ISSN 1982 - 0283
EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA DO
CAMPO NO CICLO DE
ALFABETIZAÇÃO
Ano XXIV - Boletim 12 - SETEMBRO 2014
Educação Matemática do Campo no Ciclo de Alfabetização
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................................... 3
Rosa Helena Mendonça
Introdução............................................................................................................................... 4
Maria do Carmo Domite
Texto 1: O Currículo de Matemática e a Educação do Campo ................................................ 10
Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa
Texto 2: Ressignificação da escola em contexto indígena: Etnomatemática e
Ecologia de Saberes......................................................................................................... 18
Rogério Ferreira
Texto 3: Educação Quilombola e Etnomatemática: é um diálogo possível? ...........................25
Vanisio Luiz da Silva
Keli Mota Bezerra
Educação Matemática do Campo no Ciclo de Alfabetização
Apresentação
A publicação Salto para o Futuro comple-
A edição 12 de 2014 traz como tema: Educação
menta as edições televisivas do programa
Matemática do Campo no Ciclo de Alfabeti-
de mesmo nome da TV Escola (MEC). Este
zação e conta com a consultoria de Maria do
aspecto não significa, no entanto, uma sim-
Carmo Domite, Doutora em Psicologia da Edu-
ples dependência entre as duas versões. Ao
contrário, os leitores e os telespectadores
– professores e gestores da Educação Básica, em sua maioria, além de estudantes de
cação pela Universidade Estadual de Campinas, Parecerista da Universidade de São Paulo
e Consultora desta Edição Temática.
Os textos que integram essa publicação são:
cursos de formação de professores, de Faculdades de Pedagogia e de diferentes licen-
1. O Currículo de Matemática e a Educação
ciaturas – poderão perceber que existe uma
do Campo
interlocução entre textos e programas, pre-
3
servadas as especificidades dessas formas
2. Ressignificação da escola em contexto
distintas de apresentar e debater temáticas
indígena: Etnomatemática e Ecologia de
variadas no campo da educação. Na página
eletrônica do programa, encontrarão ainda
outras funcionalidades que compõem uma
rede de conhecimentos e significados que se
efetiva nos diversos usos desses recursos nas
escolas e nas instituições de formação. Os
Saberes
3. Educação Quilombola e Etnomatemática: é um diálogo possível?
Boa leitura!
textos que integram cada edição temática,
além de constituírem material de pesquisa e
estudo para professores, servem também de
base para a produção dos programas.
Rosa Helena Mendonça1
1
Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro (TV Escola/MEC).
Introdução
Maria do Carmo Santos Domite 1
[...] acho que se fosse possível a muitos
dos professores que só trabalham dentro
da sala – presos aos programas, aos horários, às bibliografias, às fichas de avaliação
– que se expusessem ao dinamismo maior,
à maior mobilidade que se encontra dentro dos movimentos sociais, eles poderiam aprender sobre uma outra face da
educação que não se encontra nos livros.
Há algo muito importante que as pessoas
estão criando, fora da educação formal.
Para os professores, seria uma experiência
de abertura de novas perspectivas. Contudo, respeito os professores que preferem
ficar nas escolas; mesmo aí, porém, é preciso ser crítico dentro do sistema.
está inserido, motivando a participação dialó-
Paulo Freire2
nizando mais e mais maneiras de contestar
gica comunitária e possibilitando uma melhor
leitura de realidade social e política do grupo.
Estas ideias tiveram influência nos
programas, mais extraoficiais do que oficiais, das décadas de 70 a 90. As orientações
para a Educação Popular, de certa maneira
uma proposta educacional alternativa, instigaram professor e formador para além da
perspectiva pluralista no sentido de expor
a multiplicidade de saberes, valorizando o
saber po­pular e cotidiano, assim como orgaas formas tradicionais de conceber as áreas
Esta forma de trabalho, aqui como um
do conhecimento, já consagradas.
chamamento de Freire, foi igualmente defendida pelos educadores brasileiros envolvidos
com a Educação Popular – um movimento
tanto a apresentação do desafio de Freire
educacional brasileiro fértil do final dos anos
quanto os dois parágrafos introdutórios de-
60, grande parte sob os pressupostos da edu-
sencadeados a partir de tal desafio, foram
cação libertadora freiriana. Com a preocupa-
encaixados no texto para nos auxiliar no
ção de valorizar os saberes prévios dos alunos
cumprimento da meta que temos neste mo-
e suas realidades culturais na construção de
mento - produzir um material introdutório
novos saberes, tal movimento valoriza o estar
não só dentro da sala de aula, mas atuando
O leitor já deve ter percebido que,
para autores que refletem sobre Educação
do Campo no Brasil, em especial sobre Edu-
também na comunidade em que o educando
1
Doutora
em
Psicologia
da
Educação
pela
Universidade
Parecerista da Universidade de São Paulo e Consultora desta Edição Temática.
2
Freire, P. & Schor, I. Medo e Ousadia. Rio De Janeiro: Paz E Terra, 1995.
Estadual
de
Campinas,
4
cação Matemática do Campo – procurando
resta (povos indígenas), dos quilombolas, dos
revelar o despertar da nossa percepção so-
ribeirinhos, dos assentados (camponeses), da
bre o que temos em comum com a Educação
pecuária (campinos, vaqueiros, pastores, gran-
Popular: a mesma preocupação e o mesmo
jeiros), das minas, da agricultura e dos caiça-
compromisso em construir e desconstruir
ras. Ou seja, diante dessa compreensão, o ter-
reflexões de cunho sociocultural junto aos
mo Educação do Campo refere-se a questões
educadores voltados para movimentos so-
que envolvem educação escolar em um espa-
ciais aliados aos educacionais.
ço vivido não unidimensional, explicitamente
diferenciado em aspectos políticos, culturais,
E, se nos anos 60, não estava tão ex-
plícito no movimento da Educação Popular,
hoje, ao se estudar a Educação do Campo,
não há como não chamar a temática, como
bem diz Ferreira & Brandão, ao debate sócio
econômico e geopolítico, pois milhares de
estudantes e camponeses fazem parte deste
processo marginal, criado pela ideologia dominante que carrega representações simbó-
econômicos e éticos. E uma das posturas que
cada um de nós, autores desta revista, estará
considerando é a necessidade de afastarmos
a possibilidade de indicação de um método
de ensino e aprendizagem da Matemática em
particular - a ser aplicado aos processos educativos de um dos grupos mencionados. Todavia, estamos também afastando a ideia de
excessiva atenção à garantia do acesso escolar
aos saberes (matemáticos) já universalizados.
licas na consciência, reproduzindo discursos
e práticas da elite, não condizentes com a
vida e ações das populações do campo, per-
em produzir um material introdutório para
durando nos trabalhos sociopedagógicos de
um conjunto de trabalhos que tratará da edu-
milhares de escolas Brasil adentro. (FERREI-
cação matemática do campo. Os temas elei-
RA & BRANDÃO, 2001) .
tos giraram em torno da educação indígena,
3
De todo modo, o objetivo aqui está
educação e cultura negras e educação dos
Antes de adentrarmo-nos especialmen-
camponeses, pensando-os todos na esfera
te na Educação Matemática do Campo, pare-
da educação matemática, já que os autores
ce importante destacar o entendimento que
não são antropólogos e, sim, educadores e
aqui assumimos, ou que devemos assumir, da
pesquisadores da educação matemática que
palavra ‘campo’ - dado que há interpretações
reconhecem o potencial em levar em conta
não consensuais Brasil afora. O termo ‘campo’
as tradições e os costumes – cultura – nos
será aqui usado para distinguir um lugar que
processos pedagógicos.
compreende os espaços físico-sociais da flo3
FERREIRA, F. J. & BRANDÃO, E.C. Educação do Campo: um olhar histórico, uma realidade concreta. Revista
Eletrônica de Educação. Ano V. No . 09, jul./dez, 2001.
5
No que se refere à educação matemá-
para o ‘outro’ grupo por meio de uma discus-
tica, em uma relação com a cultura dos gru-
são reflexiva, porém sem a expectativa de in-
pos do campo, vale destacar que, no Brasil, os
terpretar/modelar o conhecimento étnico em
estudos dos educadores matemáticos que di-
conhecimento (matemático) acadêmico. Do
zem respeito a contextos multiculturais e mul-
considerado, temos registradas declarações
tilíngues, em geral, baseiam-se nos princípios
como as seguintes:
da Etnomatemática. Isto se dá, talvez, devido
(...) meu objetivo é mostrar-lhes, quando
possível, como modelar na matemática acadêmica, de modo que os professores indígenas sejam capazes de usar seus conhecimentos étnicos para construir, com seus alunos,
o conhecimento matemático ocidental. Corrêa (2001)4.
à influência exercida pelo educador brasileiro
Ubiratan D’Ambrosio – o qual tem incentivado
educadores matemáticos em todo o mundo à
busca das contribuições das diversas culturas
ao desenvolvimento da Matemática, assim
como da Educação Matemática.
(...) o pesquisador etnomatemático deve validar o modelo que determinado segmento
constrói para a solução do problema que
aparece, procurando entender o modelo
Os educadores matemáticos brasilei-
ros envolvidos com os estudos etnomatemáticos têm apresentado atitudes diferencia-
apresentado (Scandiuzzi, 2002)5
das frente ao debate sobre como considerar
6
o conhecimento do ‘outro’, culturalmente
diferenciado em relação ao conhecimento
dito acadêmico/escolar. Alguns educadores/
têm estado, de uma maneira ou de outra,
pesquisadores procuram, entre outras medi-
envolvidos em experiências, projetos e di-
das, tomar o conhecimento cultural do grupo
nâmicas que procuram articular propostas
como ponto de partida para a construção dos
sob denominações como Educação e Cultu-
conhecimentos acadêmicos/escolares – cons-
ra, Educação Matemática e Cultura, Etnoma-
trução de uma ponte na direção da matemá-
temática e Educação do Campo, todos com a
tica acadêmica. Outros procuram manter as
convicção de que a formação de professoras
discussões dentro do próprio conhecimento
é um caminho contundente para a trans-
e/ou patrimônios culturais - ajudando o grupo
formação do pedagogo, mais ou menos in-
a compreender melhor o próprio uso mate-
tuitivo, para o pedagogo mais consciente -
mático dentro de suas comunidades culturais.
conscientização, aqui entendido, como em
E alguns outros educadores (etno) matemá-
Os autores reunidos nesta revista
Freire, como um ultimato para que ultra-
ticos apresentam a matemática acadêmica
4
CORRÊA, R.A. The education mathematics on the formation of indigenous teachers: preparing the teacherresearcher. In: Educação Matemática em Revista (SBEM, dec. 2001).
5
SCANDIUZZI, P.P. Água e óleo: modelagem e etnomatemática. In: Bolema, Rio Claro, Nº17. P. 52-58, 2002.
passemos a esfera da espontaneidade, que
compreensão própria – dos grupos do cam-
substituamos a consciência ingênua pela
po - sobre currículo. Com base em diferentes
consciência crítica.
leituras e pesquisas, Linlya Barbosa apresenta entendimentos próprios sobre currícu-
O artigo de autoria de Línlya Natás-
lo de matemática da educação do campo,
sia Sachs Camerlengo de Barbosa - intitulado
apontando que alguns defendem o currículo
“O Currículo de Matemática e a Educação do
com base em uma formação técnica frente
Campo” -, especialmente voltado para o cur-
aos trabalhos no campo; outros, que este
rículo de matemática da educação do cam-
deve oferecer aos estudantes do campo o
po, procura discutir formas de entendimento
acesso ao conhecimento das classes do-
e dinâmicas de operacionalização das esco-
minantes para apropriação e alteração da
las do campo. Como bem destaca a autora,
estrutura social e econômica; e, ainda, há
a busca de respostas a questões como “que
aqueles que cogitam a importância sobre os
escola do campo queremos?” e “que sujeitos
saberes da cultura camponesa.
queremos formar nessas escolas?” deve possibilitar os diversos entendimentos e discus-
De modo geral, as reflexões da auto-
sões a respeito dos currículos dessas escolas.
ra Línlya Barbosa se mostram carregadas de
tensões sobre o histórico de exclusão pre-
Compartilhando da ideia de outros
sente no meio rural, as lutas por reforma
estudiosos sobre tais questões, a autora afir-
agrária e as condições precárias do meio ru-
ma que o currículo deve selecionar conteú-
ral, a falta de escolaridade, os baixos salários
dos, conhecimentos e saberes, objetivando
e as condições degradantes de trabalho.
formar pessoas reflexivas sobre seus conhecimentos e condições socioculturais em busca
de transformações em tais aspectos. Nesta
perspectiva, compartilha com o especialista
Tomaz Tadeu da Silva a ideia de que “currículo é, definitivamente, um espaço de poder”,
complementando que “o currículo materializa o poder em uma sociedade ou cultura”.
Salienta, ainda, a autora, que, a res-
peito de currículo e educação do campo,
se tornam necessárias, nessas discussões,
problematizações e teorizações sobre uma
O artigo de Rogério Ferreira, sob o
título “Ressignificação da escola em contexto indígena: etnomatemática e ecologia
de saberes” coloca no centro das atenções
a descolonização da escola indígena e a diferenciação entre os processos de educação
indígena e de educação escolar indígena.
Salienta o autor que educadores e formadores de professores indígenas têm buscado
ressignificar a escola indígena, cooperando
para que esta se assuma em um duplo papel:
valorizar a realidade sociocultural do grupo
7
étnico, assim como – em uma busca de in-
educação indígena, mas sim, em uma con-
serção política - problematizar e apreender
sideração a respeito de pontos de vista de
os saberes da sociedade envolvente.
pessoas envolvidas (professores e gestores
indígenas), por meio de alguns depoimen-
Dos destaques em geral, saliento dois,
tos orais/reflexões sobre a importância, ou
de alguma maneira sobrepostos, como o pa-
não, de uma educação matemática ligada
pel da presença da escola em comunidade
ao contexto de cada grupo/escola indígena.
indígena e da matemática no currículo dessa
escola. Estes são pontos de destaque do tra-
Assim, o artigo de Rogério Ferreira
balho de Ferreira que o distinguem sobrema-
tem, como marco, conexões entre cultura e
neira entre aqueles que também se detêm na
Matemática, reforçando colocações encon-
educação indígena e educação matemática.
tradas em teorizações e práticas dos campos de estudos da Educação Matemática e
Em termos do ensino de Matemática,
Etnomatemática, deixando claro que o autor
compreendido equivocadamente por muitos
reconhece que estes têm em comum pers-
de nós como um movimento universalizado,
pectivas socioculturais.
este deveria, clama o autor, ir ao encontro
do outro, localmente contextualizado em
No terceiro artigo, intitulado “Edu-
espaço indígena – como uma possibilidade
cação Quilombola e Etnomatemática, é um
de não entrar em conflito com a organiza-
diálogo possível?”, Vanisio Luiz da Silva e
ção holística de sua sociedade e sua cultura.
Keli Mota Bezerra tecem um texto no sen-
O autor pede, ainda, que os conhecimentos
tido de projetar a possibilidade de um diá-
matemáticos escolares sejam trabalhados
logo entre as perspectivas de uma Educa-
com base em seus ‘saberes raiz’, buscando
ção Etnomatemática e as propostas de uma
fomentar um diálogo crítico com a Matemá-
Educação Quilombola.
tica, externa a esta ou àquela cultura indígena. Neste contexto, a etnomatemática surge
como possibilidade dialógica em paisagens
os autores fundamentam-se, de um lado,
de interculturalidade, impulsionando o pro-
em leituras, pesquisas e vivências cons-
tagonismo dos sujeitos indígenas na inten-
truídas no âmbito do Grupo de Estudos e
ção que têm de potencializar os processos
Pesquisas em Etnomatemática- GEPEM/
de descolonização de seus saberes.
As reflexões de Rogério Ferreira não
se constituem, de modo algum, em uma
revisão conceitual dos fatos e história da
De modo a construir tal diálogo,
FE-USP e, grande parte destes com base
nas teorizações de Ubiratan D’Ambrósio,
que orientam os estudos da área. De outro, apoiam-se em diálogos realizados com
interlocutores militantes e intelectuais en-
8
volvidos com a inserção digna dos saberes
mento da educação nas áreas de quilombos
sobre a história da África e dos afrodescen-
e, b) Promover formação continuada de pro-
dentes na educação, assim como em docu-
fessores da educação básica que atuam em
mentos que orientam a implementação de
escolas localizadas em comunidades rema-
uma educação quilombola, redigidos por
nescentes de quilombos.
uma equipe do Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti-
Fica, então, o convite carinhoso
zação e Diversidade (MEC/SECAD).
para uma leitura das reflexões aqui narradas. Aproveitem-nas nos sentidos emocional
Como mencionado, baseados em
e intelectual e questionem-nas para que os
documentos governamentais, no que se re-
movimentos prático-pedagógicos-filosóficos
fere aos quilombolas e suas condições edu-
que vêm sendo encaminhados e realizados
cacionais, os autores Silva e Bezerra nos
em torno da educação matemática do cam-
alertam para o fato de que, embora haja
po sejam cada vez mais produtivos no âmbito
mais de duas mil e duzentas comunidades
da formação de professores, formação de for-
remanescentes de quilombos, poucas delas
madores e práticas docentes, em especial.
possuem unidades educacionais com ensino fundamental completo. Nesta perspectiva, ao enfatizar ‘pensar uma educação
quilombola significa buscar caminhos em
diálogo com as comunidades’, Silva e Bezerra parecem procurar legitimar tais territórios como importantes contextos geográfico-políticos de resistência ao escravismo.
Em decorrência das práticas e teori-
zações desenvolvidas sob a visão do Programa Etnomatemática, que tem como elemento central a dinâmica dialógica, os autores
insistem que é fundamental trabalhar na
formação inicial e continuada de professores como um meio que permite acompanhar e apoiar as demandas propostas, por
eles apontadas como: a) Apoiar a formação
de gestores locais para o adequado atendi-
9
texto
1
O C urrículo
do C ampo
de
M atemática
e a
E ducação
Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa 1
Introdução
Compartilho com Silva (2011, p.147), a
ideia de que “[...] o currículo é, definitivamen
Coloco em discussão neste artigo o
currículo de Matemática
na educação do campo,
com o objetivo de apresentar formas de entendê-lo e, consequentemente, de materializá-lo
nas escolas do campo.
te, um espaço de poder”. O currículo mate-
“(...) é necessário
que, nas discussões a
respeito da educação do
campo, se construa uma
concepção própria de
currículo.”
rializa o poder em uma
sociedade ou cultura.
Como apontam Thiesen e Oliveira (2012),
é necessário que, nas
discussões a respeito da
educação do campo, se
Abandono aqui qualquer compreen-
construa uma concepção própria de currícu-
são a respeito do currículo que esteja apoia-
lo, o que ainda não foi feito e que tem como
da em neutralidade. A seleção de conteúdos,
consequência a apropriação do Estado desse
conhecimentos e saberes está pautada em
território ainda não habitado, com propostas
um objetivo anterior, que é o de formar pes-
educacionais “prontas e acabadas” (p.26).
soas, transformá-las. Silva (2011) afirma: “[...]
Nos trabalhos da área da Educação Matemá-
a pergunta ‘o quê?’ nunca está separada de
tica, a situação não é diferente; aliás, talvez
uma outra importante pergunta: ‘o que eles
pela escassez de trabalhos, seja ainda um
devem ser?’ ou, melhor, ‘o que eles ou elas
pouco mais crítica.
devem se tornar?’ Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que
Knijnik (2004) reforça a importância de pensar
vão ‘seguir’ aquele currículo” (p.15).
sobre o currículo:
1
Doutoranda em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo campus Araraquara.
10
Nosso papel nestes processos de inclu-
O campo: contextualizando
são ou exclusão de conhecimentos no
currículo escolar é, antes de tudo, e sobretudo, político. Tais processos, definin-
Este trabalho, ao abordar a educa-
do quais grupos estarão representados e
ção do campo, deve considerar o histórico
quais estarão ausentes na escola são, ao
de exclusão daqueles que vivem no meio
mesmo tempo, produto de relações de po-
rural e de lutas por reforma agrária, distri-
der e produtores destas relações: produto
de relações de poder, pois são os grupos
dominantes que têm o capital cultural
buição menos desigual de terras e melhores condições de vida.
para definir quais os conhecimentos que
são legítimos para integrar o currículo escolar; são também produtores de relações
de poder, porque influem, por exemplo,
no sucesso ou fracasso escolar, produzem
De acordo com pesquisa realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, no 12º Censo Demo-
subjetividades muito particulares, posi-
gráfico, dos 190.755.799 habitantes do terri-
cionando as pessoas em determinados
tório brasileiro, 29.830.007 residem em áreas
lugares do social e não em outros. Estes
lugares não estão, de uma vez por todas,
rurais (IBGE, 2012).
definidos. O campo da Educação Matemática é também um campo possível de con-
Não há dúvida de que a população
testação. Por isto, político (KNIJNIK, 2004).
rural, em porcentagem, tem diminuído ao
longo dos anos: em 1970, representava cer-
Com base em leituras e pesquisas,
ca de 44,1% de toda a população do Brasil;
apresentarei neste trabalho diversos enten-
em 1980, 32,4%; em 1991, 24,4%; em 2000,
dimentos do currículo de Matemática na
18,8%; e, finalmente, em 2010, 15,6% (IBGE,
Educação do Campo. Mostrarei, por exem-
2012). Este número, apesar de reduzido,
plo, que há quem defenda o currículo como
não pode ser ignorado.
base de uma formação técnica para os trabalhos no campo; há quem vise proporcio-
Em que condições vive essa popula-
nar aos estudantes do campo o acesso ao
ção? Diversos dados revelam a precariedade
conhecimento típico das classes dominan-
de vida no meio rural, seja pela concentra-
tes, para que eles se apropriem e possam
ção de terras, seja pela falta de escolaridade,
alterar a estrutura social e econômica em
seja pelos baixos salários e condições degra-
que vivem; há quem entenda que nos currí-
dantes de trabalho.
culos devem estar presentes os saberes da
cultura camponesa.
Os movimentos sociais, e aí desta-
co o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), pedem por uma reforma
11
agrária, que altere substancialmente a dis-
núncias desses problemas foram feitas por
tribuição de terras no país, questionando a
várias pesquisas, como a de Leite (1999) e a
legitimidade da propriedade privada face às
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
desigualdades sociais. Martins (1999, p.100)
Educacionais Anísio Teixeira (2007).
ressalta “que a luta pela terra, da qual deriva
a luta pela reforma agrária, é também uma
Em resposta a essa situação, os mo-
luta pela inclusão, pela inserção social ativa,
vimentos sociais se mobilizaram fortemen-
produtiva, participante e criativa na socie-
te para que houvesse uma transformação
dade, é luta por dignidade e respeito”.
significativa da educação no meio rural.
Um breve histórico pode ser encontrado em
A luta pela reforma agrária está as-
Munarim (2008).
sociada à luta por mudanças nas condições
de vida no meio rural e, entre elas, está a da
Um marco importante é a realização
educação. As taxas de analfabetismo refle-
da 1ª Conferência Nacional por uma Educa-
tem a situação precária nesse aspecto: en-
ção Básica do Campo, que ocorreu em 1998,
quanto nas cidades a porcentagem de anal-
em Luziânia-GO. A “educação rural”, carre-
fabetos é de, aproximadamente, 8,6%; no
gada de descaso e de subordinação ao capi-
meio rural, essa taxa é de 23,7%, de acordo
tal, é substituída por uma nova concepção
com o Censo de 2010 (IBGE, 2012).
de educação, a “educação do campo”. Esta,
para Munarim (2008), carrega diferentes
Educação do campo
preceitos políticos e pedagógicos. Assim, a
mudança seria tamanha que não “suporta-
O direito ao acesso à educação para
ria” os mesmos termos como referência.
todos, incluindo aqueles que residem em espaços rurais, está garantido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº
Entendimentos sobre o currículo de
matemática na educação do campo
9.394, de 20 de dezembro de 1996, de modo
que o artigo 28 trata das particularidades da
Diante do exposto, apresento qua-
educação para a população rural.
tro formas de se entender o currículo de
Matemática na educação do campo. Para
O descaso, porém, com que histori-
tal, trago artigos de periódico2, de anais de
camente tem sido tratado o tema, deixou
evento3(ambos da área da Educação Mate-
marcas na educação dessas pessoas. Não é
mática), dissertações e teses4, que materiali-
raro referirem-se à educação na zona rural
zem a diversidade de entendimentos.
como precária, deficiente e atrasada. De-
12
O estudo que realizei para selecionar
Como segundo entendimento está
os trabalhos que citarei aqui foi baseado na
aquele que visa incluir, nos currículos, os
metodologia da Análise Textual Discursiva,
saberes locais dos camponeses – não mais
de Moraes e Galiazzi (2007).
como meio, mas como fim. Assim, a escola,
como local privilegiado para acesso ao co-
Essas formas têm suas intersecções
nhecimento, deve também incluir, em seus
e seus distanciamentos. Também não se
currículos, os saberes que historicamente
esgotam, havendo possibilidade de outros
deles foram excluídos, como os dos campo-
entendimentos, que não esses. Apresento
neses. Os trabalhos de Costa (1998), Oliveira
aqueles que me saltaram aos olhos ao anali-
(1998), Knijnik (2001), Fontana (2006), Lima e
sar o material que selecionei.
Monteiro (2009), Bandeira e Morey (2010), e
Lima e Carvalho (2010), vão nesse sentido.
Um primeiro entendimento que
apresento é o de que o currículo de Mate-
mática das escolas do campo deve ter algo
que o conhecimento da vida cotidiana dos
de específico: os meios (para se chegar ao
estudantes das escolas do campo pode ser-
mesmo fim). Isto é, “parte-se da realidade”
vir como base para alcançar o conhecimen-
para se chegar ao objeto matemático. O co-
to dito científico, nesses trabalhos está pre-
tidiano, a vida real e o campo são elementos
sente uma equiparação de valor entre esses
de “motivação”, de “aplicação” e de “contex-
saberes que serão incorporados ao currícu-
tualização” que devem ser “traduzidos” para
lo e aqueles que lá já estão. Assim, não se
a matemática escolar, presente nos currícu-
trata de adicionar a ele informações de ou-
los. Alguns trabalhos que trazem essa abor-
tras culturas, como a do campo, a título de
dagem são: Vargas e Fantinato (1998); Costa
curiosidade, de informação ou de folclore,
(2005); Paniago e Rocha (2007); Paniago, Ro-
mas trata-se de torná-lo, de fato, um territó-
cha e Moraes (2010); e Lopes (2010).
rio político (SILVA, 2011).
Alguns pesquisadores colocam-se
Um terceiro entendimento é o de
contrários a esse ponto de vista, como Duar-
acesso ao mesmo conhecimento que o es-
te (2012, p.7): “evitamos aquilo que se deno-
tudante teria em qualquer outra escola.
mina ‘partir da realidade do aluno’ pois en-
Este encontra subsídios em Bourdieu (2007,
tendemos que esta operação acaba, muitas
p.62), que afirma que a instituição escolar
vezes, hierarquizando os conhecimentos”.
deve “desempenhar a função que lhe cabe,
Diferentemente dos que entendem
2
Boletim de Educação Matemática (BOLEMA).
3
Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM).
4
Disponíveis no Banco de Teses da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
13
de fato e de direito, ou seja, a de desenvol-
que analisa criticamente as ações políticas
ver em todos os membros da sociedade, sem
referentes à educação do campo, formado
distinção, a aptidão para as práticas cultu-
por movimentos sociais, organizações sindi-
rais que a sociedade considera como as mais
cais, universidades, institutos federais e ór-
nobres”, e em Saviani (2011, p.14), para quem
gãos governamentais – reprovou fortemente
“a escola diz respeito ao saber elaborado e
os cursos de formação técnica propostos
não ao conhecimento espontâneo; ao saber
pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensi-
sistematizado e não ao saber fragmentado;
à cultura erudita e não à cultura popular”.
Alguns trabalhos evidenciam essa
forma de conceber o currículo nas escolas
do campo a partir de falas de professores e
observação da realidade escolar, como em
Alves e Monteiro (2010).
Um quarto entendimento coloca que
a formação técnica para o trabalho no campo deve fazer parte dos currículos dessas
escolas. O trabalho de Nascimento (2010) e
no Técnico e Emprego (PRONATEC) para os
trabalhadores e estudantes do campo, conhecido como PRONATEC Campo.
Considerações finais
Diante desses quatro entendimen-
tos a respeito do currículo de Matemática para escolas do campo apresentados,
concluo que não há, na produção acadêmica, consenso sobre o tema. Os autores
baseiam-se em diferentes referenciais teó-
as falas de alguns entrevistados por Fontana
ricos para sustentar seus pontos de vista.
(2006) têm essa perspectiva.
Questões como “que escola do campo queremos?” e “que sujeitos queremos formar
Gramsci (1982), ao tratar da “esco-
nessas escolas?” devem servir de pressu-
la desinteressada”, posiciona-se contrário
postos para decisões a respeito dos currí-
a esse entendimento. Para ele, a formação
culos dessas escolas, em especial, no que
técnica determinaria o futuro de certo grupo
se refere à Matemática, lembrando que o
que, claramente, não pertence à elite; esta,
currículo, como afirmam Silva (2011) e Kni-
por sua vez, poderia ter acesso a conheci-
jnik (2004), é um território político.
mentos não diretamente ligados ao mundo
do trabalho e, assim, não precisariam preocupar-se com seu futuro profissional.
Também contrário à formação técni-
ca às pessoas do campo, o Fórum Nacional
de Educação do Campo (FONEC) – um grupo
14
REFERÊNCIAS
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software Tinkerplots. In: ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 10, 2010, Salvador.
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17
texto
2
Ressignificação da escola em contexto indígena:
Etnomatemática e Ecologia de Saberes
Rogério Ferreira1
1. Primeiras palavras
cultura, ações e concepções são reiteradas
e criativamente amadurecidas. Nesse con-
Os diferentes povos indígenas que
texto, modos de educar surgem em estreito
habitam o território brasileiro protagonizam
diálogo com a vitalização dos conhecimen-
um aprazível fenômeno de diversidade socio-
tos locais construídos ao longo do tempo.
cultural. Seus saberes evidenciam ao mundo
modos de vida localmente contextualizados,
Tradições educativas arraigam-se no
oportunizando a todos compreender a cons-
contexto em que são erguidas, tendo força
trução do conhecimento como matriz gera-
suficiente para se constituírem em dina-
dora de distintas epistemologias. Logo, não
mizadoras de sociedade e cultura. Por isso,
subsiste a antiquada concepção que ainda
são distintos os modos de educar construí-
hoje visualiza conhecimento como objeto
dos por todo o mundo. O modelo escolar de
unilinear, passível de hierarquização.
educação constitui um deles. Não se trata,
portanto, de modelo global. A presença de
Cada nação indígena se fortalece
instituições escolares, em grande parte dos
em raízes ancestrais que sustentam modos
espaços socioculturais por todo o planeta,
específicos de sobrevivência e de transcen-
se concretiza como consequência do ad-
dência. Nos caminhos trilhados, edifica-se
vento das colonizações. Isto revela que, em
a cultura. Nesta, manifestações múltiplas
muitos dos territórios em que a escola se faz
se organizam de modo dinâmico por meio
presente, o faz como instrumento estrangei-
da ação de cada ser humano que a tem
ro, como alienígena. (FERREIRA, 2002).
como fundamento ao mesmo tempo em
que a transforma. No movimento continu-
Visualizar a diversidade de conhe-
ado de mudança que se estabelece em cada
cimentos, bem como os frutos advindos de
1
Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto IV da Universidade Federal de
Goiás. Email: [email protected]
18
cada saber local – como é o caso da escola –,
mento etnocida instituído por grande parte
a partir de uma ecologia de saberes, retira do
das escolas construídas nestas comunida-
centro a monocultura da ciência, fazendo, da
des. Como elemento descontextualizado,
pluralidade epistemológica, meio favorável à
instituem violência contra línguas, costu-
prática do diálogo horizontal entre culturas,
mes, visões de mundo, rituais, enfim, con-
e não meio propulsor de sobreposição de sa-
tra saberes milenares fundamentais para a
beres. Interações interétnicas não implicam
sustentabilidade sociocultural do povo que
necessariamente
os têm como referência.
o comprometimento da
autonomia de cada povo. Esse fundamento
surge como transformador qualitativo dos en-
Diante deste quadro, educadores in-
contros interculturais ocorridos por meio dos
dígenas e formadores de professores indíge-
movimentos colonizadores (SANTOS, 2010).
nas têm buscado ressignificar a escola em
contexto indígena, tendo como fundamento
A partir destas considerações iniciais,
um duplo papel: (i) a valorização dos saberes
objetiva-se mostrar que, muitas vezes, os mo-
do povo como conhecimentos primeiros; (ii)
dos específicos de educar de cada etnia indí-
a problematização crítica dos conhecimen-
gena sequer se assemelham à educação em
tos da sociedade envolvente como meio ne-
seu formato escolar. Educação Indígena e Edu-
cessário para inserção política do indígena
cação Escolar Indígena não convergem para
nos espaços decisórios desta sociedade.
um conceito comum. Trata-se de meios diferenciados. Esse entendimento introdutório se
O educador Ubiratan D’Ambrosio
faz essencial em uma abordagem que tem por
denuncia que
pretensão refletir a escola em comunidade inUma forma, muito eficaz, de manter
um indivíduo, grupo ou cultura inferiorizado é enfraquecer suas raízes, removendo os vínculos históricos e a historicidade do dominado. Essa é a estratégia
mais eficiente para efetivar a conquista.
dígena, bem como a presença da Matemática
no currículo desta escola.
2. O papel da escola em território
indígena
(D’AMBROSIO, 2001, p.40).
Sendo fruto direto ou indireto de
movimentos colonizadores, a presença da
Essa estratégia de conquista ex-
escola em comunidades indígenas vem as-
plicitada por D’Ambrosio tornou-se ação
sumindo, no decorrer do tempo, papéis que
comum da educação escolar indígena em
trabalham contra a valorização dos saberes
diferentes regiões do Brasil durante muito
próprios provenientes da cultura dos indi-
tempo e, na atualidade, não é difícil encon-
víduos a que se destina. É inegável o movi-
trar escolas que ainda a utilizam, mesmo
19
quando não há plena consciência desta
a fazer colares, trabalho a Matemática, a
ação por parte de seus gestores. Essa rea-
arte. (RODRIGUES et al., 2009, p.271).
lidade aponta para a necessidade de uma
quebra radical com modelos escolares que
desvalorizam epistemologias indígenas.
Deste modo, ele defende a valoriza-
ção das raízes do povo, dos saberes que correspondem à sua identidade. Mas diz ainda:
Nesse contexto, o educador afirma
Nós moramos num bloco fechado. Qual-
que “a estratégia mais promissora para a
quer aldeia indígena do Brasil hoje se en-
educação, nas sociedades que estão em tran-
contra nessa mesma situação. Nós estamos
sição da subordinação para a autonomia, é
cercados. À esquerda, à direita, ao norte, ao
restaurar a dignidade de seus indivíduos,
sul, em todas as direções, estamos rodeados
reconhecendo e respeitando suas raízes”
pelo não indígena. Esta é uma situação difícil. (RODRIGUES et al., 2009, p. 270).
(D’AMBROSIO, 2001, p.42). Diz ainda que:
“Conhecer e assimilar a cultura do dominador se torna positivo desde que as raízes do
dominado sejam fortes” (D’AMBROSIO, 2001,
p.43). Estes pensamentos fortalecem a defesa do duplo papel da educação escolar indígena supramencionado neste texto.
Em harmonia a estas ideias encon-
tra-se a concepção do educador indígena
Maximino Rodrigues, da etnia Guarani Kaiowá. Ele diz que, em área indígena, a escola
deve ser representativa
[...] daquele grupo, daquela nação, que
Ao retratar esta realidade, Rodri-
gues (2009) defende também que o domínio dos conhecimentos externos pelos indígenas surge na contemporaneidade como
necessidade. Nessa dualidade, formada por
elementos de natureza intra e intercultural, fica claro o desafio que os povos indígenas hoje enfrentam para fazer da escola
instrumento efetivo de valorização de sua
realidade sociocultural e meio favorável à
presença crítico-política da voz indígena
nos espaços sociais a eles negados há mais
de cinco séculos (FERREIRA, 2004).
ensine a língua, as danças, os rituais, as
cerimônias, que seja uma escola com autonomia própria da comunidade local. Sa-
3. A Educação Matemática no contexto da Educação Escolar Indígena
bemos que vários pais não estão passando
os conhecimentos para os filhos. Hoje isso
ficou na responsabilidade da escola. Eu,
Como categoria de conhecimento
particularmente, assumo a minha escola.
supervalorizado da cultura ocidental cristã,
Ensino dança, ensino a escrever e a ler na
a Matemática ganha status privilegiado nas
língua, ensino as brincadeiras, ensino a
escolas que se espalharam por todo o mun-
fazer colares. Quando eu estou ensinando
20
do por meio dos processos de colonização.
la quanto em comunidade indígena, às ne-
Com isso, em escolas indígenas, o ensino de
cessidades do povo. É preciso ressaltar que,
Matemática carrega, em sua origem, a mar-
além disso, encontra-se a necessidade de
ca da sobreposição de um conhecimento,
posicionar em primeiro plano, como base,
equivocadamente compreendido como uni-
seus saberes raiz, buscando fomentar um
versal, a outro, localmente contextualizado
diálogo crítico com a Matemática externa.
em espaço indígena.
Evidencia-se aqui, no âmbito da Matemática, o duplo papel da escola indígena apre-
A não compreensão de que cada
sentado na seção anterior.
povo indígena possui modos próprios de
mensurar, abstrair, contar, inferir, resolver
Gestores e professores indígenas, ao
situações-problema e, entre outros, produzir
assumirem sua escola conjuntamente com
tecnologia, levou professores não indígenas
sua comunidade, certamente terão mais
a não problematizarem competências e con-
condições de definir de que modo a Mate-
teúdos da Matemática escolar em relação à
mática organizada na sociedade envolvente
epistemologia própria, não só dinamizada,
poderá dialogar com os interesses e necessi-
mas cotidianamente vivida pelos alunos in-
dades de seu povo. A compreensão que têm
dígenas. Neste âmbito, a visão disciplinar de
da Matemática em espaço de interculturali-
mundo de quem se posiciona como detentor
dade é aspecto basilar para a construção de
do conhecimento promove conflito com a or-
caminhos curriculares, de fato representati-
ganização integral, holística, de sociedade e
vos, de suas concepções. Alguns alunos do
cultura em realidades indígenas.
curso de Educação Intercultural, oferecido
pela Universidade Federal de Goiás, os quais
O mito de a Matemática constituir-
são professores e/ou gestores indígenas em
-se como categoria universal de conhe-
escolas de suas aldeias, fazem as seguintes
cimento, portanto presente em todos os
reflexões sobre a importância, ou não, da
espaços socioculturais, promove desequi-
Matemática no contexto de suas escolas2:
líbrio em contextos de encontro intercultural. Por isso, não se pode mais colocar
a Matemática como conhecimento maior,
mas sim, sujeitar o seu uso, tanto em esco-
É importante ensinar Matemática nas
aldeias porque o capitalismo do mundo
contemporâneo é muito forte e já está na
comunidade (C. Javaé).
2
Os nomes utilizados para identificar os professores/gestores indígenas são fictícios, conforme acordo
firmado entre pesquisador e sujeitos da pesquisa. No entanto, o registro das etnias em seus sobrenomes é verídico.
21
Saber Matemática é importante porque
o mundo capitalista está entrando rapidamente em nossas sociedades.
Antigamente não
existia
cotação
de preço ou valores de mercado.
Temos que entender e dominar as
formas e estruturas matemáticas
(A. Karajá).
Hoje a Matemática
na aldeia é muito
necessidades de cada comunidade e da
dualidade de saberes
“(...) essa imersão dos
alunos numa cultura de
investigação favorece
o desenvolvimento da
capacidade de arguição,
criticidade, autonomia,
pensamento científico e
curiosidade.”
importante porque nós precisamos dela
para nos defender dos kupe3. Em tudo o que
fazemos no trabalho – caça, pesca, artesanato, etc. – também usamos Matemática (B.
Apinajé)
advinda da interculturalidade, o ensino
e a aprendizagem da
Matemática
poderão
contribuir, tanto para
a valorização de sua realidade sociocultural,
quanto para a inserção
político-acadêmica dos
cidadãos indígenas em
múltiplas vertentes da
sociedade nacional. Seus modos de compreender congraçam com os fundamentos
que vêm alicerçando o campo de conhecimento da etnomatemática.
Atualmente, a Matemática é um instrumento muito importante para os povos indígenas. Mas, desde o surgimento, meu povo
sabia usar Matemática. O conhecimento
tradicional da Matemática vem da natureza. Como professor, podemos aprofundar o
conhecimento tradicional (D. Xerente).
Somos professores indígenas e temos a
necessidade de aprender Matemática.
Vejo que a comunidade reclama muito de
os professores de Matemática não serem
índios. Isso dificulta para os alunos, ainda mais porque alguns não sabem falar
português (E. Karajá).
22
Este campo, ao compreender a Ma-
temática como constructo sociocultural, se
consolida como promotor de diálogo horizontal entre culturas. Ou seja, um dos aspectos basilares da etnomatemática para
debater a construção de saberes sob a perspectiva local está na criticidade dialógica
acerca da interculturalidade. E, para isso, a
transdisciplinaridade surge como diretriz,
buscando promover reflexões que perpassem pelo difícil terreno da harmonização
entre educação indígena e educação escolar
Em suas falas, professores e gesto-
indígena (D’AMBROSIO, 2012).
res indígenas mostram que, a partir das
3
Kupe significa não indígena nas línguas dos povos timbira.
4. Palavras finais
Uma importante conclusão a que se
chega a partir destas bases é a de que o penNeste texto, procuraram-se promo-
samento secular que compreende a escola em
ver reflexões iniciais sobre a possível ressig-
espaço indígena como “escola para o povo”
nificação da escola em contexto indígena, a
retira do sujeito indígena o protagonismo na
partir de uma aproximação, também inicial,
construção de uma escola efetivamente re-
à etnomatemática e à ecologia de saberes.
presentativa de suas necessidades e vontades.
Neste caminho, diretrizes foram aguçadas na
Portanto, espera-se que esse pensamento seja
expectativa de motivar uma compreensão da
transcendido para a “escola do povo”, como
interculturalidade que possa fazer aflorar no-
lhe é de direito, conforme legisla a constitui-
vas histórias para a presença de escolas em
ção brasileira em vigor desde 1988.
comunidades indígenas.
Fica então o desejo de que a concepção
A primeira diretriz buscou eviden-
de educação como “[...] o conjunto de estra-
ciar que, se a ação escolar acarretar em
tégias desenvolvidas pelas sociedades para (i)
sobreposição de práticas de ensino e apren-
possibilitar a cada indivíduo atingir seu poten-
dizagem tradicionais, então ela estará se
cial criativo; (ii) estimular e facilitar a ação co-
mantendo na posição de instrumento da
mum, com vistas a viver em sociedade e a exer-
colonização. A segunda buscou colocar em
cer a cidadania” (D’AMBROSIO, 1999, p.99), para
foco a necessidade de a escola indígena as-
que, em conjunto com as raízes da ecologia de
sumir-se em um duplo papel: valorizar sua
saberes (SANTOS, 2010) e da etnomatemática,
realidade sociocultural, ao mesmo tempo
tenha força para fazer surgir diálogo novo em
em que, como estratégia de inserção polí-
paisagens de interculturalidade, impulsionan-
tica, problematiza os saberes da socieda-
do o protagonismo dos sujeitos indígenas na
de envolvente. Já a terceira diretriz trouxe
intenção que têm de potencializar os processos
para o centro das atenções o pensamento
de descolonização de seus saberes.
indígena acerca de conhecimentos de natureza matemática, defendendo que professores e gestores educacionais indígenas,
sob o respaldo de sua comunidade, necessitam ser protagonistas da construção curricular. Nesse contexto, a etnomatemática
surge como possibilidade dialógica.
23
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24
texto
3
Educação Quilombola
diálogo possível?
e
Etnomatemática:
é um
Vanisio Luiz da Silva1
Keli Mota Bezerra2
Desde que a “etnomatemática” teve
com militantes e intelectuais envolvidos com
seus fundamentos e conceitos defendidos por
a inserção digna dos saberes sobre a história
Ubiratan D’Ambrósio no ICME de 1985 (Inter-
da África e dos afrodescendentes na educação.
national Congress on Mathematical Education/1985), o programa vem sendo ressigni-
Entretanto, tal aproximação impõe
ficado por educadores que incorporaram os
o delineamento e a compreensão, ainda
mesmos em suas práticas, configurando uma
que superficial, dos mesmos, para que as
diversidade que, por um lado, é objeto da
possibilidades de contribuição mútua pos-
apreciação de críticos, e por outro, tem orien-
sam ser melhor compreendidas.
tado os atos e projetos ao redor do mundo.
E é exatamente essa amplitude que
Fundamentos da Educação Etnomatemática
orienta a proposta de refletir sobre um diálogo possível entre a Educação Etnomate-
Os estudos em Etnomatemática des-
mática (VERGANI, 2008) e os documentos de
tacam as dimensões: histórica, epistemológi-
orientação e implementação das ações para
ca, cognitiva, política, educacional e conceitual,
a educação das relações étnico-raciais (BRA-
definidas por D’Ambrósio (2011). Destas, ini-
SIL, 2004; 2006), fundamentados em leituras
ciamos pela histórica, que tomamos como a
e vivências com educadores e pesquisas da
mais relevante aos propósitos deste artigo,
área – especialmente do Grupo de Estudos e
pois ela conduz à compreensão do raciona-
Pesquisas em Etnomatemática da Faculdade
lismo (técnico) quantitativo – interpretado
de Educação de São Paulo (GEPEm/FE-USP) – e
como o ápice do desenvolvimento humano
1
Professor da rede municipal de São Paulo - Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo,
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática GEPEm da FE/USP, Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Etnomatemáticas Negras e Indígenas da UFMT-GEPEN.
2
Professora da rede municipal de São Paulo - Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, Membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática GEPEm da FE/USP.
25
– ser fruto de um processo de organização
na ciência pós-moderna, a dinâmica de geração de conhecimento e, consequentemente,
o retorno desse conhecimento àqueles responsáveis pela sua produção, constitui um
ciclo indissolúvel, e as tentativas de estudar
esse ciclo isolando seus componentes é inadequado para sistemas de conhecimento
não ocidentais.
social e de produção que vem se constituindo ao longo dos últimos três mil anos.
Deste, se destacam quatro grandes
marcos: a racionalidade grega, a cristã, a
moderna e a pós-moderna, sendo que este
último embute, em si, possibilidades e olha-
res distintos à própria lógica da moderni-
conduzido os olhares para a forma como os
dade, fato que tem levado muitos à busca
conhecimentos individuais, ao serem comu-
de compreender – pela ótica da Matemá-
nicados e compatibilizados com o grupo, se
tica – valores, crenças e visões do mundo
incorporam aos comportamentos psicológi-
que influenciam as decisões dos grupos nos
cos e culturais, coletivos e individuais. Tais
processos de mensuração, quantificação,
esforços têm se concentrado nos modos de
classificação e avaliação do tempo, espaço e
quantificar, mensurar e avaliar em interação
formas. Fundamentados na evolução da pró-
com os valores e as crenças locais.
Quanto à dimensão cognitiva, ela tem
pria ciência, uma vez que a:
ciência moderna vai desenvolvendo os instru-
causas primeiras são organizados [mitos de
mentos intelectuais para sua crítica e para
criação]. A morte, tão evidente, talvez não
a incorporação de elementos de outros sistemas de conhecimento. Esses instrumentos
seja um fim, mas o encontro com as cau-
intelectuais dependem fortemente de uma in-
sas primeiras. [...] Só o responsável pelas
terpretação histórica dos conhecimentos de
causas primeiras [um divino] poderia co-
egípcios, babilônicos, judeus, gregos e roma-
nhecer o mistério do que vai se passar?”
nos, que estão nas origens do conhecimento
moderno (D’AMBRÓSIO, 2011, p. 29).
Isto porque “explicações para as
A dimensão epistemológica conduz à
busca de sistemas de conhecimento desenvolvidos socioculturalmente, pressupondo
que sejam respostas às pulsões de vida. Portanto, na interação do humano com o am-
(D’AMBRÓSIO, 2011, p. 34).
A dimensão política tem como pres-
suposto que os conhecimentos acumulados
e desenvolvidos às margens do Mediterrâneo, que foram difundidos pelo planeta
como o mais elevado conhecimento humano, seguem uma estratégia de dominação
biente, proporcionando modos próprios de
que levou ao extermínio indivíduos, povos e
explicar e entender a realidade. Visto que,
culturas, por resistirem à imposição de um
para D’Ambrósio (2011, p. 37-38):
conhecimento fundamentado na crença de
seres superiores e inferiores.
26
No Brasil, os processos de resistên-
sição da subordinação para a autonomia,
cia que se estabeleceram a partir da colo-
é restaurar dignidade de seus indivíduos,
reconhecendo e respeitando suas raízes.
nização, na prática, foram fundamentais à
dinâmica da cultura,
modificando
tradi-
ções, valores, crenças,
manifestações artísticas, religiosas e até as
práticas científicas do
colonizador e do colonizado. É por isso que
nos posicionamos, não
somente pelo reconhecimento e preservação
dos valores culturais
dos indivíduos e grupos
submetidos
ao
Reconhecer e respeitar as
“A Etnomatemática
não só reconhece
o papel do sistema
educacional como
fonte de transformação
social, mas como um
instrumento de resgate
de conhecimentos,
valores e culturas dos
povos colonizados
enquanto constituinte da
nação.”
raízes de um indivíduo não
significa ignorar e rejeitar
as raízes do outro, mas,
num processo de síntese,
reforçar suas próprias raízes. Essa é, no meu pensar,
a vertente mais importante da etnomatemática
(D’AMBRÓSIO, 2011, p. 42).
Por fim, entendemos
que a dimensão educacional, não propõe
“a rejeição da Matemática
acadêmica”
domínio colonial, mas
(D’AMBRÓSIO, 2011), ou
também pela incorpo-
a substituição desta.
ração de seus valores e práticas como cons-
Muito pelo contrário, defendemos a escola
tituintes da nossa visão do mundo.
como o ambiente de difusão do conhecimento científico, para quem a boa mate-
A etnomatemática não só reconhece
mática é essencial à atuação crítica sobre o
o papel do sistema educacional como fonte
mundo. Para tanto, parece imprescindível a
de transformação social, mas como um ins-
inclusão de valores, visões e propostas mais
trumento de resgate de conhecimentos, va-
solidárias e cooperativas de sociedade.
lores e culturas dos povos colonizados enquanto constituinte da nação. Neste caso,
A convicção de que o raciocínio qua-
tratamos especialmente das manifestações
litativo – preponderante nas sociedades tra-
culturais dos africanos escravizados no
dicionais – é essencial à reorganização da
Brasil e seus descendentes, pois, de acordo
sociedade globalizada, pois este permite crí-
com as orientações:
ticas a partir de racionalidades pautadas em
solidariedade e cooperação. Daí que vem a
a estratégia mais promissora para a educação, nas sociedades que estão em tran-
afirmação de D’ Ambrosio (2011, p. 44 – 45):
27
a etnomatemática privilegia o raciocínio
ficismo eurocêntrico que se mostraram ina-
qualitativo. Um enfoque etnomatemático
dequados aos anseios da população negra. E,
sempre está ligado a uma questão maior, de
natureza ambiental ou de produção, e a etnomatemática raramente se apresenta des-
mesmo diante dos inquestionáveis avanços,
a reforma não debruçou sobre os estigmas
vinculada de outras manifestações culturais,
que marcaram a inserção perversa da popu-
tais como arte e a religião. A etnomatemáti-
lação negra na sociedade.
ca se enquadra perfeitamente numa concepção multicultural e holística de educação.
Vista de outra perspectiva, essa luta
por educação básica enquanto ideal de igual
Disso, o autor conclui que, diante de
um mundo no qual as pessoas circulam com
muito mais agilidade, fazendo com que as
relações entre diferentes sejam muito mais
próximas e contínuas, criando um contexto
de convivência entre as diferenças, faz com
dade na diversidade inspirou o projeto de
Educação Para Todos (EPT), capitaneado pela
Organização das Nações Unidas (ONU), que
assumiu: “a educação é um direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as
idades, no mundo inteiro” (UNESCO, 1990).
que a diferença seja a característica mais
marcante da educação atual.
Fundamentos
Quilombola
da
Educação
A confluência de potencialidade e di-
reito levou à instituição a encaminhar metas
a serem atingidas pelos países participantes
na Conferência Mundial sobre Educação, em
Jomtíen, 1990, e alcançá-las, ainda é um dos
Do ponto de vista da população negra,
maiores desafios colocados para a ONU e
o Brasil da virada do século XX foi marcado
por extensão para toda a humanidade. O do-
pela luta de inserção digna na educação es-
cumento desta reafirma o compromisso dos
colar negada pelo escravismo colonial, cujas
países com uma escola de Educação Básica
cicatrizes ainda permanecem vivas. Algumas
para todos, transcrevendo seus objetivos e
contradições herdadas desse modelo ainda
abrangência e instrumentos essenciais.
influenciam, de modo especial, a autoestima
e o desempenho escolar da criança negra.
Os conteúdos básicos e as heranças
linguísticas, culturais e espirituais, foram in
O movimento de renovação da edu-
terpretados como esforços de satisfação das
cação ganhou projeção por defender uma es-
necessidades básicas de aprendizagem. Os
cola pública e gratuita para todos na reforma
modelos didático-pedagógicos – vinculados
educacional de 1930, mas desvelou a crença
aos valores, culturas e crenças locais – como
da elite intelectual e da sociedade na ciência
estratégia de adequação e busca pelo forta-
eugênica, na objetividade técnica e no cienti-
lecimento das identidades e raízes culturais
28
das populações locais. Entendimento que de
O movimento da ONU, estimulado
algum modo contribui para a transforma-
por intelectuais e ativistas envolvidos com
ção dos conteúdos e estratégias de ensino
a inserção digna dos saberes sobre a África e
em instrumentos de diálogos horizontais
afrodescendentes nas abordagens escolares,
entre contextos, culturas e povos. Portanto,
mobilizou-se em torno de um grupo de tra-
meios, não um fim em si.
balho para orientar parâmetros de políticas
públicas que resultou em dois documentos
Passada uma década da conferên-
cia de Jomtíen, a UNESCO, em 2000, reuniu
novamente os países signatários no Fórum
Mundial de Educação de Dakar para uma
avaliação do projeto, cujo relatório – no parágrafo 5º – afirma:
a avaliação de EPT 2000 demonstra que
que têm servido de base aos debates em
torno da questão: as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, 2005 e as Orientações e Ações para a Educação das Relações
Étnico-Raciais, 2006.
houve progresso significativo em muitos países. Mas é inaceitável que, no ano
2000, mais de 113 milhões de crianças continuem sem acesso ao ensino primário e
Produzidos por equipes multidisci-
plinares do Ministério da Educação/Secreta-
que 880 milhões de adultos sejam analfa-
ria de Educação Continuada, Alfabetização
betos; que a discriminação de gênero con-
e Diversidade (MEC/SECAD), o documento
tinue a permear os sistemas educacionais;
(BRASIL, 2006, p. 13) informa que:
e que a qualidade da aprendizagem e da
aquisição de valores e habilidades huma-
se dirige a diversos agentes do cotidiano
nas não satisfaçam as aspirações e neces-
escolar, particularmente, aos(as) professo-
sidade dos indivíduos e das sociedades
res/as, trazendo, para cada nível ou moda-
(UNESCO, 2001, p. 7).
lidade de ensino, um histórico da educação
brasileira e a conjunção com a temática
Ele revela também que o Brasil acu-
étnico-racial, adentrando na abordagem
mula déficits educacionais históricos, cuja
desses temas no campo educacional e con-
superação requer esforços radicais do Esta-
cluindo com perspectivas de ação.
do e uma vigilância constante da sociedade,
de modo que a educação para todos seja um
desafio de todos. Isso vem elevando a cons-
todas as modalidades, das quais destaca-
ciência dos educadores e dirigentes educa-
mos a educação infantil, a quilombola e as
cionais quanto à necessidade de ampliar
licenciaturas, por estarem voltadas às con-
os contextos para além do tradicionalismo
vergências deste estudo, em relação com a
educacional a fim de atender uma sociedade
etnomatemática. Sendo assim, o primeiro
marcada por diferenças.
Seu conteúdo está distribuído por
29
grupo responsável pelas orientações no En-
de avaliação para promover reformulações
sino Fundamental, traz no parágrafo 2º uma
em suas práticas pedagógicas?
boa síntese dos seus objetivos, conforme
pode ser observado:
No que tange à educação quilombo-
la, o grupo responsável tomou como presconsideramos relevante apresentar prin-
suposto os parâmetros legais para definir
cípios significativos e fundamentais que
as escolas localizadas nas 2.228 comunida-
possam orientar os (as) profissionais
quanto ao trato positivo do tema, bem
como variadas sugestões para se cons-
des remanescentes de quilombos, em quase
todos os estados da Federação (NAVARRO,
truir um referencial curricular no qual
2005). Os relatos das comunidades dão con-
alguns elementos constitutivos da cos-
ta de algumas escolas comuns, enquanto
movisão africana, em grande parte des-
em outras, os estudantes precisam se des-
conhecida no campo educacional brasi-
locar, gerando demandas de ordem que vão
leiro, compareçam como base, a exemplo
da ancestralidade, circularidade, solida-
das dificuldades de deslocamento até a ina-
riedade, oralidade, integração, coletivi-
dequação do currículo, que se soma ao fato
dade, (BRASIL, 2006, p. 55 - 56).
de que “os (as) professores (as) não são capacitados adequadamente e o seu número é
Em seguida, fazem questionamen-
insuficiente. Poucas comunidades possuem
tos que sintetizam os anseios da população
unidades educacionais com o Ensino Funda-
negra e que são assim descritos: a) Em que
mental completo”, (BRASIL, 2005, p. 57).
ponto a escola se encontra no itinerário de
construir uma educação que valorize e res-
Pensar uma educação quilombola
peite as diferenças? b) Que tipo de diálogo
significa buscar caminhos em diálogo com
a escola tem estabelecido com as diferentes
as comunidades, partindo do princípio de
culturas, em especial a cultura negra, presen-
que “Quilombo” remete a instituições mais
tes no universo escolar? c) Qual tem sido o
expressivas que territórios de resistência ao
posicionamento da escola diante das relações
escravismo. Representa o lugar onde pesso-
étnico-raciais estabelecidas em seu interior
as depositam anseios e sonhos que consti-
que tem dificultado a construção positiva da
tuem heranças ancestrais que são fontes de
identidade racial e o sucesso escolar do alu-
conhecimento acerca de um dos três pilares
no negro? d) Qual a importância que a esco-
civilizatórios da nação.
la tem dado às recentes estatísticas que demonstram as dificuldades encontradas pelo
Desses pressupostos encaminha-se
segmento negro, especialmente no campo da
uma série de pontos que estão especialmen-
educação? e) As instituições escolares têm se
te destacados no documento. Em síntese,
servido destas estatísticas em seus momentos
eles compreendem: a) Mapear as condições
30
estruturais e práticas pedagógicas das esco-
em síntese são: a) Apoiar a capacitação de
las localizadas em áreas de remanescentes de
gestores locais para o adequado atendimen-
quilombos e o grau de inserção das crianças,
to da educação nas áreas de quilombos; b)
jovens e adultos no sistema escolar; b) Garan-
Promover formação continuada de profes-
tir direito à Educação Básica para crianças e
sores da educação básica que atuam em
adolescentes das comunidades remanescen-
escolas localizadas em comunidades rema-
tes de quilombos, assim como as modalida-
nescentes de quilombos, atendendo ao que
des de EJA e AJA; c) Ampliar e melhorar a rede
dispõe o Parecer 03/2004 do CNE e conside-
física escolar por meio de construção, am-
rando o processo histórico das comunidades
pliação, reforma e equipamento de unidades
e seu patrimônio cultural.
escolares; d) Incentivar a relação escola/comunidade no intuito de proporcionar maior
Acúmulos da etnomatemática
interação da população pela educação, fazendo com que o espaço escolar passe a ser fator
de integração comunitária; e f) Aumentar a
gra, do ponto de vista da Educação Etnomate-
oferta de Ensino Médio nas comunidades qui-
mática já compõem as estratégias de estudo
lombolas para que possamos possibilitar a
do GEPEm-FE/USP, pois do grupo percebe-se
formação de gestores e profissionais da edu-
a produção de alguns – por volta de dez – es-
cação das próprias comunidades.
A responsabilidade de refletir sobre a
adequação da formação dos profissionais de
nível superior em geral, e em especial “nos
cursos de formação dos profissionais da
educação” (BRASIL, 2006, p. 125). No tocante
ao trato com a lei 10.639/03, o grupo definiu
que a abrangência da temática faz com que
esta meta seja subdividida.
No entanto, optamos por lidar com
As investigações sobre a cultura ne-
tudos de mestrado e doutorado. Foi também
a partir do grupo que se originou o GEPENI/
UFMT, de um membro na coordenação do
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia – NEAB/UFU.
Tais acúmulos têm servido às refle-
xões de educadores matemáticos na fundamentação e desenvolvimento de propostas
pedagógicas voltadas à formação de educadores. E, ao serem somados às experiências
a formação inicial e continuada de professo-
com a formação de educadores indígenas
res em função da afinidade com os estudos
desde maio de 2002, contam com a parceria
e práticas desenvolvidos no programa Etno-
da Faculdade de Educação/USP e Secretaria
matemática, o que representa um elemen-
de Educação do Estado de São Paulo, sob a
to central no diálogo, pois isso nos permite
coordenação da Professora Maria do Car-
acompanhar as demandas propostas, que
mo Santos Domite.
31
O propósito é orientar uma forma-
magistério indígena, formação intercultural
ção voltada para as escolas das aldeias in-
superior indígena e licenciatura indígena
dígenas, objetivando que o/a professor/a
(ainda em andamento), um sistema dife-
“indígena” assumisse a escola da aldeia,
renciado de formação que, de algum modo,
que compreendia a Educação Infantil. Do
serve de parâmetros para se pensar outras
processo resultou a certificação de 61 indí-
propostas de formação diferenciadas, que
genas, vindos de 21 aldeias diferentes, locali-
em contrapartida nos sirva como referência
zadas em diversas regiões do Estado.
de conhecimentos culturais que contribuam
com construção de uma perspectiva mais hu-
Em seguida, o Curso de Formação
manista do conhecimento cientifico.
Intercultural superior do professor indígena concluiu a graduação em 2008, abrindo
espaço para um sistema que possa ir ao
encontro das particularidades culturais de
cada grupo étnico, tomando como enfoque
o desenvolvimento das instituições educacionais – a escola da e na aldeia – cada vez
mais nas mãos dos próprios indígenas, sob a
orientação/liderança de cada um dos povos.
Frente a este desenvolvimento está
sendo encaminhada uma formação em serviço, por parte de formadores não indígenas,
paralela à atuação do professor, que tem procurado desenvolvê-la no sentido de buscar recursos educacionais mais apropriados, tanto
do ponto de vista cultural quanto linguístico.
Na perspectiva de alcançar resultados significativos para o exercício de um diálogo intercultural, pautado no respeito à diferença,
acerca da educação (matemática) indígena.
Como prática, os acúmulos e conhe-
cimentos resultaram em três estágios do processo de formação dos professores indígenas:
32
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Parecer CNE/CP- 3/2004, 2004.
______. Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006.
D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: o elo entre as tradições e a modernidade. Belo
Horizonte: Autêntica, (2005).
______. Uma síntese sociocultural da história da Matemática. São Paulo: Proem. (2011).
SILVA, V. L. da. A cultura negra na escola pública: uma abordagem etnomatemática (Dissertação de Mestrado- Faculdade de Educação da USP). São Paulo, 2008.
NAVARRO, Luciana. Muitas comunidades, poucos registros. Disponível em: http:// www.
unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm. Acesso em 12/05/2005
VERGANI, Teresa. Educação Etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007.
33
Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Coordenação Pedagógica
Ana Maria Miguel
Acompanhamento pedagógico
Grazielle Bragança
Copidesque e Revisão
Milena Campos Eich
Diagramação e Editoração
Bruno Nin
Felipe Mesquita
Virgílio Veiga
Consultora especialmente convidada
Maria do Carmo Domite
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Rua da Relação, 18, 4º andar – Centro.
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Setembro 2014
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educação matemática do campo no ciclo de alfabetização