Universidade Federal do Rio Grande do Sul Teoria e prática da Leitura – turma A/ 2014 Meu lugar no mundo: como me relaciono com o lugar onde vivo? Marina Marostica Finatto Roberto Soares Francisco Público-alvo: alunos de 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio (entre 15 e 18 anos) de escola pública, moradores da cidade de Porto Alegre Objetivos: Oportunizar aos alunos que olhem de forma diferenciada para o lugar onde vivem e passam todos os dias afim de que percebam como ações e acontecimentos locais têm causas e efeitos que extrapolam o local. Também será abordado como os discursos se constroem a partir do lugar de onde são produzidos, isto é, não são neutros. Justificativa: A vinda da Copa do Mundo para o Brasil escancarou uma realidade que já fazia parte das vidas de milhares de brasileiros: as remoções em prol da iniciativa privada e da especulação imobiliária. Desde o anúncio, os diversos planos de reestrutura urbana das Cidades Sede da Copa do Mundo no Brasil são alvos de debates acirrados, de um lado, encontramos o discurso do progresso, da modernização das cidades, de outro, encontramos o discurso de denúncia sobre as violações ao direito à moradia. A repercussão desses discursos na sociedade são totalmente assimétricos, posto que os veículos de comunicação de massa expõem somente aquele que interessa ao capital privado e ao setor imobiliário. Diante desse quadro, a oficina é importante pois propõe apresentar e refletir com os alunos esses diversos discursos a respeito dos processos de reurbanização das Cidades Sede. Número de alunos: 20 Número de horas/ aula: 6h/aula divididas em 3 dias (2h/aula por dia) no turno inverso Recursos necessários: cópias impressas das imagens ou data-show; aparelho de DVD ou data-show Resultado esperados: olhar crítico para a realidade em que estão situados e também para aquela que percebem através de suportes textuais; que possam desenvolver uma atitude responsiva diante de textos em diversos suportes. Forma de avaliação: escrita de um diário e participação nos debates; autoavaliação e avaliação da oficina Unidade temática: Meu lugar no mundo: Como me relaciono com o lugar onde vivo? Descrição das atividades 1º dia: Atividade de pré-leitura: Em dupla, leia a tirinha abaixo e responda às questões: Perguntas para serem respondidas em duplas. As respostas deverão ser compartilhadas com o grande grupo: Na sua opinião, porque a personagem diz que o mundo em tamanho real é “um desastre”? O que seria um desastre no mundo? Você consegue identificar as pessoas que mais sofrem/ sofreram com eles e as que os causaram? (caso os alunos liguem a noção de desastre a desastres naturais): Existem desastres causados pelo próprio homem? Atividade de leitura: “Anne Frank manteve um diário entre 12 de Junho de 1942 e 1° de agosto de 1944. (...) A última anotação no diário de Anne data de 1º de Agosto de 1944. Três dias depois, em 4 de Agosto, as oito pessoas escondidas mo Anexo Secreto foram presas. Miep Gies e Bep Voskuijl, as duas secretárias que que trabalhavam no prédio, encontraram os diários de Anne espalhado pelo chão. Miep Gies guardou-os numa gaveta. Depois da guerra, quando ficou claro que Anne estava morta, ela deu os diários, sem ler, ao pai de Anne, Otto Frank. (…) O leitor pode ter em mente que boa parte desta edição se baseia na versão b do diário de Anne, que ela escreveu quando estava com cerca de quinze anos. (...)” Prefácio da Edição Definitiva de O diário de Anne Frank, Editora Record, 2007 Leia os trechos retirados do Diário de Anne Frank (ANEXO 1) e responda às questões abaixo: Anne Frank conta sua história em forma de um diário.Você escreve ou conhece alguém que escreva um diário? Quais são as características desse gênero discursivo que você pode notar? Nos trechos lidos, Anne descreve o lugar onde ela e sua família precisam se esconder por conta da perseguição nazista aos judeus na Europa no período entre 1933 e 1945. Como ela o descreve? Como identificamos como ela se sente com relação a esse local? O que podemos dizer, a partir do que Anne descreve, sobre a situação dos judeus sob o nazismo? “Eu não, gostei desde o início; parece muito tranquilizador, especialmente à noite. Você sem dúvida quer ouvir o que acho sobre estar escondida. Bom, só posso dizer que ainda não sei direito. Acho que nunca me sentirei à vontade nesta casa, mas isso não significa que eu a odeie. É mais como estar de férias em alguma pensão estranha. É um modo meio estranho de ver a vida num esconderijo, mas é assim que as coisas são. O Anexo é um lugar ideal para se esconder. Pode ser úmido e torto, mas provavelmente não há esconderijo mais confortável em Amsterdã. Não, em toda a Holanda.” “Comentário acrescentado por Anne em 28 de Setembro de 1942: Não poder sair me deixa mais chateada do que eu posso dizer e me sinto aterrorizada com a possibilidade de nosso esconderijo ser descoberto e sermos mortos a tiros. Esta, claro, é uma perspectiva muito desanimadora.” Você não sabe nada sobre isso, e eu levaria o dia inteiro para descrever tudo até os mínimos detalhes. As pessoas precisam entrar em filas para comprar legumes e todo o tipo de mercadorias; os médicos não podem visitar os pacientes, já que seus carros e bicicletas são roubados no momento em que eles viram as costas; roubos e assaltos são tão comuns que você se pergunta o que aconteceu de repente com os holandeses para subitamente terem os dedos tão leves. Crianças pequenas, de oito e onze anos, quebram os vidros das casas e roubam o que podem. As pessoas não ousam sair de casa por cinco minutos, já que podem voltar e descobrir que tudo desapareceu. Agora observe as capas do jornal “Diário de Notícias da Bahia” publicadas no período entre 1935 e 1941: Quais são as diferenças que podemos perceber entre o discurso sobre a vida das pessoas sob o nazismo presente no relato de Anne Frank e nas manchetes do Jornal Diário de Notícias da Bahia? Quais elementos te permitiram chegar a essa conclusão? Você consegue perceber discursos diferentes sobre uma mesma situação no seu dia-a-dia? Onde circulam? Apresentação da proposta de diário sobre o que veem no lugar onde vivem e passam todos os dias. A relação deles com o local onde vivem, problemas e coisas boas... 2º dia: Atividade de pré-leitura: No primeiro dia de oficina você leu trechos do Diário de Anne Frank. Anne e sua família foram obrigados a morar em um esconderijo pois sua casa foi tomada pelo governo nazista e os judeus estavam sendo enviados para campos de concentração e sendo assassinados. O que você pensa sobre isso? Você consegue pensar em situações atuais nas quais pessoas tenham de deixar a sua própria casa de forma forçada? Quais? Observe a charge abaixo de Carlos Latuff e, em dupla, responda às questões: Questões a serem respondidas em duplas e compartilhadas com o grande grupo: As charges, geralmente, procuram fazer uma crítica social através de imagens e, às vezes, de humor. Qual você acha que é o assunto dessa charge? Quais elementos te permitiram chegar a essa conclusão? Que relação é possível estabelecer entre as pessoas que aparecem na charge e a situação em que Anne Frank e sua família se encontra nos trechos lidos no primeiro dia de oficina? Exibição do trailer do documentário “A caminho da Copa” (2012) e do documentário “Os estrangeiros da Vila Tronco” (2014) https://www.youtube.com/watch?v=S7mxAGqQ64Y https://www.youtube.com/watch?v=Cj34SZpRhxE Perguntas sobre os documentários: O documentário “Estrangeiros da Vila Tronco” é sobre a situação de moradores de Porto Alegre. A Vila Tronco fica próximo ao local onde você mora? Há notícias de remoções onde você mora ou próximo? O que a utilização de “estrangeiros” ao invés de “moradores”, no título do documentário pode nos sugerir sobre o ponto de vista dos idealizadores do documentário? Quais posicionamentos sobre as remoções é possível perceber em ambos os vídeos? Quem defende as remoções e quem é contra elas? 3º dia Leitura do texto “Segregação social urbana” (Anexo II) e debate em pequenos grupos das questões: Porto Alegre também é uma cidade dividida em zonas. Você acha que encontramos zonas para classes privilegiadas e zonas para classes menos privilegiadas? Na sua opinião, a distribuição de serviços públicos (Saneamento básico, postos de saúde, escolas, creches, áreas de lazer, etc..) é feita da mesma forma em todas as zonas de Porto Alegre? Levante hipóteses do por quê. O autor apresenta o conceito “cultura do medo”. Quais características você imagina que façam parte dessa cultura? Você percebe a existência desta “cultura do medo” em seu diaa-dia? Como/onde isso acontece? O texto apresenta um trecho de uma entrevista de Sérgio Cechin, secretário de habitação e regularização fundiária de Santa Maria.Na sua fala, ele utiliza-se da figura de linguagem ironia. Qual é o efeito de sentido causado pela utilização dessa figura de linguagem no contexto em que está inserida e da forma como foi colocada? Observe o trecho abaixo: Onde há maior concentração de renda, existem as melhores vias de transporte, as taxas mais altas de eletricidade, água encanada, áreas de lazer, entre outros.Onde há menor, nota-se que a vulnerabilidade social aumenta, as oportunidades de trabalho são reduzidas (e é preciso deslocar-se mais tempo para chegar ao local de trabalho) e a violência cresce. Nos verbos destacados está expresso a pessoa verbal? Que efeito de sentido isso causa? Quem poderia(m) ser o(s) sujeito(s) dessas orações? Reescreva a frase colocando suas sugestões. Os alunos serão motivados a fazerem uma última escrita no diário, que conte como se sentiram com relação à oficina (incomodados? Com dúvidas? Curiosos?) e se ela foi útil, se trouxe informações relevantes ou não. Também estará aberto para que deem sugestões. Depois da escrita, os alunos deverão fazer um painel com todas as informações colhidas durante a oficina e suas opiniões sobre o assunto. O painel será exposto nos murais da escola. ANEXO I Sábado, 11 de Julho de 1942 Querida Kitty, Papai, mamãe e Margot ainda não conseguem se acostumar ao barulho do relógio da Westertoren, que bate a cada quinze minutos. Eu não, gostei desde o início; parece muito tranquilizador, especialmente à noite.Você sem dúvida quer ouvir o que acho sobre estar escondida. Bom, só posso dizer que ainda não sei direito. Acho que nunca me sentirei à vontade nesta casa, mas isso não significa que eu a odeie. É mais como estar de férias em alguma pensão estranha. É um modo meio estranho de ver a vida num esconderijo, mas é assim que as coisas são. O Anexo é um lugar ideal para se esconder. Pode ser úmido e torto, mas provavelmente não há esconderijo mais confortável em Amsterdã. Não, em toda a Holanda. Até agora nosso quarto, com suas paredes brancas estava muito nu. Graças a papai – que tinha trazido antes toda a minha coleção de cartões-postais de estrelas de cinema – e a um pincel e um pote de cola, pude cobrir as paredes com gravuras. Ficou muito mais alegre. Quando os van Daan chegarem, poderemos fazer prateleiras e outras utilidades com a madeira empilhada no sótão. Margot e mamãe se recuperaram um pouco. Ontem mamãe se sentiu bem para fazer uma sopa de ervilhas pela primeira vez, mas depois desceu para conversar e esqueceu da sopa. As ervilhas queimaram até ficar pretas, e por mais que raspássemos, não conseguimos retirá-las da panela. Ontem à noite nós quatro descemos ao escritório particular e ouvimos a Inglaterra pelo rádio. Fiquei tão apavorada com a possibilidade de alguém escutar que literalmente implorei que papai me levasse de novo para cima. Mamãe compreendeu minha ansiedade e foi comigo. Independentemente do que façamos, temos muito medo de que os vizinhos possam nos ver ou ouvir. Desde o primeiro dia começamos imediatamente a costurar cortinas. Na verdade, mal dá para chamá-las de cortinas, já que não passam de retalhos de pano – variando grandemente em forma qualidade e padrão – que papai e eu costuramos de qualquer jeito, com dedos desacostumados. Aquelas obras de arte foram colocadas nas janelas, onde vão ficar até que possamos sair do esconderijo. O prédio à nossa direita é uma filial da Companhia Keg, uma empresa de Zaandam, e à esquerda fica uma fábrica de móveis. Ainda que as pessoas que trabalham lá não fiquem à noite, qualquer som que a gente faça pode atravessar as paredes. Proibimos Margot de tossir à noite, mesmo ela estando com um resfriado forte, e estamos lhe dando grandes doses de codeína. Estou ansiosa pela chegada dos van Deen, marcada para terça-feira.Vai ser muito mais divertido e também não vai ser tão silencioso.Você sabe, é o silêncio que me deixa tão nervosa durante os fins de tarde e as noites, e eu daria tudo para que uma das pessoas que nos ajudam dormisse aqui. Realmente não é tão ruim, já que podemos cozinhar e ouvir o rádio no escritório de papai. O Sr. Kleiman e Miep, e Bep Voskuijl também, nos ajudaram demais. Já enlatamos montes de ruibarbo, morangos e cerejas, de modo que, por enquanto, duvido que fiquemos entediados. Também temos um suprimento de material de leitura, e vamos comprar montes de jogos. Claro que não podemos olhar pela janela nem sair. E temos de ficar quietos para que as pessoas lá embaixo não nos ouçam. Ontem ficamos com as mãos ocupadas. Tivemos e descaroçar dois caixotes de cerejas para o Sr. Kugler enlatar.Vamos usar os caixotes vazios para fazer estantes de livros. Alguém está me chamando. Sua Anne Comentário acrescentado por Anne em 28 de Setembro de 1942: Não poder sair me deixa mais chateada do que eu posso dizer e me sinto aterrorizada com a possibilidade de nosso esconderijo ser descoberto e sermos mortos a tiros. Esta, claro, é uma perspectiva muito desanimadora. p. 36-38 Quarta-feira, 29 de Março de 1944 Querida Kitty, O ministro Bolkestein, falando no noticiário holandês transmitido na Inglaterra, disse que depois da guerra farão uma coletânea de diários e cartas que falem da guerra. Claro que todo mundo lembrou imediatamente do meu diário. Imagine como seria interessante se eu publicasse um romance sobre o Anexo Secreto. Só o título faria as pessoas acharem que é uma história de detetives. Sério, dez anos depois da guerra as pessoas achariam muito interessante ler sobre como nós vivemos, o que comemos e sobre o que falamos como judeus escondidos. Apesar de eu contar a você muita coisa sobre nossa vida, você ainda sabe muito pouco a nosso respeito. Como as mulheres ficam apavoradas durante os ataques aéreos, no domingo passado, por exemplo, quando 350 aviões ingleses lançaram 550 toneladas de bombas sobre Ijmuiden, de modo que as casas tremeram como lâminas de vidro ao vento. Ou quantas epidemias grassam por aqui. Você não sabe nada sobre isso, e eu levaria o dia inteiro para descrever tudo até os mínimos detalhes. As pessoas precisam entrar em filas para comprar legumes e todo o tipo de mercadorias; os médicos não podem visitar os pacientes, já que seus carros e bicicletas são roubado no momento em que eles viram as costas; roubos e assaltos são tão comuns que você se pergunta o que aconteceu de repente com os holandeses para subitamente terem os dedos tão leves. Crianças pequenas, de oito e onze anos, quebram os vidros das casas e roubam o que podem. As pessoas não ousam sair de casa por cinco minutos, já que podem voltar e descobrir que tudo desapareceu. Todo dia os jornais estão cheios de anúncios de recompensas pela devolução de máquinas de escrever, tapetes persas, relógios elétricos, tecidos, etc. Os relógios elétricos das esquinas foram desmantelados, os telefones públicos são depenados até o último fio. O moral dos holandeses não pode ser bom. Todo mundo está faminto; a não ser pelo café falsificado, a ração alimentar para uma semana não dura dois dias. A invasão está demorando, os homens são mandados para a Alemanha, as crianças estão doentes ou desnutridas, todo mundo usa roupas velhas e sapatos gastos. Uma sola nova custa 7,50 florins no mercado negro. Além disso, poucos sapateiros fazem consertos, ou quando fazem, você precisa esperar meses pelos sapatos, que enquanto isso podem ter desaparecido. Uma coisa boa resultou disso tudo: à medida que a comida fica pior e os decretos mais duros, aumentam os atos de sabotagem contra as autoridades. O departamento de alimentação, a polícia, as autoridades – todos estão ajudando os cidadãos ou denunciando-os e mandando-os para a prisão. Felizmente apenas uma pequena porcentagem dos holandeses está do lado errado. Sua Anne p.254-256 ANEXO II SEGREGAÇÃO SOCIAL URBANA – 20/06/2012 Um mapa de uma cidade por si só não diz muito. Mas, se agregarmos dados às regiões, resultam algumas observações importantes sobre distribuição étnica e sexual, média de idade e de renda, entre outros indicativos. Mais que tudo, me chama a atenção quando observo os dados do censo do IBGE de 2010, divulgados no fim do ano de 2011, a disparidade de renda entre as algumas regiões, o que leva a pensar na questão da segregação urbana de classe. São bairros a leste, oeste, centro-leste, centro-oeste, sul, norte, nordeste e o centro urbano. Entre as oito divisões, sete são as que concentram maior parte da população com renda entre meio a dois salários mínimos. No sul, norte e oeste pouco mais de 50% da população encontra-se nessa faixa salarial. No centro-leste, centro-oeste e nordeste mais de 40% e no leste, 38,69%. Apenas o centro urbano possui menos de 30% da população com renda até dois salários. Nota-se, assim, que a divisão espacial do mapa deixa de ser uma simples questão de reconhecimento das regiões da cidade. Os traços observados na figura há muito representam uma clara divisão regional por critérios de classe. Vários são os tipos de segregação. A mais comum nas cidades, hoje, é aquela que acontece em decorrência da situação socioeconômica dos habitantes. Classes privilegiadas costumam eleger pontos para viver. Como possuem maior poder de compra, acabam por concentrar os mais variados tipos de serviços ao seu redor. Em Santa Maria, esse fenômeno mundial se confirma. A rede geral de saneamento, um dos serviços mais básicos, por exemplo, chega a pouco mais de 95% das moradias centrais. No leste, chega a apenas 37,96% e no centro-leste, a 27,73%. A segregação espacial causa o aprofundamento das desigualdades. O centro, ponto de forte comércio e serviços gerais, é onde o preço dos imóveis, por exemplo, é mais elevado, o que acaba selecionando quem pode ou não morar na região com base em critérios de poder aquisitivo. Me lembro bem de quando fomos entrevistar o secretário de habitação e regularização fundiária, Sérgio Cechin, sobre a ocupação da Gare, e ele comentou: “Ali [a região da Gare] é uma área nobre, não é? Imagina se essa moda pega!”. Ou seja, a própria administração municipal estimula a segregação social (lembrando que a prefeitura move processo para retirar as dezenas de família da ‘área nobre’, mesmo elas estando lá há mais de 20 anos e mesmo a ocupação tendo atingido proporções de bairro). Os condomínios residenciais de elevado padrão, por sua vez, crescem em grande parte na área leste da cidade, justamente a segunda que possui menor população com baixa renda. Os condomínios fechados constituem-se a figura mais emblemática do fenômeno de auto-segregação das classes mais altas, frequentemente imersas na ‘cultura do medo’. A estigmatização de determinadas regiões como áreas de violência, por exemplo, é algo que faz com que entre a classe média e alta se determinem quais locais são ‘liberados’ para sua circulação. Há a diminuição das relações de socialização da cidade como um todo e, em função disso, uma individualização, na medida em que a identidade dos sujeitos tende a não se relacionar ao todo da estrutura social urbana. Em contrapartida, em bairros mais pobres e marginalizados ainda ocorre um fenômenos de solidariedade entre os moradores (mais frequente e forte quando há uma identidade relacionada à profissão ou a alguma prática cultural em comum), que costumam unir-se em defesa das causas demandadas pelo grupo. A individualização acaba mostrando-se também na forma de administrar as cidades. Problemas são tratados como localizados e não como da cidade. Os cidadãos são olhados a partir da região em que vivem e do poder aquisitivo que possuem, e os esforços que o governo da cidade faz para sanar algum problema frequentemente demandam um esforço grande dos grupos que o sofrem. O resultado é o utilitarismo dos administradores, que tendem a tratar a resolução de problemas como benefícios concedidos. Ou seja, mascara-se a obrigação com uma roupagem de concessão. A segregação não é de agora, tem raízes e desenvolvimento em diferentes épocas e decisões políticas. A diferenciação do que é terra pública e o que é terra privada, por exemplo, com a Lei de Terras da metade do século XIX é uma das causas. O modelo agro-exportador brasileiro, do mesmo século, também contribuiu para que a segregação social ocorresse, já que projetos de embelezamento das cidades e ocultamento da pobreza foram implantados para que os centros do Brasil não refletissem uma situação de ‘atraso’ econômico. No século XX, a crescente industrialização e o crescimento urbano jogaram milhões de brasileiros, atraídos pela ideia de ’trabalho livre’, às margens das cidades, onde formavam bairros operários e, também, em algumas cidades, começavam a formar as favelas. Havia uma divisão espacial baseada nos papeis que os indivíduos possuiam na divisão do trabalho, divisão que persiste até hoje. Ao contrário do que se é conduzido a pensar, a segregação não possui caráter voluntário. O processo acontece de forma involuntária, ainda que muitas vezes seja apontado como inerente às cidades. Não é natural. É, sim, resultado de um dos instrumentos de controle que as classes dominantes utilizam para reproduzir tanto tempo quanto for possível a concentração de riquezas – com auxílio do poder público muitas vezes (especulação imobiliária, favorecimento de certos grupos para o comando de serviços básicos, como transporte, são dois exemplos de alianças entre classes altas e poder público bem conhecidos em Santa Maria). Onde há maior concentração de renda, existem as melhores vias de transporte, as taxas mais altas de eletricidade, água encanada, áreas de lazer, entre outros. Onde há menor, nota-se que a vulnerabilidade social aumenta, as oportunidades de trabalho são reduzidas (e é preciso deslocar-se mais tempo para chegar ao local de trabalho) e a violência cresce. Fica claro que as cidades não cumprem nem de longe o papel de núcleos da democracia e da integração social. Fonte: http://www.revistaovies.com/