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ANDRIA DA SILVA OLIVEIRA
A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO HOMEM SIMPLES:
ALIENAÇÃO E METAMORFISMO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT
INSTITUTO DE LINGUAGENS – IL
CUIABÁ
2008
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ANDRIA DA SILVA OLIVEIRA
A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO HOMEM SIMPLES:
ALIENAÇÃO E METAMORFISMO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Estudos de Linguagem, do Instituto de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.
Área de concentração: Estudos Literários e Culturais.
Orientadora: Profa. Dra.Célia Maria Domingues da Rocha
Reis
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT
INSTITUTO DE LINGUAGENS – IL
CUIABÁ
2008
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FICHA CATALOGRÁFICA
O48c
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Oliveira, Andria da Silva.
A construção literária do homem simples: alienação
e metamorfismo / Andria da Silva Oliveira. – 2008.
viii, 87p.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de
Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-graduação
em Estudos de Linguagem, Área de concentração:
Estudos Literários e Culturais, 2008.
“Orientação: Profª. Drª . Célia Maria Domingues da
Rocha Reis”.
CDU – 821.134.3(81). 09
Índice para Catálogo Sistemático
Literatura brasileira – História e crítica
Crítica literária
Literatura – Relações sociais
Literatura – Alienação e metamorfismo
Élis, Bernardo
Carvalho, Carlos
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iii
Aos meus amados pais, Francisco e Lurdes.
À Ângela e Alandimá, minhas inesquecíveis irmãs!
Aos meus cunhados Rones e Weliton, essências de irmãos!
À minha encantadora sobrinha, Isadora!
À Silvinha e Zete... Companheiras em qualquer das estações!
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iv
Agradecimentos
Esta talvez seja a parte mais difícil num processo como esse, pois, como agradecer
a tantas pessoas envolvidas num período turbulento, solitário e depressivo como é o final de
um mestrado?
Agradecer
- à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e à
Fundação de Apoio a pesquisa de Mato grosso – FAPEMAT, pelo apoio financeiro
disponibilizado;
- à Universidade Pública, pela intermediação de um ideal realizado;
- aos professores e funcionários do Departamento.
- às professoras componentes da banca examinadora
Agradecer, em particular,
- e com apreço especial, à minha orientadora, Professora Dra. Célia Maria
Domingues da Rocha Reis, pelo respeito às minhas limitações e dificuldades; por fazer-me
acreditar que “a busca é mais importante que a resposta”, palavras que me acompanharão
no caminho profissional;
- à família, pela proteção e carinho doados nos momentos de medo; por
acreditarem em mim, por sofrerem a minha dor e vibrarem com minha vitória!
- aos amigos que sempre ouviram pacientemente as narrativas intermináveis, as
lamúrias.
- À Silvinha e Zete, pelas palavras animadoras, por tudo que fizeram para me
verem feliz. Valeu a pena. Vencemos!
- À minha segunda mãezinha, MIRINHA, por incentivar-me a fazer as provas de
seleção do mestrado, por acolher-me em sua casa como filha. O tempo não será capaz de
apagar da minha história a imagem dos teus cabelos brancos e o exemplo de generosidade
e valentia do teu coração!
- Ao Ir Joaquim e Ir Lurdes, pessoas simples que convivem com a difícil realidade
da vida do campo, e que muito torcem pelo sucesso da minha vida acadêmica, ofereço o
que há de mais puro e sereno na palavra “Obrigada!”
- À Liece e Daniel por estarem sempre ao meu lado quando precisei; à Adriana que,
mesmo distante, fez-me ouvir palavras de incentivo e fé; à Lucinha, Andréia, Lucilene,
Karina, Rose, Dinei, Thiago, Orlando, Gilda, Jesus... E muitos outros que nos incansáveis
encontros, telefonemas ou e-mails diziam: “Estou orando por você!”
A todos, minha gratidão e sinceras desculpas pelas horas furtadas ao convívio!
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v
Temi meu regresso como temera minha partida; as duas
coisas faziam parte do desconhecido e do inesperado. O
que me fora familiar agora era desconhecido; o único que
mudara era eu... Regressei com “nada” para ensinar de
minha experiência. Através da compreensão da minha
viagem, obtive a confiança para fazer as necessárias – e
difíceis – separações de minhas antigas estruturas de
vida... Regressei da viagem para começar outra.
Gilgamesh
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vi
OLIVEIRA, Andria da Silva. A construção literária do homem simples: alienação e
metamorfismo. Dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagem. Orientador:
Profa. Dra. Célia Maria Domingues da Rocha Reis. Cuiabá: Universidade Federal de
Mato Grosso, 2008.
Resumo
A presente dissertação investiga como a literatura apreende o homem
simples e a sua condição de vida num contexto moderno, sob a perspectiva de sua
construção literária e sob a perspectiva filosófico-sociológica, na tentativa de
perceber sua consciência diante das exigências da vida moderna, da mecanização
das ações humanas e do abuso das camadas que detêm o poder sócio-políticoeconômico. Nesse sentido, o elemento social foi tomado não apenas como
referência que permite identificar nos textos em análise a expressão de uma época
ou de uma sociedade determinada, antes, buscou extrair a essência das situações e
apreender a cultura sem perder de vista o caráter artístico desse corpus literário.
Corpus que se compõe de dois textos, retirados da antologia de Flavio Aguiar: Com
palmos medida: terra, trabalho e conflito na literatura brasileira (2000). O primeiro
conto é “A enxada” (1966), de Bernardo Élis; o outro é o conto “Boi da cara preta”
(1975), de Carlos Carvalho. Para a análise, foi observada a atuação dos
personagens, os modos de constituição dos discursos literários, considerando
aspectos como ironia, alegoria e absurdo que engendram outros elementos
estruturais narrativos, e que resultam, no conteúdo dos contos, na alienação e
transformação dos personagens pela crueldade institucionalizada do poder
capitalista que incide nas relações de trabalho e na desestruturação do bem estar
social e familiar.
Palavras chaves: Relações sociais na literatura. Alienação e metamorfismo na
literatura. Bernardo Elis. Carlos Carvalho.
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vii
OLIVEIRA, Andria da Silva. The literary construction of the simple man: alienation
and metamorphism. Master Thesis in Studies of Languages. Supervisor: Profa. Dra.
Célia Maria Domingues da Rocha Reis. Cuiabá: Universidade Federal de Mato
Grosso, 2008.
Abstract
The present dissertation investigates as literature apprehends the simple
man and its condition of life in a modern context, under the perspective of its literary
construction and under the philosophical-sociological perspective, in the attempt to
ahead perceive its conscience of the requirements of the modern life, of the
mechanization of the actions human beings and the abuse of the layers that withhold
the partner-politician-economic power. In this direction, the social element was taken
not only as reference that allows to identify in the texts in analysis the expression of a
time or a determined society, but, searching to extract the essence of the situations,
to apprehend the culture without losing of sight the artistic character of this literary
corpus. Corpus that if composes in two texts, removed of the anthology of Flávio
Aguiar: With palms measured: land, work and conflict in Brazilian literature (2000).
The first story is “the hoe” (1966), of Bernardo Élis; the other is the story “Ox of the
black face” (1975), of Carlos Carvalho. For the analysis, the performance of the
personages, the ways of constitution of the literary speeches will be observed,
considering aspects as irony, allegory and nonsense that produce other narrative
structural elements, and that they result, in the content of stories, in the alienation
and transformation of the personages for the institutionalized cruelty of the capitalist
power that happens in the relations of work and the destruction of the welfare state
and familiar.
Words keys: Social relations in literature. Alienation and metamorphism in literature.
Bernardo Elis. Carlos Carvalho.
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viii
SUMÁRIO
Dedicatória ............................................................................................................... iii
Agradecimentos ..................................................................................................... iv
Epígrafe .................................................................................................................... v
Resumo .................................................................................................................... vi
Abstract ................................................................................................................... vii
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9
I – ANDAIMES DA CONSTRUÇÃO DOS CONTOS “A ENXADA” E “BOI DA CARA
PRETA”................................................................................................................... 14
1.1- Contextualizando enredo e personagens ................................................ 17
1.2- Elementos estruturais da narrativa .......................................................... 21
1.3 – Alegoria ................................................................................................. 30
1.4 – Ironia ...................................................................................................... 34
1.5 – Absurdo .................................................................................................. 37
II- DESENRAIZAMENTO E ALIENAÇÃO: AGENTES DO METAMORFISMO...... 42
2.1 - Alienação.................................................................................................. 44
2.2 – Uma nova condição humana................................................................... 46
2.3 - A vez dos ruminantes............................................................................... 48
2.4 – A vez da enxada...................................................................................... 55
2.5 – O berro silencioso.................................................................................... 59
2.5.1 – do boi.................................................................................................. 59
2.5.2 – da enxada e da fé............................................................................... 65
2.6 – Supriano, Piano, Pianíssimo, sem voz.................................................... 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 77
REFERÊNCIAS
Bibliográficas ................................................................................................... 84
Webreferências ............................................................................................... 85
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9
LITERATURA: POSSIBILIDADE DE LER A SI MESMO
A criatividade e a fantasia permitem ao homem transcender o seu cotidiano,
fazendo-o especular, apreender, e não apenas, passivamente, aprender. A busca do
autoconhecimento e do nosso eu interior têm na literatura uma fonte inesgotável de
recursos e possibilidades. É onde nos confortamos, reconhecendo nossas emoções
triviais e conflitos.
Tal como um caleidoscópio, em cujo fundo há fragmentos soltos de vidros
coloridos que produz um número inimaginável de combinações, a interpretação de
uma obra literária é infinita, esclarecedora, livre e inesgotável. Essa relação
particular do homem com os mais diversos assuntos não apenas o habilita a se
colocar em relação ao outro e ao mundo, mas também a questionar dogmas.
A Literatura proporciona o exercício de interagir com o mundo, de
compreender a vida, a morte e a inexorabilidade do tempo, legitimando, assim o
espírito humano. “Todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo”
(PROUST apud AMORIM, 2006, p. 5)
A prática da leitura é um processo contínuo que se originou em nossa
alfabetização. Primeiro as letras, depois os sons, as palavras, as frases, as primeiras
narrativas e versos. Com o passar do tempo, temos acesso a obras de maior
densidade e extensão, talvez as consideradas clássicas. Tempos depois, optamos
por reler algumas obras, e somos apresentados, em primeira mão, a aspectos que
nos passaram obscuros na primeira experiência. Temos um prazer diferente, que
não é maior ou menor. É uma nova inclinação do caleidoscópio.
Identificamos outras leituras, identificamos novos recortes, sonhamos e
interagimos de forma diferente, são suscitadas em nós inspirações e reflexões
também diferentes. Constatamos que o prazer em ver outras comportas serem
abertas pode ser surpreendentemente infinito, com alguns breves pontos finais.
Faço parte de uma família que teve suas raízes na vida rural. Cresci ouvindo
meus pais dizerem que a vida no campo é que era vida digna de se viver. Porém,
quando tive meu primeiro contato com a obra O Quinze, de Raquel de Queiroz, ao
constatar o sofrimento e a luta dos personagens para resistirem às adversidades do
sertão, comecei a questionar a veracidade das palavras que desde a infância eu
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ouvia. Por que meus pais diziam que a vida no campo era uma vida de mais fartura
e tranqüilidade?
Com o passar dos tempos, as comportas se abriram. Tive a oportunidade de
retomar O Quinze e descobri que literatura nunca é apenas literatura; o que lemos
como literatura é sempre mais – é História, Psicologia, Sociologia-. No entanto,
esses níveis de representação da realidade são dados na literatura pela eficácia da
linguagem literária. E entre esses níveis de representação da realidade e sua
textualização literária, seu aparecimento enquanto literatura há um intervalo – mas é
um intervalo, como na música, muito pequeno e é preciso ser muito rápido para
percebê-lo.
É exatamente pela intensificação desses espaços de intervalo que as obras
permanecem. E nesse pequeno intervalo, compreendi o que antes estava obscuro
ao meu entendimento. O campo atribuía à minha família segurança de
sustentabilidade e honra de colher e desfrutar do seu próprio trabalho, embora em
condições não tão apropriadas. O entendimento foi possível devido à intertextualização com a visão de mundo que eu naquele momento carregava.
Lemos literatura para nos encontrarmos enquanto pessoas. Por meio dela
tentamos responder às questões vitais, é como se cada personagem nos ensinasse
uma parte de nós mesmos. Quando o texto realmente interessa, tal relação nunca é
tranqüila, mas sim tensa, de medo ou mesmo de terror, uma relação, de qualquer
forma, inquietante. O que chamamos de obras perenes, que permanecem, muitas
vezes não permanecem pelos seus significados, mas porque nós, seus pósteros,
podemos descobrir nelas relações de significantes que levam a outros significados.
Por isso diferentes gerações lêem tais obras com diferentes olhares.
E nesse trabalho não será diferente. Fazendo uso, para o desenvolvimento
do trabalho, de metodologia de pesquisa bibliográfica, fizemos o recorte de dois
textos para composição do corpus da pesquisa, que constam na antologia de Flavio
Aguiar: Com palmos medida: terra, trabalho e conflito na literatura brasileira (2000).
São contos que abordam o homem rural e sua condição de vida, e sobre esses
contos nos debruçamos com olhar teórico-literário, filosófico e sociológico, na
tentativa de verificarmos como tais realidades são filtradas pela Literatura através do
grau de consciência dos personagens e de suas formas de resistência.
O primeiro conto é de Bernardo Elis, “A Enxada”. Bernardo Élis nasceu em
Corumbá de Goiás, em 1915, e morreu no Rio de Janeiro, em 1998. Ele foi um autor
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herdeiro da tradição regionalista, da preocupação social dos anos 30, e, pouco a
pouco, da busca modernista por uma expressão mais complexa e inventiva. Suas
obras tematizam a denúncia social e o envolvimento de conflitos gerados pela
submissão dos pobres aos ricos. Sua literatura atingiu o apogeu na década de 1960,
sobretudo com a publicação de Veranico de Janeiro (AGUIAR, 2000, p.313).
“A Enxada” é um conto regionalista, publicado em 1966, que tem como tema
a crueldade institucionalizada do coronelismo e a insensibilidade das relações de
trabalho no campo. Élis transportou a dimensão de uma realidade social para o
mundo ficcional literário. Em outras obras do autor, também está presente o
fenômeno do coronelismo, como em “O Tronco”.
O segundo conto estudado será “Boi da cara preta” 1, de Carlos Carvalho,
que nasceu em 1939, em Porto Alegre, e morreu em 1985, na mesma cidade. O
escritor escreveu, sobretudo, contos e peças de teatro. Foi considerado pela crítica,
segundo Aguiar (2000), como dos melhores autores de sua geração. Carvalho
estreou em 1975, com o livro Calendário do medo, no qual faz denúncia social
contra a violência institucionalizada.
Seus contos conjugam o tom direto e realista de denúncia com uma
ambientação alegórica. No caso deste, BCP, o foco concentra-se no avanço das
relações declaradamente capitalistas, no caso, num matadouro, em que os
trabalhadores são reificados, e todos se tornam resignados, conformados com a
dominação imposta.
Nesse sentido, outro tema da obra, marca da atualidade, é o ritmo cada vez
mais rápido na busca do efêmero, do poder do mercado, do consumismo, e tantos
outros aspectos que determinam a postura individualista, que impactam e banaliza a
vida, afetando cotidianamente as pessoas, as famílias, o trabalho, postura
representada principalmente pela esposa do personagem principal e que resultam
na alienação do homem, assunto que discorreremos sob o ponto de vista marxista
Buscamos em autores como Jean Chesneaux (1995), Stuart Hall (2005) e
José Fernandes (1992), idéias para a análise que fossem complementares para a
montagem do cenário moderno encontrado nas narrativas. Esses aspectos são
estudados precisamente no segundo capítulo, que, em sua gênese e percurso, visa
refletir sobre as exigências da vida moderna, sobre a mecanização das ações
1
Faremos a referência ao conto pelas iniciais BCP.
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12
humanas e sobre o abuso de poder, sem considerar o elemento social apenas como
referência que permite identificar na matéria de um livro a expressão de uma época
ou de uma sociedade determinada. Antes, busca extrair a essência das situações,
no propósito de compreender a cultura sem perder de vista o caráter artístico das
obras literárias.
Na primeira parte, procuramos refletir sobre a concepção de literatura,
considerando-a como meio de aquisição de conhecimento e humanização do leitor.
Nela, serão estudados os modos de constituição dos discursos literários, que
engendram os elementos estruturais do texto, personagens, narrador, tempo e
espaço
Um aspecto presente nos textos selecionados é a sátira, recurso que a
literatura utiliza para ridicularizar um determinado tema, geralmente como forma de
intervenção política ou com o objetivo de provocar ou evitar uma mudança. Das
formas de sátira, detemo-nos em seu caráter irônico, que neste estudo será
observado à luz de Beth Brait em Ironia em perspectiva polifônica (1996).
No âmbito do estudo dos textos como construção literária, uma das questões
que são levantadas é a alegoria: no conto BCP, de Carlos Carvalho, o personagem
transforma-se em boi, produto do frigorífico onde trabalha, e no conto “A enxada”, o
personagem, trabalhador rural, transforma-se, nos seu imaginário, na própria
ferramenta de trabalho, Teremos como baliza teórica sobre esse assunto, João
Adolfo Hansen (2006) em Alegoria: Construção e interpretação da metáfora.
José Fiorin (2005) diz que, no princípio, o que orientava os homens era o
mito e, mais tarde, aparece a ciência. À medida que ganha espaço e especificidade,
ela começa a combater o mito, o princípio da realidade em luta contra o imaginário.
No final do século XIX, havia uma crença absoluta na ciência, a certeza de que faria
triunfar o real, afastando os erros e as superstições, ou seja, ela erradicaria os mitos
do mundo. No entanto, nas palavras do autor:
Os mitos, depois de terem sido declarados mortos, estão bastante
vivos. Nos subterrâneos, nutrem a ficção, a utopia e a ciência. Não
se trata aqui de, em nome de um irracionalismo muito em voga
mesmo na universidade, criticar a ciência, desmoralizá-la, descrer
dela, mas tão somente de reconhecer que a literatura, lugar por
excelência dos mitos na modernidade, é uma forma tão boa de
conhecimento quanto a ciência. (FIORIN, 2005, p. 09).
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13
Não pretendemos fazer um estudo do pensamento mítico, cuja principal
característica, aliás, segundo Fiorin, é ser incompatível com a alegoria.
Com efeito, para um Cristão é uma blasfêmia dizer que o pão e o
vinho simbolizam o corpo de Cristo, pois, para ele, eles o são
verdadeiramente. (FIORIN, 2005, p.10)
O que se pretende nesse momento é mostrar que o mito, constitui uma
explicação do homem para aquilo que é inexplicável, o que significa que é uma
súmula do conhecimento de cada cultura a respeito das grandes questões com que
o ser humano sempre se debateu. Isso possibilita duas leituras do mito: uma
temática, realizada pela ciência, e uma figurativa, feita pela arte. “O mito irriga o
pensamento científico e a realização artística, continua a alimentar todas as formas
de apreender a realidade” (FIORIN, 2005, p. 10)
Como andaimes da construção dos contos, além dos conceitos de alegoria,
ironia, falamos da narrativa do absurdo sob a concepção teórica de José Fernandes
(1992), para quem o absurdo se caracteriza como um processo de perda irreversível
de identidade.
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I. ANDAIMES DA CONSTRUÇÃO DOS CONTOS “A ENXADA” E “BOI
DA CARA PRETA”.
Do chão sabemos que se levantam as searas...
Levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantamse os homens e as suas esperanças.
Também do chão pode levanta-se um livro.
Como uma espiga de trigo ou uma flor brava...
Enfim, cá estou
Outra vez a sonhar.
Como os homens a quem me dirijo.
José Saramago
Desde quando o homem começou a estudar a arte por ele produzida, a
questão sobre concepção e função da literatura tem sido assunto de muitas
controvérsias. Sabemos, pois, que, em cada época literária, são atribuídas à
literatura natureza e funções distintas, condizentes com a realidade cultural, e,
portanto, social, da época.
Roland Barthes, semiologista francês, em sua obra intitulada Aula (1978)2,
observa na linguagem uma função eminentemente social e vê nela o instrumento de
expressão do poder, a que todos estamos submetidos: “Esse objeto em que se
inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para ser mais
preciso sua expressão obrigatória: a língua-” (1978, p.12). O autor vê, pois, na
língua, um objeto de alienação. Diz ele que, por estarmos todos aprisionados
irremediavelmente às estruturas lingüísticas, uma vez que devemos nelas enquadrar
nossos pensamentos, somos todos “escravos da língua”. Acrescenta ainda: “(...) a
língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem
progressista; ela é simplesmente fascista, pois, o fascismo não é impedir de dizer, é
obrigar a dizer” (BARTHES, 1978, p. 14).
Dessa forma, de acordo com a teoria de Barthes, uma vez que a língua leva
à aceitação obrigatória de suas estruturas para a completa comunicação, ela faz
parte de uma estrutura de poder a qual todos estão submetidos.
2
Segundo Latuf Isaias Mucci (2006) no ensaio “Lições da aula de Roland Barthes”, é a edição em livro da aula
inaugural de Barthes, ministrada na ocasião de sua elevação à Cátedra de Semiologia no Colégio de França. Tem
ela um caráter essencialmente formalista, uma vez que expressa a opinião de um estudioso da linguagem e não
da literatura. Mas, como tal, Barthes demonstra um amplo conhecimento no campo da linguagem e, como não
poderia deixar de ser, de uma de suas vertentes: a linguagem literária.
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Partindo do entendimento de que a ação dos seres humanos se dá sempre
em busca do caminho da liberdade, e que esta é considerada como uma
desvinculação do poder a que eles são submetidos, dentro do universo lingüístico
não há maneiras de ser livre. A proposta de Barthes para resolução de tal questão é
“trapacear” a língua através da arte, pois só a linguagem artística, principalmente a
literária, consegue romper o fascismo da língua:
Só resta, pois, (ao homem), a fuga da linguagem por meio de uma
trapaça lingüística utilizando-se da própria língua. Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (BARTHES, 1978,
p. 16).
Enquanto a utilização da linguagem cotidiana requer certa obediência à sua
estrutura – o pensamento se organiza e é expresso de acordo com determinadas
estruturas lingüísticas para que haja condições de comunicação –, a linguagem
literária não obedece a qualquer regra estrutural fixa. O autor que se utiliza dessa
linguagem, não é obrigado a emoldurar seus pensamentos nas estruturas
lingüísticas; ele é livre para escolher e criar sua própria estrutura, de maneira que
possa obter uma clara expressão de seus sentimentos e idéias.
No discurso científico, a linguagem é direta e evita ambigüidades. Já na
linguagem literária, as palavras assumem vida própria, com novas representações e
significações que não aquelas que lhes foram conferidas usualmente. Assim,
Barthes diz que a literatura é utópica, pois permite a criação de novas realidades.
Segundo Amorin (2001):
A arte e, portanto, a literatura, é uma transposição do real para o
ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe
um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos.
Nela se combinam uns elementos de vinculação à realidade natural
ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à
sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade.
(AMORIM, 2001, p.03)
Essa combinação de elementos é que resulta na linguagem classificada por
Barthes como linguagem literária, a qual estabelece uma nova ordem para as coisas
representadas, mantendo uma ligação com a realidade natural. Pois, para Barthes,
apenas a literatura consegue promover a busca constante pelo “sabor”, pelo “gosto”
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16
das palavras, motivando as instâncias do desejo, o que, de certo modo, é encarado
como uma prerrogativa utópica:
A liberdade é um luxo que toda sociedade deveria proporcionar a
seus cidadãos: tantas linguagens quantos desejos houver: proposta
utópica, pelo fato de que nenhuma sociedade está ainda pronta a
admitir que há vários desejos (BARTHES, 1978, p. 25).
Por outro lado, segundo Camargo (2006), Barthes concebe a possibilidade
dessa ruptura com o fascismo da língua, que apesar de utópico, não é
necessariamente irrealizável:
Que uma língua, qualquer que seja não reprima outra: que o sujeito
futuro conheça, sem remorso, sem recalque, o gozo de ter à sua
disposição duas instâncias de linguagem, que ele fale isto ou aquilo
segundo as perversões, não segundo a Lei. A utopia,é claro, não
preserva do poder: a utopia da língua é recuperada como língua da
utopia, que é um gênero como qualquer outro. (BARTHES, 1978, p.
25)
O conceito de utopia, por sua vez, também passou a ser compreendido de
diferentes maneiras no decorrer da história. Segundo Camargo (2006), o escritor
inglês Thomas Morus é quem, certamente, mais contribuiu para a difusão do termo,
ao usá-lo para intitular sua obra mais famosa, indicando um território imaginário
onde a sociedade por ele idealizada aboliu a propriedade privada e as intolerâncias
religiosas, estando centrada nos valores da justiça e de felicidade humana. Assim, o
termo utopia passou a ser utilizado por muitos outros pensadores com significados
diversos, não apenas como algo irrealizável, mas também como o “novo”, no sentido
de ruptura com os conceitos socialmente estabelecidos.
A literatura, embora permita a criação de novos universos, estes são
baseados na realidade da qual o escritor participa. As fantasias manifestas por ela,
nunca são puras. Daí a afirmação de que a literatura é vinculada à realidade, mas
dela foge através da estilização de sua linguagem. Através dessa ligação com o real,
a literatura passa a exercer uma de suas funções: a função formadora. Embora não
seja esse o seu fim, a literatura funciona como instrumento de educação, de
formação do homem, uma vez que exprime realidades que a ideologia dominante
tenta esconder:
A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...].
Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...].
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17
Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua
gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude
e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em
cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as
obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem
freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É
um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que
se tenciona escamotear-lhe. (CANDIDO, 1972, apud AMORIM, 2001,
p. 03).
Por meio dessas palavras, pode-se claramente perceber o poder da
literatura de mostrar várias faces de uma mesma realidade, condição dialética que
permite aos sujeitos conhecê-la melhor, interagir com ela, distanciando-se de uma
imposta pedagogia social. Ainda nas palavras de Candido, a literatura “não
corrompe nem edifica, mas humaniza em sentido profundo, por que faz viver”.
(CANDIDO, 1972 apud AMORIM, 2001, p. 03). Outra função da literatura, levantada
por Antônio Candido, diz respeito à identificação do leitor e de seu universo
representados na obra literária, função que possibilita ao indivíduo o reconhecimento
da realidade que o cerca, quando transposta para o mundo ficcional.
O artista consegue manipular as palavras em seus níveis semântico,
fonético, morfológico e sintático para criar um universo livre, através da linguagem
figurada.
1.1 Contextualizando Enredo e Personagem
No início da colonização brasileira não havia nenhuma legislação que
regulasse a distribuição de terras, e a ocupação do território fazia parte de um jogo
comercial. Segundo José Graziano Silva (1978), a população livre, para garantir sua
sobrevivência num regime de senhores e escravos, além das alternativas de
saquear, viver de mendicância ou prestando os mais variados serviços aos senhores
de engenho, ocupava também pequenos pedaços de terras para dela extrair o
sustento.
Em um território inculto, não era tarefa difícil se estabelecer em um
pedaço de terra para exploração. Esses sofridos indivíduos, vítimas
do sistema reinante, viviam montando seus pequenos sítios, embora
não se fixando definitivamente em nenhum local. (Silva, 1978, p. 19).
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18
A explicação para esse comportamento de mobilidade espacial dá se em
função da insegurança da ocupação da terra, baseada na posse das propriedades e
na instabilidade que a relação de dependência aos interesses dos latifundiários
trazia. No entanto, segundo Candido (2003), a mobilidade deste segmento de
agricultores, vista no sentido sociológico, funciona como preservação da cultura e da
autonomia que tanto prezam.
Essa população constituía-se de negros libertados, homens livres (que não
eram nem escravos e nem senhores de engenho), mestiços e indígenas. Produziam
sem ajuda de escravos e com precários instrumentos de trabalho, em terras não
doadas pela coroa e cuja posse era considerada oficialmente ilegal3. “A regra era
irem buscar os lavradores novas terras em lugares de mato dentro...” (HOLANDA,
2005, p. 50). Porém, essa situação não os isolou definitivamente das cidades, vilas e
povoados:
“O grupo, por mais afastado, coeso e suficiente a si mesmo, ligavase, ainda que esporadicamente, ao centro provedor de sal,
administração e ministério religioso; e, por meio dele, conservava
sempre vivos, mesmo quando tênues, os ligamentos com a
civilização”. (CANDIDO, 2003, p. 100)
Os lavradores elaboravam técnicas que permitiam estabilizar as relações do
grupo com o meio, técnicas relacionadas à economia de subsistência. Mesmo que
os costumes e as raças fossem diferentes, o sertão se encarregava de mesclar os
tipos, adequando-os à sua realidade. “De tal modo a podermos dizer que as
sociedades se caracterizam, antes de qualquer coisa, pela natureza das
necessidades de seus grupos, e os recursos de que dispõem para satisfazê-las.”
Como registra (CANDIDO, 2003, p.29).
Para os escritores românticos, a cultura desse homem era autêntica, a
verdadeira característica da nacionalidade.
Alfredo Bosi (1989, p.156) cita as
palavras de Nelson Werneck Sodré (1969): “Brasil verdadeiro, Brasil original, Brasil
puro seria o do interior, o do sertão, imune às influências externas, conservando em
estado natural os traços nacionais...”.
3
Segundo Guimarães (apud Lavoratti, 1999, p.100), mais importante que o colono no processo de formação da
pequena propriedade familiar, é a figura do posseiro, principalmente o posseiro que enfrenta o poder
latifundiário, desde os tempos recuados, quando nenhuma lei o protegia. “(...) ao atacar de frente o todo poderoso
sistema latifundiário, ao violar suas draconianas instituições jurídicas, a posse passa à história como uma arma
estratégica de maior alcance e maior eficácia na batalha contra o monopólio da terra”.
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19
Esse ponto de vista foi usado por vários autores (Bernardo Guimarães,
Taunay, Távora...) que, na ânsia de registrar uma cultura inteiramente brasileira,
apropriaram-se do tema do chamado “sertanismo” (BOSI, 1989, p. 155).
Salientavam o modo de vida sertanejo com base na produção de subsistência e nas
relações de compadrio, com suas manifestações culturais ligadas a modas de viola,
culinária, vida religiosa, crendices, mutirão entre outros.
Mas há muito a figura desse homem vem se desfazendo no contexto social.
Euclides da Cunha já previa esse processo, quando disse em Os Sertões: “Estamos
condenados à civilização. Ou progredimos, ou desapareceremos” (CUNHA, 2000, p.
76).
Segundo Aguiar (2000), nos anos 20 e 30, a literatura se politizou passo a
passo, as páginas literárias cobrem-se de migrantes deserdados tanto pelas
relações sociais iníquas como pela natureza adversa. Há um olhar crítico que se
afirma sobre os processos de modernização das fazendas e das relações de
trabalho no campo, que geram novas exclusões e problemas.
No olhar de alguns personagens paira até certa nostalgia dos tempos
anteriores. Naqueles, se havia a possibilidade de desmandos brutais,
as relações aparecem mais personalizadas e as responsabilidades
mais bem definidas. A relação tradicional, ao mesmo tempo
despótica e paternalista, é substituída pela impessoalidade da
exploração capitalista. (AGUIAR, 2000, p.13).
Nas obras, falavam sobre as secas, denunciavam os abusos dos
latifundiários; enfim, descreviam os estágios do camponês, do sitiante, do roceiro e
da vida simples no campo.
Uma nova esperança se desenhava com o combate ao nazi-fascismo e,
depois, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Afirma-se, nas palavras de Aguiar
(2000, p. 14) “uma literatura que elabora grandes painéis da nacionalidade (...). Fazse a revisão histórica dos projetos de modernização que se colocam num país em
crescente ebulição ideológica”. E, nesse período, como em anteriores, o campo é
considerado o lugar do atraso.
O golpe de 1964 trouxe mais à cena nacional do que apenas a repressão
imediata. Com ele veio à tona a idéia que o Estado não era promotor do progresso e
da civilização, mas era “o promotor da censura, da tortura, da exclusão, enfim, da
barbárie transformada numa política conscientemente assumida” (AGUIAR, 2000, p.
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20
14). Ainda segundo o autor, a narrativa implode, os pontos de vista se fragmentam,
os personagens adquirem autonomia redobrada num país que se urbaniza
rapidamente. Os dramas do campo se transferem para a cidade, e nesta se
acompanha o destino trágico dos migrantes. Segundo Hidelberto de Sousa Ribeiro
(2001), o contato que se estabelece, entre esse migrante e a cultura urbana, é
marcado por tensões e conflitos:
Expulsos de suas terras (...), a grande maioria viu seus sonhos e
esperanças serem transformados em utopia, sofrimentos e
frustrações. Não tendo como retornar ao lugar de onde saíram, foram
obrigados a residir em lugares que variavam conforme a condição
econômica de cada um. (RIBEIRO, 2001, p. 9)
O Estado impulsionava uma velada forma de acumulação de capital – a
privatização de grandes parcelas de terras -. Programou uma política de venda de
extensos lotes de terras devolutas para empresários, sem se preocupar, entretanto,
em verificar se elas estavam ocupadas ou não. Assassinados ou expulsos por
capangas contratados pelos novos donos, os antigos moradores passaram a viver à
margem da sociedade e em condições de miséria.
Em meio a tais mudanças na vida intelectual e na paisagem social
surge inadvertido, então, um novo personagem: o sem-terra, o
excluído que não quer migrar, e que exige de volta o elo com a terra,
que estaria condenado a perder. (AGUIAR, 2000, p.14)
A literatura enfoca também essas novas condições de marginalização, e
mostra que outro Brasil, com novos dramas, imagens e projetos, começa a se
desenhar, pois ela age como manifestação diversa em cada época e muda seu
enfoque de acordo com o fazer humano, como uma forma de conhecer a realidade
mais do que a própria história pode contar. Isso é possível devido à sua
subjetividade e ao seu trabalho com as palavras, como disse Flávio Aguiar:
É o teor literário que faz a verdade da escrita, porque permite
transformar o fato em significado. O resultado é um mundo além do
nosso mundo que, no entanto, nos faz compreendê-lo melhor.
(AGUIAR, 2000, p. 9).
É dentro desse contexto de exclusão que os personagens de “BCP” e “A
enxada” transitam; as narrativas expressam as novas relações de poder, e
evidenciam o choque cultural e a deterioração das condições de vida do homem.
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21
1.2 Elementos estruturais da narrativa
Neste tópico estudaremos os elementos estruturais e os recursos literários,
que se engendram como partes para formar um todo na composição da narrativa.
Análise e interpretação representam os dois momentos fundamentais
do estudo do texto, isto é, os que se poderiam chamar
respectivamente o “momento da parte” e o “momento do todo”
completando o círculo hermenêutico, ou interpretativo, que consiste
em entender o todo pela parte e a parte pelo todo. (CANDIDO, 1987,
p.20)
Conceberemos a análise assumindo individualmente cada uma das partes, tentando
descortinar depois as relações que entre elas se estabelece para formar um todo
coerente.
Os textos “BCP” e “A enxada” têm como forma literária em prosa de ficção o
conto. Segundo Cândida Vilares Gancho (2001), “o conto é uma narrativa mais
curta, que tem como característica central condensar conflito, tempo, espaço e
reduzir o número de personagens” (p. 08). Porém, essa condensação das categorias
não impede que o conto tenha complexidade.
De acordo com Nádia Battella Gotlib (1985), a forma curta do conto provém
de um motivo interno à sua construção – o contista deve concentrar efeitos para
ocasionar um determinado impacto no leitor -. E para que isso seja possível, o autor
deve ser bastante objetivo, omitindo o que não for essencial para esse impacto. Nos
contos estudados, por exemplo, a matéria é condensada para apresentar os
momentos decisivos que determinam o destino dos personagens.
O enredo do conto “BCP” se desenvolve em torno da ação de um antigo
funcionário do frigorífico, descrito na obra pelo nome de sua profissão, Matador. Ele
era considerado o melhor entre os funcionários, não errava um golpe. De tanto
matar, sua mão adquiriu uma nódoa que água e sabão não limpavam. Certa manhã,
quando sua esposa foi acordá-lo, o matador viu que algo estranho estava
acontecendo com seu corpo: ele estava adquirindo a forma dos animais que matara
durante aqueles trinta anos. Escondeu o quanto pôde a transformação, que
acontecia lentamente. Para substituir sua vaga no frigorífico, foi enviado seu próprio
filho. Um dia, porém, de todo transformado em um grande boi, foi visto pela mulher,
da qual havia se escondido por muito tempo. Ao ver o marido transformado em um
animal, desesperada, vai pedir orientação a uma conhecida. Retorna logo depois
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com uma corda, amarra o boi (marido), e vende-o ao matadouro, onde seu próprio
filho, já experiente no ofício e com a mesma reputação do pai, vai matá-lo. A esposa,
ao receber o dinheiro da venda, compra uma televisão, uma geladeira e mais um
pedaço de corda para quando chegar a vez do filho.
No conto de Bernardo Élis, o enredo desenrola-se em torno da busca de
uma enxada. Trabalhador pobre, porém disposto, Supriano, de alcunha Piano, é
dado como se fosse um objeto a Elpídio Chaveiro, produtor rural, por obra do
delegado, como pagamento de uma dívida. Piano é quem devia ao delegado, e este,
por sua vez, transfere o pagamento em serviços prestados a Elpídio. O serviço
prestado seria o plantio de uma roça de arroz, porém Piano não tem a enxada de
que precisa. Elpídio não proporciona as devidas condições de trabalho a seu
empregado. Supriano tenta adquirir de várias maneiras o instrumento de trabalho,
mas não o consegue. Tem um prazo a cumprir, e caso não faça o combinado, será
castigado. Então, corre contra o tempo e, na falta de uma enxada, utiliza um pedaço
de pau, e se sacrifica naquele trabalho. Seu prazo era até a festa do divino, e no
amanhecer deste dia, quase no fim do plantio, soldados a mando de Elpídio, com o
apoio do delegado, vão até Piano e o matam. Inicia-se a festa do divino, que mais
parece uma feira de negócios. Algum tempo depois surgem duas criaturas que
causam estranheza e espanto. É a família de Piano, que pede esmolas: o filho
surdo-mudo e a mulher Olaia, entrevada desde o parto do único filho. As pessoas
ficam indiferentes à presença deles, e as crianças querem apedrejá-los. Ela anda
montada nas costas do filho, que se arrasta como se fosse um animal que ronca
muito. No encontro com um soldado armado, eles vão embora bastante assustados.
Quase ninguém os conhecia, somente o vigário lembrou-se deles. E, não sabendo
do acontecido com Piano, não entenderam o pavor sentido pelo encontro com um
soldado.
A narrativa do conto “BCP” é feita em terceira pessoa. A voz que se ouve é a
do narrador, isso é detectado pelo emprego de alguns verbos no pretérito perfeito: “o
matador resmungou qualquer coisa, escondeu os pés sob as cobertas, virou para o
lado e continuou a roncar” (BCP, p.353).
Considerando ainda a tipologia elaborada pelo crítico norte-americano
Norman Friedman (2002), o foco narrativo é constituído por uma onisciência neutra,
por uma ausência de intromissões, embora somente o fato de ter selecionado
determinadas circunstâncias do personagem para narrar, os silêncios e pausas da
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23
narrativa, a escolha discursiva, já indiquem a impossibilidade de uma neutralidade.
O narrador, mesmo conhecendo os fatos, não faz comentários explícitos sobre eles,
é como se a história se desenvolvesse por conta própria:
Mais tarde, quando foi chamá-lo para o almoço, o encontrou
pensativo sentado a beira da cama, de cuecas, camiseta e botinas
amarradas até o tornozelo. À mesa anunciou que não ia mais
trabalhar. Durante trinta anos labutara no matadouro... agora estava
cansado. Passava o cargo ao filho. (BCP, p.353)
Já no conto “A enxada”, apesar de a narrativa também ser feita em terceira
pessoa, o narrador é onisciente intruso, pois, além de conhecer e ter a liberdade
para escolher como contar os fatos, ele ainda interfere na história com comentários
particulares. Por exemplo:
– Vem trabalhar mais eu, Piano. Te dou terra de dado, te dou
interesse...
Mas podia Piano lá aceitar? Obra de cinco anos, Piano pegou um
empreito de quintal de café com o delegado. Tempo ruim, doença da
mulher, estatuto de contrato destrangolado, vai o camarada não pode
cumprir o escrito e ficou devendo um conto de réis ao delegado... e
no fritar dos ovos acabou Supriano entregue a Elpídio.... com ele,
foram a mulher entrevada das pernas e o filho idiota..(“A enxada”,
p.315).
O posicionamento do narrador é autoritário, em jogo dinâmico que mistura
discurso direto, indireto e indireto livre, faz uso de nasalização de sons, de termos e
sintaxe próprios da língua falada no local. Ele maldiz/bendiz os personagens e seu
fazer, construindo o ambiente trágico da narrativa:
Supriano explicou que estava vendendo um melzinho, mode comprar
uã enxada. Apois que tocar lavoura carece de ter ferramentas, o
senhor não aprova?
Piano era trabalhador e honesto. Devia ao delegado porque ninguém
era homem de acertar contas com esse excumungado”. ( “A enxada”,
p.315).
Gancho (2001), fazendo uso da teoria de E. M. Forster classifica os
personagens quanto ao papel desenrolado no enredo e quanto à caracterização,
ordenando-os em dois grupos: personagens redondas e personagens planas. A
primeira predomina nos romances psicológicos e introspectivos, ao passo que os
personagens planos, pensando nas formas em prosa, comparecem na maior parte
nos contos, novelas e romances lineares, e geram os personagens tipos e
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caricaturas. Segundo essas definições, analisaremos os personagens dos contos
estudados.
Piano é protagonista da narrativa, descrito como um homem de aparência
humilde, de boa índole. “Não sei adonde que Piano aprendeu tanto preceito.
Pensava dona Alice. (...) maltrapilho, mas delicado e prestimoso como ele só” (“A
enxada”, p.314). Era lavrador e não possuía terra própria, prestava serviço aos
fazendeiros, donos de terras produtivas e de prestígio na sociedade, homens que
ditavam as leis em benefício próprio. “Piano pegou empreita de quintal de café com
o delegado... estatuto do contrato muito destrangolado, vai o camarada não pôde
cumprir o escrito (...)” (“A enxada”, p. 315).
Como antagonistas temos o Capitão Elpídio Chaveiro e o delegado. O
primeiro usava a posição social para subjugar os menos favorecidos. Por ser filho do
senador Elpídio Chaveiro, conseguiu grandes extensões de terras, as quais eram
habitadas por sitiantes que foram expulsos segundo leis que o próprio Estado
forjava: “A Forquilha, terras pertencentes à Desidéria e Manuel do Carmo, mas que
o filho de Donana (Elpídio) comprou ao Estado como terra devoluta (“A enxada”,
p.316). O delegado, descrito como perverso bajulador de autoridades, submisso às
ordens do Capitão Elpídio, cumpria o papel de “capitão do mato”
4
em relação a
Piano.
Vai-se embora, nego. E se fugir te boto soldado no seu rasto. E
Elpídio punha mesmo, que este fora o trato: Elpídio ficaria com
Supriano se o delegado se obrigasse a buscar o negro em caso de
fuga... (“A enxada”, p.316)
A mulher Olaia e o filho bobo, que constituem a família de Piano, são
personagens secundárias, mas que compõem, em si, a mesma massa, moldada e
destruída socialmente, que causam grande impacto no leitor devido às suas
condições subumanas:
De dentro do rancho veio Olaia, as gengivas supurosas à mostra, se
arrastando, pois a coitadinha era entrevada das pernas, em desde o
parto do bobo. (“A enxada”, p.319).
4
Capitão-do-mato era, na origem, um empregado encarregado de reprimir os pequenos delitos
ocorridos no campo. Na sociedade escravocrata do Brasil, a tarefa principal ficou a de capturar os
escravos fugitivos.
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Que nem um cachorro era na beira da fornalha que permanecia dia e
noite; ali cozinhava, ali lavava roupa e remendava, ali dormia, ali
fazia suas precisões. (“A enxada”, p.325)
O filho é que não se movia. Era bobo babento,cabeludo,que vivia
roncando pelos cantos da casa ou zanzando pelos arredores no seu
passo de joelhos mol. Diziam que fungava na lama tal e qual um
porco dos mais atentados.Capaz que fosse verdade, porque a
fungação dele e o modo de olhar era ver um porco, sem tirar nem
pôr.( “A enxada”, p.319).
Os personagens são planos, em toda a narrativa eles agem de forma a
confirmar suas características. Tanto o coronel como o delegado são personagens
tipo, tratados pela suas posições sociais, representantes do poder do Estado. Piano,
sendo honesto e injustiçado, vai até o fim tentando provar a sua honra; o capitão e o
delegado não recuam da sua arrogância e abuso de poder.
Em “BCP” os personagens não possuem nome próprio. O protagonista
atende pelo nome de sua posição social “Matador”, a esposa é denominada como “a
mulher”, e a prole do casal apresentada como “filho”. “Matador debruçou-se sobre o
prato devorando a comida, sem dar ouvido á mulher. Ela, desesperada, chorava
implorando que voltasse ao trabalho. O filho não tinha idade” (“BCP”, p.353).
Os personagens são anulados enquanto indivíduos, pois, pensando na
definição de substantivo próprio como o que designa o ser como único, os
personagens de “BCP” representam, devido à ausência do nome próprio, uma
coletividade.
Há uma predominância da voz do narrador em relação à voz dos
personagens. Esta situação coopera ainda mais para invalidar a condição de
indivíduo, pois, segundo o estudo de Benveniste (1966, apud FIORIN, 2005), as três
pessoas da comunicação não têm o mesmo estatuto, e a terceira pessoa goza de
uma situação especial na conjugação, conforme explica o autor: “Nas diferentes
línguas, sempre é ela que é empregada quando não se designa a pessoa, o
processo é relatado enquanto puro fenômeno cuja produção não está ligada a
qualquer agente ou causa” (FIORIN, 2005, p.59)
A terceira pessoa é a única com que qualquer coisa é predicada
verbalmente, uma vez que ela não implica nenhuma pessoa, podendo representar
qualquer sujeito ou nenhum. “A chamada categoria de pessoa possui, para
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Benveniste, duas correlações: a da pessoalidade, em que se opõe pessoa (eu / tu) e
não pessoa (ele)...” (FIORIN, 2005, p.60).
Esse modo de construção discursiva vai contribuindo com o processo de
desumanização dos personagens, que será estudado mais detidamente na segunda
parte, tanto em relação à sua condição física quanto social, que se dá de muitas
maneiras, dentre elas, pela aparência, pela constituição e relações familiares,
espaço e tempo.
Em “A enxada”, as imagens da mãe e do filho foram de cachorro e porco;
em “BCP”, pai e filho, de bovinos:
Quando ele dormia [Matador], [a mulher] entrou furtivamente na sala
e... levantou a coberta... recuou assustada: uma pata pendia da rede,
um casco de boi nitidamente conformado / ... ficava à porta olhandoo [filho] descer a rua, tão miúdo, mal se agüentando nas pernas
como um terneirinho. (“BCP”, p.353).
No interior da constituição familiar, em “A enxada”, a mulher se debilita no
parto, tendo parido um filho problemático, dois indivíduos em situação parasitária,
fator que, somado à sua condição financeira, já determina o único e frágil arrimo da
família, o marido.
Em “BCP”, todos fisicamente bem constituídos, a mulher é o ponto forte.
Embora improdutiva em termos de geração de renda, é a que promove a
manutenção da casa, preocupa-se com o provimento da subsistência e age
premeditadamente. Não há relação de proximidade conjugal, o marido tem-lhe
medo, não sendo capaz de revelar a ela a sua metamorfose. Refletindo sobre os
laços estabelecidos entre todos os personagens, podemos dizer que é a maior
antagonista, posto que deveria defender sua família, mas faz exatamente o
contrário:
Aproximou-se do marido... atou-lhe uma corda no pescoço e
conduziu-o carinhosamente ao matadouro, onde vendeu por um bom
preço aquele boi forte, malhado (...)”./ “a mulher, sendo mulher
prevenida, com o dinheiro comprou uma televisão... e alguns metros
de corda, para quando chegasse a vez do filho (“BCP”, p 354).
Segundo Fiorin (2005, p.259), quando a narrativa se ocupa do espaço, não
se interessa tanto em produzir uma sintaxe espacial, mas em criar uma
ambientação, que ele entendia como “conjunto de processos conhecidos ou
possíveis, destinados a provocar na narrativa a noção de um determinado
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ambiente”. É notável esse processo de ambientação no conto “BCP”, onde o espaço
sofre um significativo afunilamento e assume grande importância na obra. Não há
caracterização física do espaço. A casa resume-se a quarto, cozinha e sala:
Encontrou-o pensativo sentado à beira da cama.. / À mesa,
anunciou que não ia mais trabalhar. / ... bufando sempre, foi estirarse na rede armada na sala /saiu da sala e chaveou a porta / espiou
pela porta entreaberta e constatou o esperado... / tornou a fechar a
porta. (“BCP”, p.354).
As situações descritas permitem visualizarmos um ambiente estreito, restrito,
uma prisão, já que as portas da casa estão sempre fechadas e o corredor do
frigorífico não apresenta outra saída, o que nos leva a dizer também que não há
recurso para a situação do personagem.
O espaço do matadouro não é uma unidade, pois não possui um nome
próprio que o individualize; os seres e coisas mencionados nos remetem ao que é
um frigorífico, podendo ser qualquer um. A descrição de facas afiadas, muito
sangue, seres angustiados, demonstra uma atmosfera fúnebre.
Os bois maiores... aqueles que pareciam prever a morte e tentavam
evitá-la... Lá os esperava, a faca na mão. Tanto boi matara que tinha
as mãos manchadas: o sangue entranhara na pele... (“BCP”, p.353).
O Matador, este, ao entrar no corredor, viu ao longe o filho que o
esperava à porteira, a lâmina brilhando ao sol, as mãos tingidas pelo
sangue dos seus antecessores,... sentiu no flanco a picada da vara
que o instigava a seguir. Baixou a cabeça,... e arremeteu em direção
à faca... (“BCP”, p.354).
O protagonista (Matador) no início da narrativa ocupava a casa e o
frigorífico; logo depois, passa a ocupar somente a sala; em seguida, ele se instala
em um canto sem saída. Finalmente, no matadouro em um corredor apertado, é
obrigado seguir para frente onde a morte o esperava. Esse estreitamento do espaço
está diretamente relacionado ao aniquilamento do Matador, o cenário não é
simplesmente um pano de fundo, mas algo possuidor de força dramática, revelador
do estado final do personagem. Toda a casa e o frigorífico são suprimidos por um
corredor, no final desse, encerra-se o cenário e a vida do homem que ali trabalhou
durante trinta anos.
O narrador de “A enxada” também constrói um ambiente triste e
sombrio, porém, aquele se passou em um espaço urbano e este apresenta um
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cenário rural: “Piano pôde vislumbrar sua roça. O terreno enegrecido, sujo de
troncos queimados, nu de qualquer plantação onde o capim já pegava a crescer...”
(“A enxada”, p.32).
Ao contrário do frigorífico, a fazenda onde deve ser feito o plantio do arroz é
nomeada - “Forquilha” -. Relacionamos esse nome ao “instrumento de tortura
bastante usado nos tempos da Inquisição na Idade Média Européia” (VILARINO,
2002, p. 3), para incitar a confissão, real ou imaginária, de heresias; a voz da vítima
no momento do depoimento saía abafada. “Forquilha” é o espaço onde Piano sofre
torturas físicas e psíquicas na tentativa de encontrar a enxada e provar sua
dignidade diante do patrão. No final dos dias, sem oportunidade de provar a sua
inocência, e devido à opressão a qual era submetido, a voz do homem injustiçado é
substituída por gemidos abafados confundidos com os dos animais próximos à
morte.
A deformação da casa de Supriano é entendida como antropomorfa, é como
se a deterioração do espaço ‘casa’, fosse o próprio corpo de Supriano dilacerandose, decompondo-se em vida e também após a morte.
Num xixixi chiava a chuva fina na saroba que afogava o rancho,
insetos e vermes roíam e guinchavam pela palha do teto apodrecida
pela chuva. Nos buracos do chão encharcados, escorregadios e
podre, outros bichos também roíam, raspavam e zuniam. (“A
enxada”, p.32).
O espaço onde aconteceu o primeiro encontro de Piano com Elpídio, após a
ordem dada para a plantação, foi em frente a um cemitério. O patrão tratou o
empregado rudemente causando lhe medo e demonstrando que aquele lugar era
sua futura casa, se caso não cumprisse as ordens dadas.
(...), mas seu Elpídio cercou ele no largo do cemitério. Seu elpídio
disse que o encontro foi por acaso, mas Piano acha que foi muito de
propósito. O patrão chegou com rompante, enorme em riba de
mulona, as esporas tinindo, as armas sacolejando. ( “A enxada”, p.
317)
Ao construir a “ambientação”, Bernardo Élis tira proveito de um dos traços
culturais mais acentuados do povo interiorano: o sentimento de religiosidade. Para
isso, elabora um campo semântico com uma gama de referentes ligados à Igreja
Católica que, na década de 60, tinha o monopólio dos fiéis. Encontramos uma série
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de nomes de santos: Santa Bárbara, Santa Luzia, Nossa Senhora da Guia, Divino
Padre eterno, São Benedito e Deus Nossinhô, além de palavras e expressões desse
universo, como “pelo- sinal” e “bentinho”:
No escuro Olaia fazia o pelo-sinal. A todo baque da porteira, Olaia se
benzia: “Se for o Cão, desconjuro. Se for viajante, Senhora da Guia
que te guie filho de Deus! (“A enxada”, p. 319).
No fluxo da trama, o autor também faz alusão à religiosidade introduzida no
dia-a-dia do povo, de tal forma que a passagem do tempo cronológico é marcada
por analogia à duração de práticas religiosas:
“[...] Seu Joaquim permaneceu silencioso e de cara fechada o tanto
de se rezar uma ave-maria”(“A Enxada”, p. 315)
Em dia de Santa Luzia, tu ainda nesse dia não tenha plantado arroz,
te ponho soldado no lombo ((“A enxada”, p.318)
Os fatos nos dois contos se sucedem numa seqüência natural, o enredo é
linear, portanto, segundo Gancho (2001), o tempo é cronológico, mensurável em
horas, dias, meses e anos.
Supriano tacou um punhado de feijão num buraco da parede do
rancho. Cada dia era um feijão que ele pichava fora” ( p 318) / “Em
dia de Santa Luzia, tu ainda nesse dia não tenha plantado arroz, te
ponho soldado no lombo...” (p.317) / “Como era dezembro, a noite
não veio assim de baque...” / “hoje é dia onze, até dia treze, se ocê
num tiver plantado... ((“A enxada”, p.322).
A cada indicação do tempo na obra, aumenta a angústia do personagem e se
cria uma expectativa para o leitor. A narrativa é acelerada e, para o protagonista,
tempo e lucidez, que caminham juntos, vão se esgotando mediante a dificuldade de
realizar a tarefa.
Em “BCP”, o narrador, no decorrer da narrativa, demarca insistentemente os
períodos manhã, tarde e noite, deixando bem clara a passagem do tempo e o
surgimento do próximo dia:
“(...) certa manhã, quando a mulher foi acordá-lo par o trabalho...”
“(...) “mais tarde, quando foi chamá-lo para o almoço...”
“À noite, acomodou-se na rede...”
“(...) no dia seguinte, inútil qualquer argumento, a mulher levantou
cedo...” (“BCP”, p. 353)
José Fernandes (1992) argumenta que o homem normalmente lança-se para
o futuro, mas, sempre volta ao passado, e essa articulação permite, segundo o
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autor, dizer que o “tempo é a duração da essência e da existência” (p. 183). E, se
assim concebermos, é ele também o elemento determinador do ser, na medida em
que existir pressupõe, necessariamente, estar no mundo e no tempo. Sob esta ótica,
a ausência do nome indetermina o ser culminando com supressão do tempo.
Dissemos que, para “existir” é necessário estar no mundo, ou melhor, o
homem é um ser que vive no tempo e no espaço. “A determinação temporal, ou
mesmo o relato do vivido, implica a existência do espaço” (FERNANDES, 1992, p.
184). O espaço será o instrumento de expansão ou restrição do horizonte e,
conseqüentemente, das possibilidades de ser. Assim como o tempo e o ser, o
espaço também transcende a história da narrativa, portanto, estar fora do tempo
implica “desespacialização”.
O espaço Matadouro, descrito na narrativa, como foi dito, não nos dá
detalhes e nem um nome próprio que restrinja a história àquele frigorífico. Os seres
e coisas mencionados nos remetem ao ambiente de um matadouro, podendo ser
qualquer um.
Assim temos um personagem a-histórico e um tempo e espaço que
transcendem o tempo e espaço da historia. O matador e sua condição de vida não
são fatos acontecidos em determinada data, são fatos do sempre.
Para Piano, a manutenção da vida é uma questão de tempo. Há um prazo e,
findo este, ela se acaba. Mas, ao contrário daquele, Matador se resigna ao seu
destino, não luta para manter sua existência, como faz Piano. Retomaremos no
tópico “absurdo” essa questão da conformidade do Matador diante de seu trágico fim
e da incansável luta de Supriano para mudar seu destino.
Falaremos a seguir, sob a perspectiva de João Adolfo Hansen (2006), Brait
(1996) e Fernandes (1992) sobre três recursos literários utilizados pelo autor na
integração das partes para constituir o todo coerente da narrativa.
1.3 Alegoria
Os retóricos antigos distinguiam metáfora e alegoria da seguinte maneira: a
primeira considera apenas termos isolados; a segunda amplia-se a expressões ou
textos inteiros. Para eles, a linguagem alegórica não possui o mesmo dinamismo
que a linguagem metafórica, que é susceptível de variação semântica mais
profunda, a ponto de não suportar a repetição de um mesmo significado nem
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depender de significados pré-fixados. Em todas as alegorias das narrativas
clássicas, podemos
encontrar sentidos
mais
ou menos
fixos
em certas
representações como os hieróglifos, por exemplo, cujas figuras obedecem sempre a
um processo inalterável de decodificação: um olho simbolizará sempre Deus e um
abutre designará a Natureza.
Por outro lado, o entendimento das possibilidades significativas da alegoria
só poderá ser alargado quando as exegeses não estiverem ao serviço de colégios
hermenêuticos. Segundo Hansen (2006), a longa história da literatura alegórica é
também paralela à história das interpretações dessa literatura, que sempre
procuraram fixar um sentido único. A abertura do sentido da alegoria é uma
conquista apenas da teoria da literatura do século XX.
O mesmo autor descreve o conceito medieval de alegoria, dizendo que
existiam dois tipos de alegoria: “alegoria dos poetas” e “alegoria dos teólogos”:
Não se pode falar simplesmente de alegoria, porque há duas, uma
alegoria construtiva ou retórica, uma alegoria interpretativa ou
hermenêutica (...) a alegoria dos poetas é uma semântica de
palavras ao passo que a dos teólogos é uma semântica de
realidades supostamente reveladas por coisas, homens e
acontecimentos nomeados por palavras (HANSEN, 2006, p. 8).
A primeira tem como característica a técnica metafórica de representar e
personificar abstrações, a outra não é um modo de expressão verbal retóricopoética, mas de interpretação religiosa de coisas, homens e eventos figurados em
textos sagrados. O autor chama a atenção para que compreendamos que a alegoria
é procedimento intencional do autor do discurso e sua interpretação é ato do
receptor:
A interpretação está prevista por regras que estabelecem sua maior
ou menor clareza, de acordo com os gêneros e a circunstâncias do
discurso. O importante a manter da distinção, porém, é que a
alegoria dos poetas, tanto construção quanto interpretação, era
essencialmente lingüística. Quanto à alegoria dos teólogos,
hermenêutica (...), é cristã e medieval”. (HANSEN, 2006, p. 09).
A retórica grego-latina teorizou a alegoria como simbolismo lingüístico; os
padres primitivos da Igreja da Idade Média a adaptaram, pensando-a como
simbolismo lingüístico revelador de um simbolismo natural das coisas, escrito desde
sempre por Deus na Bíblia e no mundo. Esses conceitos se chocam no Romantismo
quando, segundo Hansen, o símbolo passa a ser violentamente oposto à alegoria.
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Segundo os românticos, o símbolo – que as tradições antigas, grecolatinas, medievais e renascentistas não distinguiam da alegoria – é
uma espécie de paradigma ou classe da qual ele é o único elemento.
Por isso sua significação é sempre imediata; em sua particularidade,
ele contém ou expressa o geral. Por exemplo, a Cruz e o
Cristianismo. Oposto ao símbolo, a alegoria é teorizada como forma
racionalista, artificial, mecânica, árida e fria. Retoricamente, a
alegoria diz b para significar a, como se escreveu, observando-se
que os dois níveis (designação concretizante b e significação
abstrata a) são mantidos em correlação virtualmente aberta, que
admite a inclusão de novos significados (HANSEN, 2006, p. 15).
Segundo a alegoria greco-romana, o mundo é objeto de representação
própria e figurada. Segundo a alegoria hermenêutica, desde sempre existe uma
prosa do mundo a ser pesquisada no universo da prosa bíblica.
A interpretação não se ocupa de nossas classificações verbais, mas
da estrutura mesma do universo e da sua ordem. “ler é reler o
mesmo em suas variações temporais minuciosa, pois Deus é Causa
e Coisa, e a natureza e a história, são seus efeitos e signos”
(HANSEN, 2006, p.13).
Hoje, porém, à luz de Saussure, pensamos o signo como um procedimento
discutível e acreditamos que não há nenhum sentido natural ou transcendente
prefixado ao discurso, ou seja, o sentido é produzido por uma interpretação
particular e momentânea.
Entendida de maneira nominalista ‘moderna’, a alegoria deixa
evidentemente de ser uma forma entendida como mediação ou
reprodução sensível de substâncias em que vão ecoando as vozes
da ausência. Ela passa a ser, entre outras, uma técnica ou um
artifício de teatralizar uma idéia metafísica. Como técnica retórica,
produz efeitos unificados pela interpretação como causa do mundo e
da linguagem do interprete (...). Por isso, em termos estritamente
lingüísticos, a interpretação alegórica poderia ser proposta como
cena imaginária em que atua um autor que foge, quando se mostra,
não para “antes”, prosa inscrita nas coisas do mundo, ou “além”,
verdade transcendente que se revela na sua aparição em cena, mas
lateralmente, deslocando-se na simultaneidade do sistema retórico
posto a funcionar na prática interpretativa. (HANSEN, 2006, p.94).
A decifração de uma alegoria depende de uma leitura intertextual particular,
e sua construção é racional, feita no mesmo nível de consciência, de forma que
aquilo que é conhecido possa ser visto de outra maneira.
Dentro das narrativas estudadas, por exemplo, a alegoria apresenta um
arcabouço de:
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a) luminosidade contrastando claro/escuro, como em “BCP”, onde o narrador
faz menção o tempo todo de períodos dia/noite, aproximando a personagem do seu
irreversível fim. Ex:
Certa manhã, quando a mulher foi acordá-lo para o trabalho... / Mais
tarde quando foi chamá-lo para o almoço... / À noite acomodou-se na
rede... / No dia seguinte, inútil qualquer argumento... (“BCP”, p. 353)
b) sonoridade: a narrativa “A Enxada” apresenta discurso direto e indireto, o
que podemos interpretar como oscilação da voz do personagem, que no fim da
narrativa sucumbe e passa a emitir sons agonizantes. Vejamos:
O pedido não foi formulado assim de um só jato não. Piano roncou,
guspiu... falou uns “quer dizer”, “num vê qui”... e Piano completou: –
A gente não quer de graça. (“A enxada”, p.315).
Olaia quis seguir com os ouvidos os movimentos de Piano, mas o
que vinha do negrume era um mugido de gado triste. Depois quase
sumindo, o latido de um cão, latido esquisito... (“A enxada”, p. 327).
Em “BCP”, o discurso é indireto, a voz que se ouve é a do narrador; o personagem
emite apenas sons.
Nem ao menos deu conselhos ao filho,... Limitou-se a soltar um
mugido quando o menino se despediu. (“BCP”, p. 353)
c) os corpos, em “BCP”, apresentam dois níveis de sobrevivência, estão
sempre em movimentos de horizontalidade e verticalidade, cama/mesa, como no
exemplo do tópico ‘a’; representando a luta pela vida, vivo/morto e, por fim, os
movimentos se encerram em um corredor onde o personagem entra verticalmente, e
seu corpo vencido pelas infames injustiças da vida, tomba horizontalmente para
mergulhar no silêncio profundo dos esquecidos.
Supriano é a alegoria de uma classe pobre e subalterna. É a representação
de ausências de oportunidades e de lugares. Ele existe numa posição submissa, ao
passo que o capitão Chaveiro é detentor de poder público, de posse de terras e
bens simbólicos de reconhecimento que o colocam em evidência na cidade.
Essa liberdade de leitura possibilita o entendimento da realidade ficcional
como arcabouço narrativo que compõe uma situação imaginada e que remete ao
mesmo tempo para um estado de mundo fora da imaginação, um mundo onde os
fatos são reais.
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1.4 . Ironia
As diversas formas de apreensão de uma mensagem estão relacionadas à
experiência de cada indivíduo participante do processo comunicativo. Nesse sentido,
a consciência individual é formada a partir de um horizonte social, vinculado a
determinada época, situações e maneiras de interpretar a realidade, ou seja:
O que está atualizado, em presença, não pode ser compreendido a
não ser que se leve em conta uma ausência que de alguma forma ali
ressoa por vias de uma contextualização que sinaliza a confluência
presença – ausência. (BRAIT, 1996, p. 76),
Concluindo que o fenômeno da ironia está diretamente relacionado a essas
pontuações e, para que a ironia surta efeito, é absolutamente indispensável que os
sujeitos do discurso tenham as mesmas referências.
Sob o ponto de vista filosófico, o exemplo de ironia concentra-se em
Sócrates, pois ele tinha essa técnica, como o principal método de seus diálogos.
A ironia socrática, segundo Silva (2006), tendia a despojar a pessoa da sua
falsa ilusão do saber, fragilizando a sua vaidade e permitindo, assim, que a pessoa
estivesse mais livre de falsas crenças e mais susceptível a extrair a verdade lógica
que também estava dentro de si.
Sendo filho de uma parteira, Sócrates costumava comparar a sua atividade
com a de trazer ao mundo a verdade que há dentro de cada um.
Consistia na estratégia discursiva de propor questões
dissimuladamente simples ao leitor dogmático, a fim de confundi-lo e
de mostrar-lhe a fraqueza das opiniões e raciocínios, introduzindo
uma turbulência denominada aporia. Quando utilizada por Sócrates
no contato com os seus discípulos, a ironia resultava no alargamento
progressivo das consciências. (BITTENCOURT apud BRAIT, 1996,
p. 2).
Sócrates nada ensinava, apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas
opiniões próprias e limpas de falsos valores, pois acreditava que o verdadeiro
conhecimento vinha de dentro, de acordo com a consciência.
Para Brait (1996), a idéia tradicional de ironia socrática, ou seja, a maneira
clássica de conceber esse fenômeno de linguagem remete a questões bastante
precisas sobre a dimensão enunciativa e discursiva da ironia. Segundo a autora, é
possível acrescentar uma dimensão teórica contemporânea que consiste em
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apreender esses diálogos como produção de linguagem que se dá no cruzamento
de enunciações, enunciadores e locutores.
Se o exemplo de ironia cristalizava-se em Sócrates, advindo daí a
denominação ironia socrática, é a partir dos textos de Friedrich Schlegel (1772 1829), de acordo com Brait, que a ironia é introduzida na estética romântica.
“Teórico do primeiro romantismo, é ele o autor da concepção de arte que coloca a
ironia como elemento que garante ao poeta a liberdade de espírito” (BRAIT, 1996, p.
26).
Para Schlegel, a ironia é a clara consciência da agilidade infinita do caos e
nasce da consciência do caráter antinômico da realidade, constituindo uma atitude
de superação, por parte do eu, das contradições e conflitos entre o absoluto e o
relativo. Vejamos:
A ironia é a única dissimulação absolutamente involuntária e, no
entanto, refletida (...). Nela, tudo deve ser brincadeira e seriedade,
expansão sincera e profunda dissimulação... Ela contém e suscita o
sentimento de conflito insolúvel do absoluto e do circunstancial, da
impossibilidade e da necessidade de uma comunicação total (...)
(SCHLEGEL apud BRAIT, 1996, p. 26).
Definida e praticada de diversas formas por filósofos, poetas e prosadores “a
ironia romântica pode ser traduzida como o meio que a arte tem para se autorepresentar” (BRAIT, 1996, p. 29). Ela age como articulação entre filosofia e arte,
pois não estabelece fronteira entre princípio filosófico e estilo literário. “... uma
dimensão irônica ultrapassa um trabalho atomizado em frases e em características
particulares de um escritor (...), desconhecendo (...) os limites entre discurso literário
e não literário” (BRAIT, 1996, p. 28).
Além desse aspecto caracterizador e dos demais discutidos, há ainda outros
a serem sublinhados: ironia como idéia de contradição, de duplicidade.
Ironia como traço essencial a um modo de discurso dialeticamente
articulado; o distanciamento entre o que é dito e o que o enunciador
pretende que seja entendido; a expectativa de um leitor capaz de
captar a ambigüidade propositalmente contraditória desse discurso.
(BRAIT, 1996, p.34).
Tomemos como exemplo de ironia a figura do padre, no conto “A Enxada”,
pessoa a quem sempre se apela mediante algum problema, homem que luta pelos
direitos de igualdade, aquele que possui solução e conselho e não faz discriminação
de pessoas. No entanto, o narrador ao descrever o encontro de Piano com o vigário,
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deixa bem claro a posição de superioridade deste em relação aquele. Contrariando
seu papel, o padre ignora a existência de Piano.
Piano já estava enjoado de esperar, quando passou pela porteira
seu vigário. (...) na sua mulona ferrada, guarda-sol aberto, dos
brancos por fora e azuis por dentro, lendo o breviário, muito seu
fresco.
__ A bença, seu vigário.
__ Deus te abençoe.
E nem teria esbarrado o animal, nem se quer olhado a quem lhe
tomara a benção, se Piano não insistisse. (“A enxada”, p.319)
Piano detinha um grande problema, não possuía uma enxada com que
pudesse trabalhar para poder pagar sua dívida, e preservar a sua vida e a de sua
família, então, pede a intercessão do vigário e solicita o empréstimo de uma enxada.
Este, o entrega à sorte de um sacristão pouco interessado na situação daquele
homem “feio, sujo, maltrapilho” (p.314). Ao receber ordem do padre, o sacristão vai à
busca da enxada, pouco tempo depois, sem uma explicação diz não tê-la
encontrado. Insiste Piano:
__ Será que não ta emprestada?
__ Capaz – mal respondeu o sacristão, que mostrava ser um
sujeitinho muito intimador e enfatuado (“A enxada”, p. 320)
Beth Brait desenvolve sua análise centrando a característica da ironia na
ambigüidade argumentativa: “A ironia distingue-se das outras formas de contradição
pelo fato de ser uma contradição de valor argumentativo”. (BRAIT, 1996, p 88). Ela
tem caráter de alegar, propor idéias, ela justifica e leva-nos a crer na veracidade de
uma conclusão.
Para a autora, a ironia aparece como infração à lei da coerência, ou seja, a
ironia se produz porque o mesmo enunciado entra simultaneamente em duas
classes: a dos argumentos favoráveis e a dos argumentos desfavoráveis a uma
mesma proposição. “Daí resulta a percepção da contradição, que existe não do
ponto de vista de uma verdade referencial, mas do ponto de vista de um valor
argumentativo” (BRAIT, 1996, p.89). Ela conclui que a definição clássica de ironia,
figura pela qual se faz entender o contrário do que se diz, é frágil, pois o mesmo
enunciado pode ter muitos contrários. Segundo Brait, é possível aceitar essa
definição desde que se entenda por contrário, o valor argumentativo inverso.
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Amparados por esse ponto de vista, consideramos a ironia na análise dos
contos propostos, como atuação no processo de interpretação, em que o leitor é
compelido a também agir de maneira intertextual.
Refletindo sobre esses elementos analisados, consideramos que eles
contribuem para a confirmação de que a literatura é vinculada à realidade, mas dela
foge através da estilização de sua linguagem e que as fantasias manifestas por ela
têm sempre sua base no real, nunca são puras.
O caminho que a literatura percorre é este. Dotado de uma percepção
aguçada, o artista capta a realidade, recriando-a. Ao mesmo tempo ou a partir daí,
ele sente, escolhe e manipula as palavras, organiza-as para que produzam um efeito
que vá além da sua significação.
1.5 O absurdo
Para verificar a natureza e as formas de afirmação do poder capitalista nas
obras estudadas, recorreremos a José Fernandes (1992) que, a partir das definições
de “coisificação”, e a de absurdo, de Camus, define a situação absurda como a
perda progressiva e irreversível da identidade e da capacidade de ação do sujeito.
Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre significam mais
do que o que têm consciência de dizer. Eles trazem junto a si seu universo,
esplêndido ou miserável: Universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da
generosidade.
Sabemos que muitas vezes as grandes ações e os grandes pensamentos
têm um começo irrisório. As grandes obras nascem, freqüentemente, na esquina de
uma rua ou no barulho de um restaurante. Assim também a absurdidade. O mundo
absurdo, mais que qualquer outro, extrai sua nobreza desse nascimento miserável.
Para Albert Camus (1989), num universo onde reinam a contradição, a
antinomia, a angústia, o homem não deve tentar concluir-se, uma vez que isso se
afirmaria como uma traição à vida. “Um mundo que a gente pode explicar, mesmo
que mal, é um mundo familiar. Mas, ao contrário, num universo repentinamente
privado de ilusões e de luzes, o homem se sente um estrangeiro” (CAMUS, 1989, p
20). O sentimento de ser estrangeiro à sua própria vida torna equivalentes todas as
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experiências. Tal sentimento de divórcio entre o homem e a vida é chamado de
absurdo.
Para o autor, a impossibilidade de preencher a distância entre o mundo e o
ser funda a absurdidade da vida. Assim, o sentimento de absurdo se caracteriza
pelo confronto do irracional e pelo desejo perdido de claridade, apelo que ressoa no
mais íntimo do homem. “Esse confronto do irracional é, no seu limite, o confronto da
morte”. (CAMUS, 1989, p 37). Nesse sentido, o absurdo é ao mesmo tempo o
registro da morte como sacrifício e da impossibilidade de justificar esse sacrifício. É
uma ruptura de unidade ou separação entre o apelo do homem à unidade e a visão
que ele tem das paredes que o cercam.
Este divórcio não é só entre o homem e o mundo, uma vez que o homem
não é só um exilado no universo, mas também um exilado na sociedade e um
estranho para si próprio. Segundo Hilda Magalhães (2002), o homem, mergulhado
na existência, experimenta de tempo em tempo uma aguda consciência da
precariedade de sua condição no mundo. Nesses momentos, retornando a Camus,
“os aspectos mecânicos de seus gestos, sua pantomima privada, torna estúpido
tudo que o rodeia.” (CAMUS, 1989, p 38).
O cotidiano, que é familiar, passa a ser, da noite para o dia, estranho, e o
mundo, que lhe parecia coerente, torna-se repentinamente absurdo. Essa
consciência é efêmera, pois, embora a absurdez exista sempre, tal experiência é
interditada ao homem de modo permanente. Entretanto:
É suficiente um único olhar que reconheça a ausência de coerência
entre o homem e a vida para que o indivíduo possa provar esse mal
estar, essa incalculável queda diante da imagem do que somos.
(MAGALHÃES, 2002, p. 13)
O personagem absurdo não pode se desenvolver nem individual nem
socialmente, e essa situação causa, segundo Camus, a consciência da falta de
sentido da vida. E, segundo Magalhães (2002), o exílio, fundamento do absurdo
exprime-se
no
personagem
absurdo
enquanto
estranhamento,
revolta
e
desesperança, quando o homem se encontra privado das lembranças de uma pátria
perdida ou da esperança de uma terra prometida. Ser humano significa, portanto,
pertencer ao absurdo, ser o testemunho da dilaceração do ser, como exprime o
filósofo:
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Entre a certeza de que tenho de minha existência e o conteúdo que
tento dar a esta certeza, o fosso jamais será preenchido. Para
sempre, serei estranho a mim mesmo. (CAMUS, 1989, p. 50)
José Fernandes (1992) define, a partir de Camus, o absurdo como uma
situação de extrema violência em que os homens, sedentos de dinheiro e de poder,
exploraram até a reificação os seus semelhantes. Assim, na literatura do absurdo, o
ser é inserido numa situação que lhe é radicalmente estranha e hostil, retirando
progressivamente do indivíduo todos os seus pontos de referência, tornando-lhe a
vida impossível. Temos como exemplo dessa situação o personagem Supriano do
conto “A enxada”, pois ele recorreu a todos os amigos e até estranhos em busca da
ferramenta de trabalho, buscou até se esgotarem todas as possibilidades.
Na narrativa do absurdo, o poder, explica-nos Fernandes (1992),
caracteriza-se por um alto grau repressivo, pelo enfraquecimento da subjetividade e
pela ausência de consciência da condição precária em que vive.
Voltando a Camus, a consciência é fundamental à existência do personagem
absurdo, porque ela retira do indivíduo a esperança, instaurando a impossibilidade
de explicar a existência. No conceito de Fernandes, ao contrário, a consciência é
rara. Se para Camus o homem absurdo é, sobretudo o homem consciente e “a
absurdez se expressa enquanto consciência e exasperação lingüística, violando o
proibido e tocando o impossível” (CAMUS, 1989, p. 53), para Fernandes o absurdo
se caracteriza justamente pela ausência de fala, pela ausência de consciência.
E mesmo que essa consciência exista, é separada da ação, tornando o
personagem mais absurdo ainda. Vejamos:
“Quando consciente, se torna mais absurdo, porque impotente para
superar as circunstâncias em que fora inserido, pois a verdadeira
rebelião implica saber-se absurdo, saber-se incapaz. O contrário é o
absurdo do estrangeiro que nada sabe, nada incomoda e nada faz.”
(FERNANDES, 1992, p. 276)
Podemos exemplificar esse parecer com o personagem Matador do conto “BCP”, no
momento em que ele foi levado ao frigorífico para ser abatido como os outros bois e,
mesmo reconhecendo que seu filho o sacrificaria no final do corredor, e que muitos
outros homens trabalhadores como ele, já tinham passado por aquele sacrifício, não
contestou e não agiu para reverter o seu aniquilamento. “O Matador, este, ao entrar
no corredor; viu ao longe o filho que o esperava à porteira, a lâmina brilhando ao sol,
as mãos tingidas pelo sangue dos seus antecessores.” (“BCP”, 354),
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Para Fernandes (1992, p. 288), o absurdo se caracteriza como um processo
de perda irreversível de identidade. Se, de acordo com Camus, o homem se salva
do sentimento do absurdo através da ilusão e da esperança, os personagens
absurdos, de acordo com Fernandes, eles não têm nenhuma saída: o processo de
coisificação é implacável e sem volta.
Segundo Magalhães (2002) na concepção de Fernandes, quando o
personagem não morre, a niilização deixa nele traços inapagáveis, pois “o homem
absurdo experimenta situações que suprime a essência do ser, tornado-se, para
sempre, prisioneiro do medo e da dependência.” (MAGALHÃES, 2002, p 13).
Sísifo, ícone do absurdo, é um humano que, ao fugir do inferno, afronta os
deuses, igualando-se dessa forma a eles e escapando, mesmo que provisoriamente,
de sua condição de humano. Os deuses, como castigo, obrigam-no a retornar ao
inferno, onde deve completar sua pena: rolar uma pedra até o cume de um monte,
de onde ela resvalará novamente, exigindo do herói a repetição, ao infinito, da
tarefa. Segundo Camus (1989)
“Sísifo, o proletário dos deuses, é o herói absurdo, seja pela suas
paixões, seja pelos seus tormentos. Seu desprezo pelos deuses, seu
ódio pela morte e sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício
indizível em que todo o seu ser se emprega a nada concluir.
(CAMUS, 1989, p. 117)
Entretanto, não é a subida ou a descida da pedra que interessam a Camus,
nem mesmo o esforço do herói na sua atividade sem fim. O que lhe interessa é o
momento da descida do herói, breve pausa em que se da conta da inutilidade de
seus esforços:
Eu vejo este homem descendo novamente com passo pesado, mas
igual para o tormento do qual ele não conhecera o fim. Esta hora,
que é como uma respiração em que se repetirá tão seguramente
como a sua infelicidade, esta hora é a da consciência. (CAMUS,
1989, p. 117)
Sísifo mantém uma relação com os deuses, ao passo que os personagens
que fundamentam o conceito de absurdo apresentado por Fernandes (1992),
mantêm uma relação com os homens, o que caracteriza o estatuto sociológico do
seu conceito.
A repetição mecânica dos gestos e das tarefas do cotidiano parecem ter um
sentido contrário nas duas teorias. A consciência do cotidiano se revela a Camus
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como sentimento do absurdo, ao passo que no conceito de Fernandes o cotidiano
repetitivo se traduz como aprofundamento da cegueira, como sinal de embotamento
da personalidade, da capacidade de sentir, de pensar e mesmo de sofrer. Sísifo
deve pensar para se tornar absurdo, enquanto que os personagens analisados por
Jose Fernandes são absurdos justamente porque não podem pensar. E se não
podem pensar, jamais se rebelarão.
Na teoria de Jose Fernandes as relações sociais são as responsáveis pela
emergência da situação absurda, o que significa que o poder representa um papel
fundamental na configuração do absurdo. Segundo Alex Fiuza Mello (2001),
O surgimento do capitalismo como uma força organizacional
centrada na alienação da força de trabalho radicaliza sem
necessidade a repressão do princípio de prazer, reduzindo o homem
ao estatuto de força produtiva. (MELLO, 2001, p. 89)
O exercício do Poder deixa de preservar a vida, revelando-se, sobretudo como um
instrumento de perpetuação da exploração e da niilização do homem. O poder que
encontramos nas situações absurdas citadas por Fernandes (1992) é justamente o
poder arbitrário, cego e aparentemente infinito do capitalismo.
Segundo Magalhães (2002), Lucáks, refletindo sobre o capitalismo, afirma
que as relações do homem num mundo de valores comerciáveis, em que os sujeitos
são eles mesmos mercadorias, caracterizam-se como reificação ou coisificação.
Entretanto a teoria de Lucáks é otimista e esperançosa, pois admite que, por estar
exposto a um processo de transformação total em objeto, o homem reificado deverá
se rebelar, tornando-se o sujeito da história, promovendo a transformação social.
As situações de absurdo analisadas por Fernandes atestam justamente o
contrário; o homem tornado coisa não tem força de transformação social. Ainda
segundo o autor, o absurdo, caracterizado enquanto redução da humanidade no
homem interdita a ação do sujeito.
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II.
DESENRAIZAMENTO
METAMORFISMO
E
ALIENAÇÃO:
AGENTES
DO
Os ninguém:
Os filhos de ninguém, os donos do nada.
Os ninguém:
... os Zé-ninguém
Matando cachorro a grito, morrendo a vida,...:
Que não são, embora sejam,
Que não falam idiomas, mas dialetos
Que não têm religião, mas superstições
Que não fazem arte, mas artesanato
Que não praticam cultura, mas folclore.
Que não seres humanos, mas recursos humanos
Que não têm rosto, mas braços...
(Eduardo Galeano)
Desenraizamento, segundo Hidelberto S. Ribeiro (2001), é uma dolorosa
experiência de migração, desemprego e exclusão, a que o homem é submetido a
ponto de abalar sua estrutura físico-psicológica. Para Simone Weil (1989), ao
contrário do desenraizamento, estar enraizado é se reconhecer como tendo
participação ativa no real, bem como sentir-se pertencendo a determinado grupo e
espaço.
O enraizamento pressupõe a participação de um homem entre outros, em
condições bastante determinadas. O homem enraizado participa de grupos que
conservam heranças do passado e que podem ser transmitidas pelas palavras dos
mais velhos: um ensinamento, uma sugestão prática ou uma norma. Podem ser
recebidas como bens materiais: a paisagem de uma cidade, a terra revolvida pelos
ancestrais, a casa por eles habitada ou objetos que revivem feitos de antigas
gerações. Em outros termos, diríamos que a participação social do homem
enraizado está assentada em meios onde recebe os princípios da vida moral,
intelectual e espiritual.
Antagônico
a essa
participação, o
desenraizamento
comporta
um
impedimento político: prejudica a reunião entre os homens, sua comunicação com o
passado e seu campo de iniciativas. São condições que desfazem o laço de
comunicabilidade entre as experiências vividas. Prevalece uma modalidade
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43
e vivências marcadas pelo isolamento, em que as lembranças se limitam ao
âmbito de uma história pessoal.
Ecléa Bosi (2006), ao analisar os impactos provocados pela migração
compulsória na vida do camponês, afirma que:
O migrante perde a paisagem natal, a roça, a casa, os vizinhos, as
festas, a sua maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver,
de louvar o seu Deus. Suas múltiplas raízes se partem (BOSI,
2006, p. 17).
Podemos entender essa perda não só do espaço físico como também uma perda
de autenticidade. O desenraizamento ofusca a personalidade do migrante.
Quando duas culturas se defrontam, não como predador e presa,
mas como diferentes formas de existir, uma é para a outra como
uma revelação. Mas essa experiência raramente acontece fora
dos pólos submissão–domínio. A cultura dominada perde os
meios materiais de expressar sua originalidade. (BOSI, 2006, p.
16).
O homem, não podendo expressar aquilo que ele acredita ser, insere-se
em um processo de deslocamento, numa perda de unidade, e isso o leva a não
encontrar sentido na própria vida. Ele não consegue inserir-se em outro grupo,
onde possa contar suas histórias e ouvir outras com as quais se identifique,
construindo valores que lhe servirão na velhice; não consegue lutar por causas
comunitárias que possam melhorar sua condição de vida, não acredita em si
mesmo, na sua capacidade de trabalho, na sua auto-estima, não consegue ser
aceito socialmente.
Tomamos a fala de Stuart Hall (2005) para exemplificar as conseqüências
do desenraizamento no indivíduo:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas... Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia
que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda
de um ‘sentido de si’ estável é chamada algumas vezes de
deslocamento ou descentramento do sujeito. Esse duplo
deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar
no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma
crise de identidade. (p. 9).
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E por isso, o indivíduo desterritorializado, sem estabilidade material e
psíquica, torna-se alienado, ou seja, segue ordens e vive o processo sem
nenhuma reflexão, distanciando-se cada vez mais de suas raízes, de si mesmo e
de sua própria história. E, segundo Weil (1989), narrar o passado deveria ser um
direito estendido a todos os homens. “Aqueles que partem sem ter o heroísmo de
sua biografia reconhecido por um ouvinte deixam a impressão de ter morrido duas
vezes.” (WEIL, 1989, p. 82)
2.1 Alienação
O homem alienado passa a ser estranho a ele mesmo; as ações
praticadas assumem valor exclusivamente de subsistência. A alienação, segundo
Marx (1983), é situação resultante dos fatores materiais dominantes das
sociedades e por ele caracterizadas, sobretudo, no setor capitalista. Ao tratar da
alienação do trabalhador, Marx nos diz que isso acontece quando ele põe a sua
vida no objeto: conseqüentemente, sua vida não lhe pertence, mas, antes, ao
próprio objeto, ou seja, a alienação acontece quando o trabalhador passa a ser
posse do objeto.
Dessa forma, a existência do trabalhador não se dá por si, mas pela
capacitação do objeto. “O trabalho alienado transforma a vida genérica do homem
em ser estranho, em meio da sua existência individual” (MARX, 1983, p.27).
Aliena do homem o próprio corpo, a sua vida intelectual, a sua vida humana.
O trabalho é algo exterior ao trabalhador, não pertence à sua natureza,
ele não se afirma no trabalho, ao contrário, nega-se a si mesmo. O trabalhador só
se sente em si fora do trabalho, em suas funções naturais. No caso de Piano,
ironicamente, esse processo ocorre ao contrário, o personagem para sentir-se
bem e livre, luta desesperadamente para não ser excluído desse mundo
alienante.
Marx estabelece como relação de alienação, o vínculo do trabalhador ao
produto do trabalho, afirmando que este objeto é estranho ao mesmo tempo em
que é dominante; e ainda, que há uma relação entre o trabalho e a produção
como algo estranho e causador do sofrimento.
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É notável que o trabalho alienado inverta a relação, uma vez que o
homem transforma sua atividade vital, o seu ser, em simples meio de existência,
fazendo da atividade vital o objeto da vontade e da consciência. Na relação do
trabalho alienado, cada homem olha os outros homens segundo o padrão e a
relação em que ele próprio se encontra. É a alienação do homem relativamente
ao homem. “Quando o homem se contrapõe a si mesmo, entra igualmente em
oposição com os outros homens.” (MARX, 1983, p. 20)
Marx dirá que o produto não pertence ao trabalhador, e a ele se
contrapõe como poder estranho, isto só é possível porque o produto do trabalho
pertence a outro homem distinto do trabalhador. Ainda segundo o autor, quanto
mais o operário produz, menos ele custa para a economia e conseqüentemente
mais ele se desvaloriza, chegando ao ponto de se tornar uma mercadoria do
capitalismo; este visa somente o lucro e gera a “sede de riquezas e a guerra entre
cobiças, a concorrência”. (MARX, 1983, p. 51).
No conto “BCP”, constatamos a alegoria da metamorfose do trabalhador a
que Marx referiu-se; o Matador destacava-se dos demais funcionários pela sua
capacidade de produção, “Durante trinta anos labutara no matadouro, sempre
considerado o melhor. Os bois maiores e mais ariscos, aqueles que pareciam
prever a morte e tentavam evitá-la, aqueles eram enviados à sua porteira”.
(“BCP”, p. 353). Quanto mais trabalhava, mais enriquecia o frigorífico e desfaziase enquanto humano transformando-se em mercadoria capitalista. No final foi
vendido por sua mulher ao frigorífico onde trabalhava. “atou-lhe uma corda no
pescoço e conduziu-o carinhosamente ao matadouro, onde vendeu por um bom
preço aquele boi forte, malhado, de cara preta” (“BCP”, p.354)
Quanto mais o operário produzir, mais ele esta valorizando o mundo das
coisas e desvalorizando o mundo dos homens, tornando-se tanto mais pobre
quanto mais riqueza gerar. O operário recebe primeiro o trabalho, e depois o meio
de subsistência, sendo, em primeiro lugar operário e, depois, pessoa física,
ordenação que o torna escravo de seu próprio trabalho. É o caso do personagem
da obra “BCP”. Ele é a própria profissão
“A Economia Política esconde a alienação na essência do trabalho
porque ela não considera a relação direta entre o operário
(trabalho) e a produção. É certo que o trabalho produz maravilhas
para os ricos e a privação para o operário”. (MELLO, 2002, p.75)
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O trabalho transforma o operário numa máquina que não consegue
afirmar-se e não se sente à vontade, mas infeliz. O operário não desempenha
uma atividade física e intelectual livre, mas mortifica seu corpo e arruína seu
espírito.
O homem não se sente mais livremente ativo, sua vida perde o sentido,
pois o homem passa a fazer de sua própria vida simplesmente um meio de
subsistência, invertendo com isso a relação que teria com o trabalho. Desta
forma, o trabalho alienado termina por alienar do homem seu próprio gênero.
Marx chega à seguinte conclusão:
Se o produto do trabalho é alienado do trabalhador, por ser algo
exterior a ele, a ponto de não lhe pertencer, deve ser então
propriedade de outro, que não é evidentemente quem o produziu,
nem os deuses e muito menos a natureza, como pensavam os
antigos, então logicamente deve ser outro homem que tomou dele
aquilo que deveria lhe pertencer. (MARX, 1983, p. 60)
Com isto estão fundadas as bases para a exploração de um homem por
outro. O excedente do trabalho alienado termina por dar início ao acúmulo de
riquezas e conseqüentemente, o surgimento da propriedade privada. Essas
situações, no entanto, são exemplos fidedignos das próprias sociedades
modernas, caracterizadas principalmente por sua dinamicidade.
2.2 Uma nova condição humana
A modernidade pode ser caracterizada como espaço coletivo em que o
sujeito é definido por diferentes formas de manifestação do Outro. Vale lembra
que todo indivíduo faz parte de uma cultura, e é por meio dela que pauta sua
maneira de agir, pensar e sentir, mas que hoje, em razão de influências recíproca,
a identidade do sujeito, como será estudado mais a frente, sofrem um abalo.
De acordo com Chesneaux (1995), a modernidade representa não mais
“uma escolha pessoal, mas uma norma social banalizante e redutora, um discurso
de legitimação da ordem socioeconômica dominante.” (p. 22). O autor
compreende o homem moderno como perdido de si mesmo. A mobilidade é uma
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característica básica dos sistemas. A organização tradicional da vida rural e
urbana traduzia um equilíbrio na complementaridade. Hoje, “a organização
moderna, envolve a vida cultural e o cotidiano, o espaço real perdeu a
importância, a vida banalizou-se” (CHESNEAUX, 1995, p. 22).
Quanto à questão do espaço onde o homem moderno vive, Chesneaux
observa que:
A rua clássica era um lugar de sociabilização construído no
tempo, definido pela pluralidade de suas funções de relações
humanas, de vida coletiva (...). Ela desapareceu em proveito dos
trevos para veículos pelos quais apenas se passa. (...). Os novos
espaços urbanos trazem a sensação de impotência e vazio, de
não pertencimento. (...) as ruas se esvaziam, as pessoas se
ignoram ou se evitam (...). Todos estão desorientados na vida
moderna. (CHESNEAUX, 1995, p. 41).
Sobre a duração do tempo, diz que
O tempo da modernidade se constrói no imediato, impõe a nossa
vida cotidiana as formas diversas do instante. O fast food é
preparado tão rápido quanto é consumido (...), os relógios digitais
não são capazes de indicar o tempo como duração, mas somente
o instante pontual, por isso efêmero, enquanto o movimento dos
ponteiros sobre um mostrador tradicional inscrevia o tempo no
espaço e tornava perceptível sua progressão. (CHESNEAUX,
1995, p. 45).
O imediatismo tomou conta da vida moderna, segundo o autor, por esse
motivo, o homem tem medo do tempo livre, de ficar consigo mesmo. O ser
humano perdeu sua espontaneidade. Esta distância interna do sujeito em relação
a si mesmo, é que proporciona cada vez mais a melancolia, a impossibilidade de
falar em primeira pessoa, a ilusão de onipotência e fuga para frente na direção de
falsos ‘eus’ ou personalidades emprestadas, como definiu Stuart Hall (2005),
personalidades, quem sabe, múltiplas oferecidas em profusão pelo mercado.
Sem referências para poder fundar uma anterioridade e uma exterioridade
simbólica, o sujeito não consegue expandir-se em espacialidade e em
temporalidade suficientemente amplas. A relação com os outros se torna
problemática, na medida em que a própria sobrevivência pessoal se encontra
muitas vezes posta em dúvida.
A experiência ambiental na modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe, de nacionalidade, de religião e
ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une
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espécie humana. Porém é uma unidade paradoxal, uma unidade
de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de
permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um
universo no qual, como disse Marx, “Tudo que é sólido se
desmancha no ar” (CHESNEAUX, 1995, p 64)
O capital, no mundo globalizado, se desloca à velocidade da luz, pela
fibra ótica das comunicações internacionais, em busca de melhor remuneração.
As fábricas, com igual rapidez, podem mudar de país, instalando-se onde a mão
de obra é menos exigente. O trabalhador, segundo Mello (2002), aprisionado às
suas restrições e contingências, não possui esta mesma mobilidade, e vai
aceitando condições contratuais cada vez pior, para escapar à perspectiva
sombria do desemprego. Assim, se a mundialização da economia faz a fortuna do
grande capital, ela aumenta também o número dos excluídos e marginalizados.
Como vimos, as várias formas de destituição subjetiva que invadem as
nossas sociedades revelam-se através de múltiplos sintomas: os colapsos
psíquicos, o mal-estar no campo cultural, a multiplicação de atos de violência e a
emergência de formas de exploração em vasta escala. Todos estes elementos
são vetores de novas formas de alienação e desigualdade. Tais fenômenos estão
fundamentalmente vinculados à transformação da condição do sujeito, que
acontece sob os nossos olhos em nossas "democracias de mercado". Ser sujeito,
a saber, "sermos nós mesmos" e "estarmos juntos", apresenta-se segundo
modalidades sensivelmente diferentes com relação àquelas típicas das gerações
precedentes.
Refletindo sobre os conceitos apontados em relação à modernidade alienação e desenraizamento-, procuraremos entender o espaço, tempo e os
personagens dos contos propostos.
2.3 A vez dos ruminantes
A narrativa “BCP” remete-nos aos acontecimentos dos anos 60–70 no
campo, onde as condições de sobrevivência dos trabalhadores rurais sofriam
profundas mudanças. O “progresso”, do ponto de vista do capital, visava a um
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aumento imediato da lucratividade das empresas, que então invadiam o campo
transformando-o em um ambiente urbano. Assim, os camponeses eram
transformados em operários e distanciados do contato simples com seu povo e
com a terra.
Na obra em análise, a alegoria deste distanciamento do sujeito é vista por
meio de um processo de metamorfose. O personagem é destituído de suas
características físicas e de sua essência, convertendo-se em espectro. “Uma
tarde, quando ele dormia, [a esposa] entrou furtivamente na sala e, com cautela
(...) desamarrou a botina e, ao retirá-la, recuou assustada: uma pata pendia da
rede, um casco de boi nitidamente conformado” (“BCP”, p. 354).
Compreendemos “essência” pela definição de Aristóteles, como “a
unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma, unidade que lhe dá
um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser necessariamente
aquilo que ela é” (ABBAGNANO, 1999, p.340). Assim, por exemplo, um ser
humano é, por essência ou essencialmente, um animal mortal racional dotado de
vontade, gerado por outros semelhantes. Se um homem, à pergunta ‘o que és?’,
responde: ‘um músico’, a sua resposta não exprime verdadeiramente o que ele é
por si mesmo.
Segundo Fernandes (1992), a metamorfose pode acontecer em dois
estados distintos: um referente ao caráter social do indivíduo, outro, à conjuntura
metafísica.
Perder a identidade social implica anomalias que contrariam o
estatuto social como determinados comportamentos que lhes são
pertinentes. (...), por outro lado, a metamorfose metafísica
representa uma transformação desde dentro, ou seja, no ser
enquanto ser, na própria essência. (FERNANDES, 1992, p.291)
Transformar-se em boi é agir contra certas tradições, é fugir aos
padrões comuns de comportamento estabelecido pelo grupo social, o que permite
enquadrar a metamorfose física do Matador na primeira distinção feita por
Fernandes. Quanto à essência - pensando na definição de Aristóteles “unidade
interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma” (ABBAGNANO, 1999, p.
340), podemos dizer que o personagem adquire outra. Vejamos o exemplo: “um
boi imenso, de enormes chifres, tentava acomodar-se, (...) Ruminava um último
pedaço de carne (...). bufando sempre, (...) bufava num canto... aos poucos,
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conseguiu amansá-lo.” (“BCP”, p.353. Grifo nosso). Além de ter a aparência do
boi, os verbos grifados indicam ações que não fazem parte do comportamento
humano, portanto, o Matador assume outra essência que não a sua.
O processo de alienação alcança o filho do Matador ainda jovem, pois foi
obrigado a assumir o lugar do pai no frigorífico desde cedo.
O filho não tinha idade, era franzino, jamais daria um bom
matador... Tão miúdo mal se agüentando nas pernas como um
terneirinho (...). O menino foi crescendo, desenvolvendo a custa
do trabalho, fazendo-se forte e ganhando prestígio no matadouro.
(“BCP”, p. 352).
Theodor Adorno (2006) afirma que alguns papéis que a sociedade
delega ao sujeito, distanciam-no daquilo que ele é verdadeiramente, daquilo que
ele poderia ser em si mesmo. “Decerto, não se pode traçar uma divisão tão
simples entre as pessoas em si e seus chamados papéis sociais. Estes penetram
profundamente nas próprias características das pessoas, em sua constituição
mais íntima” (ADORNO, 2006, p. 104). No entanto, alguns indivíduos vivem esse
processo de alienação passivamente, sem reivindicar ou questionar a sua
condição.
O indivíduo ingressa na fábrica... Da noite para o dia ele se torna
um complemento da máquina. Uma coisa que deve obedecer ao
ritmo da produção e não importam quais sejam seus motivos para
obedecer. As pessoas de outra classe desconhecem, a não ser
em momento de desagregação e doença, essa vertigem que o
aprendiz experimenta de não mais existir (BOSI, 2006, p. 21).
Para o filho do Matador, o futuro guardava um fim igual ao de seu pai, a
zoomorfização “a gênese social do indivíduo revela-se no final como o poder que
o aniquila”. (ADORNO, 2006, p. 111). O sujeito perde suas qualidades individuais,
pois estas se convertem em meras funções, (será conhecido como Matador), ao
passo que o homem dilui-se na coletividade, tornando-se amorfo.
As reflexões dos teóricos frankfurtianos Adorno e Horkheimer (1985)
dizem que, quanto mais complicada e refinada a aparelhagem social, econômica
e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de
produção, tanto mais empobrecidas serão as vivências de que ele é capaz,
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graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua
conversão em funções.
A regressão das massas [...] nada mais é senão a incapacidade
de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar
o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento
que vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação
da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os
homens se convertem exatamente naquilo contra o que se volta a
lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres
genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade
governada pela força. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.213)
O filho do Matador, aos poucos ia tornando-se como o pai, “fazendo se
forte e ganhando prestigio no matadouro. Logo passou a desfrutar das honras que
o pai abandonara”. (BCP, p. 353). Convertendo-se, como na citação acima, em
mero ser genérico.
Bosi (2006), afirma que a expansão do modo de produção capitalista
absorve as sociedades e estas transformam seus recursos naturais e humanos
em mercadorias.
As relações de poder são cada vez mais desumanas de
estruturas opressivas que vilipendiam a subjetividade do indivíduo, para construir
outros valores. As lutas de gerações a respeito do necessário e do desejável
mostram outro modo de estabelecer as identidades e construir nossas diferenças.
Estamos em um mundo em que o consumismo cada vez mais se exacerba, os
valores religiosos, artísticos e morais que o capitalismo encontra, são consumidos
e transformados em produtos.
Vamos afastando-nos da época em que as identidades se
definiam por essências a-históricas; atualmente configuram-se no
consumismo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se
pode chegar a possuir (CANCLINI, 2006, p.30).
Para este autor, a versão política do nacionalismo dos anos 60-70, que
consistia em estar contente com o que se tem, é vista hoje como uma última
tentativa de conter dentro das vacilantes fronteiras nacionais a explosão
globalizada das identidades e dos bens de consumo que as diferenciavam.
Não existe hoje um limite, uma cultura definida, o mercado rompeu as
fronteiras; nesse sentido fronteira pode ser compreendida como um espaço de
divisa e de delimitação que demarca diferenças e afirma identidades. Hoje é
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possível acompanhar o mundo de qualquer parte em que se encontrar. Com os
meios de comunicação imediata não há transição, a partida é uma chegada. “Mas
essa evasão se paga com a desintegração do mundo, uma decolagem’ fora do
solo’, posto que tudo esteja presente em qualquer parte, nada está em lugar
algum” (CHESNEAUX, 1995, p. 30).
A televisão é um desses meios de comunicação que mais veicula o
intercâmbio de idéias, produtos e cultura; ela é militante e age sobre seus
telespectadores por meios autoritários, por pressões morais e pelo jogo dos
mecanismos econômicos. Chesneaux (1995) cita um texto retirado do jornal Le
Monde, 15 de janeiro de 1982, de Federico Felline:
A televisão mutilou nossa capacidade de solidão, violou nossa
dimensão mais íntima, mais privada, mais secreta. Acorrentados
por um ritual invasor, fixamos um quadro luminoso que vomita
milhares de coisas que se anulam mutuamente, numa vertiginosa
espiral. A paz só vem quando se desliga. Às onze horas, à meianoite, pesa sobre nossos ombros um grande e obrigatório
cansaço. Vamos para nosso leito carregados de uma vaga má
consciência e, no escuro, os olhos fechados, tentamos
restabelecer o vínculo, como um fio rompido, do silêncio interior
que nos pertencia. (Chesneaux, 1995, p. 128)
Retomamos o personagem da mulher do Matador. Em todo o conflito de
transformação do marido, a mulher se preocupou somente com a perspectiva
material de sobrevivência – a sua maior angústia foi o fato de o Matador não estar
comparecendo ao emprego, o que poderia afetar a despesa no final do mês -. Ao
comprar uma televisão com o dinheiro ganho da venda do marido-boi, a mulher
estava trazendo para o seu cotidiano o instrumento que a condicionaria às
imposições e caminhos apontados por um ‘outro’. A mídia age sobre nós por meio
das imagens, impondo o que devemos ser e o que devemos ter. Na televisão “as
pessoas não vêem o que preferem, mas preferem o que lhes oferecem”
(CANCLINI, 2006, p.167).
De acordo com Stuart Hall (2005), quanto mais a vida social se torna
mediada pelo mercado global de estilos, lugares, imagens da mídia e pelo
sistema de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam
desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares e tradições. A ideologia
veiculada nos impulsiona a consumir para nos sentirmos realizados e atualizados,
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e, cada vez mais, desconstruímos valores que antes caracterizavam a nossa
identidade, para edificarmos outros que nos foram impostos como melhores.
Para compreendermos esse processo de identidade falaremos de alguns
conceitos apontados por Hall. Para o autor, identidade, numa abordagem
antropológica é a construção que se faz com atributos culturais, isto é, ela se
caracteriza pelo conjunto de elementos culturais adquiridos pelo indivíduo através
da herança cultural. Ela se evidencia em termos da consciência, da diferença e do
contraste com o outro. Explica ainda que:
Não importa quão diferentes seus membros possam ser em
termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca
unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos
como pertencendo à mesma e grande família nacional. (HALL,
2005, p. 59)
Hall define ainda três tipos de Identidade: identidade do sujeito do
iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. O sujeito do Iluminismo
estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência
e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira
vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que, permanecendo
essencialmente o mesmo - contínuo ou "idêntico" a ele - ao longo da existência do
indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Pode-se ver
que essa era uma concepção muito "individualista" do sujeito e de sua identidade.
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do
mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era
autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com "outras pessoas
importantes para ele", que mediavam para o sujeito os valores, símbolos - a
cultura - dos mundos que ele habitava. De acordo com essa visão, que se tornou
a concepção sociológica clássica, a identidade é formada na interação entre o eu
e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu
real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço
entre o "interior" e o "exterior" - entre o mundo pessoal e o mundo
público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas
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54
identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos
seus significados e valores, tornando-os "parte de nós", contribui
para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares
objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade,
então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, "sutura") o
sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos
culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais
unificados e predizíveis. (HALL, 2005, p. 12)
Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora
estão "mudando". O Ideal humanista começa a ruir quando suas fronteiras já não
conseguem mais sustentar sua integridade. A crise individual das identidades
singulares soma-se à crise coletiva das identidades nacionais. O processo de
globalização denota a fluidez das fronteiras nacionais, igualmente difusas e o
deslocamento constituem o universo pós-moderno.
Esse processo de deslocamento se opõe às culturas do passado que, a
seu modo, forneciam aos indivíduos fortes localizações sociais; os quadros de
referência que davam ao indivíduo certa sensação de pertinência em um universo
centrado, de alguma forma, entram em crise. O sujeito, previamente vivido como
tendo uma identidade unificada e estável, torna-se fragmentado, composto não de
uma única, mas de várias identidades.
As identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e
que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
"necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso,
como resultado de mudanças estruturais e institucionais. (HALL,
2005, p. 12)
A nova concepção de sujeito caracteriza-se pelo provisório, variável e
problemático, alguém como não tendo uma identidade fixa essencial ou
permanente.
É uma fantasia, afirma Hall (2005, p. 13), considerar a identidade
plenamente unificada, completa e segura. O sujeito assume identidades distintas
em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente; identidades contraditórias, que nos empurram em diversas direções, de
tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. “Se
sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é
apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma
confortadora “narrativa do eu”.” (HALL, 2005, p. 13)
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Diante dos argumentos apresentados pode-se afirmar que, quando se
trata de sujeitos e construção de identidade numa perspectiva de ação dialógica,
é necessário provocar um retroceder no tempo histórico. Para que nesse
retroceder o leitor possa perceber-se, segundo as condições históricas de cada
época. O repertório de cada indivíduo e sociedade está preso ao contexto vivido.
2.4 A vez da enxada
O mundo rural do conto “A Enxada” representa-se no movimento
coronelista e detém recursos estratégicos e violentos do poder absoluto, pessoal
e arbitrário. Tudo isso é possível porque a regulamentação de grande parte dos
direitos, especialmente os direitos voltados ao trabalho, não eram executados, e
nem transferidos aos trabalhadores rurais.
Justamente na esfera do trabalho, está a problemática da trama.
Supriano é marcado por uma enormidade de ausências. Possui as condições
mais subumanas de sobrevivência e é um trabalhador expropriado de toda e
qualquer espécie de posses. Ele é reconhecido pela posição social de
"camarada", figura subalterna, que possui má fama de devedor, e vive submisso
às ordens das figuras de poder da cidade - o delegado e o coronel-. A sua luta
está registrada em torno de um instrumento de trabalho: a enxada. Essa
expropriação, de não possuir nem mesmo o meio de produção para seu trabalho,
o torna ainda mais fragilizado. A enxada representa uma dupla imbricação:
submissão e esperança.
Convivem nele a negação do direito de trabalhar e de ser auxiliado, a
partir da sua condição humana de existência, e, ao mesmo tempo, a relação do
sonho de que sua realidade pode ser modificada pela via do trabalho. Supriano
confere outras moedas de significação e atuação em que o trabalho guarda um
valor moral. É, inclusive, um motivo de reconhecimento mediante amigos em sua
honestidade, esforço e dedicação, porém, essa possibilidade de mudança não
acontece.
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No conto, outros personagens também participam desse drama. Ainda
dentro da relação Trabalho, podemos notar a posição da família de Joaquim
Faleiro, que sobrevive em função do trabalho familiar, uma prática comum na
divisão social das tarefas no trabalho rural, na produção de pequeno porte. Eles
também vivem em conflito com o poder do fazendeiro e coronel Elpídeo Chaveiro.
Homero é outra personagem trabalhadora da trama. Sua profissão de
ferreiro expressa um lado trágico, pois não consegue exercer seu ofício, porque
está corroído pelo vício do álcool. Portanto, também é uma representação do
excluído. Já nas figuras dos soldados como trabalhadores, há diferente atribuição
de força ligada a esse ofício da guarda, o que os diferencia dos demais
moradores da região e que os amedronta, porém, na relação de submissão ao
coronel, que não os reconhece numa relação próxima. Os soldados são
considerados pelo coronel apenas como meio para conquistar seus objetivos de
mando.
Hilarinho surge no final do conto. É um personagem do trabalho, que
também deve obedecer, pois é empregado de Elpídeo e trabalha no comércio do
coronel, dono dos bens de primeira necessidade da região, o que aumenta ainda
mais a dependência da população com relação aos seus negócios.
A Esposa, Olaia, e o filho de Supriano surgem no conto na condição de
exclusos. Eles nem ao menos possuem um nome e sobrenome, mas, sim, um
apelido, o que significa a negação de serem reconhecidos efetivamente como
indivíduos. Estes dois personagens extrapolam a dimensão humana da
existência. Ela e o filho são referência às pessoas expropriadas de quaisquer
direitos e possibilidades simbólicas de atuação. Ambos aparecem no conto
assemelhados a animais, principalmente o filho surdo-mudo, que é aproximado da
figura de um porco.
Está jogado pelos cantos, sem qualquer domínio de
comunicação com o mundo.
No conto, a condição humana dos personagens, especialmente de Piano
e sua família, está constantemente exposta à sujeição de eliminação no plano das
oportunidades e na forma mais básica de continuar a existir. A eliminação é
legitimada em função do poder simbólico do coronel e da desmoralização das
pessoas sem posses e sem propriedades. As figuras de prestígio e poder na
região, pelo uso da força, estabelecem uma relação de obediência e
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subserviência junto à população. Especialmente o coronel, que faz questão de
manter uma relação de distância com as pessoas da região, o que denota
hierarquia e respeito a sua pessoa.
A forma extremamente desigual de distribuição de poder comanda
também a distribuição das riquezas: acaba produzindo uma massa de
despossuídos de poder político e econômico. O coronel se respalda nas relações
de submissão que levam ao não-cumprimento efetivo do que seja a cidadania e a
igualdade como direitos conquistados pelo simples fato de se existir como ser
humano. Sua cidadania é concedida quando cumpre sua parte nos favores. É
uma relação de dependência.
Tal forma de administrar o poder já é uma violência pelo fato de ignorar os
direitos de qualquer cidadão, mas a violência desse poder está assegurada por
formas cruéis de garantir a obediência. Piano sente essa realidade na pele
quando é espancado pela guarda comandada pelo coronel Chaveiro. Ele foi
humilhado e perseguido. Sente medo e alucinações e se submete à obediência
em troca da conservação da sua existência e da sua família.
Seu esforço para conseguir uma enxada, o instrumento de trabalho,
atinge o estágio trágico do ato extremado de utilizar as próprias mãos na
execução do trabalho imposto. Porém, todo o esforço traduzido em sofrimento
físico não obteve reconhecimento da parte do coronel, que o sentencia à morte.
É no cenário de governos locais em que está firmada a ação dos
personagens do conto “Enxada”. As principais características desse sistema são o
isolamento na debilidade do poder público na ação do coronelismo. O voto é o
elemento que assegura o prestígio do coronel – o voto de cabresto –, através da
dependência do trabalhador em relação ao patrão. Isto proporciona ao coronel um
aumento da importância quanto ao prestígio público e político.
Segundo Silva (1978), os candidatos do Estado disponibilizavam “carta
branca” aos chefes locais com relação a todos os assuntos. Esse regime se
baseia na decadência econômica dos coronéis e na dependência da presença do
Estado. Existe a utilização dos próprios instrumentos do poder público para a
manutenção de posse do poder privado regional. É, sobretudo, um sistema de
barganha. No conto, são reproduzidos vários momentos em que o coronel
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apropria-se da força estatal através da utilização dos soldados, para garantir que
seus negócios e sua reputação sejam respeitados.
Segundo o autor, o fenômeno do coronelismo ganha ascensão durante o
período de 1898 a 1930, porém podemos registrar alguns traços perdurando até
os anos 50 e início dos anos 60, no Brasil. As eleições são um instrumental
simbólico de legitimação desta forma de poder que não traduz uma vontade e
uma representação efetiva do povo. A política do compromisso é a
interpenetração do público com o privado.
Segundo Ribeiro (2001), tivemos um desenvolvimento sob o comando de
um estado autoritário que visava atingir alguns objetivos, e um deles era alcançar
a racionalização da produção, mesmo que, para isso, em muitas ocasiões, fosse
utilizada a mão de obra escrava. Para Ribeiro, as classes detentoras do poder
político e econômico impunham leis, assim como modificavam a estrutura
econômica, prejudicando sobremaneira as classes pobres. Além disso, a
presença do capital acarreta uma reviravolta nos conceitos ligados à produção,
como por exemplo, nos conceitos de terra. Na opinião de Hilda Magalhães:
Para o empresário, ela [a terra] tem valor quantitativo, enquanto
que para o antigo habitante e para o posseiro, o seu valor é
qualitativo. Para o capitalista, a terra vale o que ela pode produzir,
ao passo que, aos olhos do colono ou do indígena, a terra é o
instrumento que garante sua existência. (MAGALHÃES, 2002,
p.23).
Refletindo sobre essa citação, somos levados a pensar na concepção de
Ribeiro para o qual ser desenraizado significa “não ter no mundo um lugar
reconhecido e garantido pelos outros; é ser supérfluo, não pertencer ao mundo de
forma alguma” (RIBEIRO, 2001, p. 64).
A luta do personagem de Bernardo Élis para conseguir uma enxada
parece inserida nesse contexto e, em geral, tem suscitado uma leitura que
interpreta o texto como uma denúncia das condições desumanas a que o
trabalhador do campo está historicamente submetido no Brasil.
Entretanto, a relação entre o texto e o contexto em que foi escrito parece
se dar pelo seu sinal negativo, isto é, pelo regresso a um mundo arcaico, onde o
trabalhador, mais do que não ser dono dos seus meios de produção, sequer tem
acesso à mais rudimentar ferramenta do trabalho agrário.
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Em 1966, Bernardo Élis cria um personagem que, na direção oposta à
dos movimentos campesinos, àquela altura enfrentando a ameaça de sua total
desarticulação, luta sozinho não para romper a dinâmica da exploração, mas para
se manter dentro dela. Supriano luta para ser explorado, para não ficar de fora do
mundo do trabalho escravo. A luta de Supriano é absolutamente solitária e regida
pelo código do favor e da submissão como estratégia de sobrevivência.
2.5 O berro silencioso:
2.5.1 Do boi
Em “BCP”, a supressão do nome é entendida como uma conseqüência do
distanciamento da identidade como única e individual e também como uma forma
de apresentar os personagens como seres a-históricos; eles não têm um “Eu”
singular, mas sim um “nós” uniformizado, pois nomear significa, antes de tudo,
conceder a uma coisa uma existência definida, uma identidade.
Ao redor do nome próprio ligam-se segundo Magalhães (2002), numa
relação semântica, “os elementos que constituem uma rede de informações reais
ou fictícias, o que torna único o proprietário desse nome” (p.63). O nome permite
distinguir e classificar as pessoas e as coisas no mundo. Segundo a autora, ao
longo do século, o nome contribuiu para designar a posição social do individuo na
sociedade. Assim, certos nomes atribuem toda uma linhagem de glória aos que o
portam.
No século XX, o nome ou a importância do nome diminui, e a afirmação
do Poder exige outras formas de concretização.
“É necessário ressaltar a presença de novas relações de poder
na sociedade capitalista, caracterizadas, sobretudo, pela anulação
do sujeito, o que é indiciado também pelo apagamento do nome,
que se observará, na maior parte das sociedades de capital
avançado” (MAGALHÃES, 2002, p. 64)
Isso significa que, no extremo, o indivíduo perde sua capacidade de
intervir no destino da sociedade e mesmo de definir e de escolher seu próprio
destino. O Matador não tem escolhas e não tem voz.
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Hugo Achugar (2006) comenta sobre os que necessitam de fala, de voz,
de reivindicar. Para o autor, a supressão da fala é um tipo de violência cultural.
Ela se manifesta a cada vez que, por deliberação ou omissão, são recusadas a
indivíduos e grupos as condições necessárias à articulação da própria voz, à
expressão original de si mesmos e de sua compreensão peculiar do mundo, ou
seja, a liberdade de expressar-se e de externar sua singularidade.
Segundo o autor, muitas vezes, não falamos, não gritamos, por terem nos
feito acreditar que não há o que falar e ninguém para nos ouvir. Outros falam em
nós, falamos o que convém a eles e silenciamos dentro de nós as revoltas, a
ponto de não diferenciarmos o que realmente é a nossa vontade ou o que é
imposição do outro.
O Matador e sua família já não sabiam quem e o que eles realmente
eram. Os fundamentos de suas raízes, onde eles podiam afirmar sua identidade
por meio do grupo ao qual tinham consciência de pertencer, foram extintos. Eles
estavam em uma sociedade que identifica os indivíduos pela sua rentabilidade,
pela sua capacidade de saber “vender-se”, um mundo fora de seu mundo; não
conseguiam encontrar-se, e assim não contestavam os acontecimentos, não
tinham como contestar. Citamos como exemplo o fato de o protagonista ter por
nome o adjetivo que recebem todas as pessoas que desenvolvem diariamente a
ação de matar animais, ou seja, ele não é singular, único, Matador é uma
coletividade.
Pensando no conceito de alegoria de Hansen (2006) e na definição de
Ismail Xavier (2005), o qual afirma que
Em sua incompletude e justaposição, a alegoria não traz a boa
forma organicamente construída como transfiguração de um
mundo dotado de sentido. [...] Ela traz a marca do inacabado, do
trabalho minado por acidentes de percurso, por imprecisões, por
truncamentos de toda ordem, (...), ponte entre o interior e o
exterior, o caminho entre a experiência particular e o objeto que a
cristaliza, têm elementos mediadores, sofrem a incidência da
linguagem e de suas convenções. (XAVIER, 2005, p.357)
O discurso alegórico tende, através de suas "brechas", a colocar o receptor em
uma postura analítica. Segundo o ensaísta, a ambigüidade é própria da alegoria
que reescreve o mundo na forma de estilhaços de fragmentos significativos,
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"qualquer enunciado fragmentado assume a aparência de mensagem cifrada que
solicita o deciframento" (XAVIER, 2005, p. 354). E essa dimensão alegórica
permite visualizarmos homologias, daí podermos compreender a vida privada, por
exemplo, a do personagem de “BCP”, como representação de destinos coletivos.
Entendemos que a narrativa é alegórica, constituída em espaço atópico,
que tem como eixo o “matadouro”, onde durante trinta anos labutara o Matador,
sendo sugado até converter-se em produto do próprio estabelecimento.
O capitalismo avançado consome e desagrega valores
conquistados pela práxis coletiva. Não é capaz de inserir o
passado no presente e muito menos de resguardar sonhos para o
futuro. Esvaziando o trabalho de significação humana, ele esvazia
o sentido das lembranças e aspirações. (BOSI, 2006, p. 26).
E como foi dito, a vida privada desse personagem figura como condição ou
destino de uma coletividade, e a recapitulação do passado é tomada como uma
discussão disfarçada de dilemas presentes.
Depois de 30 anos de trabalho é o tempo da aposentadoria, porém,
quando o Matador não podia mais dar lucro ao frigorífico, este o descartou sem
nenhum “prestígio” e sem nenhuma perspectiva de futuro, ou seja, ele já tinha
sido consumido pelo sistema.
Adorno (2001, p. 243) chama a atenção para o princípio de literalidade
que perpassa a obra de Franz Kafka, O Processo, dizendo que o que choca no
universo kafkiano não é o monstruoso, mas a sua naturalidade. Identificamos
essa mesma naturalidade em “BCP” em relação ao modo como processo de
metamorfose ocorre e é aceito. O monstruoso é introduzido como parte da
realidade em suas vidas; o pesadelo do protagonista não é onírico, é real e
perante o qual ele não luta e nem se defende.
A expressão “constatou o esperado”, da seguinte citação: a mulher
“espiou pela porta e constatou o esperado: um boi imenso, de enormes chifres,
tentava acomodar-se na rede” (“BCP”, p. 354), leva-nos a pensar que a mulher
antevira a transformação que ocorreria com seu marido. Ela não sabia o que
deveria fazer diante do visto, porque ainda não tinha vivido a situação, embora já
a esperasse. Pediu conselho à comadre, outro personagem-tipo, que tinha
experiência, e poderia orientá-la sobre a melhor maneira de agir.
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Logo depois, o narrador revela o conteúdo da consciência dos
personagens ao dizer que a esposa prepara antecipadamente as ferramentas
necessárias para quando chegar a vez do filho. “A mulher, sendo mulher
prevenida, com o dinheiro [venda do marido], comprou (...), dois sacos de açúcar
e alguns metros de corda, para quando chegasse a vez do filho” (BCP, p. 354).
O próprio Matador, ao chegar ao frigorífico, tem consciência do que lhe
aconteceria, e faz menção ao fato de outros matadores, homens como ele, terem
passado por aquele corredor:
O Matador, este, ao entrar no corredor, viu ao longe o filho que o
esperava à porteira, a lâmina brilhando ao sol, as mãos tingidas
pelo sangue dos seus antecessores. Equilibrando-se nas patas,
sentiu no flanco a picada da vara que o instigava a seguir. Baixou
a cabeça, raspou o solo com o casco e arremeteu em direção à
faca, que o recebeu sem tempo de um mugido. (“BCP”, p. 354)
A linguagem empregada pelo narrador aponta alegoricamente para o fato
de a dominação se consolidar devido às concessões que o dominado faz a ela:
ora pela validade que reconhece nas entidades a que ela se vincula, ora por
medo de seu poder, pois, de acordo com Adorno e Horkheimer (1985) o
sentimento de horror materializado numa imagem sólida, torna-se o sinal da
dominação. Esta se ossifica na estrutura social e em suas formas de
manifestação, confirmando que “o caráter social das formas do pensamento não é
[...] expressão da solidariedade social, mas testemunho da unidade impenetrável
da sociedade e da dominação” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 210).
Enquanto cidadão, Matador é mero objeto em poder das instituições. Até na hora
da morte abaixou a cabeça, ele próprio alimenta a força do frigorífico.
Percebemos que o medo manifesta-se na esposa e mãe, medo da fome,
e de passar por necessidade, por isso, vê no frigorífico um meio de sobrevivência.
Ela, desesperada, chorava implorando que voltasse ao trabalho.
(...). Sem o dinheiro da comissão farta que ele ganhava, senhor
dos melhores animais, quem sustentaria a casa? (“BCP”, p. 353).
A mulher atribui ao matadouro qualidades positivas, privando o Matador
dos direitos que possuía, conferindo-os aos que o subjugaram. Ela não procurou
saber os motivos que levaram o esposo a sair do frigorífico, nem tampouco o
incentivou a lutar pelos direitos de sua aposentadoria. Antes, atemorizou-se
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diante da situação, pois considerava o frigorífico a única forma de sobrevivência
naquele lugar. Retomando a fala de Adorno e Horkheimer (1985), a dominação
se materializa e se firma devido às concessões que o dominado faz a ela.
Outro aspecto que chama a atenção é o fato de a esposa ter dado açúcar,
ao invés de sal - alimento comum aos bovinos -, ao seu marido-boi: “aproximouse do marido que bufava num canto, acariciou-o, deu-lhe açúcar e, aos poucos,
conseguiu amansá-lo” (“BCP”, p.354).
Pensando no conceito de ironia de Brait – “distanciamento entre o que é
dito e o que o enunciador pretende que seja entendido; a expectativa de um leitor
capaz de captar a ambigüidade propositalmente contraditória desse discurso”.
(1996, p.34) –, consideramos irônicas as atitudes da mulher do Matador. Um
pouco antes de lhe dar açúcar, ela saiu de casa atordoada – “ainda
estremunhada, foi à casa da comadre, amiga de anos, pedir conselhos” (“BCP”,
p.354) –, e logo depois voltou como se nada de estranho estivesse acontecendo,
“voltou aliviada” (“BCP”, p. 354). Aproxima-se do marido, que estava agitado e,
como esposa, faz o jogo da sedução, acariciando-o até acalmá-lo, um modo de
suprema traição, que remonta a história bíblica de Judas Iscariotes, pois, depois
de amansá-lo e sem nenhum remorso, em troca de um bom dinheiro, entrega-o à
morte. “Atou-lhe uma corda no pescoço e conduziu-o carinhosamente ao
matadouro, onde vendeu por um bom preço aquele boi forte” (“BCP”, p.354).
A expressão carinhosamente foge do seu verdadeiro sentido, de querer
bem, de estar bem tencionado, e assume dentro do contexto sentido contrário, de
agir com malícia, de planejar o mal. A esposa deixa de ser a responsável pela
união da família nos dias da adversidade, para promover a destruição do lar em
prol do bem material, do conforto capitalista, “A mulher sendo mulher prevenida,
com o dinheiro comprou uma televisão, uma geladeira, dois sacos de açúcar e
alguns metros de corda para quando chegasse a vez do filho.” (“BCP”, p. 354)
As ações da mulher simbolizaram o seu distanciamento do papel de
esposa, segundo a convenção religiosa e social de que a mulher que deve ser
“submissa” ao marido e ser-lhe fiel todos os dias de sua vida, e seu papel como
mãe, de proteção, amparo, pois, comprou, premeditadamente, as ferramentas
que, no futuro, levariam o seu próprio filho ao corredor da morte.
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Juan Cirlot (1984) diz que o boi é o símbolo do sacrifício, do sofrimento e
trabalho; Jean Chevalier (1992, p.137) acrescenta: “Ao contrário do touro, o boi é
um símbolo de bondade, de calma, de força pacífica; de capacidade de trabalho e
de sacrifício”.
Essas características são observadas no Matador. Ele foi submisso ao
trabalho durante trinta anos, a sua força esteve a serviço do frigorífico sem
nenhuma reivindicação e, depois, enganado pela mulher, foi conduzido à morte
por ela, no local de trabalho. Isso explica o motivo de ela lhe oferecer açúcar e
não sal, pois o sal, segundo a tradição, não significa só alimento, mas também
fidelidade, convivência, vínculo, memória. O sal é a imagem da amizade.
Alegoricamente, ao deixar de oferecer sal a sua família, a mulher
desconstrói todos os significados tradicionais atribuídos a ela, e constrói a sua
imagem em valores determinantes no competitivo mundo atual: poder capitalista e
consumismo.
“Moderniza-se para sobreviver, mas destrói-se para ser moderno”
(LATOUCHE, 1994, p, 23). Essa citação leva-nos a refletir sobre a profunda crise
de identidade que se instaurou na personagem esposa e mãe.
Para sobreviver, é preciso acompanhar as mudanças e transformações
que a modernidade impõe à sociedade. Segundo Jean Chesneaux (1995), essas
imposições são organizadas em sistemas rígidos, os quais desprezam o
funcionamento flexível e natural dos seres; degradam a natureza e nos impedem
de agir e decidir segundo nossos desejos e necessidades humanas.
Instintivamente, sou talvez por demais sensível àquilo que a
modernidade-mundo nos despegou para sempre, nos arrancou
em definitivo. O habito de caminhar à noite sob as estrelas, o
cheiro dos tomates lentamente amadurecidos ao sol, a doçura
intacta das paisagens erguidas em milhares de séculos e, mais
ainda, a capacidade de ser humano de se orientar por si mesmo
tanto na natureza como na sociedade; a capacidade de refletir e
criar por si mesmo, de desabrochar sem depender de aparelhos
eletrodomésticos e eletros culturais cada vez mais sofisticados. Eu
bem sei, porém, que cada época percebe muito mais claramente o
que perde do que ganha em função das mutações históricas pelas
quais passa. (CHESNEAUX, 1995, P. 13).
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O homem moderno não mais se orienta pela tradição e nem pelos seus
projetos pessoais; mas sim por um “outro”. O outro determina como devo ser o
que devo fazer e como viver.
Somos e vivemos como o mundo capitalista nos faz acreditar ser o
melhor. Deixamos de ser sujeitos ativos da sociedade política e civil para
cedermos lugar ao indivíduo–objeto, ao homem reflexo, integrado à rotina fria da
máquina social e presos aos seus valores.
Baudelaire, citado por Chesneaux (1995, p.91), define o homem moderno
por sua procura exigente e solitária; diz que o homem busca algo que o distancia
cada vez mais de si mesmo. Percebemos que o modo de vida colocado em ação
pela modernidade busca o rompimento com a condição de vida tradicional, e as
mudanças que ela propõe são mais profundas que a de períodos anteriores, elas
alteram nossas características pessoais e a nossa própria essência. “A
humanidade moderna está invertendo a relação ancestral que desde as origens
do homo habilis se estabeleceu entre o humano... e a máquina” (CHESNEAUX,
1995, p.128).
2.5.2 Da enxada e da fé
A enxada é o mote do conto, e de forma simples, a narrativa de Élis
revela a densidade alegórica desse instrumento de trabalho tão comum no meio
rural brasileiro. Embora ela seja leit-motiv do texto é um objeto sempre ausente,
que não se materializa nas mãos do personagem. Essa ausência é disfarçada
pela constante nomeação do objeto impossível na narrativa, mas é pelas
conseqüências extremas que a sua falta gera para o destino do protagonista:
Supriano precisa de uma enxada para se manter vivo e dentro do mundo do
trabalho, entretanto, não conseguirá a ferramenta e será assassinado no
momento em que, de forma alucinada, imagina ter nas mãos a enxada, enquanto
ara o campo com seus punhos dilacerados pelo esforço sobre-humano de cavar a
terra e plantar o arroz no prazo determinado pelo patrão.
No imaginário do personagem de Élis, a enxada, enquanto instrumento de
trabalho, é a ferramenta que imprime identidade e dignidade ao agricultor. Isto é
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revelado, por exemplo, quando Piano teima em mostrar à mulher Olaia uma
enxada, sem que esta existisse. O que ele vê, com os olhos do corpo, não é o
mesmo que ele vê, com os olhos da alma camponesa. A enxada não é só
enxada, é mais do que isto. Não é a enxada ferramenta que Piano mostra à
mulher sem que esta a enxergue. Mas sim, a enxada alegórica, a enxada da
dignidade, do caráter de homem trabalhador e honesto; isto sim, ninguém podia
lhe arrancar das mãos.
Por mais que procurasse ver a enxada que Piano lhe mostrava, o
que percebia era um pedaço de galho verde em suas mãos.
Talvez murici, talvez mangabeira. Mas ferramenta nenhuma ela
não via... Piano avançou com ar decidido, atracou o saco de arroz,
num boleio jogou-o ao ombro, as pernas encaroçadas de
músculos retesos saindo por baixo do saiote de baixeiro, tão
desconforme. (“ A enxada”, p.326).
Um galho, uma pedra, a enxada, enquanto símbolo, expressa a essência
do agricultor que, de escravo, faz-se livre não pela observância da lei, mas pela
invenção de suas próprias medidas.
Sagrado, para o povo do campo, é aquilo que dá sentido para a vida, e
essa sacralidade está ligada ao trabalho; a enxada é que traz o pão à mesa dos
filhos e filhas do povo da terra. É a que tira o inço sem prejudicar a terra.
Beijamos a enxada, mas não a máquina do veneno. Beijamos a
enxada e amaldiçoamos o maquinário pesado, tido como
moderno, que destrói a vida na terra, primeiro porque prescinde
do trabalho humano e depois porque polui, mata, envenena,
arrasa... (OLIVEIRA, 2005, p. 2).
Ainda segundo o autor, “não somos a favor da enxada porque somos
contra o desenvolvimento. Somos a favor da enxada porque somos a favor de um
sistema agrário-agrícola que valorize a identidade do povo camponês”
(OLIVEIRA, 2005, p. 5).
Entendemos, mediante essas citações, que não se trata de desejar uma
agricultura do passado, mas uma “agricultura dos agricultores” (OLIVEIRA, 2005,
p.3), modelo baseado no trabalho da família e não na exploração da mão de obra.
Na narrativa, a enxada ausente demanda do leitor um sentido que a
ultrapassa, um sentido extraordinário, maior do que ela mesma. Para o próprio
personagem, a enxada, como objeto impossível, passa a ser mais que uma
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ferramenta ordinária e torna-se um objeto mágico, fonte de delírio e alucinação e,
ao mesmo tempo, senha de entrada para o mundo dos vivos ou dos mortos.
A fé, ainda dentro do contexto religioso do conto, é evocada nos
momentos de maior desespero, enquanto uma válvula de escape. A fé dá forças
para que os personagens consigam proteção no enfrentamento da opressão e
crendices. Olaia elabora constantemente uma jaculatória em forma de oração.
Piano expressa sua fé, quando diz: "se Deus ajudar". A dimensão religiosa se
mescla às crendices no contexto rural do conto. O receio com relação aos Sacis,
onças e almas penadas configura um clima de suspense na trama nos momentos
mais agonizantes do personagem central Piano e sua esposa Olaia.
As alucinações e o desespero movem Piano em dois momentos do conto.
Um é o momento de fraqueza e de fome, depois de ser espancado e humilhado
pelos soldados a mando de Elpídeo. Ele sonha com o arrozal plantado e a enxada
retinindo. A realidade, porém, é cruel e apavorante. O arrozal inexiste e sua vida
corre perigo.
Outro momento são as alucinações da trama que demonstram um
personagem “assujeitado”, que não consegue a enxada desejada, solicitada e
implorada durante toda a extensão da história. O sonho do trabalho e da mudança
da posição de camarada lhe são negados. É o descaso refletido sobre as
populações mais pobres que estão presas ao regime coronelista de ordem.
Sua última saída é usar as próprias mãos como um instrumento de
trabalho, a fim de escapar da dívida e da ameaça do coronel. O cenário que
marca essa cena extrema de abandono é o contraste entre a luz e o fogo. Piano
fica suspenso sobre essa fronteira. Existe o fogo, que não consegue se firmar, e a
sombra da figura de Piano, que Olaia não consegue definir se está na lama ou no
sangue.
As labaredas brigavam com as sombras, pintando de vermelho ou
de preto a cara barbuda de Piano (“A enxada”, 326)
Mas o que via ante seus olhos horrorizados eram as mãos
grossas de Piano manando sangue e lama... O fogo, o fogo morria
nas brasas que piriricavam muito vermelhas, tudo alumiando pelas
metades. (“A enxada”, p. 327)
O trabalho é a perversão mais extrema nesse instante do conto. A
condição escrava do trabalho confere um suplício ao corpo de Piano durante o
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plantio da roça de Elpídio. A dor se mistura com o desespero. O reconhecimento
do esforço de Piano em cumprir com o "trato" não é reconhecido pelo coronel. A
noite sombria e de uivos e o tempo nublado e de chuva confirmam que um
destino trágico se aproxima de Supriano. Ele é morto pelos soldados, na
utilização privada de um serviço público de guarda através do poder coronelista.
O soldado armado convoca a proteção de seu "bentinho" e acaba com a
existência de Piano.
Encerra-se a vida de Piano, mas não a vida da vila. Mais uma vez, a
dimensão religiosa surge no conto. A festa de Santa Luzia era o prazo da vida de
Piano, caso não cumprisse as ordens do coronel Elpídeo. O dia da festa chegou e
Piano morre, conforme o prometido. É um evento marcado de pompa, junto com a
festa do "Divino". São períodos que marcam rituais e tradições. E os santos são
comemorados, homenageados pelo seu poder de ajudar as pessoas, de salválas.
O coronel os utiliza como prazos para seus negócios numa apropriação
pessoal de um símbolo coletivo na relação de festa e negócios. As pessoas da
vila abrem suas residências e, enfim, surge o objeto de desejo e obsessão de
Piano - as enxadas -, a embelezar as casas e as fazendas. Há um ambiente de
recepção que não ocorreu com Supriano durante toda a trama. A festa é o motivo
dessa euforia. Esse paradoxo se constitui na ironia mais profunda do conto.
Na festa, também há a distinção de classe, na simbolização da fogueira
destinada aos santos dos pobres e aos dos ricos, no tamanho das chamas. Na
casa do coronel, porém, não se recebe ninguém. É uma marcação de diferença,
status e ordem com relação à pessoa e à casa do coronel.
A morte de Piano apresenta um futuro incerto e indefeso para Olaia e seu
filho, que são humilhados e rejeitados socialmente por apresentarem um quadro
de total deslocamento do mundo da vila. Não detêm domínios das relações
públicas e nem da linguagem, como já foi analisado. Olaia e seu filho assumem a
condição de "Otomove": a aniquilação extrema do reconhecimento humano
condicionados à mendicância e dependência.
As crianças representam esse reconhecimento anulado, porque até elas
zombam da situação de humilhação. O pavor de Olaia e o filho é também o medo
da extinção definitiva sofrida por Piano.
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69
2.6 Supriano, Piano, Pianíssimo, sem voz
Supriano é o retrato de uma classe pobre e subalterna. É a
representação de ausências de oportunidades e de lugares. Ele existe numa
posição submissa, ao passo que o capitão Chaveiro é detentor de poder público,
de posse de terras e bens alegóricos de reconhecimento que o colocam em
evidência na cidade. O autor trabalha esses contrastes de classes, situando-os
como referencial de distinção. No conto, podemos identificar três formas de
perceber essas posições sociais no uso de signos alegóricos: a postura dos
personagens, a linguagem usada nas expressões de fala (o lugar de onde falam
os personagens) e a forma material com que se apresentam e são reconhecidos.
Com relação à postura dos personagens, podemos confrontar as atitudes
de Supriano e de Chaveiro. Supriano tem uma situação de grande desvantagem
na atuação e na transitividade da interação social, porque tem uma relação de
controle e de tensão movendo suas ações e sua "perspectiva" de vida; sua
postura, em geral, denota medo e solidão. Em alguns momentos, é colocado
como indefeso e delicado demais. A ausência do seu instrumento de trabalho
coloca-o numa situação de risco e de dependência diante de todas as pessoas,
às quais dirige sua ação de pedido, demonstrando a fragilidade da sua relação
com o outro.
De forma oposta, Chaveiro se apresenta sempre auto-suficiente e com
poder de mando. Sua postura verbal e não-verbal mostra o seu caráter autoritário
de imposição. O autor mostra o personagem com olhar duro, riso sarcástico e
forte. Nas expressões “muito rei na sua homência” (“A enxada”, p. 317), e “senhor
rei” (p. 322), está imbricada a lógica do coronelismo exposta anteriormente com
relação ao funcionamento do sistema coronelista no Brasil; suas falas são ações
de decretos e lei.
Nas expressões discursivas dos personagens do conto, está interrelacionada essa característica percebida quanto às suas posturas. Algumas falas
retiradas da trama em análise são bastante demonstrativas. As falas de Piano, em
geral, são falas de quem é cauteloso e prudente no que diz. Há uma relação de
risco e distanciamento na interação, tanto com relação a seu patrão, como em
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relação aos demais personagens com quem fala e a quem pede. Vamos às falas
de Piano:
Com perdão da pergunta, mas será que mecê não tem por lá
alguma enxada assim meio velha para ceder para a gente? (“A
enxada”, p. 318).
Me perdoa a confiança, meu patrão, mas mecê fia a enxada da
gente e na safra, Deus ajudando, a gente paga com juro (“A
enxada”, p. 316).
O narrador também endossa essa relação de subalternidade: "Piano se
desmanchava em desculpas. Olaia pretendia servir alguma coisinha ao padre,
mas não tinha nada nessa vida" (p. 319).
A fala de Chaveiro denota novamente o contraste de classes e de
posições sociais. O coronel detém a fala do poder. Ele controla a região, porque
detém o capital da terra, no Brasil, historicamente ligada a uma trajetória de lutas,
conflitos e mortes. É reconhecido como fazendeiro e porque também detém um
controle da força na região, com uma relação estreita com o delegado da cidade,
usando a guarda armada para preservar seus interesses e suas vontades, é
reconhecido assim como capitão Chaveiro.
Suas falas, em geral, são rudes e
depreciativas, com um tom de ameaça, porque quer respeito e obediência. A
seguir, estão as falas de Elpídio Chaveiro direcionadas a Piano:
Olha lá que não sou quitanda (...). Nego a toa! Não vale a dívida
e ainda está querendo enxada. (...) E fugir boto soldado no rastro
(“A enxada”, p. 316).
Aqui quem fala é só eu! (...) Eu, Elpídio Chaveiro, filho do
Senador Elpídio Chaveiro, que esse ninguém não logra! (“A
enxada”, p. 322).
A última fala está mais uma vez ligada às referenciais de distinção
enquanto poder. Chaveiro evoca o nome do pai, que era Senador, ou seja, ele
tem tradição e relações legais. É uma forma de fazer sentir-se importante;
também, uma forma de inibir a fala do outro.
No conto, o ritual “Você sabe com quem está falando?” reserva o mais
alto grau de atuação e diferencial movido pelo coronel, que não reconhece a
condição do outro enquanto humano e interlocutor, existindo apenas a sua fala
como a legítima e autorizada. Isto se nota em umas das falas do conto em que o
coronel silencia Piano e diz que o único que fala ou pode falar é ele, Elpídio.
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Os signos materiais também são uma forma utilizada pelo autor para
estabelecer a marca de ausências e posses. Os signos não estão descolados da
realidade, mas fazem parte da relação com o sistema e compõem o contexto de
luta por ser reconhecido e fazer parte de determinados grupos de importante
referência ou por ser reprimido e resistir. Conforme Ribeiro (2001), os signos são
sistemas simbólicos e lógicos do pensamento em sociedade.
Supriano mais uma vez é investido da imagem da ausência; como se vê
no decorrer do conto, ele não possui nenhum veículo e faz longas viagens
cansativas a pé na busca pela enxada. A roupa pode ser considerada um símbolo
de individualização e construção via consumo, é um recurso utilizado para
distinguir os grupos estranhos. A roupa era um símbolo de distinção da nobreza
antiga.
Piano é distinguido pela roupa como indivíduo maltrapilho, que possui
uma única “muda de roupa” para vestir. Na cena em que Bernardo Élis trabalha o
braço como a enxada no plantio do arrozal de Chaveiro, Piano está vestido em
trapos. Essa é uma relação com um sentimento interno também do personagem.
Momento extremo, em que sua condição humana é registrada, inclusive, nas
roupas. A casa de Supriano - como falamos no capítulo anterior - é um ambiente
sem o mínimo de conforto e proteção, estando à mercê das intempéries e dos
animais que a corroem.
Chaveiro possui elementos tradicionais de bens reconhecidos na troca
simbólica da vida no contexto rural. O coronel possuía o cavalo e a “mulona”,
meio de transporte proporcionado a poucos no período em que ocorre a
ambientalização da história. As esporas e as armas denotam respeito e imposição
de medo. O chapéu de aba grande também revela posse, assim como os dentes
revestidos de ouro que conferem um ar de prepotência e sarcasmo a Elpídio. A
casa do coronel é um lugar também distinto. Durante a festa do Divino e de Santa
Luzia, a vila se abre na recepção de visitas, porém, na casa do coronel, não se
recebia ninguém. O coronel pertence à alta classe, não tem parentes moradores
na roça, e não aceita visitas de roceiros em casa. É uma atitude egoísta e
autoritária, preservando seu status diferenciado, não se trata apenas de diferir do
comum, mas de diferir diferentemente.
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Supriano, em toda a narrativa, e como o próprio nome indica, é um ser
suprimido da sociedade, da vida rural e da existência, porque é niilizado pelo
sistema. Em uma ordem social em que o poder concentra-se nas mãos de
pessoas inescrupulosas como Elpídio, não há lugar para os fracos, marcados pela
pobreza e pela ignorância. Nesse esquema, sequer o padre, representante do
poder religioso, escapa à conjunção do poder econômico, deixando de solucionar
o vital problema de Supriano, porque é premido pelo poderio e crueldade do
Coronel.
Piano, hipocorístico de Supriano, nesta circunstância é apropriado à
desventura do infeliz, porque todos o tocam, até que os sons se lhe extingam. Na
conjuntura sociológica “feudal”, Piano, sendo propriedade de Elpídio, não
encontra guarida nos demais feudos e, ironicamente, não consegue a enxada,
imprescindível à plantação do arroz, nem mediante empréstimo.
No sistema social interpretado pelo conto, as relações entre dominantes e
dominados não prevêem espaço para o humanismo. Até mesmo a interação entre
os membros da classe dominante inexiste, o que contribui para agravar a
subsistência dos dominados. Se aos escravos nada é facilitado, entre os
senhores predomina unicamente o jogo de interesses em que vencem os mais
fortes, e os fracos são meros objetos de lucro ou de troca,
[...] obra de cinco anos, pegou um empreito de quintal de café com
o delegado. Tempo ruim, doença da mulher, estatuto do contrato
muito estrangolado, vai o camarada não pode cumprir o escrito e
ficou devendo um conto de réis para o delegado... e no fritar dos
ovos acabou Supriano entregue a Elpídio, pelo delegado, para
pagamento da dívida...Supriano devia trabalhar até o fim da
dívida. (“A enxada” p 315).
O texto é uma alegoria à política fundiária do país, que permite a
aglutinação cada vez maior de muita terra na mão de poucos, enquanto muitos
sem terra vivem da teimosia de buscar sua sobrevivência na luta incessante por
um pouco que lhe garanta o sustento do dia.
A violência no campo é expressa por João Pedro Stédile (1993), como
sendo a violência do latifúndio, que não é visível, mas que se constitui na
violência estrutural que marginaliza, obriga o homem do campo a trabalhos
indignos e permite o trabalho escravo, formando um verdadeiro holocausto. Os
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latifundiários, quando percebem a luta dos trabalhadores contra a violência
estrutural, criam medo e pânico para pôr fim aos trabalhos de reivindicações,
denunciam trabalhadores por práticas por eles não cometidas e contratam
pistoleiros para fazer o serviço de eliminação dos lavradores.
Dos Anjos... Estava pubando na cadeia por causa de um cabu de
enxada que diziam ter ele furtado... E outros que nem se quer
tinham chegado a serem presos, mortos ali mesmo pelo mato por
simples suspeita de furtos? (“A enxada”, p. 318)
Como a já analisada estrutura da narrativa nos atesta, Piano, nesse
cenário, é incapaz de fazer a própria história. A impossibilidade de ser está
presente na supressão da palavra do personagem, transformada em memória do
narrador. Supriano, suprimido da existência, também é suprimido da história à
medida que sua história é a história do narrador. Segundo Fernandes (1992), falar
é um ato de liberdade e, portanto, de manifestação da subjetividade do ser. Assim
entendido, a suprema niilização se encontra no silêncio, quando as personagens,
vítimas de incontida opressão, vêem todas as garantias individuais esboroar-se e
suas vozes serem caladas.
O filho de Piano, na concepção de Fernandes, está bem próximo da
zoomorfização: “próximo, porque é um ente comandado pelos instintos e
destituído de funções básicas da linguagem, a intelectual e a espiritual”
(FERNANDES, 2001, p. 375). Bobo, não dispunha de qualquer capacidade
intelectual, sequer pensava, apenas agia mecanicamente, como qualquer animal
que responde a certos sinais. Assim, a um sinal da mãe, colocava-a sobre os
ombros e a conduzia aos locais que ela desejava: “Olaia se mexia
desajeitadamente, que nem um cachorro, era na beira da fornalha que
permanecia dia e noite... Pernas dela era o bobo, que ela conservava sempre
encostado.” (“A enxada”, p. 325)
Olaia, mesmo se expressando através da linguagem, de certa forma traz
em si a caracterologia antecedente que irão determinar o ser do filho. A distância
entre ela e o filho é mínima, ela conhece o signo e o filho, apenas o sinal. Se ela,
em termos intelectuais, está próxima do filho, este se confunde com os animais.
Inclusive o comportamento de mãe e filho, após a morte de Piano, ao enxergarem
os soldados, se assemelham a reações de animais espancados ao verem seus
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algozes. Colocam-se a correr como se estivessem diante de uma ameaça
iminente.
E de toada pegou a dar arrancos no braço do bobo, o qual se
aprochegou e foi arcando para o chão, feito um cavalo ensinado e
num “upa” ela já estava em riba da carcunda dele.
Nesse auto, o bobo também está muito brabo, braceja, aponta
para o começo da rua, e da sinais de pavor e está querendo
escapulir. A mulher também profere uns sons que o bobo entende
e ela igualmente está irada, retreme e gesticula,até que o bobo
desaba pela rua afora numa corrida dura, sacudida,
desconchavada, com os calcanhares socando as lajes...no
começo da rua não tem nada de anormal. O que vem lá são um
cabo e um praça. (“A enxada”, p. 331).
O pavor nesse momento suprime a fala de Olaia, fala que já não era
legível. “A mulher até que era boa de língua, mas não explicava nada” (“A
enxada”, p.331). Com relação à origem do nome “Olaia”, há uma situação irônica,
pois consta5 que vem de “Eulália” (mártir espanhola do séc III), e significa "bem
falante", o contrário do que demonstra o personagem da obra.
– Ranjou enxada? – gemeu Olaia... Era uma voz pastosa, viscosa,
fria. As palavras eram comidas quase que completamente, restando
apenas o miolo. Para alguém que não fosse roceiro os vocábulos
seriam ininteligíveis. (“A enxada”, p. 324).
Olaia deixa de ser bem falante para ser a laia abandonada e esquecida
pela sociedade. Laia que não fala, não reivindica, e não questiona a sua
existência. Laia absurda, que nessa condição:
“nada mais faz do que perseguir uma quimera que faísca diante
de seus olhos, destinada a desaparecer depois, e que se disfarça
de motivo real... O homem se confronta continuamente com a
privação, sendo a dor e a infelicidade, em derradeira instância, a
única realidade possível.” (MAGALHÃES, 2002, p. 13)
Podemos dizer que a ausência de objetivos transforma o homem num escravo
sem mestre, obedecendo a fins inexistentes.
Olaia nos incomoda pela sua passividade e, sobretudo pela ausência de
consciência de sua precária condição no mundo. Como diz Fernandes, “eles não
existem para se conscientizarem de sua existência, mas para fazer surgir, em
5
Embora não seja uma fonte muito confiável, após algumas pesquisas, somente encontramos
essa suposta significação na Wikipédia – enciclopédia on line.
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nós, os leitores, a imagem da absurdez do mundo.” (FERNANDES, 1992, p. 276).
Olaia é um ser mergulhado na imobilidade do conformismo.
As pálpebras de Olaia pesavam de sono. O mundo existia aos
retalhos. Ela quis reagir, tacar o sono no mato, levantar-se... Mas
o silêncio era de chumbo, era como uma lagoa viscosa estorvando
os movimentos e a vontade. (“A enxada”, p.327)
Olaia encontra-se privada das lembranças de dias melhores ou da
esperança de uma terra prometida. Os homens, sedentos de dinheiro e poder,
exploraram até a reificação seus semelhantes. Retiraram da família de Olaia
todos os seus pontos de referência, tornando-lhes a vida impossível.
Segundo Magalhães, o processo de coisificação é implacável e sem volta,
se o personagem não morre, a niilização deixa nele traços inapagáveis, “o homem
experimenta situações que suprimem a essência do ser, tornando-se, para
sempre, prisioneiro do medo e da dependência.” (MAGALHÃES, 2002, p.17).
Observamos essa situação no progressivo enfraquecimento da subjetividade de
Supriano a se verificar na sua incapacidade de diálogo, posto que ele reclame,
mas ninguém ouve. Situação causada pelo monopólio do poder, que impõe ao
dominado o silêncio através de diversas formas de alienação.
Fome, incompreensão, cansaço, dores, ardume das lapadas no
lombo, revolta inútil, temor de tantas ameaças e nenhum
vislumbre de socorro __ tramelaram a boca de Piano. Só Elpídio
continuava forte como um governo (“A enxada”, p. 322)
Como a linguagem, segundo Barthes (1978), é um instrumento de poder, Piano
só poderia ser submisso, pois não tinha oportunidade de exercê-la. “mesmo
naquele transe os lábios de Piano murmuraram... – Cala boca, sô! Aqui quem fala
é só eu. – Elpídio reafirmou” (“A enxada”p. 316).
Piano já não decidia sobre a própria força de trabalho, e isto insere o
indivíduo num sistema de reificação do ser e aniquilamento de ação no mundo.
Embrutecido pela opressão, a consciência do sujeito é progressivamente
embotada. “Só então percebeu que estava molhadinho, tiritando de frio. Quanto
tempo teria ficado estendido no chão, ao pé do jatobazeiro, debaixo da chuva?
Estava aí uma coisa de que não podia fazer idéia.” (“A enxada”, p. 325). Até a
experiência da dor desaparece, de modo que o indivíduo se torne incapaz de
experimentar emoções verdadeiras, permanecendo indiferente à vida ou à morte.
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Isso significa que, no caso extremo, o indivíduo perde sua capacidade de
intervir no destino da sociedade e mesmo de definir e de escolher seu próprio
destino. Como disse Magalhães:
“A redução do campo da consciência e a diminuição de sua
atividade tem por conseqüência repercussões no conjunto da vida
humana, na medida em que elas impedem os indivíduos de se
interessar pelos problemas da organização econômica, social e
política” (MAGALHÃES, 2002, p. 64).
Podemos dizer que essa redução do campo da consciência abrange o
enfraquecimento da importância do nome como índice de poder. O indivíduo
desaparece e, em seu lugar, surge a espécie humana, em agonia, impotente e
absurda.
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HOMEM: SUJEITO OU OBJETO?
E eu pergunto aos economistas políticos,
aos moralistas, se já calcularam o
número de indivíduos que é forçoso
condenarem à miséria, ao trabalho
desproporcionado, à desmoralização, à
infâmia, à ignorância crapulosa, a
desgraça invencível, à penúria absoluta,
só para produzir um rico?
Almeida Garrett
O significado do texto literário não está marcado dentro do texto, mas sim
no fato de liberar o que está dentro de nós. Cada texto novo constitui seu próprio
leitor, definindo a reciprocidade existente entre o significado constituído, dado
pelo autor e sua consciência no processo da leitura.
Pode-se afirmar que o texto literário desperta no leitor uma interpretação
a partir de seu próprio repertório. Esse repertório é constituído de experiências de
vida social, cultural, comunitária. Afinal, toda linguagem é eminentemente social.
Ocorre que a língua é uma das maiores fontes de controle de poder, possuindo
um caráter altamente alienante, ou fascista, como afirma Barthes.
A narrativa de ficção, conforme preceitua Fernandes explora situações
que se relacionam com a realidade. No entanto, a prática literária nos mostra que,
muitas vezes, os ficcionistas concebem eventos que ultrapassam a experiência e
as previsibilidades da razão. Mesmo sendo definida como um universo anômalo e
como criação de um mundo distante, muita vezes utópico e desconhecido,
transformou-se, de alguma forma, no dia-a-dia do homem moderno.
Mesmo funcionando, em sua grande maioria, como mero entretenimento,
às vezes, transmudam-se e assumem um papel altamente estético, contestador e
proponente de mudanças sociais e políticas.
As desventuras humanas, desde o Renascimento, deixaram, artística e
filosoficamente, de serem interpretadas como uma imposição do destino,
maquinado ardilosamente pelos deuses, para serem fruto das limitações e
misérias inerentes à condição humana. A tarefa de pensar o homem moderno
traduz-se em um dos maiores desafios da filosofia. A perda do universo simbólico,
a ausência de limite e a busca pelo gozo sem responsabilidade apresentam à
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filosofia um sujeito defasado em seu desenvolvimento e abandonado à satisfação
de suas vontades.
Perdido em meio às rápidas transformações da sociedade moderna, o
indivíduo encontra-se destituído dos referenciais que caracterizam sua condição
de sujeito, sendo levado a substituí-los por mecanismos que criam uma pseudoidentidade.
A dificuldade reside, portanto, em definir quem é o sujeito e como ele
reage ao mundo moderno que o cerca, ou para quais caminhos os ditames da
modernidade o conduzem. Pois a mesma lei que age como garantia da satisfação
ilimitada das necessidades, funciona como instrumento de força cujo conteúdo se
mantém inacessível ao sujeito
A obra literária não é um ente imaginário, criado unicamente para
entretenimento, mas a exposição consciente e instigante de um conteúdo que se
liga, ideológica e instrumentalmente, a um período histórico e a uma organização
social. Assim concebida, podemos ver na obra literária um simples documento
relativo a um período histórico ou um elemento social como explicação da solução
estética, enfim pensar numa dialética entre dois pontos de vista, onde o elemento
social determina as escolhas estéticas, mas onde também o estudo da obra e das
suas características estruturais permite melhor compreender a situação de uma
sociedade.
Verificamos que, assim, a interação entre estrutura e conteúdo é uma
imposição das realidades estética e social, “variando a arquitetura da obra
artística conforme a profundidade ou a superficialidade da carga ideológica ou
filosófica que se queira imprimir a narrativa”. (AMORIN, 2006, 15).
De tal modo, nos contos, as especulações dos horrores do existir
manifestam-se na perda da identidade, e os efeitos da modernidade e do poder
capitalista sobre o homem estão patentes nos dispositivos formais, como a
fragmentação e até mesmo a supressão do enredo e do personagem. A literatura
apreende o homem, nos contos estudados, como oscilação entre a postura de
sujeito e de objeto.
Na composição dos contos – “Boi da Cara Preta” e “A enxada” –
encontramos marcas do absurdo, do insólito e da imagem indefinida do indivíduo,
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que se manifestam na construção do espaço, do tempo e na ação dos
personagens.
No desenvolvimento da narrativa de Bernardo Élis, o narrador, sem
perder a empatia estabelecida com o personagem, também se metamorfoseia e
regride em relação à sua posição onisciente. Aos poucos a marcação espaçotemporal, a caracterização do personagem e o próprio andamento da ação vão se
tornando imprecisos e mergulham em um mundo absurdo, regido por presságios
fantasmagóricos, um mundo inumano, do qual os cálculos
de Piano,
acompanhados pelo narrador, não davam conta: “O mundo existia em retalhos”
(“A enxada”, 327).
O narrador agora necessita da visão de Olaia que assiste de forma
metonímica a metamorfose do mundo do conto: “Seria visão? (...) Piano mesmo
ela via partes dele: as mãos em sangue e lama (...) os pés em lama e respingos
também vermelhos, seriam pingos de sangue? Um pé sumiu, ressurgiu, mudou
de forma. – Enxada adonde?” (A enxada, p. 327)
A metamorfose do mundo e de Piano atinge também o narrador. Ao final
do conto, após o desaparecimento de Piano, a narrativa, repentinamente, muda
de foco, de cenário, de tema, de personagens. A noite fantasmagórica da morte
de Piano, cercada de escuridão e silêncio, encerra-se com um uivo de cão e com
uma fala de Olaia: “credo!”
A partir daí o mundo se recompõe, o foco é a festa do Divino: “a cidade
como que “engordava” uma alegria forte abrindo risos nas bocas, muita
conversa”. (“A enxada”, 329) O leitor, então se pergunta: onde está Piano? E
percebe que ele está ausente como esteve a enxada em todo o conto. O
narrador, cuja onisciência estava colada a Piano, agora também não parece ser
mais o mesmo, ele se metamorfoseou; seu vigor narrativo se desfez, ele torna-se
trivial, ameno, distante.
Mesmo quando uma velha magra carregada nas costas por um homem
forte e bobo pede esmolas ao povo em festa na praça, o narrador permanece
distante, narrando esse espetáculo: o homem que, trotando, carregava a velha
nas costas, para o delírio da molecada e dos adultos. As crianças gritam:
“Otomove”, os adultos riem, até que um deles se lembra de Piano, mas logo o
casal sai em desabalada carreira, sem que ninguém saiba o que os afugentou. As
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últimas palavras do conto são: “– Será que é medo de soldado?”. (“A enxada” p.
331)
Na festa, a reificação continua não apenas na brincadeira das crianças
que nomeiam de “otomove” a máquina desumana em que se transformaram Olaia
e o seu filho, mas principalmente na visão amena do narrador que descreve a
cena. A festa, com sua atmosfera amena, na verdade é, uma grande feira para
negociatas: o silêncio do campo que dominava a narrativa anteriormente é agora
preenchido por conversas sobre leilões, vacas gordas, e, ironicamente, pelo
“retintin das enxadas” pela cidade inteira.
O final do conto é o resultado do processo de metamorfose da narrativa e
deixa falar o que a ideologia esconde: a exploração mais arcaica e violenta é o
avesso do mundo reluzente da mercadoria. Se o conto dialoga com o clima
político dos anos 60, sua força ecoa no Brasil de hoje.
A metamorfose, por sua vez, representa a terrível iconografia de uma
ética da lucidez. Mas é também o produto desse assombro inimaginável que
experimenta o homem ao sentir o bicho que ele, sem esforço, se tornou. É nessa
ambigüidade fundamental que está o segredo de Boi da Cara Preta. Essas
oscilações entre o natural e o extraordinário, o indivíduo e o universal, o absurdo
e o lógico reaparecem na obra inteira e lhe dão ao mesmo tempo sua ressonância
e significado: são essas contradições que nos permite compreender a obra
absurda.
Nos três primeiros parágrafos, a narração é construída com base em
raciocínios, que resultam do fato de o narrador conhecer as reflexões do
personagem. No primeiro caso, tem-se uma atitude de auto-análise, numa
tentativa de evitar falhas que o comprometam: “Mais tarde quando foi chamá-lo
para o almoço, encontrou-o pensativo, sentado à beira da cama, de cueca,
camiseta e botina” (“BCP”, 353).
No segundo, uma tentativa de clarificar a natureza das circunstâncias em
que se insere, argumenta o narrador que durante trinta anos ele (Matador)
labutara no frigorífico e que agora estava cansado e por isso passaria o cargo ao
filho. No terceiro, cogitações a respeito dos agentes que o coagem e da decisão a
ser tomada. A linguagem empregada pelo narrador revela a alienação que se
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apodera do personagem e mostra o distanciamento crítico deste em relação ao
conflito
O problema da narrativa não é resolvido pelo protagonista, o filho sofrera
o mesmo aniquilamento. O processo de niilização do sujeito permanece aberto,
pois o complexo de “BCP” extrapola o âmbito ficcional e aponta para o complexo
do homem moderno em seu embate com o mundo que o controla e oprime. As
dúvidas
e
as
conjeturas
demonstram
de
que
modo
o
protagonista,
gradativamente, aceita a situação que lhe é imposta, rende-se ao discurso da
esposa para conduzi-lo ao matadouro e ao poder da instituição de trabalho,
frigorífico.
Em “BCP” estamos diante de uma das mais comuns e significativas
razões da angústia humana: a necessidade de conhecer e compreender; o
desespero provocado pela ignorância, quando esta coabita com a necessidade do
conhecimento.
A narrativa retrata o desajuste entre o ser humano, entendido na sua
dimensão individual, e um Estado totalitário, impessoal, que paira num universo
desconhecido. O absurdo de Carvalho, ao contrário do filósofo francês Camus, é
um absurdo transcendental; reside na incomunicabilidade do homem com o
homem, formando uma trama de relações pessoais sem sentido, impostas por
circunstâncias alheias ao homem.
O absurdo está na ausência de compreensão, mas ela deriva da ausência
de comunicação. Daí o desespero, a solidão e o absurdo que cobre o mundo dos
homens. É o culminar de uma espiral de desespero que revela uma visão dolorida
da alma humana e, acima de tudo, da sociedade humana.
Em última análise, isso alegoriza a manipulação exercida pelos sistemas
de poder, em que os indivíduos vêem-se anulados, não podendo reagir à
opressão por não conhecer a essência e os mecanismos das instâncias que os
oprimem.
Consideramos com base na análise dos contos “Boi da cara preta” e “A
enxada”, que as marcas de conjeturas e dúvidas na linguagem, tanto empregadas
pelos narradores quanto pelos personagens; e as marcas do absurdo e do insólito
presente nas composições do espaço, na ação e caracterização dos
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personagens, alegorizam uma situação opressiva que surgiu ao lado dos
benefícios trazidos pela modernidade.
Neste sentido, os referidos contos remetem a um contexto marcado pelo
desencantamento do mundo e pela racionalização, em que o homem deveria ser
levado ao esclarecimento. A racionalização, porém, desencadeia um processo de
burocratização e sistematização que resulta na dominação do indivíduo e da
coletividade por um conjunto de instituições e organizações, entidades estas que
regem a estrutura social.
Nas obras em questão, a linguagem aponta para o componente
ideológico na relação entre dominador e dominado, de modo que as dúvidas e as
conjeturas remetem aos mecanismos pelos quais o próprio discurso leva o
indivíduo a fazer concessões à dominação. As ações e as caracterizações dos
personagens remetem ao que há de desprezível e parasitário nos detentores do
poder bem como o sofrimento que imprimem na vida dos impotentes.
As construções dos espaços estão associadas, por meio da deformação,
a aspectos como a anormalidade, a ignorância, o esquecimento, a distorção, a
manipulação, o sufocamento e a recorrência de casos de opressão do homem. O
absurdo remete ao fato de tais circunstâncias não se deixarem assimilar pelo
indivíduo, podendo apenas seus sintomas e conseqüências, serem sentidos como
sua desestabilização.
A tematização de classe trabalhadora que recai sobre o funcionário de um
frigorífico e sobre um trabalhador rural, alegorizam a interferência da
racionalização através da institucionalização e do capitalismo em termos de
alienação do ser humano pelo poder de sua gênese social.
Modernidade, neste trabalho, é entendida como momento sócio-histórico
caracterizado pela emergência do indivíduo e sua dominação por um conjunto de
sistemas, instituições e organizações. Como tal, pode ser posta, nas palavras de
Mello (2001), como “desencantamento do mundo”, ou seja, processo que ocorre
com numa sociedade marcada pela indústria e pela ciência, no qual a
racionalização é convertida em técnica e posta a serviço da dominação, de modo
que, ao invés da libertação do homem, tem-se seu anulamento e submissão.
O termo “desencantamento do mundo” remete a um contexto hostil ao
homem, em que este, após superar e se desvencilhar do mito através da
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racionalidade, passa a ser regido por organizações decorrentes dessa mesma
razão.
Neste sentido, os contos estudados enfocam a relação do indivíduo com
os mecanismos sociais. Piano, do conto “A enxada”, e Matador, do conto “Boi da
cara preta”, podem ser equiparados a uma coletividade, trabalhadores cuja
característica é ser amorfa, e sofrer um nivelamento: suas vidas e seus valores –
jeito de ser livre, de trabalhar e de mostrar sua dignidade – são esvaziados.
Eles perdem a autonomia para outra instância, e são privados da
capacidade de reagirem ou terem anulados os efeitos de suas reações. É nessa
concessão ao outro que reside a alienação. Como disse Mello, “O homem pensa
controlar sua ação a partir de sua consciência, contudo, sua consciência é
dominada pela super-estrutura social”. (2001, p. 85).
A pretensão do trabalho exposto não vem de encontro com uma política
rançosa de piedade, ou ainda de intimidar a sociedade, com a luta do homem do
campo. Esses discursos foram usados no curso da história, quando muitos
queriam transmitir a imagem que o homem rural necessitava de proteção, ou mais
recentemente com o discurso de que o homem rural pode ser uma ameaça,
quando se reveste de sem terra e se volta contra o sistema.
Refletimos sobre o campo, como disse Barthes (1978), através do “logro
magnífico que permite ouvir a língua fora do poder”, numa linguagem livre
chamada literatura, que ironicamente traz o retrato do desalento de uma categoria
de trabalhadores, que por tempos são abandonados, sem direitos e sem rosto.
As narrativas mostram esse homem, como representação da massa atual
que vive como escravo, submisso ao tempo e a ordens de uma sociedade em que
a própria vida, deixou de ser um valor em si, como anteriormente era cantada
pelos iluministas e amparada pelo Direito.
Matador e Piano são símbolos da angústia do homem moderno, que não
compreende as engrenagens histórico-sociais que regem o mundo, e, por isso,
tornam-se apenas mais uma peça na máquina alienante capitalista.
Nessa alienação, o próprio semelhante muitas vezes se transforma em
mera coisa. Se o homem nos parece hoje desumano não é porque tem uma
natureza "animal", mas porque está rebaixado a funções de coisas. É por isso que
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Fernandes (1992) denuncia que os homens são coisas que parecem seres vivos.
Sujeito e objetos são invertidos, ou trocados.
Submetendo-se a tais condições, a única recompensa desse sujeito é a
segurança. Em nome dela, abre mão de uma vida sensata, autônoma, individual,
para tornar-se um funcionário burocrático. A ligação desse sujeito com o Estado
se opera pelo conformismo. Em uma realidade incompreensível, ele aceita tudo e
só pede proteção – que acaba lhe sendo negada quando o poder superior surge
como uma incógnita para acusá-lo, julgá-lo e matá-lo.
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