mísia
protagonista
Porto «sentimental» e viril
Mísia, uma das vozes mais bonitas do panorama
musical, nasceu no Porto e na cidade viveu toda a
sua adolescência. A fadista, que conta com uma
vasta carreira profissional e é reconhecida
internacionalmente pela sua voz pujante e
melodiosa, apelida de «sentimental» e viril
a cidade que a viu nascer. O fado faz
parte da sua vida desde a infância
e o Porto foi o berço dessa
paixão.
Texto: Marta Almeida Carvalho
Fotos: C. B. Aragão / Rita Carmo
Mísia faz parte da terceira geração de artistas
pelo lado materno da família. Filha de catalã e de
português, foi no Porto que Susana Maria Alfonso
de Aguiar nasceu e viveu toda a infância e adolescência. “A minha mãe é de Barcelona e ainda vive
lá. Foi bailarina e posteriormente professora de
dança. Conheceu o meu pai em Portugal e conquistou-o contando-lhe a história de um filme do Tom
e Jerry, onde o gato era pianista e o ratinho morava
dentro do piano. Casaram-se e eu nasci por causa
desse desenho animado. Acho, sinceramente, que
esta é a história que melhor define esses dois ex66
cêntricos, a razão do seu amor e a sua maneira de o
viver. Passados quatro anos divorciaram-se e eu
passei do desenho animado para o fado”, conta.
“Fazer parte de uma família de artistas levar-meia, naturalmente, a escolher o apelido espanhol”,
refere. Mas decidiu optar por um nome mais apelativo. ”Um dia lendo a biografia de Mísia Sert - uma
pianista polaca - gostei do nome por ser curto, redondo e musical. Nessa altura não sabia que me iriam
fazer esta pergunta tantas vezes, não era conhecida e
ainda não tinha gravado discos. Escolhi, assim, um
nome vindo de uma outra Pátria, a dos livros”.
Recordar o Porto
Passou a adolescência na Invicta mas, a certa altura,
trocou o Porto por Barcelona. ”A minha avó catalã, que
me educou, decidiu voltar para a sua terra. Ela era o
meu eixo afectivo e decidi interromper os estudos e
acompanhá-la”. Mísia recorda os tempos de infância e
adolescência como tendo sido “muito felizes” e enumera as principais recordações. ”Os domingos em casa
da minha avó materna, a minha prima Zé, o Colégio
Liverpool onde estudei até aos 12 anos, o Liceu Garcia
de Orta. Os almoços com o meu pai aos domingos, o
primeiro beijo do meu namorado Manuel Eduardo, aos
16 anos, as noites de São João na rua, o cheiro do mar
e as algas enroladas no corpo quando tomava banho na
praia do Castelo do Queijo, as marés vivas, os eléctricos na Avenida da Boavista, a Pastelaria Ateneia, o
Café Majestic”. É raro vir ao Porto e diz sentir muitas
saudades. “Tenho saudades de tudo, mas o Porto continua a ser a cenografia que me acompanha sempre internamente. É o cenário primário e básico onde, no início
da minha vida, tudo o que sou se inscreveu”, garante.
Da cidade destaca os jardins e as inúmeras igrejas
barrocas. “O Porto não é o que parece à primeira vista.
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protagonista
to da minha cidade”, refere com humor. Quando vem ao
Porto, o que não acontece tantas vezes como gostaria
não tem nenhuma preferência gastronómica. “Venho
sempre cheia de saudades de cheiros e sabores, por
isso como um pouco de tudo”. E se sabores e cheiros
são recordações que guarda religiosamente, os sons
também fazem parte da sua vivência na Invicta. “Se o
Porto fosse uma melodia era uma música muito triste
do Carlos Paredes”, afirma, salientando que a cidade é
“masculina, vertical e viril no cinzento das suas pedras, na bruma que esconde os sentimentos mais frágeis e no seu poder de afirmação, de uma identidade
própria fortíssima”.
Mísia e o fado
Parece ser distante e fechado mas acaba por se revelar
muito mais comunicativo e afectivo que outras cidades
do sul”, assegura a cantora que destaca o Mercado do
Bolhão como um símbolo indissociável da cidade. ”O
Bolhão tem uma personalidade forte.Não se limita a ser
um símbolo arquitectónico mas também da espontaneidade e carácter das gentes do Porto”. Quando cá vem há
rituais que não dispensa. “Jantar no Aleixo, em Campanhã, ir ao Majestic comer uma torrada, passear pela
Rua do Rosário e visitar as mercearias e lojas de “miudezas” (que nome fantástico)”, refere. A visão que tem
do Porto à distância está intimamente ligada ao passado e à sua vivência na época. “Será sempre uma visão
afectiva. Para mim o Porto é, sobretudo, uma ideia de
infância, silêncios e cheiros, de ouvir histórias sentada
no tanque da varanda da cozinha, a chuva inglesa miudinha, de manhã no caminho para a escola, o cheiro do
iodo. A restante “realidade portuense” nunca chegará a
sobrepôr-se à força imensa destes sentimentos”, garante a fadista que destaca as principais características dos seus habitantes. ”Frontalidade, espontaneidade, franqueza e por vezes uma certa temeridade. E são
tão simpáticos. Identifico-me plenamente com o espíri8
Mísia iniciou-se a cantar fado, como amadora, na
Taverna São Jorge, no Porto, aos 16 anos. Filha de uma
bailarina clássica espanhola convive com a música
desde que nasceu. “Surpreendentemente, o fado surgiu
do lado espanhol, através da minha mãe que gostava
imenso da Amália, Maria Teresa de Noronha e da minha
avó que tinha uma “paixão especial “ pelo António dos
Santos”, conta, salientando que, em pequena, teve aulas de solfejo, piano, acordeão e, claro, castanholas.
Em Barcelona e Madrid foi cantando e encantando. A
sua irreverência e forma de estar na vida romperam com
a imagem tradicional da fadista. Poetas e músicos,
acompanharam-na no caminho onde o fado, revisitado,
reinventado e interpretado pela sua voz única, renasceu. Depois de vários anos em Espanha e na Europa,
voltou a Portugal para cantar o Fado. “Na altura pareceu-me mais eficaz e coerente fixar-me em Lisboa,
onde estavam as editoras discográficas, os músicos e
os poetas do género. Em finais de 2005, cansada de
ler e ouvir dizer que morava em Paris - sem nunca lá
ter passado mais de 15 dias seguidos - decidiu alugar
um apartamento e assim acabar com a confusão. “Agora quando me «asseguram» que moro em Paris, já não
me enervo e digo: pois moro, como é que adivinhou?”,
refere com humor. Mísia diz não ter cuidados especiais
com a voz pois gosta que ela seja o reflexo da vida. “A
minha voz é uma «voz personagem» e não uma «voz
instrumento», virtuoso e perfeito. Amo as suas imperfeições que me levaram aos palcos clássicos e mais
importantes do mundo. Bebo imensa água para limpar
e hidratar as cordas vocais, só isso. E faço imensas
coisas que não deveria fazer mas primeiro vem a vida,
só depois tudo o resto”, assegura. Agustina BessaLuís, Mário Cláudio, Vasco Graça Moura, Lídia Jorge,
Rosa Lobato de Faria, José Saramago, José Luis Peixoto, Paulo José Miranda, Sérgio Godinho, Vitorino e Jorge Palma são escritores, poetas e músicos que escre-
veram especificamente para a voz de Mísia. “Aos livros fui buscar Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
António Botto, Ary dos Santos, David Mourão Ferreira e
Vasco de Lima Couto”, refere, salientando o grande
respeito que tem pelos poetas “populares” e autores de
letras de fado. “Um dos poemas mais belos que canto
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Foto: Rita Carmo / Maquilhagem Alda Salaviza
protagonista
com imenso prazer foi escrito por Hélder Moutinho”. O
seu maior desafio profissional foi o de cantar “Os Sete
Pecados Capitais” de Kurt Weill e Bertold Brecht, em
Munique.
Os momentos livres são passados a fazer as coisas
mais simples do mundo. “Namorar, regar as plantas,
pentear os meus gatos - Vírgula e Misuko - cozinhar,
ver DVDs, fazer colagens e escrever”. As constantes
viagens e um calendário «intenso» obrigaram-na a adaptar-se às mudanças. ”O meu corpo desenvolveu um
enorme poder de adaptação. Durmo quando posso e
tenho sono, como quando tenho fome. Funciono um
pouco como os animais, sem relógio no pulso. Quando
não estou a trabalhar gosto de ficar em casa, sou um
pouco gata de lareira”, admite, sublinhando que cantar
não é propriamente um trabalho mas uma forma de vida
que faz parte daquilo que é. E o que lhe dá mais prazer
fazer num dia de folga? “Não ter nenhum plano, começar o dia devagarinho, vaguear pela casa, estar com os
meus gatos, ver um raio de sol pela janela, tomar consciência das coisas simples, beber chá, ver um filme
antigo a preto e branco, comprar flores, acender uma
vela. Mas tudo a um ritmo lento. O contrário do stress
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dos aeroportos e dos fusos horários”. Questionada sobre o espectáculo mais bem conseguido e aquele que
correu pior, Mísia hesitou. “É muito difícil escolher só
um. Os melhores foram os da Filarmonia de Berlim,
Culturgest em Lisboa, Queen Elisabeth Hall em Londres
e Town Hall em Nova York. Foram importantes porque
aconteceram antes do Fado estar na moda, entre a Amália e a nova geração. O que correu pior foi um que quis
organizar e produzir porque achei que “devia” esse concerto ao público português visto ter cancelado um no
CCB esgotado (por motivos de saúde). Como não sou
produtora, fiz um concerto na Aula Magna que calhou
num dia de um importante jogo de futebol. Estava metade da sala cheia mas o público foi muito generoso e
encheu a sala de carinho”. À cantora, que diz já ter
actuado em todos os palcos em que tinha sonhado,
resta manter o mesmo nível de exigência que tem tido
nestes últimos 17 anos de carreira. “Mas gostava de
fazer um espectáculo autobiográfico no Molino de Barcelona, onde comecei a minha carreira profissional”.
Entre as várias condecorações que obteve pela qualidade do seu trabalho, contam-se a Grande Medalha Vermelha da Cidade de Paris (2004), a Ordem de Cavaleiro das Artes e as Letras (França 2004) e a Comenda da Ordem do Mérito, atribuída pelo governo português, em 2005.
Discurso
directo
Um lugar – A minha casa
Uma viagem de sonho – De Kyoto a Istambul e
vice versa
Um livro – O álbum de Hannah Hoch de Hatje Cant
Uma música – As sinfonias de Mahler
Um filme inesquecível – Nostalghia de Andrei TarkovsKi
Um projecto inadiável – Acabar de escrever um
livro
Uma figura da cidade – Agustina Bessa-Luís
O Porto numa só palavra – “Sentimental”
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Mísia - Viva Porto