Os Fios da Memória e da História em De Rios Velhos e Guerrilheiros:
O Livro dos Rios
Norma Maria Jacinto da Silva
Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco
Co-orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado G. da Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em
Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profª. Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco - UFRJ
_________________________________________________
Profª. Doutora Gumercinda Gonda - UFRJ
_________________________________________________
Profª. Doutora Renata Flávia da Silva - UFF
_________________________________________________
Profª. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria – UFRJ - suplente
_________________________________________________
Profª. Doutora Edna Maria dos Santos – UERJ - suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
OS FIOS DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA EM DE RIOS
VELHOS E GUERRILHEIROS: O LIVRO DOS RIOS
Norma Maria Jacinto da Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção
do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Litertaturas Portuguesa e Africanas).
Orientadora: Profª. Doutora Carmen Lucia
Tindó Ribeiro Secco
Co-orientadora: Profª Doutora Maria Teresa
Salgado G. da Silva
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
Agradeço:
a Deus por ter atendido as minhas súplicas e por ter
colocado em meu caminho pessoas maravilhosas
que muito me ajudaram;
à minha orientadora professora doutora Carmen
Lucia Tindó Ribeiro Secco pela orientação e,
principalmente, pela paciência, dedicação e incentivo
durante a elaboração desta dissertação;
às amigas doutora Arlene Fonseca e doutora
Claudia Atanasio por ouvirem as minhas lamúrias e
pelo incentivo dado durante minha trajetória;
à minha amiga doutora Patrícia Passos e seu marido
pela paciência, pelo carinho, pela tão grande
preocupação em me ajudarem, o meu muito
obrigada;
à doutora Vanessa Teixeira pela disponibilidade,
cuidado e atenção;
a todos os meus amigos que me ajudaram;
à professora doutora Maria Teresa Salgado pela
colaboração no primeiro capítulo desta dissertação;
e, finalmente, a meu melhor amigo Juarez Gomes
da Silva, marido e companheiro.
Dedico esta dissertação de Mestrado a meu marido,
meu eterno namorado.
SINOPSE
Lembranças fragmentadas de momentos históricos de Angola vivenciados por um
narrador ex-guerrilheiro. Uma reavaliação de memórias do colonialismo por
intermédio das recordações conflituosas do protagonista e de seu repensar crítico do
passado e do presente. As tênues fronteiras entre história e ficção. Marcas da
oratura e da ancestralidade reinventadas pela escrita. A importância do velho na
cultura tradicional angolana. O uso de invenções da linguagem. O estudo das
artimanhas do narrar perpassadas por monólogos interiores e intenso lirismo.
RESUMO
Nossa leitura, com base na relação história e ficção, investiga como o texto literário
de Luandino Vieira repensa, criticamente, e recria, através da memória,
acontecimentos históricos ocorridos no passado de guerra, em Angola. Devido ao
tempo já transcorrido e às fraturas identitárias do sujeito que narra, as lembranças
deste se encontram fragmentadas. Nossa análise do romance De rios velhos e
guerrilheiros: o livro dos rios, de José Luandino Vieira, tem o propósito de interpretar
metáforas e imagens literárias relacionadas a momentos históricos vivenciados, no
outrora, pelo narrador ex-guerrilheiro, presentes em suas recordações. Estruturamos
nossa dissertação em dois grandes capítulos. No primeiro, “Rios da memória:
conceitos e reflexões”, apresentamos, teoricamente, os conceitos de memória e
história, nos quais nos baseamos. No segundo, intitulado “Kene Vua e o fluir da
linguagem, da memória e da história”, analisamos propriamente o romance,
estudando o narrador, as personagens e o discurso literário. Esse segundo capítulo
foi dividido em quatro subcapítulos: no primeiro, abordamos as memórias do
colonialismo por intermédio das recordações conflituosas de Kene Vua e de seu
repensar crítico do passado e do presente; no segundo, focalizamos as personagens
e discutimos como são tênues as fronteiras entre a história e a ficção; no terceiro,
comentando os traços do texto oraturizado do romance em questão, trouxemos a
figura do velho Kinhoka Nzaji, examinando no discurso deste as marcas da oratura e
da ancestralidade reinventadas pela escrita, bem como a importância do velho na
cultura tradicional angolana; por último, nos detivemos no deslindamento de
invenções da linguagem usadas pelas personagens e no estudo das artimanhas do
narrar perpassadas por monólogos interiores e intenso lirismo.
ABSTRACT
Our reading, with base in the relationship history and fiction, investigates as
Luandino Vieira's literary text rethinks, critically, and it recreates, through the memory,
historical events happened in the war past, in Angola. Due to the time already
elapsed and to the fractures of identity of the subject that person narrates, the
memories of this they find fragmented. Our analysis of the romance Of old and
guerrilla rivers: the book of the rivers, of José Luandino Vieira, has the purpose of
interpreting metaphors and literary images related to moments lived reports, in the
formerly, for the narrator former-guerrilla fighter, presents in their memories. We
structured our dissertation in two great chapters. In the first, "Rivers of the memory:
concepts and reflections", we presented, theoretically, the concepts of memory and
history, us which were based. In the second, entitled "Kene Vua and flowing of the
language, of the memory and of the history", we analyzed the romance properly,
studying the narrator, the characters and the literary speech. That second chapter
was divided in four parts: in the first, we approached the memoirs of the colonialism
through Kene Vua's conflicting memories and of yours to rethink critical of the past
and of the present; in the second, we focused the characters and we discussed how
they are tenuous the borders between the history and the fiction; in the third party,
commenting on the lines of the text with oral stucture of the romance in subject, we
brought the illustration of old Kinhoka Nzaji, examining in the speech of this the
marks of the orality and of the ancestral reinvented by the writing, as well as the
importance of the old in the Angolan traditional culture; last, we stopped in
demarcating of inventions of the language used by the characters and in the study of
the tricks of narrating, elapsed by interior monologues and intense lyricism.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................09
2. RIOS DA MEMÓRIA: CONCEITOS E REFLEXÕES ...........................................15
3. KENE VUA E O FLUIR DA LINGUAGEM E DA MEMÓRIA ...............................25
3.1. Memórias do colonialismo: recordações conflituosas e o repensar crítico
do passado e do presente ..................................................................................... 25
3.2. Tênues fronteiras entre história / ficção e as personagens do romance
...................................................................................................................................49
3.3. A figura do velho Kinhoka Nzaji: ecos da oratura e da ancestralidade
.................................................................................................................................. 70
3.4. As artimanhas do narrar e as invenções poéticas da linguagem
...................................................................................................................................92
4. CONCLUSÃO .....................................................................................................110
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................116
8
A palavra é, por excelência, o grande agente da
magia africana.
Amadou Hampâté Bâ.
9
1. INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem como principal meta analisar as estratégias de
enunciação ficcional, empregadas por José Luandino Vieira, no seu romance
intitulado De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, no que tange ao exercício
de recriação da memória, haja vista que, tal como entendemos, os acontecimentos
do outrora podem vir a ser evocados, de maneira fragmentada, de acordo com as
necessidades do presente.
Após a realização de uma leitura atenta do referido romance, percebemos
que, na tecedura textual, o autor nos apresenta diversos registros históricos,
utilizando-se, como ponto de partida e veículo de enunciação, das lembranças de
um narrador-personagem. Esses relatos fluem, ao longo do texto, de forma
alegórica, convocando nossa leitura crítica a tentar compreender como a instância
autoral recria tais fatos históricos, uma vez que os mesmos se misturam aos vários
níveis narrativos da obra. Além disso, no que diz respeito aos propósitos desta
pesquisa em direção à investigação dos meandros da memória, torna-se importante
identificar, em meio a essa linha tênue que separa ficção e história, se há, ou não,
algumas interferências da biografia de Luandino Vieira, no processo romanesco de
recriação ficcional das lutas coloniais efetuado pela escrita ficcional de O livro dos
rios.
José Luandino Vieira, cujo nome de batismo é José Mateus Vieira da Graça,
nasceu em Portugal, em um lugar chamado Lagoa do Furadouro, freguesia de
Ourém, em 4 de maio 1935. Foi para Angola com pouco mais de um ano de idade.
Seus pais, Joaquim Mateus da Graça Júnior e Maria Alice Vieira, portugueses muito
pobres, migraram para Angola como colonos, residindo em bairro periférico de
10
Luanda.
Já é de conhecimento geral o fato de Luandino assinar seus escritos com um
nome originado do topônimo Luanda, como forma de homenagear essa cidade,
capital de Angola. Só uma semana depois do 11 de novembro de 1975, data da
Independência angolana, o referido escritor recebeu, legalmente, o direito de usar
esse pseudônimo literário, sendo considerado, oficialmente, um cidadão angolano,
uma vez que participou do movimento de libertação nacional e contribuiu para o
nascimento da República Popular de Angola.
Luandino Vieira colaborou na revista Cultura II, cuja publicação iniciou-se em
1957. Participou também da revista Mensagem e já tinha uma preocupação
nacionalista. Como colaborador dessas revistas, Luandino, depois de Agostinho
Neto e de outros poetas dessa geração, marcou, significativamente, uma forte
ruptura com o universo estético-cultural de Lisboa. Ao se iniciar no campo da prosa,
escreveu dois pequenos contos: Duas histórias de pequenos burgueses, mas, nesse
período, ele ainda não tinha uma estética bem definida.
Data de 1957 a primeira edição de seu livro de contos A cidade e a infância.
Esta obra apresenta uma estética narracional mais amadurecida, de acordo com a
qual o autor funda uma linguagem própria, fazendo, por exemplo, da recriação dos
registros da oralidade uma possibilidade de articulação literária. Percebemos, nesse
momento, uma espécie de conscientização sobre sua própria existência – um
branco em um mundo africano, com o compromisso de ser um escritor angolano –,
ressaltando as particularidades da vida nos musseques1 luandenses. Talvez por isso,
esse livro tenha sido apreendido e sumariamente destruído, ainda na tipografia, pela
Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE).
1
Guetos, favelas da cidade de Luanda, capital de Angola.
11
Após ser “reconstruído” e ampliado, o livro A cidade e a infância é lançado,
em 1960, como um volume da Coleção “Autores Ultramarinos da Casa dos
Estudantes do Império” (CEI), em Lisboa. Na sequência desta obra, seguem-se
várias outras como: Luuanda (1964); Velhas histórias (1974); A vida verdadeira de
Domingos Xavier (1974);
No antigamente na vida (1974); Vidas novas (1975) e
Nós, os do Makulusu (1975); Macandumba (1978); João Vêncio: os seus amores
(1979); Laurentino, Dona Antônia de Souza Neto e eu (1981); De rios velhos e
guerrilheiros – O livro dos rios (2006), obra – que faz parte de uma trilogia, cujos
segundo e terceiro livros ainda vão ser editados – publicada, após longo silêncio
literário.
Todos os livros de Luandino têm sua importância e universo próprios, mas
consideramos de grande significação para a ficção angolana os seguintes: Luuanda
e Nós, os do Makulusu. O primeiro assinala uma revolução literária em Angola e o
segundo é uma espécie de criação autobiográfica, marcada por uma análise crítica
do colonialismo e uma vivência testemunhal de acontecimentos dessa época no
contexto angolano.
A obra luandina valoriza a cultura e a identidade angolanas, conquistando um
espaço de destaque dentro da produção literária em língua portuguesa. O autor
nasceu em Portugal, mas passou toda sua infância no musseque do Braga. Ali,
vivenciou momentos que lhe serviram, a posteriori, de base para suas narrativas, e
alguns dos testemunhos, presenciados nos musseques luandenses, se mesclaram
às suas “memórias do cárcere”, no Tarrafal, em Cabo Verde, onde foi detido pela
PIDE por mais de uma década (de 1961 a 1972).
Nos anos 1960 - 1975, de intensa tensão social e política, os escritores
angolanos tinham como preocupação central os conflitos sociais. Luandino sempre
12
problematizou, em seus livros, essas angústias e reflexões, ficcionalizando, na
maioria das vezes, a vida dos musseques. Já em seu romance, De rios velhos e
guerrilheiros – O livro dos rios, o narrador-protagonista se desloca da periferia da
cidade para o refúgio das matas e dos rios. Esse narrador, um guerrilheiro que luta
pela liberdade de seu país, embrenhava-se pelas florestas. Ele traz ao presente de
sua narração lembranças desses tempos e marcas profundas deixadas pela guerra.
Para embasamento teórico da presente dissertação, recorreremos a
reconhecidos estudiosos do colonialismo e da memória. O primeiro deles, Albert
Memmi, autor da obra intitulada Retrato do colonizado precedido pelo retrato do
colonizador, nos propõe uma análise das figuras do colonizado e do colonizador –
não podemos nos esquecer que a referida obra data da década de 70 –, enfatizando
que o colonialismo é um fenômeno histórico que ganhou novas feições, estando
presente em diversas formas de relação social, constituindo-se, portanto, como tema
fundamental à compreensão das Literaturas Africanas.
Maurice Halbwachs, autor do livro intitulado A memória coletiva, será outro
importante nome a embasar nossas linhas teóricas. Essa sua obra pauta-se pela
afirmação de que a memória individual é originária de uma memória coletiva, visto
que toda e qualquer lembrança é constituída a partir de um dado partilhado pelo
grupo. Para este autor, o “fio” das ideias, das reflexões e dos sentimentos que o
indivíduo experimenta é, sempre, articulado pelo grupo. Não é à toa que, ao
investigar a memória individual, Maurice Halbwachs menciona existir uma “intuição
sensível” que brota de uma consciência de grupo.
O autor de A memória coletiva entende que a memória histórica deve ser
compreendida como uma sucessão de acontecimentos marcantes na história de
uma nação. Para Halbwachs, o termo “memória histórica” evidencia não serem
13
memória e história a mesma coisa, embora a segunda não possa existir sem a
primeira. De acordo com este estudioso, a memória coletiva está ancorada em um
contínuo e, assim sendo, somente poderá ser compreendida como algo plural, ou
seja, como um conjunto de várias memórias individuais. Afinal, a memória de um
indivíduo e a de uma nação são as bases da concepção identitária e, nesse sentido,
a manutenção e a continuação das diversas memórias são fatores determinantes.
O terceiro nome que consideramos indispensável às linhas teóricas de nosso
trabalho é o de Ecléa Bosi, cuja obra, intitulada Memória e sociedade – lembranças
de velhos, efetua profunda análise acerca da questão da memória, apoiando-se em
estudos de Bérgson, de Walter Benjamin e de Halbwachs.
A partir de uma leitura dialogante entre a obra De rios velhos e guerrilheiros –
O livro dos rios, de José Luandino Vieira, e os referidos textos teóricos – além de
outras referências que, naturalmente, surgirão ao longo de nosso trabalho –,
dividiremos esta dissertação em dois grandes capítulos. No primeiro, intitulado “Rios
da memória: conceitos e reflexões”, apresentaremos os conceitos de memória e
história, nos quais nos fundamentaremos teoricamente.
No segundo capítulo, “Kene Vua e o fluir da linguagem, da memória e da
história”, voltar-nos-emos para a análise do romance propriamente dito, estudando o
narrador, as personagens e o discurso literário. Ressalte-se que esse segundo
capítulo será dividido em quatro subcapítulos. No primeiro, intitulado “Memórias do
colonialismo: recordações conflituosas e o repensar crítico do presente”,
abordaremos as memórias do colonialismo, revistas por intermédio das recordações
conflituosas de Kene Vua e de seu repensar crítico do passado e do presente. Em
“Tênues fronteiras entre História / Ficção e as personagens do romance”, nosso
segundo subcapítulo, focalizaremos as personagens e discutiremos como são
14
tênues as fronteiras entre a história e a ficção. No terceiro subcapítulo, que
nomeamos “A figura do velho Kinhoka Nzaji: ecos da oratura e da ancestralidade”,
evocaremos a figura do velho Kinhoka Nzaji, examinando no discurso deste as
marcas da oratura e da ancestralidade, reinventadas pela escrita, bem como a
importância do velho na cultura tradicional angolana, investigando e comentando os
traços do texto oraturizado no romance em questão. Por último, no quarto
subcapítulo, intitulado “As artimanhas do narrar e a invenções poéticas da
linguagem”, nos deteremos no deslindamento das invenções da linguagem usadas
pelas personagens, além de aprofundarmos o estudo das artimanhas do narrar
perpassadas por monólogos interiores e por um intenso lirismo poético.
Por fim, em nossas considerações finais, ressaltaremos serem de suma
importância, para os estudos das Literaturas Africanas escritas em Língua
Portuguesa, a análise e a compreensão dessa obra de Luandino Vieira, cuja beleza
da enunciação é, justamente, a ficcionalização dos meandros da memória de um
personagem-narrador, cujas vivências individuais e coletivas do passado trazem
recordações do outrora de luta e repensam o colonialismo, a independência,
reavaliando, criticamente, partes significativas da história de Angola.
15
2. RIOS DA MEMÓRIA: CONCEITOS E REFLEXÕES
Quando nos decidimos por analisar as relações entre memória e história,
sentimos, inicialmente, necessidade de definirmos esses conceitos para uma melhor
compreensão e contextualização dos mesmos em relação à proposta de estudo de
nossa dissertação.
Segundo Jacques Le Goff, “[a] memória é um elemento essencial do que se
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. (LE
GOFF, 1990, p. 476). Esta definição parece ser a mais adequada para começarmos
a reflexão que aqui se propõe, pois nos introduz no universo das lembranças sociais,
das memórias que representam a formação e a preservação da cultura e da
identidade dos povos. Pensar na formação da memória implica, obrigatoriamente,
refletir acerca de elementos culturais que fazem parte da história, seja ela recente,
ou não. Não há história sem memória.
A preocupação de Maurice Halbwachs – importante sociólogo francês que se
dedicou a estudos sobre memória – baseia-se, segundo Ecléa Bosi, na idéia dos
“quadros sociais da memória”. (BOSI, 2004, p. 54). Amparada pelos postulados de
Halbwachs, essa conceituada pesquisadora brasileira explica que, nessa linha de
estudo, as relações a serem determinadas já não ficarão apenas limitadas ao
universo individual, mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições
sociais. A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com
a classe social, com a escola, com a religião, com a profissão, enfim, com os grupos
de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo (Idem, ibidem.).
Cada ser humano carrega suas lembranças pessoais, porém está inserido em
16
um contexto sócio-histórico e é neste universo que ele consolida suas lembranças. A
memória individual é perpassada pelas diversas memórias que nos rodeiam. Estas
constituem a memória coletiva que garante a identidade dos indivíduos, enquanto
instâncias pertencentes a determinados grupos.
Halbwachs, ao aprofundar a sua proposta de estudar a memória coletiva e a
memória histórica, tece uma análise distintiva entre memória autobiográfica e
memória social. Segundo as investigações do teórico francês, nascido em 1877, as
lembranças agrupam-se em duas espécies de memórias, das quais o indivíduo
participa,
adotando atitudes
diferentes diante
de
cada
uma. A memória
autobiográfica é ocupada pelas lembranças ligadas à sua personalidade, à sua vida
pessoal, enquanto a memória histórica destina-se à sua participação como membro
de um grupo e contribui para “(...) evocar e manter as lembranças impessoais, na
medida em que estas interessam ao grupo.” (HALBWACHS, 1990, p. 53). Essas
memórias, apesar de distintas, podem apresentar pontos de interseção em algumas
situações, mas seguem seus próprios caminhos.
A memória individual, às vezes, penetra a coletiva, pois pode apoiar-se sobre
ela em situações nas quais precisa confirmar algumas de suas lembranças ou darlhes precisão, ou mesmo para preencher algumas de suas lacunas. A memória
coletiva envolve as memórias individuais, porém não se confunde com elas.
A junção dessas memórias se justifica, haja vista que, para retomar seu
próprio passado, o ser humano, frequentemente, precisa buscar apoio nas
lembranças dos outros, reportando-se a referências que existem fora dele e que são
fixadas pela sociedade. O funcionamento da memória individual não é possível sem
esses instrumentos, que são as palavras e as ideias pertencentes não a um único
indivíduo, mas decorrentes de um meio.
17
Isso mostra a relevância de um estudo paralelo dessas duas memórias, visto
que as mesmas se completam, havendo entre elas uma relação de coexistência.
Durante a vida, o indivíduo resguarda suas lembranças pessoais, mas também
compõe um painel de memórias adquiridas por intermédio do depoimento de outras
pessoas. Essas memórias são as que não foram vivenciadas diretamente. Contudo,
integram os conhecimentos que cada indivíduo tem de si, de seu país e do mundo.
Essas são memórias “emprestadas” que servem ao homem como bagagem de
lembranças históricas. Distinguem-se, então, duas memórias:
[...] uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma memória
pessoal, a outra memória social. Diríamos mais exatamente ainda: memória
autobiográfica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois
toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda
seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela
não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e
esquemática, enquanto a memória de nossa vida nos apresentaria um
quadro bem mais contínuo e mais denso. (Idem, p. 55)
A memória autobiográfica se apoia na memória histórica, compartilhando com
esta muitas lembranças e experiências pessoais. Assim, é sobretudo na história
vivida, e não apenas na história aprendida, que se pode ancorar nossa memória
subjetiva. Ainda com Halbwachs, buscamos conceituar história, na medida em que a
mesma se encontra relacionada à memória.
Por história é preciso entender então não uma sucessão cronológica de
acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se
distinga dos outros, e cujos livros e narrativas não nos apresentam em geral
senão um quadro bem esquemático e incompleto (Idem, p. 60).
É curioso observar como as memórias históricas construídas na infância são
influenciadas pela presença das lembranças de outras pessoas. Se um indivíduo se
recorda de um acontecimento de sua infância, mesmo sem compreender, de
imediato, seu sentido histórico, é porque, naquela época, sentia que os outros
18
indivíduos ao seu redor – notadamente, os adultos – se preocupavam com aquilo.
Só mais tarde, então, passa a compreender melhor a significação daquele
acontecimento.
Segundo Le Goff, ninguém vive o presente imediato, já que todo indivíduo liga
coisas e fatos graças à “função adesiva” das memórias pessoal e coletiva que se
relacionam com a história e com os mitos. O historiador acrescenta:
Nosso relacionamento perceptual com o mundo funciona porque confiamos
em histórias anteriores. [...] Aceitamos como verdadeira uma história que
nossos ancestrais nos transmitiram, ainda que hoje chamemos estes
ancestrais de cientistas (LE GOFF, 1990, p. 478).
Nas culturas tradicionais de África, as “verdades” individuais e coletivas se
baseavam nos relatos dos ancestrais. O idoso tinha um papel importante na
construção da memória do ‘presente’, pois sua própria existência revelava uma
época passada, ele era a prova de que vivenciara um universo temporal anterior.
(...) geralmente, é na medida em que a presença de um parente idoso está
de algum modo impressa em tudo aquilo que nos revelou de um período e
de uma sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memória não como
uma aparência física um pouco apagada, mas com o relevo e a cor de um
personagem que está no centro de todo um quadro que o resume e o
condensa (HALBWACHS, 1990, p. 66).
A história vivida se distingue da história escrita, na medida em que tem o que
é preciso para constituir um quadro vivo e natural, em que um pensamento pode
apoiar-se, dar sustentação à memória. No entanto, as lembranças são reconstruídas
no presente, pois é, com a ajuda de fatos emprestados a este, que são retomados
muitos acontecimentos do passado. Ao dizermos isso, estamos, obviamente,
dialogando com as teorias de Walter Benjamin, quando o mesmo se debruça sobre
as relações entre presente e passado, arroladas no conhecido ensaio intitulado
19
“Sobre o conceito da história”. Segundo o filósofo alemão,
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa
fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é
reconhecido. “A verdade nunca nos escapará” – essa frase de Gottfried
Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do
materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que
se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.
(BENJAMIN, 1994, p. 224)
Com o gradativo distanciamento temporal em relação ao outrora, as
lembranças começam a perder seus contornos mais exatos; o passado parece se
estruturar num bloco único, em que, por vezes, se perde a individualidade de cada
fato. A imagem do passado – e não o passado em si, pois o mesmo é “irrecuperável”
– muitas vezes é reconstruída com base em relatos e depoimentos. Tal experiência
ocorre sem que o indivíduo se dê conta de que aquela imagem não se trata de um
retrato fiel do fato em si, mas é o resultado de um processo de recriação da sua
memória. Aliás, toda lembrança é por si só uma recriação do já vivido.
Não podemos dizer que as lembranças são estáticas, uma vez que elas
representam imagens finais de um exercício de constantes e diversas recriações dos
fatos. Lembranças mais antigas se juntam às mais novas e compõem novas
imagens. Também mudam os pontos de vista daqueles que se põem a recordar; as
perspectivas se deslocam, de acordo com as vivências pessoais, com as posições
ocupadas em determinados grupos, com os tipos de relação que cada um
estabelece com os objetos de lembrança. Sobre esse assunto, Ecléa Bosi deixa
claro que aos
(...) dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos
milhares de pormenores da nossa experiência passada. Quase sempre
essas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais retemos
então apenas algumas indicações, meros “signos” destinados a evocar
antigas imagens (BOSI, 2004, p. 46).
20
De acordo com a proposta de Ecléa Bosi, podemos afirmar que a memória
tem uma função decisiva no processo maior de formação da identidade psicológica,
pois permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo,
interfere no processo presente de representações. A estudiosa ainda chama atenção
para o fato de que “(...) pela memória, o passado não só vem à tona das águas
presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência” (Idem, p. 47).
Halbwachs, estudando a teoria de Henri Bergson sobre a memória, destaca
alguns conceitos bergsonianos, como, por exemplo:“(...) o passado permanece
inteiramente dentro de nossa memória, tal como foi para nós; porém, alguns
obstáculos, em particular o comportamento de nosso cérebro, impedem que
evoquemos dele todas as partes” (BERGSON. Apud: HALBWACHS, 1990, p.12). De
acordo com a leitura que viemos desenvolvendo até o presente momento, parece
claro não ser essa a visão de Halbwachs. Para este teórico, as imagens do passado
não se encontram tão somente no indivíduo, mas, sobretudo, na sociedade da qual
ele participa, visto que o universo social é “(...) onde estão todas as indicações
necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, as quais nós
representamos de modo incompleto ou indistinto, ou que, até mesmo, cremos que
provêm completamente de nossa memória” (HALBWACHS, 1990, p.12).
Apesar das diferenças teóricas entre os dois autores, é interessante notar
como Bergson se preocupa em entender as relações entre a conservação do
passado e a sua articulação com o presente, a confluência entre memória e
percepção. Para ele, a lembrança é a sobrevivência do passado que se conserva no
íntimo de cada ser humano; passado esse que será atualizado pela consciência na
forma de imagens-lembranças. O passado, em sua forma pura, seria a imagem
21
presente em sonhos e devaneios. Para Bergson, há dois tipos de memória: uma
objetiva, denominada “memória-hábito”, e as “imagens-lembranças” que envolvem
as recordações subjetivas que cada ser traz dentro de si.
Durante o processo de rememoração, não alcançamos jamais o patamar da
clareza absoluta ou da escuridão impenetrável, o que configura diferentes níveis
inerentes ao exercício de lembrar. Às vezes, somos enganados pela falsa sensação
de certeza diante da imagem de um fato do passado. Percebemos que tal fenômeno
ocorre, por exemplo, quando encontramos alguém que participou de um
determinado acontecimento conosco e que, ao relatá-lo, põe em conflito nossas
lembranças, alterando a sequência dos fatos, seus detalhes, pois os dados do
passado são sempre percebidos de modo diverso por indivíduos diferentes.
Recorremos, novamente, às palavras de Ecléa Bosi, para quem a:
(...) memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao
mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações. (...) A
memória aparece como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa,
latente e permanente, oculta e invasora (BOSI, 2004, p. 46-47).
A memória é, assim, responsável pela “conservação” das experiências,
levando-nos a “reproduzir” o já vivido; este, todavia, é sempre reinventado,
porquanto, quando lembramos, nos utilizamos de um registro a mais, o da
imaginação. “A memória é essa reserva crescente a cada instante e que dispõe da
totalidade da nossa experiência” (Idem, p. 47). Por isso, se diz que a ponte entre o
presente e o passado é feita pela memória. Contudo, não podemos perder de vista a
importância do esquecimento, uma vez que aponta para os silêncios e traumas
vivenciados. Além disso, ao tomarmos consciência de que toda realidade passada é
irrecuperável e nunca poderá ser revista como “de fato foi”, somos levados a concluir
que o esquecimento é parte integrante da memória e não simplesmente o seu
22
oposto. Como assinala Tzvetan Todorov, em Memória do mal, tentação do bem,
(...) a memória não se opõe absolutamente ao esquecimento. Os dois
termos que formam contraste são a supressão (o esquecimento) e a
conservação; a memória é, sempre e necessariamente, uma interação dos
dois. A reconstituição integral do passado é coisa impossível. (TODOROV,
2002, p. 149)
Muitas vezes, as lembranças são tão cruéis, que melhor será olvidá-las. Há
um jogo constante entre lembrar e esquecer. Ficamos suscetíveis ao esquecimento,
quando se tornam por demais dolorosas as reminiscências:
Somos capazes de lembrar e recordar. As lembranças podem ser trazidas
ao presente tanto espontaneamente como por um trabalho deliberado de
nossa consciência. Lembramos espontaneamente quando, por exemplo,
diante de uma situação presente nos vem à lembrança alguma situação
passada. Recordamos quando fazemos o esforço para recordar. (CHAUÍ,
2000, p. 164)
Jacques Le Goff afiança que o estudo da memória não é exclusividade da
História, sendo também da Antropologia, da Psicologia e da Educação. A memória
ganha uma significação particular na História, pois nesta “(...) o estudo da memória
social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da
história” (LE GOFF, 1990, p. 426). É por conta disso, fazendo nossas as palavras de
Le Goff, que “(...) hoje, os historiadores se interessam cada vez mais pelas relações
entre história e memória” (Idem, p. 7).
Não podemos deixar de considerar, entretanto, que, devido a essa dimensão
coletiva, a memória ultrapassa as simples lembranças coletadas em entrevistas ou
presentes em monumentos e ganha status de documento histórico. Segundo essa
nova perspectiva teórica, diferentemente dos pressupostos positivistas – de acordo
com os quais apenas os documentos formais tinham valor histórico – “(...) os
documentos chegam a abranger a palavra, o gesto. Constituem-se arquivos orais”
(Idem, p. 10).
Na Grécia antiga, Mnemosine era o nome da deusa da memória. Ela era a
23
mãe das nove musas procriadas no curso de nove noites passadas com Zeus.
Mnemosine concedia aos homens a recordação dos heróis e seus grandes feitos. A
deusa, contudo, também presidia a poesia lírica, devido ao seu caráter subjetivo.
Deste modo, o poeta era um homem possuído pela memória, um adivinho do
passado, a testemunha inspirada nos “tempos antigos”, na idade das origens. Nos
dias atuais, a memória parece ter perdido essa aura mítica, embora mantenha seus
traços marcados pela subjetividade. Ela guarda lembranças indiretas, registros que
não constam da história oficial.
O passado não é a história, porém um de seus objetos; também a memória
não é a história, mas um dos elementos que contribuem para a elaboração
histórica.Tal como as relações entre memória e história, também os diálogos entre
passado e presente não são estáticos. Sabe-se, hoje, que o passado depende
parcialmente do presente. Toda história é contemporânea, na medida em que o
passado é apreendido pelo presente e responde, portanto, aos seus interesses, o
que não só é inevitável, como legítimo. A história é duração, é a ciência do tempo; e
está estritamente ligada às diferentes concepções de tempo que existem numa
sociedade.
O passado é, ao mesmo tempo, passado e presente. Logo, a história se tece
pela tensão entre o “ontem” – que continua sendo sempre interpretado – e o “hoje”.
Na compreensão do passado, devemos, portanto, articular uma leitura renovada,
constantemente reconstruída. Assim sendo, podemos inferir que os acontecimentos
históricos ocorridos no passado são recriados no presente através da memória. E,
partindo desta afirmativa, podemos observar a relevância da correlação entre
memória e história.
Concordamos com as idéias de Beatriz Sarlo, quando a estudiosa afirma, no
24
livro intitulado Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, que “(...) o
retorno do passado nem sempre é um momento apenas libertador das lembranças,
mas, sim, uma captura do presente” (SARLO, 2007, p. 9). A referida pesquisadora
aprofunda a leitura sobre a conceituação de passado, ao dizer que este
(...) é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a
história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a
memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro
os direitos da lembrança (direitos da vida, de justiça, de subjetividade).
Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas
sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum (Idem, ibidem).
A compreensão de tal perspectiva em relação ao passado é fundamental para
a leitura de O livro dos rios, de José Luandino Vieira. No corpo dessa narrativa,
podemos observar a peregrinação de um sujeito fragmentado, disperso, que procura
avaliar seu passado, cujos conflitos se refletem em seu presente. Os diversos
conceitos que envolvem a articulação da história, da memória, do esquecimento,
entre outros elementos, e que foram aqui explicitados, serão fundamentais para
penetrarmos nos rios da memória de Kene Vua e Kapapa. Tais personagens, a partir
de suas esgarçadas lembranças, repensam o passado colonial e o presente da pósindependência em Angola.
25
3. KENE VUA E O FLUIR DA LINGUAGEM E DA MEMÓRIA
José Luandino Vieira, um dos ativos militantes da luta contra a ditadura
colonial, ficou preso durante as décadas de 60 e 70 e, neste período, dedicou-se a
escrever grande parte de suas obras. Os escritos de Luandino desta época trazem
fortes marcas das memórias desses sombrios tempos coloniais.
O escritor sempre se mostrou preocupado com a questão da descolonização
de Angola, não só em seu último livro, De rios velhos e guerrilheiros: o livro dos rios,
como também nos anteriores. Suas obras, além de denunciarem a violência das
relações humanas na sociedade angolana colonial, levantando-se contra as
imposições feitas pelos colonizadores e se assumindo como arma de luta política
contra a opressão, caracterizam-se por constante lirismo e intenso trabalho estético
de recriação da linguagem.
3.1. Memórias do colonialismo: recordações conflituosas e o repensar crítico
do passado e do presente
O livro dos rios, recordando cenas da conturbada fase da pré-independência
de Angola, apresenta-se como um testemunho, ao mesmo tempo histórico e
ficcional, tecido pelos discursos da memória de vários personagens que vivenciaram
a repressão e a resistência durante os anos de guerra. Nesse romance, publicado
em 2006, o primeiro da anunciada trilogia De rios velhos e guerrilheiros, Luandino
inaugura um novo tempo de representações, marcado por uma escrita que é
resultado de suas memórias.
Essa resistência é expressa não apenas no enunciado, pelo relato de ações
26
praticadas pelas personagens, mas, principalmente, por intermédio da transgressão
da linguagem do narrador que engendra uma escrita, na qual o português e o
quimbundo se mesclam, com grande originalidade estilística e acuidade ideológica.
A escrita de Luandino busca recuperar, criativamente, as línguas maternas dos
colonizados, aquelas que foram reprimidas e silenciadas. De acordo com Albert
Memmi, em seu livro Retrato mítico do colonizado precedido pelo retrato do
colonizador,
(...) a língua materna do colonizado, aquela que é nutrida por suas
sensações, suas paixões e seus sonhos, aquela pela qual se exprimem sua
ternura e seus espantos, aquela enfim que contém a maior carga afetiva,
essa é precisamente a menos valorizada. Não possui dignidade alguma no
país ou no concerto dos povos. Se quer obter uma colonização, conquistar
seu lugar, existir na cidade e no mundo, deve, primeiramente, aplicar-se à
língua dos outros, a dos colonizadores, seus senhores (...) (MEMMI, 1977,
p.97).
Luandino Vieira, desde Luuanda, usa a língua dos habitantes dos
musseques luandenses, quimbundizando o português. Em O livro dos rios, ele
também toca, criticamente, nessa questão da imposição da língua do colonizador,
como podemos observar na seguinte passagem:
Outras, quimbundas, que eram em nomes da terra a humilde sakala, pão;
pangu, presente; monangamba, para tudo serve; até a kamburi, de pastor e
gado. À rebeldia do mundo, à revelia de conquistadores e degradados,
brancos-de-quibuzo que nunca rasparam a língua, nas suas águas claras
por esse riozinho acima prosperavam clandestinas (VIEIRA, 2006, p.17)
As línguas maternas africanas tornam-se símbolos da clandestinidade,
ícones de saberes marginais que pretendem tomar para si – seja na guerra das
armas, seja na guerra das palavras – o lugar de destaque que lhes fora
escamoteado durante séculos de opressão.
Memmi coloca ainda que:
27
No conflito lingüístico que habita o colonizado, sua língua materna é
humilhada, esmagada. E esse desprezo, objetivamente fundado, acaba por
impor-se ao colonizado. De modo próprio, põe-se a afastar essa língua
enferma, a escondê-la dos olhos dos estrangeiros, e não parecer à vontade
senão com a língua do colonizador (MEMMI, 1977, pp. 97 - 98).
Luandino, em O livro dos rios, utiliza a metáfora do rio como o fluir do tempo;
apresenta, assim, sua versão da história de Angola, incluindo aí sentimentos
relativos às experiências da “pré” e a da “pós-independência”. Dentro desse
contexto, destaca-se uma personagem que realiza sua travessia pelos rios da
geografia e da memória: Kene Vua, o “Sem Azar”, persona tantas vezes confundível
com a entidade autoral – algumas vezes identificada como Kapapa, outras como
Diamantininho. À medida que cruza o rio, Kene Vua vai rearrumando suas
lembranças, em busca de atribuir um sentido ao seu próprio passado.
Isto é: conheço rios. De uns dou relação; de outros memória. Rios raivosos,
rebeldes, rebelados; rios d’água suja, cega de sangue; raros rios calados de
medo debaixo do voo dos helicópteros, rios de pele d’água arripiada; rios de
escorregar rude, pedreguentos, retintos de lama e choro (...) (VIEIRA, 2006,
p. 17)
O enredo do romance praticamente não existe; o enunciado se constrói
entremeado pela enunciação, ou seja, pelas reflexões dessa personagem que se
cola à voz enunciadora e nos vai revelando suas impressões acerca da história e do
homem angolano. Paralelamente, somos surpreendidos com algumas informações
destacáveis da biografia de Luandino, o que nos leva a afirmar que O livro dos rios
se aproxima de uma biografia romanceada. Nada tem de autobiografia, pois, nesta,
segundo Phillip Lejeune, há um pacto autobiográfico, ou seja, o leitor sabe que a
escrita do eu corresponde à vida de uma personalidade real. No romance de
Luandino, há alguns traços esparsos de sua biografia, contudo o pacto
autobiográfico não é estabelecido. Quem recorda seu próprio passado é Kene Vua.
28
O pacto romanesco aí se firma, porém se revela entrecruzado por lembranças que
têm algo das experiências vividas por Luandino. Pelo exposto, concluímos que O
livro dos rios se caracteriza como uma biografia romanceada de Kene Vua. Ao longo
da narrativa, percebemos que alguns recortes de memória do protagonista estão
relacionados à militância de Luandino, quando lutou pela independência de sua
terra. Como exemplo, podemos evocar um dos momentos em que a memória afetiva
de Kene Vua encontra o líder guerrilheiro e futuro presidente da nação angolana
liberta, António Agostinho Neto: “(...)
Agostinho Neto despediu connosco: era
setembro, meus pés se incharam de lágrimas nos pambos da vida (...)” (VIEIRA,
2006, p. 98-99)
As lembranças de Kene Vua fluem sem pausas, confundindo-se, por vezes,
com as do autor ficcional. De acordo com os postulados de Phillip Lejeune (1975),
evocados por Paula Morão, no ensaio intitulado O secreto e o real – caminhos
contemporâneos da autobiografia e dos inscritos intimistas, a articulação do
chamado pacto autobiográfico “(...) consiste na identidade entre autor, narrador e
personagem” (LEJEUNE. Apud: MORÃO, 1994, p. 24), demonstrando existir certa
tendência para o cruzamento do literário com o sociológico, expressa nas pesquisas
acerca dos relatos de vida e outros “documentos vividos”. Paula Morão ainda
discute: “(...) a própria questão do eu do ensaísta (...). A questão é: quem sou eu –
sujeito
objectivo
e
suposto
saber,
ou
sujeito
do
discurso
minado
pela
subjectividade?” (MORÃO, 1994, p. 24).
A partir da leitura de outros trechos da narrativa, somos levados a corroborar
a ideia de que existe uma certa ligação entre a instância autoral e a personagemnarradora-protagonista. Dentre os diversos exemplos, parece-nos interessante
destacar um dos momentos em que somos apresentados às palavras do próprio
29
autor em notas explicativas, dispostas no rodapé da página em que se inserem. No
excerto que se segue, essa voz autoral desvenda o mistério da tatuagem desenhada
a fogo no peito de um noviço espancado pelas mulheres do “(...) quimbo de um
mulato de Massangano”:
Nunca os portugueses chegaram a decifrar a tatuagem, como prova o
silêncio que se ouve, vindo de documentos e manuscritos. Porém, já depois
da Independência, (...) Um militante de base, Zé Samuel, riu sem
autocrítica; mas, criticado, calou. Secretou, mais tarde, ao A., de quem era
amigo, a contra-cifra: Deuteronómio, capítulo 28, versículo 19. Aos
portugueses bastara se terem visto ao espelho. (N. do A.) (VIEIRA, 2006, p.
81)
Ratificando a ideia de Lejeune quanto ao pacto romanesco firmado entre a
subjetividade da instância que escreve e o lembrar do protagosnista, percebemos
que esta narrativa de Luadino Vieira não escamoteia sua profunda relação com as
memórias do vivido, ainda que este se encontre ficcionalizado.
Se, como imaginamos, partes da história da nação encontram-se
relacionadas à memória individual, fica evidente a necessidade de essa personagem
singular – também narradora, de nome Kene Vua – demonstrar o quanto foi violenta
e marcante a experiência colonial, cujos males trazidos, entre os quais o racismo e o
atraso econômico-social dos países que foram “vítimas” da predadora colonização
portuguesa. É isso que o discurso de Kene Vua denuncia, refletindo criticamente
sobre a memória do passado:
Confiei então só em meu rio, meu Kwanza, e olhei no cacimbo que a chuva
tossia para cima de mim, como um fumo de cassuneira. Mas a ilha não
estava lá. Não está. A mina do peito explodiu, terror. ”Calma! – eu xinguei
meu coração assustado. “Calma, porra!” – rezei. “Calma, camarada!” – três
vezes, como deve de fazer sempre um revolucionário. Até parar o sangue.
(VIEIRA, 2006, p. 25)
O romance se desenvolve a partir de uma estrutura formada por uma série
de monólogos, por meio dos quais se apresentam os questionamentos do
30
combatente Kene Vua. Logo percebemos que, nesses questionamentos do narradorprotagonista, há uma complexidade de vários momentos de tensão extremada, em
que a consciência guerrilheira se debate com problemas delicados como, por
exemplo, a condenação à morte e a execução de um antigo camarada:
Pelo que, a primeira era: que eu era mas é um revolucionário, a estrelapolar me guia, fixa, lá; e para o revolucionário o navegar de todos os dias é
de estima-e-marca-e-estima, até sempre acabar o que se começa, preço da
própria alma. Portanto: os pés pendurados descalços do Amba-Tuloza, de
seu nome indígena Domingos João, natural de Kitangola, Dande, filho de
João Kambandu e dona Engrácia, nunca mais vão arrastar a traição no
povo – minha missão estava terminada. (Idem, p. 48)
O cumprimento da sentença de enforcamento de Amba-Tuloza desencadeia
uma série de reminiscências da infância de Kene Vua – primeiro chamado
Diamantininho e, depois, Kapapa – e de certos momentos posteriores, relacionados
à sua participação na luta contra o colonialismo. Muitos foram os conflitos ouvidos ou
vividos nesse espaço de tempo. Dessa forma, as memórias necessitavam ser
revistas, repensadas, reinterpretadas. Afinal, “(...) a memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o
futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e
não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 1990, p. 477).
No presente da enunciação, Kene Vua, por intermédio da rememoração,
reavalia seus atos que pareciam condizer com as obrigações e necessidades de
alguém que enfrentava a realidade crua da guerra, fazendo tudo para se manter
vivo, inteiro e seguro em relação a seus propósitos:
“Kene Vua...”, isto era: eu – e eu não senti se era meu nome o chamado, se
era mais cuspo dele, desculpa de me falar à toa. Eu ou ele, as palavras não
podiam mentir quando todos ali no maqui, guerrilheiros e partisanos, povo
em geral, membros do comando da zona, responsáveis e comitês, íamos
votar a justiça: enforcar o ladrão do povo (VIEIRA, 2006, p.39)
31
Para essa personagem e seus pares, a luta contra a colonização – e,
certamente, contra os “traidores do povo” – era a única maneira de instaurar uma
nova ordem, um novo paradigma político que respeitasse a soberania da nação
angolana. Kene Vua defende a causa do colonizado, bem como o papel deste na
defesa e valorização de sua cultura que, durante séculos, fora considerada “inferior”
e, consequentemente, marginalizada. Tal proposta corrobora as ideias de Frantz
Fanon, no seu livro Os condenados da terra, “(...) o contexto colonial caracteriza-se
pela dicotomia que inflige ao mundo. A descolonização unifica este mundo,
exaltando-lhe por uma decisão radical a heterogeneidade, conglobando-o à base da
nação, às vezes da raça” (FANON, 1968, p. 34).
O que podemos notar no processo de luta pela descolonização é a existência
da necessidade urgente de se repensar a situação colonial, pois a independência,
em tese, proporcionaria aos homens colonizados uma reparação moral, devolvendolhes a dignidade. Kene Vua, ao se reportar às suas memórias, deixava clara a
necessidade de delimitar o contexto histórico, permitindo que suas lembranças
fossem permeadas por diferentes registros culturais e, pontualmente, lingüísticos;
registros esses que articulavam um jogo reflexivo entre as heranças de matriz
endógena, anterior à chegada dos colonizadores, e as mudanças resultantes do
processo de ocupação colonial.
Na ficção de Luandino, o ato de voltar os olhos para o passado significa
enfrentar, pelo menos, duas vertentes históricas, cada qual representante de um
braço fundador da multifacetada identidade nacional de Angola, incluindo aí a
composição pluriétnica da sociedade angolana e a indiscutível herança lusitana.
Navegando pelos rios de sua memória, o narrador Kene Vua é pontual ao destacar
os elementos participantes das diversas identidades culturais de Angola:
32
(...) começava e descomeçava toda viagem e de novo ali assim na cara de
meus ouvidos, o Ndalagando tossindo a asma de subir o rio:
1.º) – Gravinho, o Lopo de Caminha e dos mares: que não era nada
disso, qual mão esquerda, qual mão direita. Que isso é mas é em terra,
nesse pó bíblico que a gente todos vamos ser com nossa ignorância das
águas – estibordo é como se dizia, sim; bombordo é que era; bordos, sim,
nada de lados, ou isto é lá assunto de quadrado e isósceles? De través, e
bolina; vante; amuras, popa-e-proa-e-meia-nau... Que se deixasse cá de
ignorantear o miúdo! Sota e barravento, ora!!
2.º) – Kimôngua, o Paka da ilha do Cabo e das cabras: que, por que,
por quanto, como que, já que, visto que, visto como... – virava-lhe meu pai
piloto, um sábio iletrado de segundo-grau e que andou na escola com
Agostinho Neto: “Ignorantear, eu?! Tu é que és mas é um desconvencido! O
senhor já viu que para vocês brancos tudo é só: mar! É mar alto; é mar
bravo; é mar chão; é mar oceano, mar vazio, mar cheio! Não tem mais
palavras na vossa língua?!...”
3.º) – Eu, o ao-tempo Diamantininho, afiava a inteligência, batia
palmas no escuro do meu coração dividido. (VIEIRA, 2006, pp. 105-106)
Kene Vua, mergulhado em águas que se voltam para um tempo pretérito,
assume que o seu eu mais antigo, Diamantininho, já estava “dividido” por heranças e
saberes diversos. Durante a guerra, essa multiplicidade de “verdades” e as várias
leituras da realidade também irão ecoar.
O protagonista de O livro dos rios é, sem dúvida, um indivíduo perspicaz. A
partir de suas lembranças e de seu envolvimento com a causa da libertação
angolana, a voz enunciadora consegue esboçar um mapa político que poderia
funcionar como metonímia da situação política comum a algumas das colônias
africanas, que, na época, encontravam sob o jugo colonial de Portugal.
O livro dos rios ficcionaliza, com maestria, a difícil realidade vivida por Angola,
durante guerra colonial. No entanto, para além disso, surge um interesse crescente
em se destacarem os reflexos dessa história nacional na formação identitária dos
angolanos. Se a luta de Kene Vua é em nome do povo, a revelação de suas
memórias pessoais anuncia conflitos de ordem ontológica enfrentados pela sua
consciência de sujeito que se descobre outra vez Diamantininho e, mais do que
tudo, novamente, Kapapa, desejoso de ser Kalunga. Como afirma a professora
Laura Cavalcante Padilha, em resenha sobre O livro dos rios, o narrador-
33
protagonista da obra de Luandino
(...) reconstrói, pelo retorno do memorável, a trajetória de sua vida pessoal
que se confunde com o relato factual, metonimizado, da própria história de
Angola.
Suas palavras, pelas quais as lembranças escoam, criam uma espécie de
colar, sempre acrescentado pelas contas de outras vidas que sua fala
resgata. Embora sem qualquer linearidade, o narrador volta até sua infância,
quando ainda se chamava Diamantininho e fora “iniciado” por três pessoas,
a saber: o pai; um português, capitão do mar, e o avô que o renomeia de
Kapapa, nome trocado por Kene Vua. Depois da amarga experiência de ter
sido levado a enforcar um companheiro de luta – Batuzola, julgado, pelo
grupo, um traidor da causa –, Kene Vua volta a ser Kapapa, pois a ação do
enforcamento fere profundamente seu corpo ético, constituído pelos valores
disseminados, no passado, pela sabedoria de seus três iniciadores.
(PADILHA, 2008, p.321)
O protagonista Kene Vua é um importante personagem-narrador que
transporta para o presente narrado, por meio de suas memórias, tensões sociais e
culturais experimentadas no passado, seja o seu próprio, seja o de seus
antepassados, os “mais velhos” que contribuíram para a configuração de suas
lembranças e para a formação de sua identidade híbrida. O passado revisto e
recriado no tempo presente da enunciação, por vezes, ilustrará acontecimentos que
precedem à própria existência do sujeito. A famosa batalha do vau do Mbandi que
teria ocorrido no ano de 1920 – como assinalam as palavras não do narrador, mas
as do próprio autor, em nota: “(...) data em que Elias Caturra me situou a batalha
(...), no médio Kwanza.” (VIEIRA, 2006, p. 91) – surge como um bom exemplo para
atestar os conflitos culturais que, de certa forma, construíram a consciência desse
narrador-combatente, protagonista do romance em questão:
3. O encontro de Lengalengenu e Kibaia Kinene
1. Sucedeu então que Lengalengenu [o capitão de artilharia César António
Octávio Paurilha, rebatizado pelos rios] gastou toda a sua pólvora; e a lua
não tinha mais água para chover;
2. Veio o cacimbo;
3. Kibaia Kinene desceu de seu quilombo e veio ao vau; e Lengalengenu
desceu do seu cavalo e veio ao vau;
4. E ficaram cara a cara. E disse Mbumba iá Kibaia, o Grande Kibaia: Vade
retro, Satana!
5. E respondeu Lengalengenu: Vutuka ku tandu dia muxi ié, Kahima!
6. E Lengalengenu falou em quimbundo; e Kibaia Kinene tinha falado em
34
latim; então viram todos que isso era um sinal para pelejarem. (Idem, p. 93)
Durante a leitura deste excerto, percebemos que à tensão territorial
corresponde uma tensão linguística, articulada, curiosamente, por um processo de
assimilação vocabular que tanto atinge o soberano local como o militar português.
Desafiar o inimigo em sua própria língua significa desacatá-lo intimamente, tal
atitude só poderia resultar em guerra.
Observando sua trajetória literária, notamos, na escrita de Luandino Vieira,
uma importante característica, que consiste na utilização de personagens
“marginais”, chamando atenção, desse modo, para as identidades angolanas que
foram massacradas pelo processo de assimilação.
Kene Vua repensa suas relações de afeto e de identificação, deixando claro
que esse refletir faz parte de sua concepção de mundo. Assim sendo, acreditamos
que, ao erigir sua peregrinação pelos desvãos da memória, mergulhada nas águas
doces que afluem do Kwanza, o narrador de O livro dos rios nos transmite a ideia da
necessidade de deixar fluírem seus pensamentos, lembranças e memórias,
“tabucando” pelos espaços recônditos da terra que o identifica, a fim de reencontrar
traços identitários esmaecidos e reconhecê-los.
As lembranças de Kene Vua denunciam que, para conseguirem se impor no
território que pretendiam dominar, os colonizadores costumavam fazer uso dos mais
variados artifícios, a fim de garantirem a hegemonia da cultura portuguesa e,
obviamente, darem continuidade à exploração das riquezas locais que alimentariam
o enriquecimento da metrópole lusitana. Em meio aos seus pensamentos, o
narrador-combatente demonstra como Portugal se utilizou de armas muito violentas
para não perder a posse sobre a terra angolana. Dentre as diversas armas
colonizadoras, parece-nos relevante citar a repressão política, o processo de
35
assimilação e a censura. É contra essas estratégias que os rebeldes guerrilheiros de
Angola se insurgiram e lutaram.
(...) E às bandeiras as queriam alevantadas em todos os postos e senzalas.
Em éditos e brado, faziam saber que já não havia que pagar impostos a elrei de Portugal. [...] E queriam fechar todas as crianças em escolas até
aprenderem a ler e escrever a língua da República (Idem, p. 71)
Foi chocante a crueldade dos artifícios utilizados pelos dominadores
portugueses para assimilarem os colonizados em Angola. Kene Vua relembra
experiências brutais do cotidiano vivido pelos povos dominados e se opõe a esse
embrutecimento, criticando a repressão política e o massacre de diversas etnias
angolanas.
A questão
da
identidade
multifacetada
torna-se
algo
extremamente
problemático para a personagem-protagonista do romance, dividida entre suas
vivências como Kene Vua, Kapapa e Diamantininho. Em cada fase de sua vida, o
protagonista era chamado por nomes diferentes. Antes de abandonar o barco do
capitão português Lopo Gravinho de Caminha – para quem seu pai trabalhava e com
quem conviveu por anos –, para, enfim, se engajar à luta de libertação, chamava-se
Kapapa, nome dado por seu avô, quando ele pescou a sua primeira raia. Kene Vua
que, como vimos, quer dizer “sem azar”, foi o nome de guerra adotado ao integrar a
guerrilha. Diamantino era, por sua vez, seu nome de batismo, escolhido por seu pai.
Como assinala Laura Padilha, “percebem-se, assim, por esse jogo de nomeação, os
múltiplos caminhos de uma identidade pessoal que se estende metonimicamente
para a identidade nacional.” (PADILHA, 2008, p. 321)
Nas rememorações do guerrilheiro Kene Vua – que parece estar
constantemente em busca de respostas para seu destino, articulado entre o tempo
presente e o futuro incerto, sem qualquer linearidade –, sua infância é, por vezes,
36
evocada, ilustrada pelas lembranças de seu pai, pelas do senhor português, capitão
do mar, Lopo Gravinho, e pelas do avô.
Após o trágico exercício da justiça, ilustrado pelo enforcamento de AmbaTuloza, Kene Vua, Kapapa e Diamantininho são convocados a tecerem um
instigante bordado de lembranças que são as próprias memórias do sujeito-narrador.
Luandino Vieira conheceu por dentro as marcas da opressão colonial em
Angola. Ele, branco, nascido em Portugal, fora para Luanda ainda criança. Sendo
filho de colonos portugueses pobres, viveu a maior parte de sua infância nos
musseques de Luanda, o que fez com que ele refletisse, em suas obras, acerca da
realidade social da periferia da cidade. Com muita propriedade, o estudioso
Benjamin Abdala Júnior, em ensaio intitulado “Reimaginando a nação”, aponta para
o fato de que:
(...) José Luandino Vieira “con-figura” imagens sociais que apontam para a
ação política. (...) José Luandino Vieira inverte esse direcionamento vetorial
e, de dentro para fora, leva o social a implicar criativamente o nacional,
repensando-o em função do conjunto da sociedade angolana (ABDALA
JÚNIOR. Apud: CHAVES, MACEDO & VECCHIA, 2007, p.27-28).
Às vésperas da Independência, Kene Vua observou que a sociedade
angolana era pluriétnica, mas dividida em classes de brancos privilegiados, colonos
brancos pobres, mestiços, negros assimilados e uma grande soma de negros não
assimilados. Esse olhar crítico do narrador-protagonista pode ser considerado póscolonial, pois, embora o tempo lembrado seja o do colonialismo, no presente da
narração, há um questionamento do sistema colonial. De acordo com os
pressupostos de Boaventura de Sousa Santos, recuperados pela obra de Maria
Irene Ramalho e António Sousa Ribeiro, intitulada Entre ser e estar: raízes,
percursos e discursos da identidade,
(...) o pós-colonialismo deve ser entendido em duas acepções principais. A
primeira é a de um período histórico. A segunda é de um conjunto de
práticas, predominantemente performativas, e de discursos que
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desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram
substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado (...).
(SANTOS. Apud: RAMALHO & RIBEIRO, 2001, pp. 29 - 30)
O livro de Luandino desconstrói o discurso colonial, denunciando-lhe as
arbitrariedades.
As memórias de Kene Vua revelam que relações étnicas em Angola, antes da
independência, eram bem complexas. Com o surgimento de grupos nacionalistas
negros na segunda metade da década de 50, houve grande endurecimento por parte
do governo colonial. Assim, até os brancos nascidos ou naturalizados angolanos
foram chamados “brancos de segunda”, por serem mais ligados à África do que à
Europa. Por outro lado, insuflados pelas ideias, muitas vezes radicais, desses
grupos que valorizaram a negritude, surgem também desconfianças dentro dos
exércitos guerrilheiros em torno da figura do mestiço e mesmo dos brancos que se
unem à causa da libertação, considerados traidores em potencial, em relação a
Portugal. Ao longo da leitura de O livro dos rios, podemos perceber ecos dessa
desconfiança nas palavras do preso Amba-Tuloza, o “ladrão do povo”. Em meio ao
discurso condenatório do comandante Andiki, desfere Batuloza: “(...) 'Comandante
da merda' (...) 'Filho do colono, cafuso da merda...'” (VIEIRA, 2006, p. 40); ao referirse ao camarada Kadisu, “nosso ex-catequista Ferós”, o condenado dispara: “(...)
'Kamundele!' [termo quimbundo para assimilado]” (Idem, p. 43).
Refletindo sobre esses e outros preconceitos, Kene Vua, vasculhando os
seus valores através da memória, parece defender a ideia de uma nação
democrática e solidária, assumindo um comportamento politicamente engajado. Seu
grande conflito é cotejar o presente distópico e fragmentado em que vive com as
memórias da luta e da utopia da independência. Tal confronto é que fará dele um
sujeito deslocado, fraturado, em busca de respostas para o vivido e para a realidade
38
que o cerca, no momento em que recorda. Kene Vua mergulha num conflito íntimo,
quando não se reconhece mais como o sujeito que já foi e nem referenda as
“verdades” que em outro tempo o ajudaram a construir a ideia que tinha de si
mesmo.
Amba-Tuloza, sapador considerado traidor da luta armada e, em função disso,
condenado à morte pelos guerrilheiros, é executado pelas mãos de Kene Vua.
Batuloza, para Kene Vua e seus companheiros, naquele momento, contrariava a
ética da luta e, portanto, a necessidade de eliminá-lo era inquestionável. Em uma
primeira referência à morte do sapador, indivíduo conhecedor dos caminhos, dos
desvios e dos escoderijos na mata, Kene Vua revela, em seu discurso, que ainda
não há espaço para o questionamento das certezas que o levaram a executar o excompanheiro:
Hoje, ainda baloiça toda a pequenina vida dele na minha consciência, não
guardo memória: fiz o que alguém tinha de fazer e o Kalukala, rio de tantas
matas e bases de apoio e acolho e passagem, já era minha testemunha (Idem,
p.19).
De acordo com o desenrolar dos fatos, não podemos negar a importância da
decisão do grupo em relação a Amba-Tuloza para caracterizar as memórias de Kene
Vua, convertidas em texto narrativo. O grande cerne da questão, que põe Kene Vua
a questionar sua atitude em relação à morte do companheiro, está atrelado ao
“estado” de certeza relativa à traição do guia. Afinal, essa certeza costuma ser
considerada característica fundamental de um guerrilheiro, sobre o qual não poderia
pairar o exercício da dúvida.
Poderíamos inferir que os virtuais processos de “não lembrar”, “não recordar”,
e, consequentemente, “não refletir” sobre tais lembranças corresponderia a uma
tentativa de tornar a memória invulnerável. Entretanto, na medida em que
39
recuperamos o vivenciado, estamos, de certo modo, à mercê das variações de
leitura que são inerentes ao estado presente da subjetividade. Na citada frase: “Fiz o
que alguém tinha de fazer”, observamos que à certeza do sujeito equivale a
“necessidade” da causa da guerra.
Contudo, com o passar do tempo, Kene Vua se revelará uma personagem
caracterizada por certezas fadadas a se desmancharem nas águas do romance.
Não fosse isso, dificilmente poderíamos observar que o discurso do guerrilheiro,
embora imbuído de um tom assertivo em relação ao que “tinha de fazer”, é traído por
uma contradição: enquanto afirma não guardar memória do que fez, suas
lembranças suscitam uma ideia de incerteza.
Nesse sentido, Kene Vua vive o contraste ideológico entre o que foi e o que é,
entre o que pensava e o que pensa, entre o passado e o presente, de modo que a
cena da morte de Batuloza, retalhada ao longo do romance, vai sendo revista e
refletida pela personagem-narradora em seu processo de reconstrução. A morte do
ex-companheiro
de
luta
torna-se
o
ponto-de-partida
para
um
profundo
questionamento dos fatos passados:
(...) o Amba-Tuloza, mau-aluno repetente, cuspia: “Kamundele!” e isto é
que era nosso camarada Ferós, assimilado. Que se via muito bem,
nem comia com as mãos, não punha gota em chão nem se esborrifava
por cima dos ombros, sem cultuar seus espíritos antes-que. E sempre
raspava as barbas, ainda com caco-de-garrafa: “Vais virar mazé
doutoro. Vais querer mandar. Mandar! Mandar na cabeça dos outros...”
(Idem, pp.43-44)
Ao contar as decisões que levaram à morte de Batuloza, Kene Vua vai sendo
interrompido pela própria consciência e seu autoquestionamento começa a ser
articulado, ou seja, passa a existir um espaço aberto para a dúvida em relação às
próprias informações por ele prestadas; daí surge a possibilidade, melhor, a
necessidade de dar lugar novamente a Kapapa.
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O “jogo de memórias” a que Kene Vua é submetido é duplamente importante
para a busca de sua identidade, visto que, embora o passado condicione o presente,
não existe, nas lembranças de Kene Vua, entre essas duas instâncias de tempo,
uma relação de causalidade.
Conforme aponta Carolina Ribeiro, em ensaio intitulado O escriba da
memória, “(…) a memória é o único recurso capaz de suprir as ausências (…)”
(RIBEIRO. Apud: FONSECA, 2003, p. 29) do sujeito. Por conta disso, Kene Vua
passa a buscar, nas suas lembranças e recordações, as explicações necessárias
para a reafirmação do seu “eu”, da sua “identidade”. Até porque, ainda em
concordância com a estudiosa referida acima, entendemos que “(…) todo hiato é
preenchido através da memória” (Idem, ibidem.).
A memória é, para Kene Vua, a via principal para o reencontro com suas
referências, dentre elas, a imagem de seu avô, que poderia ajudá-lo a reestruturar
instâncias destruídas dentro do “Eu, Kene Vua”. Depois da morte de Batuloza, Kene
Vua exercita o reencontro com sua identidade mais remota, infantil, o seu “Eu,
Kapapa”. Para essa outra face do guerrilheiro, o "Eu, Kapapa", os saberes do avô
não se constituem somente de falas, mas também de silêncios. Silêncios que,
todavia, falam.
Kapapa queria poder ter ali, novamente, a figura do avô, queria novamente
poder contar com seus conselhos, desejo que o leva, pouco a pouco, a reinventar e
reescrever a imagem do “mais velho”. É interessante notar que, ao longo da leitura
do romance, as vozes de Kapapa e de seu avô vão-se (con)fundindo, a ponto de se
tornarem uma única voz. Esse combinar de vozes corrobora a teoria de Halbwachs,
que, em seus estudos sobre os meandros da memória coletiva, evoca a ideia de que
“(…) nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
41
outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos.” (HALBWACHS, 1990, p. 26)
A presença da voz do avô representa, na obra de Luandino, a caracterização
da cultura ancestral, embora relida pela subjetividade contemporânea. Não podemos
perder de vista o fato de que o tempo pretérito, quando relembrado e reconstruído
pela memória, cede às necessidades do presente, no sentido de que passa a ser
traduzido, inventivamente, por ele.
Podemos identificar, no decorrer da narrativa, essa questão da reinvenção do
pensamento ancestral no presente, por intermédio, por exemplo, das mudanças que
ocorrem constantemente no fluir do texto. Sendo assim, para Kapapa, neste
exercício de “relembrar suas memórias”, as palavras de seu avô se recriam no
presente, tão logo são evocadas; entretanto, visto aparecerem carregadas de
palavras da língua ancestral, o quimbundo, caracterizam também, a versão
necessária para quem busca suas origens. Portanto, a figura do avô, vinculada à
imagem de Kapapa, representa o retrato de alguém que tinha em suas memórias um
histórico de vivências capaz de oferecer para Kene Vua o suporte necessário para a
compreensão e o encontro deste com sua multifacetada identidade e com os
sentidos existenciais de sua vida.
Relembrando o “Eu, Kapapa”, Kene Vua parece iniciar uma peregrinação
rumo à “sua múltipla identidade perdida”. Porém, no ápice de sua busca, o
protagonista-narrador percebe que “voltar a ser Kapapa” não passa de uma utopia,
pois o outrora é algo em que podemos aportar, mas não alterar ou modificar. Voltar a
ser “Kapapa” nunca livraria “Kene Vua” de suas marcas mais recentes.
François Châtelet apresenta o passado e o presente como categorias
simultaneamente diferenciadas, embora semelhantes e indissociáveis:
42
Ao reconhecer o passado como já tendo existido, considera que o que
aconteceu outrora existiu, teve um lugar e uma data, exactamente da
mesma maneira que o que existe, que este acontecimento que hoje tenho
debaixo dos olhos.... Isto significa que não é permitido, de forma alguma,
tratar o acontecido como fictício ou irreal, que a não-actualidade do que teve
lugar (ou terá) não pode ser identificada com a sua não-realidade!
(CHÂTELET, 1962, p.11)
Ao refletir sobre a imagem de Batuloza, Kapapa ressignifica o excompanheiro. Retomam-se, na voz do sapador morto e no modus operandi de sua
morte, reflexões que Kapapa nunca teria articulado como suas e que, na figura de
Kene Vua, pareciam perfeitamente aceitáveis. Na verdade, Kapapa se depara com
uma ideologia que sempre repugnou, ou seja, com o ato de Kene Vua executar um
companheiro. A atitude de Kene Vua é o contraponto ideológico das ideias de
Kapapa, mas, no passado da luta, Kene Vua estava em acordo com “a disciplina da
guerrilha” (VIEIRA, 2006, p.38). Tal disciplina passa a ser questionada pela
consciência de Kapapa e, no presente da enunciação, pelo repensar crítico que
Kene Vua faz de seu passado.
Buscando explicações nas memórias passadas para dar sentido ao presente,
Kene Vua e Kapapa confrontam-se no processo de reviver essas memórias. O
primeiro, reescrevendo sua própria história, acaba por vivenciar três papéis sociais,
com o objetivo de relembrar os fatos ocorridos a partir de um outro olhar. Esse olhar
diferenciado é filtrado pela perspectiva do como “Se fosse hoje”, segundo palavras
do próprio Kapapa. (Idem, p.64)
Kene Vua deixa evidente sua crise de consciência, quando rememora suas
ações do outrora. Enquanto guerrilheiro, com os olhos de Kapapa, começa a mudar
sua “fala”, a ponto de percebermos que, designado pelos companheiros de guerrilha
para matar o sapador, ele, como narrador, se exclui da ação que lhe fora imposta,
tentando omitir seu compromisso em relação a tal ato: “(...) lhe fizeram” (Idem, p.
43
46), diz Kene Vua.
A crise de consciência e a dúvida acabam por suscitar um questionamento,
possibilitado pelo distanciamento no tempo. Partindo de um olhar para o passado,
vivenciado por Kapapa, e alcançando o momento presente, quando se assume Kene
Vua, articula-se um pensamento formado pela mistura de antigas convicções e
novos olhares, encontrando, aí, o protagonista-narrador um viés para a busca de
reconstrução de sua identidade de sujeito, em particular, e, metaforicamente, da
própria afirmação identitária da nação angolana. Pelo discurso-indireto-livre, parece
que Kapapa se perguntava: ‘Quem são nossos inimigos?’ – ‘Todos os portugueses?’
‘Batuloza?’ ‘Os traidores da guerrilha?’ Há um desenrolar de idas e vindas entre as
personagens e suas identidades: ora Kapapa, ora Kene Vua. O resultado disso é o
fato de que, no pensamento de Kapapa, aquele que morrera como inimigo ressurgia
como o mártir de um engano, um herói que clamaria por “justiça”. Dessa forma, a
história é repensada, sendo colocadas em questão certas ações radicais e extremas
praticadas durante as lutas pela libertação nacional.
Quando Kene Vua reencontra sua identidade da infância e, assim, deixa
ressurgir, em seu âmago, Kapapa, este acaba por desconstruir socialmente o
conceito de “inimizade”, confrontando essencialmente a ideia de uma identidade que
surgiu a partir de uma antítese: ser contrário ao outro (Kene Vua e Kapapa) e, acima
de tudo, ter como paradigma uma noção de limite, ou ainda, de uma imagem
inversamente refletida. Conforme aponta António Ribeiro, citado por Boaventura de
Sousa Santos,
construir o Outro (...), implica construir a fronteira que dele me separa – a
fronteira começa por ser antes do mais a linha imaginária sobre a qual se
projecta a noção da diferença e a partir da qual se torna possível a
afirmação da identidade (RIBEIRO. Apud: SANTOS, 2002, p. 481).
44
Uma vez executado o inimigo, restou a Kene Vua a complexidade de se
redescobrir um ser humano antitético, que se questiona a todo tempo, por intermédio
da figura de Kapapa, fazendo a si próprio, silenciosamente, a inquietante pergunta:
‘quem sou eu?’ Como não poderia deixar de ser, a personagem obtém a resposta a
partir de uma imagem metafórica, segundo a qual se vê como um rio que flui
indefinidamente e, na busca por uma identidade e um sentido para a vida presente,
deve encontrar-se com sua nascente.
Imerso em memórias que parecem pertencer a universos distintos, Kapapa
passa a enxergar, no seu reflexo, o rosto de um homem angolano dividido. Sua
identidade fraturada busca, assim, uma ponte dialogante entre a tradição e a
modernidade, entre o pré e o pós-colonial, e, principalmente, entre seu avô, seu pai
e seu patrão. Sua reafirmação identitária encontra-se entre mundos que se
esbarram, sem limites, nos quais as identidades híbridas e fluidas, agora, se
confundem.
Não nos restam dúvidas de que essas personagens representam os vieses
fundadores da identidade angolana. Esta, através das lembranças dessas
personagens, incorpora a imagem de um ex-guerrilheiro (Kene Vua), cuja relação
renegada com a instância ancestral não o deixa perceber o sentido de sua vida no
presente. Kene Vua vê-se, assim, como um individuo socialmente fragmentado e
que acaba por buscar, por intermédio de suas memórias pessoais, respostas para o
próprio equilíbrio existencial.
Percebemos que muitos são os recursos para se estabelecer um elo entre as
matrizes da tradição e as referências da modernidade, ou seja, entre as memórias
do colonialismo, suas recordações conflituosas e o repensar crítico do presente, elo
este essencialmente necessário à compreensão do mapa cultural e histórico da
45
sociedade angolana. É o recriar dessa memória de Kene Vua que vai direcionar o
‘rumo’ de sua vida e a imagem que ele tem dos ‘rios’ e de sua travessia por eles. Tal
recriação redesenha uma nova cartografia identitária, a fim de repensar o itinerário
de uma geração de angolanos. Uma vez mais, essa geração, “a da utopia”, mobiliza
a atenção e contribui para a reflexão acerca desse presente que, com o fim da
guerra, em 2002, pode ser reavaliado fora dos “rios da guerra”:
Conheci rios.
De todos direi – dos velhos rios de arrugadas margens, uma teia de muíjes
e jindombes, dos que eram macotas nos sobados de tantas nascentes, e
rios desalforriados agora, avassalados que estão em livros de atlas, os
antepassados rios de sangue, enxurrados na memória dos homens; dos
futuros rios falaria, nascidos que vão ser de uma água gorda, lama saindo
nos fundos dos mares, esgotos peregrinos. (VIEIRA, 2006, p. 67)
Kene Vua se apresenta como uma personagem instigante, que vai ao fundo
das águas, fazendo ecoar vozes das suas memórias. Para repensar a época do
colonialismo, o narrador de O livro dos rios parece arrancar “(...) a tradição ao
conformismo, que quer apoderar-se dela.” (BENJAMIN, 1994, p. 224)
Essas décadas, percorridas pelas memórias de Kene Vua, revelam grandes
mudanças no território angolano; há, entretanto, traços que permanecem e marcam
a profunda relação entre a literatura e a vida social. Nesse sentido, o discurso de
Kene Vua nos dá a impressão de estar se renovando ao mesmo tempo em que
legitima os muitos caminhos da memória, percorridos pelos seus ‘rios’ guerrilheiros:
Eu, Kene Vua, guerrilheiro, digo mais:
(mas ouvi cantar nossa mãe Kwanza de boca aberta m’adormeceu em seu
xuaxo de folhas de água dia que Agostinho Neto foi em Massangano –
relâmpago dos óculos; palavra d’ordem cate o Kunene; e estrela na
bandeira rubinegra (VIEIRA, 2006, p. 21).
A narrativa de Luandino Vieira, muitas vezes, como pudemos observar na
46
citação anterior, inclui referências individuais muito particulares, embora tal
peculiaridade não impeça que seu texto seja incluíndo entre as obras que discutem,
proficuamente, as questões da formação da nação e a multifacetada identidade do
homem angolano. O combate ao colonialismo e a luta armada são temas recorrentes
dentro do percurso literário angolano. Tais temas ressurgem nos ‘rios’ da memória e
da história de Kene Vua, a ponto de levarem a personagem a repensar qual o
sentido de sua vida, trazendo à tona fatos e sentimentos que muitos angolanos
insistem em esquecer.
Sob o compasso da memória, Kene Vua, o combatente-protagonista, relatanos, em primeira pessoa, a atribulada trajetória de sua vida, evidenciando, num jogo
intenso de travessias, o processo de construção de sua complexa identidade de
guerrilheiro:
“O ódio é para o inimigo....” – Ndiki Ndia, nosso ex-seminarista comandante,
traduzia contra a corrente do bobolhar do sangue de todos. “Para os nossos
– Justiça!” – meu camarada Andiki, que queria ele com suas falas e dixibes
– nossos, os gatunos traidores? E aqui minha resposta, de ele, o Kene Vua,
eu: “Justiça, um tiro nos cornos!”. “Tiro, Kene Vua é pròs tugas. As balas
são difíceis...” (Idem, p. 44).
A partir de um ir e vir por ‘rios’ em que são latentes os avanços e os recuos, a
mobilidade de Kene Vua se projeta paralelamente ao dinamismo de uma linguagem
própria, empenhada em dar corpo à rede de dilemas que cercam o guerrilheiro e é,
ao mesmo tempo, necessária ao homem que se vê em confronto consigo mesmo,
envolvido por tempos de acentuada tensão.
A ansiedade de Kene Vua por respostas que afirmem a sua identidade,
obriga-o a se voltar para os espaços mais íntimos do seu outrora. Articulando uma
busca pelo sentido maior de sua vida, Kene Vua capta o passado por meio de seus
relatos memorialísticos, procurando lançar luzes sobre a atmosfera turva de uma
47
experiência que tende a imobilizar os sentidos e os sentimentos: a guerra.
Não há como causar-nos estranheza que seja, justamente, o ‘rio’ a figura
fundamental na narrativa, numa escolha metafórica que conduz a uma nova
geografia. Dos becos e vielas que marcaram as cenas captadas por Luandino em
Luanda, o autor passa em O livro dos rios, por intermédio do guerrilheiro Kene Vua,
aos rios que formam Angola.
Luandino retoma a imagem do Kuanza, multiplicando a sua dimensão
simbólica através dos ‘rios’ que ajudam a fecundar as terras de seu país, e, quiçá,
lavar as manchas deixadas por tanto sangue derramado; manchas essas
atormentadoras da memória de Kene Vua, o guerrilheiro, que, por meio da reflexão
sobre o seu passado, procura atribuir-lhe algum sentido capaz de explicar melhor o
seu presente.
Na correnteza dessas águas, o processo só pode ser de transformação. A
singular
mobilidade, expressa na “fala” de Kene Vua e na fluidez referente à
imagem dos rios, ganha nova expressão em ‘Eu, o Kapapa’, nome ancestral de
Kene Vua, cuja recuperação se dá pela confirmação da força da mutação.
Em O livro dos rios, espécie de romance-poema fluvial de José Luandino
Vieira, torna-se essencial a reflexão acerca da atuação do tempo sobre os homens e
as coisas, evidenciada, por exemplo, no pensamento de que nenhum homem pode
banhar-se nas mesmas águas de um rio, pois essas águas nunca serão as mesmas.
A ideia de mudança é, sem dúvida, um dos principais focos da narrativa, mas,
contrariando até mesmo a lógica do movimento das águas, o narrador-protagonista
refere-se à força da circularidade mítica como uma das bases de suas memórias:
Só, que na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios
demais – vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas
vezes (Idem, p. 15).
48
A construção de uma personagem como Kene Vua nos convida a um
exercício contínuo de desconfiança em relação a qualquer pensamento prédeterminado; leva-nos à dessacralização de “verdades” e versões soberanas,
inclusive aquelas prescritas pela tradição, através de aforismos e ditados populares.
Podemos perceber na voz de Kene Vua um certo tom vacilante, o pesar de
sua consciência, a dúvida, e até mesmo o questionamento sobre uma ideologia que
legitima e fundamenta suas ações pretéritas, as quais vêm à tona por meio de suas
lembranças. Quando Kene Vua reflete acerca de suas vivências e experiências, o
faz sempre de forma a denunciar o seu afastamento em relação à cena narrada,
tanto do ponto de vista temporal, quanto ideológico, o que fica nítido, por exemplo,
na citação a seguir:
Não fiquei, saí do vapor, eu tinha de dar encontro em vida minha as
maravilhas que meu avô falava, o caminho que esse branco sempre
queria lhe pôr em boa lei, ordem e explicação. “Fica rapaz... Vem
comigo!...” – ainda oiço e me dói aquela palavra, rapaz, de ele lhe dizer
assim, sem sentir o que ele falava por dentro e eu ouvia. E que era a
distância da terra lá dele no norte da terra dele do rio dele até naquela
beira-rio meu onde que rapaz, em meus ouvidos, sempre traduzo por
filho, quem sabe tímida referência desse tuga meu amigo. A música
que tinha por dentro dessa palavra era de outra canção: filho, eu ouvia,
desafinado. Mas filho era coisa, palavra, eco, pensamento proibido em
boca de branco, babando seu fio de triste solidão: “Fica, rapaz!” (Idem:
p.34)
Não podemos mais duvidar de que a figura de Kapapa representa para Kene
Vua uma imagem construída por códigos socioculturais de outros tempos. O
narrador de O livro dos rios parece decepcionar-se com algumas atitudes pretéritas
em seu pensamento. “Se fosse hoje...”, diz a personagem, revelando um desacordo
entre o já feito e o que faria agora. Parece absolutamente relevante e justificável o
retorno de Kene Vua às suas fontes, seu reencontro com suas nascentes. Afinal,
compreender como começa o rio significa também entender como começa a estória
de Kene Vua e como se impõe a história de uma Angola liberta do colonialismo. O
49
objetivo de encontrar o princípio do rio estende-se ao exercício de dar sentido à sua
própria história, à sua própria linguagem, tendo em vista o rio metaforizar,
simultaneamente, o tempo, o discurso e a memória.
3.2. Tênues fronteiras entre história / ficção e as personagens do romance
É bastante recorrente, nas obras de Luandino Vieira, o diálogo entre história e
ficção. Parece interessante lembrar que tal relação tem suscitado, ao longo dos
anos, muitos debates, seja entre historiadores, seja entre literatos, propiciando
discussões voltadas para os tênues limites observados entre essas duas áreas do
saber.
José Américo Motta Pessanha é um dos estudiosos que demonstra que não
faz sentido estabelecer limites rígidos entre literatura e história. Segundo Pessanha,
no “(...) novo contexto filosófico, lógico, linguístico, a questão da narrativa e, dentro
dela, a relação entre ficção e história assume nova formulação”. (PESSANHA. Apud:
SANTOS, 2003, p. 189). Ana Mônica Lopes, em sua dissertação intitulada Ficção e
história: imagens de nação em obra de Agualusa, aponta, muito apropriadamente,
para uma comparação entre o historiador e o poeta, segundo a qual a principal
diferença entre um e outro concentra-se no fato de que “ '(...) um escreveu o que
aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido', distinguindo dessa forma o texto
literário do texto histórico”. (LOPES, 2002, p. 35). Ainda que possamos destacar na
função do historiador o exercício de relatar o passado, e caiba ao poeta,
diferentemente, pensar outras possibilidades para esse passado, podemos perceber,
nessas distintas formas de rever o outrora, uma linha limítofre, o que permitiria a
ambos – sobretudo aos ficcionistas – transitar pela área do outro.
50
Peter Burke, no ensaio intitulado “As fronteiras instáveis entre a história e a
ficção”, citado em nossa bibliografia, salienta a importância de se levarem em
consideração “os elementos que cada área coloca à disposição do investigador, sem
que o estabelecimento de fronteiras constitua um empecilho, impedindo-lhe de
captar, no texto literário, elementos de estudos históricos ou vice-versa”. (BURKE
[1977]. Apud: AGUIAR, 1997, p.107)
Um exemplo de como é possível o texto literário transitar pelos domínios da
história nos é dado por Luandino Vieira, no livro De rios velhos e guerrilheiros – O
livro dos rios. Nele, várias questões alusivas à configuração da identidade nacional
angolana são colocadas em xeque, remetendo à discussão da diversidade cultural
no território. Do ponto de vista diegético, o texto de Luandino esmera-se em romper
fronteiras entre o eu que narra e o eu recordado, na tentativa de desconstruir a linha
imaginária que insiste em separar, radicalmente, o dado factual do ficcional. As
relações entre a escrita do último romance de Luandino e a história recente de seu
país são inegáveis. Visto isso, fazemos nossas as palavras de um outro escritor
angolano, João Melo, que declara, no ensaio intitulado “O destino de todos os rios é
o mar”: “(...) o lançamento deste romance constitui uma reflexão ampliada e uma
tentativa de reconstituição do mapa da identidade angolana, constitui também um
acontecimento político assinalável.” (MELO, 2006, p.1)
De maneira geral, podemos dizer que, em toda a sua obra, Luandino Vieira
articula diferentes formas de engajamento com questões relativas à sociedade
angolana, seja através da transgressão da linguagem do colonizador, seja por meio
da denúncia da pobreza e do racismo, seja pela clara reivindicação de uma Angola
livre e soberana. Assim sendo, as obras de Luandino recriam tensões sociais
51
provocadas pelo sistema colonial e, ficcionalmente, as transcriam no espaço de sua
escrita.
Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, o rio Kwanza é referido ao
longo de toda a narrativa, metaforizando a importância geográfica, histórica, social
desse curso aquático que nasce no centro de Angola e deságua no mar,
atravessando todo país. É no rio e nas matas que a personagem Kene Vua passa a
maior parte do tempo. “Tudo se maravilha nesse antigamente, mas tenho de sair
embora nesta água de meu rio. E ouço de novo aquele silêncio perigoso do barco de
borracha.”. (VIEIRA, 2006. p. 24-25) Neste romance, o verbo poético, como o rio,
tem muita força. E, pouco a pouco, depurando vagarosamente a palavra, a voz
enunciadora instiga o leitor a refletir sobre o passado, o presente e o futuro.
Subvertendo a escrita padrão, os parâmetros da língua portuguesa herdados
do colonizador, o discurso de Luandino desarticula perspectivas, utilizando uma
forma irreverente e inovadora que, dada a singularidade de recriar na narrativa a fala
popular dos musseques angolanos – fala esta que, marcada pelo encontro entre o
português e o quimbundo, faz lembrar as propostas de criação literária dos
modernistas
brasileiros,
cujos
textos
incorporaram
expressões
coloquiais
inovadoras. Entretanto, esse uso de termos populares nas obras do escritor
angolano não apresenta uma dicção folclorizada, pois a ficção do autor capta o
mundo dos musseques de Luanda, reinventando-o sem exotismo.
Podemos observar que os termos populares recriados pela escrita de
Luandino instauram um discurso de resistência cultural frente à opressão colonial.
Sua escrita se faz arma de denúncia, à semelhança daquilo que Edward Said
evidencia, no ensaio intitulado “O papel público de escritores e intelectuais”, ao
52
declarar que “(...) o papel (...) do escritor é desafiar o silêncio imposto e se levantar
contra os instrumentos de poder, a favor dos interesses coletivos”. (SAID. Apud:
MORAES, 2004, p.40). Este mesmo teórico observa, ainda, que uma das
características das narrativas que, como aquelas escritas por Luandino, questionam
o status quo social, é sua nítida preocupação com as identidades reconhecidas
como “marginais”. Diz Said:
Contra o abuso dos mecanismos de defesa de identidade que se tornaram
tão endêmicos ao pensamento nacionalista desde sua origem na educação
até sua expressão no discurso público, o intelectual oferece um relato
imparcial de como a identidade, a tradição e a nação são coisas
construídas, com muita freqüência na insidiosa forma de oposições binárias,
inevitavelmente expressas como atitudes hostis ao Outro. Certamente não
se pode negar que algumas identidades se encontram de fato ameaçadas
de destruição e de ataques, mas mesmo aí os reais perigos à identidade e
autodeterminação são utilizados cinicamente para justificar a injustificável
repressão política (SAID, 2004, p. 41-42).
Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, ao recriar a oralidade e
entrelaçá-la com a escrita, o narrador consegue relatar fatos ocorridos no período
colonial e nas trincheiras da guerrilha, ao mesmo tempo que vai focalizando os
costumes e as tradições daqueles que deram suas vidas pela libertação de Angola.
Ao fazer isso, discute questões históricas e identitárias do povo angolano.
Uma das principais características do narrador-protagonista do referido
romance, nomeadamente Kene Vua, é sua postura contestadora. Este se alimenta
dos recursos da oralidade e os reinventa na escrita, ampliando a capacidade de
refletir acerca da realidade complexa que focaliza.
A narração de Kene Vua rejeita a linearidade e rompe com concepções
convencionais de tempo e espaço. É um exercício narrativo singular, que prevê a
simultaneidade temporal provocada pelas recriações da memória, além do processo
53
de questionamento identitário que circula por toda a obra: tal forma de narrativa
exige uma participação efetiva do leitor interessado em penetrar num terreno
altamente metafórico que precisa ser desvendado:.
Gritei, berrei: “Porra!...” Parou, meia volta volver. “Porra!... Minha vida tem
de mudar!...” E ele, Henrique Dias, sempre comandante, sungou as velhas
calças do camuflado, ajeitou a tocareva no cinto sem deixar de andar para
mim: “Não tem de mudar, Kene Vua! Tem de melhorar...” – a gente falava
sempre a mesma coisa das coisas diferentes, não adiantava (VIEIRA, 2006,
pp.58 - 59).
Podemos comparar o “narrar” da escrita luandina aos fundamentos do texto
literário evocados por Roland Barthes, em O prazer do texto, quando o teórico
francês identifica que: “(...) o texto já não tem a frase por modelo; é amiúde um
potente jato de palavras, uma fita de infralíngua.” (BARTHES, 1977, p.13). Barthes
diz ainda que “(...) a desconstrução da língua é cortada pelo dizer político, bordejada
pela antiqüíssima cultura do significante” (Idem, ibidem).
O narrador-protagonista de O livro dos rios, Kene Vua, por meio de suas
memórias, percebe que a formação de sua identidade é um compósito de várias
culturas; negar essa diversidade poderia causar o aniquilamento de sua trajetória de
vida. Nesse sentido, O livro dos rios foge a qualquer tipo de normatização, revelando
que a alteridade subjetiva está menos pautada por uma “verdade” única e inabalável
do que pela pluralidade de versões e pelo constante pensar sobre elas. Ao longo da
narrativa de Kene Vua, podemos entender essa pluralidade como algo positivo. As
aventuras do narrador do referido romance demonstram que essa diversidade está
não só vinculada à formação da multifacetada identidade angolana, mas também
aos processos de inovação da linguagem utilizados pela voz enunciadora. De
acordo com Helena Riaúzova, em seu livro intitulado Dez anos de literatura
angolana, os
54
[...] neologismos, as rupturas na sintaxe convencional, a adoção de novas
gramáticas, as técnicas de montagem que exprimem diferentes concepções
de tempo e espaço, certamente, criam algumas dificuldades na apreensão
das mensagens que mobilizam o autor, daí a necessidade de um mergulho
profundo, que nos coloque num contato intenso com as águas desses rios
que continuam a correr no presente angolano (...). (RIAÚZOVA, 1986, p.59).
Partindo das palavras dessa estudiosa, inferimos que a complexidade de uma
narrativa como a que se apresenta em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos
rios implica o afastamento da matéria significante dos lugares-comuns e a busca de
zonas polissêmicas, nas quais cada palavra costuma abarcar uma gama de
significados muito maior do que sua projeção imediata propõe. Isso nos obriga,
muitas vezes, a dar o salto sobre o rio que liga as margens da ficção e da história.
O referido romance de Luandino Vieira esmera-se em deixar uma névoa
sobre a linha limítrofe que separa o fato narrado do dado vivido. A narrativa d'O livro
dos rios apresenta-nos, com muita propriedade, as imbricações dos universos social
e psicológico que inauguram um embate, forçando o sujeito-narrador a refletir acerca
de seus valores, erigidos ao longo da vida. Por outro lado, parece existir no texto do
escritor angolano um forte desejo de despertar uma consciência crítica, não só no
nível individual, mas também nacional, valorizando o lugar dos questionamentos e
das possibilidades e não o das certezas absolutas.
Kene Vua, ao relatar suas experiências e também a de outros homens que
conviveram com ele em sua trajetória, durante a guerra de libertação, vai tecendo as
malhas do texto com fragmentos que são marcados pela carga histórica de épocas e
acontecimentos diversos, os quais, muitas vezes, são anteriores à sua própria
história. O entrecruzamento de histórias provoca no leitor a ilusória sensação de que
os fatos relatados vêm à mente do narrador sem estabelecerem uma ponte com
suas angústias do tempo presente.
55
Diante de um texto de tamanha complexidade, cabe ao leitor coser as pontas
e criar possíveis interpretações sobre o emaranhado de memórias do guerrilheiro.
Assim, “[a] narrativa é desconstruída e a história permanece, no entanto, legível:
nunca as duas margens da fenda foram mais nítidas e mais tênues, nunca o prazer
foi melhor oferecido ao leitor”. (BARTHES, 1977, p. 15)
Os momentos lacunares que permeiam O livro dos rios são características
marcantes da narrativa de Kene Vua e aguçam a percepção do leitor que tenta
preencher esses vazios. Este se interessa mais pelo texto, ao observar a
fragmentação da escrita e procurar entender suas razões. Lembremos novamente
as palavras de Barthes, quando o mesmo afirma que “(...) o texto de fruição é
apenas o desenvolvimento lógico, orgânico, histórico, do texto de prazer, a
vanguarda não é mais do que a forma progressiva, emancipada da cultura do
passado (....) (Idem, p. 30)
O exercício intertextual é um dos processos que instiga a participação do
leitor. Seja ao eleger Langston Hughes como referência de abertura do livro,
apontando para uma atmosfera poética que compreende os espaços de uma
memória que precisa atravessar rios; seja ao evocar os “Provérbios” – o vigésimo
livro da bíblia cristã –, referência que, de certa forma, alegoriza as marcas da
herança cultural do colonizador; seja ao recorrer aos relatos sobre as virtuosidades
bélicas dos sobas locais, proferidos por um certo Elias Caturra ou recolhidos por Héli
Chatelain. O certo é que as articulações intertextuais apontam para o processo de
formação identitária múltipla de Angola. Os recortes que sustentam o intertexto
podem direcionar as linhas de leitura, mas dependem de uma interação entre os
universos culturais do autor e do leitor. Atentemos para as palavras de Antoine
56
Compagnon, retiradas do livro O trabalho da citação, quando o teórico se refere ao
exercício de citar:
(...) A citação é um elemento privilegiado da acomodação, pois ela é um
lugar de reconhecimento, uma marca de leitura. É sem dúvida a razão pela
qual nenhum texto, por mais subversivo que seja, renuncia a uma forma de
citação. A subversão desloca as competências, confunde sua tipologia, mas
não as suprime em princípio, o que significaria privar-se de toda leitura.
(...)
Dentre as numerosas definições em torno da citação, proporemos esta: a
citação é um lugar de acomodação previamente situado no texto. Ela o
integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das
competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida e não
compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. (COMPAGNON,
1996, p. 19-20.)
Reconhecer as pistas que vão sendo lançadas por Kene Vua é uma das
chaves para se adentrar o complexo desenrolar narrativo de O livro dos rios.
Retomemos, por exemplo, a referência a Langston Hughes, homenageado pela
instância autoral, na abertura da obra. Para o leitor menos próximo do universo
poético de Langston, os motivos do preito se devem à sua militância como um dos
ícones da resistência negra do Harlem, em 1912. Essa singularidade histórica talvez
fizesse jus à homenagem, mas não é suficiente. Como aponta a poetisa e
historiadora Ana Paula Tavares, no texto de apresentação de De rios velhos e
guerrilheiros – O livro dos rios, o romance de Luandino se constrói com base num
diálogo textual com um poema de Hughes. Ei-lo:
Conheci rios:
Conheci rios antigos como o mundo e
Mais velhos que o correr do sangue
Nas veias dos homens
A minha alma fez-se profunda como os rios
Banhei-me no Eufrates quando as auroras eram jovens
Construí minha cabana junto ao Congo
Que me cantou canções de embalar para que dormisse
Olhei o Nilo e por cima dele construí as pirâmides.
Ouvi o canto do Mississipi
Quando Abe Lincoln desceu a Nova Orleães
57
E vi o seu seio lamacento
Tornar-se ouro ao pôr-do-sol
Conheço rios
Antigos, sombrios rios.
Minha alma fez-se profunda como os rios.
(TAVARES, 2006, p.1)
A partir desse poema, poderemos ler, com olhos mais sagazes, as primeiras
palavras da narrativa de Luandino:
Conheci rios.
Primevos, primitivos rios, entes passados do mundo, lodosas
torrentes de
desumano
sangue
nas veias dos
homens.
Minha alma escorre funda como a água desses rios.
Só que, na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios
demais – vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas
vezes.
(VIEIRA, 2006, p. 15)
Com base na ponte erigida entre um e outro texto, percebemos que os
caminhos percorridos pelos rios e reconhecidos pelos homens contarão histórias
diversas, ao mesmo tempo em que os avessos da história poderão desviar os
cursos naturais dessas águas, que, no texto do escritor angolano, são agora “(...)
lodosas torrentes de/ desumano sangue/ nas veias dos homens.” Ainda refletindo
acerca da metáfora dessa ponte, não podemos nos furtar a citar as palavras de
Paula Tavares:
Entre poema e poema deslizam as palavras lentas como dongos em águas
mansas, para se precipitarem na voracidade da ciência dos rios: os de
fundação e outros de ocupação e conquista. E são os poetas, aedos, donos
do tempo, os que primeiro enunciam os mitos, lhes dão nome e se deixam
levar pelos rios da cabeceira à foz, do enunciado das margens às plantas
que neles filtram a luz. (TAVARES, 2006, p. 2)
Enxergamos, nessa reflexão de Paula Tavares, o sujeito narracional que se
apresenta como um homem dos rios, aquele homem que encontra nas águas fluviais
58
alguma relação de identidade. É como se os rios conseguissem simbolizar, ao
mesmo tempo, os antepassados, ou ainda, como se fossem uma forma de
demonstrar as razões do sangue por eles derramado durante as guerras.
Outra interessante característica da narrativa luandina diz respeito à
movimentação temporal. Como vimos, os acontecimentos não são narrados a partir
de uma linearidade cronológica, mas, sim, de uma ordem subjetiva, própria das
histórias amarradas ao vai-vém da memória. Nesse sentido, o reconhecimento das
citações que ecoam pelas águas da diegese também se revela bastante importante,
pois não só se evocam culturas distintas, mas ainda os tempos em que elas se
inserem no universo do narrador. Dessa forma, a dedicatória a Langston Hughes, a
evocação dos “Provérbios” e as contações de Elias Caturra assinalam diferentes
épocas que se vão amalgamando num texto que se constrói como um palimpsesto
de vários tempos. Cada referência reconhecida traz à tona um momento distinto da
ligação entre o sujeito e o mundo. Logo nas primeiras páginas da narração de Kene
Vua, somos apresentados à matéria que permite ao protagonista misturar vários
contextos por intermédio da citação:
Agora adormeci no chão de barro vazio, na sombra do ar sem árvores, um
ápice só, um desfazer de sono, aplacar do sangue – o que deu para sonhar
aquele sonho, minha ensonhação de terror e amor ainda hoje e sempre: que
lia um livro; que o livro era de vidro; que no vidro o sol se esmilhava todo,
pão velho parecia era, quicuanga seca, na cabeça entrancinhadíssima dela
(...) (VIEIRA, 2006, p. 28)
A voz que nos acompanha durante a leitura de O livro dos rios se comporta,
muitas vezes, como se fosse a de um leitor que comenta aquilo que lê. A peça
principal do sonho recorrente e emblemático do narrador é o livro. Este não será
identificado por nenhum título particular, pois surge como imagem metafórica de um
aglomerado de memórias e referências recortadas de experiências que ampliam e
59
singularizam o seu conhecimento de mundo. Novamente com Compagnon,
entendemos que escrever “(...) é sempre reescrever, [pois] não difere de citar. A
citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato
de leitura ao de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação.”
(COMPAGNON, 1996, p. 31)
A obra literária de Luandino Vieira valoriza marcas da cultura angolana,
conquistando um espaço de destaque dentro da produção literária em língua
portuguesa. Trazendo o quimbundo para dentro de um texto escrito em português, o
autor subverte estruturas de poder, pois faz, da língua local, instrumento de
denúncia, de luta e de defesa de um povo. Percebemos esse processo de
rearticulação linguística, quando, vez por outra, o narrador formula expressões,
recorrendo à adjetivação de substantivos e verbos; ao uso transgressor da
concordância de algumas palavras; às construções invertidas; à ausência de artigos,
de preposição ou da conjunção “que” em estruturas frasais; à substantivação de
advérbios, ou de adjetivos ou de pronomes. Vejamos alguns exemplos: “Eu sabia o
azul por dentro daquela escuridão” (VIEIRA, 2006, p. 23); “o que a gente sabíamos”
(Idem, p. 25); “Ilha só de areia era lá no meio” (Idem, p. 26); “O palpebrar dos
pássaros” (Idem, p. 28); “A quem era guarda nossa dos espíritos” (Idem, p. 36);
“quando vou ter que entrar a mata” (Idem, p.37) etc. Dessa forma, a narrativa
luandina se caracteriza por transgredir a norma culta e subverter os códigos de
escrita pré-estabelecidos pelos colonizadores.
Lemos claramente em O livro dos rios que o processo de valorização da
cultura endógena não pode anular as diversas referências e heranças culturais
adquiridas ao longo do tempo, estejam elas vinculadas ao antigo colonizador ou não.
60
Daí a impossibilidade de se escrever um texto “puro”, desvencilhado das imagens de
outros textos. Sabemos que heranças múltiplas se atravessam e se entrecruzam o
tempo todo.
Colocando em diálogo o português e o quimbundo, Luandino nos convida
para um jogo interessante com sua linguagem. Nós, leitores, só poderemos
interpretar as metáforas da escrita de O livro dos rios, se aceitarmos decifrar esse
quebra-cabeça, concebido a partir de histórias e memórias fragmentadas do
protagonista. Para compreendermos as artimanhas do narrar, temos de deslindar o
emaranhado de histórias inseridas no referido romance. É necessário compreender
que existe uma busca da multifacetada identidade nacional angolana na arquitetura
textual. Durante o desenrolar narrativo, observamos o uso de elementos que
ressaltam os sentidos do material linguístico empregado na construção da obra. A
linguagem literária, recorrendo ao quimbundo recriado em combinações inusitadas,
serve aos propósitos do escritor de “re-visitar” as “coisas” de seu país. Segundo
Maria Nazareth Soares Fonseca, discorrendo sobre a escrita de Luandino Vieira, no
ensaio intitulado “Bordas, margens e fronteiras: sobre a relação entre Literatura e
História”, a oralidade, reinventada pelo escritor angolano, “(...) invade a língua
portuguesa, dá um pouco de tom à narrativa”. (FONSECA, 1997, p. 95).
Percebemos que o uso criativo desse fazer linguístico, expresso por uma pluralidade
de vozes e gestos, dá ensejo à diversidade temática de seus romances. Questões
referentes à discriminação racial, à repressão política, à dura realidade dos
assimilados e à pobreza do povo angolano nos musseques representam, na obra de
Luandino, vozes denunciadoras que não se querem calar. Em O livro dos rios, é por
intermédio da discussão travada entre Kene Vua, Kapapa e Diamantininho com seus
interlocutores – além de outras vozes anunciadas por essas três personagens
61
mencionadas –, que o leitor poderá ir percebendo os dramas vividos pelos
colonizados. É pela metáfora dos rios que são problematizados os multifacetados
caminhos da história angolana. São três os fios que constituem a personagem
principal, três os fios de água que se entrecruzam em seu discurso e em suas
lembranças.
Desde
os
primeiros
momentos
da
narrativa
romanesca,
somos
apresentados a uma imagem fragmentada, melhor seria dizer pluralizada, do sujeito
narrador. Poderíamos inferir que a frase – “Três coisas maravilham na minha vida, a
quarta não lhe conheço (...)” (VIEIRA, 2006, p.23) – alude, recorrentemente, à
pluralidade subjetiva, tornando-se marca indelével da personagem. Ao reconhecerse ora como Kene Vua, ora como Kapapa, ora como Diamantininho, o narrador
assume a crise de identidade que se instaura em seu discurso, cuja perspectiva
adotada é a das vozes em diferença:
(...) Kene Vua, eu pensei, não há azar, vai rondar para norte, para terra,
posso correr com ele e a praia à vista, entrar a barra, dar encontro o que eu
quero pescar em vida minha, despedida do mar: dicunji, o peixe-mulher. No
arranque do vento, meu coração se encheu de ar bazófio: eu era o Kapapa,
o que sabia muito bem o não era peixe-agulha (Idem, pp.102-103).
Os meandros da linguagem singular observada n'O livro dos rios refletem o
traçado esgarçado da narrativa que funciona como espelho do processo de
fragmentação do sujeito. Dentro da mesma personagem, Kene Vua, deparamo-nos
com mais duas personas, nomeadamente Kapapa e Diamantininho. Essas diferentes
faces do sujeito estão, a todo momento, apontando para as tensões entre vários
registros culturais herdados pelo narrador. Um exemplo de tais tensões se encontra
em passagens do romance, nas quais o quimbundo e o português se mesclam em
originais combinações:
62
(...) meu avô, o sempre em pé Kinhoka Nzaji, se vivo fora por aqueles
entorces, iria gritar: “Dixibe, Kangundu! O ngiji iami, muene o Kalunga
Kitubia!...” – e aquele sacrilégio nunca ia poder sentir sua cabeça rolando
pela ravina para o regaço de nossa mãe Kwanza.... (Idem, p.68).
Fazemos nossas as palavras de Salvato Trigo, quando o mesmo diagnostica
o tom desafiante da narrativa luandina, no que se refere ao choque erigido entre
diferentes paradigmas linguísticos. No ensaio intitulado “O texto de Luandino Vieira”,
afirma o estudioso:
A língua, todos o sabemos, é uma das principais componentes da
identidade de um povo. Atacá-la, transgredi-la, na sua norma lingüística ou
social, corresponderá, portanto, a abalar as estruturas da identidade do
povo que a usa e, por extensão, o sistema de valores em que essa
identidade está alicerçada. É este, em suma, o objetivo profundo de
Luandino, ao desrespeitar a vernaculidade do idioma de Camões (TRIGO,
1980, p.240).
É em decorrência desse choque de expectativas, causador de sua identidade
fragmentada, que Kene Vua vai mergulhar em amargas reflexões e aflitivas
memórias, após a morte de Amba-Tuloza, o ex-guerrilheiro que foi condenado e
sacrificado. Descobrir-se dividido provoca uma série de questionamentos interiores,
ilustrados por passagens como a que se segue:
Ecos do silêncio de meu avô e ainda o choraminjar do prisioneiro, o
Batuloza, guerrilheiro ex-nosso, condenado e amarrado. E eu sou o pastor
daquele cabrito de quissanguela. Mas eu queria ainda ouvir o rouco que a
diamba deixava na mutopa daquele mais-velho, na língua seca e na água
das suas palavras, no jango: “Sai-ku ima itatu ia ngidiuanesa...” – essas
coisas: o caminho da água no céu; da cobra, na rocha; o caminho do barco
no mar. Mas sempre não dou encontro com a última, a quarta: o caminho do
homem na morte. Porque antes que o sol ia nascer, acordar o dia, eu tenho
que cumprir, tenho de ir lhe pendurar para lá da mata do Kialelu, tenho de
lhe enforcar no primeiro mutete que der encontro, meu dever, era a lei...
(VIEIRA, 2006, p.38)
A voz denunciante de sua consciência ecoa em diversos momentos. O
tempo presente põe em questão não só a identidade de Kene Vua, mas também a
identidade da nação. As certezas se esvaem, quando a tragédia se anuncia:
Não fiquei, não sou rapaz, sou o senhor Kapapa, jurei! – e fiz-lhe um
manguito, mandei-lhe na puta que o pariu na terra dele, perdi-lhe na solidão
63
das lágrimas para sempre.
Até ali, quando vou ter que entrar a mata do Kialelu para enforcar um
homem (Idem, p. 37)
Indagações sobre suas atitudes mais graves sobrevêm repetidas vezes à
mente do guerrilheiro-protagonista, imerso em inúmeras lembranças e angústias:
O Amba-Tuloza, ainda. Se fosse hoje ia lhe chamar de mukueto, meu irmão.
E não ia lhe matar calado, ele não tinha nada que ter medo de morrer.
Quem sabe não vou lhe desamarrar no pau da muanza, partia uma metade
de cigarro com ele, mostraria: veja aquela árvore! – e o nosso jirassonde,
irmã de sangue vermelho, não ia ficar castigado de pau-de-forca só... (Idem,
p.64).
Retomando a questão da recriação da oralidade dentro do corpo diegético de
O livro dos rios, percebemos que, por meio do emprego desse registro linguístico
reinventado, emerge uma proposta de trazer à tona alguns aspectos do imaginário
angolano, de suas tradições.
Isto é: conheci rios – me banhei até no Alukaze, rio da morte ao meio-dia,
um que secou depois da independência, até hoje cientista procura entre
matas e muxitos, e nada. E o Luandu, o todo-poderoso Luandu, esse
grande rio Luandu, o que é tigre de nosso Eufrates Kwanza, espião vigilador
da sua margem direita, nunca lhe vi em vida minha, desconsegui de chegar
lá e pedi Kibiaka, em nossa gesta e questa – muene uendelu a ngenji,
muene mutangedi a malôndo... (Idem, pp.20-21).
O edifício textual erigido em O livro dos rios adquire, portanto, um status de
ficcionalizada realidade. A língua responsável pela construção da narrativa flui tão
naturalmente, que parece brotar de cenas do vivido, muito embora se insinue
poeticamente. Trata-se de um claro exercício narrativo que pretende subverter os
limites entre ficção e história. É a linguagem oral reinventada, a serviço da
contestação, da denúncia, da busca de identidades silenciadas pela colonização e
pela guerra. O texto é construído sob os parâmetros da oralidade recriada, tão bem
ilustrados na pluralidade de vozes que ligam, num mesmo indivíduo, as vivências de
64
Kene Vua, Kapapa e Diamantininho. Além de marcas do discurso oraturizado nas
“falas” das personagens principais de O livro dos rios, percebemos, ao longo do
texto, passagens alusivas aos ditos populares locais e que demonstram também
uma ressignificação da oralidade: “o njila ia holokoko bu diulu, o njila ia ulungu
um’axaxi ka kizanga kia kalunga, o kia katatu ki nga ku ijia: o caminho do homem na
morte”.(Idem, p.66).
Parece claro que o autor busca, por meio de suas personagens, encontrar um
sentido, um lugar de afirmação, por meio do qual possa se indagar acerca de sua
subjetividade essencialmente fluida e plural. O sujeito ficcionado, ou melhor, o
protagonista-narrador, encontra-se repartido por entre suas lembranças e suas
ideologias.
Acompanhando o exercício de reconfiguração e valorização dos paradigmas
da oralidade, constatamos que o texto de Luandino mergulha, também, no processo
de redescoberta da ancestralidade. Articulando a presente narrativa como um
conglomerado de tempos e costumes, o autor evidencia a existência de várias
versões possíveis para a sustentação histórica de seu povo. A diversidade ganha
espaço no bojo de O livro dos rios, em razão do esmero autoral em apresentar as
várias faces do mosaico que constitui a narrativa, concedendo a esta um efeito
vertiginoso.
A diversidade cultural e a identidade plural da nação angolana ecoam nas
vozes de cada uma das personagens desse complexo romance, ressoando tal qual
“as águas de um rio”. Esse encontro de águas fluviais, sempre renovadas, evoca um
discurso marcado pela multiplicidade que quer dar conta de uma identidade ora
fragmentada, ora multifacetada, mas, sobretudo, diversa.
65
A voz enunciadora deixa nítida a metáfora da grande encruzilhada existencial
vivida por Kene Vua – da qual já tratou a professora Laura Padilha em uma resenha
sobre esse romance, publicada na Revista Metamorfoses 8 (cf. nossas Referências
Bibliográficas) – , evocando o papel dos guerrilheiros que com ele se relacionaram
ao longo da história. Kene Vua participou das lutas de libertação, o que denota a
importância de analisarmos, ainda que brevemente, sua relação com as
personagens Ndiki Ndia, Kadisu e Kibiaka.
Kene Vua é o retrato de um homem repartido, quiçá tripartido, em meio a
“verdades” deslizantes; um homem que se encontra na encruzilhada de, pelo
menos, dois mundos figurativamente inimigos. Se, de um lado, prevalece a imagem
de Kinhoka Nzaji, de outro, sobrevém a instigante figura do capitão Gravinho, o Lopo
de Caminha. As relações existentes entre o capitão de mar e terra e Kapapa são-nos
apresentadas logo ao princípio do romance, em meio ao processo de reconfiguração
da memória impetrado por Kene Vua:
“Calma e pontaria baixa, rapaz!...” – era a voz da alma naufragada, capitão
Lopo Gavinho me ensinando artes e palamentas da vida. – “Para cobra, um
dia são seis meses...” Que era preciso era mudar a pele, muita mais
paciência. Sair de dentro da pele e olhar o alvo, só. Sem pressa; respirar
para fora tudo o que a gente sabíamos, se esvaziar (VIEIRA, 2006, p.25).
Ndiki Ndia, “(...) nosso comandante na vida e no sonho” (Idem, p. 29), revelase
um
combatente
altamente
respeitado
por
Kene
Vua,
exercendo,
consequentemente, um importante papel no processo de reconstrução identitária
executado pelo protagonista. Dentre várias atitudes suas, destacamos a resistência
do referido comandante em autorizar o afastamento de Kene Vua da guerrilha,
quando o neto de Kinhoka Nzaji redescobre-se Kapapa. Num diálogo inundado de
imagens simbólicas, o comandante e seu soldado discutem a mudança do nome e a
assunção futura de uma identidade renovada:
66
(...) Fizemos nossa reunião sem acta, sem assembléia, só de palavra e
disciplina, hierarquia: primeiro ele; eu depois; ele, na conclusão.
Então:
Ele: – Kene Vua! você camarada, está longe, longínquo desse mar,
estás fora, como queres voltar no nome?...
(e que isso não tinha problema, não era mais caso de demanda, inquérito
ou comissão para ouvir de relator, não tinha azar, o mar do Mussulo seria
sempre dentro de mim, portanto que, concluindo: kene divuua, não havia
azar, meu nome era de ficar)
Eu: – Camarada Comandante, licença?! É por isso mesmo, Kapapa
eu sou, desde essa areia do mar... Kapapa eu quero ser, revoltar...
(mostrei meus pés, largos, estreitos, chatos, de ângulos agudos muito
fechados, as puras asas da raia voadora e meu avô Kinhoka Nzaji, o que
brilhou seus relâmpagos de quinjango nas cabeças das colunas de
pacificação se ria os dentes inteiros dele, seus únicos octogenários – ele
despejou a água da cabaça-múcua do fundo da canoa em minha
carapinhas salariadas, me bombeou, disse: “Kapapinha, meu neto!”, gabava
a primeira raia que eu atravessava com ela, em meu arpão de prego-ebordão desde sempre)
Ele: – Kene Vua, Kalunga também é mar, por exemplo...
(só que eu fituquei: certo, correcto, dacordo, narmal: Kalunga eu até seria
se; cadavez, um dia outro, outra vida; mas meu mar ainda estava morar é
dentro de mim, marulho secreto; mesmo que em verde mata sofro de marévazia de saudade, ainda tenho meus ocos, buracos e pedras – são sombras
vivas de mais; para Kalunga precisava ainda, para lhe merecer, encher
esses ecos de muitas mortes e muitas noites, muita luta, mais mar, tudo o
que esse nome esconde e homem vivo só encontra no pambo final da sua
estrada: “...a quarta não a conheço: o caminho do homem na morte...”)
Eu: – Então, eu espero. Para cobra, um dia são seus seis meses de
mudar a pele... (Idem, pp. 123 - 124)
Entre permanecer “sem azar” e “voltar a ser mar”, o protagonista d’O livro dos
rios demonstra estar convencido de que o percurso a ser traçado, visando à
renovação da sua identidade, está imerso em águas salgadas. Não aquelas que se
perdem no horizonte, tornando-se o último abrigo dos mortos – Kalunga –, mas
aquelas que roçam a margem, que se misturam à areia, reaprendendo, a cada dia, o
seu sabor.
Ao reinventar-se, enquanto Kapapa, a voz narrante do romance de Luandino
defende a aceitação da pluralidade. A imagem de Ndiki Ndia é tão cara à articulação
67
do novo sujeito, quanto o retrato mais remoto de um Lopo Gravinho, por exemplo.
Assumindo-se como um fruto fertilizado por histórias e memórias próprias e alheias,
Kene Vua admite o avô negro, o comandante mestiço – “aquele calado cafuso”
(Idem, p. 38) – e o capitão branco, todos como peças indispensáveis ao puzzle das
suas “verdades” subjetivas.
Durante
o
percurso
de
autorreconhecimento,
vários
guerrilheiros,
companheiros de Kene Vua, deixam de ser tão somente homens de trincheiras, para
serem vistos como representantes de mundos diversos, nos quais se pode constatar
a existência de uma cultura particular e a presença de uma história e de uma
sociedade, que, nesse momento, passam a repercutir na trajetória de vida de
Kapapa.
Dessa forma, a reconstrução da imagem de Ndiki Ndia ou, até mesmo, de
Amba-Tuloza, por exemplo, acaba por traduzir uma prerrogativa autoral, preocupada
em fazer-nos reconhecer a existência de uma memória que está para além do
indivíduo, aquela que, ao longo dos anos, vai sendo vinculada ao registro coletivo.
Kapapa, como sabemos, experimenta uma confluência de lembranças, as quais,
mediadas por sua memória individual, se tornam responsáveis por determinada
abrangência da memória coletiva.
A memória consciente, de acordo com Bergson, “(...) retém e alinha uns após
outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato
seu lugar e consequentemente marcando-lhe a data, movendo-se efetivamente no
passado definitivo” (BERGSON, 1999, p.177). Retomando a leitura do capitão do
mar, Lopo Gravinho de Caminha, percebemos que essa personagem é um dos
ícones vinculados a lembranças imbuídas dos princípios de uma identidade coletiva
68
do passado; cabe a Kapapa as funções de rever e julgar, no presente da sua
consciência, a figura do velho português, como forma de reavaliar o sentido de sua
vida atual, visando a responder, pouco a pouco, os seus questionamentos. Ao
relembrar as memórias de Gavinho, Kapapa está, em parte, reinterpretando o
discurso histórico da nação angolana.
Ao longo da leitura de O livro dos rios, deparamo-nos com a emergência de
“verdades” múltiplas, dinâmicas e confluentes – quiçá, afluentes, como sugere a
metáfora dos rios. Dentre tantas que mereceriam destaque, observamos nas vozes
do guerrilheiro Ndiki Ndia e do capitão Gavinho, revividas na memória de Kapapa,
ideias que só poderiam resultar numa estrutura complexa e plural, como a da
consciência do protagonista-narrador. Ao problematizarmos a importância das
imagens / presenças de homens como o Comandante Andiki ou o capitão Gavinho,
somos levados a perceber um percurso diegético que se esmera em revisitar as
fontes esquecidas, os “buracos negros” ou, de maneira mais profunda, a “(...) força
de uma matéria extensa, não detectável ainda ao conhecimento científico” (VIEIRA,
2006, p. 32).
Na medida em que Kapapa vasculha suas lembranças mais remotas e
identifica a influência de Gavinho no que ele é hoje, ou seja, na fomentação do "Eu,
Kapapa", passa a questionar sua condição de guerrilheiro e, principalmente, sua
postura perante Amba-Tuloza. Sempre a bordo do Ndalagando, as impressões que o
capitão português causara no menino Diamantininho, confundindo-lhe as emoções
ao realçar suas histórias de rio e de mar, contribuíram para sua interpretação do rio
Kwanza, com percursos misteriosos e grande relevância como símbolo da
identidade nacional angolana.
69
Por outro lado, é através da configuração de indivíduos como Ndiki Ndia,
Kadisu e Kibiaka, companheiros de guerrilha do protagonista, que passamos a
refletir sobre as individualidades que subsistem por detrás do ideal comum, os
diferentes comportamentos que têm de conviver no espaço das trincheiras. Não
devemos nos esquecer, por exemplo, das diversas trajetórias das pessoas simples
dos musseques que assumiram posições e tomaram rumos diferentes na guerra de
libertação.
Podemos exemplificar isso, ao observarmos episódios em que o protagonistanarrador revê as imagens de algumas personagens, sobretudo guerrilheiras,
ressignificando-as sob as malhas de seu próprio discurso, de modo a estabelecer
um amplo mosaico de sentidos referentes ao papel desempenhado por tais
indivíduos nas recordações e lembranças de Kene Vua:
“De acordo com a disciplina da guerrilha...” quem que adiantou estas
palavras, ousou, gaguejava o pigarro da tosse crônica das matas naquele
princípio de noite, fim de primeira missão minha? Nosso comandante Ndiki
Ndia, aquele calado cafuso, o que tinha tabucado rios e vaus e
massanganos, desde lá da zona B, até ali, para zorro-justiceiro? Ou era, foi,
monitor político Celestinho Mbaxi, o que em traidição nossa era o nosso
querido camarada Kakinda Bastião? Seguro que a voz não era da
camarada Jia-da-Oma, falecida já, isso sei. Dos outros, gente muito calada,
cada qual com cada seu silêncio esperando voto de mão no ar, sentença do
coração. Só vejo sempre os banzados olhos do sapador Amba-Tuloza, nem
com aquela luz sangue dele dava encontro caminho da morte, almazita
muito duvidosa. Que olhava e não via para dentro dele, pedia ajuda dos
olhos dos outros, colegos ainda antes. Olhos, xicululos. Quietos, sem tom
nem som, os do Makongo, dito o Mau-dos-Maus, pambala, um menino
pioneiro de maldades; luz de brasa debaixo da cinza, a caradura do KizuuaKiezabu; Kibiaka, o parabelo, pássaro traquino; o Farrapado e o camarada
Kadisu como que falavam calados lá na vida deles, sentados junto (...).
(Idem, pp. 38 - 39).
A partir da maneira pela qual o narrador descreve os guerrilheiros e as
relações existentes no grupo de Kene Vua, pensamos que seria possível enxergálos, também, como metáfora de guerrilheiros reais, homens que estiveram nas
frentes de batalha da luta colonial. Há várias pistas, associadas aos significantes
70
textuais, que, se analisadas criteriosamente, nos permitirão reconhecer os grandes
conflitos sociais subjacentes às ações dessas personagens. A citação seguinte se
refere a alguns representantes do grupo de guerrilheiros, circunscritos a um espaçotempo marcado por extrema tensão:
(...) Eu ou ele, as palavras não podiam mentir quando todos ali no maqui,
guerrilheiros e partisanos, povo em geral, membros do comando da zona,
responsáveis e comitês, íamos votar a justiça: enforcar o ladrão do povo (...)
(Idem, p.39).
“Comandante da merda...” – Kibiaka, relâmpago de catana clara, saltou, eu
estranhei, ele nunca usava arma calada, nosso comandante camarada em
sua rouca voz lhe travou é logo-logo, mão firme da leitura da sentença: “...
nos superiores interesses da luta do nosso povo...” – continuava impávido e
no Batuloza deu de se estorcer todo pelo chão, parecia aquelas palavras
eram a gasolina dum fogo que ele ia lhe arder com ele por ali. (...) (Idem,
p.40).
Configurando-se como um dos pontos centrais da narrativa, num processo
que faz do ato de escrever uma “escrita da memória”, o exercício de reconstrução
identitária impetrado por Kene Vua irá funcionar como elemento fundamental de sua
reavaliação crítica de situações do outrora, quando conviveu, de perto, com as
personagens guerrilheiras referidas neste capítulo.
3.3. A figura do velho Kinhoka Nzaji: ecos da oratura e da ancestralidade
Neste subcapítulo, direcionaremos nossa análise à interpretação das
articulações narrativas do romance De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, a
partir da investigação das singularidades culturais e discursivas de uma personagem
em especial, o “mais velho” Kinhoka Nzaji, avô da personagem-protagonista, Kene
Vua. É nosso objetivo refletir sobre a importância da referida personagem enquanto
representação das matrizes ancestrais endógenas e ponte para a instauração
71
daquilo que entendemos por “oratura”, isto é, o registro da oralidade recriada pelo
texto literário. Enquanto figuração de um passado eivado de informações preciosas
para o repensar da caracterização identitária do guerrilheiro, o avô é a figura
responsável por passar a Kene Vua memórias não vivenciadas pelo neto, mas que,
ainda assim, faziam parte de sua história. Para melhor compreendermos o papel das
lembranças na relação entre essas personagens, nos parágrafos a seguir,
discutiremos alguns conceitos sobre memória.
De acordo com Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembranças de velhos,
podemos observar que a
(...) memória atual da pessoa idosa pode ser desenhada sob um pano de
fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo
adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições
de um presente que a solicita muito mais intensamente do que uma pessoa
de idade (BOSI, 2004, p.60).
Já, segundo Maurice Halbwachs, na obra intitulada A memória coletiva, “(...) a
memória pode possibilitar criar representações do passado assentadas na
percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela
internalização de representações.” (HALBWACHS, 1990, p.76). Ainda de acordo
com este mesmo autor,
(...) não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou
representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou
seja, todo este processo de construção da memória passa por um
referencial que é o sujeito (Idem, p.78).
A memória apoia-se sobre o “passado vivido”, permitindo a constituição de
uma narrativa capaz de reconstituir o passado do sujeito de modo bastante vivo e
natural.
72
Deste
modo,
entendemos
como
memória
a
possibilidade
de
se
internalizarem reminiscências, ainda que alheias, por meio das quais os sujeitos que
lembram entram em contato com o passado, transformando-o. É importante
observar que, ao mesmo tempo, esta transformação do passado também ajuda a
reformular o presente, colocando em xeque as noções de inteireza e identidade da
memória. Passado e presente, certamente, configuram-se como duas realidades
distintas, mas não podem ser analisados como duas realidades estanques e
impenetráveis, independentes uma da outra, pois se complementam. Para Myrian
Sepúlveda dos Santos, em sua obra intitulada Teoria da memória, teoria da
modernidade,
(...) os fatos não se transformam apenas no decorrer do tempo, mas a cada
vez que são reinterpretados no presente, [assim,] é possível dizer que essas
categorias temporais são duas instâncias mutuamente engendradas. A
memória construída na pluralidade dos sentidos do tempo é, portanto, uma
reflexão ambivalente (SANTOS, 2000, p. 95).
Segundo Ecléa Bosi,
(...) outra seria a situação do velho, do homem que já viveu sua vida. Ao
lembrar do passado ele não está descansando, por um instante das lides
cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele
está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da
substancia mesma da sua vida (BOSI, 2004, p. 60).
A velhice ocupa, nas sociedades tradicionais, um lugar bastante especial na
relação que subjaz à troca de experiências, sendo prestigiada pela sabedoria que
caracteriza os anciãos. Em geral, nas comunidades antigas, o velho é aquele que
guarda em sua memória as tradições e os conselhos necessários para que o
passado sempre permaneça vivo no presente, interligando o ontem e o hoje:
O velho, de um lado, busca a confirmação do que passou com seus
coetâneos, em testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta
esse tesouro de que é guardião. Do outro lado, recupera o tempo que
73
correu e aquelas coisas que quando perdemos nos sentimos diminuir e
morrer (Idem, p.83).
Os ancestrais, para diversas culturas africanas, correspondem aos espíritos
dos antepassados mortos de uma estrutura familiar. Estes seres “extraordinários”
representam os costumes, os valores e as tradições do grupo, resguardados pela
palavra, cuja sacralidade era reconhecida.
Investigando relações existentes em várias comunidades angolanas,
inferimos que o velho, em geral, se fazia presente na vida social como uma espécie
de sustentáculo da cultura, atuando como ícone mediador entre o outrora e o
presente, por intermédio, entre outras coisas, da contação de suas estórias. O “mais
velho” esmerava-se em veicular as crenças, as tradições, repassar informações
sobre as genealogias e os acontecimentos mais antigos ocorridos na sua
comunidade, transmitindo os ensinamentos de geração a geração. Geralmente, era
em volta de uma fogueira ou de uma árvore que o grupo de anciãos se reunia para
aconselhar os mais jovens; da sabedoria dos mais velhos dependia o destino do
grupo. Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, Kene Vua, ao encarar de
perto a morte, identificou a importância das palavras do avô sobre o rumo de sua
vida:
(...) Parado entre as colunas d'água, resplandecia; cresceu; subiu, adejou,
saiu a voar, sombra negra na minha pequeníssima vida, larga máscara de
terror do mar arrancada nas areias dos fundos esvoinhando o terrível uivo
do longo chicote a desfazer em aparas e farpas proa de meu dongo e meu
berro de terror: era a jamanta-negra e voava, eu ia morrer.
Voo da jamanta-negra no ar da chuva... – meu avô me ensina uma sentença
da minha vida. Meu pai nunca que quis me dizer a verdade que agora
estava em meu céu, meu mar, me maravilha na minha estória (VIEIRA,
2006, p.109).
As informações sonegadas pelo pai foram depositadas na mente de Kene Vua
por meio da “fala” proverbial do avô. Aquelas mensagens que pareciam
74
inexplicáveis, para o alcance da subjetividade de um menino, começam a fazer
sentido, justamente no momento em que deixam de estar circunscritas ao plano
verbal e se tranformam numa realidade que se agiganta diante dos olhos do
guerrilheiro. Mais do que contar estórias que parecem se eternizar no plano da
imaginação, os “mais velhos”, tal como Kinhoka Nzaji, compartilham experiências de
vida, “recuperam” fatos acontecidos no outrora, revestindo-os de imagens
simbólicas, a fim de preparar os “mais novos” para a realidade futura.
Raul Altuna, em sua obra intitulada Cultura tradicional banto, enfatiza a
importância que os velhos tinham na ancestralidade: “(...) os velhos falam, os jovens
escutam e os homens maduros consultam-nos. As suas decisões são definitivas. Só
eles acumularam a plenitude da sabedoria” (ALTUNA, 1985, p.171). Os anciãos
tinham um papel fundamental dentro do grupo, pois, além de serem os guardiões
das tradições, eles conduziam as cerimônias de iniciação, por meio das quais os
mais jovens ingressavam no mundo adulto.
Nas sociedades ágrafas, a história era guardada pelos homens-memória,
que eram os guardiões legais dos povos; esses homens possuíam técnicas
especiais para memorizar e relembrar, técnicas muitas vezes articuladas através do
canto. Em ensaio intitulado “Memória”, Jacques Le Goff afirma que, no Ocidente,
"(...) a Idade Média venerava os velhos, sobretudo porque via neles homensmemória, prestigiosos e úteis" (LE GOFF, 1990, p.28). Eram os velhos que, nos
assuntos polêmicos do cotidiano, carregavam a responsabilidade da decisão,
procurando sempre manter a união do grupo. Por isso, de acordo com Altuna, eles
eram considerados verdadeiras “bibliotecas vivas, desempenha[va]m uma missão
cultural insubstituível que não pod[ia]m atraiçoar com medo das represálias dos
antepassados. Por isso, guarda[va]m fidelidade total à tradição e não tolera[va]m
75
nem desvios nem inovações” (ALTUNA, 1985, p.171).
Nessas culturas, o ancião tinha um lugar de destaque, pois a velhice
representava uma fase privilegiada do ciclo vital. Nessa fase, o indivíduo nascia,
crescia, tornava-se adulto, envelhecia e, ao morrer, retornava à vida invisível dos
espíritos, ou seja, dos ancestrais. Os anciãos, por serem os mais velhos, além de
carregarem toda experiência acumulada ao longo dos anos, encontravam-se,
naturalmente, mais próximos da morte e, dessa forma, eram os mais bem
preparados para receberem a visita dos antepassados que com eles se
comunicavam.
Nas sociedades de tradições assentadas na oralidade, os idosos eram a base
do grupo; sem eles, o grupo se desestruturava. Apesar da idade avançada, o ancião
não descansava; mesmo que seu corpo já estivesse frágil, seu espírito intensificavase, porque essa era a idade da sabedoria, da transmissão dos valores culturais.
Segundo Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, em ensaio publicado no livro A magia
das letras africanas, “(...) as estórias orais se faziam instrumento dos mais velhos
que passavam ensinamentos e conselhos aos mais jovens, fundando, dessa
maneira, a ‘cadeia da tradição’, imprescindível ao desenvolvimento das sociedades”
(SECCO, 2003, p.10). Nos rituais de iniciação dos neófitos, os anciãos, detentores
dos saberes, transmitiam oralmente suas experiências práticas às novas gerações.
Nessa tradição, acreditava-se que o ancião era, também, o elo entre os vivos e os
mortos.
Nesse sentido, a ancestralidade assume vital importância nas narrativas de
Luandino Vieira, em particular n` O livro dos rios, obra em que uma das principais
propostas é fazer com que a história se revele por meio de seus pormenores mais
76
íntimos. Dentro deste compósito, deparamo-nos não só com as versões históricas
encontradas nos registros oficiais, mas, sobretudo, com a história tecida pelos
relatos dos ancestrais. Atendendo ao chamado das vozes que beiravam as margens
dos rios, percebemos que o texto de Luandino se esmera no exercício de recriação
do imaginário dos ancestrais, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças
religiosas e nos testemunhos orais. Assim, Kapapa encontrava, nas palavras do seu
avô Kinhoka Nzaji, parte das tradições do seu país, buscando, no passado, fatos que
pudessem servir como base no processo de redescoberta de sua
complexa
identidade.
De acordo com Anthony Giddens apud Stuart Hall, em Identidade cultural na
pós-modernidade, "(...) a tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço,
inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado,
presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais
recorrentes" (GIDDENS. Apud HALL, 2003, p.14). Dentro dessa relação temporal, o
passado representado por Kinhoka Nzaji e o presente de Kene Vua agem
interligados, levando o guerrilheiro a ingressar num universo de lembranças,
associado ao processo de valorização das tradições, que, por sua vez, oferecem a
Kapapa os referenciais necessários para uma afirmação identitária.
A tradição se faz presente, na narrativa de Luandino, ao longo dos diversos
episódios em que o narrador-protagonista viaja através de suas próprias lembranças
ou das que herdou das memórias de outrem, trazendo à tona o passado como uma
forma de refletir sobre o presente. Segundo Alexsandra Machado da Silva dos
Santos, no ensaio intitulado Mia Couto e a memória ancestral: “uma força invisível”,
sob
77
(...) a memória individual incide a memória coletiva e sob esta a memória
ancestral. Portanto, a identificação do que seja a memória e da sua
importância na construção de identidades instiga a reflexão plural. A
tradição não é uma categoria passiva, mas uma forma ativa de construção
social e nacional (SANTOS, 2008, p.16).
Durante o desenrolar narrativo de O livro dos rios, a ligação entre Kapapa e
seu avô é destacada, pois as memórias de Kinhoka Nzaji revelam-se, pouco a
pouco, como o espaço simbólico em que estão depositados os ensinamentos e os
conselhos necessários para que o futuro resplandeça como um tempo de esperança
e, ainda, para que o presente tenha algum sentido de “ser”. Kene Vua, ao
reatualizar, através das lembranças, o encontro entre Kapapa e Kinhoka Nzaji,
recebe do passado conhecimentos necessários para se redescobrir no presente.
Para Myrian Sepúlveda dos Santos, "(...) o passado constrói o presente. O
presente modifica o passado" (SANTOS, 2000, p. 85). A autora argumenta, também,
que "(...) a memória agrega tanto traços da continuidade do passado quanto traços
da reflexividade do tempo presente" (Idem, ibidem.). O momento de redescoberta de
identidade pelo qual passa Kene Vua, assumindo-se Kapapa antes de qualquer
outro epíteto – “Revivo então, vou sair do barro da areia da infância, o Kapapa, meu
nome de sempre (...).” (VIEIRA, 2006, p. 101) – , nos permitirá ver que, na figuração
literária do avô, Kinhoka Nzaji, estão as informações mais remotas reconhecíveis
tanto em sua história de vida, como na história da nação angolana. Por meio da
memória do avô, Kene Vua “recupera” imagens de sua própria infância, as primeiras
lições de vida na mata aprendidas com Kinhoka Nzaji, o dicionário quimbundo,
enfim, saberes de uma Angola ainda não dominada pelo colonialismo português.
Percebemos, então, que o avô era o detentor do saber, o guardião das
tradições. É por intermédio de sua voz que somos apresentados a uma linguagem
78
singular, hibridizada por frases em português e em quimbundo, eivada de
simbolismos e mensagens que atravessam os tempos:
“O ufolo, tubia!...” [“A liberdade é o fogo”] – agora sim, oiço e vejo e volto e
creio porque já vem Kinhoka Nzaji em seus bravos pés de jiáia de pele de
pacassa e canhangulo a tiracolo, catana na mão, pouco velho ainda, seu
hungo nada, salmos nada, versículos nada: só ele mesmo, o eterno
guerreiro do Kazuangongo por morros e picadas. “Mba k disongolola, ku
talala: ku dizukama, ku jokota.” [“Afastar-se é gelar; aproximar-se é arder”] E
essa era a que eu queria acender em vida minha, a liberdade do fogo: a
perigosa. “Mesmo que você ardes nesse fogo, tuas cinzas vão de falar por
ti. Porque o que é, é o que é!...” – a vida do homem: cinzas do ar. (Idem, p.
37)
A referência ao fogo nos remete, por vias negativas, à célebre frase de
Amadou Hampâté Bâ, usada como epígrafe ao ensaio intitulado “O eterno retorno”,
do zairense Nsang O'Khan Kabwasa, quando o filósofo malês Hampâté compara o
ancião a uma biblioteca e diz que “ (...) cada vez que um velho morre, uma biblioteca
se queima” (HAMPÂTÉ BÂ . Apud: KABWASA, 1982, p.15).
Kene Vua, narrador-protagonista do romance de Luandino, ao mesmo tempo
em que faz uma retrospectiva de sua vida, entrelaça as experiências que circulam
nas “contações” de seu avô à sua própria narrativa. Ao relembrar os encontros com
o mais velho, o guerrilheiro recria a existência de seu ancestral, fazendo referência
aos seus ensinamentos e conversas que emergiam de suas lembranças e sonhos:
(...) Jurara: um dia, se eu vou dar encontro no meu caminho, aquele que
nem meu avô, o do relâmpago-de-cobra, com a catana nas lutas pela terra,
tinha me ensinado, eu vou mas é me chamar: Kalunga. (VIEIRA, 2006,
p.56).
(...) a rajada de palavras de aviso, meu muito avô Kinhoka Nzaji, pelos
quimbos da memória, revoltava no meu sonho (Idem, p.29)
Ao longo da narrativa, deparamo-nos com, pelo menos, vinte e três
passagens que fazem referência ao mais velho Kinhoka Nzaji, mostrando a
79
importância do ancestral, quando associado à tarefa de ajudar a amarrar os fios da
memória de Kene Vua.
É recriando, no presente, o tempo vivido no passado que o protagonista d'O
livro dos rios mergulha numa série de reflexões sobre momentos de sua vida como
guerrilheiro e sobre a trajetória histórica de seu povo; os parâmetros que assume
para esse exercício reflexivo estão diretamente relacionados às lembranças de seu
avô. Segundo o narrador-protagonista, Kinhoka Nzaji fora um grande guerreiro que
lutara contra os portugueses em defesa de seu povo e de suas terras, legando ao
seu neto muitos ensinamentos e exemplos de coragem. Já na segunda aparição do
velho na narrativa, temos uma comprovação da sua desenvoltura bélica:
Rios eram: o Lombiji, aquele que já foi rio do ouro, águas amarelas por
terras arenistas, onde que o bravo Kinhoka Nzaji viu por vez primeira um
quinzari de branco, que lhe chamavam era o capitão Kingandu d'Almeida, o
que nunca tomou banho na guerra, se lava era com cinzas e fogo.
“Sai-ku ima itatu ia ngidiuanesa...” [“Três coisas me maravilham...”] – voz do
salmista louco por quimbos e margens, maravilhando o mundo e ajuntando
guerreiros e aquele quinzari sempre acaudilhando por lá, pelos Dembos,
fora da alça-de-mira da bela espingarda cropoxé em mãos de Kinhoka
Nzaji, o meu avô desalforriado. As fogueiras repetiam no escuro o eco dos
tambores portugueses: “– Tiro, diplomacia é! Fogo, firma de tratado! A paz é
a cinza!” – ameaça, maldição e profecia dum habacuco cangundo raziando
as sanzalas inteiras, quis medir a terra e separar as nações, esventrar os
montes, rebaixar as verdes colinas do Kazuangongo, o nosso chefe, o do
eterno andar a pé por picadas, matas e muxitos, o que nunca morreu até
hoje. E avô meu, o tal de cobra e relâmpago, de aviso só, deixou as quatro
cabeças da sentinela escorrendo seu sangue para dentro do brilho das
águas, avermelhando o ouro que no fundo do rio dormia: Tana-ku! o ngiji
iami ia fumana! [“Salve, ó meu rio digno de memória”] (Idem, p. 18)
A bravura do velho Kinhoka Nzaji é ressaltada pelas lembranças de seu neto.
Seu avô representa os anciãos que passam a sabedoria quimbunda para seus
descendentes. O avô do narrador-protagonista é aquele que acende a fogueira das
tradições, diante da cultura portuguesa que adentra o espaço angolano.
Essa referência ao enfrentamento entre Kinhoka Nzaji e Kingandu d'Almeida é
80
constantemente retomada, de maneira a configurar-se como o episódio-símbolo da
identidade do guerreiro:
(...) já vem Kinhoka Nzaji (...) o eterno guerreiro do Kazuangongo por
morros e picadas. (Idem, p. 37)
(...) Como avô meu, Kinhoka Nzaji, o que enfrentou o Kingandu nas altas
terras de Ambaka, encostou o general português com as costas no rio
Lombiji, ao meio-dia, cortou as cabeças de todas as sentinelas: “Sai-ku ima
itatu ia ngidiuanesa, o kia kauana ki nga k'ijiia...” [“Três coisas me
maravilham, a quarta não a conheço...”] – o caminho do barco no mar, o
caminho das águas nas sombras das verdes palmeiras na água
acastanhada de vermelho, por cima do rio, as águas passam, sombras que
permanecem... (Idem, pp.110 - 111)
Nos diversos momentos em que somos trazidos para o presente do
desenrolar diegético e nos deparamos com a fuga de Kene Vua – na tentativa de
desvencilhar-se
dos
“tugas”
(como
eram
chamados
pelos
guerrilheiros,
pejorativamente, os portugueses) que estavam no seu encalço –, percebemos que
sua memória entra em atividade, de forma a valorizar as experiências do passado,
como se deste pudesse retirar a única chance de escapar e sobreviver. De forma
fragmentada, vão surgindo várias estórias contadas por seu avô; e o guerrilheiro,
envolvido pela lembrança do ancestral, sente que os ensinamentos dos antigos não
se podiam esvair totalmente:
E a verdade bateu nos meus dedos enruguecidos: tinha eu esquecido os
entes passados? Toquei o que virou ferro em brasa, meu lunga, meu feitiço
de autoridade, meu malunga pendurado no pescoço tinha o peso do mundo
e do medo. Leve, molhado, lhe segurei; e rezei palavras de meu solidário
avô, redentor de quimbos, sanzalas e arimos, aldeias, regedorias até:
Mazozo, por exemplo; ou Kindambiri, se se quiser; ou, ou, ou... Que ele
velheceu profeta pelas margens dos rios, por aqui. “Quem segue os velhos,
chega a velho...” Que “kioso ki kulumuka adiakimi” (Seguir = subir ou descer
com a corrente) – e quem que segue os novos, só chega longe.
(...)
O que vinha de meu avô Kinhoka Nzaji, e que era o que desconsegui: uma
bondade como música de hungo, fuba do coração; e uma calma de si
mesmo mais maior que pedra, a raiva do fogo só nas injustiças alheias dos
outros; e nunca ter calcanhado caminho de escola (Idem, p.116).
Para Kene Vua, os ensinamentos de seu avô estavam estilhaçados em seu
81
ser. O narrador-protagonista não podia perder o rumo de sua luta, mas sentia medo.
Contudo, as palavras de seu avô se punham em suas lembranças como amuleto de
sorte naquela hora tão difícil.
No rio, enquanto pescavam o avô e o neto, o velho Kinhoka contava estórias
a Kapapa. Nesses encontros, a diversidade das narrativas do dia-a-dia era
acompanhada de uma pluralidade de ensinamentos. As experiências entre avô e
neto fazem lembrar o conto “Nas águas do tempo”, de Mia Couto, publicado em
Estórias abensonhadas. Neste texto, um mais velho, peregrinando pelas águas do
rio, num pequeno barco, junto ao seu neto, chama a atenção do mais novo para as
sutilezas existentes no contato com a natureza e com os ancestrais. Na pequena
canoa, todas as manhãs, desciam o rio – “Sempre em favor da água, nunca
esqueça!” (COUTO, 2003, p. 14) –, enquanto o avô procurava mostrar ao neto o
mundo que só podia ser visto com os “olhos que se abr[ia]m para dentro”:
(...) nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver
os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos,
deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que
nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza.
Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. (...) (Idem, p. 16)
A função do mais velho, no conto de Mia Couto, era mostrar ao neto que os
ancestrais estavam deslocados em uma outra margem e assumiam uma posição
importante na vida daqueles que neles acreditavam.
Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, o velho Kinhoka Nzaji
representa, na narrativa, o agente disseminador da sabedoria quimbunda e das
tradições de seu povo, não se furtando a transmitir às futuras gerações,
representadas por Kene Vua, os seus conhecimentos.
82
“Rivandu ria ngiji, nguzu ia jimbandu...” [“A rebeldia do rio, a força das
margens...”] – meu avô Kinhoka, já descalço de seus versículos e tiros,
esquecia os rios da Babilónia e, profetando pelas Margens, havera de falar
só sua sabedoria quimbunda: a rebeldia dos rios. E corrigia, m'apertava no
nariz para mim fazer, e ele rir, pronúncia alheia, sulana:
“Ngalandula!...”(VIEIRA, 2006, p.16).
Kinhoka Nzaji, recriado pela memória do guerrilheiro Kene Vua, enfatiza a
importância das tradições. Sua “fala” é marcada pela celebração da terra e dos
elementos naturais que carregam em si o passado angolano. A voz do avô esmerase em revelar e enfatizar a rebeldia dos rios, como forma de lembrar a força da
natureza, a permanência do que é angolano, a esperança de que a revolução das
águas nunca deixe de permear as margens: “(...) À rebeldia do mundo, à revelia de
conquistadores e degradados, brancos-de-quibuzo que nunca rasparam a língua,
nas suas águas claras por esse riozinho acima prosperavam clandestinas” (Idem,
p.17).
N'O livro dos rios, Luandino Vieira recorda uma Angola onde os “ancestrais”
ainda intervinham nas comunidades da terra e permeavam o imaginário popular,
embora já se encontrassem mesclados à religiosidade católica, imposta durante
séculos de colonização.
O narrador-protagonista, Kene Vua, na busca de repensar sua identidade,
revive, por meio das lembranças de seu passado íntimo – o tempo em que era
apenas o menino Kapapa –, as palavras de seu avô Kinhoka Nzaji e, juntamente
com elas, reavalia as crenças da tradição. Diante de valores que o colonizador
impôs ao homem angolano – valores que interferiram, sobremaneira, nos traços
culturais distintivos do colonizado, como a língua, a postura bélica, a religião, entre
outros elementos –, o guerrilheiro, enquanto um dos representantes da luta pela
criação de uma identidade nacional angolana, ainda conservava, por exemplo, em
83
seu imaginário, o conhecimento sobre os quinzári, os espíritos dos mafulos, ou
melhor, dos imigrantes holandeses que também se agarraram à terra angolana e
contribuíram para a diversidade cultural desta2.
A atmosfera de espiritualidade que é emprestada aos diversos rios
angolanos também marca a importância das heranças ancestrais, prova disso é o
fato de esses rios, agentes facilitadores da “conquista” estrangeira, estarem tão
permeados de lendas e tradições, que o branco europeu, mesmo condicionado
pelos seus saberes e sua fé, estava igualmente sujeito às leis cosmogônicas3 da
terra nativa “– o branco classificava: ‘Pau de mulemba...’ – o preto, emendava; eu
só escutava. Ou, ele: ‘Ensandeira...’ – e meu pai cuspia nas águas, fechava a cara,
não demitia palavra muxiconga, mas que, em terras de Ngola Kiluanji, é mulemba,
dicionário encerrado.” (Idem, p. 61) A metáfora da mulemba é aí significativa, pois
esta árvore é sagrada em Angola, símbolo da ancestralidade e da contação de
estórias. Era em torno dela que os sobas tradicionais se reuniam para discutir e
decidir causas comunitárias.
Mais do que a revelação de uma memória “de experiências feita”, o que
podemos observar na configuração do velho Kinhoka é que o mesmo representa, de
certa maneira, uma das faces do guerrilheiro Kene Vua, enquanto personagemsímbolo de uma cultura híbrida. Por entre as lembranças de um avô guerreiro e
sabedor das coisas da terra, de um pai, senhor dos caminhos dos rios, ainda que já
marcado por uma cultura mestiça, e de um “patrão” branco, conhecedor dos
mistérios do mar, o narrador percebe que, no meio das suas “verdades”, ou melhor,
2
Os holandeses ocuparam parte de Angola entre 1641 e 1648. Apesar de breve, a “colonização” holandesa
logrou, entre outras particularidades, ganhar a confiança de vários soberanos locais – sobretudo a rainha do
estado da Matamba, Nzinga Mbandi – que resistiam à ocupação portuguesa.
3
Termo que abrange as diversas lendas e teorias sobre as origens do universo, de acordo com as religiões,
mitologias e ciências através da história.
84
de suas versões, está o encontro de diversas raízes e heranças:
Agora, diante de mim, Kapapa eu sou: esfrego meus olhos ensonarados –
minhas vidas não dão me berrida, não me enxotam. Nesta, d'agora, só os
fuzileiros contam os grãos de areia da pegada que a maré não quis
arredondar, meu passado sempre está no altar da frente da casa do meu
corpo, meu dilombe, onde que brilham de meu avô suas catanadas, de meu
pai um cigarro apagado no escorregar do quimbundo em peleja de jacob
com o anjo português, rio abaixo, mar acima. (Idem, p.124)
Revendo o seu passado e refletindo sobre o presente, Kene Vua passa a se
compreender como um sujeito híbrido, caracterizado por múltiplas “verdades”, e é
essa pluralidade que acaba por alçá-lo ao patamar de representante da
multifacetada
identidade
nacional
angolana.
Dentro
dessa
perspectiva
de
interdependência entre o coletivo e o individual, lembremos algumas afirmações de
Maurice Halbwachs, que, com muita propriedade, declara: “(...) quando um homem
esteve no seio de um grupo, ali aprendeu a pronunciar certas palavras, numa certa
ordem, pode sair do grupo e dele se distanciar. Enquanto ainda usar essa
linguagem, podemos dizer que a ação do grupo se exerce sobre ele.”
(HALBWACHS, 1990, p. 169)
Com base em tal citação, compreendemos melhor as razões de as vozes do
passado, entre elas a de Kinhoka Nzaji, que pareciam aprisionadas em lugares
escondidos da memória, voltarem a ser “ouvidas” e recriadas por meio das
evocações suscitadas pelos recalques sócio-culturais do presente.
O metafórico encontro dos “rios afluentes” da tradição, recriados pela
memória de Kene Vua, nos leva à confluência das figurações do guerrilheiro, do
velho Kinhoka e de Kapapa, sua contra-face. Tal encontro é fortemente marcado, no
romance de Luandino, por aforismos que costuram a narrativa, representados por
vozes que assaltam os pensamentos do narrador, repetidas vezes:
85
(...) Aí, de novo, fechei meus olhos, apertei de esmagar as meninas deles,
queria ouvir as vozes outra vez. (VIEIRA, 2006, pp. 23 - 24).
Até ali, quando vou ter que entrar na mata do Kialelu para enforcar um
homem. Não vai sair o voo da jamanta-negra dentro da chuva para me
salvar, me dou encontro comigo mesmo, sentado em meus calcanhares,
espero a manhã. Só os ecos da voz do pregador, meu avô. Ecos
esfarrapados, roto e roído e rodeado de monandengues, esvaziando
sanzalas ao som do hungo e gargalo de garrafa. Mas isso, nessa hora, não
vai me servir de nada: a voz é outra – a gente faz a revolução. (Idem, pp. 37
- 38).
Fechei meus olhos, me deixei boiar, não vi o peso da camisa ir no fundo,
braços abertos, a medrosa alma gasta dentro dela, pela corrente subia e se
perdia: nu, eu era agora muito antigo já, outra vez; vinha com minha gente
pelas anharas e com meus peixes; tinha parado de pé, levantado sobre as
colinas de terra vermelha, desci naqueles vales de capinais e erva verde de
chuvas e grená de sangue, de céu azul e chuva branca: nós, os que viemos
com Ngola Inene, ouvi Kinhoka Nzaji me falar, o meu avô salmista estava
me dizer que sabemos usar os poderes mas nunca que andamos de cabeça
para baixo. “Nós viemos do mar... Etu tuadilusa ...” [“Nós saímos do caos...]
(Idem, p.118).
Podemos observar, neste último excerto, que, ao boiar na correnteza do rio,
ainda em fuga de seus perseguidores, Kene Vua mergulha nas águas que
conservam parte importante da sua identidade. Essas águas são metafóricas: são
águas da memória, águas de um discurso que flui em busca da própria identidade.
Percebemos, assim, que alguns dos traços distintivos – que permitem ao
protagonista-narrador se reconhecer como parte de uma coletividade angolana –
foram moldados, séculos antes, da sua própria existência. No contato corpo-a-corpo
com o rio que conta a sua história, o guerrilheiro pode, enfim, experimentar fazer
parte do grupo que está no nascedouro da sua nação: “(...) nós, os que viemos com
Ngola Inene” (Idem, ibidem), tal como revela o sábio Kinhoka Nzaji.
Atuando como os principais elos de uma cultura sustentada pela memória, os
anciãos são responsáveis por transmitirem experiências que estão além de sua
própria existência. A memória pessoal precisa se engrandecer, apoiando-se em
outras memórias pessoais, quando o grande desafio consiste em garantir a
soberania identitária do grupo. Na relação entre Kinhoka Nzaji e o menino Kapapa, o
86
mais velho não é apenas o transmissor das memórias da família; somente mais
tarde, as reflexões do combatente Kene Vua o levarão a compreender que a figura
de seu avô representa um dos pólos sustentadores da história da nação angolana.
A presença “viva” da figura do avô nas lembranças de Kene Vua é marcada
por vários ensinamentos da tradição quimbunda, sendo recorrentemente ilustrada
por uma frase em especial: “'o njila ia diiala mu’alunga...'” [“O caminho do homem na
morte...”]. Essa frase, apesar de traduzida, está longe de ser explicitada pelo
narrador-protagonista, Kene Vua. Dessa forma, cabe ao leitor a missão de tentar
compreender as intenções da instância autoral, ao fazer ecoar, repetidas vezes,
essas palavras do velho Kinhoka. Ao guerrilheiro resta a crença de estar no caminho
da descoberta:
“O caminho do homem na morte...” – sempre procuro mais esta
maravilha em minha vida. “Encontrei meu caminho, meu irmão
camarada...” mas me calei, falei eu, começava de dar encontro sem
mais as palavras de meu avô para me guiar, meio xalado bíblico, ficava
perdido entre fumos de quimbos e camionetas de contrato. (Idem,
p.53).
Sabemos que o momento-chave iniciador do processo de rememoração dos
ensinamentos do avô acontece quando Kene Vua é escolhido para ser o executor do
ex-camarada Amba-Tuloza. A partir de então, deparamo-nos, diversas vezes, com o
modo como surge o conflito que se inaugura, com a crise de consciência que insiste
em confrontar a realidade presente – que inclui, entre outras singularidades, as
obrigações do guerrilheiro Kene Vua – e suas “verdades” mais íntimas –, vinculadas
à subjetividade de Kapapa –, que o passado parecia ter soterrado e de onde a
imagem do velho Kinhoka Nzaji emerge e começa a ser repensada num contexto
específico.
87
No momento em que Kene Vua percebe que caminha ao lado da morte, pois
é o responsável por acompanhar o prisioneiro até o local específico onde este último
receberá a punição fatal, o combatente recupera a imagem de Kapapa e os
ensinamentos do avô recaem sobre a personagem como um contra-senso
ideológico que o faz repensar o passado. Sendo o algoz de um ex-companheiro da
luta armada, Kene Vua presencia, na função de matador, “o caminho do homem na
morte”.
O encontro com o “caminho do homem na morte” acaba acontecendo
quando os pés de Kene Vua são obrigados a se aproximar dos pés do traidor e,
ambos, vão trilhando o “(...) nosso caminho, nossos pambos desencruzilhados no
tempo” (Idem, p. 46). Diante de uma experiência tão peculiar, a imagem de Kinhoka
Nzaji surge como um terceiro peregrino desses caminhos da morte:
(...) eu queria ainda ouvir o rouco que a diamba deixava na mutopa
daquele mais-velho, na língua seca e na água das suas palavras, no
jango: “Sai-ku ima itatu ia ngidiuanesa...” – essas coisas: o caminho
da águia no céu; da cobra, na rocha; o caminho do barco no mar. Mas
sempre não dou encontro com a última, a quarta: o caminho do homem
na morte. (Idem, p.38).
Rearticulados pela memória, os ensinamentos do velho Kinhoka são
reavaliados pelo encontro de vozes e silêncios. Esses incômodos silêncios que
precisam ser preenchidos através da leitura, da interpretação do interlocutor. Kapapa
investe contra essa ausência de som que insiste em emoldurar a imagem de seu
avô – “(...) [mas] eu queria ainda ouvir” (Idem, ibidem) –, por isso ele o recria em sua
imaginação e em suas lembranças.
No decorrer da narrativa, os discursos de Kapapa e de seu avô fundem-se,
como se sustentassem uma única voz. A confluência dessas subjetividades vai ao
encontro dos postulados teóricos de Maurice Halbwachs, quando define o alcance
88
da memória coletiva: “(...) a idéia de que nossas lembranças permanecem coletivas,
e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos
quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos.”
(HALBWACHS, 1990, p, 26)
Quando Kene Vua clama pela “voz” do avô, fica comprovada a importância
da permanência da cultura ancestral no presente. Este, entretanto, cede às
exigências do passado rememorado, uma vez que passa a ser reimaginado por ele.
A língua quimbunda, por exemplo, é traduzida para o português em distintas versões
que dão conta da presença do legado ancestral, na medida em que sofre
adaptações e reinvenções necessárias em relação às ideias antigas, quando estas
são relidas e ressignificadas por contextos mais modernos.
Percebemos que a voz do avô se adequa, no presente, às circunstâncias em
que são clamadas por Kene Vua, mas esse processo não anula a versão original em
quimbundo, registro imprescindível para quem busca as águas da sua própria fonte
identitária, pedra bruta a ser ornamentada com as marcas dos dias atuais:
E eu, eu mesmo, o que vivo está quando outras folhas que lhe
nasceram comigo esvoaçaram?... Banana verde, banana madura,
banana seca, tudo é espera. Quando ainda é, e só é mas é para ser o
que ainda não é: pó, meu avô – “o njila ia holokoko bu diulu, o njila ia
ulungu mu’axaxi ka kizanga kia kalunga, o kia katatu ki nga ku ijia”: o
caminho do homem na morte.
“Todos vamos num lugar, só. E são pó e ao pó revoltam...” – ia de dizer
um qualquer catequista católico, ou pastor em escola dominical: pó,
terra, argila, areia, barro de pemba e ucusso. Só que, meu camarada,
perguntaria ainda saber: começa aí, o caminho? (VIEIRA, 2006, p.66)
A vida do homem, nessa terra, é efêmera. Além disso, do pó o ser humano
veio e ao pó ele retornará, como dizem pastores e padres, respaldados pelo texto
bíblico: “(...) até que te tornes à terra; porque dela fosse tomado; porquanto és pó, e
em pó te tornarás.” (GÊNESIS. 3, p. 19). Segundo essa concepção religiosa, o início
89
(vida) e o fim (morte) são marcos que guiam o homem em sua trajetória. Para as
crenças africanas, entretanto, a vida continua na morte. Por isso, no texto de
Luandino, as maravilhas do percurso vital são subjetivas, e a morte, embora
incontestável, não assinala um fim. Daí a pergunta do camarada ao final: “começa
aí, o caminho?” (VIEIRA, 2006, p. 66).
As inúmeras facetas de uma mesma história conduzem Kene Vua e o leitor
por um emaranhado de indagações muito pontuais. As maravilhas da vida e o
caminho da morte são os pilares, as âncoras que norteiam a personagem e sua
trajetória em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios. Não restam dúvidas de
que o prazer e o mistério permeiam a existência do protagonista.
Diante de tais questionamentos, podemos inferir que as maravilhas da vida
são subjetivas e o caminho do homem na morte é indizível, experiência inigualável e
intransferível. Já que não podemos desvendar como será o final da vida humana, o
grande desafio de nossa existência consiste em tentar descobrir onde fica o início,
onde começa o caminho. As indagações de Kene Vua se referem ao passado
angolano de guerra, mas atingem também a dimensão existencial do ser humano e,
nesse aspecto, se aproximam muito das veredas literárias de Guimarães Rosa.
Transitam pelos inúmeros desvios de seu mundo, que o guerrilheiro reconhece como
um rio, espaço fluido entre um destino que precisa ser desvendado e alcançado na
morte e uma nascente que se pode ter perdido entre as pedras que já rolaram.
Fazer parte de uma realidade absolutamente instável permite-lhe relativizar e
reformular alguns conceitos formadores de sua subjetividade fragmentada, visto que
o que até então era certo, agora, deve ser repensado.
O percurso dos rios resguarda as vozes dos ancestrais que insistem em ser
90
ouvidas, diluídas nas águas da memória de Diamantino, Kapapa e Kene Vua. As
vozes destas personagens vão despertar o interesse de um leitor atento, a quem
caberá captar os sentidos dispersos. Tradição e modernidade são ideias que
encontram espaço na obra de Luandino, no momento em que ele se dispõe a vestir,
com novas roupagens, a multifacetada identidade angolana, muito mais abrangente
em sua leitura do presente.
Esse retomar da trajetória identitária está apoiado em referências ancestrais;
afinal, o ponto de partida é justamente a memória coletiva, passando pelo contato
com a cultura do colonizador, a ideologia nacionalista de negação das influências
europeias, as divergências internas no comando político, ideológico e cultural do
país e a inserção da África no mundo dito globalizado. Ao atuar na frente de batalha,
em nome da independência de Angola, Kene Vua precisa estar concentrado nas
necessidades e tragédias do presente. Entretanto, no momento em que sua vida
transforma-se numa espécie de parêntesis dentro da história da nação, no momento
em que se vê desarmado e só com sua consciência e suas lembranças, inaugura-se
o tempo de repensar quais experiências, trajetórias e modelos realmente interessam
ser seguidos na reconstrução de um país que está para nascer. Rever, com os olhos
da afetividade, as imagens de seu avô e do velho português, capitão do mar, permite
a esse guerrilheiro, antes de tudo homem, desarticular alguns preconceitos –
disseminados por entre algumas das colunas libertárias mais radicais – que insistiam
em marginalizar inegáveis influências que esses registros culturais legaram à
sociedade angolana.
Em meio às memórias que se originam de tempos, perspectivas e
expectativas distintas, mas que convergem para a realidade sócio-cultural angolana,
Kapapa se encontra dividido entre as concepções do guerrilheiro Kene Vua e os
91
princípios ensinados, sobretudo, por seu avô, Kinhoka Nzaji; as palavras e ações de
seu pai, Kimôngua Paka; e também as do velho capitão do mar, Lopo Gravinho.
Agora, tudo se concentra em um infinito de lembranças que se misturam e que, de
alguma forma, fazem com que Kene Vua, no presente vivido, se questione, em
busca de sentido para sua vida.
Refletindo sobre, pelo menos, três momentos da memória social angolana, ou
seja, sobre as tradições ancestrais, a história da guerra colonial e fraturas do
presente pós-independência, Luandino Vieira nos apresenta um texto construído por
fragmentos e permeado por digressões responsáveis por instaurar um diálogo não
só entre as tradições, o passado da luta e a modernidade, mas entre os textos que
essas três realidades proporcionam, oferecendo-nos um espaço convergente, fruto
de diversos atravessamentos culturais.
As diferentes memórias são os eixos fundadores da múltipla identidade
angolana recriada, com o intuito de caracterizar a imagem de um indivíduo plural.
Esse homem, cuja condição social se multiplica, busca, no arcabouço histórico
coletivo e em suas lembranças pessoais, a resposta para sua procura infindável de
equilíbrio existencial.
Nas narrativas de Luandino, é fortemente perceptível a diversidade de
estratégias discursivas que acabam por fazerem dialogar as linguagens da escrita e
da oralidade reinventada. É indiscutível o fato de o texto de Luandino esmerar-se em
entrelaçar as malhas de diferentes registros, construindo, assim, um texto
oraturizado. De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios é escrito em forma de
prosa poética, por meio da qual o autor deixa emergir o lirismo de uma narrativa que
veicula uma oralidade latente, reelaborada, criativamente, pelo discurso literário
92
escrito.
A personagem Kene Vua, configurando um diálogo com o espaço da
tradição oral, caracterizado, principalmente, pela evocação da imagem do seu avô
intentará, ao longo de sua peregrinação, fazer uma leitura das histórias contadas por
seu interlocutor, bem como juntar as peças que escorrem das lembranças de
Kapapa, para melhor compreender o discurso da memória reconfigurada pelo
presente. É assim que o narrador-protagonista vai, aos poucos, tecendo sua
narrativa. A lembrança de fatos passados, aliada às respostas e às perguntas feitas
ao seu avô, refazem e recriam sua identidade multifacetada.
Assim, seu avô, deslocado para o centro de suas memórias, é representado
por imagens que parecem se dissipar, mas que quase sempre retornam. É a voz da
nação angolana que procura entender os elementos que constituem as suas várias
faces.
3.4. As artimanhas do narrar e as invenções poéticas da linguagem
O Livro dos Rios (Editora Caminho), anunciado como primeiro da trilogia De
Livros Velhos e Guerrilheiros, quebrou o silêncio (...). Há 13 anos, Luandino
vive no cimo do monte, em Vila Nova de Cerveira, nas terras do antigo
Convento de Sampaio, do seu amigo escultor José Rodrigues. (...) Em um
quase inverno de tanta chuva, a água brota do muito verde por todas as
partes, o ar é alto, tudo cheira a terra. José Luandino Vieira, 71 anos que
ninguém lhes dava, começou por plantar esta cerejeira que já vai mais alta
que dois homens (Mil folhas, 6/2/2007).
Ao longo de nossas discussões acerca da escrita de De rios velhos e
guerrilheiros – O livro dos rios, nos deparamos com um escritor diferente daquele
que costumamos encontrar em seus livros anteriores. A aguçada complexidade da
obra remete-nos a uma das maiores marcas da intelectualidade luandina: o
incansável burilar da linguagem ficcional e poética. O contexto de elaboração
93
estética desse romance aponta para algumas pistas indispensáveis ao processo
crítico de construção de sentidos para o texto.
As anotações realizadas no cárcere, durante o longo período em que esteve
preso no Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, foram constituindo os pontos cardeais,
referentes à consciência pessoal de Luandino e às particularidades históricas
vivenciadas por ele; consequentemente, algumas dessas recordações se projetam,
ficcionalmente, nas lembranças de Kene Vua como traços biográficos seus, que, em
certos momentos, se confundem com os do autor ficcional. Tais reminiscências do
protagonista surgem naturalmente na escrita romanesca, pontuando, dessa forma, a
eclosão de memórias, tanto individuais quanto históricas, na produção de O livro dos
rios.
O Livro dos Rios, com os resgates do passado pelo viés subjetivo, não
resultaria necessariamente, como não resultou, em individualização
redutiva. Constituiu-se num símile factício, não de memorização mecânica
de fatos acontecidos, mas de uma construção generativa de História. E, na
medida em que é extensiva a uma comunidade, a uma nação, rola nos
carretéis da memória coletiva. (SANTILLI, 2007, texto inédito)
Acreditamos que a experiência da clausura, aliada ao próprio caráter de
Luandino, fez deste primeiro volume da série De rios velhos e guerrilheiros uma obra
diferenciada, visto que sua estrutura corresponde mais ou menos à estrutura do
movimento da memória, no momento em que esta era escrita.
Desse modo, percebemos que a sensação experimentada pelo leitor, ao se
deixar envolver pelos trâmites da memória, cria, num primeiro instante, um obstáculo
para a leitura crítica da obra. Dizemos isso, porque o livro é, em grande parte,
constituído por fluxos de recordações e pensamentos, numa sequência de idas e
vindas que acompanham o caminho trilhado pelo “narrador-personagem”. Por essa
razão, o leitor é obrigado a retornar, constantemente, ao texto para compreender os
94
diálogos e as reflexões lá instaurados.
A transgressão da linguagem canônica, a partir da desarticulação proposital
dos sistemas léxico e sintático do português, mesclado este com a inserção de
vocábulos das línguas africanas, é uma das mais acentuadas características
presentes na construção narrativa d’O livro dos rios. Cabe, aqui, lembrar alguns
apontamentos de Roland Barthes, que, no livro O prazer do texto, declara: “(...) eu
me interesso pela linguagem porque ela me fere.” (BARTHES, 1977, p. 51)
Além da possível dificuldade de entendimento causada pelos “fluxos de
memória” do narrador, que não estão sujeitos a ordenações espaciais ou temporais
lineares e convencionais, outro empecilho encontrado na obra é o uso frequente de
estruturas linguísticas recriadas, as quais são oriundas do universo da oralidade,
principalmente a utilização de frases em quimbundo que, algumas vezes, dispensam
a tradução. Diante desse fator complicador, a obra exige do leitor um maior poder de
concentração e esforço para apreender os sentidos do que é escrito e construído
nas linhas e nas entrelinhas do texto.
Ainda de acordo com Barthes, inferimos que, no texto de Luandino, “(...) o
velho mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não é mais uma punição, o
sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens que trabalham lado a lado: o
texto de prazer é Babel feliz.” (Idem, p. 8). Ao avançarmos na discussão a respeito
dos obstáculos lançados à leitura, percebemos que, para Luandino, cada assunto,
cada tema, necessita de uma estrutura específica, estrutura esta que, num dado
momento, parece mais adequada do que outras.
(...) tudo ele desfazia com devagar. ‘Malembe–lembe...’ – ensinava meu pai
ao sentir o discurso. (...) Que até hoje eu não sei como era essas patrunhas,
ele era natural de Portugal; só que, de sóis e sal do nosso mar das ilhas e
do sujiverde das margens, cadavez o fumo do vapor fluviário, palúdico,
tinha-lhe agarrado aquela cor de açúcar mascavo, se confundindo todo ele
95
com esses brancos camurços, sulenhos da Umpata, xicoronhos das pedras,
raciosos... (VIEIRA, 2006, p. 32)
A escrita de De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios está apoiada
sobre uma base consideravelmente instável. O complexo fluxo de memória que
orienta a narrativa se alimenta tanto do passado quanto da necessidade
incontrolável de redescobrir o sentido do presente. Partindo dessa ideia,
compreendemos que as temáticas abordadas no romance só poderiam ser
representadas ficcionalmente a partir de uma transgressão do código linguístico
ditado pela norma culta, já que um dos seus objetivos principais consiste em
questionar as estruturas de poder vigentes, seja por intermédio de um conteúdo
“subversivo”, seja de uma escrita igualmente “subversiva”.
Nos discursos das personagens Kene Vua – ora Diamantininho, ora Kapapa
–, Kinhoka Nzaji, Lopo Gravinho, Kimôngua Paka, entre outras, são ativadas
memórias e recordações de um tempo impossível de ser inteiramente revivido.
Concentraremos nossa reflexão na figura do “narrador-personagem”, uma vez que
ele é capaz de reunir em si mesmo todas as outras personagens da história, fazendo
com que Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji, por exemplo, figurem como possíveis
desdobramentos de sua própria consciência.
Uma de nossas propostas de leitura, neste momento, consiste em observar
as transformações no fluxo de pensamento e no modo de agir desse narrador. Tais
transformações são marcadas pela instabilidade e, nesse sentido, atuam em
concordância com a perspectiva plural de seu discurso, um discurso que reúne os
diversos pontos de vista das personagens – protagonistas ou “secundárias” – que
povoam a diegese.
É necessário ressaltar que Kene Vua representa a própria cisão do narrador,
96
uma vez que este se mescla e se confunde com aquilo que deseja, com aquilo que
gostaria de ser e com o que é preciso contar, para exorcizar uma série de dúvidas,
questionamentos e recordações que serão intensamente explorados no nível da
linguagem. Assim, pode-se dizer que a maneira hermética pela qual o texto se
apresenta espelha o caráter ambíguo do narrador, em constante mutação: “Amanhã,
na madrugada de ir enforcar o Batuloza, tenho de recomeçar meu ximbicanço. O
Ndalagango naufragou na memória; rio acima de minha estória (...)” (Idem,126)
É importante perceber que Kene Vua, Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji são
construções figuradas de vários grupos formadores do povo angolano que atuaram,
cada um à sua maneira, contra a colonização. Nessa perspectiva, observando
atentamente o destino de cada uma das personagens, o que o narrador parece
querer mostrar é a utilização da “(...) fala como instrumento ou expressão do
pensamento.” (BARTHES, 1977, p.45)
No que concerne ao aspecto temático, os rios podem ser interpretados, num
sentido geral, como sendo
aportes recorrentes e contínuos que metaforizam a
identidade angolana e que possibilitam, num sentido particular, dado a sua fluidez
própria, inferir musicalidade, ritmo e poesia ao texto. Representam, assim, o fluir do
tempo, da História, da memória, da própria linguagem. A partir dessa imagem dos
rios, um elemento se revela essencial na obra de Luandino: nomeadamente a
configuração do tempo, caracterizado também pelo constante “ir e vir” das
lembranças de Kene Vua, ora como o menino Kapapa, ora como o guerrilheiro.
De fato, a ordem cronológica dos dias e das noites, dos meses, das
estações do ano opõe-se a uma outra ideia de tempo, àquele que permite a
configuração de um universo interior, em que se destaca o poder da memória
individual e coletiva. Tal tempo estabelece uma tensão que provoca uma
97
interpenetração entre o antes e o depois, ou seja, o passado, em constante diálogo
com o presente e o futuro.
O ritmo que acompanha o ir e vir dos rios não é igual ao ritmo das
personagens que circulam por entre as páginas de De rios velhos e guerrilheiros – O
livro dos rios. Estas vivem em outro tempo, um tempo que já foi e é impossível ser
recuperado. Elas vivem, tal como o protagonista-narrador, em busca de uma
identidade nacional imaginada, que ainda lateja nos tempos pretéritos. Nesta obra, a
imagem da água corrente, representada pelos rios, é recorrente e constante, quer
seja no pensamento do protagonista, Kene Vua, quer seja, no pensamento de
Kapapa e do velho Kinhoka Nzaji, chegando a acompanhá-los, até mesmo, em seus
sonhos. Os rios adquirem, então, não só um sentido figurativo de continuação e luta
pela resistência, mas também um significado de mensageiro da vida:
E começando por onde acaba, adianto o Lukala, em Massangano. Rio de
caudaloso curso, tributo de imensas águas no nosso pai Kwanza. [...] Dele
guardo só o medo de sua raiva: Kalandula. Nas cabeceiras de sua origem
pacífico – dizem! –, lá em águas rebeldes de uma lagoa, dembado de
Kakongo ka Samba a Ngombe, matas pelas léguas adentro. Até sair num pé
da serra da Kanganza, só; ou se escorrer nos morros do Kiseke, dizem
outros. Até chegar então, jiboiar em ervanais de zungue nas alagadas
terras desse Kalandula ka Kangombe, o bravo que deu lhe nome de
esquecer ecos de outras águas. Porquanto, de margem a margens, muitos
são rios e riachos que lhe tributam direitos; riachuelos até, mais de
milhentos. Águas várias, vivas. (VIEIRA, 2006, p. 15-16)
O rio, enquanto símbolo vital, de força e luta, constitui-se como um elemento
presente nas narrativas dos três personagens que consideramos principais: Kene
Vua, Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji. Esse espaço fluvial, tal como Kene Vua,
nasce, cresce e vive com o objetivo último de alcançar o mar, compartilhando com o
guerrilheiro um sentido para sua existência. Entretanto, a viagem não permanece
encerrada em si mesma, pois, durante o trajeto, as águas desse rio – ou rios –
criam, fertilizam, fazem crescer e renovam o mundo, mesmo que se encontrem num
98
estado de ininterrupta passagem.
Os traços de força e vitalidade, característicos dos rios angolanos, são
incorporados à identidade de Kene Vua, que é um homem no meio de tantos e,
mesmo assim, alcança e assegura sua singularidade. Esse combatente da liberdade
torna-se um ícone no texto de Luandino, precisamente por (sobre)viver no meio de
tanto sofrimento e de uma resistência estremecida, pois, neste momento, as
certezas encontram-se abaladas.
Kene Vua é a face humanizada do rio, é sua personificação. Durante a
leitura de O livro dos rios, podemos assistir ao esvaziamento de sua existência
anterior; pressentimos a instabilidade desse seu tempo que ameaça terminar. Por
outro lado, testemunhamos o momento em que esse homem, renovado a duras
penas, é dominado pela alegria de ter conseguido resistir, como um rio que
ultrapassa obstáculos e desemboca no mar.
Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, a imagem do rio é uma
metonímia do país e da identidade nacional. É um elemento que pertence ao povo e
pode ser percebido por meio dos sentidos: pode-se cheirar, tocar, ver, ouvir e provar.
Por isso, preenche a mente e a memória dos que conviveram com ele, obrigando
cada um ao retorno e à eterna contemplação dos seus mistérios. Kene Vua deixa
transparecer, em suas declarações, uma ideia do rio como algo ligado à origem e ao
fim de sua existência. Por intermédio das relações entre as personagens Kene Vua,
Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji, é possível captar imagens de recomeço e
esperança. Kene Vua, no presente, lembra-se dos tempos em que era denominado
Kapapa; invoca, assim, na busca de suas memórias, um sentido para sua vida, de
forma a explicitar a força e a persistência do povo angolano, ávido de reconstruir sua
autonomia política e identidade.
99
O livro dos rios revela-se um texto narrativo híbrido, que se recusa a
restringir o seu discurso às regras estáticas da prosa mais canônica. Afinal, em suas
linhas narrativas, encontramos processos de semiotização, como ritmo, rima, figuras
fônicas, sentidos metafóricos e simbólicos, poesia e musicalidade. São esses
aspectos, entre outros, que também contribuem para que a construção romanesca
De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios se torne uma experiência única,
fazendo de Luandino não somente um escritor de poesia-narrativa, mas um
narrador-poeta.
Ao longo da leitura dos descaminhos de Kene Vua, podemos observar que
sua “fala” penetra na aventura da língua, das palavras e das imagens, transporta o
leitor para o mundo do maravilhoso literário e do sonho poético. Por meio da
combinação dos caracteres da lírica e da narrativa, as personagens conseguem
incorporar um ritmo, uma harmonia e uma musicalidade únicas. O narrador traça o
perfil das demais personagens que integram seu discurso e sua personalidade,
visando a colocar, no universo da ficção, tipos representativos das gentes dos
musseques: o pai de Diamantino; o patrão português, capitão do mar; e Batuloza.
A descrição do comportamento de algumas dessas personagens faz,
inclusive, com que o narrador assuma outros lugares da narração e posturas
distintas, compartilhando, conscientemente, outras posições políticas, ideológicas e
culturais. A propósito, durante o desenrolar diegético, o narrador irá apresentar-se
como uma espécie de ser onipresente e onipotente, capaz de condensar em si
mesmo o pensamento de diversos representantes da população.
Recitarei um mussendo: Kisongo kia’xi gerou a Mukambi a Kisongo,
Kisonde kia Kisongo, Kalemba ka Kisongo – os que subiram as falésias;
Kisonde kia Kisongo foi parar no Mbumba Iobe e gerou a Kisongo kia
Mbumba e Kisongo kia Kibaia e Kisongo kia Lembe e Kisongo Kianvula –
quilombearam no Alto do Kisonde; Kisongo kia Mbumba nasceu a Mbumba
ia Kibaia e Mbumba Iobe – e foi Mbumba ia Kibaia que tabucou no
Kabidikisu, selou a sangue o vau, subiu para Mbila Ngolo – por séculos, ali
100
esperou os portugueses. (Idem, p.82)
Por entre suas lembranças, confundem-se as vozes do pai angolano e do
patrão português:
Eu tinha só nove anos mas já sabia que não deve de se cuspir contra o
vento – calava. Meu pai, vinha; o capitão era muito meticulento, tudo ele
desfazia com devagar. “Malembe-lembe...” – ensinuava meu pai ao sentir o
discurso. E Lopo Gavinho, preciosista, areava as balas, cinza e limão.
Todas. Sentado num fardo de roupa usada, frente a frente com seu piloto
negro de mãos atadas na roda do leme, areava meticulosamente as seis
cegas balas do seu revólver. E ensinava: “É preciso muito respeito pela vida
que se quer tirar...” Meu pai tossia de mentira, me olhava. E ele, o patrão do
barco, passava sua mão calejada na minha carapinha e emendava: “Não é
lembelembe, que se diz. Vê lá se aprendes português!... É: com mil
delongas, palavras de bento-petrunhas...” (Idem, p.32).
A voz narradora assume uma posição que considera os conflitos, as
contradições e a multiplicidade inerentes à sociedade angolana. Tal posição fica
explicitada, por exemplo, quando o narrador se questiona sobre a conflituosa relação
com o ex-camarada Batuloza.
(...) este Batuloza, sabotador como ele teimava de se chamar, era mesmo
muito sapador, honesto e competente. Tinha faro para trilho antes de ser
escolhido ou patrulhado, adivinhava a picada, o aquele caminho, rota de
unimogue e itinerário da tropa só pelo riso das patrulhas, modo de fumar –
com ele, nossa secção embosqueava muito bem, recuperávamos material.
E, agora, ia morrer. (Idem, 47)
O Batuloza, cabrito amarrado no pau do muanze, ia de choraminjar – darei
encontro com seu terror, um medo muito de lento, se escorregando entre
ranho e lágrimas. Estaria cego, surdo e mudo; se deixando esvaziar no chão
de folhas secas nunca não ia nem pensar em víbora surucucu, ou se vinha
a suíje ou a bela côngolo, cobras nossas, ou a quissondada de formigas; se
raio da trovoada da chuva da noite rachava nos ramos das árvores do café
e lhe torrava – não. Lá, em seu terror, só estaria ouvir a puíta do tempo
dentro do próprio coração (...) (Idem, p.60).
Entre as experiências de Kene Vua e as memórias de Kapapa, percebemos
uma emersão de dúvidas, conflitos e questionamentos, pois, a partir da interação
entre ambos, são revelados momentos de orgulho e desonra. Nesse ir e vir das
consciências dessas personagens centrais, a ficção de Luandino reinventa a
linguagem, povoando os espaços vazios de significados outros. Repovoa a língua
101
literária, descarnando-a dos lugares comuns e alcançando, assim, uma significação
profunda e transmutada.
(só que eu fituquei: certo, correcto, dacordo, narmal: Kalunga eu até seria
se; cadavez, um dia outro, outra vida; mas meu mar ainda estava morar é
dentro de mim, marulho secreto; mesmo que em verde mata sofro de marévazia de saudade, ainda tenho meus ocos, buracos e pedras (...) (Idem, pp.
123 e 124)
Para Kene Vua, torna-se fundamental a busca contínua de sua identidade
descaracterizada no decorrer de tantos anos; identidade que não poderia ser
reconstituída somente a partir do olhar voltado para si mesmo, mas deveria
concentrar-se sobre outros olhares. O discurso de Luandino consegue, de maneira
ímpar, por meio da articulação de uma perspectiva plural, que singulariza o romance
O livro dos rios, questionar consciências e atitudes, especialmente, por meio de seu
protagonista.
Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, são privilegiadas “falas”
contraditórias de personagens que interagem, de maneira tensa, refletindo sobre
hibridismos e práticas preconceituosas presentes na sociedade angolana dos
tempos coloniais. Fica clara, nas “estórias” enunciadas pelo guerrilheiro e pelas
demais vozes que circulam em sua memória, a problematização da questão da
assimilação do código linguístico do colonizador e, consequentemente, o
afastamento das línguas nacionais. Ao longo da leitura da referida obra, não restam
dúvidas de que o fato de a língua do colonizador ser quimbundizada contribui para
uma afirmação identitária angolana, quer a partir da interferência e da recriação da
oralidade na escrita, quer através da criação de novas palavras. Tal procedimento
permite a desarticulação do sistema linguístico português, adequando-o a situações
de fala angolana: “Capitão Lopo se defumava todo ele, sirenava o vapor do apito, as
garças-jindeles, penas imaculadas no fundo imaculado das nuvens de algodão,
102
maravilhava a tarde em seu assustado voo.” (Idem, p. 61)
No projeto de estruturação do texto de Luandino, está incluído, também, o
uso de diferentes recursos da linguagem, entre os quais as repetições constantes
que marcam, na oralidade, a necessidade de memorização: “Três coisas maravilham
na minha vida, a quarta não lhe conheço ...” (Idem, p.23).
Na sequência narrativa, é bastante recorrente o uso de polissíndetos, ou
seja, a incidência de conectivos na coordenação de elementos. Esse recurso
costuma acelerar o ritmo narrativo: “(...) colegos de mafulos e conquistadores e
escravos e libertos e forros e alforriados e indígenas e contratados e assalariados e
assimilados e rusgados e proletarizados e alçados e alevantados – rodeando todo o
verde do mundo” (Idem, p.66). A reiteração do conectivo aditivo e remete-nos à
ideia, bastante difundida no texto, de soma e aproximação entre os diversos
registros socioculturais que povoaram e povoam o território angolano.
É comum o uso de construções onomatopaicas, criações que visam a imitar
os sons da realidade: “(...) Toc-toc, toc-toc, toque
toque de manco, muleta de
mutilado em pedra de sepultura na porta da igreja [...]” (Idem, p.70). O emprego da
sinestesia, espécie de formulação imagística baseada na união de impressões
sensoriais diferentes, também se revela um importante recurso relacionado à
estética narrativa d’O livro dos rios: “Apalpei com meus olhos, de novo, aquele
silêncio” (Idem, p.30).
Ao fazer uso da personificação dos fenômenos naturais, a enunciação
romanesca aciona a própria natureza para participar da desenvoltura diegética.
Neste contexto, os elementos naturais assumem capacidades que não lhes são
próprias, pois reagem aos acontecimentos como se pudessem sentir emoções.
(...) Porque aquela ilha das mulembeiras, naquele antes da tarde, estava
103
populada, o sol falava muitas sombras.” (Idem, p.26);
(...) a mata do Kialelu saiu da neblina do nascer do sol e se iluminou, como
se me nascesse deus, ali – tranqüila; irmã desde sempre que nossos pés a
cruzavam; ainda nos séculos do antigamente, explorada, violada e
violentada (...) sempre renascida de fogo e inferno, aliada de escravo fujão e
liberto rebelde, calado contratado, ela é que era nossa senhora dona
heroína: cacimbo e chuva e madrugada, noite e dia, desde o princípio do
mundo, nosso sagrado espaço. (Idem, p. 54);
(...) meu Kwanza m’ensinou. Estou na barriga dele, os fuzileiros me
procuram – esta terra nossa morre-se em água. (Idem, p. 66)
Segundo Amadou Hampâté-Bâ, a palavra africana representa a exteriorização
das forças e é por isso que tudo “fala” no universo. Visto isso, percebemos que o
discurso de Luandino Vieira tem a preocupação de não “engessar” a palavra; ao
contrário, procura mantê-la móvel, dinâmica, senhora de si mesma. Essa palavra,
que transforma e concretiza, tem uma carga semântica muito complexa e cheia de
possibilidades, o que proporciona que a prosa de Luandino se torne um texto
altamente metafórico e – por que não dizer? – poético.
Não podemos, também, perder de vista, dentro da articulação de De rios
velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, a emergência e recorrência de diversos
provérbios. De acordo com seu sentido dicionarizado, tais formulações consistem
em sentenças de caráter prático e popular, expressas em forma sucinta e,
geralmente, ricas em imagens que passam lições do senso comum; os provérbios
são máximas; ditos; refrãos; ditados; prolóquios; adágios. Na narrativa luandina, há
uma grande quantidade de provérbios, mas esses rompem os sentidos
convencionais e se revestem de significados poéticos e existenciais, como se pode
detectar na seguinte citação:
Três coisas maravilham na minha vida, a quarta não lhe conheço: voo da
jamanta-negra no ar de chuva; rasto da jibóia no sussurro da pedra; sombra
das águas em fundo do mar – caminho do homem na morte... (Idem, p. 23)
“Rivandu ria ngiji, nguzu ia jimbandu ...” ‘A rebeldia do rio, [é] a força das
margens ... ‘ (Idem, p. 16)
104
Esse exemplo ilustra não apenas a sabedoria do povo quimbundo, mas a
poesia de uma linguagem que opta pelas rupturas e margens. Para Walter Benjamin,
cujo pensamento filosófico opera com fragmentos e rupturas, “os provérbios são
ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento,
como a hera abraça o muro.” (BENJAMIN, 1994, p. 221). Já para Honorat Aguessy,
(...) os provérbios não são obras secundárias e, além disso, revelam-se
como sendo belos ‘resumos’ de longas e amadurecidas reflexões, resultado
de experiências mil vezes confirmadas. O caráter anônimo dos provérbios
traduz a sua profunda inserção no âmago da experiência e da vida coletiva,
depois de longas rodagens e experiências. (AGUESSY, 1977, p. 118)
No romance analisado, os provérbios são reflexões, mas não reafirmam o
senso comum; ao contrário, subvertem esses sentidos, criando outros poéticos e
transgressores.
Retomando a metáfora central do romance, o rio, observamos que a
narrativa evoca o fluir das águas, elementos dialogantes do discurso de Luandino. A
temática fluvial representa a própria metáfora do ato de narrar.
Outro elemento que consideramos fundamental na construção dos sentidos
em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios é a memória. Configurando-se
como um dos pontos centrais da narrativa, e dialogando com um processo que faz
do ato de escrever uma “escrita em voz alta”, as intervenções da memória
aparecem, na obra, de maneira recorrente, seja através da recordação espontânea
de situações de outro tempo, seja por meio de lembranças, ativadas a partir da
percepção
de
algum
lugar ou
objeto.
Logo,
as
recordações
de
certos
acontecimentos podem ser alimentadas por intermédio de cheiros, sabores ou
pontos que emergem do passado.
105
É por meio da imaginação criadora que desejos antigos podem vir a ser
ficcionalmente realizados, por meio de registros de acontecimentos do outrora
plasmados e recriados pela escrita literária, que conclama a atenção do leitor no
sentido de repensar, criticamente, o passado. Sob os meandros da imaginação, o
confronto das lembranças do vivido é minimizado e o choque produzido por esse
encontro é suavizado. A personagem-narradora do romance De Rios velhos e
guerrilheiros – O livro dos rios narra a história de luta de Angola, mas, em diversos
momentos, estas reminiscências históricas acabam misturando-se à sua própria
biografia.
De todo modo, podemos inferir que o processo de enunciação dominante no
romance está atrelado à vivência pessoal do narrador-personagem, àquilo que ele
tem para contar. Assim, a articulação da memória, em O livro dos rios, se
aproximaria do conceito proposto por Walter Benjamin no conhecido texto “O
narrador”.
Essa breve memória aparece de forma contínua e espontânea na obra em
questão, como se fosse uma sequência de flashes-backs que acompanham o fluxo
de pensamento do narrador. No texto de Luandino, a memória não está
simplesmente associada a um passado vivido, mas ganha novos contornos, com
vistas à construção de um futuro cheio de sonhos e novas possibilidades.
(...) Hoje, ainda baloiça toda a pequenina vida dele na minha consciência,
não guardo memória: fiz o que alguém tinha de fazer e o Kalukala, rio de
tantas matas e bases de apoio e acolho e passagem, já era minha
testemunha (VIEIRA, 2006, p.19).
Conforme Pierre Nora, no ensaio intitulado "Entre Memória e História: a
problemática dos lugares", observamos que a memória está profundamente
enraizada “(...) no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (NORA,
1993, p. 7). Acionada a partir de determinados elementos que surgem à vista do
106
narrador-personagem, a memória faz parte de seu cotidiano e reinventa, crítica e
criativamente, o passado vivido. O trecho seguinte demonstra a constante
interferência do Kapapa de outrora no Kene Vua de hoje:
(...) A pele daqueles povos acobreavam ainda em tempo de cacimbo. E na
hora que Pedro Álvares Canhoto, no despertar do terror, lhe insultou de riofilho-da-puta-ruivo e cabrão-malcheirorso, meu avô, o sempre em pé
Kinhoka Nzaji, se vivo fora por aqueles entonces, iria de gritar: “Dixibe,
kangundu! O ngiji iami, muene o Kalunga Kitubia!...” [Cala a boca, branco
ordinário! O meu rio, ele é o Grande Diabo!...] – e aquele sacrílego nunca ia
poder sentir sua cabeça rolando pela ravina para o regaço de nossa mãe
Kwanza... (VIEIRA, 2006, p.68).
No excerto mencionado, fica patente a ideia desenvolvida por Pierre Nora de
que a memória é atemporal, estando, sempre, em processo de constante recriação
nas mentes de pessoas que passaram por determinadas experiências. Nesse
sentido, podemos considerar que, ao ativarem sentimentos tão profundos em Kene
Vua – como situações de infância experimentadas por Kapapa, ao lado de seu avô
Kinhoka Nzaji –, certas lembranças são imediatamente dotadas de um sentido que é
compartilhado pelas duas faces do mesmo sujeito, Kene Vua e Kapapa.
As articulações da memória fazem com que o narrador-personagem se
lembre com ternura dos momentos e vivências agradáveis, desfrutados ao lado do
seu avô no passado. Após a morte de Batuzola, aquela mesma memória passa a ser
carregada de lembranças penosas e funestas.
Nessa medida, devemos sublinhar que, com a morte de Batuzola, todas
aquelas memórias que outrora tiveram uma lembrança agradável a elas associada,
no momento presente, só fazem com que o narrador se recorde de seu avô Kinhoka
Nzaji e de seus ensinamentos; contudo, como este já não está mais junto de
Kapapa, as sensações que emergem no sujeito que narra são de desalento e falta
de alegria. O lembrar funciona como o mote que conduz a linha de raciocínio do
107
narrador, seja para proporcionar-lhe lembranças agradáveis ou lembranças
desastrosas.
A memória mantém com a narrativa íntima relação, revelando uma voz
enunciadora dialogante, cujo discurso, muitas vezes, se confunde com o de Kene
Vua, sendo também responsável por costurar todo o texto romanesco. Embora a
narrativa de De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios não seja um relato
autobiográfico, em vários momentos, podemos perceber a existência de um autor
ficcional4, fortemente envolvido com a trama narrada como, por exemplo, na
seguinte citação:
Gostaria de dar ao leitor, saudavelmente céptico, a versão original, em
língua quimbunda. É tarefa quase impossível. A menos que a escrevesse
meu mestre e amigo Uanhenga Xitu; ou prometesse corrigir meus erros se
me autorizasse, a mim, tal empresa. (Idem, p.90)
Analisando-se esse trecho do romance, depreende-se que, enquanto o
narrador-personagem
permanece
no
plano
da
ação,
o
autor
ficcional,
simultaneamente, parece estar a imaginar uma ação que gostaria que acontecesse a
seguir: “naquele tempo” (Idem, p.44), “se fosse hoje” (Idem, p. 64). Parece que essa
voz anunciadora escreve sobre sua própria experiência dentro do espaço focalizado
pela narrativa, isto é, sobre sua vida em Angola:
Nunca os portugueses chegaram a decifrar a tatuagem, como prova o
silêncio que se ouve, vindo de documentos e manuscritos. Porém, já
depois da Independência, o coordenador de uma das células do MPLA,
um historiador, relatou ter tido um sonho em que esses símbolos
apareciam. Procurara, até por epítomes de marxismo-leninismo, e não
chegara a nenhuma explicação. Um militante de base, Zé Samuel, riu
sem autocrítica; mas, criticado, calou. Secretou, mais tarde, ao A., de
quem era amigo, a contra-cifra: Deuterônimo, capítulo 28, versículo 19.
Aos portugueses bastara se terem visto ao espelho. (N. do A.) (Idem,
p.81).
4
Alguns teóricos denominam como autor implícito.
108
O autor ficcional, por seus comentários e notas, permite-nos entender que as
lutas pela independência fundaram, em Angola, um tempo de busca da liberdade e
de amor à terra angolana. Esse amor pode ser percebido na narrativa quando a
mesma propõe, romanticamente, a ideia de escrever sobre árvores, peixes,
pássaros, céu, água, rio, deixando patente a necessidade de inserir um homemsímbolo no meio de tudo isso. E esse homem é Kene Vua.
Não podemos esquecer que o autor “real”, Luandino Vieira, se utiliza de
suas lembranças para compor o romance, apesar de sua memória não ser, diversas
vezes, fidedigna àquilo que se passou ou não em sua vida. Dessa maneira,
poderíamos “falar” em uma memória recriada, que oscila entre a concretização de
certas recordações e o desejo de que essas, de fato, tivessem ocorrido na realidade.
No romance, sob as teias da memória, vão sendo tecidas personagens,
ações e vai sendo delineado o subconsciente afetivo de Kene Vua / Kapapa e
Kinhoka Nzaji, personagens que, no plano social e político, funcionavam como
símbolos da nova ordem que se anunciava com a proclamação da independência de
Angola.
Gostaríamos de ressaltar, ainda, a criatividade linguística do autor como
fruto não só de sua consciência revolucionária, mas também de sua preocupação
em formar leitores críticos e capazes de ler e compreender as artimanhas do texto
literário. Sobre este assunto, observemos a declaração de Luandino, quando
entrevistado por Michel Laban, a respeito da dificuldade de leitura de muitos de seus
livros:
(...) realmente cabe aos próprios escritores, e que é um dever dos próprios
escritores, fazer evoluir os leitores para formas mais adiantadas de estrutura
narrativa, de literatura, porque nós, hoje, falamos com grande admiração da
literatura latino-americana moderna, que se tornou popular em todo o
mundo, e não é uma literatura fácil em termos de estrutura. É mesmo
bastante difícil. Ora, penso que tem que ser assim. O que é necessário é
109
que realmente o escritor não minta. Se eu tivesse visto que não havia uma
profunda identidade entre a estrutura da narrativa e sua matéria, então eu
devia realmente corrigir no sentido de as adequar (VIEIRA. Apud: LABAN,
1977, p. 33).
Luandino Vieira mostra-se bastante consciente de seu papel como escritor,
preocupado não só em denunciar aos leitores as injustiças do regime colonial e
valorizar a cultura local, mas ainda em teorizar sobre o papel do escritor e da
literatura. O autor expõe, de modo geral, que a forma e o conteúdo são importantes
em seus textos, instigando seus leitores a um posicionamento crítico em relação à
sua própria ficção. De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios representa um
salto em relação não apenas à literatura produzida por Luandino e à literatura
angolana, mas às literaturas de língua portuguesa e às demais literaturas, em geral,
pois é uma obra que rompe com o canônico e se revela repleta de (re) significações,
seja no nível linguístico, político, social, cultural, histórico ou estético.
Consciente das contradições existentes, no contexto histórico angolano,
tanto no passado das lutas, como no presente em que escreve, Luandino Vieira
empenhou-se para que sua escrita conseguisse questionar as estruturas de poder,
sem que se transformasse num discurso transparente, voltado apenas para
denúncias políticas e sociais. Angola e a gente simples dos musseques luandenses
sempre serão o tema preferido da ficção desse grande escritor.
110
4. CONCLUSÃO
A análise da obra de José Luandino Vieira, intitulada De rios velhos e
guerrilheiros – O livro dos rios, apresenta-se como um grande desafio para qualquer
pesquisador que se dedique a investigar as Literaturas Africanas produzidas em
língua portuguesa e suas singularidades. Tanto no que se refere à cultura, à história
– permeada por tragédias seculares e recentes conflitos políticos –, até a tão
sonhada independência, a Literatura de Angola registra e ficcionaliza de modo
crítico.
É preciso muito empenho e, acima de tudo, acuidade de leitura, para se
estabelecer um olhar crítico sobre este instigante livro de Luandino. O que dizer de
uma personagem-protagonista que, num instante, torna-se três – ora Kene Vua, ora
Kapapa, ora Diamantininho –, surpreendendo-nos com as curiosas atuações de sua
memória que, recriando recordações, começa a desenhar formas e formular
conteúdos para importantes narrativas de vida, na busca de dar sentido à sua
peregrinação histórica e existencial, preenchendo lacunas de sua vida, tanto no
âmbito de suas experiências individuais e ontológicas, como no de sua trajetória
social e política.
A primeira conclusão a que chegamos, na reta final deste estudo, é a de que
Luandino não abre mão de ressaltar a importância da cultura como fonte criadora e
emancipadora de uma nação. Percebemos, ao longo da leitura de O livro dos rios,
que, de certa forma, a instância autoral argumenta que todas as revoluções da
história moderna foram movidas por aqueles que estavam mais embrenhados na
cultura das sociedades e que, inversamente, não houve nenhum grande movimento
contra-revolucionário em que a ênfase ao cultural não estivesse presente.
111
Quando Luandino coloca Kene Vua numa busca constante rumo à
compreensão do sentido de sua vida – divagando por entre os ensinamentos de seu
avô e a reconstituição memorial de sua “alma” de guerrilheiro –, guiado pela
correnteza dos rios – os geográficos, físicos, luandenses, e os metafóricos, da
memória, simbólicos –, fica claro o questionamento principal desta obra, que não se
omite em momento algum: O que é ser guerrilheiro? Por que sou um guerrilheiro?
Mas "Eu, Kene Vua", sou um guerrilheiro?! "Eu, Kene Vua", na verdade, não seria
"Eu, Kapapa"?!
No fundo, o narrador multifacetado deste romance de Luandino nos apresenta
profundas indagações existenciais geradas por uma crise de identidade; a instância
autoral propõe uma reflexão que dê relevância aos diversos pontos de vista e
conflitos vivenciados por suas personagens. Acreditamos que a enunciação
romanesca não pretendeu simplesmente criar uma personagem dotada de senso
crítico fora do comum e capaz de mobilizar as massas populares a favor de algum
interesse específico; tampouco, pensamos que tenha sido sua intenção oferecer-nos
uma obra preparada e disposta a direcionar seu conteúdo em favor de um segmento
social previamente estabelecido. Cremos que a narrativa de O livro dos rios nos
presenteia com uma personagem que, além de representar um determinado grupo
político-social, deixa-nos entrever que os seus valores pessoais, construídos e
sedimentados ao longo de sua trajetória individual e histórica, estão ancorados em
ideais de igualdade, justiça e liberdade.
A respeito dos pontos de vista que a personagem-protagonista insiste em
defender,
preservando
seus
ideais,
observamos-lhes
a
importância
e
representatividade histórica, segundo a qual se destaca não uma vontade única,
singular, mas sim plural – Kene Vua, Kapapa, Diamantininho. Foi, sobretudo, essa
112
variedade de pontos de vista que procuramos analisar neste trabalho de profunda
imersão nas águas de Angola, ou melhor, nas correntezas dos rios de Luandino,
pautando-nos pela leitura de personagens que experimentaram tempos difíceis de
colonização, repressão, censura e guerrilhas. Esse romance de José Luandino
Vieira reafirma propósitos de buscar embasamento na cultura endógena angolana,
elucidando determinados efeitos da colonização na mente e no cotidiano dos
colonizados e, dessa forma, discutindo, criticamente, no âmbito de sua literatura,
momentos problemáticos da história de Angola.
Nessa perspectiva, a iniciativa de Luandino Vieira em recriar, ficcionalmente,
um passado deslocado para as vésperas da independência de seu país não se deu
de modo aleatório, visto o fato de ter ele assumido um papel preponderante no
processo de descolonização do território angolano. Profundamente ligado à história
de uma nação que ele ajudou a criar e a reinventar, o autor trouxe para o plano
literário a cultura popular de uma Angola pouco conhecida e valorizada. E é, em
razão desses dados singulares, que reside grande parte de sua resistência enquanto
escritor: promulgar uma cultura genuinamente angolana, segundo a qual os padrões
portugueses não são necessariamente rejeitados, mas, sim, incorporados às
tradições locais, por natureza, híbridas e, consequentemente, permeadas por muitas
contradições e conflitos.
Nesse sentido, não podemos esquecer que uma das principais características
de sua escrita, desde A cidade e a infância até Nós, os do Makulusu, é mostrar, por
meio da literatura, as zonas de atritos e choques dessa sociedade. O espaço dos
musseques constitui-se como metonímia de um contexto maior, em que reinam
contradições, desigualdades e opressões decorrentes de anos e anos de
colonialismo. Nessa medida, seu papel, como escritor, é o de denunciar as
113
arbitrariedades desse regime, com vistas à constituição de uma sociedade mais
justa e igualitária. Além disso, o ato de valorizar as pessoas simples, trazendo-as
para o espaço da literatura, visa, entre outras intenções, à afirmação de identidades
angolanas que foram discriminadas pelo regime colonial.
A disseminação dessa literatura, enquanto instrumento de mobilização e
transformação dos segmentos sociais oprimidos em Angola, encontra, obviamente,
grandes obstáculos, principalmente, se pensarmos que ela é produzida em um país
de maioria analfabeta ou pouco escolarizada. Essa é uma das grandes contradições
que habitam não só a obra de Luandino Vieira, mas a dos demais escritores
angolanos. Contudo, também serve como artifício denunciador das precárias
condições em que vive a maior parte da população de Angola.
Ao longo desta dissertação, procuramos evidenciar a maneira pela qual
Luandino se utiliza dos meandros da enunciação ficcional para, criticamente,
repensar a realidade histórica e social angolana a partir dos tempos de guerrilha. Por
meio da configuração de suas personagens, a instância autoral revela um esmero
singular relativo à destreza com a qual lida com essa linguagem. Esta última, a
linguagem, se institui como instrumento concreto de luta política e ideológica, já que,
por intermédio de sua rearticulação, é possível vislumbrarmos algumas prerrogativas
autorais, tais como a subversão de determinados modelos narrativos vigentes. Estas
intenções desvelam-se ao leitor de maneira um tanto obscura, num primeiro
momento, já que o texto se constrói pela incorporação de estruturas de fluxo de
pensamentos, memórias e recordações. Pelo desenrolar da história, acompanhamos
o narrador que vai expondo um guerrilheiro, completamente afetado pela guerra
colonial, cheio de questionamentos acerca das incoerências dos projetos da luta
política e da sua própria vida.
114
Com base nas peculiaridades de cada uma das personagens que circulam
pelas páginas do romance em questão, a instância enunciadora imprime, em seu
universo literário, marcas de profunda consciência social e revolucionária. Como
atento espectador e questionador da política e da cultura do país, o escritor
Luandino Vieira, para avaliar, criticamente, mudanças que acompanharam o
contexto histórico da pré-independência de Angola, se vale, em O livro dos rios, de
estratégias narracionais que priorizam três enfoques principais: a memória, a
guerrilha e a ancestralidade.
Outra importante característica da desenvoltura ficcional da obra luandina é a
tarefa de retratar o processo de conscientização política do povo. Crianças, jovens
estudantes, trabalhadores do povo, mulheres e até anciãos, cada um contribui de
forma decisiva para o país que vai sendo construído. Conforme constatamos, no
decorrer dos capítulos desta dissertação, as personagens criadas por Luandino
conseguem falar, com propriedade, do ponto de vista do oprimido, refletindo sobre
este. Voltamos a lembrar que o próprio autor assume a perspectiva de quem, de
fato, foi morador de um musseque e cumpriu pena de catorze anos na prisão do
Tarrafal. As experiências e observações de vida e da guerrilha alimentam as trilhas
da memória, fortemente marcadas pelas tradições orais que fazem parte das gentes
simples que constituem a matéria-prima da obra literária de Luandino.
A leitura de De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios contribui,
significativamente, para levantar alguns dos muitos véus que encobrem obscuros
momentos e episódios de intensa repressão colonial em Angola, às vésperas da
independência. Concluímos que José Luandino Vieira constrói uma literatura
absolutamente questionadora, que não hesita em beber nas águas dos valores
tradicionais, discutindo o passado, sempre à luz do presente e com vistas à
115
instauração de um futuro sedimentado em ideais de justiça e igualdade.
116
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