Como o boi subiu no telhado:
A música brasileira em “Le Boeuf sur le Toit” de Darius Milhaud
Por Daniella Thompson
Ensaio elaborado especialmente para o projeto Músicos do Brasil: Uma Enciclopédia,
patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet
http://musicosdobrasil.com.br
Darius Milhaud (nascido em 4 de setembro de 1892, Aix-en-Provence, França; e falecido em 22 de
junho de 1974, Genebra, Suiça), “francês da Provença, de religião judaica” conforme suas próprias palavras,
teve saúde frágil durante toda a vida, e passou a segunda metade de seus dias numa cadeira de rodas. Mesmo
assim, foi um dos compositores mais prolíficos do século XX e produziu uma obra gigantesca com mais de
450 composições em todos os gêneros imagináveis, utilizando os mais diversos estilos e arranjos
instrumentais, cujas características mais notáveis são o contraponto e a politonalidade.
Foi a saúde precária que livrou o jovem Milhaud do serviço militar e que, por fim, o trouxe ao Brasil
como secretário do embaixador francês, o conhecido poeta Paul Claudel. Em sua autobiografia, Notes sans
musique (Notas sem Música, 1949), [referência] o compositor relembrou as circunstâncias de sua indicação
para a embaixada:
“Fui rejeitado para o serviço militar por motivos médicos [...] Estava pensando seriamente em
compor música para Les Euménides na tradução de Claudel. Conversamos sobre isso um dia,
quando nos encontramos na Maison de la Presse. Ele reclamava de ter trabalho demais em
Roma; precisava de um secretário, e propôs que Berthelot me enviasse para lá. Entretanto, antes
que tudo se resolvesse ele foi nomeado Embaixador para o Brasil. Insistiu comigo no convite, e
a idéia de seguir com ele para um lugar tão distante [...] fez com que eu me decidisse a aceitar.”
Depois de uma travessia oceânica de 18 dias, Milhaud, então com 25 anos, chegou ao Rio de Janeiro
em 1 de fevereiro de 1917, “um escaldante dia de verão”. Imediatamente, sentiu-se seduzido pelo “encanto
potente” da cidade, e seus sentidos foram completamente arrebatados pelo Carnaval, que deixou nele uma
impressão duradoura:
“Meu primeiro contato com o folclore brasileiro foi repentino. Cheguei ao Rio no meio do
Carnaval, e logo senti o espírito de louca alegria que tomara posse da cidade inteira [...] Durante
seis semanas, a população se entrega à dança e ao canto; há sempre uma canção preferida a
todas as outras, que se torna o ‘tema do Carnaval’. Assim, em 1917, arranhada por pequenas
orquestras diante dos cinemas da Avenida, tocada por bandas militares e orfeões municipais,
reproduzida por pianolas e gramofones, cantarolada, assoviada e cantada bem ou mal em todas
as casas – ‘Pelo Telefono’ [sic], o tema do Carnaval de 1917, explodia por todos os cantos e nos
acompanhava durante o inverno inteiro.”
Igualmente sedutores eram os ritmos dos tangos, maxixes e choros que Milhaud ouvia no Rio de
Janeiro. Sobre isso, ele escreveu:
“Havia uma suspensão imperceptível nas síncopes, uma respiração descontraída, uma pequena
pausa que me custava compreender. Por isso, comprei uma grande quantidade de maxixes e
tangos; esforcei-me para tocá-los com seus ritmos sincopados que passavam de uma mão para a
outra. Meus esforços foram recompensados e, por fim, consegui expressar e analisar esse “quase
nada” tão tipicamente brasileiro.”
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O jovem francês impressionou-se, em particular, pela música de Ernesto Nazareth e Marcelo
Tupinambá, que elogiou num artigo intitulado “Brésil”, publicado em La Revue Musical em novembro de
1920.
Seria bom que os músicos brasileiros compreendessem a importância dos compositores de tangos,
maxixes, sambas e cateretês como Tupinambá ou o genial Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia sempre
renovada, a verve, a vivacidade, a invenção melódica de uma imaginação prodigiosa encontradas em todas as
obras desses dois mestres fizeram deles uma das glórias e jóias da arte brasileira. Nazareth e Tupinambá
precedem a música de seu país como as duas grandes estrelas dos céus meridionais (Centauro e Alfa de
Centauro) precedem os cinco diamantes do Cruzeiro do Sul.
Em 1919, depois de retornar à França, Milhaud tentou capturar o sabor do Brasil em sua música. As
reminiscências dessa exploração criativa ficaram registradas em notas inéditas de uma palestra intitulada
“Influência da música latino-americana no meu trabalho”, escritas em 1944 quando era professor do Mills
College de Oakland, Califórnia:
“Meu trabalho sentiu uma grande influência das memórias do Brasil, que tanto amei. Depois de
voltar para a França, recordava sempre os maxixes rítmicos e animados, e as árias mais
atrevidas dos tangos. Cheguei a pensar em escrever uma espécie de rapsódia baseada nas árias
que havia ouvido por lá, mas com um tratamento bem livre. Queria uma peça de movimento
ininterrupto, colorida e torrencial. Pensava nos filmes de Charlie Chaplin. Por fim, dei a ela o
nome de uma antiga ária brasileira, O Boi no Telhado, e como subtítulo ‘Fantasia para o
cinema’.”
Le Boeuf sur le Toit, a composição mais conhecida de Milhaud, é uma concatenação animada de
motivos melódicos tomados de empréstimo a 28 músicas, 24 das quais publicadas no Brasil entre 1890 e
1919, sendo a maioria datada do período em que o compositor viveu no Brasil. Com a exceção de “O Boi no
Telhado” (composta em 1918 e, portanto, nunca uma “velha ária brasileira” como disse Milhaud), de cujo
título se apropriou, ele nunca mencionou os nomes das canções brasileiras que incorporou ao Le Boeuf sur le
Toit. Sete das canções eram de autoria de Tupinambá e quatro de Nazareth mas, apesar de seu entusiasmo
declarado pelos dois compositores, Milhaud nunca reconheceu as contribuições deles à sua obra, como
também jamais mencionou os outros doze compositores brasileiros cujas melodias citou.
Em “Influência da música latino-americana na minha obra”, Milhaud chegou a se referir aos motivos
que tomou de empréstimo como “canções folclóricas brasileiras”. Cinco anos depois, em sua autobiografia,
ele se corrigiu e referiu-se a elas como “populares” em vez de “folclóricas”.
Ainda tomado pelas lembranças do Brasil, reuni algumas melodias populares, tangos, maxixes,
sambas e até um fado português, e as transcrevi com um tema de rondó, repetitivo, entre cada par de melodias.
[...] chamei essa fantasia de Le Boeuf sur le Toit, que era o nome de uma canção popular brasileira. Acho que
o caráter dessa composição a tornaria mais do que apropriada para acompanhar um dos filmes de Charlie
Chaplin.
Como resultado da reticência de Milhaud, mais de 80 anos se passaram até que as 24 melodias e seus
compositores fossem identificados pelos musicólogos Aloysio de Alencar Pinto e Manuel Aranha Corrêa do
Lago.
Composições brasileiras citadas em Le Boeuf sur le Toit
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Título
Gênero; Data
Compositor
São Paulo Futuro
Viola Cantadeira
Amor Avacalhado
O Matuto
O Boi no Telhado
Ferramenta
Olh’ Abacaxi!
Gaúcho
Flor do Abacate
Tristeza de Caboclo
Maricota, Sai da Chuva
Carioca
Escovado
Caboca di Caxangá
Maxixe curtindo; 1914
Tanguinho /canção sertaneja; 1917
Tango; 1918
Cateretê/canção cearense; 1918
Tango; 1918
Tango; 1905
Samba; 1918
Corta-jaca; 1895
Polca; 1915
Tanguinho; 1919
Tanguinho; 1917
Tango; 1913
Tango; 1905
Canção; 1913
Vamo Maruca, Vamo
A Mulher do Bode
Tango Brasileiro
Que Sodade!
Seu Amaro Quer
Sertanejo
Samba; 1918
Polca-tango; 1918
Tango; 1890
Cena sertaneja; 1918
Tango carnavalesco; 1918
Tango/batuque-dança brasileira;
1919
Samba carnavalesco; 1919
Peça lírica; 1894
Tanguinho; 1919
polca; 1915
Marcelo Tupinambá
Marcelo Tupinambá
João de Souza Lima, “Xon-xon”
Marcelo Tupinambá
José Monteiro, “Zé Boiadêro”
Ernesto Nazareth
F. Soriano Robert
Chiquinha Gonzaga
Álvaro Sandim
Marcelo Tupinambá
Marcelo Tupinambá
Ernesto Nazareth
Ernesto Nazareth
[João Pernambuco] Catulo da
Paixão Cearense
Juca Castro
Oswaldo Cardoso de Menezes
Alexandre Levy
Marcelo Tupinambá
F. Soriano Robert
Carlos Pagliuchi
Para Todos
Galhofeira
Sou Batuta
Apanhei-te, Cavaquinho
Eduardo Souto
Alberto Nepomuceno
Marcelo Tupinambá
Ernesto Nazareth
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Le Bouef sur le Toit é um rondeau-avec-reprises inspirado por Rameau e Couperin. A reprise
politonal talvez seja o único motivo original de Milhaud, reaparecendo quinze vezes em três ciclos, seguida de
uma recapitulação e de uma coda. Dispostos em quatro pares dentro de cada ciclo, cada um dos motivos
citados sobe uma terça menor acima do par anterior, e depois a música modula um tom inteiro para baixo,
iniciando a sequência seguinte em outro tom. Terminada a obra, ela terá passado por todos os doze tons.
A intenção de Milhaud -- transformar seu rondó no acompanhamento de um filme de Charlie Chaplin
-- foi ignorada por seu amigo, o poeta e dramaturgo Jean Cocteau, que a utilizou no roteiro para um balépantomina surrealista passado num bar norte-americano durante a Lei Seca. Estreada em fevereiro de 1920, a
peça alcançou enorme sucesso. Seu nome foi adotado por um bar-restaurante parisiense que abriu em janeiro
de 1922 e logo se tornou o point noturno mais chic para os escritores, artistas e para a elite social parisiense
durante toda a década de 1920. Outras boates de mesmo nome surgiram em Cannes e Bruxelas. Até hoje Le
Boueuf sur le Toit (o restaurante ainda existe em Paris) é reconhecido como símbolo dos Années Folles. E
chegou a ponto de dar o nome a uma expressão idiomática: como sempre se tocou jazz ali, as jam sessions
passaram a ser conhecidas, em francês, como faire le boeuf.
Em fevereiro de 1922, os famosos Os Batutas, liderados por Pixinguinha, chegaram a Paris. Viajava
com eles o vocalista José Monteiro, autor de “O Boi no Telhado”. Será que Monteiro teria visitado Le Boeuf
sur le Toit? Se visitou, não há nenhum registro publicado. A bem da verdade, nenhum dos compositores
citados em Le Boeuf sur le Toit jamais reclamou em público do fato de terem sido citados por Milhaud. A
única reação conhecida veio de João de Souza Lima, que compôs, “Amor Avacalhado” com a idade de 20
anos, vendendo-a imediatamente ao editor musical Sotero de Souza. Em seu livro de memórias, Moto
Perpétuo (1982), Souza Lima relembra com orgulho:
“[...] esse tanguinho foi impresso e teve grande sucesso – tanto que o grande compositor
francês Darius Milhaud, que viveu no Rio de Janeiro durante alguns anos como secretário da
embaixada francesa, compôs um balé chamado Le Boeuf sur le Toit utilizando os temas da
nossa música popular, inclusive meu tanguinho inteiro. “
Ainda assim, acusações de plágio surgiram de outros lados. O primeiro crítico a apontar o dedo foi o
franco-suiço Blaise Cendrars, que havia sido libretista de Milhaud no balé La Création du Monde (1923).
Amigo de Donga, Cendrars afirmou que Milhaud havia se apropriado da obra de Donga. Essa afirmativa não
deixa de ser curiosa, já que nenhuma composição de Donga é citada no Le Boeuf sur le Toit.
Depois de Cendrars vieram diversos autores brasileiros, principalmente Baptista Siqueira, cujo
livro Ernesto Nazareth na Música Brasileira (1967) apresenta Milhaud como um pirata
predador que roubara o patrimônio cultural brasileiro. Porém mesmo com sua diatribe extensa e
agressiva, Baptista Siqueira só conseguiu identificar sete títulos de cinco compositores, e ainda
assim cometeu dois erros.
Embora o silêncio de Milhaud não possa ser desculpado, é importante ressaltar que Le Boeuf sur le
Toit foi composta numa época em que a música popular era tratada quase como música folclórica, as leis de
direitos autorais eram extremamente frágeis, e os compositores populares vendiam rotineiramente suas
composições para os editores musicais, raramente recebendo mais do que um único pagamento por elas. Se
tivesse recebido direitos autorais apenas por suas composições publicadas no Brasil, Ernesto Nazareth não
teria morrido na miséria.
Por outro lado, tanto os estudiosos mais isentos quanto os amantes da música reconhecem que Le
Boeuf sur le Toit é uma composição engenhosa, na qual o valor artístico é bem maior que a soma das suas
partes.
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Referência:
“As Crônicas Bovinas – Como o boi subiu no telhado:
Darius Milhaud e as fontes brasileiras de Le Boeuf sur
le Toit” http://daniellathompson.com/Texts/Le_Boeuf/cronicas_bovinas.htm
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