LINGUAGEM LOGO E PODER MATEMÁTICO : ESTUDO DE CASO
COM ALUNOS DO ENSINO BÁSICO 1º CICLO
António José Osório
IEC- Instituto de Estudos da Criança – Universidade do Minho
[email protected]
Paulo Jorge Franco Rodrigues de Carvalho
IEC- Instituto de Estudos da Criança – Universidade do Minho
[email protected]
Porque será ainda hoje o Logo um tema controverso? Será a sua filosofia totalmente
desprezável em educação matemática, ou as mudanças radicais que ela reclama para a escola e para a
cultura do conhecimento serão ainda um desafio tão exigente que compromete a sua própria
aceitação?
Sugerimos que a tendência actual de ver o Logo segundo prismas redutores tais como “mais
um recurso na sala de aula” é reveladora de que provavelmente continuamos a resistir a encara-lo
como uma ampla filosofia de ensino e de vida. Só desta perspectiva é possível compreender todo o
seu potencial de mudança.
Com base em domínios recentes de investigação em educação matemática e numa
experiência de implementação da filosofia Logo numa turma do 1º Ciclo do Ensino Básico
encontrámos argumentos que nos fazem acreditar que é importante olhar para a proposta de Seymour
Papert com renovado interesse.
A nossa pesquisa sugere que não é fácil assumir o papel de “professor construcionista” pela
primeira vez e que a avaliação da implementação do Logo não se enquadra nas metodologias de
investigação mais tradicionais.
Ultrapassados estes obstáculos culturais e metodológicos talvez possamos um dia
contemplar de forma justa a proposta de Papert em toda a sua extensão.
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
O ensino da matemática na perspectiva das escolas
Bishop (1999) sublinha três traços que, caracterizam os currículos que na maioria dos
países subsistem à custa de uma pesada herança que parece eternizar algumas falsas crenças que
o autor identifica como responsáveis, em larga medida, pelo panorama de insucesso do ensino
da matemática e pelo sentimento de algum desânimo e receio por parte dos alunos em relação à
disciplina: currículos baseados em manuais escolares, currículos baseados em treino de
técnicas e ensino impessoal
Actualmente as crenças que sustentam a matemática
escolar são segundo Bishop
(1999) e Papert (1988), falsas.
A crença de que só aos especialistas é reconhecida a autoridade para traçar os currículos
de matemática traz não só consequências ao nível do conformismo dos professores, como
também um aumento da inércia com que a escola reage às mudanças sociais. Papert (1988) vê
também como uma consequência da matofobia (medo de aprender), o conformismo com que as
pessoas em geral e os pais em particular aceitam a matemática que é ensinada nas escolas.
Segundo o autor, o tipo de conteúdos matemáticos que a escola há muito oferece, é aquela que
2397
noutros tempos tinha interesse prático para as pessoas, dadas as suas condições de vida e é
também aquela que as limitações de recursos das escolas impunham.
Actualmente, quando os professores procuram justificar o interesse de inúmeras horas
dedicadas à aritmética, alegam questões de ordem prática como conferir o troco na “loja da
esquina”. Papert (1988) considera que os professores ficam desacreditados nas suas afirmações
quando tentam “pintar” a matemática como uma disciplina aliciante, divertida, porque eles
próprios não a procuram, ocupam os seus tempos de lazer longe dela.
Uma vez que a aprendizagem da matemática é um processo mais de socialização e de
aculturação do que de instrução, essa atitude dos professores em relação à matemática não passa
despercebida aos olhos dos alunos. Para o autor esta tensão corrói a confiança das crianças no
mundo dos adultos: “Além disso, acho que introduz um sério elemento de desonestidade na
relação educacional.” Papert (1988, p. 23)
O pressuposto de que o método a que Bishop (1999) chama “de cima para baixo”,
idealizado para produzir “matemáticos de primeira”, é óptimo para o ensino da matemática, é
um exemplo de uma crença que contribui para perpetuação dos currículos de matemática.
Implícita nesta concepção está também a aceitação da ideia de que este método é selectivo,
porque à medida que o nível de ensino avança, o número de alunos que abandona o sistema
educativo vai crescendo em resultado do elevado grau de dificuldade da disciplina, da falta
sentido das tarefas no contexto da vida real, ou ainda pela sua irrelevância no plano pessoal.
Este currículo “de cima para baixo” reflecte também a posição submissa do professor da
disciplina em relação aos livros, ou manuais escolares. Bishop (1999) considera que o perfil de
excelência visado pela disciplina impõe que só aos grandes especialistas seja reconhecida
competência para subscrever as obras que dão corpo aos programas de matemática. Os livros
personificam e objectivam, o currículo.
“De todos modos estos textos los elaboran personas que creen saber mejor que los
enseñantes qué es lo mejor para los alumnos.” (Bishop 1999, p. 30)
O autor conclui que esta submissão dos professores relativamente aos manuais
subestima as suas aptidões e o seu profissionalismo.
A sequencialização e articulação rígidas dos conteúdos que caracterizam os livros têm
implícitas suposições acerca de um aluno genérico, que na prática não existe. Portanto os
professores ao subordinarem a sua acção às “imposições” dos livros, não podem segundo
Bishop, ensinar pessoas, mas quando muito, ensinar matemática.
Uma consequência desta crença de que “não há nada de interessante que as crianças
possam inventar”, é uma outra crença, sustentada pela nossa cultura, de que apenas aos
especialistas é possível contemplar a sua beleza e dela tirar prazer.
2398
Referindo-se ao ensino baseado no treino de técnicas, Schoenfeld (1992) aponta
importantes implicações destas práticas que podem ajudar a compreender em boa parte o
insucesso a esta disciplina:
A experiência continuada dos alunos com estes conjuntos de exercícios conduz à crença
de que apenas há uma maneira correcta de resolver os problemas propostos: O método proposto
pelo manual, ou pelo professor. Desta forma os alunos nem sequer supõem que podem desviarse deliberadamente do método e “com o tempo acabam por aceitar o seu papel passivo e pensar
na matemática como uma matéria exclusiva de especialistas criada por estes, para ser
memorizada”. Os alunos tendem a ver actividade matemática como um trabalho de natureza não
problemática, olhando-o como uma questão de ter ou não à mão um método pronto a utilizar
para solucionar rapidamente um dado problema.
A manutenção destas crenças conduz a atitudes de pouca persistência face a problemas
para os quais os alunos não encontram um método disponível “à medida”, acabando por
interromper os seus esforços ao fim de poucos minutos sem sucesso.
Por outro lado; os contextos criados em função das técnicas são muitas vezes irrealistas,
afastando a possibilidade dos alunos criarem uma imagem da matemática como uma disciplina
com interesse prático, acabando estes por deixar de procurar encontrar sentido nesta disciplina
por desinteresse ou por acreditarem que lhes é inacessível.
O resultado destas concepções é um ensino da matemática despersonalizado, refém da
crença de que a matemática é uma ciência universal1 e que para manter a sua “pureza” deve
estar imune a quaisquer valores, ou outros aspectos culturais do contexto educativo. A
perseguição dessa imunidade acaba por despersonalizar (universalizando) o ensino da
matemática.
A ideia de que a matemática deve ser sistematizada é também segundo Bishop (1999) a
marca das sociedades que olham para o ensino da matemática como uma máquina cuja
eficiência importa garantir permanentemente. Uma rígida teia de materiais prescritos, currículos
planificados, provas de avaliação sequenciadas e normalizadas, manuais escolares obrigatórios,
etc. elaborados num nível hierarquicamente superior ao dos professores, reduzem o seu papel ao
de um mero agente intermediário, sem autonomia, sem intencionalidade na sua acção.
1
A matemática é de facto uma linguagem universal, mas não deixa de ser encarada e
desenvolvida de forma diferente em diferentes comunidades, em diferentes momentos da história e as
suas verdades estão sujeitas à erosão do tempo, como quaisquer outras.
2399
Para Bishop (1999), esta visão empresarial do ensino parece esgotar as suas preocupações
com questões de eficiência de gestão e de organização, desvalorizando a competência dos
professores, a sua capacidade de iniciativa e a sua vocação para educar:
“Cuanto más se afane el sistema en pos de la eficiencia, mas tratará de controlar y en
última instancia, menos educará.” Bishop (1999, p. 31)
O ensino da matemática como um processo de socialização:
Diversos autores defendem que a aprendizagem da matemática para além de uma
actividade cognitiva, é uma actividade inerentemente social de carácter construtivo e não do tipo
transmissivo, ou “absorvente”. (Schoenfeld, 1992)
Os significados partilhados a que se refere Bishop, são o resultado de uma interacção, de uma
negociação própria de cada grupo e resultante das experiências por ele vividas e que lhe
conferem uma cultura particular, apesar de muitas vezes cada um dos seus membros
pertencerem também a outros grupos, de culturas diferentes.
Resnick (1988) revista por Schoenfeld (1992), defende que muitas concepções inerentes
à teoria cognitiva, bem como todo o trabalho investigativo neste domínio apontam para a
hipótese de que nós desenvolvemos hábitos e competências de construção dos significados,
segundo processos mais do tipo socializador do que instrutivo.
Assim como os valores da comunidade envolvente são interiorizados, determinando em
larga medida um quadro referencial próprio dos indivíduos dessa mesma comunidade,
conferindo aos sujeitos uma forma particular de ver o mundo, também os ambientes educativos
estimulantes que privilegiam o ponto de vista matemático, são determinantes no
desenvolvimento do pensamento matemático:
... - becoming a good thinker in any domain - may be as much a matter of acquiring the habits and
dispositions of interpretation and sense making as of acquiring any particular set of skills, strategies, or
knowledge. If this is so, we may do well to conceive of mathematics education less as an instructional
process (in the traditional sense of teaching specific, well defined skills or items of knowledge) than as a
socialization process. (Resnick, In Schoenfeld, 1992, p. 340)
Relatos de discursos protagonizados por pessoas, que olham o mundo do ponto de vista
do matemático (Schoenfeld, 1992, p. 341) ilustram bem a forma como seleccionam e articulam
os aspectos da realidade envolvente, com o intuito de problematizar, criando à sua volta um
contexto matemático. Aspectos da realidade que para muitos não passam de “adornos” que
diversificam os contextos que os envolvem tornam-se facilmente alvos de análise criteriosa para
quem olha do ponto de vista matemático.
2400
Há uma predilecção em quantificar, estimar, modelar, etc. A própria linguagem é mais
específica e revela uma conceptualização dos problemas que emprega típicos padrões de
raciocínio matemático.
Para Schoenfeld (1992) o hábito de ver os fenómenos em termos matemáticos é também
uma parte da disposição dos matemáticos.
De acordo com esta visão, a cultura matemática que se desenvolve na sala de aula, é
determinante no grau de motivação e de envolvimento dos alunos, determinando em grande
medida o tipo de atitudes e crenças face à disciplina, bem como o próprio nível de realização
matemática.
O domínio afectivo
McLeod (1992) e Chacón (2000) defendem que em situações de insucesso sistemático
ocorridas no mesmo contexto, os sujeitos tendem a abdicar do recurso às suas potencialidades
cognitivas, socorrendo-se progressivamente de padrões de resposta automática cada vez mais
estáveis. Segundo McLeod, (1992) nestas situações os sujeitos acabam por desenvolver atitudes
negativas relativamente ao tipo de situação que lhe provoca frustração. Se esse contexto for um
contexto de resolução de problemas, por exemplo, os alunos tenderão a desenvolver atitudes
negativas em relação à resolução de problemas.
Pelo contrário, a repetição de boas experiências pode consolidar atitudes favoráveis à
aprendizagem.
Face ao retrato que Bishop (1999) e Papert (1988) nos traçam do ensino da matemática
e à consciência da influência que as práticas têm na estruturação do sistema de crenças dos
alunos em relação à matemática e a si próprios enquanto aprendizes de matemática, impõe-se a
questão: - Que tipo de crenças, em geral os alunos alimentam em relação à matemática?
De uma lista mais alargada de crenças, elaborada por Lampert, que tipicamente os
alunos alimentam em relação à matemática, Schoenfeld (1992) destaca as seguintes:
•
Há apenas um caminho correcto para resolver qualquer problema usualmente a regra
que o professor mais recentemente demonstrou à turma;
•
Alunos comuns não têm hipóteses de compreender a matemática; apenas podem esperar
memoriza-la e aplicar o que aprenderam mecanicamente e sem compreender;
• A matemática é uma actividade solitária, desenvolvida por indivíduos isoladamente;
• Os alunos que compreenderam a matemática, que estudaram estão aptos a resolver qualquer
problema que lhe coloquem em 5 minutos, ou menos;
• A matemática escolar, pouco ou nada tem a ver com o mundo real;
• As demonstrações formais são irrelevantes para levar a cabo processos de descoberta e
invenção.
2401
Face à ao agravamento das crenças negativas face à matemática, em resultado de
repetidos episódios de insucesso na disciplina, e ao tipo de crenças que se verifica que os alunos
em geral alimentam em relação a ela e a eles próprios, enquanto aprendizes de matemática,
importa conceber práticas que reflictam preocupação com estes aspectos.
Diversos autores como (Papert, 1988 e McLeod, 1992) acreditam que a tecnologia pode
desempenhar um papel importante no domínio afectivo:
It seems likely that technology can play an important role in changing beliefs about mathematics and
possibly even improving attitudes toward mathematics... (McLeod, 1992, p. 588)
A filosofia Logo e os computadores
Quando pensamos sobre formas de melhorar o ensino com recurso aos computadores,
temos que pensar também sobre o que queremos do ensino. Pretendemos ajustar a tecnologia às
práticas que temos, ou ela poderá representar uma oportunidade para repensar o papel da escola
no século XXI? Papert vê nas tecnologias não apenas uma oportunidade de potenciar o
conhecimento, mas fundamentalmente uma oportunidade de as pessoas reverem o seu
relacionamento com o próprio conhecimento. O que pretendemos da escola? Que se multiplique
em esforços para dotar o seus alunos de um exaustivo conjunto de conhecimentos e
competências que julgamos serem importantes, considerando-os um a um, de forma deliberada,
convictos que melhorando o processo de transferência de informação, conseguimos “moldar”
os alunos à luz de um perfil que mais não é do que a soma de todas essas competências e
saberes, ou será preferível ensinar os alunos a aprenderem? Sem que queiramos excluir
totalmente a importância de qualquer uma delas, a diferença entre estas duas possibilidades
parece-nos substancial.
Seremos nós capazes de determinar em rigor o que é importante que hoje os nossos
alunos adquiram e o que são capazes de aprender? Quando o tentamos fazer estaremos a ser
realistas, optimistas, ou pessimistas? E daqui a 10, 20, 50 anos, aquilo que hoje é importante
ainda o será?
O que é importante para o aluno A sê-lo-à também para o aluno B? Tal como vimos
atrás, o sistema educativo não se coíbe de fazer inúmeras suposições acerca do que todos os
alunos precisam e são capazes de conhecer e acha-se capaz de fazer suposições acerca de um
aluno genérico que na prática não existe. Ainda que a opção exclusiva por um destes dois
caminhos não seja uma fatalidade2, parece-nos claramente que, tal como defende Papert (1999,
p. IX), é fundamental que os alunos aprendam a aprender. Tentando sintetizar:
2
É possível partilhar as duas visões e concilia-las na prática.
2402
Mais importante que tomar conhecimento das aprendizagens que outros fizeram, é ter o
privilégio de aprender alguma coisa.
Para além que conhecer o que outros aprenderam é importante perceber o que significa
aprender, constatar que há obstáculos, sentir a satisfação que a sua superação proporciona e
perspectivar na primeira pessoa o poder das ferramentas que essas aprendizagens fornecem. Por
poucas palavras podemos dizer que o que Papert defende é que a escola dê um importante
contributo para que a criança aprenda a ser um bom aprendiz. Para que tal aconteça Papert
(1988, p. 59) propõe o conceito de Matelândia: um mundo rico em princípios que favorecem a
aprendizagem: princípios matéticos3. Papert descreve a Matelândia como sendo um mundo onde
a matemática é uma língua natural, tal como o francês o é em França.
Reclamando a nossa atenção para o facto de que é mais fácil aprender uma
segunda língua vivendo num país que a pratique do que num local em que ela é uma língua
morta (ex. sala de aula de inglês), o autor pretende-nos sugerir que o problema do ensino da
matemática tem que deixar de ser colocado como o problema de encontrar formas de ensinar a
matemática existente, mas antes como um problema de reconstruir a matemática escolar de
modo a que se torne fácil de ensinar. Uma das características dessa matemática é a de que ela
não é desligada da realidade, nem dos outros saberes. O computador pode contribuir
decisivamente para derrubar as barreiras entre os diferentes territórios do saber, permitindo uma
livre circulação (sem os descaracterizar) entre eles. A construção dessa “ponte” é facilitada,
porque o computador suscita a focalização nos processos, em vez dos conteúdos4. Uma vez que
o trabalho prático de diferentes áreas do saber envolve muitas vezes processos que lhes são
comuns, o trabalho no computador não é rotulado como “trabalho de ciências”, ou “trabalho de
artes”, “de letras”, etc.
Para Papert, tornar a matemática fácil de ensinar, não implica apenas renovar os
métodos de ensino da matemática, mas também e em grande medida renovar a matemática
escolar. A grande mudança que o autor preconiza na matemática escolar para que se torne
apropriável implica a verificação de três princípios:
3
Princípios bons para aprender;
4
Não se desenvolvem processos sem se lidar com conteúdos nem vice-versa. A ideia aqui
expressa não é a de que os conteúdos não são importantes. A sua importância não está em causa, o que se
questiona é a legitimidade da escola em determinar o que é e o que não é importante para os seus alunos
em cada ano lectivo, em cada período escolar, em cada mês, em cada dia e em cada momento.
2403
1.
Continuidade: A matemática deve ter uma relação de continuidade com o com o
conhecimento e experiência individual de cada um, permitindo com ela o estabelecimento de
um sentimento de afeição.
2.
Princípio do Poder: A matemática deve dar poder ao aluno poder para desenvolver
projectos que correspondam às suas necessidades e aos seus interesses e que não poderiam ser
conseguidos sem ela;
3.
Ressonância cultural: Os conteúdos matemáticos devem fazer sentido num contexto social
mais amplo. Ou seja: Para que a matemática seja apropriável não pode ser apresentada às
crianças como sendo apenas importante para elas. Elas precisam de constatar que os pais, os
professores e a comunidade em geral se interessam e precisam da matemática que lhes é
proposta.
Papert (1999, p. XI) defende a terminologia Tecnologia digital, em vez de Tecnologia
de Informação e Comunicação, porque esta última expressão, que é a mais popular5, suscita o
uso dos computadores como ferramentas de transmissão de informação. Para o autor, os
computadores podem e devem desempenhar um papel que ultrapassa em muito esse âmbito. O
papel construtivo tem claramente maior alcance do que o papel meramente informativo. Quando
colocamos os computadores ao serviço de alguma coisa que queremos construir, que queremos
pôr a funcionar, a pesquisa de informação é apenas um pequeno passo de uma longa caminhada.
Mas esta dicotomia de papéis (informativo e construtivo) não se sente apenas quando
olhamos para a utilidade que é dada aos computadores nas escolas. Segundo Papert (1999) a
própria educação tem também essas duas vertentes e aqui a predominância é também do lado
informativo. Ele conclui que a educação não consegue ser mais “construtiva”, porque as
tecnologias dominantes teimam ainda hoje em ser aquelas que num passado longínquo faziam
algum sentido: papel e lápis, giz e ardósia, pauzinhos e areia e outros.
No entanto, vimos já que a tecnologia por si só não resolve o nosso problema. Vemos
hoje Portugal (por exemplo) o surgimento recente daquilo que Papert (1999, p. XII) via como
uma ameaça futura: “... I want to register my horror when I hear talk about how the Web will
allow every student to be taught by the “best teacher” in the World”.
A propósito do papel do professor, Papert tem uma concepção, relativamente à qual
encontramos mais objecções por parte de outros autores e que será provavelmente uma das suas
ideias mais contrastantes com a realidade que conhecemos.
5
O autor compreende que a terminologia Tecnologia de Informação e Comunicação seja mais
popular, porque é quase exclusivamente a função informativa dos computadores que as pessoas constatam
no dia-a-dia.
2404
Como vimos atrás neste capítulo, o autor considera que um dos papéis mais importantes
da escola é o de proporcionar às crianças a possibilidade de se tornarem bons aprendizes e para
tal aponta um caminho: “The best way to become a good carpenter is by participating with a
good carpenter in the act of carpentering. By analogy the way to become a good learner is by
participating with a good learner in the act of learning.” Papert (1999, p. IX)
No entanto, o autor constata que isto raramente acontece na escola. A relação de coaprendizagem que ele vê nas nossas escolas entre o aluno e o professor tem pouca autenticidade.
Ele considera que se criam situações nas quais se espera que os alunos façam as suas próprias
descobertas, mas em que aquilo que eles descobrem é o que os professores já sabem, mas
fingem não saber. “A descoberta não pode ser preparada; a invenção não pode ser planejada”
(Papert, 1988, p. 143). Isso restringe ao mínimo a sua partilha com os alunos e em nosso
entender não permite que estes últimos percebam como é que o seu professor enfrenta as
dificuldades, até que ponto é persistente na busca de soluções, como privilegia o trabalho
colaborativo e como se sente gratificado pelo resultado do seu trabalho.
Em resumo, parece-nos que Papert é acusado de dar pouca importância ao papel do
professor, tal como defende Donaldson, revista por Hughes (1990, p. 133) e Clements &
Battista (1992, p. 451- 452), porque alegadamente, não reconhece a importância destes
estruturarem previamente as actividades e a necessidade de suscitarem aos alunos certos estilos
de aprendizagem6 em detrimento de outros.
Papert responde afirmando que muitas das críticas à filosofia Logo se fundamentam em
estudos que se baseiam em metodologias que não são sensíveis ao alcance da filosofia Logo.
Constatada a distância que separa a escola que temos da proposta de Papert e a sua
inércia face às mudanças sociais, que papel o autor prevê para a escola no futuro?
O autor vê nas escolas de Samba brasileiras um modelo de implementação espontânea
da filosofia Logo. Porém, contrastando os ambientes Logo das escolas, com os das escolas de
Samba, Papert salienta, diferenças fundamentais.
De facto nas escolas de samba a motivação dos seus membros é genuína, ninguém é
“obrigado” a pertencer à escola de Samba, e o que se lá se aprende está ligado a um quadro de
referências culturais importante, que todos assumem como seu. Há uma maior cumplicidade
entre todos, e uma maior coesão, porque o que é procurado é importante para todos os seus
membros e para a comunidade também.
Nos ambientes Logo das escolas, alunos e
professores convivem por “obrigação” institucional (cumprimento da escolaridade obrigatória e
6
Mais analítica do que visual/intuitiva, como defende Clements & Battista (1992)
2405
cumprimento de deveres profissionais) e em muitos casos o vínculo dos seus professores à
turma é efémero.
Face a este distanciamento, será a existência da escola incompatível com afirmação da
filosofia Logo?
Acreditámos que a escola não deixará de existir enquanto instituição, mas acreditámos
que pode ser bem melhor, apesar das suas incontornáveis limitações. Acreditámos que a
proposta de Papert poderá ter um importante papel nesse desígnio.
De qualquer forma, teremos que dar a razão ao autor quando receia o desaparecimento
da escola, se ela persistir em fechar-se sobre si própria, esgotando o seu esforço com
preocupações internas de fidelidade à sua própria e persistente imagem de entidade promotora
de aprendizagens artificiais que a sociedade se viu forçada a inventar, dada a pobreza de
estímulos dos ambientes informais (naturais).
METODOLOGIA
Problema e questões de investigação
Este projecto visa essencialmente constituir um contributo para uma reflexão mais
alargada em torno de um problema que caracteriza as práticas do ensino da matemática 1º ciclo
no Ensino Básico, identificado por diversos autores:
‰
O ensino da matemática é pouco relevante no plano pessoal e comunitário.
Os resultados do nosso trabalho vêm de encontro às preocupações reflectidas nas três
questões que se seguem:
™
De que forma poderá a filosofia Logo ajudar a escola
a aproximar-se das
preocupações e interesses das crianças, dos professores e da comunidade envolvente?
™
Como poderá a implementação da filosofia Logo ajudar os professores a romper com
algumas das suas crenças sobre a matemática e o seu ensino baseadas na sua própria
experiência de alunos e de professores e nas crenças da sociedade em geral?
™
Como pode a implementação da filosofia Logo atender à necessidade de seguir um
currículo na sua concepção mais ampla?
Opções metodológicas
O nosso trabalho tem características que o aproximam mais do tipo de investigação
qualitativa do que de qualquer outra abordagem. Trata-se e um estudo de caso em que o
contexto escolhido foi o de uma turma do 4º ano de escolaridade com 10 raparigas e 10 rapazes,
tendo um deles necessidades educativas especiais.
2406
Métodos/instrumentos de recolha de dados
A recolha de dados teve seis componentes essenciais: Observação participante, Registo
de áudio/vídeo, Registos do trabalho dos alunos, Registo de incidentes críticos, Testemunho da
titular de turma e Notas de campo7.
Análise e Tratamento dos Dados
As nossas ambições neste estudo não são de afirmar que os resultados que obtivemos
são generalizáveis a todas as turmas do 4º ano do 1º ciclo do Ensino Básico, mas antes que
poderão existir turmas do Ensino Básico susceptíveis de obterem resultados semelhantes.
Embora não formulássemos hipóteses à partida, as impressões que íamos recolhendo do
trabalho de campo conduziram-nos à focalização da nossa atenção em alguns aspectos mais
específicos relativamente aos quais estávamos também sensíveis, de acordo com a revisão
bibliográfica que desenvolvemos.
A análise dos resultados foi desenvolvida de forma indutiva. Através da inter-relação
que estabelecemos entre “pedaços” de informação previamente recolhida fomos elaborando uma
“teoria fundamentada” (Glaser e Strauss, 1967 revisto por Bogdan & Biklen, 1994, p. 50)
convergindo a nossa atenção para aspectos progressivamente mais importantes:
Uma vez que as notas de campo encerravam em si o resultado do cruzamento das 4
fontes de dados, foi sobre esta forma de registo que centrámos a nossa análise e tratamento dos
dados, embora tivéssemos também englobado nesta tarefa o testemunho escrito da titular de
turma.
Para tal, recorremos ao programa informático NUD*IST e baseámo-nos na sugestão de
Bogdan & Biklen (1994, p. 220-245).
RESULTADOS
O nosso trabalho de campo revelou que tanto por parte dos alunos como da comunidade
e da professora titular da turma se verificou um envolvimento pessoal crescente no projecto,
apesar de algumas adversidades naturais do contexto escolar. Em particular foi notória a
tendência para o envolvimento de algumas famílias no trabalho escolar, nomeadamente aquelas
que tinham computador em casa.
As crianças realizaram diversas actividades de diferentes áreas curriculares e foram
abordados diversos e importantes conteúdos do currículo de matemática, e de outras disciplinas.
7
Embora o termo “notas de campo” se refira também a todos os dados recolhidos com recurso a
todos os instrumentos e técnicas de recolha de dados utilizados num dado estudo, também podem ter um
significado mais estrito que aquele que utilizamos no nosso trabalho.
2407
Em particular na área da matemática, o dia-a-dia era essencialmente caracterizado persistência
de situações que configuravam contextos problemáticos suscitados pela própria actividade dos
alunos.
A frequência com que os alunos tinham que tomar decisões e fazer escolhas não se
limitou ao âmbito das situações problemáticas de natureza mais ou menos matemática.
Importantes decisões sobre o que fazer, sobre como aprender e como viver juntos eram temas
frequentes de discussão e faziam parte de forma significativa do conjunto de interesses e
preocupações de todos e de cada um.
No nosso papel de “professor construcionista” tivemos alguns momentos de luta
interna. A opção entre ter à mão a “resposta certa” e a disposição para lutar lado a lado com os
alunos por aquilo que procuravam, passava por um conflito interno entre as indicações que a
nossa experiência de 16 anos de docência nos dava e aquelas de uma filosofia de ensino em que
acreditávamos. Não sabíamos até que ponto os alunos aceitariam ter um professor que não traz a
“lição estudada”. Se esse papel já não era muito confortável para nós, como reagiríamos se os
próprios alunos nos fizessem algum reparo?
A intranquilidade com que encarávamos momentos que nos pareciam improdutivos,
mas que mais tarde acabávamos por compreender que tinham sido fundamentais é também
reveladora do desconforto que pode representar a primeira experiência em ambiente Logo para
muitos professores.
O nosso trabalho lado a lado com os alunos revelou-se um desafio incomparavelmente
mais exigente do que aquele a que nossa experiência de docência nos habituou. O nosso
trabalho de campo mostrou-nos que acompanhar, compreender e encorajar os alunos nos seus
próprios caminhos é bem mais difícil do que verificar se eles convergem, ou não para os
objectivos que trazemos para a sala de aula. Tentar ajudar um aluno a pensar como queremos
que pense é bem mais fácil (mas pouco efectivo) do que perceber o que ele quer, que
dificuldades enfrenta, lutando lado a lado com ele, dando-lhe não uma resposta, não uma
técnica, mas antes um testemunho de como lutamos, como suamos, como flexibilizamos o
nosso potencial, como erramos, como partilhamos o nosso esforço, como nunca desistimos e
como apreciamos o fruto do nosso trabalho.
CONCLUSÕES
Enquanto que muitos “falam” do Logo numa perspectiva de perceber de que forma
poderá melhorar a escola que temos, que matérias se podem ensinar com ele, discutindo se
aprendizagem por descoberta é melhor do que a descoberta orientada, procurando perceber se
funciona melhor quando o professor planeia, ou não as actividades, Papert olha para o Logo
como uma oportunidade de mudar totalmente a escola. Para ele, mais importante do que pensar
2408
naquilo que a escola deve ensinar, é dar verdadeiras oportunidades das crianças perceberem o
que significa aprender e de contemplarem o quão importantes são as suas próprias ideias e de
como elas podem realizar “obra” importante para si e para a comunidade. Esta é infelizmente
uma experiência rara nas nossas escolas.
A implementação da filosofia logo exige contextos ideológicos e práticos
completamente diferentes dos das nossas escolas, de modo que qualquer tentativa de
compreender o Logo em trabalho de campo terá que passar pela criação dessas condições. Pela
pesquisa bibliográfica que fizemos não nos pareceu que isso seja prática comum, o que nos leva
a sugerir que vale a pena empreender novas tentativas no sentido de avaliar melhor a proposta
de Papert. Por outro lado, desenvolvimentos recentes nos domínios afectivo cultural e social
relacionados com a educação matemática e ainda em metodologias de investigação qualitativa
poderão actualmente fornecer uma renovada base teórica mais ajustada à natureza do Logo e ao
seu estudo.
BIBLIOGRAFIA
Bishop, A. J. (1999). Enculturación matemática: la educación matemática desde una perspectiva
cultural. Barcelona: Paidós.
Bogdan, R., & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria
e aos métodos. Porto: Porto Editora.
Chacón, I. M. G. (2000). Matemática emocional: los afectos en el aprendizage matemático.
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