ISSN 1982 - 0283 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA DO CAMPO NO CICLO DE ALFABETIZAÇÃO Ano XXIV - Boletim 12 - SETEMBRO 2014 Educação Matemática do Campo no Ciclo de Alfabetização SUMÁRIO Apresentação........................................................................................................................... 3 Rosa Helena Mendonça Introdução............................................................................................................................... 4 Maria do Carmo Domite Texto 1: O Currículo de Matemática e a Educação do Campo ................................................ 10 Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa Texto 2: Ressignificação da escola em contexto indígena: Etnomatemática e Ecologia de Saberes......................................................................................................... 18 Rogério Ferreira Texto 3: Educação Quilombola e Etnomatemática: é um diálogo possível? ...........................25 Vanisio Luiz da Silva Keli Mota Bezerra Educação Matemática do Campo no Ciclo de Alfabetização Apresentação A publicação Salto para o Futuro comple- A edição 12 de 2014 traz como tema: Educação menta as edições televisivas do programa Matemática do Campo no Ciclo de Alfabeti- de mesmo nome da TV Escola (MEC). Este zação e conta com a consultoria de Maria do aspecto não significa, no entanto, uma sim- Carmo Domite, Doutora em Psicologia da Edu- ples dependência entre as duas versões. Ao contrário, os leitores e os telespectadores – professores e gestores da Educação Básica, em sua maioria, além de estudantes de cação pela Universidade Estadual de Campinas, Parecerista da Universidade de São Paulo e Consultora desta Edição Temática. Os textos que integram essa publicação são: cursos de formação de professores, de Faculdades de Pedagogia e de diferentes licen- 1. O Currículo de Matemática e a Educação ciaturas – poderão perceber que existe uma do Campo interlocução entre textos e programas, pre- 3 servadas as especificidades dessas formas 2. Ressignificação da escola em contexto distintas de apresentar e debater temáticas indígena: Etnomatemática e Ecologia de variadas no campo da educação. Na página eletrônica do programa, encontrarão ainda outras funcionalidades que compõem uma rede de conhecimentos e significados que se efetiva nos diversos usos desses recursos nas escolas e nas instituições de formação. Os Saberes 3. Educação Quilombola e Etnomatemática: é um diálogo possível? Boa leitura! textos que integram cada edição temática, além de constituírem material de pesquisa e estudo para professores, servem também de base para a produção dos programas. Rosa Helena Mendonça1 1 Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro (TV Escola/MEC). Introdução Maria do Carmo Santos Domite 1 [...] acho que se fosse possível a muitos dos professores que só trabalham dentro da sala – presos aos programas, aos horários, às bibliografias, às fichas de avaliação – que se expusessem ao dinamismo maior, à maior mobilidade que se encontra dentro dos movimentos sociais, eles poderiam aprender sobre uma outra face da educação que não se encontra nos livros. Há algo muito importante que as pessoas estão criando, fora da educação formal. Para os professores, seria uma experiência de abertura de novas perspectivas. Contudo, respeito os professores que preferem ficar nas escolas; mesmo aí, porém, é preciso ser crítico dentro do sistema. está inserido, motivando a participação dialó- Paulo Freire2 nizando mais e mais maneiras de contestar gica comunitária e possibilitando uma melhor leitura de realidade social e política do grupo. Estas ideias tiveram influência nos programas, mais extraoficiais do que oficiais, das décadas de 70 a 90. As orientações para a Educação Popular, de certa maneira uma proposta educacional alternativa, instigaram professor e formador para além da perspectiva pluralista no sentido de expor a multiplicidade de saberes, valorizando o saber popular e cotidiano, assim como orgaas formas tradicionais de conceber as áreas Esta forma de trabalho, aqui como um do conhecimento, já consagradas. chamamento de Freire, foi igualmente defendida pelos educadores brasileiros envolvidos com a Educação Popular – um movimento tanto a apresentação do desafio de Freire educacional brasileiro fértil do final dos anos quanto os dois parágrafos introdutórios de- 60, grande parte sob os pressupostos da edu- sencadeados a partir de tal desafio, foram cação libertadora freiriana. Com a preocupa- encaixados no texto para nos auxiliar no ção de valorizar os saberes prévios dos alunos cumprimento da meta que temos neste mo- e suas realidades culturais na construção de mento - produzir um material introdutório novos saberes, tal movimento valoriza o estar não só dentro da sala de aula, mas atuando O leitor já deve ter percebido que, para autores que refletem sobre Educação do Campo no Brasil, em especial sobre Edu- também na comunidade em que o educando 1 Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade Parecerista da Universidade de São Paulo e Consultora desta Edição Temática. 2 Freire, P. & Schor, I. Medo e Ousadia. Rio De Janeiro: Paz E Terra, 1995. Estadual de Campinas, 4 cação Matemática do Campo – procurando resta (povos indígenas), dos quilombolas, dos revelar o despertar da nossa percepção so- ribeirinhos, dos assentados (camponeses), da bre o que temos em comum com a Educação pecuária (campinos, vaqueiros, pastores, gran- Popular: a mesma preocupação e o mesmo jeiros), das minas, da agricultura e dos caiça- compromisso em construir e desconstruir ras. Ou seja, diante dessa compreensão, o ter- reflexões de cunho sociocultural junto aos mo Educação do Campo refere-se a questões educadores voltados para movimentos so- que envolvem educação escolar em um espa- ciais aliados aos educacionais. ço vivido não unidimensional, explicitamente diferenciado em aspectos políticos, culturais, E, se nos anos 60, não estava tão ex- plícito no movimento da Educação Popular, hoje, ao se estudar a Educação do Campo, não há como não chamar a temática, como bem diz Ferreira & Brandão, ao debate sócio econômico e geopolítico, pois milhares de estudantes e camponeses fazem parte deste processo marginal, criado pela ideologia dominante que carrega representações simbó- econômicos e éticos. E uma das posturas que cada um de nós, autores desta revista, estará considerando é a necessidade de afastarmos a possibilidade de indicação de um método de ensino e aprendizagem da Matemática em particular - a ser aplicado aos processos educativos de um dos grupos mencionados. Todavia, estamos também afastando a ideia de excessiva atenção à garantia do acesso escolar aos saberes (matemáticos) já universalizados. licas na consciência, reproduzindo discursos e práticas da elite, não condizentes com a vida e ações das populações do campo, per- em produzir um material introdutório para durando nos trabalhos sociopedagógicos de um conjunto de trabalhos que tratará da edu- milhares de escolas Brasil adentro. (FERREI- cação matemática do campo. Os temas elei- RA & BRANDÃO, 2001) . tos giraram em torno da educação indígena, 3 De todo modo, o objetivo aqui está educação e cultura negras e educação dos Antes de adentrarmo-nos especialmen- camponeses, pensando-os todos na esfera te na Educação Matemática do Campo, pare- da educação matemática, já que os autores ce importante destacar o entendimento que não são antropólogos e, sim, educadores e aqui assumimos, ou que devemos assumir, da pesquisadores da educação matemática que palavra ‘campo’ - dado que há interpretações reconhecem o potencial em levar em conta não consensuais Brasil afora. O termo ‘campo’ as tradições e os costumes – cultura – nos será aqui usado para distinguir um lugar que processos pedagógicos. compreende os espaços físico-sociais da flo3 FERREIRA, F. J. & BRANDÃO, E.C. Educação do Campo: um olhar histórico, uma realidade concreta. Revista Eletrônica de Educação. Ano V. No . 09, jul./dez, 2001. 5 No que se refere à educação matemá- para o ‘outro’ grupo por meio de uma discus- tica, em uma relação com a cultura dos gru- são reflexiva, porém sem a expectativa de in- pos do campo, vale destacar que, no Brasil, os terpretar/modelar o conhecimento étnico em estudos dos educadores matemáticos que di- conhecimento (matemático) acadêmico. Do zem respeito a contextos multiculturais e mul- considerado, temos registradas declarações tilíngues, em geral, baseiam-se nos princípios como as seguintes: da Etnomatemática. Isto se dá, talvez, devido (...) meu objetivo é mostrar-lhes, quando possível, como modelar na matemática acadêmica, de modo que os professores indígenas sejam capazes de usar seus conhecimentos étnicos para construir, com seus alunos, o conhecimento matemático ocidental. Corrêa (2001)4. à influência exercida pelo educador brasileiro Ubiratan D’Ambrosio – o qual tem incentivado educadores matemáticos em todo o mundo à busca das contribuições das diversas culturas ao desenvolvimento da Matemática, assim como da Educação Matemática. (...) o pesquisador etnomatemático deve validar o modelo que determinado segmento constrói para a solução do problema que aparece, procurando entender o modelo Os educadores matemáticos brasilei- ros envolvidos com os estudos etnomatemáticos têm apresentado atitudes diferencia- apresentado (Scandiuzzi, 2002)5 das frente ao debate sobre como considerar 6 o conhecimento do ‘outro’, culturalmente diferenciado em relação ao conhecimento dito acadêmico/escolar. Alguns educadores/ têm estado, de uma maneira ou de outra, pesquisadores procuram, entre outras medi- envolvidos em experiências, projetos e di- das, tomar o conhecimento cultural do grupo nâmicas que procuram articular propostas como ponto de partida para a construção dos sob denominações como Educação e Cultu- conhecimentos acadêmicos/escolares – cons- ra, Educação Matemática e Cultura, Etnoma- trução de uma ponte na direção da matemá- temática e Educação do Campo, todos com a tica acadêmica. Outros procuram manter as convicção de que a formação de professoras discussões dentro do próprio conhecimento é um caminho contundente para a trans- e/ou patrimônios culturais - ajudando o grupo formação do pedagogo, mais ou menos in- a compreender melhor o próprio uso mate- tuitivo, para o pedagogo mais consciente - mático dentro de suas comunidades culturais. conscientização, aqui entendido, como em E alguns outros educadores (etno) matemá- Os autores reunidos nesta revista Freire, como um ultimato para que ultra- ticos apresentam a matemática acadêmica 4 CORRÊA, R.A. The education mathematics on the formation of indigenous teachers: preparing the teacherresearcher. In: Educação Matemática em Revista (SBEM, dec. 2001). 5 SCANDIUZZI, P.P. Água e óleo: modelagem e etnomatemática. In: Bolema, Rio Claro, Nº17. P. 52-58, 2002. passemos a esfera da espontaneidade, que compreensão própria – dos grupos do cam- substituamos a consciência ingênua pela po - sobre currículo. Com base em diferentes consciência crítica. leituras e pesquisas, Linlya Barbosa apresenta entendimentos próprios sobre currícu- O artigo de autoria de Línlya Natás- lo de matemática da educação do campo, sia Sachs Camerlengo de Barbosa - intitulado apontando que alguns defendem o currículo “O Currículo de Matemática e a Educação do com base em uma formação técnica frente Campo” -, especialmente voltado para o cur- aos trabalhos no campo; outros, que este rículo de matemática da educação do cam- deve oferecer aos estudantes do campo o po, procura discutir formas de entendimento acesso ao conhecimento das classes do- e dinâmicas de operacionalização das esco- minantes para apropriação e alteração da las do campo. Como bem destaca a autora, estrutura social e econômica; e, ainda, há a busca de respostas a questões como “que aqueles que cogitam a importância sobre os escola do campo queremos?” e “que sujeitos saberes da cultura camponesa. queremos formar nessas escolas?” deve possibilitar os diversos entendimentos e discus- De modo geral, as reflexões da auto- sões a respeito dos currículos dessas escolas. ra Línlya Barbosa se mostram carregadas de tensões sobre o histórico de exclusão pre- Compartilhando da ideia de outros sente no meio rural, as lutas por reforma estudiosos sobre tais questões, a autora afir- agrária e as condições precárias do meio ru- ma que o currículo deve selecionar conteú- ral, a falta de escolaridade, os baixos salários dos, conhecimentos e saberes, objetivando e as condições degradantes de trabalho. formar pessoas reflexivas sobre seus conhecimentos e condições socioculturais em busca de transformações em tais aspectos. Nesta perspectiva, compartilha com o especialista Tomaz Tadeu da Silva a ideia de que “currículo é, definitivamente, um espaço de poder”, complementando que “o currículo materializa o poder em uma sociedade ou cultura”. Salienta, ainda, a autora, que, a res- peito de currículo e educação do campo, se tornam necessárias, nessas discussões, problematizações e teorizações sobre uma O artigo de Rogério Ferreira, sob o título “Ressignificação da escola em contexto indígena: etnomatemática e ecologia de saberes” coloca no centro das atenções a descolonização da escola indígena e a diferenciação entre os processos de educação indígena e de educação escolar indígena. Salienta o autor que educadores e formadores de professores indígenas têm buscado ressignificar a escola indígena, cooperando para que esta se assuma em um duplo papel: valorizar a realidade sociocultural do grupo 7 étnico, assim como – em uma busca de in- educação indígena, mas sim, em uma con- serção política - problematizar e apreender sideração a respeito de pontos de vista de os saberes da sociedade envolvente. pessoas envolvidas (professores e gestores indígenas), por meio de alguns depoimen- Dos destaques em geral, saliento dois, tos orais/reflexões sobre a importância, ou de alguma maneira sobrepostos, como o pa- não, de uma educação matemática ligada pel da presença da escola em comunidade ao contexto de cada grupo/escola indígena. indígena e da matemática no currículo dessa escola. Estes são pontos de destaque do tra- Assim, o artigo de Rogério Ferreira balho de Ferreira que o distinguem sobrema- tem, como marco, conexões entre cultura e neira entre aqueles que também se detêm na Matemática, reforçando colocações encon- educação indígena e educação matemática. tradas em teorizações e práticas dos campos de estudos da Educação Matemática e Em termos do ensino de Matemática, Etnomatemática, deixando claro que o autor compreendido equivocadamente por muitos reconhece que estes têm em comum pers- de nós como um movimento universalizado, pectivas socioculturais. este deveria, clama o autor, ir ao encontro do outro, localmente contextualizado em No terceiro artigo, intitulado “Edu- espaço indígena – como uma possibilidade cação Quilombola e Etnomatemática, é um de não entrar em conflito com a organiza- diálogo possível?”, Vanisio Luiz da Silva e ção holística de sua sociedade e sua cultura. Keli Mota Bezerra tecem um texto no sen- O autor pede, ainda, que os conhecimentos tido de projetar a possibilidade de um diá- matemáticos escolares sejam trabalhados logo entre as perspectivas de uma Educa- com base em seus ‘saberes raiz’, buscando ção Etnomatemática e as propostas de uma fomentar um diálogo crítico com a Matemá- Educação Quilombola. tica, externa a esta ou àquela cultura indígena. Neste contexto, a etnomatemática surge como possibilidade dialógica em paisagens os autores fundamentam-se, de um lado, de interculturalidade, impulsionando o pro- em leituras, pesquisas e vivências cons- tagonismo dos sujeitos indígenas na inten- truídas no âmbito do Grupo de Estudos e ção que têm de potencializar os processos Pesquisas em Etnomatemática- GEPEM/ de descolonização de seus saberes. As reflexões de Rogério Ferreira não se constituem, de modo algum, em uma revisão conceitual dos fatos e história da De modo a construir tal diálogo, FE-USP e, grande parte destes com base nas teorizações de Ubiratan D’Ambrósio, que orientam os estudos da área. De outro, apoiam-se em diálogos realizados com interlocutores militantes e intelectuais en- 8 volvidos com a inserção digna dos saberes mento da educação nas áreas de quilombos sobre a história da África e dos afrodescen- e, b) Promover formação continuada de pro- dentes na educação, assim como em docu- fessores da educação básica que atuam em mentos que orientam a implementação de escolas localizadas em comunidades rema- uma educação quilombola, redigidos por nescentes de quilombos. uma equipe do Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti- Fica, então, o convite carinhoso zação e Diversidade (MEC/SECAD). para uma leitura das reflexões aqui narradas. Aproveitem-nas nos sentidos emocional Como mencionado, baseados em e intelectual e questionem-nas para que os documentos governamentais, no que se re- movimentos prático-pedagógicos-filosóficos fere aos quilombolas e suas condições edu- que vêm sendo encaminhados e realizados cacionais, os autores Silva e Bezerra nos em torno da educação matemática do cam- alertam para o fato de que, embora haja po sejam cada vez mais produtivos no âmbito mais de duas mil e duzentas comunidades da formação de professores, formação de for- remanescentes de quilombos, poucas delas madores e práticas docentes, em especial. possuem unidades educacionais com ensino fundamental completo. Nesta perspectiva, ao enfatizar ‘pensar uma educação quilombola significa buscar caminhos em diálogo com as comunidades’, Silva e Bezerra parecem procurar legitimar tais territórios como importantes contextos geográfico-políticos de resistência ao escravismo. Em decorrência das práticas e teori- zações desenvolvidas sob a visão do Programa Etnomatemática, que tem como elemento central a dinâmica dialógica, os autores insistem que é fundamental trabalhar na formação inicial e continuada de professores como um meio que permite acompanhar e apoiar as demandas propostas, por eles apontadas como: a) Apoiar a formação de gestores locais para o adequado atendi- 9 texto 1 O C urrículo do C ampo de M atemática e a E ducação Línlya Natássia Sachs Camerlengo de Barbosa 1 Introdução Compartilho com Silva (2011, p.147), a ideia de que “[...] o currículo é, definitivamen Coloco em discussão neste artigo o currículo de Matemática na educação do campo, com o objetivo de apresentar formas de entendê-lo e, consequentemente, de materializá-lo nas escolas do campo. te, um espaço de poder”. O currículo mate- “(...) é necessário que, nas discussões a respeito da educação do campo, se construa uma concepção própria de currículo.” rializa o poder em uma sociedade ou cultura. Como apontam Thiesen e Oliveira (2012), é necessário que, nas discussões a respeito da educação do campo, se Abandono aqui qualquer compreen- construa uma concepção própria de currícu- são a respeito do currículo que esteja apoia- lo, o que ainda não foi feito e que tem como da em neutralidade. A seleção de conteúdos, consequência a apropriação do Estado desse conhecimentos e saberes está pautada em território ainda não habitado, com propostas um objetivo anterior, que é o de formar pes- educacionais “prontas e acabadas” (p.26). soas, transformá-las. Silva (2011) afirma: “[...] Nos trabalhos da área da Educação Matemá- a pergunta ‘o quê?’ nunca está separada de tica, a situação não é diferente; aliás, talvez uma outra importante pergunta: ‘o que eles pela escassez de trabalhos, seja ainda um devem ser?’ ou, melhor, ‘o que eles ou elas pouco mais crítica. devem se tornar?’ Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que Knijnik (2004) reforça a importância de pensar vão ‘seguir’ aquele currículo” (p.15). sobre o currículo: 1 Doutoranda em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo campus Araraquara. 10 Nosso papel nestes processos de inclu- O campo: contextualizando são ou exclusão de conhecimentos no currículo escolar é, antes de tudo, e sobretudo, político. Tais processos, definin- Este trabalho, ao abordar a educa- do quais grupos estarão representados e ção do campo, deve considerar o histórico quais estarão ausentes na escola são, ao de exclusão daqueles que vivem no meio mesmo tempo, produto de relações de po- rural e de lutas por reforma agrária, distri- der e produtores destas relações: produto de relações de poder, pois são os grupos dominantes que têm o capital cultural buição menos desigual de terras e melhores condições de vida. para definir quais os conhecimentos que são legítimos para integrar o currículo escolar; são também produtores de relações de poder, porque influem, por exemplo, no sucesso ou fracasso escolar, produzem De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, no 12º Censo Demo- subjetividades muito particulares, posi- gráfico, dos 190.755.799 habitantes do terri- cionando as pessoas em determinados tório brasileiro, 29.830.007 residem em áreas lugares do social e não em outros. Estes lugares não estão, de uma vez por todas, rurais (IBGE, 2012). definidos. O campo da Educação Matemática é também um campo possível de con- Não há dúvida de que a população testação. Por isto, político (KNIJNIK, 2004). rural, em porcentagem, tem diminuído ao longo dos anos: em 1970, representava cer- Com base em leituras e pesquisas, ca de 44,1% de toda a população do Brasil; apresentarei neste trabalho diversos enten- em 1980, 32,4%; em 1991, 24,4%; em 2000, dimentos do currículo de Matemática na 18,8%; e, finalmente, em 2010, 15,6% (IBGE, Educação do Campo. Mostrarei, por exem- 2012). Este número, apesar de reduzido, plo, que há quem defenda o currículo como não pode ser ignorado. base de uma formação técnica para os trabalhos no campo; há quem vise proporcio- Em que condições vive essa popula- nar aos estudantes do campo o acesso ao ção? Diversos dados revelam a precariedade conhecimento típico das classes dominan- de vida no meio rural, seja pela concentra- tes, para que eles se apropriem e possam ção de terras, seja pela falta de escolaridade, alterar a estrutura social e econômica em seja pelos baixos salários e condições degra- que vivem; há quem entenda que nos currí- dantes de trabalho. culos devem estar presentes os saberes da cultura camponesa. Os movimentos sociais, e aí desta- co o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pedem por uma reforma 11 agrária, que altere substancialmente a dis- núncias desses problemas foram feitas por tribuição de terras no país, questionando a várias pesquisas, como a de Leite (1999) e a legitimidade da propriedade privada face às do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas desigualdades sociais. Martins (1999, p.100) Educacionais Anísio Teixeira (2007). ressalta “que a luta pela terra, da qual deriva a luta pela reforma agrária, é também uma Em resposta a essa situação, os mo- luta pela inclusão, pela inserção social ativa, vimentos sociais se mobilizaram fortemen- produtiva, participante e criativa na socie- te para que houvesse uma transformação dade, é luta por dignidade e respeito”. significativa da educação no meio rural. Um breve histórico pode ser encontrado em A luta pela reforma agrária está as- Munarim (2008). sociada à luta por mudanças nas condições de vida no meio rural e, entre elas, está a da Um marco importante é a realização educação. As taxas de analfabetismo refle- da 1ª Conferência Nacional por uma Educa- tem a situação precária nesse aspecto: en- ção Básica do Campo, que ocorreu em 1998, quanto nas cidades a porcentagem de anal- em Luziânia-GO. A “educação rural”, carre- fabetos é de, aproximadamente, 8,6%; no gada de descaso e de subordinação ao capi- meio rural, essa taxa é de 23,7%, de acordo tal, é substituída por uma nova concepção com o Censo de 2010 (IBGE, 2012). de educação, a “educação do campo”. Esta, para Munarim (2008), carrega diferentes Educação do campo preceitos políticos e pedagógicos. Assim, a mudança seria tamanha que não “suporta- O direito ao acesso à educação para ria” os mesmos termos como referência. todos, incluindo aqueles que residem em espaços rurais, está garantido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº Entendimentos sobre o currículo de matemática na educação do campo 9.394, de 20 de dezembro de 1996, de modo que o artigo 28 trata das particularidades da Diante do exposto, apresento qua- educação para a população rural. tro formas de se entender o currículo de Matemática na educação do campo. Para O descaso, porém, com que histori- tal, trago artigos de periódico2, de anais de camente tem sido tratado o tema, deixou evento3(ambos da área da Educação Mate- marcas na educação dessas pessoas. Não é mática), dissertações e teses4, que materiali- raro referirem-se à educação na zona rural zem a diversidade de entendimentos. como precária, deficiente e atrasada. De- 12 O estudo que realizei para selecionar Como segundo entendimento está os trabalhos que citarei aqui foi baseado na aquele que visa incluir, nos currículos, os metodologia da Análise Textual Discursiva, saberes locais dos camponeses – não mais de Moraes e Galiazzi (2007). como meio, mas como fim. Assim, a escola, como local privilegiado para acesso ao co- Essas formas têm suas intersecções nhecimento, deve também incluir, em seus e seus distanciamentos. Também não se currículos, os saberes que historicamente esgotam, havendo possibilidade de outros deles foram excluídos, como os dos campo- entendimentos, que não esses. Apresento neses. Os trabalhos de Costa (1998), Oliveira aqueles que me saltaram aos olhos ao anali- (1998), Knijnik (2001), Fontana (2006), Lima e sar o material que selecionei. Monteiro (2009), Bandeira e Morey (2010), e Lima e Carvalho (2010), vão nesse sentido. Um primeiro entendimento que apresento é o de que o currículo de Mate- mática das escolas do campo deve ter algo que o conhecimento da vida cotidiana dos de específico: os meios (para se chegar ao estudantes das escolas do campo pode ser- mesmo fim). Isto é, “parte-se da realidade” vir como base para alcançar o conhecimen- para se chegar ao objeto matemático. O co- to dito científico, nesses trabalhos está pre- tidiano, a vida real e o campo são elementos sente uma equiparação de valor entre esses de “motivação”, de “aplicação” e de “contex- saberes que serão incorporados ao currícu- tualização” que devem ser “traduzidos” para lo e aqueles que lá já estão. Assim, não se a matemática escolar, presente nos currícu- trata de adicionar a ele informações de ou- los. Alguns trabalhos que trazem essa abor- tras culturas, como a do campo, a título de dagem são: Vargas e Fantinato (1998); Costa curiosidade, de informação ou de folclore, (2005); Paniago e Rocha (2007); Paniago, Ro- mas trata-se de torná-lo, de fato, um territó- cha e Moraes (2010); e Lopes (2010). rio político (SILVA, 2011). Alguns pesquisadores colocam-se Um terceiro entendimento é o de contrários a esse ponto de vista, como Duar- acesso ao mesmo conhecimento que o es- te (2012, p.7): “evitamos aquilo que se deno- tudante teria em qualquer outra escola. mina ‘partir da realidade do aluno’ pois en- Este encontra subsídios em Bourdieu (2007, tendemos que esta operação acaba, muitas p.62), que afirma que a instituição escolar vezes, hierarquizando os conhecimentos”. deve “desempenhar a função que lhe cabe, Diferentemente dos que entendem 2 Boletim de Educação Matemática (BOLEMA). 3 Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM). 4 Disponíveis no Banco de Teses da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 13 de fato e de direito, ou seja, a de desenvol- que analisa criticamente as ações políticas ver em todos os membros da sociedade, sem referentes à educação do campo, formado distinção, a aptidão para as práticas cultu- por movimentos sociais, organizações sindi- rais que a sociedade considera como as mais cais, universidades, institutos federais e ór- nobres”, e em Saviani (2011, p.14), para quem gãos governamentais – reprovou fortemente “a escola diz respeito ao saber elaborado e os cursos de formação técnica propostos não ao conhecimento espontâneo; ao saber pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensi- sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular”. Alguns trabalhos evidenciam essa forma de conceber o currículo nas escolas do campo a partir de falas de professores e observação da realidade escolar, como em Alves e Monteiro (2010). Um quarto entendimento coloca que a formação técnica para o trabalho no campo deve fazer parte dos currículos dessas escolas. O trabalho de Nascimento (2010) e no Técnico e Emprego (PRONATEC) para os trabalhadores e estudantes do campo, conhecido como PRONATEC Campo. Considerações finais Diante desses quatro entendimen- tos a respeito do currículo de Matemática para escolas do campo apresentados, concluo que não há, na produção acadêmica, consenso sobre o tema. Os autores baseiam-se em diferentes referenciais teó- as falas de alguns entrevistados por Fontana ricos para sustentar seus pontos de vista. (2006) têm essa perspectiva. Questões como “que escola do campo queremos?” e “que sujeitos queremos formar Gramsci (1982), ao tratar da “esco- nessas escolas?” devem servir de pressu- la desinteressada”, posiciona-se contrário postos para decisões a respeito dos currí- a esse entendimento. Para ele, a formação culos dessas escolas, em especial, no que técnica determinaria o futuro de certo grupo se refere à Matemática, lembrando que o que, claramente, não pertence à elite; esta, currículo, como afirmam Silva (2011) e Kni- por sua vez, poderia ter acesso a conheci- jnik (2004), é um território político. mentos não diretamente ligados ao mundo do trabalho e, assim, não precisariam preocupar-se com seu futuro profissional. Também contrário à formação técni- ca às pessoas do campo, o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC) – um grupo 14 REFERÊNCIAS ALVES, I. M. P.; MONTEIRO, C. E. F. Alunos de escolas rurais interpretando gráficos através do software Tinkerplots. 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Seus saberes evidenciam ao mundo modos de vida localmente contextualizados, Tradições educativas arraigam-se no oportunizando a todos compreender a cons- contexto em que são erguidas, tendo força trução do conhecimento como matriz gera- suficiente para se constituírem em dina- dora de distintas epistemologias. Logo, não mizadoras de sociedade e cultura. Por isso, subsiste a antiquada concepção que ainda são distintos os modos de educar construí- hoje visualiza conhecimento como objeto dos por todo o mundo. O modelo escolar de unilinear, passível de hierarquização. educação constitui um deles. Não se trata, portanto, de modelo global. A presença de Cada nação indígena se fortalece instituições escolares, em grande parte dos em raízes ancestrais que sustentam modos espaços socioculturais por todo o planeta, específicos de sobrevivência e de transcen- se concretiza como consequência do ad- dência. Nos caminhos trilhados, edifica-se vento das colonizações. Isto revela que, em a cultura. Nesta, manifestações múltiplas muitos dos territórios em que a escola se faz se organizam de modo dinâmico por meio presente, o faz como instrumento estrangei- da ação de cada ser humano que a tem ro, como alienígena. (FERREIRA, 2002). como fundamento ao mesmo tempo em que a transforma. No movimento continu- Visualizar a diversidade de conhe- ado de mudança que se estabelece em cada cimentos, bem como os frutos advindos de 1 Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto IV da Universidade Federal de Goiás. Email: [email protected] 18 cada saber local – como é o caso da escola –, mento etnocida instituído por grande parte a partir de uma ecologia de saberes, retira do das escolas construídas nestas comunida- centro a monocultura da ciência, fazendo, da des. Como elemento descontextualizado, pluralidade epistemológica, meio favorável à instituem violência contra línguas, costu- prática do diálogo horizontal entre culturas, mes, visões de mundo, rituais, enfim, con- e não meio propulsor de sobreposição de sa- tra saberes milenares fundamentais para a beres. Interações interétnicas não implicam sustentabilidade sociocultural do povo que necessariamente os têm como referência. o comprometimento da autonomia de cada povo. Esse fundamento surge como transformador qualitativo dos en- Diante deste quadro, educadores in- contros interculturais ocorridos por meio dos dígenas e formadores de professores indíge- movimentos colonizadores (SANTOS, 2010). nas têm buscado ressignificar a escola em contexto indígena, tendo como fundamento A partir destas considerações iniciais, um duplo papel: (i) a valorização dos saberes objetiva-se mostrar que, muitas vezes, os mo- do povo como conhecimentos primeiros; (ii) dos específicos de educar de cada etnia indí- a problematização crítica dos conhecimen- gena sequer se assemelham à educação em tos da sociedade envolvente como meio ne- seu formato escolar. Educação Indígena e Edu- cessário para inserção política do indígena cação Escolar Indígena não convergem para nos espaços decisórios desta sociedade. um conceito comum. Trata-se de meios diferenciados. Esse entendimento introdutório se O educador Ubiratan D’Ambrosio faz essencial em uma abordagem que tem por denuncia que pretensão refletir a escola em comunidade inUma forma, muito eficaz, de manter um indivíduo, grupo ou cultura inferiorizado é enfraquecer suas raízes, removendo os vínculos históricos e a historicidade do dominado. Essa é a estratégia mais eficiente para efetivar a conquista. dígena, bem como a presença da Matemática no currículo desta escola. 2. O papel da escola em território indígena (D’AMBROSIO, 2001, p.40). Sendo fruto direto ou indireto de movimentos colonizadores, a presença da Essa estratégia de conquista ex- escola em comunidades indígenas vem as- plicitada por D’Ambrosio tornou-se ação sumindo, no decorrer do tempo, papéis que comum da educação escolar indígena em trabalham contra a valorização dos saberes diferentes regiões do Brasil durante muito próprios provenientes da cultura dos indi- tempo e, na atualidade, não é difícil encon- víduos a que se destina. É inegável o movi- trar escolas que ainda a utilizam, mesmo 19 quando não há plena consciência desta a fazer colares, trabalho a Matemática, a ação por parte de seus gestores. Essa rea- arte. (RODRIGUES et al., 2009, p.271). lidade aponta para a necessidade de uma quebra radical com modelos escolares que desvalorizam epistemologias indígenas. Deste modo, ele defende a valoriza- ção das raízes do povo, dos saberes que correspondem à sua identidade. Mas diz ainda: Nesse contexto, o educador afirma Nós moramos num bloco fechado. Qual- que “a estratégia mais promissora para a quer aldeia indígena do Brasil hoje se en- educação, nas sociedades que estão em tran- contra nessa mesma situação. Nós estamos sição da subordinação para a autonomia, é cercados. À esquerda, à direita, ao norte, ao restaurar a dignidade de seus indivíduos, sul, em todas as direções, estamos rodeados reconhecendo e respeitando suas raízes” pelo não indígena. Esta é uma situação difícil. (RODRIGUES et al., 2009, p. 270). (D’AMBROSIO, 2001, p.42). Diz ainda que: “Conhecer e assimilar a cultura do dominador se torna positivo desde que as raízes do dominado sejam fortes” (D’AMBROSIO, 2001, p.43). Estes pensamentos fortalecem a defesa do duplo papel da educação escolar indígena supramencionado neste texto. Em harmonia a estas ideias encon- tra-se a concepção do educador indígena Maximino Rodrigues, da etnia Guarani Kaiowá. Ele diz que, em área indígena, a escola deve ser representativa [...] daquele grupo, daquela nação, que Ao retratar esta realidade, Rodri- gues (2009) defende também que o domínio dos conhecimentos externos pelos indígenas surge na contemporaneidade como necessidade. Nessa dualidade, formada por elementos de natureza intra e intercultural, fica claro o desafio que os povos indígenas hoje enfrentam para fazer da escola instrumento efetivo de valorização de sua realidade sociocultural e meio favorável à presença crítico-política da voz indígena nos espaços sociais a eles negados há mais de cinco séculos (FERREIRA, 2004). ensine a língua, as danças, os rituais, as cerimônias, que seja uma escola com autonomia própria da comunidade local. Sa- 3. A Educação Matemática no contexto da Educação Escolar Indígena bemos que vários pais não estão passando os conhecimentos para os filhos. Hoje isso ficou na responsabilidade da escola. Eu, Como categoria de conhecimento particularmente, assumo a minha escola. supervalorizado da cultura ocidental cristã, Ensino dança, ensino a escrever e a ler na a Matemática ganha status privilegiado nas língua, ensino as brincadeiras, ensino a escolas que se espalharam por todo o mun- fazer colares. Quando eu estou ensinando 20 do por meio dos processos de colonização. la quanto em comunidade indígena, às ne- Com isso, em escolas indígenas, o ensino de cessidades do povo. É preciso ressaltar que, Matemática carrega, em sua origem, a mar- além disso, encontra-se a necessidade de ca da sobreposição de um conhecimento, posicionar em primeiro plano, como base, equivocadamente compreendido como uni- seus saberes raiz, buscando fomentar um versal, a outro, localmente contextualizado diálogo crítico com a Matemática externa. em espaço indígena. Evidencia-se aqui, no âmbito da Matemática, o duplo papel da escola indígena apre- A não compreensão de que cada sentado na seção anterior. povo indígena possui modos próprios de mensurar, abstrair, contar, inferir, resolver Gestores e professores indígenas, ao situações-problema e, entre outros, produzir assumirem sua escola conjuntamente com tecnologia, levou professores não indígenas sua comunidade, certamente terão mais a não problematizarem competências e con- condições de definir de que modo a Mate- teúdos da Matemática escolar em relação à mática organizada na sociedade envolvente epistemologia própria, não só dinamizada, poderá dialogar com os interesses e necessi- mas cotidianamente vivida pelos alunos in- dades de seu povo. A compreensão que têm dígenas. Neste âmbito, a visão disciplinar de da Matemática em espaço de interculturali- mundo de quem se posiciona como detentor dade é aspecto basilar para a construção de do conhecimento promove conflito com a or- caminhos curriculares, de fato representati- ganização integral, holística, de sociedade e vos, de suas concepções. Alguns alunos do cultura em realidades indígenas. curso de Educação Intercultural, oferecido pela Universidade Federal de Goiás, os quais O mito de a Matemática constituir- são professores e/ou gestores indígenas em -se como categoria universal de conhe- escolas de suas aldeias, fazem as seguintes cimento, portanto presente em todos os reflexões sobre a importância, ou não, da espaços socioculturais, promove desequi- Matemática no contexto de suas escolas2: líbrio em contextos de encontro intercultural. Por isso, não se pode mais colocar a Matemática como conhecimento maior, mas sim, sujeitar o seu uso, tanto em esco- É importante ensinar Matemática nas aldeias porque o capitalismo do mundo contemporâneo é muito forte e já está na comunidade (C. Javaé). 2 Os nomes utilizados para identificar os professores/gestores indígenas são fictícios, conforme acordo firmado entre pesquisador e sujeitos da pesquisa. No entanto, o registro das etnias em seus sobrenomes é verídico. 21 Saber Matemática é importante porque o mundo capitalista está entrando rapidamente em nossas sociedades. Antigamente não existia cotação de preço ou valores de mercado. Temos que entender e dominar as formas e estruturas matemáticas (A. Karajá). Hoje a Matemática na aldeia é muito necessidades de cada comunidade e da dualidade de saberes “(...) essa imersão dos alunos numa cultura de investigação favorece o desenvolvimento da capacidade de arguição, criticidade, autonomia, pensamento científico e curiosidade.” importante porque nós precisamos dela para nos defender dos kupe3. Em tudo o que fazemos no trabalho – caça, pesca, artesanato, etc. – também usamos Matemática (B. Apinajé) advinda da interculturalidade, o ensino e a aprendizagem da Matemática poderão contribuir, tanto para a valorização de sua realidade sociocultural, quanto para a inserção político-acadêmica dos cidadãos indígenas em múltiplas vertentes da sociedade nacional. Seus modos de compreender congraçam com os fundamentos que vêm alicerçando o campo de conhecimento da etnomatemática. Atualmente, a Matemática é um instrumento muito importante para os povos indígenas. Mas, desde o surgimento, meu povo sabia usar Matemática. O conhecimento tradicional da Matemática vem da natureza. Como professor, podemos aprofundar o conhecimento tradicional (D. Xerente). Somos professores indígenas e temos a necessidade de aprender Matemática. Vejo que a comunidade reclama muito de os professores de Matemática não serem índios. Isso dificulta para os alunos, ainda mais porque alguns não sabem falar português (E. Karajá). 22 Este campo, ao compreender a Ma- temática como constructo sociocultural, se consolida como promotor de diálogo horizontal entre culturas. Ou seja, um dos aspectos basilares da etnomatemática para debater a construção de saberes sob a perspectiva local está na criticidade dialógica acerca da interculturalidade. E, para isso, a transdisciplinaridade surge como diretriz, buscando promover reflexões que perpassem pelo difícil terreno da harmonização entre educação indígena e educação escolar Em suas falas, professores e gesto- indígena (D’AMBROSIO, 2012). res indígenas mostram que, a partir das 3 Kupe significa não indígena nas línguas dos povos timbira. 4. Palavras finais Uma importante conclusão a que se chega a partir destas bases é a de que o penNeste texto, procuraram-se promo- samento secular que compreende a escola em ver reflexões iniciais sobre a possível ressig- espaço indígena como “escola para o povo” nificação da escola em contexto indígena, a retira do sujeito indígena o protagonismo na partir de uma aproximação, também inicial, construção de uma escola efetivamente re- à etnomatemática e à ecologia de saberes. presentativa de suas necessidades e vontades. Neste caminho, diretrizes foram aguçadas na Portanto, espera-se que esse pensamento seja expectativa de motivar uma compreensão da transcendido para a “escola do povo”, como interculturalidade que possa fazer aflorar no- lhe é de direito, conforme legisla a constitui- vas histórias para a presença de escolas em ção brasileira em vigor desde 1988. comunidades indígenas. Fica então o desejo de que a concepção A primeira diretriz buscou eviden- de educação como “[...] o conjunto de estra- ciar que, se a ação escolar acarretar em tégias desenvolvidas pelas sociedades para (i) sobreposição de práticas de ensino e apren- possibilitar a cada indivíduo atingir seu poten- dizagem tradicionais, então ela estará se cial criativo; (ii) estimular e facilitar a ação co- mantendo na posição de instrumento da mum, com vistas a viver em sociedade e a exer- colonização. A segunda buscou colocar em cer a cidadania” (D’AMBROSIO, 1999, p.99), para foco a necessidade de a escola indígena as- que, em conjunto com as raízes da ecologia de sumir-se em um duplo papel: valorizar sua saberes (SANTOS, 2010) e da etnomatemática, realidade sociocultural, ao mesmo tempo tenha força para fazer surgir diálogo novo em em que, como estratégia de inserção polí- paisagens de interculturalidade, impulsionan- tica, problematiza os saberes da socieda- do o protagonismo dos sujeitos indígenas na de envolvente. Já a terceira diretriz trouxe intenção que têm de potencializar os processos para o centro das atenções o pensamento de descolonização de seus saberes. indígena acerca de conhecimentos de natureza matemática, defendendo que professores e gestores educacionais indígenas, sob o respaldo de sua comunidade, necessitam ser protagonistas da construção curricular. Nesse contexto, a etnomatemática surge como possibilidade dialógica. 23 REFERÊNCIAS D’AMBROSIO, Ubiratan. 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E é exatamente essa amplitude que Fundamentos da Educação Etnomatemática orienta a proposta de refletir sobre um diálogo possível entre a Educação Etnomate- Os estudos em Etnomatemática des- mática (VERGANI, 2008) e os documentos de tacam as dimensões: histórica, epistemológi- orientação e implementação das ações para ca, cognitiva, política, educacional e conceitual, a educação das relações étnico-raciais (BRA- definidas por D’Ambrósio (2011). Destas, ini- SIL, 2004; 2006), fundamentados em leituras ciamos pela histórica, que tomamos como a e vivências com educadores e pesquisas da mais relevante aos propósitos deste artigo, área – especialmente do Grupo de Estudos e pois ela conduz à compreensão do raciona- Pesquisas em Etnomatemática da Faculdade lismo (técnico) quantitativo – interpretado de Educação de São Paulo (GEPEm/FE-USP) – e como o ápice do desenvolvimento humano 1 Professor da rede municipal de São Paulo - Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática GEPEm da FE/USP, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemáticas Negras e Indígenas da UFMT-GEPEN. 2 Professora da rede municipal de São Paulo - Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática GEPEm da FE/USP. 25 – ser fruto de um processo de organização na ciência pós-moderna, a dinâmica de geração de conhecimento e, consequentemente, o retorno desse conhecimento àqueles responsáveis pela sua produção, constitui um ciclo indissolúvel, e as tentativas de estudar esse ciclo isolando seus componentes é inadequado para sistemas de conhecimento não ocidentais. social e de produção que vem se constituindo ao longo dos últimos três mil anos. Deste, se destacam quatro grandes marcos: a racionalidade grega, a cristã, a moderna e a pós-moderna, sendo que este último embute, em si, possibilidades e olha- res distintos à própria lógica da moderni- conduzido os olhares para a forma como os dade, fato que tem levado muitos à busca conhecimentos individuais, ao serem comu- de compreender – pela ótica da Matemá- nicados e compatibilizados com o grupo, se tica – valores, crenças e visões do mundo incorporam aos comportamentos psicológi- que influenciam as decisões dos grupos nos cos e culturais, coletivos e individuais. Tais processos de mensuração, quantificação, esforços têm se concentrado nos modos de classificação e avaliação do tempo, espaço e quantificar, mensurar e avaliar em interação formas. Fundamentados na evolução da pró- com os valores e as crenças locais. Quanto à dimensão cognitiva, ela tem pria ciência, uma vez que a: ciência moderna vai desenvolvendo os instru- causas primeiras são organizados [mitos de mentos intelectuais para sua crítica e para criação]. A morte, tão evidente, talvez não a incorporação de elementos de outros sistemas de conhecimento. Esses instrumentos seja um fim, mas o encontro com as cau- intelectuais dependem fortemente de uma in- sas primeiras. [...] Só o responsável pelas terpretação histórica dos conhecimentos de causas primeiras [um divino] poderia co- egípcios, babilônicos, judeus, gregos e roma- nhecer o mistério do que vai se passar?” nos, que estão nas origens do conhecimento moderno (D’AMBRÓSIO, 2011, p. 29). Isto porque “explicações para as A dimensão epistemológica conduz à busca de sistemas de conhecimento desenvolvidos socioculturalmente, pressupondo que sejam respostas às pulsões de vida. Portanto, na interação do humano com o am- (D’AMBRÓSIO, 2011, p. 34). A dimensão política tem como pres- suposto que os conhecimentos acumulados e desenvolvidos às margens do Mediterrâneo, que foram difundidos pelo planeta como o mais elevado conhecimento humano, seguem uma estratégia de dominação biente, proporcionando modos próprios de que levou ao extermínio indivíduos, povos e explicar e entender a realidade. Visto que, culturas, por resistirem à imposição de um para D’Ambrósio (2011, p. 37-38): conhecimento fundamentado na crença de seres superiores e inferiores. 26 No Brasil, os processos de resistên- sição da subordinação para a autonomia, cia que se estabeleceram a partir da colo- é restaurar dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e respeitando suas raízes. nização, na prática, foram fundamentais à dinâmica da cultura, modificando tradi- ções, valores, crenças, manifestações artísticas, religiosas e até as práticas científicas do colonizador e do colonizado. É por isso que nos posicionamos, não somente pelo reconhecimento e preservação dos valores culturais dos indivíduos e grupos submetidos ao Reconhecer e respeitar as “A Etnomatemática não só reconhece o papel do sistema educacional como fonte de transformação social, mas como um instrumento de resgate de conhecimentos, valores e culturas dos povos colonizados enquanto constituinte da nação.” raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes. Essa é, no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemática (D’AMBRÓSIO, 2011, p. 42). Por fim, entendemos que a dimensão educacional, não propõe “a rejeição da Matemática acadêmica” domínio colonial, mas (D’AMBRÓSIO, 2011), ou também pela incorpo- a substituição desta. ração de seus valores e práticas como cons- Muito pelo contrário, defendemos a escola tituintes da nossa visão do mundo. como o ambiente de difusão do conhecimento científico, para quem a boa mate- A etnomatemática não só reconhece mática é essencial à atuação crítica sobre o o papel do sistema educacional como fonte mundo. Para tanto, parece imprescindível a de transformação social, mas como um ins- inclusão de valores, visões e propostas mais trumento de resgate de conhecimentos, va- solidárias e cooperativas de sociedade. lores e culturas dos povos colonizados enquanto constituinte da nação. Neste caso, A convicção de que o raciocínio qua- tratamos especialmente das manifestações litativo – preponderante nas sociedades tra- culturais dos africanos escravizados no dicionais – é essencial à reorganização da Brasil e seus descendentes, pois, de acordo sociedade globalizada, pois este permite crí- com as orientações: ticas a partir de racionalidades pautadas em solidariedade e cooperação. Daí que vem a a estratégia mais promissora para a educação, nas sociedades que estão em tran- afirmação de D’ Ambrosio (2011, p. 44 – 45): 27 a etnomatemática privilegia o raciocínio ficismo eurocêntrico que se mostraram ina- qualitativo. Um enfoque etnomatemático dequados aos anseios da população negra. E, sempre está ligado a uma questão maior, de natureza ambiental ou de produção, e a etnomatemática raramente se apresenta des- mesmo diante dos inquestionáveis avanços, a reforma não debruçou sobre os estigmas vinculada de outras manifestações culturais, que marcaram a inserção perversa da popu- tais como arte e a religião. A etnomatemáti- lação negra na sociedade. ca se enquadra perfeitamente numa concepção multicultural e holística de educação. Vista de outra perspectiva, essa luta por educação básica enquanto ideal de igual Disso, o autor conclui que, diante de um mundo no qual as pessoas circulam com muito mais agilidade, fazendo com que as relações entre diferentes sejam muito mais próximas e contínuas, criando um contexto de convivência entre as diferenças, faz com dade na diversidade inspirou o projeto de Educação Para Todos (EPT), capitaneado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que assumiu: “a educação é um direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro” (UNESCO, 1990). que a diferença seja a característica mais marcante da educação atual. Fundamentos Quilombola da Educação A confluência de potencialidade e di- reito levou à instituição a encaminhar metas a serem atingidas pelos países participantes na Conferência Mundial sobre Educação, em Jomtíen, 1990, e alcançá-las, ainda é um dos Do ponto de vista da população negra, maiores desafios colocados para a ONU e o Brasil da virada do século XX foi marcado por extensão para toda a humanidade. O do- pela luta de inserção digna na educação es- cumento desta reafirma o compromisso dos colar negada pelo escravismo colonial, cujas países com uma escola de Educação Básica cicatrizes ainda permanecem vivas. Algumas para todos, transcrevendo seus objetivos e contradições herdadas desse modelo ainda abrangência e instrumentos essenciais. influenciam, de modo especial, a autoestima e o desempenho escolar da criança negra. Os conteúdos básicos e as heranças linguísticas, culturais e espirituais, foram in O movimento de renovação da edu- terpretados como esforços de satisfação das cação ganhou projeção por defender uma es- necessidades básicas de aprendizagem. Os cola pública e gratuita para todos na reforma modelos didático-pedagógicos – vinculados educacional de 1930, mas desvelou a crença aos valores, culturas e crenças locais – como da elite intelectual e da sociedade na ciência estratégia de adequação e busca pelo forta- eugênica, na objetividade técnica e no cienti- lecimento das identidades e raízes culturais 28 das populações locais. Entendimento que de O movimento da ONU, estimulado algum modo contribui para a transforma- por intelectuais e ativistas envolvidos com ção dos conteúdos e estratégias de ensino a inserção digna dos saberes sobre a África e em instrumentos de diálogos horizontais afrodescendentes nas abordagens escolares, entre contextos, culturas e povos. Portanto, mobilizou-se em torno de um grupo de tra- meios, não um fim em si. balho para orientar parâmetros de políticas públicas que resultou em dois documentos Passada uma década da conferên- cia de Jomtíen, a UNESCO, em 2000, reuniu novamente os países signatários no Fórum Mundial de Educação de Dakar para uma avaliação do projeto, cujo relatório – no parágrafo 5º – afirma: a avaliação de EPT 2000 demonstra que que têm servido de base aos debates em torno da questão: as Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, 2005 e as Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, 2006. houve progresso significativo em muitos países. Mas é inaceitável que, no ano 2000, mais de 113 milhões de crianças continuem sem acesso ao ensino primário e Produzidos por equipes multidisci- plinares do Ministério da Educação/Secreta- que 880 milhões de adultos sejam analfa- ria de Educação Continuada, Alfabetização betos; que a discriminação de gênero con- e Diversidade (MEC/SECAD), o documento tinue a permear os sistemas educacionais; (BRASIL, 2006, p. 13) informa que: e que a qualidade da aprendizagem e da aquisição de valores e habilidades huma- se dirige a diversos agentes do cotidiano nas não satisfaçam as aspirações e neces- escolar, particularmente, aos(as) professo- sidade dos indivíduos e das sociedades res/as, trazendo, para cada nível ou moda- (UNESCO, 2001, p. 7). lidade de ensino, um histórico da educação brasileira e a conjunção com a temática Ele revela também que o Brasil acu- étnico-racial, adentrando na abordagem mula déficits educacionais históricos, cuja desses temas no campo educacional e con- superação requer esforços radicais do Esta- cluindo com perspectivas de ação. do e uma vigilância constante da sociedade, de modo que a educação para todos seja um desafio de todos. Isso vem elevando a cons- todas as modalidades, das quais destaca- ciência dos educadores e dirigentes educa- mos a educação infantil, a quilombola e as cionais quanto à necessidade de ampliar licenciaturas, por estarem voltadas às con- os contextos para além do tradicionalismo vergências deste estudo, em relação com a educacional a fim de atender uma sociedade etnomatemática. Sendo assim, o primeiro marcada por diferenças. Seu conteúdo está distribuído por 29 grupo responsável pelas orientações no En- de avaliação para promover reformulações sino Fundamental, traz no parágrafo 2º uma em suas práticas pedagógicas? boa síntese dos seus objetivos, conforme pode ser observado: No que tange à educação quilombo- la, o grupo responsável tomou como presconsideramos relevante apresentar prin- suposto os parâmetros legais para definir cípios significativos e fundamentais que as escolas localizadas nas 2.228 comunida- possam orientar os (as) profissionais quanto ao trato positivo do tema, bem como variadas sugestões para se cons- des remanescentes de quilombos, em quase todos os estados da Federação (NAVARRO, truir um referencial curricular no qual 2005). Os relatos das comunidades dão con- alguns elementos constitutivos da cos- ta de algumas escolas comuns, enquanto movisão africana, em grande parte des- em outras, os estudantes precisam se des- conhecida no campo educacional brasi- locar, gerando demandas de ordem que vão leiro, compareçam como base, a exemplo da ancestralidade, circularidade, solida- das dificuldades de deslocamento até a ina- riedade, oralidade, integração, coletivi- dequação do currículo, que se soma ao fato dade, (BRASIL, 2006, p. 55 - 56). de que “os (as) professores (as) não são capacitados adequadamente e o seu número é Em seguida, fazem questionamen- insuficiente. Poucas comunidades possuem tos que sintetizam os anseios da população unidades educacionais com o Ensino Funda- negra e que são assim descritos: a) Em que mental completo”, (BRASIL, 2005, p. 57). ponto a escola se encontra no itinerário de construir uma educação que valorize e res- Pensar uma educação quilombola peite as diferenças? b) Que tipo de diálogo significa buscar caminhos em diálogo com a escola tem estabelecido com as diferentes as comunidades, partindo do princípio de culturas, em especial a cultura negra, presen- que “Quilombo” remete a instituições mais tes no universo escolar? c) Qual tem sido o expressivas que territórios de resistência ao posicionamento da escola diante das relações escravismo. Representa o lugar onde pesso- étnico-raciais estabelecidas em seu interior as depositam anseios e sonhos que consti- que tem dificultado a construção positiva da tuem heranças ancestrais que são fontes de identidade racial e o sucesso escolar do alu- conhecimento acerca de um dos três pilares no negro? d) Qual a importância que a esco- civilizatórios da nação. la tem dado às recentes estatísticas que demonstram as dificuldades encontradas pelo Desses pressupostos encaminha-se segmento negro, especialmente no campo da uma série de pontos que estão especialmen- educação? e) As instituições escolares têm se te destacados no documento. Em síntese, servido destas estatísticas em seus momentos eles compreendem: a) Mapear as condições 30 estruturais e práticas pedagógicas das esco- em síntese são: a) Apoiar a capacitação de las localizadas em áreas de remanescentes de gestores locais para o adequado atendimen- quilombos e o grau de inserção das crianças, to da educação nas áreas de quilombos; b) jovens e adultos no sistema escolar; b) Garan- Promover formação continuada de profes- tir direito à Educação Básica para crianças e sores da educação básica que atuam em adolescentes das comunidades remanescen- escolas localizadas em comunidades rema- tes de quilombos, assim como as modalida- nescentes de quilombos, atendendo ao que des de EJA e AJA; c) Ampliar e melhorar a rede dispõe o Parecer 03/2004 do CNE e conside- física escolar por meio de construção, am- rando o processo histórico das comunidades pliação, reforma e equipamento de unidades e seu patrimônio cultural. escolares; d) Incentivar a relação escola/comunidade no intuito de proporcionar maior Acúmulos da etnomatemática interação da população pela educação, fazendo com que o espaço escolar passe a ser fator de integração comunitária; e f) Aumentar a gra, do ponto de vista da Educação Etnomate- oferta de Ensino Médio nas comunidades qui- mática já compõem as estratégias de estudo lombolas para que possamos possibilitar a do GEPEm-FE/USP, pois do grupo percebe-se formação de gestores e profissionais da edu- a produção de alguns – por volta de dez – es- cação das próprias comunidades. A responsabilidade de refletir sobre a adequação da formação dos profissionais de nível superior em geral, e em especial “nos cursos de formação dos profissionais da educação” (BRASIL, 2006, p. 125). No tocante ao trato com a lei 10.639/03, o grupo definiu que a abrangência da temática faz com que esta meta seja subdividida. No entanto, optamos por lidar com As investigações sobre a cultura ne- tudos de mestrado e doutorado. Foi também a partir do grupo que se originou o GEPENI/ UFMT, de um membro na coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia – NEAB/UFU. Tais acúmulos têm servido às refle- xões de educadores matemáticos na fundamentação e desenvolvimento de propostas pedagógicas voltadas à formação de educadores. E, ao serem somados às experiências a formação inicial e continuada de professo- com a formação de educadores indígenas res em função da afinidade com os estudos desde maio de 2002, contam com a parceria e práticas desenvolvidos no programa Etno- da Faculdade de Educação/USP e Secretaria matemática, o que representa um elemen- de Educação do Estado de São Paulo, sob a to central no diálogo, pois isso nos permite coordenação da Professora Maria do Car- acompanhar as demandas propostas, que mo Santos Domite. 31 O propósito é orientar uma forma- magistério indígena, formação intercultural ção voltada para as escolas das aldeias in- superior indígena e licenciatura indígena dígenas, objetivando que o/a professor/a (ainda em andamento), um sistema dife- “indígena” assumisse a escola da aldeia, renciado de formação que, de algum modo, que compreendia a Educação Infantil. Do serve de parâmetros para se pensar outras processo resultou a certificação de 61 indí- propostas de formação diferenciadas, que genas, vindos de 21 aldeias diferentes, locali- em contrapartida nos sirva como referência zadas em diversas regiões do Estado. de conhecimentos culturais que contribuam com construção de uma perspectiva mais hu- Em seguida, o Curso de Formação manista do conhecimento cientifico. Intercultural superior do professor indígena concluiu a graduação em 2008, abrindo espaço para um sistema que possa ir ao encontro das particularidades culturais de cada grupo étnico, tomando como enfoque o desenvolvimento das instituições educacionais – a escola da e na aldeia – cada vez mais nas mãos dos próprios indígenas, sob a orientação/liderança de cada um dos povos. Frente a este desenvolvimento está sendo encaminhada uma formação em serviço, por parte de formadores não indígenas, paralela à atuação do professor, que tem procurado desenvolvê-la no sentido de buscar recursos educacionais mais apropriados, tanto do ponto de vista cultural quanto linguístico. Na perspectiva de alcançar resultados significativos para o exercício de um diálogo intercultural, pautado no respeito à diferença, acerca da educação (matemática) indígena. Como prática, os acúmulos e conhe- cimentos resultaram em três estágios do processo de formação dos professores indígenas: 32 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Parecer CNE/CP- 3/2004, 2004. ______. Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006. D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: o elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, (2005). ______. Uma síntese sociocultural da história da Matemática. São Paulo: Proem. (2011). SILVA, V. L. da. A cultura negra na escola pública: uma abordagem etnomatemática (Dissertação de Mestrado- Faculdade de Educação da USP). São Paulo, 2008. NAVARRO, Luciana. Muitas comunidades, poucos registros. Disponível em: http:// www. unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm. Acesso em 12/05/2005 VERGANI, Teresa. Educação Etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007. 33 Presidência da República Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO Coordenação Pedagógica Ana Maria Miguel Acompanhamento pedagógico Grazielle Bragança Copidesque e Revisão Milena Campos Eich Diagramação e Editoração Bruno Nin Felipe Mesquita Virgílio Veiga Consultora especialmente convidada Maria do Carmo Domite E-mail: [email protected] Home page: www.tvescola.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4º andar – Centro. CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ) Setembro 2014 34