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Eliezer Ben- Yehuda e o hebraico - o “não” de um pai (1)
Edson Luiz André de Sousa∗
Resumo
Este artigo coloca em diálogo duas autobiografias: a de Eliézer Ben-Yehouda e a de
seu filho Ithamar Ben-Avi. Ben-Yehouda foi o grande responsável pelo ressurgimento
do hebraico falado, experiência fascinante, que nos abre uma reflexão sobre a função
de uma língua no projeto de construção de um estado para o povo judeu. Tentamos
mostrar por meio da história que deixaram registrada em suas autobiografias algumas
articulações entre linguagem, Psicanálise e utopia.
Palavras-Chave: Ben-Yehouda, hebraico, utopia.
Abstract
This paper puts into dialogue two autobiographies: Eliezer Ben-Yehouda’s and his
son Ithamar Ben-Avi. Ben-Yehouda was largely responsible for the revival of spoken
Hebrew. This was a fascinating experience that opens a field of reflection on the role
of language in the project to build a state for the Jewish people. We tried to show
through these autobiographies some connections between language, psychoanalysis
and utopia.
Keywords: Ben-Yehouda, Hebrew, utopia.
∗
Psicanalista, tem Pós-doutorado na Universidade de Paris VII e na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales.
Professor na Pós-graduação de Psicologia Social e Institucional e Pós-graduação em Artes Visuais UFRGS. End.: Rua
Ramiro Barcelos 2600 - Porto Alegre, RS. CEP: 90035-003. Tel. (51) 33085149. [email protected]
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Para Isaac Starosta, construtor de um Sion,
abrigo de meus sonhos juvenis.
“Mit dem Mund, mit seinem Schweigen,
Mit den Worten, die sich weigern”
Paul Celan (2)
“Seria preciso algo comparável ao solvente universal
que os alquimistas buscavam e cuja eficácia se apreciaria
não nos metais, mas nas instituições. Na espera de que a fórmula
seja encontrada, observemos de passagem que a
alquimia e a utopia em seus aspectos positivos
têm uma grande semelhança: perseguindo, em domínios
heterogêneos, um sonho de transmutação parecido,
se não idêntico, uma se apega ao irredutível na natureza,
a outra ao irredutível da história. O elixir da vida e a cidade ideal
procedem de um mesmo vício do espírito,
ou de uma mesma esperança.”
(CIORAN, 1994, p. 114)
Se partirmos da homofonia em francês, que permite uma aproximação elucidativa entre
nome e não, nossa proposição inicial seria de pensar que um nome do pai (nom du père) se constitui
a partir de um não do pai (non du père). “Não do pai” que introduz um princípio de lei, instaurando,
assim, um campo possível para o desejo. Em outras palavras, um pai se faz presente quando é capaz
de propor e sustentar uma interdição. Este já é um tema clássico na história da Psicanálise, contudo,
as intercorrências singulares nas quais este processo acontece vão gerar horizontes de vida
completamente diferentes.
Toda nomeação instaura potencialmente um campo utópico na medida em que o nome vem
anunciar um lugar possível, ainda não existente, àquele que se banha nestas poucas letras que o
singularizam no mundo. Nome como uma espécie de ponto de partida, mas sobretudo ponto de
horizonte. O que queres de mim? O nome próprio injeta ficção na vida. Ele responde a um desejo do
qual o sujeito é literalmente receptáculo e, por mais que sejam explicitadas as razões de determinada
escolha por aquele que nomeia, este nome sempre permanece parcialmente obscuro. O desafio é,
portanto, o de se fazer um nome. (3) Mas todo nome próprio é composto de uma parte variante, o
prenome, e de um invariante, o nome de família, o qual nos lembra que há uma lei de transmissão
em cena para além dos sujeitos. Mudar um nome abre muitos cenários que não podem ser
generalizados, pois cada configuração desenha uma história específica. Nossas duas âncoras para
esta reflexão mudaram seus nomes. Eliézer Ben-Yehuda, que nasceu na Lituânia, em 1858, tinha
como nome Eliézer Isaac Perelmann Elianov. Queria se desprender do que ele nomeava como seu
“nome de exílio” e, desta forma, se apropria do prenome de seu pai, Yehuda, inaugurando, assim,
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uma nova rede familiar. Gesto, portanto, de ruptura parcial com o pai, mas sobretudo com uma
história vivida na Rússia. Com seu filho Ithamar, acontece também algo parecido. Queria chamá-lo
Heber, o pai de todos os “hebreus”, bisavô de Abraham. No momento da circuncisão, ao propor o
nome, este foi unanimamente recusado. Os religiosos alegavam que não conheciam este nome e este
não se inscrevia dentro dos costumes. A mãe queria Ithamar (filho de Arão), mas sobretudo pelo
nome de uma palmeira (em hebraico tamar, Itamar) que lembrava muito sua terra natal, na Rússia. O
pai decide por Ben-Zion Ben Yehouda. Ithamar, mais tarde, muda seu nome, atendendo, assim, ao
desejo da mãe. Não podemos ler aqui um não endereçado ao pai e, ainda, o retorno do significante
russo recalcado pelo pai e sustentado pela nostalgia materna?
BenYehouda
Toda utopia busca introduzir na história novas possibilidades de mundos, abrindo, assim,
espaços inéditos de imaginação. Importante sublinhar que muitos destes projetos nasceram como
construções de discursos em textos literários, interpelando a paralisia de um futuro que tende à
repetição. Textos, portanto, que injetam uma certa dose de delírio no ar dos tempos. Este é um dos
pontos cruciais da argumentação de Emil Cioran em seu clássico “História e Utopia”.
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Aqui como lá, estamos todos em um ponto morto, igualmente diminuídos nessa ingenuidade
em que se elaboram as divagações sobre o futuro. A longo prazo, a vida sem utopia se torna
irrespirável, para a multidão pelo menos: sob pena de petrificar-se, o mundo necessita de um
delírio novo. (CIORAN, 1994, p. 22)
Ben-Yehuda foi acionado pelo delírio de fazer ressurgir o hebraico como língua falada e
como nova língua materna dos judeus. Tomou posição diante deste “delírio” e lançou-se na ação.
Seguia, desta forma, uma máxima de Cioran, que insistia que “agir é cometer um delírio contra o
absoluto” (CIORAN, 1994, p. 88)
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Impossível não associar a palavra utopia ao renascimento do hebraico como língua falada. Um
breve percurso na história deste ressurgimento é suficiente para percebermos o ponto de articulação
entre a obstinação de um homem, Eliezer Ben-Yéhuda, evidentemente articulado com todo um
contexto histórico que deu lugar a este fenômeno sublime de nossos tempos. Como pai, viu em seu
filho Ithamar a possibilidade de colocar em prática seu projeto e, assim, como ele mesmo insistia,
dar à luz a primeira criança destes novos tempos a ter o hebraico como língua materna. Talvez seja
um exagero depositar unicamente nesta cena o disparador de todo este processo, mas não podemos,
tampouco, desprezar o seu valor de um mito de fundação. Trata-se aqui de um corte na história e
criação de um novo paradigma, que a Psicanálise apropriadamente chama de produção de um ato.
Algo novo se colocou no horizonte de uma língua que hibernava há muitos séculos na aura sagrada
de seus textos. Neste ponto, concordo com o apontamento de Mireille Hadas-Lebel em seu ensaio
“Hebraico: 3000 anos de história”
Não devemos exagerar o excesso de influência que uma personalidade, mesmo tão forte
como a de Eliézer Ben Yehuda, pode ter tido sobre um fenômeno tão complexo como a
ressureição do hebraico falado, mas quando a fé de um homem encontra um grande projeto,
seu entusiasmo acaba por criar uma dinâmica. (HADAS-LEBEL, 1992, p. 140)
Seu gesto tinha como fundamento um certo pensamento de salvação, pois considerava que o
projeto sionista inaugurado por Theodor Herzl só teria efetivamente consistência se uma língua
nacional pudesse ser compartilhada neste novo estado. O que lhe movia, portanto, era o
“impossível” deste projeto. Eram muitas as resistências a esta ideia, incluindo o próprio Herzl. O
projeto de Ben-Yéhouda seguia, assim, um dos princípios fundamentais do princípio utópico de
Cioran:
Só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma sociedade incapaz de
gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada de esclerose e de ruína. A sensatez,
à qual nada fascina, recomenda a felicidade dada, existente; o homem recusa esta felicidade,
e essa simples recusa faz dele um animal histórico, isto é, um amante da felicidade
imaginada. (CIORAN, 1994, p.101)
Pai e filho: homens dicionários. Eliezer escreveu os 17 volumes do “Thesaurus da língua
hebraica antiga e moderna”, trabalho de fôlego ao qual sempre se entregou com muita determinação.
Ao morrer, em 1922, apenas os 7 primeiros volumes tinham sido publicados. Sua segunda mulher,
Hemda, deu sequência ao trabalho, que só se finalizou em 1959. Eliezer era chamado por muitos de
o “dicionário vivo”. Ithamar, afixionado pelo mar, começou a esboçar um dicionário marinho
buscando passagens bíblicas.
Eliézer era tuberculoso, doença que contraiu em Paris, onde veio para estudar Medicina e,
assim, encontrar um trabalho que o sustentasse na terra de Israel. Vivia do ar de um sonho. Este era
o fôlego que o sustentava e dava a ele a energia para enfrentar todos os desafios que a vida lhe
reservou (e que não foram poucos). Ao chegar em Eretz-Israel, (4) escreve em seu diário: “Aspiro
seu ar com avidez !” (BEN-YEHOUDA, 1988, p. 52). Este sonho, aliás, está escrito na primeira
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frase de sua autobiografia, que começa assim: “Eu tive um sonho” (BEN-YEHOUDA, 1988, p. 51).
Este sonho (relatado um pouco mais adiante em seu texto) aconteceu quando tinha 16 anos de idade.
Acompanhando com preocupação a revolta dos búlgaros contra a Turquia, ele se viu tomado de uma
forte identificação com esta luta de libertação da Bulgária:
“Depois de muitas horas de leitura dos jornais e da meditação sobre os búlgaros e sua
libertação eminente, repentinamente, como se um relâmpago tivesse ofuscado meus olhos,
meu pensamento se transporta das pontes de Chipka, nos Bálcãs, para as do Jordão, em
Eretz-Israel, e escuto uma estranha voz interior me chamar: Ressureição de Israel e sua
língua na terra dos pais. Este foi meu sonho.” (BEN-YEHOUDA, 1988, p. 64)
O filho, marítimo, sonhava com uma frota náutica israelense, e o texto que deixou é uma
espécie de reverberação no fluxo das marés, colocando em cena as palavras silenciadas do pai.
Amplia, assim, a geografia deste universo que estamos tentando rapidamente cercar. Os dois textos
se entrecruzam em tempos, estilos e perspectivas diferentes. Se Eliézer aponta os alicerces, Ithamar
indica algumas quedas. Ele mesmo diz que muito do que escreveu em sua autobiografia é fruto do
que ouviu do pai. Deu forma em letra às “palavras que se recusam” (5) do pai. E não foram poucas:
doença do pai, morte dos filhos, morte da primeira mulher, sua prisão por um ano ao ser denunciado
por judeus ortodoxos, suas dificuldades financeiras, seus embates e rupturas com amigos, sua
obstinação violenta, chegando mesmo a explicitar sua firme posição de sacrificar o filho aludindo,
assim, à cena bíblica de Abraão e Isaac. Vejamos um fragmento de diálogo transcrito por Ithamar
quando seu pai responde às objeções do amigo Pinès ao absurdo da experiência que fazia com o
filho. Pinès lhe diz:
E se seu filho se tornar um idiota por toda a vida? Isto será o sacrifício de Isaac em uma
forma moderna, mas nenhum anjo divino virá em teu socorro....
- Ah! Neste caso, respondeu sem pestanejar meu pai, eu continuarei a experiência com meu
segundo filho, meu terceiro, meu quarto, até que eu obtenha êxito. (BEN-AVI, I. 1988, p.
195)
Esta ideia de sacrifício está muito presente para Ithamar. Ele teria ouvido da boca do próprio
pai que sacrificaria seu filho no altar da ressureição da língua hebraica. A máxima de Ben-Yehuda
era de que o renascimento do país só aconteceria com o renascimento da língua.
Mas o anjo vai aparecer. É justamente nesta cena que gostaria de me deter para pensar alguns
fios condutores de minha reflexão.
Como muitos sabem, Ben-Yehouda decidiu mostrar ao mundo que o hebraico poderia
renascer como língua corrente e, assim, articulou toda uma pedagogia rigorosa para que seu
primogênito fosse o exemplo vivo do primeiro judeu em nossos tempos a ter o hebraico como língua
materna. As duas biografias são cheias de detalhes estarrecedores, mostrando esta tensão histórica
entre um pai e um filho, detonadores míticos de uma realidade hoje estabelecida. Ithamar viveu
isolado por muitos anos. Ben Yehuda proibiu que qualquer pessoa que se aproximasse dele falasse
em outra língua que não o hebraico. Imaginou, inclusive, como relata seu filho, que este não poderia
escutar nem mesmo os sons da natureza, como o canto dos pássaros, o relinchar dos cavalos, o
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batimento das asas das borboletas, pois, segundo ele: “suas línguas são também línguas estrangeiras,
em todo caso, não são hebraico.” (BEN-AVI, I. 1988, p. 205)
Até os três anos de idade, um mutismo completo. A experiência se anunciava como um
fracasso quando uma nova cena mudou o rumo da história. Gostaria de me deter rapidamente a esta
cena e retirar dela alguns princípios analíticos desta relação entre NOME e NÃO.
Esta cena é relatada por Ithamar. Ben Yehouda não diz praticamente nada sobre os detalhes
deste acontecimento fundamental, ou seja, o momento em que o filho diz a primeira palavra em
hebraico. Ben Yehouda estava viajando e sua esposa, Deborah, mergulhada em uma atmosfera de
nostalgia, canta em russo para o pequeno Ithamar. Ele relata que um verso ficou gravado para toda a
sua vida. “Na siniah volnah okeana” (sobre as ondas de um oceano azul). Este era um verso do poeta
preferido de Deborah, Lermontov. Aqui, mais um pouco de azul nos projetos marítimos do filho.
Em um destes momentos musicais, Ben Yehouda entra em casa e vê a cena que tanto temia.
Diz o pai: “Que fizestes? Tudo o que construímos juntos nesta primeira casa hebraica tu
destruiu em um só dia!” (BEN-AVI, 1988, p. 201) Bate enfurecido em uma mesa (na qual
trabalhava sempre em seu dicionário) e a quebra. Quebra de um pacto, de um sonho, de um ideal, de
uma obstinação também. Vejamos o que nos diz Ithamar:
“Ao ver meu pai borbulhando de cólera e minha mãe gemendo como uma criança percebi
tudo que se passava em casa, joguei-me contra meu pai gritando: Aba!!!” (BEN-AVI, I. 1988, p.
201) Aba, (pai) surge, portanto, ao mesmo tempo como um não e um sim, um não-sim, um não que
barra a fúria do pai, o interdita em sua ira dirigida à mãe, mas, ao mesmo tempo, lhe restitui em
palavra o que tanto demandara do filho. Aba como se enunciasse simultaneamente seu nome (o
lugar de onde fala, como filho) e o nome do pai (o que o Outro demanda dele). Responde ao
chamado da história como herdeiro de uma aliança com a língua dos ancestrais. Aba como ponto
intervalar na relação entre um e outro, lugar utópico, que, pela nomeação de seu lugar, indica e
ratifica o lugar do pai: tu o pai (utopia) (6). Como diz Louis Marin, termo neutro que “funciona
logicamente como instrumento da conjunção de contrários, é a partir dele e em torno dele que os
contrários se equilibram em sua contrariedade.” (MARIN, 1973, p.31) (7).
Primeira palavra, origem, momento único de retorno a um balbucio de uma língua que
acorda com este chamamento ao pai. Momento que abre uma ferida na história, inaugurando com
este ato um novo tempo. Como lembra Gerard Haddad, psicanalista responsável pela organização e
tradução das duas autobiografias em questão, estamos diante de algo novo, inédito na história.
Escreve Haddad na introdução ao livro que organizou:
“Lacan considerava toda emergência de uma letra nova como signo de uma virada na
subjetividade. O que pensar, então, da ressurreição de uma língua inteira, escrita e falada...?” (BENYEHOUDA, 1988, p. 32)
As duas biografias mostram o quanto este projeto encontrou resistências, colocando, por
exemplo, Ithamar em situações de risco em inúmeros momentos pelo simples fato de falar em
hebraico. Relata, comovido, por exemplo, sobre a morte de seu cachorro, o qual foi morto a
pauladas por judeus ortodoxos porque Ithamar ao chamá-lo na rua, “Mahir”, estes ouviram “Meir”
e suspeitaram que seu pai havia dado este nome numa atitude de desrespeito a um dos Mestres do
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judaísmo. Ithamar também recebeu inúmeros golpes e voltou para casa com o seu cão morto e o
rosto ensanguentado.
Aba de Ithamar inaugura uma série significante ainda viva no hebraico ,pois não foram
poucas as palavras que Ben-Yéhouda teve que inventar, e algumas delas surgiram das
construções/invenções de seu filho. Todo o trabalho de sistematização da língua se precipitou a
partir deste momento. Em 1890, funda, junto com David Yellin, o comitê da língua hebraica, que se
tornará, mais tarde, a Academia Hebraica, da qual Eliézer Ben-Yéhouda será o presidente até sua
morte. Aliás, o primeiro neologismo criado por Yehouda foi justamente uma palavra para designar
dicionário. Como a expressão “livros das palavras” não lhe pareceu cômoda, propôs milon, que vem
de mila, que significa palavra.
Se um dicionário funciona, por um lado, como um porto que acolhe os esquecimentos de
uma língua, por outro, também cumpre uma função de deriva, pois escancara os pontos cegos desta
mesma língua, convocando os falantes a preencherem as lacunas inevitáveis. A partir da cena mítica
que acabo de mencionar, proponho duas reverberações de reflexão para abrir novos ramos, remos,
rumos nesta “rima de si mesmo”. (CELAN, 2002, p. 90) (8).
Não-ABA-Sim. Nome que, em sua asserção, aponta um negativo, constituindo, assim, o
princípio mesmo da utopia. A palavra Aba pronunciada endereça um não ao pai, mas justamente
respondendo à sua demanda, falar em hebraico. Não poderíamos pensar aqui algo próximo do que
Louis Marin nomeia como nome próprio negativo. Não se trata de um não ao pai e ponto final. Esta
posição poderia implicar o eterno mutismo do filho. Talvez possamos pensar algo mais próximo do
sentido mesmo da palavra utopia, um não lugar, mas, assim mesmo, um lugar.
“Morus não escreve que a Utopia não está na realidade do espaço geográfico e histórico. Ele
escreve, ao nomeá-la Utopia, que ela é o não espaço, o não lugar. Não lugar é precisamente este
lugar utópico.” (MARIN, 1973, p. 128)
Aba-Aba-Aba. Encontramos várias instâncias de pai neste ato de enunciação de Ithamar:
Aba, ancestral que retorna, restituindo um laço rasurado com a história. Trata-se, portanto, da
“reinscrição do símbolo paterno em uma estrutura que o rejeita” (BEN-YEHOUDA, 1988, p. 178).
Em outro momento, Haddad diz, ainda, “ressuscitando o hebraico, Ben-Yehouda refunda o nome do
pai apagado” (BEN-YEHOUDA, 1988, p. 42). Encontramos, também, a afirmação do lugar Aba
Eliézer, que é literalmente salvo pela palavra do filho. Enfim, a própria língua em seu horizonte
instaurando os Nomes do pai. São eles que nos abrem o caminho para os nossos balbucios iniciais,
bê-a-bá, única origem possível para uma terra prometida, seja ela onde for.
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E
Enclycopeia Hebraica
Projeto de BenYehouda
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NOTAS
1.Em francês, encontro a homofonia perfeita que me interessa pensar neste artigo ”non du père” “nom du
père”. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no colóquio “La Force du Nom”, Universidade
Hebraica de Jerusalém, em novembro de 2009, organizado pela Universidade Hebraica e pela Université de
Paris VII.
2. CELAN, Paul. La rose de personne. Paris: Éditions José Corti, 2002, p. 19:
“Com a boca, com seu silêncio
Com as palavras que se recusam”. Tradução do autor.
3. Ver LAPIERRE, Nicole. Changer de nom. Paris: Stock, 1995 (Sobretudo o capítulo “Fazer um nome” (“Se
faire un nom”).
4. Terra de Israel. Nome hebraico para a Palestina.
5. Conforme o verso de Paul Celan que citamos no inicio de nosso texto.
6. Em portuguê,s encontramos a formulação precisa deste enunciado, pois Tu o pai é anagrama de utopia.
7. No primeiro capítulo deste livro, Louis Marin desenvolve uma série de reflexões sobre a aproximação
entre a utopia e a ideia do neutro. Remeto, portanto, o leitor a este ensaio.
8. “sich selber der Reim”. Alusão a um verso de Paul Celan, no poema “Anabasis” in: CELAN, Paul. La rose
de personne.
REFERÊNCIAS
BEN-AVI, I. Mémoires du premier enfant hébreu. Paris: Desclée de Brouwer, 1988.
BEN-YEHOUDA, E. Le Rêve Traversé. Paris: Desclée de Brouwer, 1988.
CELAN, P. La rose de personne. Paris: Éditions José Corti, 2002.
CIORAN, E. História e Utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
HADAS-LEBEL, M. L’hebreu: 3000 ans d’histoire. Paris: Albin Michel, 1992.
MARIN, L. Utopiques: Jeux d’espaces. Paris: Les Èditions de Minuit, 1973.
Recebido em: 12 de abril de 2010.
Aprovado em: 07 de maio de 2010.
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