, o que se principiou entre os professores sujeitos desta pesquisa foi o cultivo da reflexão como uma prática social, por meio da qual, segundo Zeichner (1993), em grupos de estudo como este, os professores podem apoiar o crescimento, uns dos outros. A esse respeito, o mesmo autor argumenta que o crescimento do professor fica limitado, quando se considera o seu desempenho como atividade que se realiza isoladamente, em consequência do que, os professores passam a enxergar os seus problemas como apenas seus, sem relação com os problemas dos outros professores. 262 Essa observação feita por Zeichner nos ajudou a interpretar as questões e os argumentos postos pelos professores como manifestações de seu crescimento como grupo. Sem que houvesse perda de individualidade (pois, entre si, os professores reconheciam e respeitavam diferenças de concepções), a apresentação de opiniões por um participante passou, ao longo do experimento, a ser aceita (após a discussão) como representação das ideias do grupo inteiro, eliminando assim qualquer sentimento de exposição diante do grupo, ou de julgamento por parte do mesmo. Analisando sob essa perspectiva, acreditamos que este estudo promoveu/acentuou, neste grupo de professores, a prática reflexiva individual e coletiva, concernente aos conhecimentos do conteúdo específico, pedagógico e curricular, relativos aos números irracionais. 263 Referências Bibliográficas BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Título original: La Formation de l'esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de la connaissance. Tradução de: La Formation de l'esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de Ia connaissance ISBN 85-85910-11-7. Disponível em http://groups.com.br/digitalsource. Acesso em 22/maio/2012. BALL, Deborah Loewenberg; THAMES, Mark Hoover; PHELPS, Geoffrey. Content knowledge for teaching: what makes it special? In: Journal of Teacher Education, November/December 2008, vol. 59. BOYER, Carl B. História da Matemática. Tradução Elza F. Gomide. São Paulo: Edgard Blücher, 1996. BRASIL. 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São Paulo, SEE, 2008. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino fundamental – 7ª série/8º ano, volume 4/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino fundamental – 8ª série/9º ano, volume 1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino fundamental – 8ª série/9º ano, volume 4/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino médio – 1ª série, volume 3/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino médio – 1ª série, volume 4/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino médio – 2ª série, volume 1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino médio – 3ª série, volume 1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do aluno: matemática, ensino médio – 3ª série, volume 2/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. 269 _____ Caderno do aluno: matemática, ensino médio – 3ª série, volume 3/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do professor: matemática, ensino fundamental – 7ª série, volume 1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do professor: matemática, ensino fundamental – 7ª série/8º ano, volume 4/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do professor: matemática, ensino fundamental – 8ª série, 1º bimestre/ Rogério Ferreira da Fonseca. - São Paulo: SEE, 2008. _____ Caderno do professor: matemática, ensino fundamental – 8ª série/ 9º ano, volume 1/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do professor: matemática, ensino fundamental – 8ª série, volume 3/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Caderno do professor: matemática, ensino fundamental – 8ª série, volume 4/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini. São Paulo, SEE, 2009. _____ Currículo do Estado de São Paulo: Matemática e suas tecnologias/ Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; coordenação de área, Nilson José Machado. – São Paulo: SEE, 2010. _____Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Matemática/Coord. Maria Inês Fini. – São Paulo: SEE, 2008. SHULMAN, Lee S. 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Que estratégias você considera que um professor deveria utilizar, para propiciar a alunos de 8ª série do Ensino Fundamental, a construção do significado de número irracional? 3. Que dificuldades os alunos apresentam, em relação aos números irracionais ou à incomensurabilidade de grandezas? 4. Você considera importante/indispensável introduzir o conceito de número irracional no Ensino Fundamental? Por quê? 5. Você acha importante incluir nas aulas de Matemática uma abordagem geométrica do conceito de número irracional? Como seria essa abordagem? 6. O Caderno do Professor (2008) destinado à 7ª série/8º ano do Ensino Fundamental sugere que o professor inicie o estudo do conceito de número irracional, propondo a seguinte questão: “É sempre possível representar a razão de dois segmentos quaisquer com um número racional? Como isso pode ser feito? (Para quaisquer segmentos AB e CD é sempre possível , ou seja, AB = , com p e q ”. Mais adiante, os autores fazem as seguintes considerações: “É muito provável que os alunos, nesse momento, afirmem que ‘é sempre possível representar a razão de dois segmentos quaisquer com um número racional’, principalmente pelo fato de poder subdividir a Unidade quantas vezes quiserem; em outras palavras, eles poderão utilizar submúltiplos cada vez menores” (p. 13). (A) Como você avalia essa abordagem do conceito de número irracional? (B) Com que finalidade um professor poderia propor essa questão? (C) Você já experimentou iniciar uma abordagem do conceito de número irracional de acordo com essa sugestão? Que dificuldades os alunos demonstraram, ao responder a essa questão? 7. O estudo do conceito de número irracional, em suas aulas, inclui uma discussão a respeito da incomensurabilidade de grandezas? 8. Que estratégias um professor poderia utilizar para auxiliar os alunos de 8ª série a perceber a densidade do conjunto dos números racionais na reta numérica? 9. (A) As seguintes afirmações foram feitas por alunos de 4ª a 8ª série100. a) Os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5. 100 As afirmações constantes desta atividade que constituíram objeto de análise por parte dos sujeitos de nossa pesquisa, foram construídas com dados emprestados dos resultados do estudo desenvolvido por Santos (1995, p.130-131). 272 b) Os números que vêm depois de ½ são 2/2, 3/2, 4/2, 5/2, ... c) Os sucessores de 2/3; 0,5; 3,69 são, respectivamente: 3/3; 0,6 e 3,70. d) O sucessor do número 3,4444... é 3,44444... e) O sucessor do número 3,4444... é 3,5555... f) O sucessor do número 3,4444... é 3,5. Analise e comente cada uma dessas afirmações. (B) Em resposta a uma questão que solicitava a inserção de um número entre 0,08 e 0,081, foram observados os resultados: 0,09 (alunos de 5ª/6ª séries) 0,080 (alunos de 7ª/8ª séries) Analise e comente as respostas apresentadas por esses alunos. 10. Analise e comente cada uma das afirmações abaixo. “53/83 é irracional porque não há padrão no decimal 0,63855421687. 53/83 é racional porque ele termina (a calculadora mostra 0,63855421687). 53/83 pode ser racional ou irracional – eu não posso ver se os dígitos irão se repetir porque muito poucos dígitos são mostrados. Eles podem se repetir ou não. Não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente. Os dígitos poderiam terminar em um milhão de casas decimais ou eles poderiam começar a repetir depois da milionésima casa. É possível que um número seja racional e irracional ao mesmo tempo. Por exemplo, há frações que têm casas decimais infinitas e não periódicas, mesmo que elas sejam representadas por a/b”. 11. Para a questão: “É possível encontrar a localização exata de apresentadas as seguintes respostas: (I) (II) (III) (IV) (V) (VI) sobre a reta numérica?” foram Deve ser arredondado antes de ser localizado sobre a reta. É impossível, porque sua representação decimal é 3,605551275. É impossível, porque sua expansão decimal possui infinitos dígitos. É impossível, porque nenhum número irracional tem localização exata sobre a reta. É possível apenas indicar a localização aproximada. É possível apenas indicar um intervalo em que esse número está localizado sobre a reta. Quais respostas você classificaria como corretas? Por quê? 273 FASE 2 (Intervenção) SEQUÊNCIA DE ATIVIDADES ATIVIDADE. Retomada do item 10 do questionário: Analise e comente cada uma das afirmações abaixo. 53/83 é irracional porque não há padrão no decimal 0,63855421687. 53/83 é racional porque ele termina (a calculadora mostra 0,63855421687). 53/83 pode ser racional ou irracional – eu não posso ver se os dígitos irão se repetir porque muito poucos dígitos são mostrados. Eles podem se repetir ou não. Não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente. Os dígitos poderiam terminar em um milhão de casas decimais ou eles poderiam começar a repetir depois da milionésima casa. É possível que um número seja racional e irracional ao mesmo tempo. Por exemplo, há frações que têm casas decimais infinitas e não periódicas, mesmo que elas sejam representadas por a/b. ATIVIDADE 1 Usando uma calculadora, se você dividir 1 por 253, o visor mostrará o valor 0,00395256917. Esse número é racional ou irracional? É possível localizá-lo sobre a reta numérica? Justifique sua resposta. ATIVIDADE 2 (A). Explique como você faria para localizar os números abaixo sobre a reta numérica: ; ; - 0,6; 0,123456789; ; 0,77777...; 0 0,1494949... r (B). Suponha que se mantenha a regularidade observada na parte decimal do número 1,141141114111141... Você classificaria esse número como racional ou irracional? Justifique. 274 ATIVIDADE. Retomada do item 9 do questionário (A). As seguintes afirmações foram feitas por alunos de 4ª a 8ª série. Os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5. Os números que vêm depois de ½ são 2/2, 3/2, 4/2, 5/2, ... Os sucessores de 2/3; 0,5; 3,69 são, respectivamente: 3/3; 0,6 e 3,70. O sucessor do número 3,4444... é 3,44444... O sucessor do número 3,4444... é 3,5555... O sucessor do número 3,4444... é 3,5. Analise e comente cada uma dessas afirmações. (B). Em resposta a uma questão que solicitava a inserção de um número entre 0,08 e 0,081, foram observados os resultados: 0,09 (alunos de 5ª/6ª séries) 0,080 (alunos de 7ª/8ª séries) Analise e comente as respostas apresentadas por esses alunos. ATIVIDADE 3 a) b) c) Indique cinco números que estejam localizados entre 6,25631 e 6,25632, na reta numérica. Indique cinco números racionais que estejam entre os números racionais 6,256 e 6,2561, na reta numérica. Indique cinco números que estejam localizados entre 6,26 e 6,2562, na reta numérica. ATIVIDADE 4 a) b) c) d) e) f) g) Quantos números racionais existem entre dois números racionais quaisquer? Existem números racionais entre 0,999888... e 0,9999...? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Existem números racionais entre 0,888999... e 0,9999...? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Existem números racionais entre 0,9999 e 1? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Existem números racionais entre 0,9999... e 1 ? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Quantos números racionais seria possível localizar no intervalo ]0,1[? E quantos números irracionais? De todos os números maiores do que 1, qual é o que está mais próximo de 1, na reta numérica? 275 ATIVIDADE 5 (A) O lado de cada um dos quadrados que compõem o retângulo PQRS tem medida u. Construa um quadrado cuja área seja igual à área desse retângulo. Q P u S u (B) Encontre a localização exata dos números R e 0 e sobre a reta numérica. r (C) Utilizando esse mesmo procedimento, quantos números irracionais poderiam ser localizados sobre a reta numérica? (D) Quais são os conteúdos envolvidos nesta atividade, ou que conhecimentos são necessários para o desenvolvimento desta atividade? ATIVIDADE. Retomada do item 11 do questionário Para a questão: “É possível encontrar a localização exata de apresentadas as seguintes respostas: (I) (II) (III) (IV) (V) (VI) sobre a reta numérica?” foram Deve ser arredondado antes de ser localizado sobre a reta. É impossível, porque sua representação decimal é 3,605551275. É impossível, porque sua expansão decimal possui infinitos dígitos. É impossível, porque nenhum número irracional tem localização exata sobre a reta. É possível apenas indicar a localização aproximada. É possível apenas indicar um intervalo em que esse número está localizado sobre a reta. Quais respostas você classificaria como corretas? Por quê? ATIVIDADE 6 Classifique as afirmações abaixo em verdadeiras (V) ou falsas (F). Se a afirmação for verdadeira, justifique sua resposta e se for falsa, apresente um contraexemplo. a) b) c) d) e) f) g) a soma de dois números racionais é sempre racional. a soma de dois números irracionais é sempre irracional. o produto de dois números irracionais é sempre irracional. o quociente de dois números irracionais é sempre irracional. a soma de um número racional com um irracional é sempre irracional. o produto de um número racional por um irracional é sempre irracional. o quociente entre um número irracional e um número racional é sempre um número irracional. 276 ATIVIDADE 7 Considere o quadrado construído na ATIVIDADE 5. (A) Que relação pode ser estabelecida entre o lado e a diagonal desse quadrado? (B) O lado e a diagonal desse quadrado são segmentos comensuráveis ou incomensuráveis? Por quê? (C) Como um professor poderia explicar aos seus alunos do Ensino Fundamental, o que são segmentos comensuráveis e o que são segmentos incomensuráveis? ATIVIDADE. Retomada do item 6 do questionário O Caderno do Professor (2008) destinado à 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental sugere que o professor inicie o estudo do conceito de número irracional, propondo a seguinte questão: “É sempre possível representar a razão de dois segmentos quaisquer com um número racional? Como isso pode ser feito? (Para quaisquer segmentos AB e CD é sempre possível seja, , com p e q e , ou ?) ............................................................................................................... É muito provável que os alunos, nesse momento, afirmem que ‘é sempre possível representar a razão de dois segmentos quaisquer com um número racional’, principalmente pelo fato de poder subdividir a Unidade quantas vezes quiserem; em outras palavras, eles poderão utilizar submúltiplos cada vez menores” (p. 13). (A) Como você avalia essa abordagem para o conceito de número irracional? (B) Com que finalidade um professor poderia propor essa questão? (C) Você já experimentou iniciar uma abordagem do conceito de número irracional de acordo com essa sugestão? Que dificuldades os alunos demonstraram, ao responder a essa questão? ATIVIDADE 8 O número é irracional. Você pode provar que essa afirmação é verdadeira? 277 QUESTÕES RELATIVAS AOS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO PROFESSOR 1. Que conhecimentos você considera necessários e/ou indispensáveis ao professor, para introduzir o conceito de número irracional na 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental, sob uma perspectiva que não seja voltada apenas para questões que envolvem operações com radicais, mas que favoreça ao aluno também uma percepção inicial da importância da argumentação formal no tratamento desse conteúdo? 2. Tendo em vista a complexidade que envolve o conceito de número irracional, não é possível restringir seu estudo à 8ª série. A seu ver, que conhecimentos o professor precisaria dominar para propiciar aos seus alunos um avanço na compreensão do conceito de número irracional ao longo do Ensino Médio? 3. Que conteúdos, que atividades, que práticas adotadas nos cursos de graduação você avalia como indispensáveis, ou que práticas deveriam ser introduzidas nos cursos de graduação para preparar um futuro professor para a tarefa de ajudar seus alunos na construção de noções concernentes aos números irracionais e à incomensurabilidade de grandezas? QUESTÕES RELATIVAS AOS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO ALUNO DO ENSINO FUNDAMENTAL 1. Você considera importante/indispensável introduzir o conceito de número irracional no Ensino Fundamental? Por quê? Se sua resposta for negativa, que fase da escolaridade você considera mais adequada para a introdução desse conteúdo? Haveria alguma perda significativa, caso os estudantes desconhecessem esse conteúdo até chegar à universidade? Explique. 2. Em sua opinião, o que um aluno do Ensino Fundamental, no final da 8ª série/9º ano, precisaria, de fato, saber sobre números irracionais, para ser capaz de compreender os conteúdos que serão desenvolvidos ao longo do Ensino Médio? Explicite as noções que você considera indispensáveis para a compreensão de outros conteúdos (especifique os conteúdos). 3. (A) Você acha relevante incluir nas aulas de Matemática uma abordagem geométrica do conceito de número irracional? Que tipo de abordagem? (B) A seu ver, essa abordagem seria adequada/viável, na 8ª série? Por quê? ATIVIDADE 9 Considere dois pontos A e B, muito, muito próximos, marcados sobre a reta numérica. Quantos números racionais existem entre A e B? Reduzindo ainda mais a distância entre A e B, quantos números racionais existem entre A e B? Agora, considere o intervalo [0, 1]. Suponha que eu coloque a ponta do lápis, aleatoriamente, sobre um ponto qualquer desse intervalo. Qual é a probabilidade de ser marcado um ponto racional? Justifique sua resposta. 278 Outras questões propostas ao grupo: NÚMEROS IRRACIONAIS/GRANDEZAS INCOMENSURÁVEIS 1. Prove que é um número irracional. 2. Assinale a afirmação verdadeira. (A) A expansão decimal de 10/17 é infinita e periódica. (B) A expansão decimal de (C) = 1,9999... < 2 (D) é um número irracional. 101 (E) 3. é infinita e periódica. é um número racional. Sejam x e y números reais dados, representados por x = 3,999... = e y = 4. É correto afirmar que a diferença y – x 4. (A) é estritamente positiva. (B) é aproximadamente igual a zero, mas é diferente de zero. (C) é igual a zero. (D) tende a zero, mas nunca é igual a zero. (E) é variável, mas se iguala a zero no infinito.102 O segmento de reta PQ e o segmento de reta RS são comensuráveis se existe um segmento de reta u, tal que as medidas de PQ e RS, tomando u como unidade, são números inteiros positivos. Desse modo, são comensuráveis (A) a diagonal de um quadrado de lado 4 com o seu lado. (B) a altura de um triângulo equilátero de lado 1 com o seu lado. (C) a mediana de um triângulo equilátero de lado 3 com o seu lado. (D) um segmento cujo comprimento é igual ao de uma circunferência de raio 10 com o seu raio. (E) a diagonal de um retângulo de lados 2,5 e 1,2 com qualquer um de seus lados. 5. Descreva um processo que pode ser apresentado a um aluno de 7ª série, que não seja a aplicação imediata de uma fórmula que permita calcular inteiros a e b, b 0, tais que 103 101 QUESTÃO PROPOSTA EM CONCURSO PARA ADMISSÃO DE PROFESSORES. 102 PROVA: SEE/SP. PROCESSO DE PROMOÇÃO POR MERECIMENTO DO QUADRO DE MAGISTÉRIO: PEB II; QUESTÃO 21 (12% DE ACERTOS); ITEM CONSIDERADO DIFÍCIL. 103 QUESTÃO PROPOSTA EM PROVA DE SELEÇÃO DE CANDIDATOS AO MESTRADO PROFISSIONAL (2003.PUC/SP) 279 6. Um aluno questionou seu professor de matemática acerca do motivo pelo qual ele havia obtido um resultado inesperado em sua calculadora, quando tentava explicar o significado da para uma colega de classe. O aluno havia digitado as teclas 2 e , nessa ordem, e obteve o número 1,4142135 como resultado. A seguir, ele multiplicou esse número por ele próprio e, para sua surpresa, não obteve o número 2 como era esperado, mas sim um número menor, 1,9999998, o que causou estranheza a ele e à sua colega. Uma explicação correta para a dúvida do aluno é (A) A máquina está quebrada. (B) Apenas alguns computadores são capazes de exibir toda a representação decimal de (C) A representação decimal de um número irracional é infinita, por isso a calculadora aproximou . por um número racional, no caso, menor. (D) Os resultados fornecidos pelas calculadoras sempre devem ser arredondados para mais, por conta dos erros de truncamento. (E) O cálculo de raízes quadradas por meio de calculadoras só deve ser utilizado quando o número alvo do cálculo for um quadrado perfeito.104 7. AVALIAÇÃO DO MÓDULO: a) Ao longo deste módulo, quais aspectos você considera importantes para a abordagem do conceito de número irracional na Educação Básica? E quais aspectos você considera desnecessários? b) Do que foi discutido durante este módulo, o que você considera possível aplicar em suas aulas? Em que sentido as discussões realizadas durante este módulo poderiam mudar sua prática em sala de aula, para ajudar os alunos na construção desse conhecimento? c) Esta sequência propiciou algum avanço, em relação aos seus conhecimentos anteriores, no que se refere aos números irracionais e à incomensurabilidade de grandezas? d) Faça outras considerações que você julgue necessárias a respeito do trabalho desenvolvido pelo grupo, ao longo deste módulo. FASE 3 – ANÁLISE DE ORIENTAÇÕES CURRICULARES Análise de orientações da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para a abordagem do conceito de número irracional no Ensino Fundamental ATIVIDADE 1 Considerando que as sugestões apresentadas nos Cadernos não têm o propósito de esgotar um conteúdo, o professor pode selecionar, complementar ou enriquecer as atividades, adaptando-as ao nível de interesse e de desenvolvimento da classe e segundo o que ele próprio considera importante e necessário que o aluno aprenda. Ou seja, não existe uma única abordagem eficaz, não há apenas um caminho para a construção de um conhecimento. Assim, tendo em vista o que foi discutido ao longo dos encontros anteriores, analise de forma geral, as 104 PROVA: SEE/SP. PROCESSO DE PROMOÇÃO POR MERECIMENTO DO QUADRO DE MAGISTÉRIO: PEB II; QUESTÃO 23 (88% DE ACERTOS); ITEM CONSIDERADO FÁCIL. 280 atividades propostas no Caderno do Professor, do 1º bimestre da 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental (p. 18 a 39)105, para a introdução do conjunto dos números irracionais. ATIVIDADE O que você considera importante/indispensável que o aluno domine sobre o conjunto dos números irracionais, ao término do Ensino Fundamental, para compreender os conteúdos que serão desenvolvidos durante o Ensino Médio e, eventualmente, na universidade? Justifique. É possível desenvolver esse conteúdo na 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental? Justifique. ELABORAÇÃO DE UM ÚNICO ROL DE CONTEÚDOS QUE ATENDA ÀS INDICAÇÕES FEITAS PELOS GRUPOS DE PROFESSORES O que o grupo considera importante/indispensável que o aluno aprenda sobre o conjunto dos números irracionais, durante a 8ª série do Ensino Fundamental, para depois compreender os conteúdos que serão desenvolvidos durante o Ensino Médio? É possível desenvolver esse conteúdo na 8ª série do Ensino Fundamental? 105 O material submetido à análise do grupo de professores, extraído do Caderno do Professor destinado à 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental está disponível no Anexo 4. 281 ANEXO 2 VERSÃO INICIAL DOS INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS (modificada ao longo da fase de Intervenção) ATIVIDADE 1 Usando uma calculadora, se você dividir 1 por 253, o visor mostrará o valor 0,00395256917. Esse número é racional ou irracional? É possível localizá-lo sobre a reta numérica? Justifique sua resposta. Item 10 do questionário: (discussão) Analise e comente cada uma das afirmações abaixo. “53/83 é irracional porque não há padrão no decimal 0,63855421687. 53/83 é racional porque ele termina (a calculadora mostra 0,63855421687). 53/83 pode ser racional ou irracional – eu não posso ver se os dígitos irão se repetir porque muito poucos dígitos são mostrados. Eles podem se repetir ou não. Não há forma de dizer se 53/83 é racional – exceto se você realmente fizer a divisão que pode seguir indefinidamente. Os dígitos poderiam terminar em um milhão de casas decimais ou eles poderiam começar a repetir depois da milionésima casa. É possível que um número seja racional e irracional ao mesmo tempo. Por exemplo, há frações que têm casas decimais infinitas e não periódicas, mesmo que elas sejam representadas por a/b”. ATIVIDADE 2 Explique como você faria para localizar os números abaixo sobre a reta ; ; - 0,6; 0,123456789; ; 0,77777...; numérica: 0,1494949... 0 r ATIVIDADE 3 Suponha que se mantenha 1,141141114111141... a regularidade observada na parte decimal do número Você classificaria esse número como racional ou irracional? Justifique. É possível encontrar localização exata desse número sobre a reta numérica? Justifique sua resposta. ATIVIDADE 4 a) b) Indique cinco números que estejam localizados entre 6,25631 e 6,25632, na reta numérica. Indique cinco números racionais que estejam entre os números racionais 6,2562 e 6,25621, na reta numérica. 282 ATIVIDADE 5 a) b) c) d) e) f) Quantos números racionais existem entre dois números racionais quaisquer? Existem números racionais entre 0,9998... e 0,9999...? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Existem números racionais entre 0,9999 e 1? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Existem números racionais entre 0,9999... e 1 ? Se sua resposta for afirmativa, dê três exemplos. Quantos números racionais seria possível localizar no intervalo ]0,1[ ? E quantos números irracionais? De todos os números maiores do que 1, qual é o que está mais próximo de 1, na reta numérica? ATIVIDADE 6 106 (A) As seguintes afirmações foram feitas por alunos de 4ª a 8ª série . a) Os números que vêm depois de ½ são 1/3, 1/4, 1/5. b) Os números que vêm depois de ½ são 2/2, 3/2, 4/2, 5/2, ... c) Os sucessores de 2/3; 0,5; 3,69 são, respectivamente: 3/3; 0,6 e 3,70. d) O sucessor do número 3,4444... é 3,44444... e) O sucessor do número 3,4444... é 3,5555... f) O sucessor do número 3,4444... é 3,5. Analise e comente cada uma dessas afirmações. (B) Em resposta a uma questão que solicitava a 0,08 e 0,081, foram observados os seguintes resultados: 0,09 (alunos de 5ª/6ª séries) 0,080 (alunos de 7ª/8ª séries) inserção de um número entre Analise e comente as respostas apresentadas por esses alunos. A seguinte atividade seria proposta no final do encontro, como tarefa a ser realizada ao longo dos próximos quinze dias: Se eu retirar aleatoriamente um número do intervalo ]0,1[, qual seria a probabilidade de retirar um número racional? ATIVIDADE 7 Construa um quadrado cuja área seja igual à área do retângulo abaixo. 106 As afirmações constantes desta atividade que constituíram objeto de análise por parte dos sujeitos de nossa pesquisa, foram construídas com dados emprestados dos resultados do estudo desenvolvido por Santos (1995, p.130-131). 283 ATIVIDADE 8 Para a questão: “É possível encontrar a localização exata de apresentadas as seguintes respostas: (I) (II) (III) (IV) (V) (VI) sobre a reta numérica?” foram Deve ser arredondado antes de ser localizado sobre a reta. É impossível, porque sua representação decimal é 3,605551275. É impossível, porque sua expansão decimal possui infinitos dígitos. É impossível, porque nenhum número irracional tem localização exata sobre a reta. É possível apenas indicar a localização aproximada. É possível apenas indicar um intervalo em que esse número está localizado sobre a reta. Quais respostas você classificaria como corretas? Por quê? ATIVIDADE 9 O número é irracional. Você pode provar que essa afirmação é verdadeira? 284 ANEXO 3 A CONCEITUAÇÃO DE NÚMERO, SEGUNDO CONWAY (2001)107 Apresentamos a seguir, uma ideia inicial da constituição dos conjuntos numéricos, segundo a Teoria construída por Conway (2001), que foi objeto de estudo de Fonseca (2010). O sistema de números definido por Conway é denominado Conjunto dos Números Surreais e abrange tanto números reais, como complexos, transfinitos e infinitesimais. A ideia de Conway para conceituar números é uma generalização do método de cortes de Dedekind, considerando-se duas classes de números: E (classe da esquerda) e D (classe da direita), tais que nenhum elemento da classe E seja maior ou igual a algum elemento da classe D. Para Conway, um número x é um conjunto {E|D}, em que E e D são classes de números já conhecidos – a construção de um número x se faz por recorrência. O primeiro número a ser construído é o zero: números. Por exemplo, = 1; = 2; = 0 e a partir dele, são construídos os demais = 3 e assim por diante. Na teoria de Conway (2001), um número é um jogo. Dentre os jogos que podem ser utilizados para a construção de números, Fonseca (2010) escolheu uma versão dos jogos Hackenbush, composta por peças azuis e brancas sobrepostas, sendo uma delas conectada a uma linha horizontal. 1. As Regras do jogo Há apenas dois jogadores (A e B) e um deles é o ganhador; O número de jogadas é finito; São consideradas as “jogadas ótimas”, ou seja, aquelas que maximizam as chances de um jogador. O jogador A só pode retirar peças azuis e o jogador B só pode retirar peças brancas. Os jogadores se alternam, para jogar, retirando uma única peça. Quando uma peça é retirada, todas as peças sobrepostas a ela são apagadas. O primeiro jogador que não tiver mais peças de sua cor, para retirar, perde o jogo. Exemplos: (a) (b) (c) No jogo (a) só há peças azuis, logo, apenas o jogador A pode retirar peças. Assim, independentemente de quem comece o jogo, o jogador A sempre ganha. No jogo (b), considerando-se apenas as “jogadas ótimas”: A começa o jogo, retirando a peça azul superior; B retira a peça branca superior; A retira a peça azul inferior; B retira a peça branca inferior; A não tem mais peças para retirar: A perde o jogo. Se B começa o jogo, B perde o jogo. Conclusão: no jogo (b) quem começa o jogo perde a partida. No jogo (c): 107 Ver Fonseca, 2010, p.21-41. 285 A começa o jogo, retirando a peça azul mais distante da linha horizontal; B retira a única peça branca; A retira a peça azul conectada à linha horizontal; B não tem mais peças para retirar: B perde o jogo. Se B começa o jogo, retirando a única peça branca, ainda sobra a peça azul encostada à linha horizontal para o jogador A retirar. Logo, B perde o jogo. Conclusão: no jogo (c) o jogador A sempre ganha, independentemente de quem comece o jogo. 2. Jogo zero O jogo zero é definido pelo jogo em que: quem começa o jogo perde a partida. O jogo (b) exemplificado acima é um jogo zero. 3. Relação de ordem Um jogo é positivo se A vence, independentemente de quem comece a partida. O jogo (c) exemplificado acima é positivo. Um jogo é negativo se B vence, independentemente de quem comece a partida. 4. Jogos associados aos números inteiros Na representação de um número na forma: {E|D} = x, o conjunto E à esquerda da barra significa o número de jogadas possíveis para o jogador A e, da mesma forma, o conjunto D à 0 direita da barra indica o número de jogadas possíveis para B. Assim, o número zero indicado da forma nem para o jogador B. significa que não há jogadas possíveis para o jogador A -1 Os exemplos que seguem ilustram a construção de números inteiros apresentada em Fonseca (2010, p. 26): (a) (b) (c) 1 1 0 1 2 0 0 0 -1 2 1 1 0 00 2 21 (d) 0 -1 -2 -1 -1 0 0 1 -2 Jogo (a): Possíveis etapas do jogo O jogador A ganha sempre, independentemente de quem comece o jogo; logo, o jogo é positivo. A possibilidade de B retirar uma peça é nula. Logo, a classe D é vazia. Construção (passo a passo) das classes de números E(esquerda) e D(direita) correspondentes ao número 1 { | } = número positivo = número positivo Quando o jogador A retira a única peça azul, o jogo se reduz ao jogo zero (é o número indicado à direita da peça azul retirada por A). Esse número zero é o elemento da classe E (porque a peça foi retirada pelo jogador A). Há apenas uma jogada possível para o jogador A. Logo, o número associado ao jogo (a) é 1. = número positivo =1 -2 286 Jogo (b): Possíveis etapas do jogo Construção (passo a passo) das classes de números E(esquerda) e D(direita) correspondentes ao número 2 O jogador A ganha sempre, independentemente de quem comece o jogo; logo, o jogo é positivo. A possibilidade de B retirar uma peça é nula. Logo, a classe D (direita) é vazia. Quando o jogador A retira a peça azul mais distante da linha horizontal, o jogo se reduz ao jogo 1 (é o número indicado à direita da peça azul retirada por A). Quando o jogador A retirar a peça azul mais próxima da linha horizontal, o jogo se reduz ao jogo zero (é o número indicado à direita da peça azul retirada por A, em sua segunda jogada). Os números zero e 1 são os elementos da classe E (porque as peças foram retiradas pelo jogador A). Há duas jogadas possíveis para o jogador A. Logo, o número associado ao jogo (b) é 2. { | } = número positivo = número positivo = número positivo =2 Jogo (c) Possíveis etapas do jogo Construção (passo a passo) das classes de números E(esquerda) e D(direita) correspondentes ao número -1 O jogador B sempre ganha, independentemente de quem comece o jogo; logo, o jogo é negativo. { | A possibilidade de A retirar uma peça é nula. Logo, a classe E (esquerda) é vazia. Quando o jogador B retira a única peça branca, o jogo se reduz ao jogo nulo (é o número indicado à direita da peça branca retirada por B). Esse número zero é o elemento da classe D (porque a peça foi retirada pelo jogador B). Há apenas uma jogada possível para o jogador B. Além disso, o jogo é negativo. Logo, o número associado ao jogo (c) é -1. } = número negativo = número negativo = número negativo = -1 0 Por raciocínio análogo, chegaríamos à conclusão de que o número associado ao jogo (d) é . Dessa forma, os números inteiros positivos n teriam a forma geral = n, e, pelo mesmo processo, poderíamos construir todos os números inteiros. 5. 1 Jogos associados aos números racionais Quando existem jogadas possíveis para os dois jogadores, são construídos os números racionais não inteiros. Por exemplo, considerando o jogo: -1 0 1 Possíveis etapas do jogo O jogador A ganha sempre, independentemente de quem comece o jogo; logo, o jogo é positivo. Se A começa o jogo, retirando a única peça azul, o jogo se reduz ao jogo zero. Logo, zero é o -2 Construção (passo a passo) das classes de números E(esquerda) e D(direita) { | } = número positivo = número positivo 287 elemento da classe E. Se B começa o jogo, retirando a única peça branca, o jogo se reduz ao jogo 1. Logo, 1 é o elemento da classe D. = número positivo Falta descobrir qual é o número que está associado a esse jogo. Para isso, procura-se outro jogo que, adicionado a esse, resulte em um jogo nulo. 0 (a), Nomeando o jogo dado por 0 foi considerado o jogo (b) não nulo, tal que: (a) + (b) = (c), sendo (c) um 0 2 jogo nulo. 2 0 (a) (b) 1 2 0 (c) 1 -1 1 1 -2 -1 -1 1 0 0 0 -2 -1 -1 0 1 -2 -1 O jogo (c) pode ser representado por: 2x – 1 = 0, em que x é o jogo (a) que se quer descobrir. A solução dessa equação é ½, logo, o número associado ao jogo (a) é ½ e então, = 1/2. 1 1 Outros números racionais podem ser construídos a partir dos já conhecidos, pelo acréscimo de peças brancas ou azuis. Para associar jogos a dízimas periódicas ou a números irracionais, são utilizados jogos que têm configuração infinita de peças, atendendo às mesmas regras estabelecidas inicialmente. Estabelecendo uma relação entre as ideias de Conway e os estudos realizados por Berlekamp108, Fonseca (2010, p.36) esclarece que, nesse caso, a representação binária de um número deve atender às seguintes especificações: a localização da “vírgula binária” é determinada pelo primeiro par de peças de cores distintas, contando-se de baixo para cima; à direita da vírgula, as peças azuis são representadas pelo algarismo 1 e as peças brancas pelo algarismo 0; um último algarismo 1 é adicionado à representação, quando a configuração do jogo for finita; a quantidade de peças que antecede o par que representa a vírgula indica a parte inteira na representação binária do número considerado. A título de ilustração, Fonseca (2010, p.38-41) apresenta a representação binária e a configuração dos jogos associados aos números irracionais e . Por exemplo, em relação ao número : Representação binária: 1,01010001.... Representação por meio de conjuntos: = {1,01; 1,0101; 1,01010001;...| ...;1,01011;1,1011;1,1} Jogo associado ao número : 108 Elwyn Berlekamp, professor de Matemática de Engenharia Elétrica e Ciência da Computação na Universidade da Califórnia, desde 1971, conhecido por trabalhos em Teoria de Informação e em Teoria dos Jogos Combinatórios. 288 Jogo associado ao número irracional (FONSECA, 2010, p.41) 289 ANEXO 4 ORIENTAÇÕES CURRICULARES SOBRE A ABORDAGEM DOS NÚMEROS IRRACIONAIS (Material submetido à análise dos professores, durante a Fase 3) Neste anexo, apresentamos o material contendo orientações curriculares para a abordagem do conceito de número irracional, submetido à análise do grupo de professores, durante a fase 3 de nosso experimento. Trata-se de texto extraído do Caderno do Professor, destinado ao 8º ano do Ensino Fundamental, a ser desenvolvido durante o 1º bimestre. A análise solicitada ao grupo de professores tomou 290 291 292 293 294 295 296 297 298 299 300 301 302 303 304 305 306 307 308 309 310 311 ANEXO 5 CRONOGRAMA DE REALIZAÇÃO DA COLETA DE DADOS Fases da coleta de dados Fase 1 Fase 2 Fase 3 Atividades desenvolvidas Aplicação de Questionário Encontros Datas 1 encontro 14.09.2010 1º encontro 28.09.2010 2º encontro 05.10.2010 3º encontro 26.10.2010 4º encontro 09.11.2010 5º encontro 23.11.2010 6º encontro 07.12.2010 1º encontro 17.03.2011 2º encontro 31.03.2011 3º encontro 28.04.2011 Intervenção Análise e Reflexão sobre orientações curriculares