AS CLARISSAS NA MADEIRA UMA PRESENÇA DE 500 ANOS 1 Otília Rodrigues Fontoura, osc. AS CLARISSAS NA MADEIRA UMA PRESENÇA DE 500 ANOS CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÒRIA DO ATLÂNTICO SECRETARIA REGIONAL DO TURISMO E CULTURA FUNCHAL 2OOO 2 Nos 500 anos da chegada das primeiras Clarissas à Pérola do Atlântico (1497). Em homenagem às Clarissas da Ilha da Madeira - do passado e do presente. 3 CELEBRANDO 500 ANOS DE LOUVOR HINO DO CENTENÁRIO Ao Senhor nosso Deus cantemos hinos de altíssimo LOUVOR e GRATIDÃO; cinco séculos de favores divinos, presença de VIDA em doação! “Por mares nunca dantes navegados,” Portugal avançou cheio de amor. Novos Jardins de Assis foram plantados: Celebram a BONDADE do Senhor. Nas ilhas do Santíssimo Sacramento dia e noite Jesus é adorado!... Ressoam belos CANTOS em silêncio àquele imenso “AMOR que não é amado!” Às flores perfumadas: PAZ E BEM! Madeira, és beleza e esplendor! As Clarissas unem-se à TERRA-MÃE, cantando as maravilhas do Senhor. Francisco e Clara aqui se demoraram - Paraíso de tanta formosura -! A Boa Nova da Paz proclamaram cheios de alegria e de ternura! Letra: Adelaide Maria da Cruz, osc Música: Mário de Jesus Pereira da Silva, ofm 4 HINO DO CENTENÁRIO Mário Silva 5 SIGLAS ADB AHDF AHU ANTT ARM BARM BCPF BDF BDRAC BMCC BMCL BMCS BMF BNA BNL BSFL CEHA DGEMN DRAC ofm ofm cap ofm conv osc RAA RAM Arquivo Distrital de Beja Arquivo Histórico da Diocese do Funchal1 Arquivo Histórico Ultramarino Arquivo Nacional da Torre do Tombo Arquivo Regional da Madeira Biblioteca do Arquivo Regional da Madeira Biblioteca da Cúria Provincial dos Franciscanos (Silva Carvalho) - Lisboa Biblioteca da Diocese do Funchal Biblioteca da Direcção Regional de Assuntos Culturais Biblioteca do Mosteiro de Clarissas da Caldeira Biblioteca do Mosteiro de Clarissas de Lisboa Biblioteca do Mosteiro de Clarissas de Sintra Biblioteca Municipal do Funchal Biblioteca Nacional da Ajuda - Lisboa Biblioteca Nacional de Lisboa. Biblioteca do Seminário Franciscano da Luz - Lisboa Centro de Estudos de História do Atlântico no Funchal Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais Direcção Regional de Assuntos Culturais Ordem dos Frades Menores Ordem dos Frades Menores Capuchinhos Ordem dos Frades Menores Conventuais Ordem de Santa Clara Região Autónoma dos Açores Região Autónoma da Madeira Para os Escritos relativos a Santa Clara e S. Francisco BC BF 2C LCL FF I FF II PC RCL RH RI RU TCL 1 Bula de Canonização de Santa Clara Bullarium Franciscanum Vida Segunda de S. Francisco (por Tomás de Celano) Legenda de Santa Clara (por Tomás de Celano) Fontes Franciscanas (São Francisco) Fontes Franciscanas (Santa Clara) Processo de Canonização de Santa Clara Regra de Santa Clara Regra do Cardeal Hugolino Regra do Papa Inocêncio IV Regra do Papa Urbano IV Testamento de Santa Clara Estando em organização o Arquivo Histórico da Diocese do Funchal, são provisórias as cotas aqui referidas para os documentos consultados no dito arquivo. 6 FONTES E BIBLIOGRAFIA I FONTES Arquivo da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais Conventos, Convento de Santa Clara do Funchal, in Album do Plano das Obras da DGEMN D 10 A F 22-1; F 1-53 A-22-1 A. Igrejas, Igreja de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, in Album do Plano das Obras da DGEMN, D 17 A F/A 24-2 e F 1-192 A – 24-2 A Arquivo Histórico da Diocese do Funchal Caixa 16, capelas, docs. avulso. Caixa 25, Convento de Nossa Senhora da Encarnação, docs. avulso. Caixa 26, Convento de Nossa Senhora das Mercês, docs. avulso. Caixa 27, Convento de Santa Clara, docs. avulso. Caixa 94, Curral, docs. avulso. Caixa 100, maço 200, doc. 1683 Caixa 168, maço 336, doc. 2749 Caixa 172, maço 343, doc. 1886 Livro 1 de Ordenações Livro 5 de Serviços Paroquiais Livro 25, Recepções, entradas e votos das noviças do convento de Nossa Senhora das Mercês, 1751-1834. Pasta 130, O Padroado de Nossa Senhora das Mercês, 1751-1834, doc. avulso. Arquivo Histórico Ultramarino Madeira: Docs. 196, 260-261, 262 e 263, 264, 265, 389, 390, 620 – 627, 788-789, 842, 847, 1020-1023, 1023 e 1025, 1024 - 1027, 1642-1643, 1753 -1755, 1783, 1807, 3053, 3054, 3047-3049, 3563, 4576 - 4578 Arquivo Nacional da Torre do Tombo Arquivo Histórico do Ministério das Finanças: Caixa 2070, Convento de Nossa Senhora da Encarnação, Funchal, docs. avulso. Caixa 2072, Convento de Santa Clara, Funchal. Caixa 2076, Convento de Nossa Senhora das Mercês, Funchal, docs. avulso. Chancelaria de D. Manuel Livro das Ilhas Chancelaria Régia de D. João V Livro 70 Conventos e mosteiros: Convento de Nossa Senhora da Encarnação, Funchal L 1 - 41, em microfilme. Convento de Santa Clara, Funchal 7 L 3, 9, 11, 13, 18, 22, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 42, 66, 67, 68. Arquivo Regional da Madeira Câmara Municipal do Funchal: Tomo 1 da Câmara Livro 4 do Tombo da Câmara Conventos: Convento de Nossa Senhora da Encarnação, Funchal N º 1,2,3,4,5,6,7-10, 11-13, 14-29, e 30-35 Convento de Nossa Senhora das Mercês, Funchal. N º 268,269, 270, 271, 272, 273 e 274. Convento de Santa Clara, Funchal. N º 38, 39, 40, 41, 42, 45, 46, 47, 48, 49, 50 e 347 Notariais: Livro 13, 139 e 3857 Paroquiais: Livro 325 Biblioteca da Ajuda, Lisboa Rerum lusitanicarum CVIII e CXVII Biblioteca Nacional de Lisboa Reservados: Códice 1595, 9158 e 10935 Colecção Iluminados, 103 Conservatória do Registo Civil : Câmara de Lobos: Livro de Registos de Óbitos de 1926, 1938, 1945 Funchal: Livro de Registos de Óbitos de 1929 Arquivo dos Mosteiros de Clarissas Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, Calhetas, Açores Livro da Crónica Livro de Eleições Correspondência vária Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Madeira Correspondência vária Livro de Óbitos Livro de Registos 8 Livro de Actas das Profissões Livro de Eleições Mosteiro de Santo António - Funchal: Correspondência vária Crónica do Mosteiro Livro de Actas de Profissões Livro de Actas de Reuniões capitulares Livro de Óbitos Arquivos Paroquiais Câmara de Lobos Paróquia do Carmo: Livro de Óbitos de 1964. Paróquia de São Sebastião: Livro de Óbitos de 1913, 1916, 1922, 1927, 1938, 1945, 1949, 1950, 1958. Funchal Paróquia da Visitação, Santo António: Livro de Assentos de Baptismo, 1961 II BIBLIOGRAFIA Obras de carácter geral ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, 1930. BRAUDEL, Fernand, Civilização material e capitalismo. Séculos XV e XVII, Lisboa, 1970. CORTESÃO, Jaime, História dos Descobrimentos Portugueses., vol. II, Lisboa, s.d. COSTA, António Domingues de Sousa, “O Infante D. Henrique na Expansão Portuguesa”, Itinerarium. 5 (1959) Dicionário de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, 1989. Dicionário da História de Portugal, coordenação de Joel Serrrão, Mirandela, vol. I – IV, Lisboa, 1975. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira de Cultura, vol. II, IV – VI, X – XII, XV, XXi – XXII, XXXI e XXXVIII, Lisboa-Rio de Janeiro, 1935-1990. História de Portugal, dirigida por Damião de Peres, vol. I e III – VII, Barcelos, 1931-1932. História Universal, adaptada e revista por Jorge Borges de Macedo, 2 volumes, Lisboa, 1994. MARQUES, A. Henrique de Oliveira, História de Portugal, vol. I – III, Lisboa, 1981-1985. 9 MARQUES, Silva, Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1949. SERRÃO, Joaquim Verísssimo, História de Portugal, vol. III – X, Lisboa, 1978-1988. Oras de carácter espiritual AMORIM, Guedes de, Francisco de Assis. Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960. AZEVEDO, ofm, David, São Francisco de Assis. Fé e Vida, Braga, 1984. CHRIST, osc, Marie Aimée du, “Carisma profético de Clara para a mulher de todos os tempos”, Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 1, Braga. Clara de Assis, Mulher Nova, Braga, 1993. Constituições Gerais da Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara, Roma,1988 DHONT, ofm, René-Charle, Clara de Assis. O seu projecto de vida evangélica, Braga, 1980. FERNANDES, Abel Soares, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia Brites da Paixão (trabalho dactilografado), 1998, Funchal FERNANDES, Cónego Manuel Pombo, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, Funchal. Fontes Franciscanas I, S. Francisco de Assis. Escritos - Biografias - Documentos, Braga, 1994. Fontes Franciscanas II. Santa Clara de Assis. Escritos - Biografias - Documentos, 2ª edição, Braga, 1996. FONTOURA, osc, Otília Rodrigues “Encanto de Clara de Assis ante a criação - O homem e os seres”, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº3, Braga. ___________,“Ordem de Santa Clara, Segunda Ordem Franciscana”, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 8, Braga. FREITAS, ofm, Manuel Costa, “Santa Clara de Assis nos passos de S. Francisco”, in O grito do silêncio. Clara de Assis, Seminário da Luz, Lisboa, 1993. JEAN, osc, Irmã Saint, “A pessoa humana, a Igreja e o Mundo na visão profética de Santa Clara”, Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº7, Braga. JEANNET, Claire- Pascal, Santa Clara de Assis, Braga 1994. JIMÉNEZ, Historia de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969. LAINATI, osc, Chiara Augusta, Santa Clara de Asis, 2ª edição, Oñate, (Guipúzcoa), 1993. ________, “Uma Mulher, Santa Clara de Assis”, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 0,, Braga, 1993. 10 LARRAÑAGA, ofm cap, Inácio, O Irmão de Assis. Vida profunda de S. Francisco de Assis, Lisboa, 1980. MATURA, ofm, Thaddée, “Uma só vocação, um só carisma, uma só família”, Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 0, Braga. MIGLIORANZA, ofm conv, C. , “Santa Clara de Asís”, Misiones franciscanas conventuales, Buenos Aires. ROPS, Daniel, História da Igreja de Cristo. A Igreja dos tempos bárbaros, II, Porto, 1960. SALVANESCHI, Nino, Irmã Clara, Porto, 1953. TRIVIÑO, osc, Maria Victoria, Clara de Asís ante el espejo. Historia y espiritualidad, Madrid, 1991. Bibliografia específica A Madeira vista por estrangeiros, 1450-1700, (coordenação e notas de António de Aragão), Funchal, 1982. A Ordem de Santa Clara em Portugal, Braga, l976. ALVES, Ângela Maria de Freitas, FERNANDES, Abel Soares, FERNANDES, Julieta Maria R. do Vale e RODRIGUES, Irene, Quinta das Cruzes “ Museu”, Funchal, 1983 ALVES, cmf, João de Freitas Reinado. Boletim informativo do Colégio Universitário Pio XII, Lisboa, 1968. ARAGÃO, António de, Para a História do Funchal, 2ª edição, Funchal, 1979. BARREIRA, ofm, José do Nascimento, Origem e História do Convento do Desagravo. “O Conventinho” de Lisboa, Braga, 1965. BELÉM, ofm, Jerónimo de, Crónica Seráfica da Santa Província dos Algarves, II, Lisboa, 1753. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, “. Igreja da Encarnação”, 84 (1956). BOTELHO, Joaquim da Silveira, Óbidos, Vila Museu, 2ª edição, Óbidos, 1996. CARITA, Rui, História da Madeira, 4 volumes, Funchal, 1989-1996. CAVIJO, Joseph de Viera y, Noticias de la historia general de las Islas Canárias, II, Santa Cruz de Tenerife, 1982 CHAGAS, ofm, Diogo das, Espelho cristalino em jardim de várias flores, Angra do Heroísmo, 1989. CLODE, Luíza, e PEREIRA, Fernando António Baptista, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997. 11 CONCEIÇÃO, ofm, Apolinário da, Claustro Franciscano erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa, 1740. CORDEIRO, António, História Insulana das Ilhas a Portugal sujeitas no Oceano Ocidental, Lisboa, 1981 (reimpressão da edição de 1717). CORRÊA, António de Albuquerque Jácome, O Convento da Caloura, Caloura (Açores), 1996. COSTA, José Pereira da, “Introdução”, in Gramática Latina do Padre Manuel Álvares, Funchal , 1974. (reimpressão da edição 1572). DRUMMOND, Francisco Ferreira, Anais da Terceira, I, Porto, 1981 (reimpressão de 1850). ESPERANÇA, ofm, Manuel da, História seráfica cronológica da Ordem de S. Francisco na Província de Portugal, I e II, Lisboa, 1656 e 1666. FERRAZ, Maria de Lourdes de Freitas, A Ilha da Madeira sob o domínio da Casa Senhorial do Infante D. Henrique e seus descendentes, Funchal, 1986. FERREIRA, Maria Fátima Araújo de Barros, “Arquivo da família Ornelas Vasconcelos”, in Arquivo Histórico da Madeira, 21 (1998) 13 v – 91. __________, Maria Fátima Araújo de Barros, JARDIM, Gastão e GUERRA, Jorge Valdemar, “Arquivos privados: Confrarias e Irmandades”, in Arquivo Histórico da Madeira, 20 (1997), 119 – 145 v. __________, Maria Fátima Araújo de Barros, JARDIM, Gastão e GUERRA, Jorge Valdemar, “Arquivos Públicos: Paroquiais”, in Arquivo Histórico da Madeira, 20 (1997), 79 – 155 v. FIGUEIREDO, Fidelino de, O Espírito Histórico, 3ª edição, Lisboa, 1920. FONTOURA, osc, Otília Rodrigues, Portugal em Marrocos na época de D. João III – Abandono ou permanência?, Funchal, 1998. FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra, História das Ilhas do Porto Santo, Madeira e Selvagens, II, Funchal, 1873. GOMES, Eduarda Maria de Sousa, O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídios para a sua História, 1660-1777, Funchal, 1995. HENRIQUES, Maria de Fátima Sousa, “A Casa Torre Bela”, Girão, 3 (1989), 97 – 101. História dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa (Obra anónima do início do século XVIII), Lisboa, 1972. IRIARTE, ofm cap, Lazaro, História Franciscana, 2ª edição, Valencia, 1979. __________, Letra y espírito de la Regla de Santa Clara, Valencia, 1975. JARDIM, Maria Dina dos Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal – Século XVIII, Funchal, 1996. 12 JOSÉ, ofm, Pedro de Jesus Maria, Crónica da Santa e Real província da Imaculada Conceição de Portugal da mais Estreita e Regular Observância do Serafim chagado S. Francisco, II, Lisboa, 1760. LEITE, Jerónimo Dias, Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos Capitães da dita Ilha. (Tratado composto em 1579), Coimbra, 1947. Legislação Portugueza, ano 1901, Lisboa, 1902, pp. 97-102. LOPES, ofm, Fernando Félix,“As primeiras clarissas em Portugal”, in Colectânea de Estudos, 3 (1952), 210 – 234. _________, “Fundação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Problema de direito medieval” Colectânea de Estudos, 4 (1953), 166 – 192. _________, O Poverello. S. Francisco de Assis, Braga, 1983 MALDONADO, Manuel Luís, Fenix Angrense, II, Angra do Heroísmo, 1989. MANSO, Maria de Deus Beites, ”Memórias para a história dos conventos do arquipélago dos Açores”, Islenha, 14 (1994), 37 – 48. MARTI, Joseph Pou y, Bullarium Franciscanum, nova série, III, Quarachi, 1949 MAURO, Frédéric, Études Economiques sur l’expansion portugaise (1500-1900), Paris, 1970. MONTE ALVERNE, ofm, Agostinho de, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores, 3 volumes, Ponta Delgada, 1986, 1988 e 1994. MOREIRA, ofm, António Montes, ”Breve História das Clarissas em Portugal”, in Las Clarisas em Espanha y Portugal - Congreso Internacional (Salamanca, 20 – 25 septiembre, 1993) Actas, II/1 ,Madrid, 1994, pp. 211 – 231. Publicado também em revista do Archivo Ibero Americano, 2 ª série, tomo 54, (1994 ), n.º 211-231. NASCIMENTO, João Cabral do, “As Freiras e os doces do Convento da Encarnação”, Arquivo Histórico da Madeira, Funchal, 5 (1937), 68 – 75. __________, A Restauração de Portugal e o Convento da Encarnação, Funchal, 1940. NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal 1996, (reimpressão da edição 1972). OMAECHEVARRIA, ofm, I., e Las Clarisas através de los siglos, Madrid, 1972. PEREIRA, Padre Eduardo Clemente Nunes, Ilhas de Zargo, II, 3ª edição, Funchal, 1968. __________, Piratas e Corsários na Ilha da Madeira, Funchal, 1955. PERUSINI, ofm, Carlo Maria, Chronologiae Historico- Legalis, Seraphici Ordinis, III, (1633- 1718), Roma, 1752. 13 RAU, Virgínia, e MACEDO, Jorge Borges de, O Açúcar da Madeira nos fins do Século XV. Problemas de produção e comércio, Funchal, 1962. REMA, ofm, Henrique Pinto, “A Ordem Franciscana nos Açores (no passado e no presente)”, in Itinerarium, 42 (1996 ), 510-538. __________, “A OFS / TOF”, dos primórdios à actualidade, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 7, Braga. RIBEIRO, Bartolomeu, “Açores, Arquipélago Franciscano”, Coletânea de Estudos, 5 (1949)30 - 80. SAINZ-TRUEVA, José de, “Ex-Libris da Família Torre Bela”, in Girão, 3 (1989), 102 – 104. SANTOS, Manuela, “Notas sobre a Freguesia do Curral das Freiras”, in Girão, 2 (1989), 39 – 41 v. SANTOS, Rui, Crónicas de outros tempos, Funchal, 1996. SARMENTO, Alberto Artur, Corografia elementar do Arquipélago da Madeira, Funchal, 1912. __________, Freguesias da Madeira, 2ª edição, Funchal, 1953. __________, “ O fundador do convento das Mercês”, in Das Artes e da História da Madeira, II, nº 10, 1952, p. 19 – 19 v. SARASOLA, ofm, L., San Francisco de Asís, Madrid, 1929. SILVA, António Ribeiro Marques da, Apontamentos sobre o quotidiano madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994 SILVA, Padre Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, 1425 -1800, Funchal, 1946. __________, Diocese do Funchal. Sinopse Cronológica. Funchal, 1945. __________, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 2ª edição, Funchal 1984. SILVA, José Manuel Azevedo e, História da Madeira, ocupação e organização do espaço ( Séc. XVXVIII), Coimbra, 1987. _________, A Madeira e a construção do mundo atlântico, (Séculos XV - XVII), 2 volumes, Funchal, 1995. SOLEDADE, ofm, Fernando da, História Seráfica Cronológica da Ordem de S. Francisco na Província de Portugal, III e IV, Lisboa , 1705 e 1709. SOSPITELLO, ofm, Dominicum de Gubernatis, Orbis Seraphicus Historia de tribus Ordinibus a Seraphico Patriarcha S. Francisco institutis deque eorum progressibus, & honoribus per quatuor mundi partes, IV, Roma, 1685. SOUSA, Álvaro Manso de, “O bolo de mel das freiras da Encarnação”, in Das Artes e História da Madeira, Funchal, 1948 SOUSA, João José Abreu de, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1791. ___________, “O Paço de Belas e a Madeira”, in Atlântico, 13 (1998), 42 – 50. 14 ___________, “ Os Mialheiros - Séc. XVI-XVII”, in Islenha, 9 (1991), 50 – 55. TAVEIRA, ofm, Manuel, “Bulas referentes à Ordem Franciscana em Portugal”, Itinerarium., 6 (1960). Tricentenário da freguesia de Santa Luzia, 1676-1976. Monografia Comemorativa e Histórica, Funchal, 1977. VASCONCELOS, A. G. Ribeiro de, Evolução do culto de Dona Isabel de Aragão, esposa do rei lavrador, D. Dinis de Portugal (a Rainha Santa), II, Coimbra, 1894. VASCONCELLOS, Agostinho de Ornelas de, Obras de D. Ayres d’Ornellas de Vasconcellos, Porto, 1881. VAZ, P. Fernando de Menezes, Famílias da Madeira e Porto Santo, I, Funchal 1964. VIEIRA, Alberto, Os Escravos no Arquipélago da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991. __________,e CLODE, Francisco, A rota do açúcar na Madeira, The Sugar Route in Madeira, Funchal, 1996. WADDING, ofm, Lucas, Annales Minorum, XV (1492-1515), Quaracchi, 1933 ZAGALO, Manuel de Almeida, “Algumas Palavras sobre o Património Artístico da Ilha da Madeira”, Arquivo Histórico da Madeira, 6 (1939), 26 v. – 35. Jornais A Verdade 24 de Outubro de 1890 Correio da Manhã 5 de Março de 1927 Diário do Governo, N.º 175, I Série de 18 de Agosto de 1943 N.º 225, I Série de 26 de Setembro de 1940 N.º 228, I Série de 29 de Setembro de 1948 N.º 254, I Série de 1 de Novembro de 1940 N.º 294, I Série de 28 de Dezembro de 1901 Diário de Notícias, Madeira 22 de Novembro de 1924 25 de Maio de 1991 4 de Outubro de 1927 Jornal da Madeira 14 de Outubro de 1910 13 de Junho de 1934 25 de Abril de 1959 10 de Janeiro de 1976 12 de Agosto de 1981 19 de Março de 1985 19 de Março de 1986 15 de Abril de 1986 17 de Setembro de 1990 18 de Outubro de 1992 27 de Setembro de 1998 4 de Outubro de 1998 O Jornal 18 de Janeiro de 1929 17 de Janeiro de 1944 O Patriota Funchalense 8 de Setembro de 1821 O Réclame 30 de Novembro de 1890 15 PREFÁCIO O V Centenário da Ordem de Santa Clara, na Madeira, comemorado em Novembro de 1997, teve, entre outras belas iniciativas, a investigação paciente e cuidada da Irmã Otília Rodrigues Fontoura, osc, em ordem à publicação do livro As Clarissas na Madeira - Uma presença de 500 anos». Fazia falta uma obra que apresentasse a riqueza espiritual e cultural da Ordem de Santa Clara nesta diocese, tanto mais que as pedras dos monumentos deixaram de falar e as que restam apresentam outra linguagem. É doloroso constatar que todos os mosteiros antigos relacionados com a Ordem Franciscana na Madeira tenham desaparecido, três destruídos, e o único que resta, o de Santa Clara, só conserva o nome da fundadora mas sem Clarissas. O livro da Irmã Otília apresenta a Madeira como uma terra que sempre foi contemplativa, nela sempre houve pessoas apaixonadas por Deus que encontraram na oração e no silêncio uma forma especial de viver e exprimir o mistério da Páscoa de Jesus Cristo. Embora a «esponsalidade» seja uma dimensão de toda a Igreja, como afirma o Papa João Paulo II, «a vida consagrada é a sua imagem viva, manifestando do melhor modo a tensão para o único Esposo». Desde o início do povoamento da Madeira, o povo cristão sentiu a necessidade da presença deste sinal escatológico, «honra da Igreja e fonte de graças celestes». (João Paulo II, Verbi Sponsa, 1). A bula do Papa Sixto IV, de 04 de Maio de 1476, autorizando a vinda das Clarissas de Beja para o Funchal, correspondia à vocação de algumas jovens madeirenses se consagrarem a Deus, logo nos primórdios da ocupação das ilhas. A comunidade cristã sempre dedicou às Clarissas de clausura uma especial estima e simpatia, consciente de que a sua presença realizava em grau eminente a vocação contemplativa de todo o povo cristão. Os mosteiros erguiam-se dentro da cidade, mas suficientemente afastados dos ruídos e agitação comercial, e constituíam, com as suas fortes estruturas em lugares elevados, cidades sobre o monte, espaços de recolhimento que convidavam à oração e silêncio. Eram sentinelas do espírito que vigiavam dia e noite e o povo cristão ali se reunia para orar, pedir orações, participar na celebração da liturgia e agradecer a Deus o dom desta presença escatológica. Numa terra pequena, em espaço e número de habitantes, entre os séculos XV e XVII nasceram três mosteiros, que tiveram a particularidade de se expandirem para os Açores e o continente português, dando origem ao mosteiro da Conceição em São Miguel, e ao da Esperança em Lisboa. A vida contemplativa não desapareceu no século XX, apesar da extinção do mosteiro das Mercês em 1910, mas continuou presente no grupo de quinze religiosas que, vivendo em suas famílias, permaneceram fiéis aos seus votos e se reuniam privadamente com a abadessa Madre Virgínia Brites da Paixão. Quando em 1931 foi possível obter um pequeno edifício, na Caldeira, em Câmara de Lobos, sete religiosas e uma noviça entraram no pequeno mosteiro. Desta forma a presença espiritual de Santa Clara continuou ininterrupta na Madeira. Em 1976 um grupo de oito Clarissas dirigiu-se para os Açores, dando origem ao mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, e em 1986 outro grupo seguiu para o Brasil, a pedido do Bispo de Nova Iguaçu, e fundou o mosteiro de Santa Clara. Todos estes factos são descritos com fidelidade histórica neste volumoso livro que nos apraz apresentar aos leitores. 16 Esta obra alia uma investigação rigorosa e vasta ao espírito franciscano de recolher humildes violetas para não se perder o perfume nem a cor. Nalgumas páginas sente-se a frescura e simplicidade das «Florinhas de São Francisco» embora a prioridade seja concedida aos factos históricos, narrados com precisão e frieza de datas, números e mapas. É uma obra com rigor científico que pode ser consultada por aqueles que se dedicam à investigação histórica e também pelos místicos que amam contemplar os caminhos que prolongam a oração de Jesus «sobre o monte». É curioso notar que a autora deste livro é uma religiosa Clarissa, formada em História, e que, após a entrada no mosteiro, conservou o gosto e o rigor pela investigação histórica. A sua vinda para a Madeira, por ocasião do V Centenário, foi oportuna e motivo para lhe ser pedido este trabalho que depois se apresentou mais longo e exigente do que parecia à primeira vista. Agradecemos e louvamos, a Federação das Irmãs Clrarissas de Portugal pela permissão concedida á Irmã Otília para ausentar-se durante tanto tempo para o Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, na Madeira. Sem a cooperação deste mosteiro não teríamos esta obra que nobilita a vida monástica em Portugal. A Irmã Otília consultou arquivos, tanto civis como eclesiásticos, entrevistou pessoas, visitou lugares, à procura não só de documentos e recordações, mas também do perfume, quase diria de um espírito que impregnou pedras e lugares. Dos cinco séculos de Clarissas na Madeira restam documentos e as suas filhas, dois testemunhos de beleza, santidade e também debilidade humana. Com paciência franciscana, a autora foi recolhendo com a exactidão possível a verdadeira fisionomia das pessoas e das coisas destes cinco séculos de glória e devastação, da chama do espírito e perseguição humana. Neste livro desfilam sucessões de pessoas, quadros animados, paisagens, cores, odores, fogo do céu e lama terrestre. As qualidades da historiadora e da mística unem-se para nos oferecer um testemunho de vida que nos emociona e comove e mostra como apesar do rolar dos séculos, a vida contemplativa não passou de moda nesta diocese. Numa época de consumo, os conventinhos das Clarissas da Caldeira e de Santo António proclamam que o essencial consiste na vida em pobreza, solidão, contemplação da Palavra e da Eucaristia, solidão do Tabor, alegria de uma aliança invisível mas radiosa com o Deus de amor, sentido profundo de que a sua vocação as coloca no coração da Igreja. As Clarissas, a exemplo das santas contemplativas, descobriram com o seu estilo de vida que, para resolver os problemas do nosso tempo, há uma só forma de combate - o da santidade. Quando alguém se coloca nas mãos de Deus como sua propriedade absoluta «torna-se uma dádiva de Deus para todos», colabora para a edificação do Reino de Cristo, a fim de que «Deus seja tudo em todos» (1 Cor, 15, 28). Funchal, 29 de Setembro de 2000 gTeodoro de Faria, Bispo do Funchal 17 AGRADECIMENTOS As Clarissas na Madeira–Uma presença de 500 anos é fruto de uma valiosa colaboração de muitos, de uma convergência de esforços e de vontades. No momento em que o Centro de Estudos de História do Atlântico vai proceder à sua publicação, a nossa gratidão dirige-se, antes de mais, para D. Teodoro de Faria, Prelado da diocese do Funchal, de quem, em 1997, partiu o pedido da elaboração de uma obra histórica que ficasse a marcar o quinto centenário da entrada das Irmãs Clarissas na Ilha da Madeira. Para Sua Excelência Reverendíssima, que sempre soube estimular-nos no prosseguimento deste trabalho, o nosso agradecimento muito sincero. A D. Teodoro de Faria queremos ainda agradecer a fineza de prefaciar esta obra e a satisfação com que aceitou o nosso pedido. Igualmente desejamos ter uma palavra de muito apreço para com as Irmãs Clarissas do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, nomeadamente, a Madre Maria Madalena, então Abadessa, e a Irmã Adelaide Maria da Cruz que, em seu próprio nome e das Irmãs Clarissas da Madeira, nos solicitaram e confiaram este trabalho, o qual sempre olharam com vivo interesse. O nosso reconhecimento dirige-se, de forma particular, aos Senhores Dr José Pereira da Costa, membro da Academia Portuguesa da História e Presidente do Centro de Estudos de História do Atlântico, no Funchal, e Doutor Alberto Vieira, também membro da Academia Portuguesa da História e da Direcção do mesmo Centro. Ao Dr. José Pereira da Costa agradecemos a amabilidade e deferência com que veio ao nosso encontro oferecendo o Centro de Estudos de História do Atlântico para editar esta obra. Ao Doutor Alberto Vieira, insigne especialista da História Insular Portuguesa, que com grande satisfação apoiou esta publicação, somos devedoras de esclarecimentos histórico-culturais e metodológicos. A nossa gratidão, pela colaboração e ajuda amiga. Seguidamente, o nosso agradecimento vai para o Padre Doutor António Montes Moreira, membro da Academia Portuguesa da História e ex-Professor da Universidade Católica Portuguesa, que, com dedicação e amizade fraterna, se dignou assumir a revisão desta obra. Com a sua vasta experiência e competência histórica, a obra As Clarissas na Madeira – Uma Presença de 500 anos sai mais enriquecida. Apraz-nos expressar a tão distinto historiador franciscano a nossa grande admiração, o nosso vivo reconhecimento. Na informatização da obra, vários colaboradores nos deram o seu valioso contributo, amigo e desinteressado. É para nós um dever prioritário mencionar o seminarista Ignácio Victor Figueira Rodrigues, estudante universitário de Câmara de Lobos, cuja dedicação foi inexcedível. Soube pôr-se ao serviço desta causa com entusiasmo e muita amizade, sacrificando, por vezes, as suas férias. Além disso, em todas as dificuldades de ordem técnica, foi ele que, ao longo de dois anos, solucionou problemas imprevisíveis. A nossa palavra cheia de apreço vai igualmente para o Sr. João Manuel, bancário no Funchal, que, com muita satisfação, durante quase quatro meses, concluído o seu horário de trabalho no Banco de Portugal, subia à Caldeira para nos dar a sua colaboração. Cumpre-nos ainda, agradecer à Irmã Adelaide Maria da Cruz, membro da comunidade do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, que jamais se poupou a sacrifícios para nos dar o apoio possível. Além disso, diante de qualquer dificuldade, teve sempre uma palavra fraterna e estimulante que nos fazia seguir em frente. A nossa atenção dirige-se agora para os Arquivos, onde mais demoradamente incidiu a nossa investigação e nos quais encontrámos sobejas manifestações de simpatia e delicadeza. Referimo-nos ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo; ao Arquivo Histórico Ultramarino em Lisboa, onde a Directora, Dra Maria Luísa Abrantes foi admirável em 18 acolhimento e dedicação; ao Arquivo Histórico da Diocese do Funchal, devendo agradecer as facilidades e a confiança concedidas, a amabilidade e estímulo do Prelado do Funchal e bem assim a disponibilidade do Dr. Orlando de Freitas Morna; ao Arquivo Regional da Madeira, onde só encontrámos atenções e deferências. À Directora deste Arquivo, Dra Maria Fátima Araújo de Barros Ferreira, queremos expressar o nosso reconhecimento pelo auxílio dado e por todas as gentilezas de que nos rodeou. Devemos igualmente mencionar a arquivista Dra Maria Favilla Vieira da Rocha Paredes, sempre atenciosa e pronta a ajudarnos em qualquer dificuldade, bem como os funcionários do mesmo Arquivo, nomeadamente D. Elsa Maria Mendonça Pestana Gonçalves e o Sr. Leonardo Teixeira Pereira admiráveis na sua competência e acolhimento. Cumpre-nos ainda mencionar a preciosa colaboração da Secretaria Regional do Turismo e Cultura na pessoa do Senhor Secretário Regional, João Carlos N. Abreu, que, desde a primeira hora, apoiou as iniciativas das celebrações centenárias e a elaboração desta obra, bem como o Director Regional de Assuntos Culturais, Dr. João Henrique G. da Silva e os seus colaboradores. Entre estes salientamos o Dr. José de Sainz-Trueva sempre atencioso e incansável em fornecer-nos as fotografias para esta obra, disponibilizando o fotógrafo da DRAC Rui Camacho que, por sua vez, se manifestou sempre muito amável. Devemos ainda agradecer ao Padre Daniel António Silveira Teixeira, franciscano, a sua valiosa colaboração, bem como à Directora do Museu de Arte Sacra, Dra Luíza Clode, o seu dedicado contributo. E, finalmente, queremos deixar uma palavra de apreço e cordial gratidão para com as nossas Irmãs na Ordem, pelo seu apoio espiritual e dedicação fraterna. Possa esta obra ser transmissora da verdade histórica e de conceitos culturais mas também de vivência interior, de amor, de paz e bem; daquela Paz e Bem que São Francisco de Assis não se cansava de desejar aos seus irmãos no século XIII em que viveu. Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Caldeira-Câmara de Lobos, 4 de Outubro de 2000, festa de São Francico de Assis Otília Rogrigues Fontoura, osc 19 PLANO GERAL Introdução PRIMEIRA PARTE Origem, carisma e difusão da Ordem de Santa Clara de Assis SEGUNDA PARTE Mosteiros da Madeira no Passado Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição ou de Santa Clara (Funchal) Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (Funchal) Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês (Funchal) TERCEIRA PARTE Mosteiros da Madeira no Presente Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade (Caldeira - Câmara de Lobos) Mosteiro de Santo António (Lombo dos Aguiares - Funchal) APÊNDICE Crónica das Celebrações Centenárias 20 INTRODUÇÃO 1. Porquê este livro? A obra As Clarissas na Madeira - Uma presença de 500 anos é a resposta fraterna a um apelo que nos foi dirigido no início de 1997. Completava-se então meio milénio de presença da Ordem de Santa Clara de Assis na Pérola do Atlântico. As cinco primeiras clarissas saídas do real mosteiro da Conceição de Beja2 rumo à Madeira, entre as quais se contava D. Isabel de Noronha, filha de João Gonçalves da Câmara, capitão donatário, entraram no real mosteiro de Nossa Senhora da Conceição do Funchal, mais tarde designado mosteiro de Santa Clara, exactamente a 5 de Novembro de 1497. O mosteiro de Santa Clara, a primeira casa religiosa feminina das ilhas atlânticas, cresceu e proliferou. Tornou-se como que uma metrópole, uma casa-mãe, donde a Ordem irradiou para outras áreas geográficas. E tão radicadas ficaram as filhas de Clara de Assis nas ilhas de João Gonçalves Zarco que, em época nenhuma, nem mesmo nos períodos conturbados e violentos do Liberalismo e da República de 1910, a sua presença sofreu interrupção. As Irmãs Clarissas madeirenses encontraram sempre motivações fortes para permanecerem firmes no seu próprio viver. Nada nem ninguém, ao longo de 500 anos, conseguiu vencê-las ou afastálas do seguimento do seu ideal. Esta presença, que sempre se traduziu na vivência do espírito de Assis, ainda que no meio de dificuldades e de lutas, queriam as Irmãs Clarissas de hoje e a Madeira, sua terra-mãe, celebrá-la com amor e júbilo. A ideia foi ganhando vulto... Em Fevereiro de 1997, chegou até nós um apelo: elaborar a história dos mosteiros da Madeira. Desejavam as Irmãs Clarissas madeirenses dispor de texto que lhes permitisse certa difusão da efeméride. Do acolhimento deste pedido resultou um dossier de pouco mais de cem páginas dactilografadas que foi enviado ao mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, na Madeira. Algum tempo depois, um novo contacto telefónico nos interpelava. O Senhor D. Teodoro de Faria, prelado da diocese do Funchal, desejava a nossa presença na Ilha por dois motivos: auxiliar a dinamização das celebrações centenárias e elaborar uma obra histórica que ficasse a perpetuar o acontecimento. Em atitude de obediência e serviço à Igreja e à Ordem, a 18 de Julho do referido ano, deixávamos Lisboa, rumo à Madeira, para responder às solicitações que nos haviam sido feitas. 2. A vastidão do tema A complexidade e extensão da matéria que nos propusemos tratar, assumindo aspectos, em certos casos, antitéticos, nascidos e vividos ao longo de cinco séculos, acarretou consigo dificuldades. Essa a razão que nos levou a uma subdivisão do trabalho, sem que, no entanto, lhe tivéssemos tirado algo da sua unidade e complementaridade. A obra foi, pois, dividida em três partes seguidas de um apêndice em que se fez uma pequena crónica das celebrações centenárias. Na Primeira Parte visualizámos a pessoa da fundadora da Ordem, Clara de Assis, inserida no contexto histórico-social, político e religioso da época, a origem e o carisma da Ordem e a sua difusão no mundo, com particular realce para a sua entrada e evolução em 2 Sendo mosteiro a palavra exacta para designar as casas religiosas da Ordem de Santa Clara, somente usaremos outra terminologia em transcrições e fundos arquivísticos. 21 Portugal. Com esta análise, ainda que muito breve, o leitor poderá situar-se no mundo franciscano e seus matizes. Na Segunda Parte fizemos o estudo dos três mosteiros do passado: Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição ou de Santa Clara do Funchal (1497-1890), Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal (1660-1890), Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal (1667-1910). O Funchal conheceu no passado dois mosteiros, Santa Clara e Nossa Senhora da Encarnação, que se deixaram embarcar na ideologia do tempo, sendo, mais do que genuínos mosteiros de Clara de Assis, resposta a necessidades sociais e estruturas políticas. Porém, bem perto destes, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, embora nascido, como aqueles, nesse âmbito, soube subtrair-se ao pensamento e às praxes políticas e sociais do século XVII e seguintes, para ser seguidor fiel do Evangelho, concretização de um ideal cheio de valores espirituais. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês foi, de facto, rocha firme, liame entre o passado e o presente, viveiro das mais nobres e excelsas virtudes. Certamente por isso, enquanto os dois mosteiros urbanistas, ou seja seguidores da Regra de Urbano IV, foram, ao ritmo do tempo, manipulados pela sociedade e suas necessidades, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês soube mergulhar no espiritual, vivenciar o carisma franciscano, ser concretização e resposta espiritual para a humanidade da época. Na Terceira Parte levámos o leitor até à Caldeira, onde poderá encontrar as continuadoras do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal e aos mosteiros de Santo António, no Lombo dos Aguiares, de Nossa Senhora das Mercês, nos Açores e de Santa Clara, em Nova Iguaçu, no Brasil, para onde irradiou a comunidade do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade nestas últimas décadas do século XX. E, finalmente, em Apêndice, apresentámos, a gesta de amor e de louvor que foram as celebrações centenárias. Belo hino que ecoou por toda a Ilha e vibrou longe em terras do Continente, Açores e Brasil. 3. Fontes e Bibliografia Penetrar no mundo franciscano do passado, palmilhar com interesse e amor os caminhos já trilhados por Clarissas de outras épocas, foi para nós trabalho entusiasmante. Se algumas vezes nos pôs diante de comportamentos dissonantes que nos interpelam vivamente, enfim, situações da fragilidade humana, no geral, Deus presidiu a esta história de luz e sombras. Este estudo deu-nos a possibilidade de contacto com um mundo religioso e social, cheio de ideais, de riquezas e matizes diversos. Para o conhecer, aprofundar e interpretar com objectividade, procurámos documentar-nos em fontes inéditas e abundante biografia impressa. Em Lisboa, fizemos investigações no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Ajuda. Na Madeira, a nossa investigação foi longa no Arquivo Histórico da Diocese do Funchal, no Arquivo Regional, nos arquivos das Paróquias de São Sebastião e do Carmo, em Câmara de Lobos e ainda nos arquivos dos mosteiros de Nossa Senhora da Piedade (Caldeira - Madeira), de Nossa Senhora das Mercês (Açores) e de Santo António (Funchal). Relativamente a fontes impressas, manejámos obras de carácter geral, de História de Portugal e, sobretudo, de carácter específico, que nos ajudaram à inserção no tema; encontrámo-las nas bibliotecas de Lisboa, Nacional, da Ajuda, do Seminário Franciscano da Luz, da Cúria Provincial dos Franciscanos, dos mosteiros de Clarissas de Sintra e de Lisboa, e nas bibliotecas da Madeira, Municipal, da Direcção Regional de Assuntos Culturais, do 22 Arquivo Regional, do Arquivo Histórico da Diocese do Funchal e do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. Devemos ainda mencionar as pesquisas feitas em periódicos e revistas de temas culturais, nomeadamente, no Jornal da Madeira, Diário de Notícias, (do Funchal), Diário do Governo, O Réclame, A Verdade, Correio da Madeira, O Jornal e nas revistas Islenha, Atlântico e Girão. Na Madeira, pudemos também observar importantes fontes históricas, que directamente se ligam ao tema em questão, como sejam, monumentos, esculturas, pinturas e outras mais. No Museu de Arte Sacra tivemos a possibilidade de apreciar algumas pinturas flamengas, luso-flamengas e da escola portuguesa, que referimos na presente obra. Julgámos, pois, ter percorrido os caminhos possíveis e essenciais para tratar o tema, polifacetado mas uno. Dada a sua vastidão e complexidade, embora procurássemos, na maioria dos casos, ir ao fundo da questão, certos problemas ficaram em aberto. Sobre eles poderão incidir posteriores investigações. Tentámos dar uma visão de conjunto fixando-nos no essencial e específico. Doutra forma o nosso trabalho seria excessivamente longo. Apesar do cuidado que pusemos na elaboração do trabalho, não faltarão imprecisões, lacunas e equívocos que, certamente, outros investigadores virão a rectificar. * Atendendo a que esta obra não se destina somente a uma elite cultural, mas se dirige a um público mais vasto, permitimo-nos, como opção metodológica, adaptar um pouco a estrutura da frase, assim como a pontuação, nas transcrições, particularmente para documentos mais antigos, tendo em vista uma melhor compreensão do texto, sem, contudo, adulterar a autenticidade do conteúdo. 23 PRIMEIRA PARTE ORIGEM, CARISMA E DIFUSÃO DA ORDEM DE SANTA CLARA DE ASSIS 24 CAPÍTULO I A VOCAÇÃO DE CLARA E A ORIGEM DA ORDEM 1. Assis, nos séculos XII-XIII A estrutura feudal da Alta Idade Média, que durante séculos ditara o destino da Europa, estava em crise desde as últimas décadas do século XII. Os grandes feudatários envolviam-se em lutas contra as cidades, a fim de deter a força vertiginosa da burguesia nascente. As cidades da Europa e, de forma muito acentuada, as da Itália, enriquecidas com o desenvolvimento do comércio, embaladas por um rápido movimento comunal e movidas por forte rivalidade económica e política, combatiam-se ferozmente. Situada estrategicamente entre o Oriente e o Ocidente, a Itália tornara-se campo de lutas violentas que se faziam sentir fortemente na pequena e belicosa cidade de Assis. Habituada como estava a uma certa autonomia, tolerada pelo imperador alemão, Henrique VI, a cidade, como muitas outras, havia organizado um governo comunal, com cônsules da sua escolha. A luta entre os comuns de Assis e os nobres, muito ciosos do seu poder, agravou-se a partir de 18 de Janeiro de 1200. Atacados com violência, vêem-se obrigados a deixar os seus palácios e castelos e a refugiar-se em Perúsia, onde encontraram asilo e protecção. A guerra entre as duas cidades, inimigas desde há muito, renasceu e ganhou proporções. A derrota de Assis em Collestrade, em Novembro de 1202, agravou a situação. Por 1205, depois de quatro anos de guerras violentas, a cidade, dilacerada pelo ódio dos partidos, sofria extrema miséria. O antagonismo entre a velha nobreza, muito ciosa dos seus direitos e poder, e a burguesia, já endinheirada e opulenta, atingira o apogeu. Apesar do tratado de paz que havia sido feito em 1203, a guerra prolongou-se até 1209. Só então, os nobres começaram a regressar a Assis. A 9 de Novembro de 1210, um pacto de paz entre majores et minores proclamou a liberdade de todos os assisienses e estabeleceu a ordem que, no entanto, muitas vezes voltou a ser perturbada3. Sob o ponto de vista religioso, a situação não era melhor. A sociedade enfermava duma grave crise de identidade evangélica. Da necessidade duma reforma profunda, especialmente no respeitante à prática da pobreza evangélica e fraternidade, eram testemunho os movimentos de tendência pauperística, que algumas vezes entravam em conflito com a Igreja e outras vezes acabavam mesmo na heresia. Na época que estamos a considerar, a hierarquia eclesiástica e os mosteiros, identificando-se com uma determinada classe social, nem sempre davam testemunho de vivência evangélica. Detentores de grandes propriedades e senhores de privilégios sem número, gozando duma vida estável e com segurança, longe estavam da pobreza e da fraternidade de que Cristo se fez arauto. Porém, Deus, condutor da história dos homens, em cada época suscita os profetas de que a Igreja precisa. Em Assis, Francisco, filho de um rico burguês da cidade, animado de aspirações profundas, debatia-se a procura de prestígio e poder. Deus, operando nele uma conversão lenta mas progressiva, quis servir-se deste ardoroso jovem para operar, na Igreja e na sociedade, a transformação necessária. Ao seu lado, o Espírito Santo suscitou Clara, jovem de uma distinta família de Assis, que iria descobrir uma nova forma de vida consagrada. O ambiente social da época, com os seus antagonismos políticos e religiosos, com o seu acentuado desequilíbrio entre o ser e o ter, com a mística da cavalaria, a exaltação do amor puro e o fascínio do heroísmo, foi o terreno em que nasceu e se concretizou a vocação destes dois jovens que, uma vez atraídos por Cristo, compreenderam que Deus basta e tudo o mais 3 Fernando Félix Lopes, ofm, O Poverello. São Francisco de Assis. Braga, 1983, pp. 28-33. 25 sobra. Fazendo parte do complexo social de então, inverteram os seus valores pouco a pouco, por imperativo da palavra do Evangelho e a exemplo de Jesus Cristo. O espírito manifesta-se em cada época sempre em novidade de vida, tudo renovando. No século XIII, Francisco e Clara foram instrumentos de Deus para a renovação necessária e adequada. 2. Clara Offreduccio Clara, a tão desejada primogénita, nasceu em 1194, em Assis, no seio de uma família nobre e rica, no castelo dos Offreduccio, situado na Praça de São Rufino, junto à catedral. Seus pais, Favarone Offreduccio di Bernardo, nobre cavaleiro, e Madonna Hortolana, senhora rica e nobre, eram respeitados e muito apreciados na cidade, pela sua honradez e obras de caridade. Clara teve uma infância cheia de felicidade e de facilidades. Porém, a partir de 1200, interrompida a paz em Assis, e porque violentas lutas se desencadearam entre os habitantes da comuna e os senhores dos castelos, como acima se referiu, os pais de Clara não puderam ocultar-lhe os horrores duma guerra fratricida. A família teve mesmo que exilar-se em Perúsia, no palácio dos condes de Sasso Rosso, de quem eram amigos4. Regressando a Assis, Clara respirou novamente a tranquilidade do seu palácio acastelado. Sua mãe, excelente educadora, deu-lhe uma boa formação religiosa, humana e cultural. Aos doze anos, conforme os costumes da época, a jovem foi prometida em casamento a um nobre que a pretendia. Clara não demonstrou qualquer interesse pelo casamento, segundo o testemunho do próprio pretendente, Ranieri di Bernardo, a quem Clara falava de Deus e do desprezo das coisas do mundo. Clara de Assis era um conjunto de dons e de valores, uma jovem de fé, de sentimentos delicados, que iria tornar-se uma “mulher nova” e decidida, que não seguiria um caminho comum. Ao lermos Tomás de Celano e outras fontes que nos falam de Clara, damo-nos conta de que ela era alegre, simpática, inteligente; e, embora suave e dócil, manifestava-se enérgica, decidida e empreendedora. A primogénita de Favarone e Hortolana tinha um coração generoso, excepcionalmente delicado, totalmente altruísta. Aos dezassete anos os pais e parentes quiseram dá-la em casamento, mas Clara não aceitou de forma alguma, porque, por amor a Cristo, queria permanecer virgem e viver em pobreza, como mais tarde o demonstrou5. Em Clara, o desejo de consagrar-se a Cristo era muito profundo. Porém, queria viver a sua consagração duma forma nova - em simplicidade, pobreza, em vivência radical do Evangelho, sem apoios humanos. Não queria ser monja, segundo os moldes tradicionais. Desde há muito contemplava encantada o viver de Francisco e seus irmãos. Viviam felizes. Não precisavam de bens materiais, propriedades, rendas, dotes; de tudo se haviam despojado por amor de Jesus Cristo. Eram irmãos menores, haviam descido a misturar-se com o povo, os fracos, os sem direitos. Cristo bastava-lhes, e isto encantava e interpelava a filha de Favarone. 3. Uma opção plenamente livre Na Idade Média, raríssimas vezes a mulher podia escolher o seu destino. Escrava duma estrutura social, estava subjugada aos interesses da mesma. Se era nobre, estava destinada a 4 Maria Victoria Triviño, osc, Clara de Asís, ante el espejo, historia y espiritualidad, Madrid, 1991, pp. 40-44. A Irmã Maria Victoria Triviño, clarissa espanhola contemporânea, tem-se dedicado ao aprofundamento da espiritualidade de Santa Clara. Cf. PC, XIX, 2, in Fontes Franciscanas II, Santa Clara de Assis, Escritos – Biografias – Documentos, 2ª edição, Braga 1996, p. 213. Esta obra, reunindo os escritos de Santa Clara, bem como os documentos e textos que, directa ou indirectamente, a ela se referem e à sua ordem, deve-se ao franciscanao Frei José António Correia Pereira. 5 26 alianças entre famílias aliadas ou rivais - forma de acrescentar ou associar feudos - e a gerar filhos. Mal completava os doze anos e em certos casos mais cedo, era prometida por contrato dos pais e, aos dezassete anos, devia casar. Durante os cinco anos que decorriam entre a promessa e o casamento, o cavalheiro procurava conquistar o afecto e o coração da sua dama. Se o não conseguisse, porque a donzela não desejava contrair matrimónio, os pais, responsáveis pela segurança da filha, convidavam-na a entrar num mosteiro. “Clara, a Pomba Prateada, pomba do Franciscanismo”6, na linguagem de Guedes de Amorim, não se sentia vocacionada para o casamento, nem tão pouco para um mosteiro de monjas, como os existentes. Ela tinha o seu caminho próprio - seria irmã pobre, seguidora intrépida de Jesus Cristo. A família estava perplexa: se não queria casar, entrasse num convento de monjas beneditinas ou de cónegas de Santo Agostinho, num desses grandes mosteiros do seu tempo, destinados só a mulheres da nobreza. Assim honrava o seu nível social. Clara, orientada por Francisco, depois de séria reflexão e o consentimento do bispo de Assis, “deixou a casa, a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Porciúncula. Os irmãos, que à volta do altar celebravam as sagradas vigílias, receberam a virgem Clara com tochas acesas”7. Naquela noite de Domingo de Ramos, de 1212, nascia a Segunda Ordem Franciscana. O gesto de Clara humilhou os nobres e desorientou os seus familiares. Contudo, com esta atitude, a nobre castelã afirmou o direito que assiste à mulher cristã de amar para além do matrimónio e de decidir o seu futuro, independentemente dum plano familiar preestabelecido. A reacção dos familiares era previsível, pois a nobreza feudal era muito zelosa em defender o prestígio, a honra e o bom nome dos seus membros. E, quando estava em causa uma mulher da sua linhagem, então, era maior o compromisso. Clara foi, pois, conduzida ao mosteiro de beneditinas de São Paulo de Bastia, a três ou quatro quilómetros de Assis, para que pudesse gozar de imunidade eclesiástica. À agressão dos familiares, respondeu calma, serena, mas firmemente. Vestida com a túnica da pobreza, recebida na capelinha de Nossa Senhora dos Anjos, bastou-lhe, para se defender, um duplo gesto: quando o tio Monaldo, cercado de cavaleiros armados, tentou subir os degraus do presbitério, Clara, com uma das mãos, agarrou-se ao altar, lugar privilegiado de asilo e com outra levantou o véu que lhe cobria a cabeça sem os seus longos cabelos, não só sinal de consagração como também de que já estava sob o foro eclesiástico8. Ali estava Clara, digna e nobre, com todo o entusiasmo dos seus dezoito anos, a elegância do seu porte, mas também, e sobretudo, com a certeza de que a firmeza da sua fé venceria todas as dificuldades. Depois de uma curta estadia entre as beneditinas, Clara fixou-se no conventinho de São Damião, ermida que fora restaurada por Francisco e na qual fizera então os últimos retoques para receber as eleitas do Senhor, já em número de três: Clara, sua irmã Catarina (a quem Francisco deu o nome de Inês) e Pacífica9. 4. A comunidade nascente 6 Guedes de Amorim, Francisco de Assis, Renovador da Humanidade, Lisboa, 1960, p. 188 e 247, 397 e 402 LCL, 8, in FF II, p. 246. Chiara Augusta Lainati, osc, Santa Clara de Asís, Oñate (Guipúzcoa), 1993, pp. 41-43. A Irmã Clara Lainati, clarissa italiana, tem feito importantes estudos sobre Santa Clara e a sua espiritualidade. Todo o processo de adesão a Cristo de Clara de Assis, pode captar-se na leitura das suas obras. Também o romance histórico “Santa Clara de Assis”, da clarissa francesa, Claire – Pascale Jeannet, de leitura verdadeiramente atraente, dá uma visão exacta e historicamente correcta, do ideal de Clara, da sociedade, da Igreja e da aventura franciscana do século XIII. A autora, além de explorar com muita minúcia as fontes e trabalhos históricos mais recentes, quis passar algum tempo em Assis, para melhor captar a atmosfera, aroma, vibração e luz, não só de Assis, como também do mosteiro de São Damião. 8 LCL, 9, in FF II, p. 247. 9 LCL, 10, in FF II, p. 247. 7 27 A Clara depressa se juntaram outras donzelas que, como ela, queriam seguir a Cristo e viver o Evangelho em estilo novo. Quando entraram no mosteiro de São Damião, já eram três, como atrás se referiu. Clara, Inês e Pacífica sabiam que outras haviam de chegar. A quarta eleita do Senhor foi Benvinda. Clara ficou radiante. É que Benvinda não era nobre e vinha da 1.Mosteiro de São Damião, em Assis. Foi aqui, nesta pequena e modesta construção do século VII ou VIII, situada entre oliveiras, que Santa Clara viveu quarenta e dois anos. São Damião, um mosteiro pequeno e modesto, viu florescer os mais nobres ideais. Com razão lhe são atribuídos belos e expressivos epítetos: “santuário da visão franciscana da vida” (Omaechevarría), “delicioso jardim perfumado” (Casolim). maior rival de Assis – Perúsia. Depois chegaram Balbina, Cecília, Filipa, Cristina e tantas outras10. Cada nova vocação era um precioso dom de Deus; Clara, mãe e mestra naquela comunidade nascente, ia infundindo no coração de cada enviada do Senhor um profundo amor a Cristo e, bem assim, àquela nova e santa forma de viver a consagração religiosa. A Ordem, que acabava de nascer, cresceu e difundindo-se, porque o Senhor lhe enviava 2. Capela do mosteiro de Damião. Na rústica construção de pedra, reparada pelo Irmão Francisco no início da sua conversão a Deus, é bem visível a torre sineira da igreja de São Damião, encimada pela cruz, a marcar a presença do templo muitas almas sedentas de santidade, porque era Ele a presidir a este milagre franciscano. Em 1238, estavam em São Damião cinquenta religiosas, apesar das muitas que iam saindo para novas fundações11. São Damião, no dizer de Miglioranza, “mais do que um mosteiro, foi um ideal, um desafio, um sonho feito realidade12. Um ideal feito de mansidão, de humildade, fraternidade, sentido profundo de Deus e de empenhamento ao serviço de todos. Um amor incomensurável de Deus e das suas criaturas transparecia daquele “pobre conventinho”, que enchia de mistério e emoção até os mais afastados de Deus. Poucas vezes a vivência cristã se revestiu de tanta suavidade e encanto! Quando as Irmãs já eram bastantes, Clara pediu a seu Pai e Mestre que lhes desse normas para viverem o Evangelho, segundo o ideal franciscano. A Forma Vivendi, gostosamente dada por Francisco, que se concretizava na vivência do santo Evangelho em castidade, em obediência e sem próprio, orientou a vida das “Irmãs Pobres” de São Damião nos primeiros anos. A “altíssima pobreza e a fraternidade” são nesta “Forma de Vida” valores prioritários. Esta pequena regra foi posteriormente completada com outra legislação. 10 Tomás de Celano fala-nos entusiasticamente do afluxo de jovens a São Damião. Seguindo o exemplo de Clara “as virgens procuravam conservar-se íntegras para Cristo(...) a mãe convidava a filha e a filha convidava a mãe a seguir a Cristo; a irmã seduzia a irmã e a tia as sobrinhas. Todos pretendiam seguir a Cristo em fervorosa emulação. Todos desejavam partilhar desta vida evangélica que o exemplo de Clara inspirava” (LCL, 10a, in FF II, p. 248). 11 “ Documento de venda de 1238”, in FF II, pp. 475-476. O documento diz respeito à venda da herança de uma religiosa. É assinado por Clara e cinquenta Irmãs. 12 C. Miglioranza, ofm conv, “Santa Clara de Asís”, in Misiones franciscanas conventuales, Buenos Aires p.77; citado por Maria Victoria Triviño, osc, op. cit., p. 105. 28 A Forma Vivendi, o escrito mais antigo que se conhece de São Francisco, ter-se-á perdido. Contudo, a Regra de Santa Clara dá-nos o seu texto, embora não na totalidade13. Nela estão contidos os dois aspectos mais importantes para Clara: a pobreza e a ligação espiritual com os Frades Menores14. 13 14 RCL, VI, 3 e 4, in FFII, p. 53. RCL,VI, 3 e 4, in FFII, p. 34. 29 CAPÍTULO II COM CLARA DE ASSIS, UMA NOVA FORMA DE SER CONTEMPLATIVA 1. Contemplação franciscana 1.1. Encanto e enamoramento A contemplação franciscana tem o seu matiz próprio. Em Francisco, como em Clara de Assis, a vida contemplativa brotou do encanto. Eles não estão em função de si mesmos, mas da Igreja e do mundo. O segredo das suas vidas foi o enamoramento por Jesus Cristo e, na sequência desse enamoramento, o seu grande ideal foi a identificação com Cristo pobre e crucificado, que se traduziu em seguimento. A vivência radical do santo Evangelho foi neles uma consequência do êxtase de amor por Jesus15. Dentro desta dinâmica franciscana, seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, antes de ser serviço, é adoração. Para que a alma e o coração possam expandir-se em louvor e adoração, é necessário o silêncio de todo o ser, um coração vazio de tudo o que não é Deus; há necessidade de contínua passagem do egoísmo ao amor, rectificação ou penitência, conversão quotidiana. A contemplação franciscana tem em si implícita essa exigência, caminho que, pela identificação com Jesus, gera a transformação, a cristificação. O Poverello, o Alter-Christus, percorreu este caminho que no Alverne atingiu elevação máxima. Todo possuído por Cristo, o Pobrezinho, vivia enamorado d’Ele. A pessoa de Jesus surgiu a Francisco “linda, luminosa, encantadora, avassaladora”16. Não admira, pois, como diz o seu biógrafo Tomás de Celano, o seu amor louco, a sua sede de Cristo. “Trazia Jesus no coração, Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos”17. Assim imerso no absoluto de Deus, no seu Jesus pobre e crucificado, n’Ele se abraçou com a plenitude do amor, a totalidade dos homens e a comunidade dos seres. 1.2. Em comunhão com toda a criação A alma franciscana tem um dom específico: descobrir nos seres criados o sinete do Criador, neles ouvir a vibração da sua voz e, por esse meio, a Ele ascender. Francisco, ante a bondade do irmão e da irmã, a beleza do sol e da lua, o sorriso cândido e transparente da criança, o canto melodioso do passarinho, a beleza e o perfume da flor, subia às alturas e, em êxtase de amor, rompia em hinos de louvor ao Criador, autor de tanta beleza. A perfeição e a beleza dos seres despertavam no seu coração a emoção, a admiração, o encanto por Aquele que, sendo autor e Senhor de todos os seres, merece – e só Ele - toda a honra e todo o louvor. Diz São Boaventura que São Francisco de Assis percebia em cada criatura a bondade infinita de Deus, um convite a um amor maior18. Ele, como Clara, sua “plantazinha”, 15 David de Azevedo, ofm, Sãp Francisco de Assis, Fé e Vida, Braga, 1984, pp. 30 – 43. Esta obra é um trabalho muito profundo, que deixa ver, à evidência, toda a potencialidade da acção de Deus na pessoa de Francisco e, concomitantemente, numa abertura total de Francisco à acção divina, a descoberta deslumbrante do amor do Pai, concretizado na pessoa de Jesus Cristo. A Editorial Franciscana de Aranzazu, a pedido do Centro de Franciscanismo de Madrid, fez a sua publicação em espanhol. 16 David de Azevedo, ofm, op. cit., p. 29. 17 Tomás de Celano, “Vida Primeira”, IX, 115, in Fontes Franciscanas I, S. Francisco de Assis. Escritos-Biografías documentos, Braga 1994, p. 328; citado por David de Azevedo, ofm, op. cit., p. 31. 18 São Boaventura, Legenda Maior, V, 11, in FF I , p. 637. Pode ver-se: Otília Rodrigues Fontoura, osc, “Encanto de Clara de Assis ante a criação - O homem e os seres”, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana, Braga, 3, pp. 39-48. 30 passavam facilmente da criatura ao Criador, do belo à beleza total, da bondade ao omnipotente e bom Senhor, do bem ao sumo bem. Clara ascendia a Deus, mediante a contemplação do universo e descobria a sua beleza em todas as belezas criadas. “Tal como Francisco”, diz René Charles Dhont, “Clara admirava nos seres formosos a beleza infinita do Criador”19. Tudo para ela era motivo de elevação espiritual. Não era ela a “Flor de Altura”, como gentilmente a chama o poeta José Régio20? 1.3. Uma só vocação, um só carisma, uma só família Francisco e Clara!... Uma Família Franciscana, uma mesma vocação, um mesmo ideal – o encanto, o enamoramento por Jesus Cristo. Uma só e mesma vocação contemplativa. O frade menor e a irmã clarissa, porque enamorados por Jesus, são chamados à identificação com o Senhor, à vivência do Evangelho, em pobreza e fraternidade. Ambos são chamados a responder com a vida, à ordem do Senhor: “Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está quase em ruína”21. Uma mesma vocação, um mesmo ideal, uma mesma responsabilidade, uma mesma resposta a dar22. A diferença está tão-somente na forma de concretizá-la. O frade menor actua, por mandato do Senhor, no meio dos irmãos, proclamando e testemunhando a plenitude do amor de Cristo, a bondade de Deus e a fraternidade dos homens; a irmã clarissa, no escondimento do claustro, vivendo em pobreza, em oração silenciosa e contemplativa, dá testemunho de Cristo em contemplação a sós com o Pai, proclama “o encanto que Deus é ” e assume com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens. 3. Crucifixo Bizantino de São Damião. Crucifixo que se venerou na igreja de São Damião, em Assis, até meados do século XIII. Este belíssimo ícone bizantino mostra-nos Cristo Crucificado, mas sem cravos e sem espinhos. Cristo vivo, ressuscitado e aureolado de glória. Conserva-se na Basílica de Santa Clara desde a transferência das Clarissas para o Protomosteiro de Santa Clara em Assis, no ano de 1260. Reprodução de Carlos Fotógrafo 2. O mosteiro de São Damião - Ideal e desafio 2.1. Vida em fraternidade Alma genuinamente franciscana, feita a deslumbrante descoberta do amor gratuito do Pai, revelado em Jesus Cristo, Clara imergiu com toda a potencialidade do seu ser no absoluto de Deus, como consequência do enamoramento por Cristo pobre e crucificado e n’Ele se abraçou com a plenitude do amor, a humanidade e a criação. Clara tinha sua vocação peculiar. Era discípula do Pobrezinho de Assis, seguidora de Cristo em estilo novo; não era monja, mas Irmã Menor, Irmã Pobre, vocacionada para a fraternidade. O estilo de vida que abraçou era novidade na Igreja. Clara foi uma “Mulher nova”, uma “Mulher forte e fiel”; sabia o que queria e foi capaz de percorrer todos os caminhos para chegar aonde Deus a impelia. Clara, embora abrangida pelas normas jurídicocanónicas monacais, foi uma inovadora que, rompendo formas e tradições, fez nascer em São 19 René-Charles Dhont, ofm, Clara de Assis – O seu projecto de vida evangélica, Braga, 1980, p 82. Esta obra foi traduzida do espanhol pela Irmã clarissa Gabriela da Virgem. 20 Em louvor de Santa Clara, Braga, 1954 (organizado por Armindo Augusto), p. 199-200. A Ordem de Santa Clara em Portugal, Braga, 1977 (não em 1976 como se lê no frontispício), pp. 55-56. 21 Tomás de Celano, “Vida Segunda”,VI, 10, in FF I, p. 367. 22 Chiara Augusta Lainati, osc, op cit., Prólogo à edição espanhola, p. 7; Thaddée Matura, ofm, “Uma só vocação, um só carisma, uma só família”; conferência pronunciada na XXI Semana Internacional dos Franciscanos da Península Ibérica em Abril de 1993, Cadernos de Espiritualidade Franciscana ,0, pp. 9 – 18. 31 Damião um novo estilo de vida religiosa contemplativa - vida pobre, em fraternidade e serviço, humilde e simples, em amorosa contemplação de Deus e em sintonia com a humanidade sofredora; em suma, vida de seguimento de Cristo pobre e crucificado”23. Em São Damião, não havia estruturas verticais; não havia classes sociais nem privilégios, a não ser o privilégio de ser pobre. Ali havia a simplicidade e a igualdade dos filhos de Deus. Só Cristo e a sua Mãe pobrezinha serviam de modelo às damianitas. No mosteiro de São Damião, vivia-se em fraternidade. Ali, havia Irmãs igualmente consultadas e ouvidas. Todas eram chamadas a dar o seu consentimento na recepção de novas candidatas24; os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual das Irmãs eram tratados em reunião conventual e até as mais novas deviam ser ouvidas, “pois muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém”25. Em São Damião, o relacionamento era perfeito - era fraternidade. Estamos diante de uma estrutura horizontal, dignificante da pessoa humana, porque estrutura evangélica. 2.2. O trabalho como meio de subsistência Os mosteiros da Idade Média tinham a sua subsistência assegurada com rendas. Clara e suas Irmãs viviam do trabalho e da ajuda dos fiéis. Esta filha de Assis considerava o trabalho uma graça. “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel e devotamente (...) num trabalho honesto e de comum utilidade”26. Viver do trabalho num mosteiro medieval era viver em pobreza. Estar assegurada a subsistência duma comunidade contemplativa pelo trabalho e pela caridade dos fiéis era novidade na Igreja e doutrina impensável na Idade Média. Porém, Clara e suas Irmãs sabiam que, se o Senhor alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, não deixaria de velar por aquelas que, confiantes, se entregavam à sua providência. Em São Damião trabalhava-se. Nobres ou plebeias, damas ou servas, tornadas Irmãs, fiavam, teciam, faziam todos os trabalhos domésticos, cuidavam da horta com a simplicidade e alegria. Era a graça de poder trabalhar, a graça de formar e ser fraternidade27. 2.3. Em louvor e adoração Em São Damião vivia-se em amorosa adoração, pois Clara de Assis era uma “Mulher Eucarística”. Entre as Irmãs Pobres, no seguimento da doutrina do IV Concílio de Latrão, desenvolveu-se a espiritualidade eucarística, praticando-se mesmo a adoração ao Santíssimo Sacramento, o que era novidade. As damianitas foram as pioneiras a acolher esta doutrina conciliar e de tal forma que Santa Clara aparece como arauto no reflorescimento eucarístico do século XIII. A piedade popular assim o compreendeu; os artistas representam 23 O P. Larañaga diz que “Clara, na sua clausura contemplativa, levou à plenitude o sonho mais profundo, (...) de Francisco de Assis: a ânsia de contemplar o Rosto do Senhor e de se dedicar exclusivamente a cultivar o desejo de Deus”. E acrescenta: “ sem Clara, o franciscanismo seria como uma planta sem flor, uma partitura sem melodia” (Inácio Laranãga, ofm cap, O Irmão de Assis. Vida profunda de São Francisco, Lisboa 1980, p. 239). 24 Regra de Santa Clara (RCL), II, 1, in FF II, p. 45. 25 RCL, IV, 18, in FF II, p. 50. 26 RCL, VII, 1 e 2, in FF II, p. 54; Santa Clara recomendava às Irmãs que, mesmo no trabalho, “não apaguem o espírito da santa oração e devoção, ao qual todas as demais coisas devem servir” (RCL, VII, 2, in FF II, p. 54). 27 Tiago de Vitry-sur-Siene, bispo de São João d’Acre, antes de partir para o Oriente, escreveu uma carta em 1216, na qual, ao falar do movimento franciscano, afirmava: “(...) as senhoras vivem juntas em alguns hospícios (pequenos conve ntos), perto das cidades(...), vivendo do trabalho das suas mãos” (Chiara Augusta Lainati, op cit., p. 53; Inácio Larañaga, op. cit., p. 238. 32 repetidamente Santa Clara com a custódia nas mãos. É uma linguagem de símbolos que expressa quanto a sua vida esteve vinculada ao Sacramento do Corpo do Senhor28. Clara desejava que suas filhas comungassem; ela, quando o fazia, comovia-se até às lágrimas, segundo depõem algumas Irmãs no processo de canonização29. Na Regra deixou determinado que as Irmãs comungassem sete vezes por ano: “No dia de Natal do Senhor, na Quinta-Feira Santa, na Páscoa, no Pentecostes, na Assunção de Nossa Senhora, na festa de S. Francisco e no dia de Todos os Santos”30. Em função da época, esta determinação de Santa Clara representava um grande amor à Eucaristia, um verdadeiro culto pelo Corpo do Senhor. Nos dias em que as religiosas comungavam, Santa Clara, querendo ver a comunidade, tanto as sãs como as doentes, reunidas em volta do altar, permitia a entrada do capelão, tendo, então, lugar a celebração eucarística no interior da clausura31. Clara penetrava e vivia o mistério da fé, sinal de unidade, vínculo de caridade. Este amor à Eucaristia e à adoração, novidade no século XIII, como já referimos, deixou-o Santa Clara às suas Irmãs e filhas como legado perpétuo. E tão gostosamente tem sido assumido por todas que, desde há oito séculos, não há mosteiro da Segunda Ordem Franciscana onde não se faça a adoração eucarística todo o dia ou pelo menos umas largas horas32. Os dias de Santa Clara e de suas Irmãs deslizavam alegres e felizes na contemplação amorosa de Cristo, com quem queriam identificar-se. Aquelas boas religiosas, no 4. Santa Clara de Assis (de Josefa de Óbidos)33.Alma genuinamente contemplativa, soube, no silêncio do claustro de São Damião, assumir e viver, em profundidade, o ideal franciscano. Clara brilhou, na expressão de São Boaventura, “como uma estrela fulgurante, como uma flor perfumada, que desabrocha branca e pura na primavera”. Reprodução de Carlos Fotógrafo. escondimento do claustro, vivendo em pobreza, oração silenciosa e contemplativa, proclamavam o encanto que Deus é e assumiam, com Cristo, as dores, as alegrias e as esperanças dos homens. No silêncio do mosteiro contemplavam embevecidas Jesus na simplicidade do presépio de Belém, no mistério eucarístico, na loucura amorosa da cruz, na glória da Jerusalém celeste. Todas procuravam “viver em íntima união com Cristo, aderir a Ele com todas as fibras do seu 28 No século XIII, à medida que os teólogos aprofundaram a doutrina eucarística, pondo em relevo a permanência de Cristo nas sagradas espécies, viu-se a conveniência de que a reserva destinada aos doentes saísse dos armários, onde nem sempre se encontrava com a devida dignidade e se instalasse em lugares mais apropriados, em tabernáculos abertos na ábside ou em “imagens – sacrários” que guardavam uma pequena urna; podia colocar-se também sobre o altar em cibórios ou numa bela urna em forma de arca, que em cada dia se ia enriquecendo com metais nobres e pedrarias (Jiménez, Historia de la espiritualidad franciscana, Barcelona, 1969, p. 647). 29 PC II, 11, III, 7, IX, 10, pp. 147, 154, 184 respectivamente e LCL, 28, p. 262, in FF II. 30 RCL, III, 14, in FF II, p. 49. 31 RCL, III, 15, in FF II, p. 49. 32 No pequeno mosteiro de São Damião havia uma caixinha ou arca de prata e marfim para a reserva do Santíssimo. Há também testemunhos certos de que, em 1230, João Parente, Ministro Geral dos Frades Menores, tomou providências para que se colocasse o Santíssimo Sacramento em píxide de prata ou marfim em lugar seguro, o que as Irmãs fizeram. Conserva-se uma custódia que dizem ser do tempo de Santa Clara, embora haja algumas dúvidas sobre o assunto. 33 Josefa de Ayala Cabrera, natural de Sevilha, onde nasceu a 20 de Fevereiro de 1630, era filha de Baltasar Gomes Figueira, natural de Óbidos, e sua mulher, D. Catarina D’Ayala Cabrera. Josefa, a simpática pintora portuguesa, artista de merecimento, foi autora de um bom número de quadros de temas religiosos de grande expressividade mística, retratista e pintora de naturezas mortas. Passou a sua vida “a pintar, a ler mística ou a rezar (...), merecendo aplausos e insignes elogios de honesta”. (Joaquim da Silveira Botelho, Óbidos, Vila Museu,2ª edição, 1996, pp 85-87) “Santa Clara de Josefa de Ayala, a nossa boa e estimada Josefa d’Óbidos (1630-1684), é uma pequena tábua, ass.Josepha em óbidos, 167(?), de uma colecção particular, feita para devoção privada, sem a qualidade que denotam obras mais cuidadas da popular artista barroca, que aqui seguiu, de modo corrente, uma gravura de Jerónimo Wierix, a buril, segundo Philippe Gale”. (Dados que nos foram enviados pelo Prof. Doutor Vítor Serrão, distinto crítico de História de Arte, em carta de 27 de Abril de 1998). 33 coração”34, vê-lo nas criaturas e na criação, vê-lo na bondade dos homens, no sorriso da criança, na beleza do sol, no perfume da flor. Para as Irmãs de São Damião, como para toda a alma franciscana, viver em oração contemplativa era também entrar com todas as criaturas de Deus, no mundo do Louvor, da Glória, do Amor e do Encanto. Adorar! Foi esse o sonho lindo de Clara de Assis. Em São Damião, Clara e suas Irmãs viviam imersas na adoração do Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor35. 34 Cf., Quarta carta de Santa Clara a Santa Inês de Praga, 9, in FF II, p 107. Conhecem-se quatro belíssimas cartas de Santa Clara a Santa Inês de Praga e uma a Ermentrudis de Bruges. Filha do Rei Ottokar I da Boémia (1198 – 1230) e da rainha Constância da Hungria, Inês nasceu no ano de 1205. Aos 3 ou 4 anos de idade foi prometida a Boleslau da Silésia, ficando livre de compromisso pela morte do jovem em 1211. Foi novamente prometida em 1213 a Henrique VII, filho do imperador Frederico II. Desfeito o compromisso em 1225, foi pedida em 1227 por Henrique II da Inglaterra e, por fim, no ano de 1233, pediu a sua mão o próprio imperador do Sacro Império, Frederico II. Inês recusou estas propostas, por alimentar em seu coração anseios bem diferentes. Tendo chegado a Praga os primeiros Frades Menores, edificou-lhes um convento. Por eles teve conhecimento da vida de Clara de Assis e, desejando viver como ela, fundou um mosteiro para as Irmãs Pobres, no qual tomou hábito a 22 de Junho de 1234, festa do Pentecostes. Inês morreu no ano de 1282. Foi beatificada por Pio IX em 1874 e canonizada por João Paulo II em 1991. 35 Pode ver-se para maior desenvolvimento, Otília Rodrigues Fontoura, osc, “Oração contemplativa -Visão de Santa Clara”, in Cadernos de Espiritualidade Franciscana , 7, pp. 19 – 38; e Inácio Larañaga, op. cit., pp. 237 – 240. 34 CAPÍTULO III TEXTOS LEGISLATIVOS E REFORMAS 1.Defendendo o carisma próprio 1.1. Fuga à influência da Regra de São Bento - Luta pelo carisma próprio Em 1215, o IV Concílio de Latrão (de 11 a 30 de Novembro), abordando temas dogmáticos e disciplinares, determinou que, de futuro, quem quisesse seguir a vida religiosa devia escolher uma das regras já existentes (cân. 13). Na sequência desta determinação as damianitas foram convidadas a fazer a profissão sob a Regra de São Bento36. Diante desta exigência jurídica, Clara encontrou um meio de salvaguardar o carisma próprio: “o Privilégio de Pobreza,” confirmado por Inocêncio III, em 1216, que lhes permitia “renunciar a toda a espécie de propriedade”37. Entretanto, o Cardeal Hugolino, encarregado de velar pelo movimento franciscano, compôs, para as Irmãs Pobres, uma regra ou constituições (1219), de acentuado pendor beneditino, com a agravante de fazer silêncio sobre a pobreza, para Clara pedra de toque38. A preocupação da discípula do Poverello tornou-se grande, quando, em 1227, Hugolino ocupou o sólio pontifício. Como novo Papa, Gregório IX começou de imediato a oferecer bens de raiz aos mosteiros, sem exceptuar São Damião. Clara, decidida como estava a manter o tesouro da altíssima pobreza, pediu-lhe a confirmação do Privilégio de Pobreza, forma hábil de fazer compreender ao Pontífice a sua firme decisão de continuar a viver, em toda a radicalidade, a pobreza evangélica. A confirmação foi dada pela bula Sicut manifestum de 17 de Setembro de 1228. Em 1243, foi eleito Inocêncio IV39. Em breve (1247) começou a empenhar-se na elaboração de uma regra que teve o seu nome e se destinava aos mosteiros femininos de espiritualidade franciscana. Com grande satisfação para Clara e suas Irmãs, a Regra de São Francisco substituía a de São Bento, no acto de profissão, ficando as Irmãs Pobres sob a jurisdição dos Frades Menores40. Dessa forma, finalmente, Clara e suas Irmãs eram legalmente franciscanas. Porém, uma cláusula era para elas inaceitável: os mosteiros podiam receber rendas e ter possessões. De facto, o número 11 da Regra de Inocêncio IV especificava: “Seja lícito ter em comum e reter livremente rendas e possessões”41. 1.2. Testamento e Regra de Santa Clara - Salvo o carisma da Ordem 36 Pela força da decisão conciliar, as damianitas tiveram de aceitar a Regra de São Bento como base jurídica, sendo Clara convidada a usar o título de abadessa. Ela, porém, no seu viver quotidiano, continuou a ser a “irmã”, a “serva das servas”, a “serva inútil”, a “serva e mãe” (in Benção, Testamento, Regra e Cartas de Santa Clara). A filha do pobrezinho de Assis nada quis entender de títulos e hierarquias. Ela foi a irmã entre as Irmãs; estava para servir com simplicidade e humildade. 37 Privilégio de Pobreza Seráfica dado pelo Papa Inocêncio III a Santa Clara em 1216 e confirmado por Gregório IX em 1228, (FF II, pp. 293 – 295). 38 A intenção do Cardeal Hugolino era tão determinante que convidava as Senhoras Pobres à observância da Regra de São Bento. “Sendo necessário que imiteis os exemplos dos que serviram o Senhor sem desfalecer (...) damo-vos a Regra de São Bento” (RU 4, 3, in FF II, p. 310). 39 Após a eleição de Inocêncio IV, Inês de Praga, abadessa do mosteiro ali existente, solicitou do novo Papa a supressão da Regra de São Bento e a elaboração de uma regra própria para as Irmãs Pobres. Santa Clara, apoiando-se na autoridade do Cardeal Protector, Reinaldo di Conti e do franciscano Frei Filipe Longo, então visitador, insistiu no mesmo pedido. Porém, em 1245, o Papa Inocêncio IV apelou para a observância das Constituições de Hugolino, com a profissão sob a regra beneditina. Clara, contudo, continou a confiar. 40 Lê-se na Regra de Inocêncio IV: “Com a autoridade das presentes constituições, entregamos ao cuidado do Ministro Geral e Provinciais da Ordem dos Frades Menores, todos os mosteiros da vossa Ordem. Decretamos que, a partir de agora, deveis permanecer sob a obediência, governo e magistério dos mesmos e dos seus futuros substitutos, a quem estais firmemente obrigadas a obedecer” (RI 4, 12, in FF II, p. 338). 41 RU 4, 11, in FF II, p. 337. 35 Clara sentiu em perigo o carisma da sua Ordem; doente como estava e receando deixar as suas filhas naquela ambiguidade, de um só jacto, escreveu o seu Testamento, apontando com firmeza três pontos que julgava fundamentais: - fidelidade a Francisco e seus sucessores (implícita a fidelidade à Igreja); - altíssima pobreza (viveriam do seu trabalho e não de rendas); - união e comunhão fraterna (corresponsabilidade). Entretanto, diante da resistência que a Regra de Inocêncio IV encontrou nos mosteiros das Senhoras Pobres, o Papa explicava, a 6 de Julho de 1250, que não era sua intenção impor obrigatoriamente a sua regra. Chegara a hora de Clara. De facto, foi nessa altura que ela sentiu o ambiente propício para unificar os mosteiros sob uma regra da sua autoria, tendo por base as normas recebidas de São Francisco e como modelo a Regra dos Frades Menores. Só uma regra saída das suas mãos poderia dar estabilidade à Ordem, ficando inviolavelmente defendido o carisma. É opinião comum que Santa Clara começou a escrever a regra em 1247, isto é, a dar forma escrita ao estilo de vida que desde há muito se seguia em São Damião. Rapidamente e com carinhosa reverência pelo seu Pai e Mestre, São Francisco, Clara pegou na Regra bulada, aprovada por Honório III a 29 de Novembro de 1223 para os Frades Menores, e fez a sua adaptação a uma fraternidade feminina contemplativa. Transcreveu, suprimiu, modificou e acrescentou com liberdade total e, do seu coração altamente criativo, saiu a “Forma de Vida” ou Regra, que terá o seu nome. A 16 de Setembro de 1252, recebeu a aprovação do Cardeal Protector, o Cardeal Reinaldo, e a 9 de Agosto de 1253, chegou às suas mãos a bula Solet annuere do Papa Inocêncio IV, dando plena aprovação à Regra por ela redigida42. Clara beijou a bula papal com suma alegria e reverência e, passados dois dias, partiu gozosa para o Senhor. Foi a primeira regra saída do coração e da pena de uma mulher a receber a aprovação papal. 5. Bula de aprovação da Regra de Santa Clara. O texto mostra-nos o início da bula Solet Annuere do Papa Inocêncio IV, que aprovou a Regra escrita por Clara de Assis. O texto original foi encontrado com os restos mortais de Santa Clara, em 1893. Podemos perguntar: e as determinações do cânon 13 do IV Concílio de Latrão? A Regra de Santa Clara não era uma regra nova, mas tão-somente o rosto feminino da Regra dos Frades Menores, como que um seu complemento. A Regra redigida por Santa Clara, mais do que uma base jurídica, que dá existência à sua Ordem religiosa, é a expressão de um carisma peculiar, de um programa de vida. Perpassada pelo respeito pela pessoa da Irmã, pela docilidade ao Espírito do Senhor, tem, em si mesma, pela abertura à Igreja e ao mundo, a vitalidade do Evangelho. Enquanto o primeiro capítulo define o carisma próprio, vivência do Evangelho em obediência, sem próprio e em castidade, e o segundo estabelece os princípios de admissão na Ordem, o mais importante dos quais é a “inspiração divina”, o quarto postula a eleição para a atribuição de cargos e de ofícios. Nela se dá lugar à corresponsabilidade fraterna, bem visível na importância dada ao capítulo conventual como espaço de diálogo e de correcção fraterna. 42 RCL, 14-15, in FF II, pp. 62-63. 36 Nos capítulos terceiro, quinto, nono e décimo, a Regra incide sobre a vida de oração – ofício divino, confissão e comunhão -, o jejum, o silêncio, como condição essencial para entrar em comunhão com o Senhor, a caridade mútua e a comunhão fraterna. Os capítulos sexto, sétimo e oitavo formam o núcleo da Regra de Santa Clara. Preconizam a pobreza evangélica, uma vida de desprendimento total, sem rendas nem possessões, para melhor seguir a Cristo pobre e humilde, bem como a busca da subsistência no trabalho diário, feito sem perder o espírito de oração. No capítulo VI, o coração da Regra, totalmente redigido por Santa Clara, encontramos, ainda que parcialmente, o seu Testamento e o Privilégio de Pobreza, bem como os textos programáticos de Francisco - Forma de Vida e Última Vontade. Neste capítulo, Santa Clara condensa o seu ideal e carisma: - altíssima pobreza (renúncia a toda a propriedade); - santa unidade (entre as Irmãs e com a Primeira Ordem); - fidelidade a Francisco (implícita a fidelidade à Igreja). Os dois últimos capítulos regulam as formas de relacionamento com o exterior, as entradas na clausura e as funções do visitador. A Regra de Santa Clara, fraterna, humana e flexível, contrastando com as anteriores, rígidas e mecânicas, valoriza a pobreza, a fraternidade, a corresponsabilidade, a autoridade como serviço e humaniza a clausura e o silêncio 43. Embora sujeitas à lei da clausura, as Irmãs podiam sair quando se apresentasse “um motivo evidente, útil, razoável e aceitável”44, como podiam “sempre e em qualquer lugar, comunicar em poucas palavras e em voz baixa o que parecesse necessário”45. 2. Vicissitudes posteriores - Regras da Beata Isabel de França e de Urbano IV A aprovação da Regra de Santa Clara não impediu o aparecimento de novas regras. Em 1259 foi aprovada por Alexandre IV a Regra das Sorores Minores Inclusae. Este texto foi escrito sob a orientação da São Boaventura pela Beata Isabel de França, irmã do rei São Luís, para o mosteiro de Longchamp. É uma combinação selectiva das regras precedentes, com uma grande tonalidade mística, onde se espiritualiza o espírito da pobreza, dando mais ênfase à humildade do que à pobreza exterior. Não admira que o mosteiro de Longchamp, ao qual a regra se destinava, tivesse sido fundado sob a invocação da Humildade de Nossa Senhora. Mais tarde vários mosteiros da França, Inglaterra e Itália assumiram esta regra. Quatro anos mais tarde, o Papa Urbano IV, querendo unificar os mosteiros das Senhoras Pobres, sob uma mesma regra, promulgou a 18 de Outubro de 1263, a chamada Regra urbaniana ou de Urbano IV e ainda Segunda Regra de Santa Clara. Segundo ela, os mosteiros uniam-se sob o nome genérico de Ordem de Santa Clara e dava-se à clausura força de voto. Nesta regra, contudo, havia aspectos controversos que representavam um retrocesso em relação ao espírito de Santa Clara e não tiveram aceitação, pois atingiam pontos carismáticos: - abolia todas as outras regras, inclusive a de Santa Clara; - estabelecia que os mosteiros, pudessem “receber, possuir e reter em comum rendas e possessões;” para sua própria subsistência; 43 RCL, II, IV e VI, in FF II, pp. 45-47, 49-51 e 52-54, respectivamente. RCL, II, 13, in FF II, p. 46. 45 RCL, IV, 4, in FF II, p. 51. 44 37 - subtraía os mosteiros à jurisdição dos Frades Menores, pondo-os sob a dependência de um Cardeal Protector46. Embora elaborada para unificar a Ordem, no próprio texto estava subjacente o germe da divisão. De facto, a unidade não surgiu, pois os mosteiros mais fiéis ao genuíno espírito de Santa Clara não podiam aceitar a Regra urbaniana. A partir de então, passaram a existir duas regras: a Primeira Regra, a de Santa Clara, e a Segunda Regra, a do Papa Urbano IV. Ainda hoje há mosteiros, segundo as últimas estatísticas cerca de trinta e cinco, que seguem a Regra de Urbano IV. Situam-se na Europa, sobretudo em Itália e Espanha. Desde há algum tempo, assiste-se, felizmente, ao regresso à Regra de Santa Clara. Já poucas são as clarissas urbanistas. Eram 500 em 199847, o que dá, relativamente o total de 17.330, uma percentagem de 2,8%. 3. Movimentos renovadores Nos mosteiros que seguiram a Regra de Santa Clara, começou a processar-se, a partir dos começos do séc. XV um movimento reformador, ou seja de retorno ao carisma inicial, pois ao longo dos tempos alguns desvios se haviam operado, por intromissão do poder civil, particularmente dos monarcas, na vida interna dos mosteiros. Foi protagonista deste movimento uma clarissa francesa, Coleta Boylet. Nascida em Corbie em 1381, empreendeu, com o apoio do Papa de Avinhão, Bento XIII, uma reforma notável. Em 1406, Coleta professou nas mãos do Papa a Primeira Regra de Santa Clara e lançou-se ao delicado trabalho de recuperar o genuíno espírito da fundadora. Elaborou umas constituições ou estatutos, aprovados em 1434 pelo Ministro Geral da Primeira Ordem Franciscana e confirmadas, já depois da sua morte, em 1458, por Pio II48. Sem nada omitir ou acrescentar à Regra de Clara de Assis, apontavam com firmeza pontos carismáticos fundamentais: pobreza individual e colectiva, espírito de oração e contemplação, abertura à Igreja, união com a Primeira Ordem Franciscana, vivência do espírito de fraternidade49. Em síntese: a reforma de Santa Coleta deu primordial importância à pobreza evangélica e à união fraterna. Em conformidade com a Regra de Santa Clara, proibiu a aceitação de rendas e de dotes, valorizou a união fraterna e o capítulo semanal como expressão de corresponsabilidade, tornou o trabalho, como já o fizera Clara de Assis, o meio normal de sustentação. Apreciando a formação intelectual e espiritual das Irmãs, ordenou que todos os mosteiros tivessem uma boa biblioteca50. Coleta de Boylet captou de forma feliz o espírito de Santa Clara de Assis e, movida por um profundo desejo de ver restabelecido nos mosteiros da Ordem o genuíno carisma da fundadora, lançou-se, decididamente e sem qualquer receio, ao árduo trabalho da reforma. Cabe-lhe o mérito de um grande êxito. No século XVI, com Maria Lorenza Longo surgiram as Clarissas Capuchinhas, aprovadas pelo breve de Paulo III, de 10 de Dezembro de 1538. Observam a Regra de Santa Clara e as Constituições de Santa Coleta, com adaptações e aditamentos retirados das Constituições dos Franciscanos Capuchinhos51. 46 RU 4, nº 3, 34 e 48, in FF II, pp. 346, 362 e 367, respectivamente. Dados estatísticos recebidos do Departamento das Monjas, da Cúria Geral dos Frades Menores, Roma: (carta de Frei Herbert Schneider, ofm, Delegado Geral para as monjas, de 11 de Janeiro de 1999). 48 Lazaro Iriarte, ofm cap, Historia Franciscana, 2ª edição, Valencia, 1979., p. 490. 49 Lazaro Iriarte, ofm cap , op. cit, p .490-491. 50 Lazaro Iriarte, ofm cap., op.cit., pp. 490-491. 51 Em meados do século XVII estabeleceram-se em Lisboa dois mosteiros de clarissas capuchinhas francesas: o da Porciúncula, em 1647, na zona da Sé, e o do Santo Crucifixo, na Calçada da Estrela, em 1667. Vieram da Bretanha as primeiras e de Paris, com a rainha D. Maria Francisca de Sabóia, as segundas. O mosteiro da Porciúncula ter-se-ia extinguido antes de 1739, pois não figura no exaustivo catálogo de Frei Apolinário da Conceição (Claustro Franciscano erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa, 1740, pp. 161-162). O do Crucifixo 47 38 Esta reforma teve origem em Nápoles, na Itália, donde se difundiu para Perúsia, Gúbio, Roma e Milão. Na segunda metade do mesmo século XVI irradiou para outros países europeus e, seguidamente, para a América Latina e outras zonas do Globo. esteve na dependência do Núncio Apostólico até 1739, altura em que passou para a jurisdição do Patriarca de Lisboa. Foram estes os únicos mosteiros de clarissas capuchinhas que existiram em Portugal. (António Montes Moreira, ofm, “Breve História das Clarissas em Portugal”, in Las Clarisas en España y Portugal - Congreso Internacional, Actas II/1, Madrid, 1994, p. 220). 39 CAPÍTULO IV DIFUSÃO DA ORDEM DE SANTA CLARA DE ASSIS 1. A expansão da Ordem Os mosteiros das Irmãs Pobres cedo se multiplicaram por toda a Itália e fora dela. Em 1228, havia 24 mosteiros na Itália. Nesse ano, foram fundados outros, entre os quais o primeiro fora da Itália, o de Santa Engrácia, em Pamplona (Espanha). Por ocasião da morte de Santa Clara, os mosteiros já haviam atingido um total de 111: 68 na Itália; 21 na Espanha; 14 na França e 8 nos países germânicos52. A esta irradiação para o centro e ocidente europeu, juntou-se, neste mesmo século XIII, uma linha de expansão de impulso missionário. De facto, as filhas de Santa Clara expandiram-se para a Síria, Líbano e Palestina. E nem lhes faltou a auréola do martírio. Sabemos que, em 1257, foram degoladas todas as Irmãs Clarissas de Antioquia por ordem de Melek Saher Bibars53. Em 1289, quando Trípoli, no Líbano, caiu em poder do sultão do Egipto, Melek El-Mansur, foram martirizadas todas as Irmãs da comunidade ali existente, mártires ao mesmo tempo da fé e da castidade. Dois anos mais tarde, aconteceu o mesmo às setenta clarissas da comunidade missionária de São João d’Acre 54, na Palestina. Quadro nº.1 - Irradiação da Ordem de Santa Clara Zona Geográfica Espanha Boémia França Bélgica Polónia Líbano Baleares Croácia Síria Portugal Luxemburgo Ano 1228 1234 1237 1250 1250 1255 1256 1256 1257 1258 1264 Zona Geográfica Alemanha Ilhas Britânicas Chipre Países Eslavos Madeira Açores Antilha - S. Domingo Perú México Colômbia Chile Ano 1269 1290 1290 1300 1497 1512 1551 1558 1570 1572 1582 Zona Geográfica Equador Canárias Lituânia Filipinas (Manila) China (Macau) Bolívia Cuba Brasil (S. Salvador) Guatemala Polinésia África Ano 1595 1600 1602 1621 1633 1639 1644 1667 1700 século XX século XX Fontes: Lazaro Iriarte, op. cit., pp. 501 - 507; Omaechevarría, op. cit., pp. 37 - 70, 147 - 158 e 165 - 187. No tempo da reforma protestante, a Ordem de Santa Clara, perseguida na Europa, aproveitando a expansão ultramarina, levada a efeito sobretudo por Portugal e Espanha, implantou-se nas Américas e na Ásia. Em 1551, as Irmãs Clarissas fixaram-se em Santo Domingo, nas Antilhas, onde fundaram o primeiro mosteiro do Novo Mundo: em 1621, em Manila, nas Filipinas, donde partiram em 1633, para Macau; em 1667, chegaram a São Salvador da Baía. Destes mosteiros irradiaram para outras zonas da América e da Ásia.55 O quadro anexo dá-nos uma ideia bastante precisa das linhas da expansão da Ordem. 2. Supressões e ressurgimento 52 Lazaro Iriarte, op. cit., p. 485. Omaechevarria, Las Clarisas a través de los siglos, Madrid, 1972, p. 73. 54 Lazaro Iriarte op. cit.., p. 486; Omaechevarria, op.cit., pp. 73 – 74. 55 Lazaro Iriarte, op.cit., pp. 501-503,; Omaechevarria, op.cit., pp. 147-150 e 175-187. 53 40 Nos séculos XVIII e XIX, sucederam-se as supressões dos mosteiros, como consequência do regalismo e liberalismo reinantes. O imperador da Áustria, José II, por decreto de 12 de Janeiro de 1782, suprimiu os mosteiros da Ordem de Santa Clara e de outros institutos religiosos. Em França, foram igualmente suprimidos os mosteiros por lei de 17 de Agosto de 1792. Um decreto de 11 de Novembro de 1860 suprimia a vida religiosa na Itália56. Esta onda anti-religiosa foi avançando para o ocidente europeu e atingiu Portugal em 1834. O ressurgimento da Ordem aconteceu nalgumas nações da Europa, já no século XIX. De facto, em França, Bélgica, Grã-Bretanha e Alemanha, a partir de 1846, os mosteiros de Clarissas foram-se reorganizando e multiplicando57 No século XX, respondendo ao apelo de Pio XII, na Constituição apostólica Sponsa Christi, de 21 de Novembro de 1950, e mais recentemente do Concílio Vaticano II, as Irmãs Clarissas orientaram-se para outras linhas de expansão: para o Pacífico (Taiti, na Polinésia), para a Califórnia, Brasil, Jamaica e, sobretudo, para a África, a título de apoio espiritual às novas Igrejas. A Sponsa Christi, reconhecendo a importância da vocação exclusivamente contemplativa, prestou aos mosteiros uma atenção específica. Mantendo a clausura, como meio necessário para uma maior comunhão com Deus, estimulou as comunidades a abstraírem das mercês régias e a procurarem a sua subsistência no trabalho. Além disso, propôs a organização de Federações. Esta nova estrutura tinha como finalidade evitar o excessivo isolamento dos mosteiros, sem contudo lesar a sua autonomia, assumir em conjunto a responsabilidade da formação das candidatas com a criação, se possível, de um noviciado comum, e favorecer a passagem das religiosas de um para outro mosteiro, quando necessário58. Actualmente os mosteiros da Regra de Santa Clara gozam de Constituições Gerais, que a Sé Apostólica aprovou a 3 de Maio de 1988, redigidas segundo a doutrina do Concílio Vaticano II e o Código de Direito Canónico. 3. Alguns dados estatísticos 3.1 Ao longo dos séculos Nascida em Assis em 1212, a Ordem de Santa Clara cedo se difundiu mundo fora. Ao longo de seiscentos anos, o número de mosteiros foi sempre aumentando, atingindo a sua expressão máxima em meados do século XVIII. Os mosteiros podiam estar na dependência do bispo diocesano ou sujeitos aos superiores da Primeira Ordem Franciscana. No segundo caso os prelados interferiam somente nos casos expressos no direito universal. Quadro nº. 2 - Alguns dados estatísticos:Séc. XIII-XVIII e XX Ano Mosteiros N.º Clarissas I - Mosteiros de jurisdição franciscana 1228 24 1253 111 1300 413 1371 452 1385 404 56 Omaechevarria, op. cit., pp. 223. Omaechevarria,, op. cit., pp. 223-229. 58 Lazaro Iriarte, op. cit., pp. 505-506. 57 41 1587 1590 1661 1680 1700 60259 814 774 870 1067 40 00060 30 18661 34 100 38 000 II - Mosteiros de jurisdição franciscana e episcopal 1907 495 1929 12 173 1942 729 1960 713 16 972 1971 774 17 274 1972 907 18 000 1998 920 17 330 I Fontes: Lazaro Iriarte, ofm, op. cit., pp. 484 - 485, 502 - 503, e 508. II Fontes: Lazaro Iriarte, ofm, op. cit., pp. 507 - 508; e dados fornecidos pelo Departamento da Monjas, da Cúria Geral dos Frades Menores, Roma (carta de Frei Herbert Shneider, ofm, Delegado Geral para as monjas, de 11 de Janeiro de 1999) e Anuário Pontifício de 1998. Pela análise deste quadro estatístico, se conclui que as ordens religiosas, apesar da supressão, ressurgiram logo que as circunstâncias político-sociais o permitiram. No século XX e nalguns países já no século XIX assistiu-se a um desabrochar de vocações e ao recomeço da vida conventual62. 3.2 No final do século XX Infelizmente não possuímos estatísticas recentes que nos possam fornecer dados precisos. Apresentamos, portanto, quer para os mosteiros quer para as Irmãs Clarissas, os valores numéricos que nos foram enviados da Cúria Geral dos Franciscanos por Frei Herbert Schneider, Delegado Geral para as monjas, a 11 de Janeiro de 1999, bem como os dados do Anuário Pontifício de 1998. Nesta base podemos dizer que ao terminar o século XX as Irmãs Clarissas, num total de 17.330, estariam presentes em 92063 mosteiros distribuídos por 75 países. Estas religiosas estão diversificadas como se segue: Quadro nº. 3 - Total de Clarissas no final de 1999 Regra Regra de Santa Clara Regra de Urbano IV Designação Clarissas Clarissas Coletinas Clarissas Capuchinhas Clarissas Urbanistas TOTAL: Nº de Religiosas 13.500 830 2.500 500 17.330 Fonte: Dados estatísticos enviados pelo Departamento das Monjas, da Cúria Geral dos Frades Menores, Roma (carta de Frei Herbet Shneider, ofm, Delegado Geral para as monjas, de 11 de Janeiro de 1999) e Anuário Pontifício de 1998. 59 Não incluídas as dependentes dos Capuchinhos. Este valor parece-nos exagerado. 61 Não incluídas as dependentes dos Reformados, Conventuais e Capuchinhos. 62 Para os séculos interiores ao XX, não possuímos qualquer dado estatístico relativo aos mosteiros de jurisdição episcopal. 63 Apesar de as fontes mais recentes apontarem um total de 920 mosteiros, o seu número não deve ser tão elevado. 60 42 Ao longo dos séculos, por razões de vária ordem, entre as quais, a mais forte foi a pressão régia, os mosteiros seguiram quase todos a Regra de Urbano IV (urbanistas), que lhes permitia ter rendas e propriedades. Entretanto o regresso às fontes, isto é, à genuína Regra de Santa Clara, foi acontecendo. Hoje (1999) contam-se apenas 500 religiosas urbanistas; prevêse a passagem, ainda que lentamente, a uma Regra única – a Regra de Clara de Assis. Desde o início do século, os mosteiros foram-se multiplicando e difundindo pelos mais diversos países do mundo. Actualmente, a Ordem de Santa Clara está presente em 75 países, sendo: 18 na Europa; 12 na Ásia; 18 nas Américas; 3 na Oceânia e 24 na África. Quadro nº.4 - A Ordem de Santa Clara no mundo em 1999 Países África do Sul Alemanha Argélia Angola Argentina Austrália Áustria Bangladdesh Bélgica Bolívia Bósnia Brasil Burundi Camarões Canadá Chile Colombia Coreia Costa do Marfim Costa Rica Croácia Egipto Equador Eslovénia Espanha Most. Países Most. Países Most. 2 23 1 3 6 3 4 25 1 4 1 13 1 2 7 5 24 2 1 1 2 1 7 1 229 Estados Unidos Etiópia Filipinas França Gabão Grã-Bretanha Guatemala Holanda Honduras Hungria Índia Indonésia Irlanda Israel Itália Japã o Líbano Madagáscar Malawi Malta Marrocos México Namíbia Nicarágua Nigéria 41 1 21 55 1 16 5 10 1 1 13 6 5 2 173 5 1 1 1 1 1 106 1 2 1 Papua Nova Guiné Paraguai Perú Polinésia Francesa (Taiti) Polónia Portugal Quénia Rep. Centro Africana República Checa Republica Dominicana Ruanda Salvador Sri-Lanka Suíça Tailândia Tai-wan Tanzânia Togo Uganda Uruguai Venezuela Vietname Zaire Zâmbia Zimbabwue 2 2 7 1 16 11 1 1 1 1 1 1 2 3 7 1 3 1 1 3 3 1 3 1 1 Fontes. Monasteria Monialium Franciscalium Vitae Contemplativae, Roma 1994, pp. 457 - 519, com alguma rectificações fornecidas por Frei Herbert Shneier na carta citada de 11 de Janeiro de 1999. Desde meados do século XX, na Europa, particularmente na Espanha, Alemanha, GrãBretanha e Itália, o número de mosteiros tem diminuído. Em contrapartida, na América Latina e nos novos países africanos, assiste-se a um desabrochar de vocações para a vida contemplativa. Aí, vão-se multiplicando os mosteiros da Ordem de Santa Clara que, como centro de vitalidade espiritual, são causa de alegria e esperança para o Povo de Deus. 43 CAPÍTULO V A ORDEM DE SANTA CLARA EM PORTUGAL 1. Os quatro primeiros mosteiros A Ordem de Santa Clara entrou cedo em Portugal, onde, em finais do século XIII, já havia quatro mosteiros. O primeiro, mosteiro de Santa Maria e de Santa Clara, surgiu em Lamego, em 1258, cinco anos após a morte de Santa Clara de Assis, criado pela Bula Cum omnis vera religio de Alexandre IV, datada de 20 de Fevereiro daquele ano. A comunidade foi, no ano seguinte, transferida para Santarém, residência habitual da corte, onde o rei D. Afonso III construíu um mosteiro de raiz64. É que, além da casa de Lamego não ter condições para vida conventual, havia dificuldades na assistência espiritual. Ali, não havia franciscanos. Os mais próximos viviam a muitas léguas, na Guarda e no Porto65. Esta transferência, autorizada por Alexandre IV por bula de 29 de Abril de 1259, deve ter ocorrido ainda nesse ano, pois, segundo uma bula de 28 de Janeiro de 1260, o novo mosteiro, na opinião de Manuel da Esperança, estava construído66. O segundo nasceu em Entre-os-Rios, no lugar do Torrão. Foram seus fundadores D. Chamoa Gomes, senhora nobre da diocese do Porto, e seu marido, o fidalgo leonês D. Rodrigo Forjaz, que, para o efeito, conseguiram uma bula de Alexandre IV, datada de 18 de Março de 1256. A construção, começada de imediato, avançou rapidamente e “ poucos meses andados de 1258” já era habitada por “ três religiosas do mosteiro de Santa Clara de Zamora, Espanha, fazendo-lhes companhia algumas mulheres beatas67 de S. Vicente do Pinheiro e algumas donzelas nobres”68. O lugar do Torrão, solitário e despovoado, não oferecia a necessária segurança, pelo que o franciscano Frei João de Xira, visitador das religiosas e confessor de el-rei D. João I, pediu à rainha D. Filipa de Lencastre a sua transferência para o Porto, o que Inocêncio VII autorizou em 1405, mas que só se efectuou em 142769. O terceiro mosteiro apareceu em Coimbra. Em 1286, Dona Mór Dias, senhora nobre e de considerável riqueza, levantou junto à ponte do Mondego um novo mosteiro de clarissas. As primeiras povoadoras foram algumas religiosas para ali deslocadas de outros mosteiros da Ordem e a própria fundadora, Dona Mór Dias, com outras recolhidas das donas ou cónegas agostinhas de Santa Cruz de Coimbra70. Com efeito, Dona Mór Dias tinha-se acolhido a Santa Cruz em 1250 e vestira o hábito das cónegas com declaração de “que, tomando aqueles sagrados panos, nem por isso 64 Sobre a história das clarissas em Portugal, veja-se o trabalho do P. António Montes Moreira, ofm, “Breve História das clarissas em Portugal”, apresentado ao Congresso Internacional comemorativo do 8º centenário do nascimento de Santa Clara, que teve lugar em Salamanca, em Setembro de 1993. Nele se faz uma análise pormenorizada e bem documentada da história da Ordem de Santa Clara em Portugal. Pode encontrar-se em Las Clarisas en España y Portugal, - Congreso Internacional, ( Salamanca, 20-25 Septiembre, 1993) Actas II/1, Madrid 1994 , pp. 211-231. 65 Fernando Félix Lopes, “As primeiras Clarissas de Portugal”, Colectânea de Estudos, 3 (1952) 216. 66 Frei Pedro de Jesus Maria e José, localiza a transferência nos fins de 1271, pois a construção do mosteiro de Santarém, atendendo à sua grandeza, teria levado bastantes anos (Crónica da Santa e Real Província da Imaculada Conceição de Portugal da mais Estreita e Regular Observância do Serafim chagado S. Francisco, II, p. 204. Na realidade, o mosteiro de Santarém já estava habitado por clarissas em 1261, conforme consta numa sentença-arbitragem de 17 de Novembro desse ano sobre a organização do ministério da pregação por dominicanos e franciscanos (cf. Frei António do Rosário, op.,”De Santarém pelo tempo de Santo António” in Colóquio Antoniano, Lisboa, 1983, p. 80 e 8788). Informação transmitida por Frei António Montes Moreira. 67 Beatas eram, no dizer do cronista franciscano Frei Manuel da Esperança “as mulheres seculares que, sendo mais reformadas na vida e no seu hábito parecem religiosas” (Frei Manuel da Esperança, História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, na Província de Portugal, I, Lisboa, 1656, p. 560. 68 Frei Apolinário da Conceição, ofm, Claustro Franciscano erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa, 1740, p.122; Frei Manuel da Esperança, ofm, op. cit.,I, p. 560; António Montes Moreira, ofm, op. cit., pp. 213-214. 69 Frei Apolinário da Conceição, op.cit., pp. 122-123 e 135; Frei Manuel da Esperança, op cit., I, 557-603. 70 António Montes Moreira, op. cit, pp. 214-215. Ao longo dos séculos, as cheias do Mondego obrigaram a uma nova construção. 44 entregava sua pessoa ou bens havidos e por haver, a mosteiro ou religião alguma; mas que tudo reservava em a sua liberdade para dispor pelo tempo adiante, ou na vida ou na morte como bem lhe parecesse”71. Os cónegos de Santa Cruz, responsáveis pelo mosteiro das cónegas de Santo Agostinho, entenderam, porém, que se tratava de verdadeira profissão religiosa. Segundo eles, Dona Mór Dias não podia dispor dos seus haveres para com eles fundar o mosteiro de Santa Clara, nem de si mesma para nele professar. Daqui nasceu uma complexa e arrastada causa em tribunais eclesiásticos de Portugal e de Roma, antes e depois do falecimento de Dona Mór Dias (1302). O processo levou à extinção do mosteiro em 1311 e só terminou em 1319 na sequência da mediação iniciada pela Rainha Santa Isabel em 1307. “Um problema de direito medieval”, comenta Frei Fernando Félix Lopes, resumindo os meandros do conflito72. Entretanto, em 1314, o papa Clemente V já tinha autorizado a rainha a refundar o mosteiro de Santa Clara. A segunda construção fez-se no mesmo local a expensas e sob a orientação da própria D. Isabel. Em 1317, apesar de ainda incompleto, o mosteiro já estava habitado por nove clarissas vindas de Zamora. Junto ao mosteiro a rainha edificou um hospital para trinta pobres e um paço onde se recolheu em 1325 quando enviuvou. Na mesma ocasião, em cerimónia não litúrgica, vestiu o hábito de Santa Clara em sinal de luto e devoção, mas sem emitir votos religiosos. Frei Manuel da Esperança fala com admiração das Clarissas de Coimbra: “Nelas havia modéstia no trato, desprezo das vaidades do mundo (...)”73. E continua o cronista: “Daqui se foi levantando fama universal que em todas as cidades engrandeceu esta casa, de muito religiosa, honestíssima e santa”74. Com o andar dos tempos as enchentes do rio Mondego foram submergindo os edifícios e deixaram somente as paredes da bela igreja gótica de Santa Clara-a-Velha. Para remediar a situação, o rei D. João IV, em 1649, mandou levantar outro mosteiro, o de Santa Clara-a-Nova, a meio da encosta no vizinho monte de Nossa Senhora da Esperança, onde Mapa 1 jamais o Mondego poderia chegar. As clarissas e o túmulo da Rainha Santa foram transferidos para lá em 167775. O quarto mosteiro foi construído em Lisboa, no campo de Santa Clara, junto a São Vicente de Fora. A sua fundação, autorizada por bula de 4 de Agosto de 1288, do Papa franciscano Nicolau IV, deve-se a quatro senhoras nobres da cidade de Lisboa, sendo a mais entusiasta D. Inês Fernandes, asturiense de nascimento e viúva de um rico mercador genovês, que vivera largos anos na capital. A 1 de Fevereiro de 1292, a fundadora entregou o mosteiro às Irmãs Clarissas, estando presente o Provincial da Primeira Ordem Franciscana e outros religiosos.76 Este mosteiro foi restaurado e ampliado no século XVII, ficando a igreja a ser a 71 Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, pp. 20-21. Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, pp. 19-33; Frei Fernando Félix Lopes, “Fundação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Problema de direito medieval”, in Colectânea de Estudos, 4 (1953) 166-192. 73 Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, pp. 43-44. 74 Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, p. 55. 75 Frei Manuel da Esperança, op. cit., II, p. 19-90. António Montes Moreira, ofm, op.cit., p. 215. 76 Frei Manuel da Esperança, op.cit., pp. 95-134; História dos mosteiro, conventos e casas religiosas de Lisboa, obra anónima do início do século XVIII, Lisboa, 1972 pp. 231-258. 72 45 maior de todos os mosteiros de Lisboa e a parte habitacional com capacidade para duzentas e trinta religiosas. O terramoto de 1755 destruiu-o completamente77. 2. Fundações nos séculos XIV - XIX No século XIV foram fundados mais quatro mosteiros: em Vila do Conde, Beja (Santa Clara) Guarda e Portalegre. No século XV surgem mais seis: Amarante, Estremoz, Évora (Santa Clara), Beja (Nossa Senhora da Conceição), Setúbal e o de Santa Clara no Funchal, o primeiro mosteiro nas ilhas do Atlântico. O século XVI foi o período de maior desenvolvimento da Ordem de Santa Clara em Portugal. Surgiram então quarenta e duas fundações, onze das quais nos Açores78. No tempo que decorreu até ao Liberalismo, registaram-se mais vinte e uma fundações das quais duas no Funchal - mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (1660) e de Nossa Senhora das Mercês (1667) e seis nos Açores. Quadro nº.5 - Fundações em Portugal Século Nº de Mosteiros XIII XIV XV XVI XVII e XVIII ( até ao Liberalismo) 4 4 6 42 21 Total: 77 Fontes: António Montes Moreira, ofm, op. cit., pp. 211 – 219. Desde a entrada da Ordem em Portugal, em 1258, até à sua extinção com o Liberalismo, fundaram-se em Portugal 77 mosteiros, dos quais, 57 no Continente, 17 nos Açores e 3 na Madeira. Este cômputo não considera três transferências,79 nem duas fundações ultramarinas, Macau em 1633 e S. Salvador da Baía em 1667; mas inclui o desmembramento do mosteiro de Vale de Cabaços, e o mosteiro que existiu em Olivença no século XVII, durante uns dez anos80. Cerca de dois terços, viviam sob a jurisdição dos franciscanos81, sendo os restantes de jurisdição episcopal. Só as Províncias e Custódias da Regular Observância tinham jurisdição sobre mosteiros de Clarissas a saber: Província de Portugal, Província dos Algarves, Província de São João Evangelista, nas ilhas dos grupos central e ocidental dos Açores, Custódia da Conceição, nas ilhas açorianas de São Miguel e Santa Maria, e Custódia de São Tiago Menor, na Madeira. A maioria destes mosteiros professava a Regra de Urbano IV, sendo apenas doze os que seguiam a Regra de Santa Clara82. Uma boa parte deles formou-se a partir de recolhimentos de senhoras piedosas, designadas mantelatas. Tratava-se de Terceiras Franciscanas Seculares que usavam o hábito 77 António Montes Moreira, ofm, op.cit., p. 216. Neste cômputo consideramos o mosteiro de Nossa Senhora de Vale de Cabaços, na lha de São Miguel dos Açores, fundado em 1522 e os seus dois desdobramentos: o mosteiro de Santo André de Vila Franca, em 1532, e o da Esperança de Ponta Delgada, em 1541.( Veja-se a p. 121 desta obra). 79 O mosteiro de Santa Maria e de Santa Clara, que passou de Lamego para Santarém em 1259, o de Santa Clara de Entre-os-Rios, para o Porto, em 1427 e do Aljustrel, para Caminha, em 1561. 80 Frei Jerónimo de Belém, Crónica Seráfica da Santa Província dos Algarves da Regular Observância de Nosso Seráfico Padre S. Francisco, II, Lisboa, 1753, pp. 776-778. 81 António Montes Moreira ofm, op.cit., pp. 222 - 224. 82 António Montes Moreira ofm, op.cit., pp. 222 - 224. São eles: Setúbal (fundado em 1490), Lisboa – Madre de Deus (1508), Faro (1541), Évora – Santa Helena do Calvário (1570), Sacavém (1581), Lisboa – Nossa Senhora da Quietação em Alcântara (1586), Angra – S. Sebastião (1666), Funchal – Nossa Senhora das Mercês (1667), Lisboa – Mosteiro do Crucifixo (Francesinhas - 1667), Louriçal (1709), Guimarães – Madre de Deus (1716) e Lisboa – Santa Apolónia (1718). 78 46 completo da sua Ordem, quer fazendo vida comum em recolhimentos quer em suas casas. Nestes casos as moradoras dos recolhimentos passavam em conjunto à Ordem de Santa Clara, como aconteceu nos séculos XIV-XV, em Amarante, Guarda, e no real mosteiro da Conceição de Beja. No século XVI passou para a Ordem de Santa Clara uma boa dezena de recolhimentos de mantelatas. O mesmo aconteceu em 1667 com o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal. Não há estatísticas precisas sobre o número global de Clarissas em Portugal. Temos, porém, para 1650, um estatística das Clarissas dos mosteiros canonicamente dependentes dos franciscanos da Província de Portugal, do cronista Frei Manuel da Esperança. Seriam nesse ano 4 50083. Em 1739, a avaliar pelas informações colhidas por Frei Apolinário da Conceição, somavam 4 80084. 3. Extinção Com o Liberalismo, enquanto as Ordens Religiosas masculinas foram extintas de imediato, por decreto de 28 de Maio de 1834, as femininas apenas foram proibidas, por lei de 5 de Agosto de 1833, de receber noviças e emitir votos. Era uma supressão por morte lenta. O Estado, se não antes, pelo menos quando morria a última religiosa, tomava posse do edifício85. Porém, apesar da lei civil, alguns mosteiros continuaram a receber candidatas. Eram conhecidas pelo nome de pupilas e viviam com as religiosas e como elas, comprometendo-se com o carisma da comunidade e da Ordem86. Em 1910, o governo republicano ordenou a expulsão das religiosas e tomou posse desses mosteiros. 4. Reestruturação da Ordem (século XX) O ressurgimento da Ordem de Santa Clara em Portugal seguiu três linhas complementares: restauração de três mosteiros antigos, fundação de sete novos mosteiros e criação de uma Federação. Neste renascer da Ordem de Santa Clara em Portugal, é justo que destaquemos uma figura: o P. José do Nascimento Barreira, franciscano, que soube incentivar e acompanhar o novo desabrochar da Ordem. Inexcedível foi a sua doação por esta causa, ao longo de quase quarenta anos. Desempenhou o cargo de Assistente da Federação até 1992. 4.1. Restauração de três mosteiros antigos Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal A restauração começou no Louriçal. Aqui fora fundado em 1630 o Recolhimento de senhoras. Em 1709 estava concluído o mosteiro do Santíssimo Sacramentol, mandado construir pelo rei D. João V. Para iniciá-lo foram transferidas seis Clarissas da cidade de Évora, que receberam as recolhidas como noviças. Foi mosteiro florescente até 1910, ano em que as religiosas foram expulsas. Quando em 1925 o mosteiro do Louriçal apareceu à venda em hasta pública, a Madre Maria Nazaré dos Santos, com os seus bens patrimoniais e de outras Irmãs e ainda o auxílio da Primeira Ordem Franciscana, conseguiu comprar o mosteiro que, desde 1911, estava 83 Frei Manuel da Esperança, op. cit., I, p 14-15; António Montes Moreira, op. cit., p 222. Apolinário da Conceição, op. cit., pp. 182-184, 196-197 e 202-205; António Montes Moreira, op.cit., p 223. 85 António Montes Moreira ofm, op.cit p. 225 - 226; Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, VIII, Lisboa, 1986, pp. 200 – 203. 86 António Montes Moreira ofm, op.cit., p. 225 - 226. 84 47 transformado em posto da Guarda Nacional Republicana. A 14 de Janeiro de 1928 entrou nele um grupo de Irmãs Clarissas às quais se juntaram algumas candidatas. A 21 de Julho de 1931, o bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, mandou proceder a eleições canónicas. A comunidade era então constituída por cinco religiosas professas (já haviam falecido duas), quatro noviças e algumas postulantes. Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal Na Madeira, as Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês foram os pilares bem firmes que sustentaram a Ordem de Santa Clara em Portugal. Logo após a expulsão, as quinze religiosas que constituíam a comunidade, catorze professas e uma noviça, tentaram organizar-se. O grupo maior, constituído por sete membros, fixou-se em casa particular na Palmeira, enquanto um segundo, formado por três professas e uma candidata, se estabeleceu junto à capela de Nossa Senhora da Piedade, no sítio da Caldeira, freguesia de Câmara de Lobos. Cinco permaneceram na casa paterna. A partir de 1929, apoiadas pelo bispo do Funchal D. António Manuel Pereira Ribeiro, puderam iniciar na Caldeira a construção do novo mosteiro. A 16 de Abril de 1931, as oito sobreviventes, acompanhadas de duas candidatas, entraram felizes no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. A 13 de Novembro do mesmo ano, tiveram lugar as primeiras eleições canónicas sob a presidência do franciscano Frei Leonardo de Castro como delegado do bispo da diocese. A comunidade era, então, constituída por sete religiosas professas e cinco noviças. Mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa (Conventinho) O real convento do Santíssimo Sacramento, situado no Campo de Santa Clara, junto à igreja de Santa Engrácia, foi fundado pela infanta D. Maria Vitória em 1783, com religiosas do mosteiro do Louriçal, levantado sobre as ruínas do mosteiro de Santa Clara que fora totalmente destruído pelo terramoto de 1755. Conhecido pelo nome de Conventinho do Desagravo do Santíssimo Sacramento ou simplesmente Conventinho, gozou de grande estima entre a população da cidade de Lisboa87. O seu ressurgimento, em Lisboa, foi acidentado. Em 2 de Maio de 1927, a Sé Apostólica considerou-o não-extinto; em 11 de Abril de 1928, fizeram a profissão perpétua duas pupilas do Conventinho, no mosteiro de Clarissas de Ciudad Rodrigo (Espanha), com vista à restauração; entre 1941 e 1945, a comunidade, organizada em casa particular em Lisboa, passou por Carnide e Laveiras, nos arredores, e voltou de novo à cidade, ocupando o edifício nº. 53 da Rua de D. Dinis; em 15 de Maio de 1945, as Irmãs deram entrada no prédio nº 15 da Rua da Estrela. Em 1958 e anos seguintes, fez-se a transferência de algumas religiosas professas solenes do mosteiro do Louriçal para Lisboa, onde, a 14 de Junho de 1963, se procedeu a eleições canónicas, por mandato do Cardeal Patriarca de Lisboa. Em 16 de Agosto de 1971, a comunidade, com autorização dada por D. António Ribeiro, Cardeal Patriarca de Lisboa, transferiu-se para Sintra. Estes três mosteiros situam-se, pois, numa linha de certa continuidade histórica com os três mosteiros dissolvidos pela República de 1910 e um deles, o do Louriçal, no primitivo edifício88. 4.2. Fundação de sete novos mosteiros 87 88 Ver José do Nascimento Barreira, FM, Origem e história do Convento do Desagravo. O “Conventinho” de Lisboa, Braga, 1965. António Montes Moreira, op. cit., p. 227. 48 Referência sumária Os sete mosteiros fundados entre 1955-1981 assumem o genuíno carisma de Santa Clara na sua opção pela Primeira Regra, ou seja, a Regra de Santa Clara e privilegiando a dimensão contemplativa eucarística clariana. São eles: 1. Mosteiro de São José, em Vila das Aves, fundado pela Madre Maria Cruz Clara do Imaculado Coração Maria e mais três religiosas vindas do mosteiro de Ciudadela, na Ilha de Minorca, arquipélago das Baleares; foi canonicamente erecto a 17 de Junho de 1955. A 6 de Janeiro de 1959, o arcebispo primaz de Braga, D. António Bento Martins Júnior, procedeu à imposição da clausura e presidiu à primeira eleição canónica. 2. Mosteiro de Nossa Senhora do Rosário, em Fátima, fundado pelo mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa. A fundação principiou com um pequeno grupo de religiosas que para ali partiu a 10 de Outubro de 1966 que, lentamente e com dificuldades de vária ordem, procedeu à adaptação da casa que havia sido adquirida na Moita Redonda, perto da Cova da Iria. Foi erecto canonicamente a 12 de Agosto de 1969. 3. Mosteiro de Santa Clara, em Monte Real, fundado pela Madre Teresa do Menino Jesus e três religiosas do mosteiro do Louriçal que, obtidas as necessárias licenças, para ali se dirigiram a 5 de Março de 1965. A este pequeno grupo se foram juntando algumas candidatas. As religiosas viveram em casa provisória, enquanto se construía o novo mosteiro, que foi erecto canonicamente a 19 de Março de 1972. 4. Mosteiro de Santo António, precisamente na casa onde, a 17 de Janeiro de 1929, morreu a Madre Virgínia Brites da Paixão em odor de santidade. A fundação, que começou a 1 de Março de 1967, com três religiosas idas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade (Câmara de Lobos), foi autorizada por decreto do bispo do Funchal de 21 de Junho de 1971. Foi erecto canonicamente a 25 de Dezembro de 1975. 5. Mosteiro de São Francisco de Assis, em Vila Nova de Famalicão, fundado em casa e cerca pertencentes à Primeira Ordem Franciscana, foi erecto a 21 de Novembro de 1976, com oito religiosas saídas do mosteiro de São José (Vila das Aves). A comunidade, agora numerosa, prepara-se para uma fundação na diocese de Santarém. 6. Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, nas Calhetas, Ilha de São Miguel, Açores. Depois de século e meio de ausência, a Ordem de Santa Clara voltou aos Açores, onde tinha deixado um rasto de gloriosa tradição. A entrada solene das oito religiosas fundadoras, idas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Ilha da Madeira, acompanhadas de uma candidata, e a erecção canónica efectuaram-se a 2 de Janeiro de 1977. 7.Mosteiro de Nossa Senhora da Boa Esperança, em Montalvo, concelho de Constância, fundado a 22 de Agosto de 1980, por um grupo de Clarissas saídas do Louriçal. As fundadoras haviam estado em Medelim, concelho de Idanha-a-Nova, pelo curto espaço de catorze meses, após o que, por falta de condições ambientais, foram transferidas, pelo bispo da diocese, para Montalvo. Foi erecto a 1 de Janeiro de 1981. 49 Mapa 2 Em fundação 1. Desde 1993, está em fundação em Lisboa, à Rua da Estrela, 17, o mosteiro do Imaculado Coração de Maria. Cabe ao mosteiro do Santíssimo Sacramento de Sintra o mérito da construção deste mosteiro. A comunidade, ao longo de algumas dezenas de anos, empenhou-se e sacrificou-se por aquela causa com inexcedível generosidade. 2. O Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, cuja fundação está a ser levada a cabo pelo mosteiro de São Francisco de Assis de Vila Nova de Famalicão, é em Portugal a fundação mais recente. Numa quinta adquirida em Santarém, onde desde há cerca de um ano se vem fazendo a restauração dos prédios ali existentes, estabeleceu-se no dia 20 de Maio de 2000 a comunidade fundadora. O prelado da diocese, D. Manuel Pelino Domingues, acompanha com solicitude o mosteiro nascente. As religiosas já tinham estado algum tempo em Rio Maior. Mosteiros fundadores Nestas fundações devemos salientar essencialmente a acção de dois mosteiros reorganizados em 1931: Santíssimo Sacramento do Louriçal e Nossa Senhora da Piedade, Caldeira (Madeira), que, cheios de vitalidade, a partir dos anos sessenta, puderam irradiar para outras fundações, como nos é dado ver no quadro anexo: Quadro nº.6 - Mosteiros fundados Nome Local Início da Erecção fundação canónica Mosteiro fundador Mosteiro de São José Mosteiro de Nª. Sª. do Rosário Vila das Aves Fátima 1955 1966 1955 1969 Most. S. Clara ( Minorca) Most. SS. Sacramento (Lisboa) Mosteiro de Santa Clara Mosteiro de Santo António Mosteiro e São Francisco de Assis Mosteiro de Nª. Sª. das Mercês Mosteiro Nª. Sª. Boa Esperança Monte Real Funchal Famalicão Calhetas (Açores) Montalvo 1965 1967 1976 1977 1980 1972 1975 1976 1977 1981 Most. SS. Sacramento (Louriçal) Most. Nª. Sª. Piedade (Caldeira) Most. São José (Vila das Aves) Most. Nª. Sª. Piedade (Caldeira) Most. SS. Sacramento (Louriçal) Mosteiro de Santa Clara Nova Iguaçu (Brasil) 1986 1989 Most. Nª. Sª. Piedade (Caldeira) Fontes: Crónicas dos mosteiros O mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal que, entre 1948-1963, com a saída de alguns dos seus membros, revitalizara em Lisboa o pequenino grupo do Conventinho, de forma a tornar possível a 14 de Junho de 1963 a primeira eleição canónica, já pôde fazer duas fundações: o mosteiro de Santa Clara, em Monte Real e o mosteiro de Nossa Senhora da Boa Esperança, em Montalvo. Ao mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, continuador da heróica comunidade de Nossa Senhora das Mercês do Funchal, que bem cedo se encheu de vocações jovens e cheias de entusiasmo, já foram possíveis três fundações: o mosteiro de Santo António, no Funchal, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, nas Calhetas (Açores) e o mosteiro de Santa Clara iniciado em 1986, no Nova Iguaçu (Brasil). 50 Outros deram o seu contributo neste crescimento e irradiação da Ordem, na medida que lhes foi possível. 4.3 Criação da Federação do Imaculado Coração de Maria Por decreto da Sagrada Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, de 22 de Agosto de 1967 e em conformidade com a Constituição apostólica Sponsa Christi de Pio XII, de 21 de Novembro de 1950, os mosteiros das Clarissas de Portugal, então em número de seis, constituíram-se em Federação, à qual se foram juntando os fundados posteriormente. Nela está englobado, o mosteiro de Nossa Senhora de África em Kibala (Angola), fundado por Clarissas do México. A primeira Presidente, a Madre Maria Cruz Clara do Imaculado Coração, abadessa do mosteiro de São José em Vila das Aves, eleita a 18 de Outubro de 1967 e Frei José do Nascimento Barreira, franciscano, nomeado Assistente da Federação pela Congregação dos Religiosos naquela mesma data, procuraram, com uma total dedicação, dar à Federação do Imaculado Coração de Maria o incremento necessário. 5. Alguns dados estatísticos Quando em 1931 se reorganizaram as comunidades do mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal e de Nossa Senhora da Piedade, na Madeira, o número de religiosas estava reduzido a quinze professas e oito noviças89. Entretanto, as vocações surgiram e, por isso, o número de Clarissas foi aumentando, atingindo a sua expressão máxima em 1994, ano em que as professas solenes atingiram o total de cento e oitenta e três, as professas simples três e as noviças também três. Neste número estão incluídas vinte e oito religiosas que, movidas pelo desejo de uma maior comunhão com Deus, depois de obtida a necessária autorização da Sé Apostólica, transitaram de diversos Institutos Religiosos e de Institutos Seculares para a Ordem de Santa Clara. Estas opções vêm-se verificando desde há algumas décadas. O quadro junto mostra a evolução quantitativa da Ordem de Santa Clara em Portugal, desde 1931. QUADRO nº.7-Dados estatístico da Ordem de S. Clara em Portugal (Séc. XX) Ano(ref. a 31/12) Professas Noviças Postulantes 1931 1933 1941 1943 1945 1953 15 16 24 27 35 50 8 4 4 6 2 6 5 2 4 5 5 7 Prof. Solenes Prof. Temporárias 1958 1959 56 62 5 4 6 8 8 10 1962 70 9 8 10 1968 1972 1980 1984 1987 1988 1989 92 120 142 148 154 152 158 9 10 12 12 11 13 11 6 4 10 13 6 8 10 9 8 10 15 15 15 9 89 Estão incluídas as duas religiosas que haviam professado em Ciudad Rodrigo, como atrás referimos, que nessa data tentavam organizar em comunidade o grupo de “pupilas” oriundas do Conventinho. 51 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 159 161 160 170 183 181 175 170 165 166 11 12 13 10 3 5 3 5 5 6 10 9 5 5 3 3 7 4 6 2 8 6 6 6 2 4 9 6 3 2 Fontes: Dados fornecidos pelas Irmãs Clara de Maria e Gabriela da Virgem ex-secretárias federais, e pela Irmã Adelaide Maria da Cruz, actual secretária federal. O quadro mostra também que depois 1931, quando a Ordem de Santa Clara em Portugal iniciou a reorganização, o número de religiosas foi aumentando gradualmente, atingindo o seu valor máximo em 1994 com cento e oitenta e nove religiosas das quais três eram noviças. A década de oitenta foi o período em que as candidatas afluiram em maior número Nos últimos anos as vocações vão diminuindo o que é fenómeno extensivo à Europa, em geral. 52 SEGUNDA PARTE MOSTEIROS DA MADEIRA NO PASSADO I Secção: Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição ou de Santa Clara (Funchal) II Secção: Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (Funchal) III Secção: Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês (Funchal) 53 I SECÇÃO MOSTEIRO DE SANTA CLARA) 1497-1890 54 (fotografia) 6. Mosteiro de Santa Clara. Construído no final do século XV, o mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, mais tarde chamado de Santa Clara, foi a primeira casa religiosa feminina nas ilhas atlânticas. É bem visível a torre quadrangular, encimada por uma cúpula oitavada com um pináculo, recoberta de azulejos do séc. XVII. Fotografia do Jornal da Madeira 55 CAPÍTULO I ESTRUTURA MATERIAL E ECONÓMICA 1. O primeiro mosteiro feminino na Madeira A Madeira nasceu franciscana. Quando no raiar do século XV o povo luso se lançou na epopeia dos descobrimentos foram os franciscanos que, levados pelo desejo de “fazer cristandade”, acompanharam os mareantes Atlântico dentro. Segundo os antigos cronistas, nas naus de João Gonçalves Zarco, que aportaram à Madeira em 1419, encontravam-se dois franciscanos que benzeram a terra e celebraram a primeira missa na Ilha.90 Outros vieram depois. Iniciado o povoamento da Ilha logo após a descoberta, muitos nobres se transferiram para lá, assistindo-se a uma verdadeira proliferação de linhagens locais. Por razões religiosas, isto é, “para melhor servir a Nosso Senhor” e por imperativos tantas vezes sociais e políticos, a população insular começou a sentir a necessidade de um mosteiro na Ilha. De facto, as donzelas nobres e não nobres, que queriam levar vida conventual, por falta de casa religiosa no Funchal destinada a esse fim91, tinham de dirigir-se para o Reino, solução pouco agradável para as famílias que faziam vida na Ilha. Foi João Gonçalves da Câmara, filho do descobridor e segundo capitão donatário do Funchal, que chamou a si a iniciativa de fundar o primeiro mosteiro, “não só para recolhimento das suas filhas como de outras pessoas que desejavam seguir a vida monástica”92. Admite-se a possível influência de D. Manuel, duque de Beja e Senhor da Madeira, na qualidade de Mestre da Ordem de Cristo, na determinação do donatário, pois que também ele via a urgência de satisfazer essa necessidade93. Podemos até adiantar a hipótese de que a atitude decisiva de João Gonçalves da Câmara se deva a diligências anteriormente havidas junto da Sé Apostólica pelo duque de Beja e pelo clero do Funchal, representado na pessoa do vigário de Nossa Senhora do Calhau, Nuno Cão, freire do Mestrado de Tomar94. 2. Autorização papal Do relacionamento das entidades sobreditas com a corte pontifícia de Roma resultou a bula Eximiae devotionis affectus” de 4 de Maio de 1476, de Sisto IV, insigne Papa franciscano, que autorizava a construção do mosteiro95. 90 Jerónimo Dias Leite, Descobrimento da Ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos Capitães da dita Ilha, Coimbra, 1947, pp. 9-10; P. Fernando Augusto da Silva, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, 1425-1800, Funchal, 1946, p. 161; Fr. Domingos de Gubernatis a Sospitello, Orbis Seraphicus-Historia de tribus Ordinibus a Seraphico Patriarcha S. Francisco institutis, deque eorum progressibus,& honoribus per quatuor mundi partes, IV, Roma, 1685: De nova Custodia Insule & lignorum, sive de Madeira, fol. 310. O cronista ao redigir a memória da criação da Custódia da Madeira, ao mesmo tempo que fala da acção dos franciscanos, faz uma descrição geográfica e histórica de grande intersse.. 91 P. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, Elucidário Madeirense, Funchal, 1984, I, p. 309. Citaremos: Elucidário Madeirense. 89 Elucidário Madeirense, I, p. 309. 93 Elucidário Madeirense, I, p. 309. 94 Jerónimo Dias Leite, op. cit., pp. 43-44; Eduardo Clemente Nunes Pereira, Ilhas de Zargo, 3ª edição, II, 1968, p 424. Citaremos Ilhas de Zargo. 95 Manuel Taveira, ofm, “Bulas referentes a Ordem Franciscana em Portugal, no Bulário Franciscano”, in Itinerarium 6 (1960) 284. 56 Sisto IV, respondendo ao capitão e dirigindo-se à Igreja lisbonense, concedeu a João Gonçalves da Câmara e a sua esposa D. Maria de Noronha não só a autorização para construir o mosteiro como também o padroado do mesmo. A referida bula concedia autorização a 7. Vista aérea do mosteiro de Santa Clara. A fotografia que, em primeiro plano, deixa ver o jardim interior, onde se construíram as dezasseis capelas particulares, mostra--nos, ao alto, uma grande parte da cidade do Funchal. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. D. Maria de Noronha “para entrar no convento acompanhada de três ou quatro senhoras e de falar com a abadessa e religiosas, ter com elas recreação e sentar-se à mesa da comunidade”96. Porém, apesar desta autorização de Roma e da muita vontade do duque de Beja, as obras não começaram. Em carta de Almada de 17 de Julho de 1488 ainda o duque insistia com as autoridades e o povo da Madeira para que fosse iniciada a construção. “(…) Eu tenho havido letra do Santo Padre para na igreja de Santa Maria de Cima, haver de fazer um mosteiro de freiras de observância (…) E porque é causa do serviço de Deus, bem e honra dessa Ilha (…) por razão do mosteiro onde podereis meter vossas filhas para em ele servirem a nosso Senhor, (…) eu vos rogo e encomendo que tanto que esta virdes, vos ajunteis logo em câmara com o capitão (…) E vos praza de se assim fazer, dando vossas esmolas e ajudas para o dito mosteiro se poder logo começar e fazer (…) com vossas ajudas e minha, ele deva ser honrado e bem provido”97. Posteriormente, em resposta a questões que lhe foram postas, D. Manuel observava: “(…)as freiras que nele hão-de entrar, não hão-de ser estrangeiras, mas filhas e parentes dos principais da terra, pelo que deveis mais de folgar e de dar aviamento a este feito”98. Desconhecemos as razões que teriam obstado ao começo da obra, mas sabemos que a 1 de Fevereiro de 1491, através do mesmo duque de Beja, se conseguiu de Inocêncio III uma nova autorização para a construção e fundação do mosteiro, e logo nesse mesmo ano ou mais provavelmente em 1492 , se deu começo às obras99. 3. A construção O mosteiro surgiu junto à igreja de Santa Maria de Cima, também designada de Nossa Senhora da Conceição de Cima, fundada por João Gonçalves Zarco ou pelo Infante D. Henrique, junto à casa do descobridor, a Casa das Cruzes, hoje Quinta das Cruzes, em lugar alto, sobre uma rocha, “com alegre e larga vista da terra e do oceano” e tão perto dele que, diz Noronha, “não pode alargar-se mais nem ter cerca igual à sua grandeza, sendo-lhe necessário ter as hortas e pomares, fora da clausura,”100 em lugares vários da Ilha. 96 Joseph Pou y Marti, Bullarium Franciscanum, nova série, III, Quaracchi, 874 (1949) 428 - 431; Manuel Taveira, ofm, “Bulas referentes à Ordem Franciscana em Portugal, in Itinerarium, 6 (1960) 284-285; António Domingues de Sousa Costa, “ O Infante D. Henrique na Expansão Portuguesa” in Itinerarium, 5 (1959) 520-521 e 527-528; Frei Fernando da Soledade, História Seráfica Cronológica da Ordem de S. Francisco na Província de Portugal, III, Lisboa, 1705, p. 349. 97 ARM, Câmara Municipal do Funchal, tomo I da Câmara, fol. 163v e 164 v; Arquivo Histórico da Madeira, Funchal, 16 (1973) 212–213, doc. 126: Carta do Duque de Beja para os fidalgos, cavaleiros, escudeiros e homens bons e povo da Madeira, de 17 de Julho de 1488. Elucidário Madeirense, I, p. 309; Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Eclesiásticas, para a composição da História da Diocese do Funchal, na Ilha da Madeira, Funchal, 1996, (reimpressão da edição de 1722), p. 261 e ss. 98 ARM, , Câmara Municipal do Funchal, I da Câmara, fol. 164 v e ss.; Arquivo Histórico da Madeira, , 16 (1973) 212–213, doc. 126: Carta do duque de Beja para os fidalgos, (...) de 17 de Julho de 1488. 99 Elucidário Madeirense, I, p. 309; Frei Apolinário da Conceição, Claustro Franciscano, erecto no domínio da Coroa Portugueza, Lisboa, 1740, p. 146; Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 174 ss.; Fernando da Soledade, III, op. cit., pp. 349-350; Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42. 100 Noronha, op. cit., pp. 263 e 264. Quanto ao local, mandava o duque de Beja que se fizesse “em baixo, em Santa Maria do Calhau ou em São Sebastião, onde melhor parecer ao vigário, ao capitão e a vós”. (ARM, Câmara Municipal do Funchal, I da Câmara, fol. 164v; Arquivo Histórico da Madeira, 16 (1973) 212 –213, doc. 126 ). 57 A igreja foi incorporada na construção, tendo recebido importantes modificações, a fim de ficar adaptada à clausura. A capela-mor recebeu os restos mortais do descobridor, ainda antes da igreja estar integrada no mosteiro. Mais tarde, nela foram sepultados os cinco primeiros capitães donatários do Funchal e alguns membros dos Câmaras. Os familiares do terceiro capitão, Simão Gonçalves da Câmara, que morreu em Matosinhos, fizeram questão de mandar trasladar os seus restos mortais para o Funchal, a fim de ser sepultado no mosteiro de Santa Clara101. O donatário procurou dar ao edifício as dimensões necessárias, provê-lo de salas, oficinas comuns e particulares, dormitórios em número de doze e outras divisões que a finalidade exigia, havendo também o cuidado de anexar-lhe algumas propriedades, entre as quais a Vargem do lado sul das Cruzes, que constituíam um espaço agrícola necessário às religiosas102, ainda que insuficiente. 8. O claustro gótico do mosteiro de Santa Clara. Bem visíveis as robustas colunas oitavadas da arcaria gótica que fecha a ala norte do claustro. As pedras, de tonalidade amarela, na opinião de alguns autores, terão vindo do Continente. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. Segundo o cronista Frei Fernando da Soledade, João Gonçalves da Câmara empenhouse em que o mosteiro ficasse espaçoso e funcional. Ouçamo-lo: “Aqui fez o capitão este insigne mosteiro, que na verdade o é, e muito digno de toda a estimação, assim por causa do seu território notavelmente alegre, como por sua grandeza e perfeição dos edifícios e tanta capacidade, que (contando somente as freiras e meninas que se criavam para o mesmo estado) Planta 1 recolhia cento e doze pessoas”103. As obras decorreram com certa morosidade, não só pela “capacidade de estilo” mas também pela ausência do capitão que, sendo conselheiro régio104, muitas vezes ia para o “Continente do Reino”, onde a permanência era sempre demorada, devido sobretudo à dificuldade das comunicações. Apesar de João Gonçalves da Câmara ter o cuidado de, nas suas ausências, se fazer substituir por sua filha D. Constança de Noronha na vigilância das obras, certo é que elas avançaram lentamente e só se concluíram em 1497105. 9. O claustro gótico noutra perspectiva. Vista noutra perspectiva, a ala norte do claustro, opulenta e bela, deixa ver a parte do imóvel que corre ao longo da Calçada de Santa Clara. Fotografia de Perestrellos Photógraphos – Museu “Vicentes” 101 Elucidário Madeirense, III, pp. 242, 243; Noronha, op. cit., p. 265. 102 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara, Funchal., L 31, não paginado; Noronha op. cit., p. 264. 103 Fernando da Soledade, op. cit., III, pp. 350 – 351. 104 Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42,. 105 Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42. 58 Finalmente, tinha a Ilha da Madeira o primeiro mosteiro de Irmãs Clarissas, que havia de ser, como escreveu o cronista Dias Leite, em 1579, “tão magnífico na fábrica como ilustre nas muitas e virtuosas Madres que nele hoje em dia fazem vida de santas”106. 4. Licença papal definitiva A bula Ex injunto nobis do Papa Alexandre VI, de 30 de Março de 1495107, concedeu a licença definitiva. O papa dirigiu a bula à Igreja lisbonense, confiando a sua execução ao vigário geral da Sé de Lisboa, Afonso Gil, bacharel em cânones, da qual só a 6 de Junho de 1497 tomou conhecimento. Nesta bula, o pontífice romano, para além da licença referida, determinava que108: - o mosteiro fosse da Regular Observância, com perpétua clausura, grande recolhimento e obedecendo em tudo ao guardião do convento do Funchal; - as primeiras fundadoras do edifício espiritual fossem quatro ou cinco religiosas do mosteiro da Conceição de Beja; - com elas viesse por abadessa D. Joana de Noronha, professa da Casa de Beja, filha do mesmo capitão”109. E, posto que o mosteiro iria seguir a Regra de Urbano IV, também dita Regra Segunda de Santa Clara, que dava algumas facilidades, particularmente no que concerne à pobreza, o pontífice pôde fazer algumas concessões: que o mosteiro tivesse propriedades e fazendas de raiz, com as quais se pudessem sustentar as religiosas sem alheia dependência, e que as religiosas pudessem comer carne, lacticínios e ovos todos os dias do ano em que os seculares podem usar semelhantes iguarias110. Com o fim de dar execução à bula de Alexandre VI, e a instâncias do vigário da Sé de Lisboa, logo o capitão partiu para Beja, donde trouxe, não D. Joana, mas sim D. Isabel, também “sua filha, nomeada já abadessa, com quatro fundadoras, D. Joana de Albuquerque, D. Maria de Mello, Maria Pessanha, Ana Travassos e algumas meninas nobres suas parentes que se criavam para freiras no próprio mosteiro”111. 106 Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 42; Fernando da Soledade op. cit., III, pp. 350 – 352. Lucas Wadding, ofm, Annales Minorum, XV (1492-1515), Quaracchi, 1933, p.139; Reg. Lat. 969, fols.7v-8v; ed. Wadding, XV, 614 ex Lib. 69, fol.7. - Alva, Indiculus, 122 num. 4: “Privilegium pro Monasterio Clarissarum Insulae Lignorum. Ex iniuncto, 3 kal,. Aprl.,Wadding fol.114”. 108 Fernando da Soledade, op.cit. III, p. 351-352; Jerónimo Dias Leite, o.p cit., p. 43 e Noronha, op. cit., p.262. Noronha e Fernando da Soledade atribuem ao referido breve a data de 1 de Abril de 1495. 109 Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 351; Apolinário da Conceição, op.cit., p. 146. No breve papal lê-se, de facto: “(...) e com elas viesse por abadessa D. Joana de Noronha, professa da casa de Beja”. O cronista franciscano Fernando da Soledade refere uma memória manuscrita que lhe chama Isabel, “mas nós”, diz o cronista, “lhe damos o nome que o Papa assina” (op .cit., p. 351). Também Noronha nas suas Memórias Seculares e Eclesiásticas, pp. 262 – 263, apresenta D. Joana de Noronha como primeira abadessa do mosteiro de Santa Clara do Funchal. Ao longo dos tempos, os diversos autores foram apontando um e outro nome, convictamente ou entre dúvidas. Contudo, sabe-se que João Gonçalves da Câmara, no seu testamento ( 26 de Junho de 1499) deixou ao mosteiro da Conceição de Beja 10.000 réis pela alma de D. Joana sua filha “(...) que no dito mosteiro jaz (...)” (Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934-1935) 20). Numa lápide tumular, existente na varanda que conduz ao claustro, adossada à parte sul dos dois coros, pode ler-se: “Aqui jaz D. Constança de Noronha (...) e sua irmã D. Isabel, primeira abadessa, filha do segundo Capitão donatário desta Ilha”. Tudo está claro. De Beja não saiu D. Joana, como diz o breve, mas sim D. Isabel, sua irmã. Numa lápide tumular ninguém se equivocava. A revista Islenha 1( 1987) 83, transcreve a referida inscrição tumular. 110 Fernando da Soledade, op.cit., III, pp. 351-352. 111 Fernando da Soledade, op. cit.., III, p. 352; Jerónimo Dias Leite, op. cit., p. 43; Numa relação de 1615, respeitante ao mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja, sobre a saída de religiosas para outros mosteiros, lê-se o seguinte: “Daqui foi este convento em tanto aumento de virtude e santidade, que dele foram edificar o muito religioso mosteiro das Chagas de Vila Viçosa, de São João de Estremoz e de Santa Clara da Ilha da Madeira. E foram desta casa reformar Santa Clara desta cidade de Beja, Santa Clara de Vila do Conde e Santa Clara de Coimbra e Araceli de Alcácer do Sal, dos quais se tem resultado tanto aumento de virtude e santidade” (ADB, Tombo dos bens, foros, propriedades, que pertencem ao mosteiro de Nossa Senhora da Conceição desta cidade de Beja, 1577-1609, fol. 347v. e ss.). Esta informação, que nos foi gentilmente enviada pelo Dr. Jorge Pulido Valente, Director do Departamento Sócio-Cultural de Beja, mostra a credibilidade espiritual do real mosteiro da Conceição daquela cidade alentejana. 107 59 Reforçando os privilégios e concessões de Alexandre VI, também o rei D. Manuel permitia ao mosteiro “faculdade para possuir bens que comprasse ou adquirisse por herança”112. Chegadas que foram à Ilha da Madeira, para se refazerem um pouco dos sustos da viagem, o capitão “as hospedou em sua casa, com a boa companhia que lhes fez sua filha D. Constança, irmã da abadessa”. Porém, elas suspiravam por encontrar-se no mosteiro, onde “fizeram sua entrada no Domingo que caiu no Oitavário de Todos os Santos (…) Foi este o dia mais festival e alegre que tinha experimentado a Ilha da Madeira, porque nunca dantes tinha visto Esposas de Jesus Cristo (…) Ainda brilhou mais o triunfo da entrada, porque algumas donzelas mais nobres do Funchal e outras filhas do mesmo capitão, vestidas já com o hábito de Santa Clara, fizeram companhia às Fundadoras, ficando com elas na clausura, na qual foram experimentando os rigores e asperezas do noviciado”113. A Ilha da Madeira tinha, a 5 de Novembro de 1497, o seu primeiro mosteiro de religiosas professas. 5. O padroado da família Câmara Na Europa, durante os séculos XII e XIII, o número de conventos femininos, criados de propósito para receberem nobres aumentou substancialmente, primeiro na Ordem Beneditina, depois na Cisterciense e na de Santa Clara. Quando no século XV se fez o povoamento da Ilha da Madeira, as linhagens que ali se iam constituindo viam nos mosteiros um óptimo lugar para as filhas que não casassem, além do prestígio que dava aos nobres o padroado dos mosteiros. Sabe-se que o mosteiro de Santa Clara do Funchal foi expressamente fundado como dependência da família Câmara, para abrigo das mulheres solteiras da sua linhagem e também da restante nobreza, o que Soledade confirma, quando diz: “eram todas nobres e de gente principal e melhor da Ilha.”114 Também o duque de Beja, em carta enviada para a Madeira, assim se expressa: “As freiras que nele hão-de entrar (…) hão-de ser filhas e parentes dos principais da terra”115. A bula Eximiae devotionis affectus de Sisto IV, já referida, concedia a João Gonçalves da Câmara e sua esposa D. Maria de Noronha o direito de padroado do mosteiro, bem como a faculdade de transmiti-lo aos seus sucessores primogénitos. Contudo, o direito de padroado dos Câmaras não era tão amplo como nos conventos medievais, não incluindo o direito de apresentação da abadessa pelos padroeiros. Tal restrição deve-se ao facto de a Regra de Urbano IV, seguida pelas religiosas do mosteiro de Santa Clara, estipular que a abadessa fosse eleita democraticamente pela totalidade das Irmãs capitulares, ou seja, pelas religiosas professas116. Era, pois, um padroado muito mitigado e indulgente, mas muito significativo em termos de prestígio. Mesmo assim sendo, a família Câmara teve nas suas mãos o governo do mosteiro, até meados do século XVI. Sabe-se que ali professaram D. Elvira de Noronha, filha de João Gonçalves da Câmara, D. Beatriz, D. Isabel e D. Maria de Noronha, filhas do terceiro capitão donatário, Simão Gonçalves da Câmara, e muitas filhas dos capitães que se sucederam, bem como dos mais 112 ANTT, Chancelaria de D. Manuel, Livro das Ilhas, fol.. 55: Carta de Alcochete de 13 de Julho de 1496; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 18, fol. 5, Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 351. 113 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 352. 114 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 351. 115 ARM, Câmara Municipal do Funchal, tomo I da Câmara, fol. 164 v e ss ; Arquivo Histórico da Madeira, 16 (1973) 212-213, doc. 126 : Carta do duque sobre se fazer o mosteiro e a igreja. 116 RCL, IV, 1-8, FF II, p. 49. 60 ricos e nobres fidalgos da Madeira117. Foi entre estas religiosas, membros da família Noronha (linha feminina dos Câmaras) que, ao longo de muitas décadas, foi escolhida a abadessa. Por carta de Gaspar Vaz do Funchal, de 20 de Maio de 1542, sabemos que, desde a fundação do mosteiro, sempre as “abadessas andaram de parente em parente todas Noronhas”.118 Mais diz a carta que a eleição feita naquela data, sob a presidência do franciscano Frei Nuno, igualmente caiu “numa abadessa freira desta linha que veio de Portugal, por nome Aparícia, virtuosa pessoa (pelo que) estão todos muito consolados”119. A partir do quinto capitão donatário, primeiro conde da Calheta, finaliza a capitania do Funchal. O cargo de donatário tomou uma posição meramente honorífica em face da administração pública. Ele é o último capitão donatário que se faz sepultar na capela-mor da igreja do mosteiro, a qual vinha servindo de panteão aos seus antecessores. Contudo, o padroado do mosteiro permaneceu na descendência do fundador, tendo depois passado aos condes e marqueses de Castelo Melhor. De facto, em razão do casamento de Simão Gonçalves da Câmara, terceiro conde da Calheta, filho de João Gonçalves da Câmara, sexto capitão donatário, com D. Maria de Vasconcelos, filha e imediata herdeira do primeiro conde de Castelo Melhor, o condado da Calheta integrou-se na Casa Castelo Melhor, depois erguida a marquesado120. Em 1867, ainda encontramos os condes e marqueses de Castelo Melhor a reclamar a posse do mosteiro, não só como padroeiros mas também como seus legítimos senhores e proprietários121. 6. Instituição de “capelas” O homem da Idade Média, sensível ao religioso, preocupava-se, embora em moldes muito da época, com a vida para além da morte. Alguns fidalgos, e não só eles, instituíam o que chamavam capelas, garantindo sufrágios que se concretizavam em missas rezadas ou cantadas e ofícios dos defuntos em seu favor e de seus entes queridos, que o Juízo da Provedoria dos Resíduos, mais tarde designado Juízo dos Resíduos e Capelas, geria, fiscalizava e penalizava, quando necessário. Estas capelas não podiam ser alienadas e os seus possuidores receberiam apenas uma parte dos rendimentos dos bens, sendo a restante destinada a satisfazer encargos pios122. João Gonçalves da Câmara que, além de conselheiro régio e capitão donatário, era também Governador da Justiça na Ilha da Madeira e Senhor das Desertas, foi a primeira pessoa a instituir uma capela no mosteiro por ele fundado, que formou com a terra da Várzea ou Vargem, situada um pouco abaixo da sua casa e o lugar que havia recebido de Fernão de Annes: “Esta terra e lugar aparto para uma capela contínua que mando que todos os dias se diga uma missa rezada na capela-mor da igreja do dito mosteiro da Conceição que eu fundei; a qual missa servirá pela alma do meu pai e da minha mãe, e da senhora minha mulher, que Deus haja e minha, e do dito Fernão de Annes, que o dito lugar me deixou; e o capelão que a dita missa disser haverá em cada ano catorze mil réis”123. Segundo o testamento do capitão, esta capela estaria cumprida em 1826, com sobras de 1.511.400 réis para o futuro à razão de 14.000 réis cada ano para missas. Pedia João Gonçalves da Câmara que nos Autos da conta desta capela ficasse uma nota esclarecedora de 117 Elucidário Madeirense, I, p. 310. ANTT, Corpo Cronológico, I, 72, 9. Citado por Rui Carita, História da Madeira, Funchal, 1989, I, p 306; João José Abreu de Sousa, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, p. 13. Esta obra apresenta fundamentalmente a inserção do mosteiro no regime de colonia que, de certo modo, já vigorava na Madeira no século XV, esquecendo aspectos essenciais da vida dum mosteiro, tais como: orgânica, vivência espiritual e cultural, dinâmica vocacional, inserção na Igreja local, na sociedade contemporânea e outros mais. 119 ANTT, Corpo Cronológico, I, 72, 9. Citado por Rui Carita, op. cit., I, p. 306; João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 13. 120 António de Aragão, Para a história do Funchal, 2.ª edição, Funchal, 1987, p. 112; Elucidário Madeirense, I, p. 309. 121 Elucidário Madeirense, I, p. 309. 122 Elucidário Madeirense, I, p. 243. 123 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31, não paginado, e L 11, fol. 148; Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934) 17 e ss. 118 61 “estar satisfeita esta pensão até ao ano vindouro de 1933, com sobras de 13.400 réis para o ano de 1934”124. Seguem-se outras capelas, em condições idênticas a esta primeira, instituídas por Gonçalo Pires, P. Manuel Homem de Menezes, Maria Andrade, Beatriz Rabela, D. Maria e seu marido António Homem Barreto125. Em função dos testamentos dos instituidores de capelas nos Autos do Cartório dos Resíduos ficava averbado o que cada capela devia ao mosteiro de Santa Clara em cada ano. Sabe-se que a capela do segundo donatário devia ao mosteiro 2.700 réis anuais e a de Beatriz Rabela 600 réis126. Estas capelas impunham ao mosteiro obrigações espirituais sérias em favor dos instituidores. A 26 de Junho de 1667, Frei Diogo dos Mártires, comissário das capelas, certificava: “A abadessa tem satisfeito com todas as obrigações das capelas e mandado dizer as respectivas missas”127 e, a 28 de Janeiro de 1673, Frei Francisco da Conceição, então comissário das capelas, depunha igual testemunho: “certifico que a madre abadessa, D. Francisca da Nazaré, tem satisfeito com todas as obrigações das capelas e mandado dizer as missas anuais a que é obrigado o Convento de Santa Clara”128. Quando em 1741, D. Frei João do Nascimento assumiu o governo da diocese do Funchal, verificando irregularidades, com grande firmeza exigiu cumprimento rigoroso dos legados pios a cargo de leigos, mantendo persistentes lutas durante toda a sua vida contra eles e o próprio tribunal do Juízo dos Resíduos e Capelas, relaxado na execução das suas obrigações129. 7. O património do mosteiro - Propriedades rústicas e urbanas Para fazer face a todas as despesas que advinham da obrigação de sustentar o elevado número de pessoas que viviam no mosteiro e enfrentar outros gastos complementares, eram necessários rendimentos certos e suficientes. O mosteiro foi, na sua origem, protegido pela coroa portuguesa e autoridade pontifícia, que lhe permitiram bens imóveis - propriedades rústicas e urbanas - privilégios e isenções. Porém, enquanto no mosteiro fundador, o real mosteiro da Conceição de Beja (1479), D. Fernando e a infanta D. Brites foram padroeiros solícitos130, outro tanto não sucedeu com o mosteiro de Santa Clara do Funchal, onde “são as próprias freiras que vão custear, em grande parte, graças aos seus dotes e doações, a sua subsistência”131. De facto, eram os dotes das religiosas, oriundas de famílias nobres e abastadas, bem como as dotações de pessoas piedosas e amigas, que lhes davam os maiores proventos. Sabe-se que João Gonçalves da Câmara dotou as suas filhas com a propriedade do Curral Grande que, para o efeito, comprara em 11 de Setembro de 1480 a Rui Teixeira e sua esposa D. Branca que, sem dúvida, foi o prédio rústico mais vasto e importante que o mosteiro possuiu. Foi-lhe entregue por João Gonçalves da Câmara na ocasião em que as suas filhas D. Elvira e D. Constança de Noronha foram admitidas132. 124 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31. AHDF, Conv. S. Clara F., caixa. 27, capilha 1, doc. avulso. A capela de D. Maria e seu marido, António Homem Barreto, segundo o referido documento, foi instituída em 1762. Para o AHDF ver a nota de rodapé na p. IX , desta obra 126 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31. 127 ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 44, p. 122. 128 ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 44, p. 122 v. 129 Ilhas de Zargo, II, p. 450. 130 ADB, Tombo dos Bens, Foros, Propriedades, que pertencem ao mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Beja, 1577-1609, fols. 347v e ss; João José Abreu de Sousa, “ O Paço de Belas e a Madeira” in Atlântico, 13 (1998) 46-50. 131 João José Abreu de Sousa, art. cit., in Atlântico, 13 (1988) 49-50. 132 Elucidário Madeirense, I, pp. 309 - 310; Rui Carita op. cit., I, p. 307. 125 62 Também Simão Gonçalves da Câmara “meteu suas filhas no mosteiro de Santa Clara com boas rendas, que para isso lhes aplicou”133. E, a 15 de Maio de 1506, as religiosas, pelo procurador Paio Rodrigues, tomaram posse duma propriedade em Câmara de Lobos que D. Constança doara ao mosteiro. Tratava-se da propriedade de Fajã, muito produtiva134. As dotações e heranças sucediam-se e, em cada século, o mosteiro tomava posse de novas propriedades. Referimos algumas das mais importantes, nos concelhos do Funchal, Ponta do Sol e Câmara de Lobos. Quadro nº.8 - Nos séculos XV e XVI Funchal - Ponta do Sol “A Horta” à Calçada de S. Clara. Curral das Freiras. Quinta de Santo António (Trapiche) Uma propriedade na Senhora do Monte Torrinha em Santa Luzia Quebradas, em São Martinho Garanicos e Corujeira - Ribeira Grande: Feiteira Moinho Torre das Vinhas Porta do Caetano Portela. Câmara de Lobos - Lombo Campanário: Porta Nova e Palmeira Quebradas Eira da Figueira Pomarinho ou Adega Casa Nova. - Câmara de Lobos: Rancho Serrado das Casas Pico de Alforra Fazenda da Quinta. Fontes: ARM, Conventos, Conv. S. Clara F, L 42, fols 15 v - 162; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 31. Ao longo do século XVII, recebeu o mosteiro novas propriedades nestes mesmos concelhos, entre as quais o vasto património pertencente a D. Branca de Atouguia,135 em 1615, ano da sua profissão. Ela e suas filhas D. Bernardina e D. Antónia, já professas, deram ao mosteiro de Santa Clara muitas e boas propriedades situadas, na sua maioria, no Campanário136. Assim, aos prédios rústicos que vinham do século XVI outros se juntaram. Quadro nº.9 - No século XVII Funchal Ponta do Sol Ilhéus Ribeira Brava: Covão, Cortadas, Lombo Loureira, Santa Luzia Gordo, As Fontes, Eira da Bica, Eira do Esteios Poço, Coroa de Domingos Lopes, Ribeira Quebradas das Nogueiras, Outeiro, Ribeira dos Força, São Gonçalo Vinháticos. Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Conv. S. Clara F., L 42, fol. 15 v - 162. Câmara de Lobos Estreito de Câmara de Lobos: 5 pomares no Pico dos Bodes. Campanário: Chamorra, 5 serrados nas Quebradas, Furnas, Pedregal, Ribeira, Massapez, Arrodal e Rocha. S. Clara F,2072 doc. 31; ARM, Conventos, 133 Elucidário Madeirense, I, p 310; Rui Carita op. cit., I, p. 308. No tríptico de São Tiago e de São Filipe, atribuído a Pieter Coeck Van Aelst (século XVI), belo exemplar de pintura flamenga, está representada, nos volantes, a família de Simão Gonçalves da Câmara, terceiro capitão donatário do Funchal. Pode ver-se no Museu de Arte Sacra do Funchal (Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, Museu de Arte Sacra do Funchal . Arte flamenga, Lisboa, 1997, pp. 102-107). 134 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, maço 11, doc. avulso. 135 D. Branca de Atouguia pertencia aquele número de freiras que se destacaram, não pela santidade, mas pelo volume dos bens que deixaram ao mosteiro e pelo prestígio social que gozavam. Era bisneta paterna do fundador do Convento de São Francisco do Funchal. Casou pela primeira vez com Gonçalo Pires, homem honrado e rico, mas simples lavrador, com propriedades no Campanário e Ribeira dos Socorridos, onde morava (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finança, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. 11) e, pela segunda vez, com André Afonso de Drummond, de nobre linhagem. Do primeiro casamento teve quatro filhos: Gregório de Atouguia (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv de S. Clara F. L 11, fol. 116), que Noronha por lapso chama Nuno Alves da Costa, que foi para a Índia; Francisco de Atouguia e duas filhas, D. Bernardina e D. Antónia, que professaram no mosteiro de Santa Clara. Viúva pela segunda vez, entrou no mosteiro, onde professou. Fez testamento a 10 de Setembro de 1615, um tanto contrariada, pois, mais do que ser professa, lhe interessava simplesmente estar “recolhida” (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara, F., L 11, fol. 166). 136 ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 42, fol. 133. 63 O século XVIII veio aumentar as propriedades de Santa Clara com a posse da Vela Latina, propriedade pertencente à família dos Acciaiuoli137, pela entrada de Guiomar Estrela e Brites do Céu, filhas de Roque Acciaiuoli e, além de novas terras naqueles mesmos concelhos, tomou posse de outras nos de Santa Cruz, Calheta e Porto Santo. Quadro nº.10 - No século XVIII Funchal Cova, em São Roque Vela Latina, em Santa Luzia. Casa Branca, em Santo António. São Gonçalo: Morteiras, Louros, Farrobo, Escadinhas e Fonte. São Martinho: Fé, Nazaré e Quebradas. Nossa Senhora do Monte. Santa Cruz Gaula Caniço: Paço, Calçada e Oleiros. Ponta do Sol Câmara de Lobos Tabua: Corujeira, Quebradas, Colaços, no Campanário. Pico do Ferreiro e Barreira. Forneiras, no Estreito. Hortas, em Madalena do Mar. Malpica, Furna e Canhas. Calheta Ribeira de São Bartolomeu. Porto Santo Várias terras. Três pequenos prédios. Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finança, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc 31; ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 42, fols. 15v - 162. Sintetizando: nos séculos XV e XVI o mosteiro tomou posse de trinta e três propriedades, no século XVII de outras trinta e três e no século XVIII de trinta e oito. O séc. XIX é de decadência. Estas propriedades espalhadas por toda a Ilha eram entregues a colonos ou a simples arrendatários em regime de meias ou a troco de rendas pagas em dinheiro ou géneros. O mosteiro apenas cultivava directamente, servindo-se de pessoal assalariado, a sua pequena cerca. O mosteiro de Santa Clara possuía também alguns prédios urbanos no Funchal, nas freguesias da Sé, Santa Luzia, Santa Maria Maior e em Nossa Senhora do Monte138 e casas noutras localidades, como seja em São Gonçalo, no Caniço e em Gaula e ainda algumas no Porto Santo139. 8. O saque de 1566 A cidade do Funchal, à medida que foi enriquecendo com o cultivo do açúcar e do vinho, passou a ser porto sempre procurado pelas embarcações que, saídas das ilhas atlânticas, do Oriente e da América, se dirigiam para o velho Continente. Ao longo dos séculos XV, XVI e XVII, a Ilha da Madeira foi demandada por negociantes estrangeiros, particularmente ingleses, holandeses, franceses e italianos, que nela centravam os seus negócios. Também a nobreza do reino, particularmente a voltada para as lides marítimas, fazia questão de se passar para a Pérola do Atlântico. Ali se ia reunindo um valioso tesouro artístico: ricas e belas peças em ouro, prata e prata dourada, trabalhos belíssimos em marfim, sedas, brocados, damascos, ricas tapeçarias de origem persa e indiana, pinturas flamengas de valor, as mais raras jóias 137 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., doc. avulso. ARM, Conventos, Conv. S. Clara F, L. 42, fol. 29 v - 34 v. 139 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 42, fol. 40 v - 45 ; AHU, Madeira, docs. 265 e 627. 138 64 orientais, mobiliário inglês, francês e oriental dos mais requintados estilos. Toda esta riqueza despertava a cobiça de aventureiros e de políticos que, camufladamente, incentivavam e protegiam a guerra de corso140. Uma das mais terríveis incursões verificou-se em 1566. Em Setembro desse ano, Bertrand de Montluc, gentil-homem da casa de Carlos IX, rei de França e segundo filho do marechal Blaise de Montluc, embarcou em Bordéus cerca de mil e duzentos homens, em três navios de alto bordo e oito embarcações de menor lotação. Nesta expedição tomaram parte homens de armas, fidalgos franceses e alguns portugueses exilados, entre os quais Gaspar Caldeira, conhecedor dos tesouros e da importância económica da Ilha141. A 2 de Outubro daquele ano, estavam a atacar a Vila Baleira, no Porto Santo, que, apanhada de surpresa, foi saqueada e incendiada. Os habitantes de Machico e de Santa Cruz, enquanto preparavam a defesa, avisaram o governador do Funchal, Francisco Gonçalves da Câmara, da presença dos piratas. Na manhã do dia seguinte, apareceram naus suspeitas na Ponta de São Lourenço, seguindo em direcção ao Funchal. O governador reuniu o conselho de fidalgos, mas, enquanto se tomavam medidas, os galeões seguiram costa abaixo e, chegados à Praia Formosa, efectuaram o desembarque da sua gente, sem a menor dificuldade. Apenas se propagou na cidade a notícia de que os corsários haviam desembarcado, foi grande o desatino e confusão. O capitão Montluc, vencida a resistência oferecida pela guarnição da cidade, avançou e organizou o ataque, dividindo as suas forças em três colunas: uma subiu a encosta do pico dos Frias e dirigiu-se para o Mosteiro de Santa Clara, pretendendo apoderar-se de todos os valores ali existentes; a segunda desceu a São Lázaro e a terceira, a principal, comandada por Bertrand de Montluc, foi direita à cidade pela Rua da Carreira, entrando pela ponte de São Paulo142. No mosteiro de Santa Clara, os corsários não conseguiram entrar, pois encontraram o portão bem fechado e tão bem trancado que não o puderam arrombar, apesar do seu grande esforço. Quando menos o esperavam, foram atingidos por alguns tiros vindos da torre da igreja e, julgando estar o mosteiro bem defendido, desistiram do cometimento; descendo a calçada, foram juntar-se ao grosso do ataque que, sob o comando de Montluc, se dirigia para a fortaleza,143 reservando o assalto ao mosteiro para depois. Nesse entretanto, as religiosas, para não serem vítimas daquela horda selvagem, viramse obrigadas a abandonar o seu mosteiro. Saíram precipitadamente por entre os canaviais, numa longa e mortificada caminhada, só parando no Curral Grande, a uns dezassete quilómetros da cidade; assim se foram, sem salvar nenhum objecto valioso, a não ser uma custódia do Santíssimo Sacramento e alguns cálices que puderam levar escondidos nas mangas; tudo o mais, particularmente o que tinha valor, foi roubado.144 Enquanto os corsários permaneceram no Funchal - umas duas semanas - na sua fúria de destruição e matança, permaneceram as religiosas no Curral Grande, juntamente com muitas pessoas nobres, só regressando ao seu mosteiro após a retirada dos corsários145. A abadessa, não resistindo ao esforço da caminhada e abalo moral, faleceu durante o trajecto da ida. Antes de abandonar o mosteiro, havia escondido os objectos mais valiosos alfaias de culto e mais valores em prata e ouro - e só ela guardava o segredo do valioso depósito. No retorno ao mosteiro, apesar de diligente pesquisa, não foi possível descobrir o 140 Ilhas de Zargo, II, pp. 639-640. Eduardo Clemente Nunes Pereira. Piratas e Corsários nas Ilhas ,Funchal, 1955, pp. 57 - 63. Ilhas de Zargo, II, p. 639-640; Rui Carita, op. cit., I, p. 362. Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 355. 142 Rui Carita, op. cit., I, pp. 363 - 364; Eduardo Pereira, op. cit., pp. 61- 63. 143 Rui Carita, op. cit., p. 364; Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 356. Jerónimo Dias Leite refere que acudiu ao convento o senhor Teixeira de Machico, que ali tinha uma filha, o qual, com um arcabuz, disparou da torre da igreja do mosteiro, sobre os franceses, fazendo-os debandar; porém, Gaspar Frutuoso e Noronha dizem ter sido Sebastião Mendes o autor da defesa (Noronha op. cit., p. 274; Rui Carita, op. cit., I, p. 364, nota 967). 144 Fernando da Soledade, op. cit., pp. 355 - 366; Elucidário Madeirense, I, pp. 310 e 340; Ilhas de Zargo, II, pp. 815-816. 145 Fernando da Soledade, op. cit., pp. 355 - 366; Elucidário Madeirense, I, pp. 310 e 340. 141 65 seu esconderijo. Ao longo dos séculos, sempre as religiosas se lamentaram de tão grande perda,146 sem conseguirem acreditar que tudo tinha sido levado pelos corsários. Desta vez saíram bens abastecidos de tapeçarias, baixelas, sedas e brocados, cofres cheios de dinheiro, objectos de ouro e prata. Do convento de São Francisco e do mosteiro de Santa Clara, levaram valiosíssimos vasos sagrados de metal precioso e tudo o que encontraram de valor. E foi tal a carga que, embora aumentada a frota com uma caravela e a nau de São Tomé, que se encontravam no porto e das mais que puderam, tiveram de deitar ao mar parte do saque “para poderem marear as velas”147. Quando chegou do Reino uma armada de socorro, já os corsários haviam partido em direcção às Canárias, onde venderam uma parte considerável da riqueza saqueada no Funchal148. Foi tal o horror deste ataque que D. Sebastião se apressou a mandar fazer o projecto da cerca do Funchal, com cinco portas para serventia da cidade, obras confiadas ao fortificador e mestre das obras reais, Mateus Fernandes, e a construir o forte de São Lourenço, no lugar do antigo forte manuelino.149 As obras decorreram com morosidade, pelo que a edificação da fortaleza só foi concluída no período filipino. Foi residência dos capitães donatários e governadores da Madeira, função que veio sobrepor-se à sua utilização defensiva, generalizando-se a designação de palácio após a construção do andar nobre, no último quartel do século XVIII150. 9. Obras de ampliação e restauro A construção do mosteiro de Santa Clara obedeceu a três fases fundamentais. Porém, as grandes obras de ampliação e restauro tiveram lugar no século XVII. A igreja e o edifício iam aumentando à medida que o número das religiosas se tornava maior e as finanças da comunidade o permitiam. À capela de Nossa Senhora da Conceição, integrada no edifício, com uma sacristia de tecto mudéjar151, hoje desaparecido, capela-mor de talha dourada, que recebeu os túmulos dos capitães donatários, foi adicionada a nave da igreja e o seu remate no termo oposto, bem como os coros de baixo e de cima, este com um belíssimo tecto mudéjar e ambos com o pavimento atapetado de azulejos hispano-árabes (sevilhanos) de rara tonalidade verde e outros de policromia diversa, com desenhos geométricos relevados, figurando estrelas lineares. Ao fundo da igreja, na parede dos coros, sob um arco gótico, encontra-se incrustado o túmulo de Martins Mendes de Vasconcelos, que era casado com D. Helena Gonçalves da Câmara, filha de João Gonçalves Zarco. É um maravilhoso e imponente arco de cantaria, lavrado em gótico flamejante, de delicada execução, onde não falta uma belíssima decoração de elementos fitomórficos.152 Na base, a sustentar o referido jazigo, encontram-se três leões jazentes153. 146 Ilhas de Zargo, II, p. 816. Ilhas de Zargo, II, p. 640. 148 José Manuel Azevedo e Silva, A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico. (Séculos XV - XVII), II, Funchal, 1995, pp. 834. 149 José Manuel Azevedo e Silva, op. cit., II, pp. 835 - 836. 150 Em 1836, a separação dos poderes civil e militar determinou a divisão da Fortaleza - Palácio entre o Governador Militar (área leste, hoje afecta ao Comando da Zona Militar da Madeira) e a residência do Governador Civil (área oeste, compreendendo as salas nobres que constituem propriamente o palácio, gabinetes e zona privada), sendo, desde 1976, a residência oficial do Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira. O palácio de São Lourenço, classificado como Monumento Nacional em 1940 (Decreto 30 762 de 26 de Setembro de 1940, Diário do Governo, nº 225, I série, do mesmo dia, mês e ano) e reclassificado em 1943 (Decreto 32 973 de 18 de Agosto de 1943, Diário do Governo, nº 175, I série do mesmo dia, mês e ano; Ilhas de Zargo, II, p. 691), foi aberto ao público em 1995. 151 Segundo Oliveira Marques, o estilo mudéjar não se mostrou tão original como o gótico, pois, apesar das nítidas características essencialmente islâmicas, aparece numa época em que a presença islâmica na Espanha já não se faz sentir. Surge nas formas decorativas, motivos geométricos, revestimentos de azulejo, nos tectos chamados de alfarge, de madeira trabalhada, todos enquadrados numa estrutura gótica ou gótico-islâmica. O mudéjar teve enorme importância na arquitectura civil, mais do que em edifícios religiosos (Oliveira Marques, História de Portugal, I, Lisboa,1985, pp. 347-349). 152 Noronha, op. cit., p. 264; António Aragão, op. cit., pp. 113 - 115. 153 António Aragão, op. cit., pp. 114. 147 66 Penetra-se nesta magnífica igreja por um portal gótico de mármore branco continental, com várias arquivoltas que repousam sobre columelos lisos, rematados por simples capitéis onde se encontram folhagens e, em dois deles, uma cabeça humana154. Segundo Rui Carita, este portal deve datar dos fins do século XV ou princípios do XVI, mantendo ainda nas portas de madeira uma decoração de inspiração mudéjar típica dessa época155. No século XVII, para satisfazer as necessidades da comunidade, que havia aumentado, e da população do Funchal, que acorria às liturgias conventuais e ainda porque os corsários, no saque de 1566, haviam feito nela consideráveis estragos, a igreja sofreu notáveis modificações. De uma só nave, com as paredes revestidas de azulejo de deslumbrante policromia azul, amarelo e branco, formando enormes tapetes parietais, como padrão na Ilha da Madeira, e belíssimo tecto recamado de pintura, a igreja de Santa Clara, ganhou majestade. Ficou com aquela extraordinária beleza, digna do culto sagrado. Nela podemos ver cinco altares em talha dourada belíssimos, cujas invocações são de Santa Clara, com uma pintura que faz alusão à refeição que o Papa tomou com a Santa e suas religiosas, dos Reis Magos, Santa Ana, Nossa Senhora da Piedade e Santa Quitéria156. Na talha, trabalhou o imaginário Manuel Pereira. Neste mesmo século, a partir de 1667, houve melhoramentos nos coros, lugares destinados às religiosas, cujas paredes foram revestidas de azulejo azul e branco. A decorá-las e a dar ao espaço tonalidade religiosa, encontram-se, ainda hoje, belas pinturas formando quadros envolvidos por molduras em talha dourada e azulejos artísticos, também em azul e branco157. O coro de baixo é grande, nobre e com cadeirais dispostos a todo o comprimento das paredes laterais, num total de cinquenta, mandados fazer em 1736, por D. Maria Helena da Vitória, então vigária do mosteiro. Era ali que a comunidade rezava e participava nos ofícios divinos. Em frente da porta e encostada à parede, vê-se uma vitrina com a imagem do Senhor dos Passos, oferta testamentária de Roque José Araújo Viana, em 1787158. O coro alto era o lugar onde se assistia à música que “nesta casa”, diz Noronha, “se conservou sempre com particulares vozes e ciência”159. Neste coro, encontra-se uma imagem de Nossa Senhora de um metro de altura, rodeada de anjos, obra típica e formosa de escultura do século XVI. Parece remontar aos primórdios da igreja da Conceição de Cima. De finais do século XVI ou princípios do XVII, é a torre sineira, de forma quadrangular e encimada por uma cúpula oitavada com pináculo recoberta por azulejos da época160. O sacrário, feito com a prata de algumas religiosas, reunida em 1666161, é obra dos ourives António Soares, António Neto e António Araújo. Foram doadoras de objectos de prata e de dinheiro as Madres: - Margarida, filha de Gaspar Berenguer e sua mulher D. Isabel de França162, - D. Catarina Santana, filha do provedor Pedro de Sousa Correia, - D. Francisca de Santa Clara, filha de Diogo de Bettencout, - D. Isabel dos Mártires, filha de Pedro Teive, 154 António Aragão, op. cit., pp. 113-115; Ângela Maria de Freitas Alves, Abel Gomes Fernandes, Julieta Maria R. do Vale Fernandes e Irene Rodrigues, Quinta das Cruzes “Museu”, Funchal, 1983, p. 142. 155 Rui Carita, op. cit., I, p. 115. 156 ANTT, Arquivo. Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso; Noronha, op. cit., p 264. 157 ANTT, Arquivo. Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 39. 158 No testamento que Roque José Araújo Viana fez em 24 de Agosto de 1787 lê-se: “Também sou senhor de uma imagem dos Santos Passos (...), por falecimento de minha mulher, a deixo às religiosas do mosteiro de Santa Clara desta cidade, para colocarem onde melhor veneração possa ter (...) e havendo quem lha peça emprestada para com ela fazerem alguma procissão pública de preces particulares por falta de água, esterilidade, terremotos (...) a poderão emprestar, devendo recolher ao real mosteiro depois de completada tal função (AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 1, doc. avuso). 159 Noronha, op cit., p. 264. 160 Ângela Maria de Freitas Alves, Abel Gomes Fernandes, Julieta Maria R. do Vale Fernandes e Irene Rodrigues, op. cit., p. 143. 161 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 29. 162 O casal Berenguer virá a ser o fundador do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, em 1667. 67 - D. Maria da Apresentação, filha de Gaspar Pimentel. Entre os vários objectos de prata destinados a serem fundidos e utilizados na obra de ourivesaria deste sacrário, aparecem colheres, púcaros, garfos, salvas, uma garrafa e outros163, que dizem bastante sobre os hábitos sumptuários da nobreza insular, a vida de luxo e opulência que se patenteava não só nos solares dos nobres, como também nos conventos de religiosas. O total teria importado em 745.215 reis. Este sacrário é algo semelhante ao da Sé do Funchal e da igreja de São Pedro. Dividido em três peças sobrepostas, maravilhosamente trabalhadas, aparecia habitualmente incompleto por motivo de exposição do Santíssimo Sacramento, pois a custódia só nas grandes solenidades ocupava o camarim164. 10. Património artístico do mosteiro No claustro do mosteiro de Santa Clara encontravam-se dezasseis capelas e oratórios de freiras fidalgas. Estas capelas, verdadeira regalia de nobres, foram admiráveis santuários artísticos. Gostavam estas religiosas de ter os seus oratórios privados, edificados à sua custa, onde satisfaziam as suas devoções e em cuja decoração primavam. Eram das seguintes invocações: - Ressurreição, que se encontra cuidadosamente restaurada; - Encarnação, com uma pintura da Anunciação; - Bom Jesus; 10. Altar-mor da igreja do mosteiro de Santa Clara. Rico em talha dourada, tem ao centro o artístico sacrário de prata, obra da segunda metade do século XVII, feito com jóias e objectos de prata de algumas das suas religiosas. Fotografia do Rui Camacho, DRAC. 163 Santíssimo Sacramento (ainda existente, mas em estado degradado); Ascensão, com um belíssimo painel da subida de Jesus ao Céu; Porciúncula, de inspiração franciscana; Assunção; Senhora da Conceição, com um tríptico da Imaculada Conceição; Desterro; Rosário, com o retábulo da Árvore de Jessé, atribuído a Martim Conrado165; São João, onde havia uma valiosa tábua pintada, representando o nascimento de São João Baptista; São José, com uma belíssima pintura do Santo e Jesus adolescente; Santa Clara de Assis; São Francisco de Assis; Santo António, com dois painéis do século XVII, reproduzindo os seus milagres; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 23. Ilhas de Zargo, II, p. 813. 165 O pintor Martim Conrado foi um artista do século XVII, ainda integrado na geração protobarroca de inspiração sevilhana. Apareceu activo na Ilha da Madeira logo a seguir à Restauração portuguesa, entre 1640-1654, trabalhando amiúde e com crescente aceitação para entidades religiosas e nobres da Ilha, especialmente para os Berenguer. São-lhe atribuídos, além dos painéis aqui referidos: o de Nossa Senhora das Mercês, na capela do mosteiro do mesmo nome; a Imaculada Conceição, com dois doadores da igreja Matriz do Caniço (1646); São Miguel e Almas do Purgatório da igreja Matriz da Ribeira Brava; Nossa Senhora da Boa Hora, da capela da Boa Hora, na Torre (Câmara de Lobos); a Ascensão de Cristo e Árvore de Jessé do mosteiro de Santa Clara do Funchal: o Martírio das Onze mil Virgens (1653), a obra de maior requinte compositivo e de melhor correcção plástica, e outras mais. (Vítor Serrão “Martim Conrado in Dicionário de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, 1989, p.131. 164 68 - São Gonçalo, com um retábulo de Martim Conrado, onde o Cristo da Ascensão adquire graça italianizante. Esmerava-se cada fundadora em adornar a gosto próprio o seu santuário privativo, enriquecendo-o o mais possível de elementos arquitectónicos, picturais e escultóricos166. A Ilha foi, nos séculos XVI e XVII, inundada de obras de arte flamenga, encomendadas inicialmente por Lisboa e, a partir de 1472, directamente pela Madeira. Sabe-se que a cobiçada iguaria de luxo, o açúcar, era trocada pelo que de melhor a Flandres tinha para oferecer - as boas esculturas, pintura e ourivesaria. De lá vinham não só as obras de arte valiosas mas também pintores, escultores e entalhadores que, provavelmente na Madeira, conceberam obras de raro valor, algumas das quais se conservam no museu de Arte Sacra do Funchal. Os painéis flamengos, de apreciável valor artístico, distinguem-se pelas suas grandes dimensões, pouco comuns nos museus da Europa. Nesta pintura, alia-se a emocionante espiritualidade das figuras e o vigor do modelado das vestes com a harmonia da cor. Em seu equilíbrio de atitudes e gestos, não lhe falta a minúcia e o requinte do pormenor; envolvidas por íntima atmosfera religiosa, estão integradas na paisagem, onde é destacável a observação realista do mundo e a ciência da perspctiva. O mosteiro de Santa Clara deve ter possuído muitas e valiosas pinturas flamengas e luso-flamengas. Porém, as mais valiosas não escaparam à pilhagem dos corsários franceses de 1566167. 11. Cristo no túmulo. Pintura a óleo sobre madeira ( 210 x 122cm ), de escola portuguesa. Remonta ao segundo quartel do século XVI. Esta bela pintura encontrava-se na capela da Ressurreição do mosteiro da Santa Clara. Hoje podemos vê-la no Museu de Arte Sacra do Funchal. Fotografia do Museu de Arte Sacra. Da Escola Portuguesa, provenientes deste mosteiro, possui o Museu de Arte Sacra alguns exemplares do século XVI, de pintura a óleo sobre madeira: Aparição de Cristo a Santa Madalena, Aparição de Cristo à Virgem, Cristo no Túmulo e Descida da Cruz, volantes de um tríptico e ainda o Nascimento de São João Baptista, em madeira de carvalho, A Virgem e Cristo. São dignos de menção os painéis de Santo António: o painel central, do início do século XVI, e dois painéis laterais, do século XVII, reproduzindo os milagres do Santo: sermão aos peixes, milagre da mula e outros. Estes painéis localizavam-se na capela de Santo António no claustro do mosteiro. 12. Cristo. Pintura a óleo sobre madeira ( 60x41 ), de escola portuguesa, do primeiro quartel do séc. XVI. Esta bela pintura de Cristo pertenceu ao mosteiro de Santa Clara. Podemos vê-la no Museu de Arte Sacra do Funchal. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. 166 Ilhas de Zargo, II, p. 714-715; Noronha, op. cit., p. 264. Maria de Lourdes Ferraz, A Ilha da Madeira sob o domínio da casa senhorial do Infante D. Henrique e seus descendentes, Funchal, 1986, p.72. 167 69 11. O mosteiro de Santa Clara, reflexo de uma época Na primeira metade do séc. XIII, em que nasce a Ordem de Santa Clara, os mosteiros então existentes, como se referiu na primeira parte deste trabalho, eram diferentes dos de Santa Clara, particularmente no que respeita à pobreza e fraternidade. Clara de Assis, seguidora de Cristo em estilo novo, querendo evitar que a sua Ordem fosse atingida pelos mesmos males, ao redigir a sua Regra, definiu um conjunto de critérios de natureza carismática. Assim: - Para a admissão das candidatas, a abadessa devia pedir “o consentimento de todas as irmãs e a licença do Cardeal Protector da Ordem”168, e somente admitir as que se sentissem chamadas “por inspiração divina”169; - A abadessa em tudo devia observar “a vida comum, de maneira especial na igreja, no dormitório, no refeitório e na forma de vestir”170; - As irmãs não poderiam “receber algum domínio ou propriedade, ou alguma coisa que possa ser considerada como tal”171; - Ninguém poderia morar com as religiosas no mosteiro, “sem que antes tenha sido recebida segundo a forma da nossa profissão”172. E, para que os mosteiros da sua Ordem pudessem viver sem propriedades e respectivas rendas, prescreveu o trabalho como meio de subsistência: “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se (...) num trabalho honesto e de comum utilidade”173. Clara de Assis, com seu olhar de águia, via alto, via longe. Na Regra, deixava os antídotos contra males futuros que, infelizmente, vieram a atingir muitos mosteiros da sua Ordem, entre os quais o de Santa Clara e o de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, que tão marcados foram por ideologias e erros sociais da época. Ao longo dos séculos, reis e padroeiros e até mesmo a legislação eclesiástica, oscilando entre imperativos ideológicos e contextos sociais estruturados, foram dando aos mosteiros uma coloração diferente daquela que lhes fora imprimida pelos fundadores das respectivas Ordens, isto é, subtraindo-os ao carisma próprio. Não era fácil, no século XII e seguintes, compreender-se que um mosteiro pudesse viver a pobreza evangélica e pudesse abstrair de rendas e possessões para viver do próprio trabalho e do contributo dos fieis. Na Ordem de Santa Clara, logo após a morte da fundadora, surgiram divergências sobre a maneira de entender a pobreza. Talvez por isso, em 1263, dez anos apenas depois da morte da intrépida discípula de Francisco de Assis, já a Regra de Urbano IV traçava um rumo anticarismático para as Irmãs Clarissas, pois lhes permitia “receber, possuir e reter em comum rendas e possessões”174. O mosteiro de Santa Clara do Funchal assumiu esta Regra, como a maioria dos mosteiros do tempo. Na Idade Média e nos séculos seguintes, a mulher não podia decidir livremente o seu futuro. A Europa, vivendo encerrada em esquemas próprios, subordinava aos seus interesses de ordem social e política, o futuro das donzelas. Na Madeira sentiu-se fortemente esta problemática. Nem sempre às jovens nobres da Ilha assistiu o direito de decidirem por si próprias o seu futuro. Condicionalismos da época, sociais e mesmo políticos, determinaram tantas vezes a sua entrada na clausura!... Os costumes medievais e a prepotência de fidalgos, a 168 RCL, II, 1, in FF II, p. 45. RCL, II, 1, in FF II, p. 45. 170 RCL, IV, 13, in FF II, p. 50. 171 RCL, VI, 12, in FF II, p. 54. 172 RCL, II, 24, in FF II, p. 47. 173 RCL, VII, 1 e 2, in FF II, p. 54. 174 RU 4, XXI, 34, in FF II, p. 362. 169 70 conservação dos morgadios, concentrando nas mãos dos primogénitos o património familiar em detrimento dos filhos segundos, que normalmente não eram contemplados175, a necessidade de um devoto amparo e resguardo das filhas que não casavam, foram tantas vezes razões que levaram pais e irmãos a encerrarem no mosteiro de Santa Clara as suas jovens. Mesmo quando não podiam professar, ficavam como “freiras particulares” ou simplesmente como “senhoras recolhidas,” com suas criadas e até escravas e escravos. D. Constança de Noronha, filha do capitão fundador, é a primeira recolhida “não freira”. Ali a meteu seu pai, João Gonçalves da Câmara, onde ficou toda a vida, se bem que santamente, “não querendo ser freira professa porque sempre era enferma”176. Também Maria Fernandes, filha de Gonçalo Fernandes da Serra de Água e de Isabel Fernandes, entrou para o mosteiro em 1543, onde, embora não professasse por ser doente psíquica, “foi recebida com licença do Santo Padre”177. Os casos multiplicaram-se. Outras entravam ainda meninas, sem qualquer sintoma de vocação. Em 1807, Paulo Malheiro de Mello, grande negociante da Ilha, viúvo há dez anos, pôs as suas filhas de dez e onze anos no mosteiro para ali se “criarem para freiras”178. E, ao longo de cinco séculos, estes casos aconteceram muitas vezes. É evidente que não foi só o fervor religioso que levou as candidatas ao mosteiro, mas o imperativo social, tantas vezes injusto e cruel. Que admira, pois, que, como diz o Elucidário Madeirense, “o primitivo fervor na observância das regras conventuais e antiga austeridade da vida das freiras deste mosteiro, fosse pouco a pouco resfriando”179? Não temos que admirarnos de que algumas delas, lesadas nos seus direitos familiares e postas no mosteiro sem vocação, ali passassem a juventude e a vida “no meio de desesperos, anseios e lágrimas”180. Nem sequer que procurassem compensações na construção de capelas da sua devoção, onde punham requintes de luxo; que se cercassem de criadas e procurassem no bem-estar e nas amizades frívolas a felicidade que o trato com Deus, que não tinham ou era nelas superficial, lhes não dava. Diante da complexidade do ambiente interno e os reflexos sociais que no mosteiro se sentiam fortemente, não era fácil a santidade. Porém, podemos afirmar que, mesmo num condicionalismo nada favorável, o perfume da virtude se fez sentir, santidade tanto mais apreciável, quanto, para a viver, era necessário esforço e fidelidade aos mais íntimos apelos de Deus. Ao lado de pessoas leigas e de vidas pouco fervorosas, porque sem vocação, muitas almas verdadeiramente santas cresceram no mosteiro de Santa Clara, glorificando o Senhor e espalhando em seu redor a beleza da virtude e da santidade!.. 175 Normalmente os filhos segundos, em virtude da intensificação dos morgadios, ou caíam no abandono ou tomavam a iniciativa de emigrar para a Índia ou o Brasil, procurando fora da Ilha o seu futuro. Foram os morgadios, vínculo indivisível e inalienável, que se transmitiam de primogénito a primogénito, mas em linha recta varonil, os responsáveis por essa emigração, de certo modo forçada. A eles se deve também a entrada de muitas jovens no mosteiro de Santa Clara, sem vocação. 176 Elucidário Madeirense, I, p. 310. 177 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa. 27, doc. avulso. 178 AHU, Madeira doc. 1783. 179 Elucidário Madeirense, I, p. 310. 180 Ilhas de Zargo, II, p. 717. 71 CAPÍTULO II VIDA INTERNA - COMUNIDADE E GOVERNO, 1. A comunidade 1.1. As candidatas No século XV, época em que o mosteiro de Santa Clara nasceu, ao lado de candidatas à vida religiosa sem vocação, feitas freiras por imperativos dos familiares, muitas foram as jovens e senhoras que, desejando consagrar-se a Deus, deixaram as pompas do mundo, a que estavam vinculadas, para se entregarem no mosteiro à prática das virtudes cristãs, à oração, à vivência dos mistérios de Cristo. Por uma e por outra razão, o mosteiro de Santa Clara do Funchal era procurado pela nobreza mais distinta da Ilha, mostrando-se geralmente pouco disponível à recepção de candidatas de famílias economicamente débeis. Antes da entrada de qualquer candidata, os familiares deviam não só assegurar o dote estipulado, como também munir-se de um breve pontifício que habitualmente precisava do beneplácito régio e sempre do consentimento do Ministro Provincial dos Frades Menores. Esta atribuição, após a criação da Custódia de São Tiago Menor na Ilha da Madeira, em 5 de Julho de 1683, passou para o respectivo Custódio Provincial181. A idade mínima da entrada em Santa Clara, e isto como educandas e mediante breves pontifícios, era de sete anos. Gaspar Berenguer de Andrade que, com sua mulher D. Isabel de França, foram os fundadores do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês em 1667, fez em 21 de Junho de 1648, com Frei António da Porciúncula, um contrato de entrada da sua filha D. Margarida de Andrade, no mosteiro de Santa Clara, “dizendo que era maior de sete anos e menor de catorze para entrar no dito convento educationis causa, para nele se criarem nos usos e costumes”182. D. Margarida veio a professar com o nome de Maria de São. Filipe. Porém, casos houve em que entravam com menos. Em 1825, Gregório Francisco Perestrelo obteve de Sua Majestade, D. João VI, licença para uma sua filha de cinco anos entrar em Santa Clara como educanda, ficando sob a direcção de uma sua irmã que ali era religiosa183. De certo modo, na Ilha da Madeira, não havia nobre, que se prezasse do seu brasão e pergaminhos, que não mandasse, pelo menos uma das suas filhas, a professar no aristocrático mosteiro de Santa Clara. 1.2. A profissão religiosa O noviciado durava um ano, findo o qual, se a candidata fosse admitida, fazia a sua profissão. A cerimónia tinha lugar no coro baixo, junto à grade, na presença do bispo ou de um seu delegado, do escrivão da Câmara Eclesiástica e de duas testemunhas, normalmente o capelão e o confessor, dos familiares e amigos. A neoprofessa prometia então viver sob a Regra de Urbano IV durante toda a vida, em obediência, sem próprio, em castidade e em 181 Fr Carlos Maria Perusini, Chronologiae Historico-Legalis Seraphici Ordinis, III (1633-1718), Roma, 1752, fol. 230-231. Fr. Domingos de Gubernatis a Sospitello, Orbis Seraphicus-Historia de tribus Ordinibus a Seraphico Patriarcha S. Francisco institutis, deque eorum progressibus,& honoribus per quatuor mundi partes, IV, Roma, 1685, De nova Custodia Insule & lignorum, sive de Madeira, fol. 310-314. A Custódia Franciscana da Madeira foi criada a 5 de Julho de 1683, por patente do Geral da Ordem, Frei Pedro Marino Sormano, e confirmada pela bula Nuper pro parte do Papa Inocêncio X, de 30 de Julho do mesmo ano. Ficando os conventos franciscanos da Madeira desligados da Província de Portugal, eram os custódios de São Tiago Menor que assistiam às eleições das abadessas do mosteiro de Santa Clara. 182 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 9, fol, 416v. 183 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso. 72 clausura perpétua184. Usaria o burel cinzento de Santa Clara, véu preto e à cintura um cordão branco, símbolo franciscano. O hábito devia estar de acordo com o espírito religioso, tanto na cor como no preço, segundo o costume das regiões. Devia levar vida de oração, rezar o ofício divino, viver recolhida185 - daí a necessidade do silêncio e da clausura -, empenhar-se na vida da comunidade, crescer na prática de todas as virtudes humano-cristãs e viver em profunda união com Cristo e a humanidade necessitada de auxílio espiritual. Antes da profissão da candidata devia ser-lhe assegurado um dote que, além de um certo quantitativo em dinheiro, que foi aumentando ao longo dos tempos, correspondia à transferência de propriedades para o mosteiro, garantia da sua existência material. Inicialmente o dote de cada candidata a religiosa professa era de 200.000 réis, mas em 1703 passou para 600.000. Frei António do Sacramento, Custódio da Madeira, em patente de 13 de Novembro daquele ano, justificava esta decisão pelo “limitado rendimento que o dito mosteiro tinha para gastos de tantas religiosas que nele serviam e pelo grande número de pessoas que, além delas, havia no mosteiro” 186. Posteriormente, porque a dificuldades económicas se agravaram, o dote passou para 800.000 réis, além de outras despesas, atingindo aproximadamente um conto de réis, não sendo fácil às pessoas pouco abonadas em meios de fortuna fazer parte desta comunidade religiosa187. A Regra de Urbano IV, simultaneamente ampla e minuciosa, permitia a posse de bens de raiz. O património conventual, sempre em crescimento, mas sofrendo as variações da vida económica e do contexto social, tão oscilante desde o séc. XV até ao séc. XIX, não deixava espaço à pobreza evangélica pela qual optara Santa Clara de Assis. A comunidade do mosteiro tornou-se uma elite constituída a partir da mais fina nobreza insular. Entre 1602 e 1677, por exemplo, professaram cento e setenta e três freiras, em grande parte filhas de pais da melhor nobreza: dos Bettencourt, Ornelas, Berenguer, Machado de Miranda, Atouguias, Carvalho e Esmeraldo, Valdavessos, do governador e capitão do Presídio, António Moura, e de outros fidalgos da Ilha188. De 1742 a 1800 professaram oitenta e uma noviças e entre 1800 e 1831 as profissões chegaram a cinquenta e cinco. A última noviça foi Genoveva Carlota do Monte que professou a 22 de Novembro de 1831189. Em suma, até meados do séc. XVIII, o número de religiosas professas atingiu a sua expressão máxima, começando, contudo, a decrescer gradualmente a partir de 1770. 2. O governo do mosteiro 2. 1. Eleições - corresponsabilidade fraterna A comunidade era governada por uma abadessa assistida por um grupo de conselheiras ou discretas190. De acordo com os Estatutos, a abadessa era eleita por três anos, não podendo ser reeleita para um triénio consecutivo. Porque o mosteiro de Santa Clara, em função da bula Ex injuncto nobis do papa Alexandre VI, dependia juridicamente da Ordem dos Frades Menores, era habitualmente o Ministro Provincial ou um seu delegado que presidia ao acto eleitoral. A 184 RU 4, III, 9, in FF II, pp. 348 - 349. RU 4, IV, 10, in FF II, pp. 349 - 351. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 18, fol. 103. 187 Elucidário Madeirense, I, p. 310; Rui Carita, op. cit., I, p. 308. 188 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, maço 6, doc. 23. 189 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 28, Livros de Autos e Perguntas, feito no segundo triénio da madre abadessa D. Coleta Rosa de Santo Agostinho, sendo escrivã Margarida Jacinta de Santa Rosa, ano de 1742. 190 RU 4, XXII, 35 e 39, in FF II, pp. 362, 364, respectivamente. 185 186 73 partir de 1683, com o estabelecimento da Custódia de SãoTiago Menor na Ilha da Madeira, o mosteiro ficou sujeito a ela. Foi, pois, o seu Custódio que passou a orientar e a presidir aos capítulos electivos191. A abadessa era auxiliada no exercício das suas funções pelo corpo das discretas ou conselheiras, o discretório; o número de membros que o formavam dependia da totalidade das religiosas que constituíam a comunidade, tendo oscilado normalmente entre três e oito. Eram removíveis de três em três anos. Sob a presidência da nova abadessa procedia-se à eleição dos diversos cargos ou ofícios: vigária da casa, escrivã, porteiras, assistentes do médico, vigária do coro, mestra de noviças, sacristã, enfermeira, rodeiras e outros. Estas eleições eram depois apresentadas à confirmação do Custódio Provincial. Um dos mais importantes deveres da abadessa era a convocação semanal do capítulo conventual, constituído pelas religiosas professas, onde fraternalmente deviam ser tratados os assuntos relativos à vida da comunidade192. Trata-se, pois, dum governo em corresponsabilidade fraterna que não só admitia a consulta às Irmãs mas até associava ao governo da abadessa um certo número de conselheiras. A abadessa devia, de três em três meses, dar conta dos gastos e receitas ao capítulo conventual. A última eleição efectuou-se a 28 de Março de 1883, havendo apenas quatro religiosas no mosteiro em condições de votar. Foi eleita pela segunda vez sucessiva, contra o habitual, a Madre Maria Amália do Patrocínio que morreu a 15 de Novembro de 1890193, tomando então as autoridades posse do edifício. 2.2. A administração do mosteiro Segundo a Regra de Urbano IV, para proceder à administração do mosteiro haveria um procurador ou síndico, que devia dar contas de todas as receitas à abadessa e mais três Irmãs nomeadas para o efeito pela comunidade e ao visitador sempre que este o desejasse194. O procurador, nomeado ou substituído pela abadessa, devia ser prudente e fiel. Não podia vender, trocar, hipotecar ou alienar qualquer bem do mosteiro, sem prévio consentimento da abadessa e da comunidade.195 No mosteiro de Santa Clara os primeiros procuradores foram sempre recrutados de entre a nobreza. Contudo, diante de dificuldades e problemas, que tantas vezes o prejudicaram, dado que nem sempre procediam com honestidade, as religiosas fizeram opção por um membro da Primeira Ordem Franciscana, de quem esperavam uma colaboração conscienciosa e fraterna. Em 1526, a Madre Isabel de Jesus de Noronha, filha do fundador e primeira abadessa do mosteiro, cargo que ocupou por vários triénios, embora não consecutivos, chamou a si e a suas sucessoras, a administração do mosteiro. No início de cada triénio, a nova abadessa recebia do Custódio dos Frades Menores um livro em cuja primeira folha estava escrito: “Livro de lançamento dos Rendimentos dos foros, juros, aluguéis de casas, propriedades, pão, vinho e mais miudezas que pertencem a este real mosteiro de Santa Clara da Ilha da Madeira, toda a despesa feita com as religiosas e mais pensões da comunidade nos três anos em que serviu a abadessa (... ) eleita a (...), sendo escrivã do convento (...)”196. 191 ANTT, Conv. S. Clara F., Livro de Eleições das Abadessas e mais oficiais deste Mosteiro de Santa Clara (...), ano de 1733 e ss; Fernando da Soledade, op cit., III, p. 351; Apolinário da Conceição, op.cit., p. 146. 192 RU 4, in XXII, 37, FF II, p. 363. 193 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. 194 RU 4, XXI, 34, in FF II, p. 362. 195 RU 4, XXI, 34, in FF II, p. 362. 196 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S .Clara F., L 66, fol. 5. 74 Naquele livro lançava a escrivã todos os rendimentos e despesas de que a abadessa devia dar conhecimento à comunidade em reunião capitular, de três em três meses, como acima ficou dito. No fim do triénio, o livro, depois de assinado pela abadessa, vigária, conselheiras e escrivã, era enviado ao Custódio Provincial para aprovação. Entremos em alguns casos: No livro 37, correspondente ao triénio da Madre Francisca de São Diogo, que principiou em 19 de Janeiro de 1724, averbou-se logo na primeira folha o valor das propinas dadas pela Madre, no dia da eleição, às cento e sessenta e quatro religiosas que constituíam a comunidade. Nas folhas 110-111, pode ler-se a aprovação do Custódio Provincial com um louvor à escrivã e à abadessa: “Vi e revi estas contas de Receitas e Despesas do mosteiro de Santa Clara (...) sendo abadessa a R. M. Francisca de São Diogo e escrivã a Madre Antónia Rosa de Viterbo e nelas não encontrei erro algum, antes achei nelas muita clareza, boa disposição e as verbas muito ajustadas e portanto as aprovo”197. No final do triénio da Madre Rosa Maria do Céu, que decorreu de 19 de Janeiro de 1727 a Janeiro de 1730, o livro de contas foi enviado ao P. Manuel de São Dâmaso, comissário visitador, o qual, depois de examinadas as contas ali lançadas pela escrivã, a Madre Joana Teresa da Glória, antes da sua assinatura, deixou algumas observações referentes à pouco clareza quanto ao consumo, produção e venda de algumas pipas de vinho198. A assinatura é de 12 de Setembro de 1732, cerca de ano e meio mais tarde. Teria obedecido este atraso a razões que não conseguimos detectar. O livro 66 para o governo da Madre D. Inácia Maria da Conceição, eleita a 14 de Setembro de 1808, sendo escrivã do mosteiro a Madre Carlota Matilde da Conceição199, apresenta no final do triénio a receita de 36.329.315 réis e a despesa de 28.480.470 réis. “Como” diz a escrivã, “a receita é maior do que a despesa em 7.848.845 réis,” puderam gastar-se em vestuário das religiosas 5.664.810 réis, ficando como “sobras líquidas” 2.184.035 réis200. A 18 de Abril de 1812 assinaram o livro a abadessa, sete discretas e a escrivã201 e, a 15 de Maio do mesmo ano, as contas receberam a aprovação de Frei Januário das Chagas, Custódio Provincial. Em 1829, um novo livro recebeu o mosteiro para o triénio da Madre D. Ana Ifigénia da Santa Rita, que começou a 29 de Janeiro desse ano. A escrivã Bibiana Narcisa do Lado, no final daquele triénio, 1829-1832, apontou como receita 9.497.695 réis e como despesa 8.854.879 réis, ficando o saldo de 620.816 réis, que gastaram em calçado para as cinquenta ta e uma religiosas, em pagamentos de dívidas e provimentos202. Só em 29 de Junho de 1833, ano e meio mais tarde, foram aprovadas por Frei Joaquim do Cenáculo, Custódio Provincial203. O mosteiro desde há muito entrara em crise económica, verificando-se saldos negativos muito significativos na década de 70 do século XVIII. Retomaremos este assunto no capítulo VII, onde trataremos da decadência. 3. Alguns dados estatísticos sobre a evolução da comunidade O número de religiosas professas em qualquer mosteiro não era arbitrário; impunha-se o necessário equilíbrio entre os recursos do mosteiro e o número de pessoas que lá habitavam. 197 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 37, fol. 1 - 2 e 110 - 111. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 38, fol. 58 e 58 v. 199 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 66, fol. 5. 200 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 66, fol. 45 e 46. 201 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 66, fol. 46. 202 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 68, fol. 52. 203 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 68, fol. 52. 198 75 Era preciso um controlo perfeito. A comunidade era constituída por religiosas professas e noviças, como candidatas à vida religiosa. Havia ainda as pupilas, meninas que no mosteiro “se criavam para freiras”, religiosas particulares, que não professavam, e as irmãs servidoras ou irmãs leigas, ligadas ao mosteiro por um compromisso religioso e ainda as educandas, por ordem régia. As irmãs servidoras, além dos trabalhos que desempenhavam na comunidade, faziam também o serviço de fora sempre que lhes era solicitado pela abadessa. Para o mosteiro de Santa Clara do Funchal, o número de religiosas professas “consignado pela Província Franciscana não excedia o de 60”, tendo, no entanto, “capacidade para cento e doze”204. Em 1720, o visitador franciscano da Custódia de São Tiago Menor, da Ilha da Madeira, por patente de 30 de Junho daquele ano, em cumprimento do que decidira o Ministro Geral com o seu Definitório, determinou que o número inicialmente estabelecido passasse para cem, podendo ainda haver extranumerárias205. Poucos anos após a fundação do mosteiro, já o número de religiosas professas e “meninas educandas que ali se criavam para freiras” era considerável. Em 1590 ou talvez mais cedo, estava atingido o númerus clausus com que o mosteiro havia sido fundado – sessenta religiosas de véu preto, quer dizer, professas. A partir dessa data foram sempre em aumento. A comunidade até meados do século XVIII não parou de crescer. Neste século atingiu o seu máximo com cento e setenta religiosas em 1722, fenómeno que, em geral, era comum a todos os mosteiros do reino nessa mesma data. Em 1764, foram proibidas as admissões ao noviciado. Com esta medida, o Marquês de Pombal pretendia o desaparecimento dos mosteiros e conventos por morte lenta. Como consequência, a partir desta data, mais exactamente a partir de 1770, o número de religiosas começou a descer gradualme e assistiu-se ao envelhecimento da comunidade Em 1781, a Madre Ana Quitéria de São João, abadessa do mosteiro de Santa Clara, dirigiu-se à rainha D. Maria I, dizendo: “há dezoito para dezanove anos se não têm admitido religiosas no convento e, no decurso deste tempo, tem falecido grande parte (...) e as que existem são de idade tão avultada que a religião padece grande detrimento por não haver quem supra as obrigações da comunidade e ofícios divinos”206. Para análise correcta da situação, foi enviada uma lista nominal das religiosas que então viviam no mosteiro: sessenta e três professas numerárias207 e vinte e nove extranumerárias208, das quais trinta e cinco tinham mais de sessenta anos. As mais novas, Ana Inácia de Santo Agostinho e Inácia Maria da Conceição tinham trinta e quatro anos e as mais velhas, Mariana do Sacramento e Francisca do Amor Divino, oitenta e nove209. Sendo poucas para o serviço do coro e demais necessidades da comunidade, solicitava a abadessa a entrada de oito candidatas, com as quais ficaria atingido o número autorizado210. Em 1793 encontravam-se no mosteiro apenas sessenta e três religiosas. Na opinião da abadessa, havia rendas que bastavam para o sustento de oitenta, o que a levou a pedir ao príncipe regente D. João, autorização para que entrassem dezassete noviças com os seus respectivos dotes. O pedido foi satisfeito em 1795; contudo, ou porque não tenham entrado as 204 Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 351. AHU, Madeira, doc. 620; doc. 623: Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou Frei José da Conceição, do convento de Alferrara, da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720. 206 AHU, Madeira, doc. 622: Requerimento da abadessa e mais religiosas do mosteiro de Santa Clara do Funchal, pedindo licença para receber noviças. 207 AHU, Madeira, doc. 624. 208 AHU, Madeira, doc. 625. 209 AHU, Madeira, docs. 624 e 625. 210 AHU, Madeira, doc. 620: Carta de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão de 21 de Julho de 1781; doc. 622: Petição da abadessa e mais religiosas do mosteiro de Santa Clara do Funchal, solicitando licença para receber noviças; doc. 623: Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou Frei José da Conceição, do Convento de Alferrara da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720. 205 76 dezassete ou tenham morrido algumas religiosas, a 26 de Março de 1796, estavam somente setenta e duas, incluídas as noviças. Quadro nº.11 - Alguns dados estatísticos Número de Religiosas Ano 1590 1665 1668 1722 1724 1750 1764 1781 1793 1796 1820 1823 1829 1832 1840 Total Numerárias Extranumerárias 96 63 57 29 60 113 116 170 164 165 153 92 63 72 68 60 61 51 52 Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. .S. Clara, caixa 2072, doc. avulso e Conventos e Mosteiros, L 29, não paginado, L 37, fol.1, L 68, fol. 56; AHU, Madeira, docs. 261 e 624; AHDF, S. Clara F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso; Noronha, op.cit, p. 264. Ao longo do século XX, o número de religiosas foi diminuindo gradualmente atá 1890, ano em qe faleceu a última religiosa professa, a Madre Maria Amália do Patrocínio, como atrás ficou dito. 77 CAPÍTULO III VIDA INTERNA – SPIRITUALIDADE E CULTURA 1. Espiritualidade 1.1. Oração comunitária e vida litúrgica As religiosas de Santa Clara, professas e noviças, deviam rezar o ofício divino - oração da Igreja por excelência - com seriedade e modéstia, solenizando com o canto as horas canónicas principais - Laudes, Vésperas e Matinas -, as quais tinham lugar de manhã, à tardinha e à meia-noite, respectivamente. O ofício divino compreendia ainda a hora de Prima, rezada pelas seis horas da manhã, Tércia às nove, Sexta ao meio-dia e Noa às quinze horas. Para a celebração da missa e ofício divino a comunidade tinha um capelão privativo, coadjuvado por um sacristão, vivendo em casa anexa. Quando havia doentes que não podiam sair da enfermaria, o capelão entrava, sempre que para isso fosse solicitado pela abadessa, para administrar os sacramentos, podendo mesmo celebrar junto das doentes, para o que estava a enfermaria apetrechada com altar próprio211. Com a oração litúrgica - missa e ofício divino - conjugavam as religiosas, em função da espiritualidade eucarística, tão característica da Ordem de Santa Clara, a adoração ao Santíssimo Sacramento, tendo para o efeito custódias riquíssimas, uma das quais estava cravejada de pedras preciosas, bem como a respectiva lúnula212. A exposição tinha lugar sobre o sacrário ou no camarim. À oração comunitária, com horário próprio, juntavam-se as devoções particulares. As religiosas procuravam cultivar as tradições da Ordem. Daí o amor à Eucaristia, à Paixão de Cristo e à Santíssima Virgem, que gostavam de invocar sob o título de Imaculada Conceição. Empenhavam-se em manter as devoções caracteristicamente franciscanas como era a via-sacra e a coroa das sete alegrias de Nossa Senhora. Nas grandes celebrações religiosas, como era o Natal, dia de Reis, Páscoa, festa de Santa Clara e de São Francisco e em todas as festividades marianas, as liturgias revestiam-se de beleza espiritual. Os cânticos, a decoração da igreja, as vestes litúrgicas e a grande afluência de população davam às celebrações brilho e ar festivo. Por vezes, ao capelão e confessor habitual, juntavam-se, a pedido das religiosas, outros sacerdotes, como acontecia no Natal, na Semana Santa e dia de Páscoa, para que a vivência litúrgica fosse profunda. Havia preocupação de rezar pelas defuntas e cumprir as capelas e outros encargos de ordem espiritual, de que eram devedoras por legados pios dos benfeitores. Usufruindo dos benefícios materiais por eles deixados, não deviam descurar os sufrágios a que os mesmos tinham direito. Para orientação espiritual das religiosas, havia o confessor, de nomeação episcopal, que atendia igualmente a restante população do mosteiro e a quem lho solicitasse. Pela Páscoa assumia a responsabilidade da desobriga, desde as religiosas aos servos e disso notificava o prelado diocesano. 1.2.Viveiro de santidade 211 212 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha I, doc. avulso; RU 4, VII, 15, in FF II, pp. 351- 352. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 31; AHDF, Conv .de S. Clara F., caixa 27, capilha 1, doc. avulso. 78 Soledade, referindo-se às fundadoras saídas de Beja, diz que “eram mulheres de opinião venerável, muito pobres, zelosas do bem comum, devotas, penitentes e por extremo observantes da sua Regra”. Mais diz que “as observâncias religiosas e os estilos monásticos ficaram tão radicados (…) os jejuns, a devoção e fervor de espírito e todas as mais virtudes, estavam neste santo domicílio tão vigorosas que, penetrando as paredes da clausura, corriam pela cidade com títulos de assombro”213. Segundo o cronista, o mosteiro de Santa Clara era uma casa que “por sua virtude, seria digna dum discurso muito extenso”214 e isto, pelo rigor e perfeição introduzidos pelas fundadoras. Das filhas de Simão Gonçalves da Câmara, D. Beatriz, D. Isabel e D. Maria de Noronha, que seu pai meteu no mosteiro de Santa Clara com boas rendas, diz o Elucidário Madeirense:“ Ali viveram sempre mui virtuosa e santamente”215. E a respeito de D. Constança, filha de João Gonçalves da Câmara, se afirma, como atrás ficou dito, que “sempre viveu santamente, não querendo ser professa, porque sempre era enferma”216. António Cordeiro, autor da História Insulana, referindo-se ao mosteiro em 1500, testemunha: “(...) Há nesta Cidade um Convento de freiras de Santa Clara de grandes rendas e maiores virtudes e de sessenta freiras de véu preto; fica numa rocha muito forte e com boa vista para o mar, mas não para terra, por causa dos altos muros e com pequena cerca”217. Na História Seráfica, salienta-se não só a santidade das fundadoras mas também de outras religiosas “que tão admiravelmente trocaram as pompas do mundo pelos abatimentos e mortificações da Religião”. Ali “floresceram muitas Madres cuja virtude famosa tem grandes aplausos na lembrança”218. Entre elas podemos mencionar a Madre Bernardina do Espírito Santo, abadessa desde 1626-1629, que cultivou uma grande devoção ao Santíssimo Sacramento, a Madre Isabel de Valdavessos, que professou em 1632, dotada de grande espírito de oração e de sacrifício. Também a Madre Clara da Encarnação, professa desde 1635, foi uma religiosa santa, de grande humildade, espírito de pobreza e muito amiga dos pobres com os quais “não só gastou o que tinha, mas constituindo-se sua procuradora, andava sempre pedindo para eles”219. Na mesma época viveu a Madre Aurélia de Santa Clara que, diz Noronha, “foi também uma religiosa de raras penitências, de extrema pobreza e de perpétua oração”. Quando estava moribunda pediu às religiosas que a assistiam, que se erguessem, “porque estava a visitá-la a sua Madre Santa Clara”220. Alma profundamente contemplativa foi a Madre Isabel Baptista. Sendo muito doente, encontrava na oração grande alívio para as suas dores. Faleceu em 1652 e, “na hora em que expirou, se ouviram suaves cânticos”221. Outra alma boa foi a Madre Clara das Chagas que era cheia de ternura pelo Menino de Belém. Muito sensível ao mistério da Encarnação, introduziu no mosteiro a festa do Menino-Perdido, que adiante referiremos. Enquanto o procuravam, ela ficava em oração e penitência no seu mosteiro; quando era achado, radiante e feliz, “com toda a comunidade em procissão pelos corredores do convento, em altas músicas, o levava à abadessa”222. Também a Madre Ana do Sepulcro, observantíssima da sua Regra, penitente e alma de oração, mestra de noviças e das pupilas, foi religiosa exemplar. Tinha grande devoção 213 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 353. Fernando da Soledade, op .cit., III, p. 353 Elucidário Madeirense, I, p. 310. 216 Elucidário Madeirense, I, p. 310. 217 António Cordeiro, História Insulana das Ilhas a Portugal sujeitas no Oceano Ocidental, Lisboa, ano de 1981, (reimpressão de 1717), p. 76. 218 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 353. 219 Noronha, op. cit., p. 266. 220 Noronha, op. ci.t, p. 267. 221 Noronha, op. cit., p. 267. 222 Noronha, op. cit., p. 267. 214 215 79 a Nossa Senhora e punha todo o seu esmero na decoração da capela de Nossa Senhora do Rosário, que estava a seu cargo. Faleceu em 1690223. Estas religiosas movidas por uma fé profunda e por um grande amor a Cristo, procuravam viver em grande união com Ele. Respondendo ao apelo missionário de Cristo e da Igreja, esforçavam-se por ajudar, com a sua oração e total doação ao Senhor, a humanidade sofredora. Sabiam dar-se a Deus com amor gratuito e generoso. Já nos fins do século XVII, as Madres Isabel da Natividade e Leonor da Encarnação, almas profundamente silenciosas, foram também religiosas de grande austeridade de vida. Igualmente a noviça Maria do Horto, morta em 1662, atingiu em pouco tempo grande perfeição: era alegre, humilde, mortificada e alma de oração. Na Quaresma passava muitos dias a pão e água em espírito de penitência. Em 1722, faleceu, com noventa anos de idade, a Madre Inácia do Espírito Santo, que havia entrado como educanda e que, por sua livre vontade, quis ser religiosa professa. Ainda muito pequena perdera o ouvido e, já com bastante idade, perdeu também a vista. Alma de muita oração, gostava de ocultar-se no silêncio e na paz. Tinha o dom da profecia e a faculdade de ler no íntimo das pessoas. O seu amor ao Menino-Deus era notório e muitas a ouviam falar com Ele. Enquanto teve vista, era ela que, por devoção e com muito amor, fazia o presépio no Natal. Porque esteve muitos anos entrevada, o seu corpo encheu-se de chagas, o que lhe ocasionava grandes sofrimentos, que sempre aceitou sem se queixar. Ouviam-na muitas vezes falar com Santa Clara que amorosamente a vinha confortar e encorajar224. Noronha fala-nos também duma serva, Maria de São Bernardo, natural de Machico, filha de pais humildes, mas muito honrados, que exerceu no mosteiro o ofício de enfermeira com tanta caridade e delicadeza que a todas edificava. Atingida por uma doença contagiosa teve, por ordem médica, de viver isolada bastantes anos, o que, sendo para ela um grande sacrifício, aceitou com humildade e espírito cristão. Na oração e na contemplação de Deus, encontrou a força de que precisava para sofrer com amor. Faleceu na véspera da festa de Santa Marta, de quem era muito devota,225 a 28 de Julho de 1722. No mosteiro de Santa Clara santificaram-se muitas religiosas, senhoras leigas e até servas que, movidas de amor pelo Senhor, souberam entregar-se à prática de todas as virtudes, chegando a alcançar grande união com Deus. O odor das virtudes ali praticadas fazia-se sentir e, especialmente nos primeiros séculos, foi causa de atracção de novas vocações. Num mosteiro onde um grande número de religiosas entraram e permaneceram, não por se sentirem vocacionadas, mas por imperativos familiares e sociais, a presença de religiosas que viviam felizes e totalmente entregues ao Senhor era muito positiva e construtiva. 1.3. Celebrações natalícias O Menino-Perdido e Achado O Natal de Jesus Cristo foi para a população madeirense, desde os primórdios do povoamento, a festa por excelência. A festa que se celebrava com felicidade interior, contentamento religioso e místico, com entusiasmo e regozijo. Como ainda hoje acontece, esta solenidade era precedida de uma novena de Missas do Parto, celebradas antes do amanhecer e abrilhantadas com loas ao Menino Deus. Todos se 223 Noronha, op. cit., pp. 267 - 268. Noronha, op. cit., pp. 268 - 269. 225 Noronha, op. cit., pp. 269 - 271. 224 80 iam encaminhando para a igreja paroquial ou dos conventos e mosteiros, ainda antes do romper da aurora, com alegria e ao som de toques e descantes. O rajão, a gaita e outros instrumentos de uso regional cadenciavam o passo dos ranchos. Costumes ancestrais de particular beleza que nos mosteiros de Clarissas do Funchal encontravam eco vibrante. A embelezar espiritualmente os lares e casas religiosas, estava a lapinha que sempre se armava antes da Missa do Galo e da hora da consoada. A lapinha, diminutivo de lapa, numa clara alusão à gruta ou lapa de Belém, onde era figurado o nascimento de Jesus, sempre teve lugar privilegiado no seio das famílias cristãs madeirenses, graças à influência franciscana. As Irmãs Clarissas do mosteiro de Santa Clara acompanhavam e viviam toda a tradição natalícia da sua terra e primavam na vivência do mistério da Encarnação do Senhor. Era grande entre elas o amor ao Menino de Belém, sensibilidade herdada de São Francisco e de Santa Clara. Algumas tradições, dando beleza original às festas natalícias, tiveram origem nos mosteiros. De entre as mais belas e amorosas destas tradições natalícias da Ilha da Madeira, ressalta a do Menino-Perdido, nascida no mosteiro de Santa Clara, que se foi perpetuando através dos tempos. Segundo reza a história, no mosteiro havia um Menino, obra-prima de escultura em madeira, muito prendado de jóias que lhe desciam do pescoço até às fivelinhas das sandálias, recamado de ouro, fios de pérolas e abotoaduras ricas, oferenda de fidalgos e morgados que lhe recomendavam as filhas que haviam confiado à clausura. Passada a festa dos Reis Magos, saía o Menino-Perdido, secretamente do mosteiro, a esconder-se numa casa fidalga do Funchal, pondo em reboliço metade da população. A abadessa, única depositária do segredo, guardava sigilo do esconderijo; as demais religiosas convidavam as pessoas das suas relações e amizade a descobrir o paradeiro do encantador Infante, compensando o trabalho com um generoso presente a quem o retivesse sob a sua guarda - era a Achada do Menino226. Um ano foi o Menino ter à Fortaleza de São Tiago. Viu-se tão honrado com esta visita o comandante da praça que não se conteve dentro dos limites da costumada discrição; mandou que saudassem o Menino Deus com cento e um tiros de artilharia da defesa da cidade. Como se temiam os assaltos dos corsários e piratas, alarmou-se toda a população, acorrendo a tomar os postos as milícias e a demais gente fugiu espavorida. O comandante respondeu em conselho de guerra, mas foi absolvido como bom cristão, sendo apenas condenado a pagar a despesa da pólvora queimada ao Estado227. Foi a Madre Clara das Chagas que, no século XVII, concebeu e introduziu esta festa natalícia no mosteiro. Era grande a sua sensibilidade diante dos mistérios de Cristo, particularmente os mistérios da Encarnação e da Paixão; levada pelo seu grande amor ao Menino de Belém, envolveu a população do mosteiro e da cidade do Funchal, naquela espiritual diversão. Ela, enquanto todos se empenhavam a encontrar o Menino, permanecia em oração e penitência. Passados três dias era a Madre Clara, como atrás se referiu, que, com a comunidade em procissão, o levava entre cânticos, à abadessa. E, para que esta festa tivesse continuidade para além da sua morte, deixou uma renda para o efeito, como obséquio ao Menino Deus228. Ainda dentro das festividades do Natal, dava-se particular realce ao ano novo. No dia 31 de Dezembro cantava-se o Te Deum que, no mosteiro de Santa Clara, graças ao valor do órgão e aos dons musicais das religiosas, ganhava solenidade. Aquele Te Deum de acção de graças pelos benefícios recebidos ao longo do ano que então findava, era liturgia que tinha lugar em todas as paróquias. 226 Ilhas de Zargo, II, p. 513. Ilhas de Zargo, II, pp. 514 - 515. 228 Noronha, op. cit., p. 267; Ilhas de Zargo, II, pp. 513 - 515. 227 81 O mosteiro, para além do seu horário de oração e cerimónias religiosas próprias, vibrava de entusiasmo e alegria espiritual nas festas mais significativas e particularmente na quadra natalícia. Presépios artísticos No século XVIII, generalizaram-se os presépios de barro, verdadeiramente belos e artísticos, muitos dos quais eram feitos nos conventos e mosteiros ou sob a sua influência. Estavam encerrados dentro de nichos, sendo alguns desdobráveis em belos trípticos. Em Santa Clara havia alguns destes presépios. Ao lado dos presépios de barro, outros surgiam de matérias-primas diferentes, devendo salientar-se um de âmago de figueira, de princípios do século XIX, verdadeiramente curioso e artístico. Segundo é tradição, este presépio foi feito por um frade do convento de São Francisco do Funchal e oferecido ao mosteiro de Santa Clara, onde se conservou com devoção e amor. É verdadeiramente admirável pelas “figuras miniaturas de pássaros, pastores e outras, documentário fiel da indumentária da época usada pelas diversas classes sociais. Também é exótico pelas espécimes de flora que apresenta”229. As religiosas de Santa Clara não só cultivavam grande devoção ao Menino Deus, mas empenhavam-se em difundi-la entre a população que contactavam. Francisco Ferreira, antigo colono do Monte, e caseiro da confiança das religiosas, talhou em madeira e cortiça um avantajado presépio, a lapinha do caseiro, verdadeira obra-prima de arte popular. Artista nato, dedicou a vida inteira à escultura religiosa, chegando a trabalhar para o estrangeiro230. Quem não vê aqui um reflexo do amor ao Menino de Belém que as religiosas de Santa Clara viviam e infundiam nas pessoas com quem mais se relacionavam? Este amor a Jesus Menino tornouse tão natural e espontâneo entre a população da Madeira!... 2. O mosteiro como centro cultural - Escola de formação feminina Podemos afirmar que, para além das suas funções religiosas, o mosteiro desempenhou um papel importante no campo social e educativo, pois funcionou praticamente, pelo menos até meados do século XVII, como a única escola feminina da Madeira. Peritas em leitura, caligrafia, música, artes decorativas, doçaria e bordados, as religiosas empenhavam-se não só em desenvolver estes dons bem como em transmiti-las às candidatas e educandas. 2.1. As letras e a música sacra Na Madeira, onde a nobreza insular ia ganhando prestígio, não faltavam preceptores particulares entre os nobres, como sucedia nas famílias Câmara, Noronha e outras. Também os mestres-escola eram bem aceites e mesmo procurados. Sabemos que na Idade Média a cultura se circunscrevia à classe eclesiástica, aos nobres e, em certos casos, aos burgueses, classe mercantil que, para bem gerir os seus negócios, precisava de ter conhecimentos literários. Na Idade Moderna, alargou-se o campo da cultura. Com efeito, com o movimento humanista, as transformações económicas, sócio-culturais e políticas, cresceu o anseio de saber e houve uma forte procura dos mestres de ler, que quase sempre foram os clérigos, bacharéis, estudantes e até mesmo os sacristães. 229 230 Ilhas de Zargo, II, p. 509. Ilhas de Zargo, II, pp. 509-510. 82 Dentro desta ânsia de aprender, nasceu no Funchal em 1570, o colégio jesuítico de São João Evangelista. Bem depressa se tornou um centro cultural de renome, chegando a ser frequentado por algumas centenas de alunos. O seu ensino, essencialmente humanístico, cuja aprendizagem assentava no latim, teve no P. Manuel Álvares, jesuíta natural da Ribeira Brava, o mestre de maior fama e prestígio231. A juventude madeirense encontrou neste estabelecimento de ensino o apoio ao seu crescimento na área da cultura. A comunidade de Santa Clara, que prezava a formação dos seus membros, particularmente das candidatas, foi favorecida pelos meios de que dispunha a cidade do Funchal. As religiosas de Santa Clara cultivaram a leitura, mesmo do latim, escrita, caligrafia e música. Para rezarem o ofício divino, dar solenidade ao canto e se enriquecerem com a leitura, precisavam de ter conhecimentos culturais. Muitas delas, dada a sua condição de nobres, haviam tido preceptores particulares ou aprendido com os mestres-escola, dado que na Madeira, desde muito cedo, houve interesse pelo saber, como dissemos. Outras cultivaram-se já no mosteiro. Dado que nas celebrações litúrgicas, missa, ofício divino e outras se usava o latim, as religiosas precisavam de conhecê-lo. Embora não fosse profunda a sua aprendizagem, pelo menos na leitura procuravam especializar-se. Pela análise dos registos de profissão, verificamos que todas as noviças que professavam sabiam ler e escrever o português com muita perfeição. Os livros de contas, de óbitos, de actas e documentos vários que as escrivãs, entre as quais as Madres Joana Teresa da Glória, Bibiana Narcisa do Lado, Carlota Matilde da Conceição, Antónia Rosa de Viterbo e outras nos deixaram, revelam-nos os seus excepcionais dons caligráficos. Estamos diante de pessoas competentes, metódicas e artistas. Textos claros, tantas vezes iniciados por belíssimas letras capitulares e sempre bem ordenados. Nesta escrita caligráfica são dignos de admiração o traçado do desenho, os elementos decorativos, o sombreado, a harmonia do conjunto. 13.Carta para o vigário capitular. Nesta pequena carta dirigida ao vigário capitular, podemos apreciar a perfeição caligráfica do texto, a boa redacção e um certo requinte artístico no traçado das letras iniciais. A fotografia aqui inserta fala-nos da competência da comunidade. Sendo uma simples carta para o vigário capitular revela perfeição e dons caligráficos. Sabe-se também que cultivavam a música e o canto, tão necessários às suas liturgias. O mosteiro gozou desde os primeiros tempos de um órgão. Segundo César Nascimento e Guilherme Lino, que nos princípios do século XX, para o repararem, fizeram pesquisas no seu interior, foi mandado construir pelos filhos de João Gonçalves Zarco, os quais em 1489 o ofereceram a Santa Clara232. Noronha, ao descrever os coros da igreja, apresenta o coro de cima como o lugar “onde se assiste à música que nesta casa se conservou sempre com particulares vozes e ciência”233. As celebrações litúrgicas do mosteiro de Santa Clara, muito apreciadas pela população do Funchal e até de outras partes da Ilha, mereciam a admiração de quantos tomavam parte nelas. 2.2 Culinária, bordados e artes decorativas 231 José Pereira da Costa, “Introdução”, in Gramática Latina do P. Manuel Álvares, 1974 (reimpressão da edição de 1572), p. XI-XVI. Elucidário Madeirense, III, p. 20; “Convento de Santa Clara e filhos e genros de Zargo”, in Diário de Notícias, Funchal, 22 de Novembro de 1924. 233 Noronha, op.cit., p. 264. 232 83 As religiosas eram especialistas em doces de todas as qualidades, dos quais guardavam o segredo e em muitos manjares que, dentro e fora do mosteiro, eram apreciados. Os bolos gastavam-se na comunidade em dias festivos, ofereciam-se a amigos e benfeitores, nobres e eclesiásticos. Também se produziam para venda e se exportavam. À feitoria da Flandres chegaram as iguarias da Pérola do Atlântico. Segundo uma referência do historiador belga Goris, D. Manuel “fazia chegar cada ano ao feitor João Brandão, dez arrobas das melhores compotas, amêndoas e conservas da Ilha da Madeira, em consideração pelas grandes festas que ele é forçado a dar”234. Não chegariam a D. Manuel e à Flandres as iguarias do mosteiro de Santa Clara?... Certamente que sim. Ilhas de Zargo referem que em confecções de iguarias o mosteiro de Santa Clara do Funchal gozou de fama mundial.235 Sabemos que doces, conservas e compotas, a que tanto se dedicavam, eram fonte de receita para o mosteiro236. Como nas suas propriedades se fazia apicultura, as religiosas dispunham de mel que tanta qualidade dava aos seus bolos, aproveitando também a cera das abelhas para o culto religioso da sua igreja. Do Curral lhes vinha muita manteiga que igualmente aplicavam nos doces que confeccionavam237. Além do mel, gastavam grandes quantidades de açúcar e melaço, farinha de trigo e de cevada que, pelo menos em parte, lhes vinham das suas fazendas, bem como especiarias, essências, corantes, nozes, amêndoas e tantos outros produtos que adquiriam por bom preço. Entre as variedades confeccionadas, podemos apontar os bolos de mel, talhadas de amêndoa, queijadas, rosquilhas, coscorões, bolos de cevada, sonhos e outras variedades. Depois dos jesuítas terem comprado a Quinta dos Frias, por onde passava o cano que abastecia de água o mosteiro, as religiosas passaram a ter problemas de abastecimento, chegando, em 1664 a estar 342 dias consecutivos sem água canalizada. A comunidade foi então afectada na sua economia. As freiras queixaram-se de terem sido prejudicadas “nos lucros cessantes pela falta de seus doces e conservas que deixaram de fabricar, por falta da dita água e que com os ditos doces e conservas têm suas negociações”238. Estas actividades foram retomadas logo em 1665. Também os bordados e outros lavores artísticos eram requinte das religiosas de Santa Clara. Nas propriedade do Curral Grande e São Vicente, e possivelmente noutras, cultivavam o linho destinado a alvas, toalhas e outras alfaias de culto, confeccionadas com muito esmero239. Faziam e bordavam belíssimos paramentos, vestes para imagens do mosteiro ou mesmo solicitadas, além de outros artigos de valor e requinte. Normalmente o bordado era feito sobre seda, damasco ou linho. Com o matiz combinava harmonicamente o ouro e a prata, dando às vestes litúrgicas beleza e valor. Confeccionavam também flores de cera e de penas pintadas, feitas com arte, que se vendiam e ofereciam a pessoas amigas ou benfeitores. As religiosas de Santa Clara também se exercitaram nas artes decorativas. Conta o médico inglês Hans Sloane quando, em 1687, foi convidado pela abadessa de Santa Clara a ir àquela casa religiosa a dar a sua opinião sobre algumas freiras que estavam doentes: “(...)tendo visto a maior parte destas doentes neste local, retirei-me depois de me ter 234 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997, Introdução não paginada. É de salientar que o feitor João Brandão estabeleceu contactos com Albrecht Dürer que o retratou e dele recebeu presentes. Dürer diz no seu diário: “ O feitor Brandão ofereceu-me dois grandes e belos pães de açúcar refinado, dois boiões de açúcar em compota” (Luísa Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit. Introdução não paginada). 235 Ilhas de Zargo, II, p. 583. 236 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31. 237 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 37, fol. 10 e ss. A confeitaria Felisberta, na Rua das Pretas, aberta ao público em 1837, que criou a aura de apresentar boas doçarias, tais como queijadas, pingos de ovos ou lágrimas e outras, teria usado, depois da extinção do mosteiro de Santa Clara, algumas receitas dele provenientes (Rui Santos, Crónicas de outros Tempos, Funchal, 1996, pp. 31-32). 238 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 237. 239 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 37, fol 10 e ss.. 84 deliciado com uma bela refeição de frutas e compotas. Os doces e a mobília do quarto tinham sido feitos pelas próprias freiras. Até agora quer nas compotas, quer no mobiliário, nunca vi coisas tão boas”240. É possível que o mosteiro tivesse oficina própria. As religiosas fariam nas obras de marcenaria a parte decorativa com aplicações de folha de ouro e pintura. Crê-se que nos finais do século XVI estaria a funcionar em Santa Clara uma pequena oficina de barro. A existência de duas Piedades no espólio do mosteiro, assim como de uma quantidade apreciável de fragmentos de esculturas todas executadas em barro vermelho, muito semelhante ao utilizado depois para a execução de presépios, permite levantar esta hipótese241. 2.3. Educação de “moças nobres” Para satisfazer as necessidades sociais da época e a vontade dos reis, muitas vezes havia no mosteiro, além das candidatas ao noviciado, jovens educandas, “moças nobres”, como as designam os cronistas, que ali ficavam temporariamente para receberem formação religiosa, cultural e feminina. Embora a sua presença nem sempre fosse positiva, dado o seu gosto pelas vaidades e encantos da sociedade a que pertenciam, as religiosas esmeravam-se na educação das jovens que lhes eram confiadas e para elas havia sempre uma mestra. Esforçavam-se por dar-lhes uma formação religiosa, intelectual e doméstica muito completas. Educadas dentro dos princípios religiosos, ficavam senhoras de uma sã moral que lhes permitiria um comportamento exemplar no seio da sociedade. Além do saber intelectual da época que o mosteiro lhes dava - conhecimentos de escrita, leitura, música, pintura, e outros -, recebiam uma primorosa formação feminina que as deixava aptas em manjares de cozinha, arranjos artísticos e regras de cortesia. Ser educada em Santa Clara era, na Madeira, requinte e distinção. 240 A Madeira vista por estrangeiros, 1450-1700 (coordenação e notas de António de Aragão), Funchal, l982 pp. 162-163; citado por Rui Carita, op. cit., III, p. 336 241 Rui Carita, op. cit., I, pp. 412-413 85 CAPÍTULO IV VIDA INTERNA: ECONOMIA 1. O Curral das Freiras e a Quinta de Santo António Tanto o Curral das Freiras como a Quinta de Santo António eram propriedades de suma importância para a vida da comunidade do mosteiro. A quinta era uma granja modelar com os mais variados produtos e o Curral, rico no abastecimento de produtos pecuários: manteiga, queijo e carne. O Curral Grande, que depois da sua doação ao mosteiro passou a designar-se também Curral das Freiras, bela propriedade com que João Gonçalves da Câmara dotou as suas filhas que nele entraram, teve enorme importância para Santa Clara, primeiro como centro de criação de gado e, depois, como colónia agrícola242. De facto, o aproveitamento económico do Curral sofreu ao longo do tempo uma evolução. A criação de gado foi a forma que revestiu o início da sua exploração económica. Nos meados do século XVII João Fernandes de Vares pagava anualmente ao mosteiro 20.000 réis em dinheiro, dez botijas de manteiga, quinze cabritos, vinte e seis arrobas de carne de porco, por quarenta porcos do mosteiro que tinha também no Curral, além das “meias” que dava das vacas243. Sendo a exploração pecuária, até meados do século XVIII, a actividade dominante do Curral, a partir de então procedeu-se a arroteias, à arborização e ao aproveitamento agrícola. O Curral acabou por tornar-se uma excelente zona agrária, que produzia, vinha, árvores de fruto, tais como pessegueiros, pereiras, ameixoeiras, cerejeiras, nogueiras, castanheiros e cereais, entre os quais merece especial menção o trigo244. A Quinta de Santo António era uma das principais propriedades dos arrabaldes do Funchal. A sua situação, junto à ribeira de Trapiche, facilitou a instalação de um engenho de açúcar e do regadio dos canaviais, onde trabalhavam, desde há muito, algumas dezenas de escravos245. Paralelamente à cana também se cultivava a vinha em latadas. Em meados do século XVI, o mosteiro tornou-se proprietário da quinta, pela entrada de D. Isabel Gonçalves Ferreira ou Isabel de Azevedo, viúva de Lopo de Azevedo, seus proprietários, procedendo-se então ao seu arrendamento em prazos de dezoito anos, com o pagamento de grande parte da renda em géneros, ou seja pagamento de “meias”. Gradualmente, a cultura da cana, pela concorrência do açúcar do Brasil e das Antilhas, foi dando lugar à vinha que, já em princípio do século XVII, era a principal cultura da quinta. Além deste produto, destinado a ser comercializado, a Quinta de Santo António assegurava à comunidade uma parte substancial dos víveres necessários às religiosas e pessoal, no quotidiano. 2. Produtos comercializados: o açúcar e o vinho 2.1. O açúcar 242 ARM, Conventos, Conv. S. Clara F., L 42, fol. 125 v. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 18, fol. 176, L 22, fol. 178 e L 37, fol. 10 e ss.. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 13, fol. 164 v e L 37, fol. 10 e ss.; Elucidário Madeirense, I, p. 341. 245 A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, 12ª edição, Lisboa, 1985, I, p 274. Atingida a costa ocidental africana, faziam-se incursões directas ao interior, trocando “escravos por panos e outros artigos que os portugueses iam muitas vezes adquirir a Marrocos. De Portugal, grande número, se não a maioria dos escravos, vendia-se depois com bons lucros para Castela, Aragão e outros países Europeus, e só uma parte ficava nas produções de açúcar e em serviços agrícolas ou domésticos da Madeira e Portugal” Continental (I, p. 275), “suprindo a falta de mão de obra na Europa e na Ilha da Madeira” (II, p. 66). 243 244 86 Iniciado o povoamento da Ilha da Madeira, logo se experimentou o cultivo da cana sacarina. Desde muito cedo (1433), a cana sacarina foi ali cultivada com intenções de produção exportadora246. Em meados do século XV, Diogo de Teive, escudeiro do infante D. Henrique, levantou na Ilha o primeiro engenho de açúcar247. A partir de 1468, altura em que os mercados de Bruges e Antuérpia estavam já em activa projecção internacional, as relações comerciais de Portugal com a Flandres, Alemanha e outros países, ganharam vulto248. Nos fins do século XV, o açúcar inundava todos os mercados da Europa, generalizando-se o seu uso. Os historiadores têm considerado este acontecimento do século XV como “um êxito notável” e o seu negócio como “o mais importante entre os de todos os outros produtos dos dois arquipélagos - Madeira e Açores”249. É espantoso como em trinta anos foi possível fazer da Ilha da Madeira, desabitada e densamente arborizada, um centro de exportação de açúcar de grande importância!...“O açúcar dela, o melhor que agora se faz no mundo (...) tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa parte de mercadores da terra”250, diz Gaspar Frutuoso. Era tão grande a sua importância económica e projecção nacional que o rei D. Manuel, ao elevar a vila do Funchal a cidade em 21 de Agosto de 1508, lhe deu como armas, em vez das quinas de Portugal, cinco pães de açúcar dispostos em cruz. Nos meados do século XVI, a principal produção da Madeira era, de facto, o açúcar. Havia na Ilha quarenta engenhos, com a produção máxima de umas duzentas mil arrobas alcançadas em 1570; as plantações requeriam uma extensa mão de obra, importando-se anualmente centenas de escravos africanos251. Depois de preparado (moagem, cozimento e purga), estava o “pão de açúcar” branco e mascavado, pronto para ser pesado, encaixotado e exportado. Para o efeito se faziam caixas de madeira indígena como o cedro, til e vinhático, que nos países importadores eram utilizadas como “boa madeira”. No testamento de João Gonçalves da Câmara (1499) fala-se em caixas de açúcar de cinco, seis ou sete arrobas cada. O mosteiro de Santa Clara recebia açúcar das terras do norte da Ilha, mas era nas terras do sul que a cana abundava (...)252. Os contratos do mosteiro com os colonos multiplicavamse no sentido de incrementar aquela cultura. Na zona de Câmara de Lobos tinham as religiosasvários engenhos, utilizando a água da ribeira dos Socorridos. Em 1546 a comunidade arrendou a Manuel de Amil um desses engenhos253. Em 1558 fez um contrato com Francisco Martins, ali morador, entregando-lhe uma fazenda de canas que tinha “(...) além de Câmara de Lobos com suas águas (...)”, insistindo em que plantasse canas em toda a extensão possível, facilitando o mosteiro que o arrendatário pudesse utilizar os engenhos para a preparação do “pão de açúcar”254. 246 Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1949, I, pp. 217 – 221. Segundo Álvaro Rodrigues de Azevedo, anotador de As Saudades da Terra, Diogo de Teive está na origem da “família Teive” da Madeira. No ano de 1452, fez um contrato com o infante D. Henrique, onde se diz escudeiro do mesmo infante, no qual se obrigou a levantar na Ilha da Madeira um engenho de açúcar, o primeiro que aqui houve. Teve na Ribeira Brava e na parte norte da Ilha muitas terras de sesmaria e aí fez morgadio (Elucidário Madeirense, III, p. 349). Quando, a partir de 1450 se procedeu à colonização da Ilha Terceira, nos Açores, Diogo de Teive, convidado pelo Infante a acompanhar Jácome de Bruges, primeiro capitão da Ilha, para lá se dirigiu. A “família Teive” proliferou nos dois Arquipélagos simultaneamente. (Francisco Ferreira Drummond, Anais da Terceira .I, Porto, 1981, reimpressão fac-símile da primeira edição de 1850, pp. 25 - 29. 248 História Universal, adaptada e revista por Jorge Borges de Macedo, Lisboa, II, 1994, pp. 68 - 72. 249 Virgínia Rau e Jorge Borges de Macedo, O açúcar da Madeira nos fins do século XV - Problemas de produção e comércio, Funchal, 1962, p. 11. Acerca da posição relevante que a Madeira teve não só na produção e comercialização do açúcar como também na irradiação da cana no mundo atlântico, pode ver-se de Alberto Vieira e Fernando Clode A Rota do Açúcar na Madeira – The Sugar Route in Madeira, Funchal, 1996, obra bilingue. 250 Gaspar Frutuoso, As Saudades da Terra-História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, II, Funchal, 1873, p. 65. 251 Oliveira Marques, op. cit., II, p. 258. Sobre a introdução do escravo no arquipélago da Madeira, sua proveniência, actividades na Ilha, processo evolutivo do seu contributo na constituição da sociedade madeirense, desde o século XV ao XVII e consequente integração social, pode ver-se a tese de doutoramento de Alberto Vieira Os escravos no arquipélago da Madeira. Século XV a XVII, Funchal, 1991. 252 Oliveira Marques, , op. cit., II, p. 36. 253 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. 254 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 11. 247 87 Os contratos entre o mosteiro e os colonos eram em grande número. Há, da parte das religiosas, uma insistência em incrementar a cultura da cana, chegando a oferecer água para a rega, comprometendo-se os meeiros a plantar, regar, aumentar a extensão produtora. Pretendia-se não só abastecer o mosteiro, que habitualmente gastava muito açúcar, mas também exportar a fim de fazer face com esse rendimento a outras necessidades. Em São Vicente encontravam as madeiras necessárias para o fabrico das caixas destinadas à exportação do açúcar. Cedo o açúcar brasileiro e das Antilhas começou a fazer concorrência ao açúcar das ilhas atlânticas. Dado o seu baixo preço, que orçava por metade do da Madeira e porque uma doença sobreveio na cana, a produção desceu para quarenta mil arrobas e o número de engenhos estava reduzido a sete ou oito em 1610255. Tentando superar a crise, resolveram os madeirenses organizar um sistema de compra de açúcar no Brasil, que vendiam depois como se fosse produção própria. Diante da ineficácia do sistema e porque a concorrência era fortíssima, a Madeira substituiu a cana pela cultura da vinha.256 O mosteiro de Santa Clara depressa fez essa viragem. 2.2. O vinho O vinho passou então a ser tudo na economia da Madeira e tornou-se tão famoso e divulgado como outrora o seu açúcar, chegando a todos os pontos do império português e a boa parte da Europa. As freiras de Santa Clara deram um tal incremento à cultura da vinha que, em meados do século XVII e ao longo do século XVIII, o vinho tornou-se o produto fundamental na sua economia. Para apoiar os seus arrendatários, o mosteiro dispunha de um sistema de adegas, a cargo dos feitores e caseiros e de larga distribuição por toda a Ilha. As adegas mais importantes estavam localizadas no Campanário, Santo António, Ribeira Brava, Câmara de Lobos, Estreito de Câmara de Lobos e outras localidades, chegando a reunir mais de cem tonéis, como se verificou em 1677, em que a colheita do vinho chegou a cento e quatro tonéis. O vinho novo renovava as pipas ainda existentes, “(...) pipas velhas de muitos anos (...) cerca de cento e sessenta e uma em 1667 (...) que estavam para se vender na primeira novidade daquele ano” 257. O próprio mosteiro tinha uma loja para arrecadar o vinho com capacidade para, pelo menos, nove tonéis. O vinho do norte, que não era de boa qualidade, não podia ser comercializado, especialmente a partir da expansão da exportação, verificada numa fase avançada do século XVIII, para não tirar a fama ao vinho “de boa qualidade”. Era, pois, transformado em aguardente258, que era igualmente exportada. De facto, no sul da Ilha, o vinho vai-se tornando a mais importante produção, passando a ser a grande fonte de receita. O norte, porque não produzia bom vinho, passou a ser a zona de pecuária, exploração florestal, culturas cerealíferas e excelentes pomares. De São Vicente, que já fornecera madeira para as “caixas de açúcar”, receberam as freiras as madeiras necessárias para a manutenção das suas adegas até ao fim do século XVII, altura em que os arcos e aduelas dos tonéis e vasilhames diversos começaram a ser importados da Grã-Bretanha. 255 Oliveira Marques, op. cit., II, p 295. Segundo este autor, no final do século XVII, a Madeira possuía apenas cinco engenhos (p. 295). Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., Introdução não paginada. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. 39; citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 74. 258 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 37, fol. 10 e ss.. 256 257 88 2.3. Os juros Além das rendas, em géneros ou dinheiro e as “meias”, os juros eram uma importante fonte de receita. Recebiam-nos as religiosas de empréstimos que faziam a quem lhes solicitava esse favor. Era frequente pedir-se dinheiro emprestado ao mosteiro, ficando como seus devedores, pessoas amigas, os caseiros, que hipotecavam as suas benfeitorias e mesmo os grandes proprietários que, através do crédito, dotavam as suas filhas que professavam no mosteiro, isto é, ficavam a dever o valor do dote e dele pagavam juros. De certo modo, Santa Clara lembra um pouco uma casa bancária, onde muitas pessoas encontravam solução para os seus problemas de ordem financeira. O antigo regime permitia ao mosteiro juros modestos que normalmente não passavam de 5%259. Os juros e os rendimentos do vinho permitiram que, no século XVII, se realizassem grandes obras na parte habitacional e na igreja, altura em que o altar-mor foi todo remodelado. Na segunda metade do mesmo século, a comunidade atingiu uma situação económica folgada, com um património imobiliário de grande dimensão. 3. O quotidiano 3.1 O abastecimento de água O mosteiro não dispunha de águas nascidas na própria cerca e, por isso, foi necessário canalizá-la de terrenos exteriores e de distância relativamente grande. Em meados do século XVII a Quinta dos Frias, por onde descia o cano abastecedor, passou para o colégio dos jesuítas. A partir de então, alguns conflitos foram surgindo, entre o mosteiro e o colégio que, devendo zelar pela conservação do cano, nem sempre o fazia. Pelo menos uma vez tiveram as religiosas de recorrer à justiça, lavrando o Juiz de Fora, em 14 de Julho de 1664, uma sentença favorável à comunidade260. A falta de água embaraçava seriamente a comunidade, não apenas pela necessidade que dela tinham para a vida do dia a dia, mas também por prejudicar a sua actividade como produtoras de conservas, de bolos e de outras iguarias261, como já foi referido. O mosteiro chegou a estar 342 dias sem água canalizada, havendo necessidade de recorrer à água acarretada por tracção animal. Nessa altura, as religiosas, lesadas no bom funcionamento da vida comunitária e nas suas economias, por terem de parar a preparação das conservas e o fabrico de doçaria, lamentaram-se amargamente. Pela falta de água, segundo diziam, “padeceram gravíssimas calamidades por não terem outra água alguma de que pudessem beber e cozinhar e se servirem para a fábrica dos seus doces”262. Isto afectou a sua economia, pois ficou o mosteiro sem os proventos que lhe vinham do fabrico de conservas e doçaria. No século XVIII os problemas de abastecimento de água agravaram-se de tal forma que as religiosas chegaram a sair do mosteiro em sinal de protesto. Tal facto, além de ser causa de censuras por parte da autoridade eclesiástica, motivou a intervenção régia. D. João V, em alvará de 15 de Novembro de 1712, impôs uma multa de 8.000 reis a quem danificasse o cano da água, devendo o provedor da Fazenda Real velar por assunto tão importante e delicado.263 Como os problemas continuassem, a 18 de Outubro de 1721, uma 259 AHU, Madeira, doc. 264 e 265. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31. 261 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31. 262 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p.31. 263 BNL, Reservados, Códice 10935, p. 99: “ Memória sobre a criação e o aumento do estado eclesiástico na Ilha da Madeira” (...). 260 89 provisão régia mandava nomear um “olheiro” que semanalmente visitaria o dito cano; qualquer conserto necessário seria pago à custa dos jesuítas e o salário do “olheiro”, pelos mesmos e o mosteiro264. Em 1770 surgiu novo desentendimento por causa do aqueduto, que Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda na cidade do Funchal, e Francisco Moreira de Matos, notificam oficialmente265, talvez porque os incidentes se iam avolumando e repetindo. 3.2. Os géneros alimentícios O trigo era uma das bases da alimentação no mosteiro de Santa Clara. Depois da cana e da vinha, era ele a cultura de maior escala nas suas propriedades. Porém, a quantidade obtida não chegava para as suas necessidades quotidianas e tinham de adquirir trigo e outros cereais a produtores da Ilha e até importá-lo. Em 1543, Santa Clara devia 50.000 reis ao mercador Simão Fernandes, residente no Funchal, por trigo que lhe havia comprado266. O trigo era cultivado especialmente nas terras do norte - São Vicente, Porto da Cruz, Ponta Delgada e outras, que o mosteiro aí possuía e que, por serem terras pobres, não permitiam culturas mais exigentes. As fazendas de São Vicente pagavam os seus foros em trigo que, em meados do século XVII, rendiam uns catorze moios e cinquenta alqueires, trigo recolhido no celeiro que as freiras tinham nessa freguesia267. E, porque a farinha de trigo era necessária à cozinha, nas terras “da banda de Traz da Ilha” costumavam as rendas ser pagas em produtos, especialmente cereais. Por meados do século XVII Santa Clara tinha em São Vicente uns 600 foreiros que davam à comunidade, anualmente, 950 alqueires de trigo, 27 galinhas, 3 frangas e 2 lençóis de linho268. A este se juntava muito outro trigo cultivado nas diversas propriedades espalhadas pela Ilha. Da Quinta de Santo António recebia o refeitório das religiosas uvas e frutas diversas, bem como hortaliças, legumes e outros produtos. Do Curral, como já foi referido, recebiam carne e laticínios - queijo e manteiga - leite, ovos e grande variedade de frutas: cerejas, pêssegos, ameixas, nozes, castanhas, uvas e alguns cereais, entre os quais predominavam o trigo. De diversas propriedades, sobretudo da Vargem ou Varge, vizinha do mosteiro, vinham-lhe cebolas, abóboras, alhos, couves, lentilhas, chícharo, inhames, feijão branco e feijão pardo, favas, figos, cevada e centeio269. O peixe - bacalhau, atum, arenque, sardinha e outros - era adquirido na portaria a compradores certos. A carne de vaca, que gastavam em abundância, obtinham-na nas zonas produtoras de gado, especialmente no Curral das Freiras. O mosteiro de Santa Clara tinha licença régia para matar e cortar a carne, privilégio régio que no tempo de D. João V também as religiosas da Encarnação conseguiram obter270. A cerca, bastante pequena, pouco rendia para a cozinha, pois a comunidade gostava de ter os seus jardins e espaços de descontracção onde pudessem recrear-se, passear e contemplar as belas flores. 3.3. O pessoal trabalhador Em breve papal de 4 de Junho de 1489, Inocêncio VIII autorizava as freiras do real mosteiro da Conceição de Beja, fundado por D. Fernando e pela infanta D. Brites, a “terem 264 Citado por João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31. AHU, Madeira, doc. 389 e 390. 266 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. 267 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. 268 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. 269 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F, L 37, fol. 10 e ss. 270 ANTT, Chancelaria régia de D. João V, L 70, fol. 5 v. e 6. 265 90 criadas livres e escravas para as servirem nas suas necessidades e doenças”.271 Quando dali partiram as fundadoras de Santa Clara do Funchal, consigo levaram a autorização e o costume. Num mosteiro de freiras fidalgas, as criadas, escravos e escravas eram elementos indispensáveis, pois que, na Ilha da Madeira, o escravo era imprescindível no quotidiano da vida. Em muitos casos, as criadas e escravas acompanhavam as candidatas na sua entrada. Foi o que aconteceu a D. Bernardina e D. Antónia, filhas do primeiro matrimónio de D. Branca de Atouguia, que levaram duas escravas moças “para se servirem delas no mosteiro”.272 Esta nobre senhora, que pertencia a uma das melhores linhagens da Madeira, procedendo da nobreza anterior ao povoamento do Arquipélago, parece que pretendeu desembaraçar-se das duas filhas, pondo-as em Santa Clara, para contrair segundas núpcias com André Afonso de Drummond, homem de renome. Viúva pela segunda vez, também ela entrou, levando consigo um vasto património e alguns escravos. Para a escrava branca, chamada Ana, “a qual quando eu me recolhi neste convento meti comigo nele (...), para meu serviço e das minhas filhas”, pedia que, depois da sua morte, sendo ainda viva “fique por serva no dito convento e que se não possa lançar fora dele”273. Eram os escravos e escravas que, além de outros serviços, garantiam uma série de trabalhos na cerca e fora dela, como eram o arrecadamento de víveres, transporte de água em situações em emergência, como por exemplo, as avarias do aqueduto. Trabalhavam na horta, limpeza de caminhos, jardim e em tantos outros serviços necessários. Quando em 1664, o cano da água que passava na Quinta dos Frias, nessa data em posse dos jesuítas, entupiu, ficando o mosteiro de Santa Clara sem água durante trezentos e quarenta e dois dias e as religiosas passaram a abastecer-se de água nas “Fontes de João Dinis”, junto à fortaleza de São Lourenço, eram os “boieiros”, auxiliados por escravos, que carregavam as pipas. Como, porém, os ditos boieiros, tanto “queriam ir como não ir”, o mosteiro comprou três bestas e era o almocreve que, com a colaboração dos mesmos escravos, fazia o carreto da água274. Este pessoal trabalhador prestava também, dentro da clausura, certos serviços ao conjunto da comunidade ou às religiosas a título particular, pois mesmo vivendo no mosteiro, as freiras fidalgas não abdicavam do seu estilo nobre. 271 João José Abreu de Sousa, “ O Paço de Belas e a Madeira”, in Atlântico, 13 (1988) 49. Trata-se de D. Fernando, filho do rei D. Duarte. ANTT, Conventos e Mosteiros, L 11, fol 166: Testamento de D. Branca de Atouguia de 9 de Outubro de 1615. 273 ANTT, Conventos e Mosteiros, L 11, fol 166: Testamento de D. Branca de Atouguia de 9 de Outubro de 1615. 274 João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 31. 272 91 CAPÍTULO V INSERÇÃO E COLABORAÇÃO COM A IGREIJA LOCAL A igreja de Santa Clara foi um importante centro de culto público na cidade do Funchal, ao longo de mais de quatrocentos anos. A comunidade do mosteiro, sintonizando com a espiritualidade da época, inseria-se facilmente em formas de espiritualidade então habituais, como aconteceu em meados do século XVIII, quando foi criada a confraria de Nossa Senhora do Monte. Estava também aberta às necessidades da Igreja local. Assim, no final do século XVIII, as religiosas cederam gratuitamente o espaço necessário para a construção da igreja de Nossa Senhora do Livramento, matriz da paróquia que então foi criada no Curral das Freiras 1. Culto público na igreja do mosteiro Desde a origem do mosteiro a igreja de Santa Clara foi frequentada pela mais selecta população do Funchal, bem como pela população circunvizinha que aproveitava a missa quotidiana celebrada a horas certas e outros actos religiosos como as novenas preparatórias das grandes festividades. A mais distinta nobreza da ilha que ali tinha as suas filhas gostava de tornar-se presente naquele templo nas grandes solenidades religiosas. A igreja disponha de um órgão oferecido pelos filhos de João Gonçalves Zarco em 1498, que dava grande beleza aos actos litúrgicos. As religiosas cultivavam a música sacra e eram exímias nas suas liturgias, em que tomavam parte não só os capelães e confessores, mas outros membros do clero e autoridades eclesiásticas quando o desejavam. Segundo Henrique Henriques de Noronha, a comunidade de Santa Clara cultivou a música. Naquela casa religiosa, diz o historiador, a música “conservou-se sempre com particulares vozes e ciência”275. Não faltavam na igreja do mosteiro as tradicionais Missas do Parto, em que a população e as religiosas participavam com devoção. Em 1822, porém, D. Francisco José Rodrigues Andrade, atendendo a que nalgumas igrejas se ia misturando o profano com o religioso, e sem qualquer respeito pelos lugares sagrados, se permitiam “muitas coisas ofensivas à honra de Deus”276, determinou que em “nenhuma igreja ou capela, assim de seculares como de regulares, se possa celebrar o santo sacrifício da Missa, antes das seis horas da manhã, debaixo de pena de suspensão ipso facto, a todo o presbítero que o contrário praticar, assim como se não possam abrir as igrejas ou capelas antes das cinco horas e meia”277. As religiosas, embora na sua igreja não se verificassem abusos, em obediência ao seu prelado, passaram a ter as Missas do Parto às seis horas e não mais cedo. Ali se celebrava também a Missa do Galo, precedida do auto do Natal, por vezes misto de religioso e de profano. Os prelados madeirenses procuraram, sem ofender a tradição, ir purificando as festas natalícias daquilo que não era religioso. Em 1860, D. Patrício Xavier de Moura, renovando a determinação de 1859, mandou que se suspendesse “o uso de se celebrar missa rezada na noite de Natal.”278 Na igreja de Santa Clara, onde sem dúvida nunca houve abusos, a missa à meia-noite continuou, pois que a circular do prelado deixava uma 275 Noronha, op. cit., p. 264. Para além das celebrações litúrgicas a igreja de Santa Clara serviu muitas vezes para sessões de música sacra, momentos em que ali se tornava presente a mais fina nobreza da ilha. 276 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do arcediago da diocese. 277 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc avulso: Carta do arcediago da diocese. Esta carta circular foi também enviada aos mosteiros da Encarnação e de Nossa Senhora das Mercês. 278 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular do arcediago José Joaquim de Sá, vigário geral, para abadessa do mosteiro de N. S. das Mercês, de 18 de Dezembro de 1860. 92 alternativa: podia “haver missa à meia-noite, mas deve ser solene.”279 Nesta celebração empenhavam-se o capelão, os confessores e o sacristão. Cuidadosamente preparada pela 14. A igreja do mosteiro de Santa Clara. Bem visível o portal que dá acesso à igreja, em mármore branco, de boa arquitectura gótica. À direita, o portão de entrada para o mosteiro, sobre o qual podemos ver as armas franciscanas. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. comunidade, enchia de alegria espiritual a quantos nela participavam. De facto a igreja de Santa Clara não estava só ao serviço do mosteiro, mas também, em atitude eclesial, de toda a população do Funchal. Ali se concentrava muita população quando, pedido pela liturgia religiosa ou pelo monarca, em gesto de agradecimento por alguma ocorrência importante, se cantava o solene Te Deum. Na igreja de Santa Clara encontrava-se uma veneranda imagem do Senhor dos Passos, objecto de “especial veneração e culto” da população da cidade do Funchal e de outros pontos da Ilha; por esse facto, era a sede da Confraria de Nosso Senhor dos Passos, de altas tradições na Madeira e lugar de soleníssimas festividades em determinadas épocas litúrgicas 280. Quando, a 15 de Novembro de 1890 faleceu a última religiosa professa e as autoridades mandaram fechar a igreja de Santa Clara, a reacção do bispo do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto, da confraria de Nosso Senhor dos Passos e da população em geral, logo se fez sentir, pois que “a igreja de Santa Clara, onde se celebrava missa todos os dias em horas certas e onde eram feitas com notável esplendor muitas festividades religiosas, era efectivamente muito concorrida dos moradores de uma grande parte do Funchal, aos quais se não oferece nenhum outro local igualmente cómodo e acessível para suas devoções”281. Nas cartas que o reitor da confraria fez seguir para Sua Majestade formulam-se queixas que nos informam da importância que aquela igreja tinha para a população funchalense: “Causou impressão muito desagradável esta medida (...), da qual resultou ficarem grande número de pessoas privadas da frequência do templo, onde costumavam regularmente assistir a certos cultos e praticar suas devoções”.282 Não admira, pois, que, em Abril de 1891 a igreja estivesse de novo aberta ao público. 2. O mosteiro de Santa Clara, membro da confraria de Nossa Senhora do Monte Os conventos e os mosteiros da Madeira, bem como a população em geral, inseriam-se com entusiasmo nas confrarias que na ilha tiveram grande desenvolvimento nos séculos XVII e XVIII. Instituições de carácter religioso, onde os confrades se comprometiam a realizar em comum certas práticas religiosas ou serviços de beneficência, as confrarias remontam à Idade Média, período histórico em que, por vezes, se confundiam com as corporações de artes e ofícios. Nelas encontrou o homem cristão a protecção espiritual de que se sentia carenciado. Constituídas inicialmente só por homens, tornaram-se ao longo dos séculos extensivas às senhoras, embora a participação destas fosse mais restrita. As pessoas faziam questão de 279 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular (...),de 18 de Dezembro de 1860. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. Sobre a imagem do Senhor dos Passos, veja-se a nota 69, p. 69. 281 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, caixa 2072, doc. avulso. 282 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara, F., caixa 2072, doc. avulso: Carta do reitor da confraria João Barbosa de Mattos e Câmara, Visconde do Ribeiro Real, de 10 de abril de 1811 280 93 pertencer a várias confrarias283. O Arquivo Regional da Madeira guarda setenta e seis fundos arquivísticos de confrarias. Cinco são do século XVI, quinze do século XVII, quarenta e sete do século XVIII e nove do século XIX, sendo compostos na sua maioria por livros de despesas e receitas, de entradas de irmãos e de inventários de bens. Vejamos a espiritualidade específica destas instituições: Quadro nº.12 - Espiritualidade das confrarias Confrarias Quantitativo Confrarias Marianas Confrarias do Santíssimo Sacramento Confrarias das Almas do Purgatório Confrarias de Santo António Confrarias de São Miguel Confrarias do Senhor Jesus e Senhor Bom Jesus Confrarias do Santíssimo Nome de Jesus Confrarias de São Pedro Outras Confrarias 18 15 6 4 3 3 3 3 21 Total: 76 Fonte: Arquivo Histórico da Madeira, 20 (1997) 127 - 147. Este quadro aponta para os valores espirituais mais vivenciados pela população do bispado do Funchal: Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora, o que evidencia uma forte devoção à Eucaristia nas chamadas “Ilhas do Santíssimo Sacramento”, como as designava D. Francisco Antunes Santana nas suas prédicas, e, bem assim, à Virgem Santíssima, venerada sob os mais diversos títulos entre os quais sobressaía o de Senhora do Monte De 1741 a 1753 foi bispo do Funchal D. Frei João do Nascimento, natural de Lisboa, membro da Primeira Ordem Franciscana, moldado pela austeridade do convento de Varatojo (Torres Vedras), que, auxiliado pelo clero da sua Ordem, procurou empreender uma profunda reforma de costumes na Madeira284. Quando, em 1748, um grande tremor de terra abalou toda a Ilha, arruinando edifícios e igrejas, foi D. Frei João do Nascimento verdadeiramente incansável. A todos procurou confortar e socorrer da forma que lhe era possível. Em seguida, empenhou-se na construção de várias igrejas, entre as quais a de Nossa Senhora de Monte, onde, em 1750, fundou a confraria dos Escravos e Servos de Nossa Senhora do Monte, que tornou extensiva a todas as paróquias , conventos e mosteiros. Explicava o prelado: dado que “nesta ilha da Madeira, resplandece como o sol (...) a sacrossanta Virgem Maria, com o venerando título de Nossa Senhora do Monte”, a Ela nos deveríamos consagrar. A Senhora do Monte, como especial protectora, advogada e padroeira, seria o amparo dos madeirenses em todas as “aflições e necessidades, assim espirituais e corporais, como públicas e particulares”. Propõe, pois, D. João do Nascimento que, se as pessoas devotas da Senhora do Monte o acharem louvável, se poderá instituir na sua igreja uma devota confraria com o título dos Escravos e Servos de Nossa Senhora do Monte. Assim, a 6 de Abril de 1750, tornou público o documento da sua instituição. Ele foi “o primeiro que, a impulsos da sua fervorosa devoção, se alistou por escravo da mesma Senhora”285. Desejava o prelado que o clero, as religiosas e o povo, em reconhecimento dos contínuos benefícios que 283 Uma benfeitora da Misericórdia, Catarina de Ornelas, declarou, em 1658, que era irmã das confrarias “de Nossa Senhora do Rosário, de Santo António, do Nome de Deus e de São Bento do Convento”; e no testamento de Filipa de Sousa, datado de 1680, existente no segundo livro da Misericórdia de Santa Cruz, lê-se: “Declaro que sou irmã das confrarias seguintes: Nossa Senhora do Rosário, dos Santos Passos, Nossa Senhora da Piedade, Santo António e Santo Benedito (Rui Carita, op. cit., III, p. 352, nota 837). 284 Ilhas de Zargo, II, p. 450. 285 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, L 29, não paginado 94 esta Ilha havia recebido e estava recebendo de Deus por intermédio de Nossa Senhora, seguissem o seu exemplo. Nos mosteiros de religiosas clarissas do Funchal encontrou eco o apelo do seu prelado. A Madre Francisca dos Querubins, então abadessa de Santa Clara, solicitou a extensão da confraria ao seu mosteiro, conforme o depoimento do próprio bispo: “(...) fazemos saber que a R. M. abadessa do mosteiro da Nossa Senhora da Conceição da Ordem de Santa Clara de Assis, desta cidade do Funchal, por si e em nome de todas as religiosas, educandas, servas e comensais do mesmo mosteiro, nos representou que elas desejavam generosamente ser admitidas na confraternização da gloriosíssima Virgem Maria, Nossa Senhora do Monte, soberana padroeira de toda a Ilha286. Acolheu gostosamente o prelado a disponibilidade revelada e logo respondeu à abadessa: “Atendendo nós e reconhecendo a fervorosa devoção e louvável vontade com que as suplicantes procuram empenhar-se em cultos e obséquios da soberana Senhora do Monte, havemos por bem admiti-las na confraternização da mesma Senhora e permitir que se alistem por suas escravas”287. Porque eram muitas as pessoas que viviam no mosteiro, o bispo permitiu que pudesse ter livro próprio. Logo o envia à escrivã, que deveria tê-lo em seu poder e nele fazer os assentos e, no fim de cada Quaresma, receber as respectivas quotas, remetendo-o, em seguida, ao escrivão da Câmara Eclesiástica. Inscreveram-se de imediato pelo próprio punho ou pela mão da escrivã cento e sessenta e cinco religiosas professas, das quais a primeira foi a abadessa, quatro irmãs e algumas servas288. 3. Em benefício da população do Curral das Freiras 3.1. A capela de Santo António e seus capelães. Situado no interior da Ilha, rodeado de altas e caprichosas montanhas, intercortadas por declivosas ravinas, situa-se um vale amplo, “miniatura campesina de um paraíso”289, que logo nos primórdios do povoamento teve o nome de Curral, por se ter tornado aquele local importante centro de criação de gado lanígero e caprino. O Pico Ruivo, com os seus 1861 metros de altitude, o ponto mais alto da Madeira, sobressai entre as montanhas envolventes. Lá no fundo, vale abaixo, entre desfiladeiros e abismos que, quase a pique se precipitam do alto do Pico, corre a Ribeira dos Socorridos, à procura do oceano, que só atinge em Câmara de Lobos. Muito cedo ali se foram alojando escravos fugidos dos povoados, bem como homens escapados à acção da justiça. Nos fins do século XV, já havia no Curral população fixa. Em 1480, como já foi dito, João Gonçalves da Câmara fez a compra do Curral que, pelas suas dimensões e importância, passou a designar-se Curral Grande, o qual, em 1497, foi entregue ao mosteiro de Santa Clara como dote das filhas do donatário que nessa data ali entraram, D. Elvira e D. Constança290, passando então a designar-se Curral das Freiras. À população desta importante propriedade, como zona pecuária primeiro, e granja agrícola depois, prestou o mosteiro a necessária atenção, pois se sentia, de certo modo, responsável pela assistência religiosa de quantos ali residiam. Por esse motivo, na primeira metade do século XVII, Frei António da Porciúncula empenhou-se na construção duma capela 286 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, L 29. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, L 29. O termo da inscrição era como se segue: “Aos 11 dias do mês de Maio de 1750, se constituiu escrava de Nossa Senhora do Monte a R.M. abadessa Francisca dos Querubins, obrigando-se a pagar de esmola cada um ano 200 réis, de que fez este termo que assinou, dando de entrada 200 réis”. Em termos de igual texto se inscreveram religiosas professas, irmãs e servas ao longo de muitas dezenas de páginas, com a única diferença de que a quota a que se comprometiam era de 50 réis. (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 29). 289 Elucidário Madeirense, I, p. 339. 290 Elucidário Madeirense, I, pp. 310 e 340. 287 288 95 da invocação de Santo António, que fez a expensas suas, embora ficasse depois a pertencer ao mosteiro291. Se não antes, pelo menos em 1644, estava “acabada e preparada para nela se dizer Missa”292. A capela de Santo António teve os seus capelães privativos com residência mais ou menos fixa.293 À comunidade de Santa Clara cabia a obrigação de providenciar quanto às alfaias necessárias ao culto religioso. A população do Curral, embora pertencente à freguesia de Santo António do Funchal, foi-se habituando a uma certa autonomia. Sabe-se que em 1678 era capelão do Curral das Freiras o P. Cristóvão Vieira, o qual fazia todo o serviço religioso e recebia os visitadores episcopais. Em 1756, aquando da visita feita pelo Dr. António Mendes de Almeida, a comunidade de Santa Clara do Funchal foi alertada sobre a atenção a prestar àquela população e à capela de Santo António. De facto, o referido visitador, deixou exarado no arquivo da paróquia que se avisasse a abadessa de Santa Clara para prover aquela capela das alfaias necessárias ao culto, conforme era a sua obrigação294. 3.2. Cedência do terreno para a construção da igreja de Nossa Senhora do Livramento Diante do aumento populacional do Curral e da importância que aquela zona ganhou ao longo do século XVIII, sentiu-se a necessidade de criar ali uma paróquia que, ganhando autonomia relativamente à de Santo António, se organizasse e desenvolvesse. Esta urgência viam-na os moradores do Curral e da Fajã dos Cardos e dela se apercebeu a autoridade civil e eclesiástica. A 11 de Maio de 1782, o Ministério da Fazenda Real, por carta de Alberto Rodrigues Lage, informava o bispo do Funchal de que “ os moradores de Fajã dos Cardos e Ribeira das Freiras da freguesia de Santo António, distantes cinco léguas da freguesia, não tendo pasto espiritual, de sacramentos e missa, sofriam com isso grande vexação, pelo que, tinham requerido e pedido a erecção duma nova paróquia”295. Entretanto, como o despacho de tal pedido dependia da rainha, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, bispo do Funchal, enquanto se iam dando os passos necessários para a criação da nova paróquia, “ deveria pensar no acrescento do alpendre da ermida existente, para caberem mais pessoas e ainda na casa para o capelão que aí deveria habitar”296. Em 1782 o Curral das Freiras passou a ter um serviço paroquial quase independente da freguesia de Santo António pelo que a sua vida espiritual melhorou consideravelmente. Tinha agora condições novas. A 24 de Julho de 1787, foi lavrada uma escritura pelo Tabelião de Notas, António Rodrigues da Costa, pela qual o mosteiro de Santa Clara do Funchal fazia a doação do terreno necessário para a construção da igreja matriz, residência do respectivo pároco e seu passal. Naquela data, na presença da Madre Paula Luísa de Santa Teresa, abadessa, e mais seis religiosas297, de Frei Luís da Conceição, Custódio Provincial, e de um representante da 291 Arquivo Histórico da Madeira, IX, 1951, p. 248. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 18 do Cartório do Convento de Santa Clara do Funchal, fol. 133 v., ano de 1644; Arquivo Histórico da Madeira, 9 (1951) 248-249: “Título da Fazenda que está na Ribeira dos Acorridos que vulgarmente se chama o Curral das Freiras”. O Elucidário Madeirense refere que foram as freiras do mosteiro de Santa Clara que mandaram construir no Curral a capela de Santo António que, segundo a mesma fonte, “remonta talvez aos fins do século XVI (III, p. 253). Será necessário corrigir esta informação. 293 Elucidário Madeirense, III, p. 253. 294 Elucidário Madeirense, I, p. 340. 295 ARM, Câmara Municipal do Funchal, L 4º do Tombo da Câmara, fol. 205, em microfilme; AHDF, L 77, fol. 205: Manuela Santos, “Notas sobre a Freguesia do Curral das Freiras” in Girão, 2 (1989) 39-42. 296 Manuela Santos, art. cit. , in Girão, p. 40. 297 Além do Tabelião e do Custódio Provincial, assinaram o instrumento de doação as Madres: Paula Luísa de Santa Teresa, abadessa; Joaquina Ana do Desterro, vigária da casa; Francisca Teresa de Jesus, discreta; Petronila Rosa de São Pedro, discreta; Ana Quitéria de São João, mestra da ordem; Antónia Caetana de Santa Teresa, imediata. 292 96 diocese, o P. Nicolau Francisco de Carvalho Maysingh, fez-se o instrumento de doação gratuita em favor da diocese. “Por esse instrumento, elas, senhorias, dão licença e dotam gratuitamente à Ex.ma. e Rev.ma Mitra da porção de terra, quanto for precisa e necessária para edificação da dita igreja e casa do capelão do dito Curral (...) segundo seu orçamento, no lugar onde mais útil for e junto da casa do Reverendo Capelão largam seis alqueires de terra para seu passal, sendo este passal donativo que fazem ao Reverendo Capelão em benefício dos moradores do mesmo lugar, sendo obrigatório, tão-somente, os Reverendos Capelães do mesmo lugar, contribuírem cada ano, por dia de Santa Clara, em doze de Agosto298, com um frango, pelos seis alqueires de terra do referido passal, para reconhecimento de senhorio do mesmo referido passal e de futuro servir no conhecimento do benefício que o mesmo seu mosteiro fez ao dito Reverendo Capelão”299. Ficavam, pois, os respectivos capelães, segundo o mesmo documento, com obrigação, puro gesto simbólico, de todos os anos, na festa de Santa Clara, dar um frango ao mosteiro. E, quanto ao terreno para a igreja e casa do capelão, continua o documento, “o dão gratuitamente por condescendência com a vontade e gosto do Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, mas sempre o seu mosteiro ficará sendo senhorio do Padroado (...) perpetuamente”300. Lembra este interessante e significativo gesto, aquele outro de São Francisco de Assis e seus irmãos, que todos os anos levavam um cestinho de peixes ao abade do mosteiro do Monte Subásio “em sinal de pobreza e humildade”, pela cedência da capelinha da Nossa Senhora dos Anjos, também chamada Porciúncula, de cujo uso os franciscanos desfrutavam301. Esta doação à diocese do Funchal, em favor dos moradores do Curral, que passou a ter igreja própria, ganhando autonomia como paróquia, foi gesto de comunhão eclesial e de amor à população daquela localidade que servia as religiosas, como muito bem o reconheceu o bispo do Funchal ao agradecer “às ditas Senhoras Doadoras o grande benefício que fazem aos moradores daquele lugar”302. 3.3. Erecção da paróquia do Curral das Freiras e Fajã dos Cardos ou paróquia de Nossa Senhora do Livramento De imediato, D. José da Costa Torres fez chegar a D. Maria I a notícia da cedência, por parte do mosteiro de Santa Clara, do espaço necessário para a construção da igreja matriz, residência do pároco e seu passal, insistindo na urgência da criação de uma paróquia independente, relativamente a de Santo António303. O processo para a sua criação que, por ordem régia de 21 de Fevereiro de 1790, passou pela Mesa de Consciência e Ordens no dia 1 de Março daquele ano, chegou a seu termo a 17 do mesmo mês, dia em que a rainha deu o seu beneplácito ao respectivo documento304. Nessa data, D. Maria assim se dirigiu ao bispo do Funchal: “Eu Rainha (...) faço saber a Vós, Reverendo Bispo da Ilha da Madeira, do meu Conselho, que, tendo entendido que os moradores do Curral das Freiras e Fajã dos Cardos não podem receber os socorros espirituais 298 A festa de Santa Clara, que actualmente se celebra a 11 de Agosto , tinha então lugar a 12 do referido mês. O Réclame, 30 de Novembro de 1890: Instrumento de Doação lavrado pelo Tabelião de Notas, António Rodrigues da Câmara Costa, a 24 de Julho de 1787, no locutório do real mosteiro de Santa Clara. A escritura de doação foi feita em 1787 e não em 1784, como se lê no Elucidário Madeirense ( I, 340), na revista Girão, (2 (1989) 41-42) e noutras publicações. O Réclame publicou o documento na íntegra. 300 O Réclame, 30 de Novembro de 1890 : Instrumento de doação (...). 301 Legenda Perusina, 8, in FF I, p. 910. 302 O Réclame, 30 de Novembro de 1890. Instrumento de doação(...). 303 O P. Fernando Augusto da Silva, no seu livro Subsídios para a história da Diocese do Funchal, apresenta nada menos que sete capelas e duas igrejas paroquiais dedicadas a Nossa Senhora do Livramento. As capelas situam-se nas freguesias do Caniço, Ponta do Sol, Senhora do Monte, São Vicente, Funchal (para uso privativo da antiga cadeia), Estreito de Câmara de Lobos e Estreito da Calheta. As duas igrejas são matriz das paróquias das Achadas da Cruz e do Curral das Freiras (pp. 244 e 326 - 327). 304 AHDF, paróquia do Curral das Freiras, caixa 94 , fol. 4 v - 5: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa Senhora do Livramento, do Curral das Freiras, e Fajã dos Cardos, pela qual pretende que o reverendo vigário de Santo António se não intrometa na sua jurisdição. Este manuscrito contém uma cópia do alvará régio de D. Maria I, dado em Lisboa a 17 de Março de 1790. 299 97 15. Igreja de Nossa Senhora do Livramento do Curral. Em terreno cedido pelo mosteiro de Santa Clara, levantou-se a Igreja de Nossa Senhora do Livramento que ainda hoje serve a população. sem muitas dificuldades do pároco de Santo António”305, “Hei por bem acordar minha Real Permissão e Beneplácito, para que os ditos moradores se desmembrem e se separem da paróquia de Santo António, que nas suas aldeias seja erecta um nova paróquia, que se deverá considerar filial da sobredita”.306 16. Frontispício da igreja. Por sobre a artística porta e janela de cantaria branca, são visíveis as armas régias. Ao novo cura “eram concedidos pelo alvará régio oitenta mil reis em dinheiro, trinta alqueires de trigo e meia pipa de vinho”. Este alvará, dado em Lisboa, em 17 de Março de 1790, ordenava a rainha que “fosse registado nos livros da igreja e da Câmara Eclesiástica”.307 Esta nova igreja bem cedo começou a ser agraciada com mercês régias. Por uma petição que em 1812 o cura da paróquia da Nossa Senhora do Livramento do Curral, o P. Manuel Fernandes Pitta, dirigiu a D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde, vigário apostólico do Funchal,308 se sabe que, desde há alguns anos, a Coroa vinha concedendo à nova paróquia cera e azeite: “concedo duas arrobas de cera e trinta e seis canadas de azeite para a freguesia da Nossa Senhora do Livramento do Curral das Freiras,”309 lê-se naquele manuscrito. A construção da igreja matriz da nova paróquia, segundo Alberto Artur Sarmento, teria tido início em 1784. Este autor, na sua obra Freguesias da Madeira, falando do Curral, assim se expressa: “(...) foi elevado a paróquia, incluindo a Fajã dos Cardos, por alvará de D. Maria I, de 27 de Março de 1790, sob a invocação de Nossa Senhora do Livramento, na igreja de que havia seis anos se iniciara a construção, pois incapaz para o culto se achava já a vetusta capelinha de Santo António”.310 Não sendo fácil precisar a data exacta do fim das obras da nova igreja, sabemos, contudo, pela dedicatória bem visível na cantaria da artística janela que se sobrepõe à porta 305 AHDF; Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94 , fol. 4v - 5v: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa Senhora do Livramento (...). Mas, segundo a referida petição, não era só o pároco que tinha dificuldade em servir os habitantes do Curral, eram estes também que só com muito custo podiam chegar à igreja matriz de Santo António, ou à residência paroquial, quando essa necessidade se lhes oferecia. A rainha decidiu-se, pois, pela criação da paróquia do Curral. Na contracapa do Livro de Baptizados do Curral das Freiras, iniciado em 1788, que o AHDF guarda nos Índices, caixa 204, encontra-se averbado, por equívoco, que a paróquia foi criada a 27 de Março de 1790. 306 AHDF, Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94, fol. 4 v–5 : Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa Senhora do Livramento (...). Segundo o Index da Provedoria, a criação da nova freguesia de Nossa Senhora do Livramento foi feita “na Ermida de Santo António do Curral das Freiras e Fajã dos Cardos” (ARM, Index da Provedoria, fol. 116 v: Alvará da criação da freguesia do Curral das Freiras, 17 de Março de 1790), dado que a construção da igreja de Nossa senhora do Livramento ainda não estava concluída. 307 AHDF, Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94, fol. 5: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa Senhora do Livramento (...). 308 D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde, natural do Porto, professo da Ordem de Santo Agostinho e Arcebispo de Meliapor, governou a diocese do Funchal, de 1811 a 1819, na qualidade de vigário apostólico. 309 AHDF, Paróquia do Curral das Freiras, caixa 94, fol. 2v.: Petição do Padre Manuel Fernandes Pitta, Cura da paroquial igreja de Nossa Senhora do Livramento (...). 310 Alberto Artur Sarmento, Freguesias da Madeira, 2ª edição, Funchal, 1953, p. 63. Alberto Artur Sarmento refere o alvará a “27 de Março de 1790” (op. cit., p. 63). Trata-se dum pequeno equívoco. 98 principal, que estaria concluída em 1793, pois foi nesse ano que D. Maria I dedicou a igreja à Rainha do Céu e da Terra, Virgem do Livramento.311 O conteúdo da inscrição é o seguinte: À À RAINHA DO CÉU E DA TERRA VIRGEM DO LIVRAMENTO DEDICA MARIA PRIMEIRA RAINHA FIDEL. ANNO MDCCLXXXXIII 17. Dedicatória à Virgem do Livramento. Por sobre a cornija da porta, encontra-se a dedicatória da rainha D. Maria I, de l793. Na fachada, por sobre a janela, a dar valor histórico à igreja de Nossa Senhora do Livramento, ostentam-se em alto-relevo, com expressivo requinte estético, a coroa régia de D. Maria e as armas de Portugal. Certo é que, se não antes, pelo menos a partir de 1793, o Curral passou a dispor da bela igreja de Nossa Senhora do Livramento, cuja festa se reveste de encanto pela manifestação de fé e culto das tradições ancestrais, tão cheias de significado religioso e histórico. Uma dúvida, porém, impõe-se-nos: a pedra onde está gravada a inscrição que, pelas fracturas nos cantos superiores, parece já ter sido usada e onde a palavra RAINHA e ANTÓNIO se sobrepõem, não teria pertencido à capela de Santo António? “ Por incapaz para o culto,” como acima ficou dito, não teria sido demolida aquando da construção da nova igreja? Tudo leva a crer que sim. Essa é a hipótese sustentada pela população do Curral312. 311 Deverá corrigir-se o conceito de que a igreja matriz de Nossa Senhora do Livramento da paróquia do Curral “é construção dos primeiros anos do século XIX”, conforme se lê em Fernando Augusto da Silva, Diocese do Funchal. Sipnose Cronológica, Funchal, 1945, p. 92, Arquivo Histórico da Madeira, 20 (1997) 88 e revista Girão, 2 (1989) 41-42. 312 É voz corrente no Curral que a capela ficava mais abaixo, no sítio ainda hoje chamado “o sítio da capela” e que aquela pedra veio de lá. 99 CAPÍTULO VI MOSTEIRO DE SANTA CLARA, CENTRO DE IRRADIAÇÃO DA ORDEM Em breve, no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição do Funchal formou-se uma comunidade numerosa e rica em virtude. Pôde, pois, ser centro de irradiação da Ordem para os Açores, o arquipélago franciscano, como lhe chama Bartolomeu Ribeiro, dando-se o honroso e significativo facto de terem sido chamadas algumas religiosas deste convento para iniciar a fundação e reforma de outros”313, diz Fernando Augusto da Silva. Como único que era nas ilhas atlânticas314, recebia não só as nobres da Madeira e Porto Santo mas também das ilhas dos Açores, pois que as mais distintas linhagens da Madeira, como os Câmaras, Noronhas, Teives, Bettencourt e outras, proliferavam igualmente naquele arquipélago. Quando em 1512, por bula pontifícia, o recolhimento da Praia se transformou em mosteiro da Ordem de Santa Clara, com o nome de mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação ou Senhora da Luz, não teriam ido do Funchal as fundadoras? Nos anos seguintes, dos dezasseis mosteiros da Ordem de Santa Clara fundados nos Açores, os três primeiros têm a sua origem a partir da Madeira. São eles: - O mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços (Ilha de São Miguel), em 1522; - O mosteiro de Jesus da Praia (Ilha Terceira), em 1534; - O mosteiro de Jesus de Ribeira Grande (Ilha de São Miguel), em 1555. Posteriormente outros nasceram a partir destes. No século XVII, o mesmo mosteiro projectou-se para Lisboa com a fundação do real mosteiro da Nossa Senhora da Esperança, em 1535, e, seguidamente, a partir de madeirenses de Nossa Senhora da Esperança, para Alenquer em 1555. 1. Irradiação para os Açores 1.1. Mosteiro de Nossa Senhora da Luz, da Praia (Ilha Terceira) Doada a Ilha Terceira, foi seu primeiro capitão, por carta passada em Silves a 2 de Março de 1450, Jácome de Bruges. A ele se juntou Diogo de Teive, da Ilha da Madeira, a quem o infante D. Henrique, havia passado alvará para o efeito.315 Depois de graves desinteligências entre eles, que se estenderam por dezenas de anos, e da divisão da Ilha em duas capitanias, vemos como capitão da Praia Antão Martins que, em 1483, promoveu a fundação de um recolhimento junto da capela de Nossa Senhora da Luz que ele fundara316. Segundo Frei Diogo das Chagas e Drummond, deu começo ao recolhimento, “ o primeiro que se fez e fundou neste mar Oceano”317, D. Catarina d’Ornelas de Teive, filha de Diogo de Teive Ferreira (neto de Diogo de Teive, da Madeira) e de D. Inês Machado de 313 Fernando Augusto da Silva, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, p. 174. Nas Canárias, o mosteiro mais antigo, também de Clarissas, foi fundado em La Laguna (Tenerife), em 1547, cinquenta anos após a entrada das primeiras Clarissas no mosteiro de Santa Clara do Funchal; Omaechevarria, ofm, Las clarisas através los siglos, Madrid, 1972, p. 147 e Joseph de Viera y Cavijo, Noticias de la historia general de las islas Canarias, II, Santa Cruz de Tenerife, l982, pp. 784-786. 315 Francisco Ferreira Drummond, Anais da Ilha Terceira, I, Porto, 1981 (reimpressão fac-simile da edição de 1850), pp. 23 - 26. 316 Drummond, op. cit., I, p. 78. 317 Frei Diogo das Chagas, Espelho cristalino em jardim de várias flores, 1989, p. 234. 314 100 Andrade318, utilizando para isso a própria casa de seus pais. O recolhimento, segundo Bartolomeu Ribeiro, teria sido inaugurado em 1483. Ali entraram muitas nobres, senhoras que se empenharam na prática das mais excelsas virtudes. Segundo o mesmo autor, em 1512, teria sido transformado em mosteiro professo, por bula pontifícia, recebendo o nome de mosteiro de Nossa Senhora da Luz ou da Encarnação319. De onde poderiam ter saído as fundadoras e mestras deste primeiro mosteiro dos Açores, senão da Madeira? A proximidade territorial e os laços familiares que uniam os Ornelas e Teives dos Açores à Pérola do Atlântico, certamente a isso o conduziriam. Apesar do silêncio das fontes a que nos reportamos, formulamos a hipótese de que ao mosteiro de Santa Clara do Funchal cabe o mérito daquela primeira fundação da Ordem de Santa Clara de Assis em terras açorianas. Segundo o cronista Frei Agostinho de Monte Alverne, as religiosas só usavam roupas de “estopa muito grosseira (...) não tinham criadas, mas às semanas se serviam umas às outras, enfim, um mosteiro onde se criavam pérolas finas”320, entre as quais a Madre Catarina, a fundadora, as Madres Clara de São Francisco, Helena da Cruz, Francisca de São Boaventura e muitas outras321. Nos tremores de terra que se verificaram em Abril-Maio de 1614, o edifício ruiu, tendo as religiosas saído para Angra, onde estiveram até 1686, ano em que, estando construído um novo mosteiro na Praia, para lá passaram no dia 1 de Julho “em procissão muito solene”322. Mapa 3 1.2. Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços (Ilha de São Miguel) Na costa meridional da Ilha de S. Miguel, muito perto da vila de Água de Pau, entre rochas vulcânicas batidas pelo Atlântico, espraiaa-se um formoso vale, outrora designado Vale de Cabaços (actual Vale da Caloura), “em virtude de se encontrar profusamente coberto de grandes flores brancas, de uma erva denominada legação, pertencente à família das liliáceas, que lembram flores de cabaças”.323 Ali havia de levantar-se o mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, a que Petronila da Mota e Isabel Afonso deram começo. Petronila da Mota, filha de Jorge da Mota, nobre e virtuoso cavaleiro da Ordem de Aviz, morador em Vila Franca do Campo, “tão avessa ao mundo como afectuosa ao silêncio do 318 Drummond, op. cit., I, p. 78. Segundo Drumond, o Livro do Tombo da Câmara da Praia, fol.144 e ss., refere esta fundação; Frei Diogo das Chagas, op. cit., p. 308. 319 Bartolomeu Ribeiro, “Açores, Arquipélago Franciscano”, in Colectânea de Estudos, 5 (1949) 61; Henrique Pinto Rema, ofm, “A Ordem Franciscana nos Açores (no passado e no presente)”, Itinerarium, 42 (1996) 510. Segundo o cronista franciscano Fr. Agostinho de Monte Alverne, o breve papal e mais papeis ficaram enterrados aquando do tremor de terra de 24 de Maio de 1614 (Frei Agostinho de Monte Alverne, Crónicas da Província de São João Evangelista das Ilhas dos Açores, III, 1988, p. 127) ; Maria de Deus Beites Manso “ Memórias para a História dos Conventos do Arquipélago dos Açores”, in Islenha, 14 (1994) 40. 320 Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 127. 321 Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 127 - 131. 322 Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 132; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 510. 323 António de Albuquerque Jácome Corrêa, O Convento da Caloura, Lagoa ( Açores), Caloura, 1996, p. 15. O mosteiro actualmente ali existente recebeu este nome, bem como o respectivo vale, porque os religiosos que o habitaram, a partir de 1632, se chamavam calouros (op. cit. p. 15). O autor desta valiosa obra histórica é o actual proprietário do imóvel. 101 retiro”324 e uma amiga, Isabel Afonso, que seu pai recolhera em sua casa, desejando consagrar-se ao Senhor, começaram a fazer vida de “oração, a jejuar, visitar as igrejas, vestidas de burel e indo descalças; suas praticas eram falar em Deus, em coisas do Céu que, quantos as ouviam, se edificavam”.325 Após o terremoto de 22 de Outubro de 1522, a conselho do pregador dominicano Frei Afonso de Toledo326, Petronila, acompanhada da amiga e de quatro meninas, suas irmãs, saíram de casa e recolheram-se na ermida de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços. Seu pai, acompanhado de alguns homens honrados, apressou-se a ir buscar as filhas, mas não conseguindo demover Petronila do seu propósito, apenas fez regressar a casa as quatro irmãs mais novas. “A Câmara e o povo daquela vila de Água de Pau as visitava com muito amor e lhes fizeram, à sua custa, uma casa pequena, onde ambas se recolheram com as quatro meninas”,327 que o pai, a instâncias de Petronila, lhes restituíra. Cerca de um mês depois juntaram-se-lhe duas senhoras mais maduras, honradas e ricas, também de Vila Franca do Campo. Rui Gonçalves da Câmara, terceiro capitão donatário da Ilha de São Miguel e “segundo neto de João Gonçalves Zarco”, segundo Noronha, “movido de zelo e devoção a todas tomou sob a sua protecção, pelo que para elas edificou umas casas junto à ermida, com bom espaço de terra que marcou para cerca e, por este modo, estabeleceu clausura”328, ficando ele e a sua mulher, D. Filipa Coutinho, por seus padroeiros, para que fosse mosteiro com todos os privilégios. Para melhor cuidar dele, mudou-se com a família para junto da ermida de Vale de Cabaços, sendo ele e sua mulher quem, à sua custa, as sustentavam329. O capitão, dado o seu parentesco com os Câmaras da Ilha da Madeira e o seu conhecimento do mosteiro de Santa Clara onde tinha, segundo o cronista Frei Fernando da Soledade, “muitas parentes suas”, fez diligências para que daquela casa religiosa fossem enviadas algumas fundadoras para São Miguel, “para ali plantarem os santos costumes e cerimónias religiosas”330. Uma delas, a Madre Maria de Cristo, natural da Madeira, filha de pais ilustres, Afonso Correia de Sousa e D. Helena Gonçalves da Costa, veio a ser, mais tarde, a grande impulsionadora do mosteiro de Jesus da Ribeira Grande em São Miguel331. Quando já eram um grupo capaz de formar uma comunidade, tratou o capitão de lhes alcançar a licença da Sé Apostólica, pelo que duas delas se teriam dirigido a Roma a solicitar o breve de fundação. O Papa Clemente VII (não Paulo III, como se vem afirmando332) ofereceu-lhes, segundo é tradição, a imagem do Senhor Santo Cristo, a que os açorianos, desde logo, votaram grande devoção.333 324 Fernando da Soledade, op. cit., IV, L II, pp. 209 - 210. Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, pp. 67-68. Henrique Pinto Rema, ofm, op. cit., p. 511. Há alguma dúvida quanto ao ano da fundação, que teria sido em 1522 ou 1523. Os autores divergem. Nós optamos pela primeira data, que nos aparece mais aceitável. 327 Agostinho de Monte Alverne, ofm, op. cit., II, p. 69. 328 Fernando da Soledade, ofm, op. cit., IV, L II, pp. 209 - 210; Henrique Pinto Rema, ofm, op. cit., p. 511. 329 António de Albuquerque Jácome Corrêa, op. cit., p. 18; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 71. 330 Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 354; Noronha, op. cit., p. 273. 331 Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 327. 332 Consta ter sido a imagem do Senhor Santo Cristo oferecida pelo Papa Paulo III às duas freiras que, de Vale de Cabaços, foram a Roma impetrar a bula apostólica para a fundação do mosteiro. Todavia, deve ter sido Clemente VII (Papa de 26 de Novembro de 1523 a 25 de Setembro de 1534) e não Paulo III (Papa de 3 de Novembro de 1534 a 10 de Novembro de 1549), o autor daquela oferta. Se não vejamos: tendo ido as primeiras religiosas para aquela ermida em 1522 ou 1523, segundo alguns autores; tendo o capitão Rui Gonçalves da Câmara obtido, por bula pontifícia, licença não só para a erecção do mosteiro mas também para ele e sua mulher serem seus padroeiros, junto do qual viveram dez anos e nele fizeram obras; tendo o Núncio Apostólico em Portugal, legado à latere do Papa Clemente VII, dado breve de fundação ao mosteiro de Santo André ( Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p.71 ; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 512), iniciada em 1532, com dezoito freiras saídas do mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Vale de Cabaços, como poderia ter sido Paulo III o oferente da referida imagem? Pelos considerandos anteriores, julgamos poder afirmar que a imagem do Senhor Santo Cristo só podia ter sido oferecida pelo Papa Clemente VII. Esta é também a opinião de António Albuquerque Jácome Corrêa (op .cit., p. 22), bem como de Hugo Moreira (António Albuquerque Jácome Corrêa, op. cit., p. 22, nota 14). 333 António de Albuquerque Jácome Corrêa, op.cit.., p. 22. 325 326 102 Cerca de oito ou dez anos mais tarde, estando o mosteiro já fundado, com bula apostólica, freiras professas, abadessa e suas oficiais, sendo vinte e sete entre professas e noviças, segundo Agostinho de Monte Alverne, os seus parentes pediram que as mudassem dali, pois, estando junto do mar, longe dos moradores da vila, corriam perigo por causa dos corsários. Um grupo de dezoito, entre professas e noviças, partiu para Vila Franca onde, em 1532, fundou o mosteiro de Santo André334 e as restantes, em número de doze, a 23 de Abril de 1541, fundaram o mosteiro da Esperança, em Ponta Delgada.335 Estas religiosas levaram consigo a Imagem do Senhor Santo Cristo, a que o Arquipélago do Açores, consagra, ainda hoje, grande devoção, como acima se disse. 1.3. Mosteiro de Jesus da Praia O mosteiro de Jesus de Praia da Vitória, na Ilha Terceira, foi autorizado por breve apostólico do Núncio no Reino, de 23 de Fevereiro de 1534, mas só fundado na segunda metade do século XVI. Foi sua fundadora D. Beatriz de Noronha que, por muito piedosa, o referido breve autorizava a transformar em mosteiro as casas onde morava na Praia e a ir buscar as fundadoras ao mosteiro da Conceição do Funchal, onde tinha duas irmãs professas, as Madres D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus; em função de breve apostólico, estas religiosas foram retiradas para a ilha Terceira, acompanhadas de Catarina da Trindade, também religiosa e uma servente do mesmo mosteiro da Conceição336. Entraram como noviças três irmãs da fundadora, D. Brianda, D. Inês e D. Francisca de Nazaré337 e uma tia. Feitas eleições, foi nomeada abadessa a Madre Joana da Cruz, irmã mais velha da fundadora. Em breve, outras senhoras das mais distintas linhagens se lhes juntaram. O mosteiro era de jurisdição episcopal338. “Como não fosse fundado com lugares fixos, de ordinário tinha oitenta religiosas”339. Em consequência do tremor de terra de 24 de Maio de 1614, que destruiu os mosteiros, conventos e igrejas da Praia e arredores, as freiras, a 31 de Maio do mesmo ano, saíram para o mosteiro da Conceição de Angra “com mui honroso acompanhamento, assim de gente de cavalo como de pé, acompanhadas dos principais da terra”340. Segundo Drummond, por influência de Angra e protegidas pelo bispo D. Agostinho Ribeiro, as religiosas queriam ficar em naquela vila, onde seria construído o novo mosteiro341. Não o consentiu, contudo, a população da Praia que, recorrendo ao rei, obteve o alvará de 16 de Fevereiro de 1619, que determinava o seu regresso à Praia, o que, no entanto, só sucedeu em meados de 1621. 1.4. Mosteiro de Jesus da Ribeira Grande Honravam-se os grandes da terra em transformar as suas casas em mosteiros. Assim, Pedro Rodrigues da Câmara e sua mulher, D. Margarida Bettencourt, obtiveram de Roma um breve pontifício, datado de 8 de Fevereiro de 1543, que os autorizava a fundar um mosteiro nas casas em que moravam. Quando lhe chegou às mãos, logo os padroeiros, a 16 de Março de 1545, contrataram um mestre-de-obras, para construir a igreja. Pouco depois, em 1550, fizeram a escritura do padroado, de dezoito moios de trigo, 200 cruzados em dinheiro, em 334 Apolinário da Conceição, op.cit., p. 147; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 512. Apolinário da Conceição, op. cit., p. 147; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 71; Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 511- 512. Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 513. 337 Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, pp. 137-138. 338 Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 513; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III, p. 137-138. 339 Agostinho de Monte Alverne, op. cit., III p. 135 e ss.. 340 Manuel Maldonado, Fenix Angrence, II, Angra do Heroísmo, 1989, II, p. 43. 341 Drummond, op. cit., I, p. 434. 335 336 103 foros, em cada ano342. “Estando o mosteiro feito, capaz de morarem freiras nele, no ano de 1555”, pela liberdade que o breve lhes dava, levaram para lá, como fundadoras”, “duas religiosas de muita virtude e santidade e não menos nobreza, filhas de D. João de Noronha, da Ilha da Madeira (...), D. Joana da Cruz e D. Catarina de Jesus, que já estavam no mosteiro de Jesus da Praia da ilha Terceira”343. Durante quatro anos, dedicaram-se cuidadosamente à formação das candidatas que foram entrando, após o que houve necessidade de regressarem ao mosteiro de Jesus da Praia. Ficando aquela casa religiosa sem abadessa, a fundadora, D. Margarida Bettencourt, pediu a Frei António Taboado, comissário franciscano nos Açores, que, de acordo com o breve de fundação, permitisse a passagem da Madre Maria de Cristo, madeirense, do mosteiro de Vila Franca para o de Jesus de Ribeira Grande, como abadessa344. Saiu aquela religiosa para o mosteiro de Jesus “acompanhada de muita gente honrada de cavalo e foi recebida na vila com muitos repiques e alegria do povo”345. Quando em 1563, sucessivos tremores de terra as obrigaram a recolher-se no mosteiro da Esperança, em Ponta Delgada,346 “já eram vinte e uma professas e dez noviças”.347 Após o seu regresso, a comunidade começou a crescer em número e em santidade, sendo, em meados do século XVII, constituída por sessenta religiosas professas. Estas religiosas viviam com grande perfeição no seu mosteiro, pelo que, “voando a fama da sua muita virtude”, mesmo depois de haver um mosteiro em Ponta Delgada, “os nobres preferiam levar as suas parentes e filhas a serem freiras no mosteiro de Jesus”.348 2. Projecção para o Continente 2.1. Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Esperança O mosteiro da Nossa Senhora da Piedade da Esperança, uma fundação do Funchal, surge no outeiro da Boa Vista, na zona da Madragoa, na actual Avenida D. Carlos I. Foi D. Isabel de Mendanha, dos Abedaños de Biscaia que, já viúva do terceiro filho de D. João de Meneses, senhor de Cantanhede, tomou a iniciativa de construir em Lisboa um mosteiro de religiosas nobres, sob a Regra Segunda de Santa Clara, ou seja a Regra de Urbano IV. Tendo falecido em 20 de Agosto de 1532, com as obras inacabadas349, foi D. Joana d’Eça que prosseguiu tão piedoso empreendimento. Esta distinta senhora, filha de João Fugaça, vedor do rei D. João III e de D. Maria d’Eça, sua mulher, era viúva de D. Pedro Gonçalves da Câmara, filho do segundo donatário da Ilha da Madeira. A ela se deve a grande importância que os Câmaras tiveram na corte, até à morte de D. Sebastião, por sua muita validade junto da rainha D. Catarina. Findas as obras, dotou o mosteiro com uma “larga quinta” que o marido tinha no Arco da Calheta, Ilha da Madeira, onde fizera construir o templo de Nossa Senhora do Loreto “na 342 Henrique Pinto Rema, op. cit., p. 518; Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 327. Agostinho de Monte Alverne, op. cit., II, p. 327. 344 Agostinho de Monte Alverne, op.cit.., II, p. 327. 345 Agostinho de Monte Alverne, op.cit.., II, p. 327. 346 Henrique Pinto Rema, op.cit., p. 518. 347 Agostinho de Monte Alverne, op.cit., II, p. 327. 348 Agostinho de Monte Alverne, op.cit., II, p. 272. Como informação complementar, diremos que, além dos seis mosteiros a que já fizemos referência, se fundaram nos Açores até ao liberalismo mais onze: no século XVI, o mosteiro das Chagas (Praia da Vitória), Santo André (Ponta Delgada), São João Baptista (Horta), São Gonçalo e Nossa Senhora da Esperança (Angra); no século XVII, o mosteiro de Nossa Senhora da Conceição e São João Evangelista Ante Portam Latinam (Ponta Delgada), São Sebastião e Nossa Senhora da Conceição (Angra) e Nossa Senhora da Glória (Horta); no século XVII, o mosteiro de Nossa do Rosário (Velas). 349 Fernando da Soledade, op. cit., IV, pp. 215 - 216; Noronha, op. cit., p. 271. 343 104 mesma arquitectura da Sé”, propriedade que as religiosas, algum tempo depois, venderam a Francisco Vasconcelos Bettencourt350. Para povoar o aristocrático mosteiro da Esperança, destinado a “freiras das famílias da melhor nobreza”, pediu D. Joana d’Eça nove religiosas professas ao mosteiro de Santa Clara do Funchal, as quais, uma vez no Reino, aguardaram no mosteiro de Santa Clara de Santarém que as obras fossem concluídas. Segundo Frei Apolinário da Conceição, para sua erecção “alcançou-se Breve Pontifício aos 16 de Janeiro de 1524”351; porém, Soledade, comsidera-as entradas no mosteiro só a 25 de Outubro de 1535352. Neste dia, entraram no mosteiro da Esperança para aí iniciarem a vida conventual, nove clarissas provenientes da Madeira: Inês de Deus, que foi a primeira abadessa do mosteiro da Esperança, Maria da Assunção e Helena de Jesus, filhas de D. Joana d’Eça, Bárbara de Assunção, Clara do Paraíso, Inês de São Francisco, Ana de São José, Maria da Conceição e Ana do Espírito Santo. A elas se juntaram mais duas cedidas pelo mosteiro de Santa Clara de Santarém353. Estas religiosas deram no novo mosteiro frutos de santidade. Noronha não hesita em dizer: “Chegaram a Portugal os odoríferos perfumes das virtudes com que se faziam exemplares as grandes religiosas do mosteiro de Santa Clara do Funchal”354. Mais tarde, em 1538 ou 1539, o mosteiro do Funchal enriqueceu a comunidade com mais duas religiosas, as Madres Ângela de Jesus e Filipa de Santo António, esta filha de D. Joana d’Eça, a quem a comunidade da Esperança elegeu abadessa, findo o mandato da Madre Inês de Deus355. A Madre Filipa, que já em 1535 devia ter saído para o mosteiro da Esperança, mas que a comunidade de Santa Clara do Funchal reteve por causa do “muito valimento que sua mãe tinha junto da corte de D. João III”, era rica em virtudes e muita santidade, como testemunham as religiosas daquele mosteiro: “permitiu Deus nosso Senhor e foi servido que esta divina planta viesse do seu Convento a este da Esperança, dar com a sua vida exemplo de santidade, onde, com suma alegria e contentamento, foi recebida pelas religiosas e sua mãe que, com grande alvoroço, a esperava.”356 As filhas de D. Joana, eleitas alternadamente, mantiveram nas suas mãos o governo da comunidade desde 1539 a 1550, o que mostra a influência que a nobre e distinta senhora, sua mãe, tinha como padroeira do mosteiro. 2.2. Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Alenquer Para o mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Alenquer, fundado em 1553 e povoado de religiosas em 1555,357 saíram do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Esperança “duas fundadoras, netas do capitão João Gonçalves da Câmara”358. Trata-se das Madres D. Ana do Espírito Santo e D. Maria da Assunção, esta filha de D. Joana d’Eça e de Pedro Gonçalves da Câmara, que fora abadessa no mosteiro da Esperança em dois triénios: 1539-1541 e 1548-1550359. 350 João José Abreu de Sousa, op. cit., pp. 55 - 56. Apolinário da Conceição, op. cit., p. 134. 352 Fernando da Soledade, op. cit., IV, cap. .XXVIII. 353 Soledade, op. cit., IV, cap. XXVIII. Temos algumas dúvidas quanto aos nomes das fundadoras. Os diversos autores não são unânimes. Demos prioridade ao cronista Frei Fernando da Soledade. 354 Noronha, op. cit., p. 271. 355 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 11, fol. 182; Fernando da Soledade, op. cit., IV, pp. 218-219. Tratou da transferência o licenciado Álvaro da Costa, corregedor com alçada na Ilha da Madeira, e Frei Nuno de Figueiredo que as foi buscar para as levar para o Continente. A Madre Ângela de Jesus morreu em 1570, com mais de 100 anos “dando certíssimos sinais de santidade”, tendo sido mestra de noviças. 356 BNL, Reservados, Colecção Iluminados, n.º 103. Livro da fundação, ampliação e sítio do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Esperança, 1620 e ss.; Fernando da Soledade, op. cit., IV, cap. XXVIII. 357 Apolinário da Conceição, op. cit., p. 136. O mosteiro de vila de Alenquer que Frei Apolinário da Conceição designa mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, aparece em João José Abreu de Sousa, com o nome de mosteiro de Santa Clara (op. cit., p. 56). 358 Noronha, op. cit., p. 273. 359 João José de Abreu de Sousa, op. cit., p. 57. 351 105 3. Duas fundações do mosteiro de Santa Clara no Funchal Em função do aumento populacional que se verificou na Madeira a partir de meados do século XVII e do fervor religioso que na mesma época se acentuou, a Ilha viu nascer mais dois mosteiros, fundados a partir da comunidade de Santa Clara do Funchal. São eles os mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, fundado em 1660, e o de Nossa Senhora das Mercês, em 1667. No início do século XIX, aquando da ocupação da Ilha pelos ingleses (1807-1814), sendo o mosteiro da Encarnação requerido para aquartelamento das tropas britânicas, a comunidade esteve incorporada na de Santa Clara durante sete anos, após o que regressou ao seu mosteiro. Dado que o estudo destes dois mosteiros constituirá o tema da II e III secção desta Segunda Parte, limitamo-nos por agora a esta notícia sumária. CAPÍTULO VII DECADÊNCIA 1. Condicionalismo sócio-político Em qualquer época não faltaram jovens que, chamadas a um lugar à parte, de oração e de silêncio, procuraram alegre e fervorosamente louvar o Senhor. Os mosteiros foram, e são ainda hoje, recantos de paz, onde as almas chamadas por Deus podem dilatar o seu coração em oração silenciosa e em entrega amorosa a Deus e à humanidade. Porém, condicionalismos sócio-políticos, tirando à jovem a possibilidade de decidir livremente o seu futuro, muitas vezes desvirtuaram a sacralidade vocacional. E, digamos, na ilha da Madeira, esta pressão social e familiar sentiu-se fortemente. Segundo os costumes dos séculos XVI a XVIII, a prepotência dos fidalgos, a conservação dos morgadios, a necessidade de um devoto abrigo e resguardo das filhas que não casavam, a orfandade, a viuvez foram tantas vezes razões para os familiares encerrarem nos mosteiros as jovens que, mesmo quando não professavam, ficavam como “ freiras particulares” ou simplesmente como senhoras recolhidas. Acrescia que as meninas podiam ser postas nos mosteiros com sete anos ou até menos, para ali serem “criadas para freiras”360, se essa fosse a vontade dos seus progenitores. Pelos motivos expostos e porque a partir do século XVI a cidade do Funchal se tornou ponto de passagem das armadas de todo o mundo361 e nela apareciam os mais diversos aventureiros, os mosteiros poderiam oferecer o necessário abrigo moral e social. Este contexto impôs exigências e criou condicionalismos aos quais, mesmo representando um desvirtuamento carismático, não foi possível fugir. As muitas criadas, senhoras recolhidas, jovens educandas, rendas e propriedades, lentamente, foram tirando o aroma de simplicidade, de pobreza evangélica, de austeridade de vida. O mosteiro de Santa Clara caminhou a este ritmo. Contudo, honravam-se os nobres de pôr as suas filhas em Santa Clara. 360 361 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, doc. avulso. Oliveira Marques, op. cit., II, 1984, p. 258. 106 Não havia nobre na ilha da Madeira que se prezasse do seu brasão e pergaminhos, que não mandasse pelo menos uma das suas filhas a professar no aristocrático mosteiro de Santa Clara, tivesse ou não tivesse vocação. Que admira, pois, que algumas delas, lesadas nos seus direitos familiares e postas nos mosteiros sem vocação e contra a sua vontade, ali passassem a juventude e a vida entre anseios e lágrimas? Vítimas de tradições e de costumes, de ambições de fidalgos e de esbulhos de herdeiros, dramas e tragédias domésticas que as levaram à clausura, não podiam sentir-se bem e felizes.362 E reparemos que este desvirtuamento, esta problemática vocacional atingiu no Funchal proporções consideráveis. Que admira, que, como refere o Elucidário Madeirense, “o primitivo fervor na observância das regras conventuais e antiga austeridade de vida das freiras fosse pouco a pouco resfriando?!...363 Nem nos admiremos de que algumas freiras e recolhidas levassem vida frívola e mundana; nem sequer de que algumas aventuras como a do jovem alemão que, por causa da fidalga ali recolhida, escalou a muralha, ficassem a manchar a história daquela casa religiosa364. 2. Iregularidades internas 2.1 As criadas Era habitual o mosteiro de Santa Clara, por ser de “freiras da mais alta nobreza insular”, ter criadas para o serviço comum e o serviço particular das religiosas. E as chamadas criadas particulares foram-se multiplicando. Embora este costume remonte aos primórdios da fundação, intensificou-se e tornou-se abusivo nos séculos XVIII e XIX. Neste mosteiro, “há uso e costume”, dizia um membro da comunidade, “haver criadas particulares para servirem as religiosas dele e assistir-lhes nas suas doenças e necessidades”365. Para consegui-las recorria-se a breves pontifícios que careciam de beneplácito régio e autorização do bispo da diocese. As criadas viviam no mosteiro em cela própria, sendo responsável pela sua alimentação e vestuário um leigo, normalmente familiar da própria religiosa que, para tanto, contribuía com uma quota anual366. Estas criadas serviam as religiosas nas suas necessidades e doenças e até em estado de saúde. A quantas preparavam suas refeições!... Em 1799, as Madres Francisca Maria das Mercês e Ana Emília da Santa Coleta solicitaram do Núncio Apostólico um breve para terem criadas para as servirem nas suas “necessidades e moléstias”367. Alguns anos depois, as Madres D. Ana Violante do Amor Divino, D. Emília Rosa da Encarnação e D. Helena Maria da Exaltação e outras tinham criadas para lhes fazerem “os trabalhos domésticos”368. Estas criadas multiplicaram- se no mosteiro, chegando no século XVIII a mais de cem369. Quadro nº.13 - Alguns dados estatísticos 362 Ilhas de Zargo, II, p. 717. Elucidário Madeirense, I, p. 310 Ilhas de Zargo, II, p. 716 365 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso ; AHU, Madeira, doc. 261, Elucidário Madeirense, I, p. 310. 366 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, docs. avulsos. 367 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 1, doc. avulsos. 368 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulsos. 369 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulso.; Noronha op. cit., p. 264. 363 364 107 Ano Servas ou Criadas Mulheres de fora Da Comunidade 1665 1668 4 Total Particulares 59 63 89 89 1722 100 1764 33 41 74 1840 21 21 42 Fontes: AHU, Madeira, doc. 261; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso; AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso; Noronha, op. cit., p. 264. Não era fácil às freiras fidalgas renunciarem aos seus costumes nobres. Contudo, não era esse o espírito da Regra de Urbano IV que, numa óptica franciscana, mandava cuidar das doentes “com o máximo de solicitude. Que elas sejam servidas com ardente caridade, benignidade e atenção (...) tanto no respeitante nos alimentos aconselhados pela doença, como noutras necessidades”370. Todas as criadas seriam facilmente dispensáveis, se os corações daquelas religiosas estivessem revestidos de caridade e humildade evangélica, de simplicidade e fraternidade franciscanas. Só à luz da época é possível entender, até certo ponto, que as freiras do mosteiro de Santa Clara não pudessem cuidar das suas doentes com ternura e caridosa solicitude. Complexos de “fidalguia”, comportamentos ditados pela ideologia reinante, para os quais havia breves apostólicos e beneplácito régio!... Tempos que passaram. 2.2. A presença de seculares dentro da clausura Não eram, contudo, as criadas, ao serviço da comunidade ou particulares, as únicas pessoas leigas no interior da clausura. Desde a origem do mosteiro se assistiu à presença de senhoras recolhidas e de servas alojadas, que ali tinham morada habitual, como por exemplo D. Constança, filha de João Gonçalves da Câmara, que entrou com as fundadoras. Em 1806, D. Luísa Júlia de Freitas Esmeraldo, filha de Bento João de Freitas Esmeraldo, fidalgo escudeiro e professo na Ordem de Cristo, de 30 anos de idade, solicitava a entrada no mosteiro, como recolhida, onde pretendia “passar o resto da sua vida, pois que, ainda que não seja religiosa, no mesmo estado de recolhida (...) pode servir a Deus”; ficava assim ao abrigo dos problemas a que “no mundo está sujeita uma infeliz órfã”371. E outros casos poderíamos referir, verificados antes e depois dos apresentados. Também ao longo dos séculos se foi generalizando o costume de senhoras piedosas da Ilha, geralmente nobres, se munirem de breves pontifícios com o respectivo beneplácito régio, para poderem entrar nos mosteiros, por alguns dias, para sua consolação espiritual. Permitiase-lhes fazer oração com a comunidade, com ela tomar as refeições e ter recreação372. Estes breves estendiam-se geralmente a dez anos, podendo as solicitadoras entrar duas, três e até seis vezes cada ano e ali ficar os dias nele determinados, por vezes dez; exceptuavam-se as épocas penitenciais, de maior recolhimento e silêncio, Advento e Quaresma. Estas senhoras faziam-se acompanhar de algumas matronas e, por vezes, de alguma filha e criada. Tais entradas tornaram-se bastante frequentes, acentuando-se nos séculos XVIII e XIX. D. Isabel Ana de Sá Meneses Acciaiuoli, em 1796, obteve um breve de Sua Santidade para poder entrar três vezes cada ano, pelo espaço de dez dias, não só no mosteiro de Santa Clara mas também 370 RU 4, XII, 22, in FF II, p. 355. AHU, Madeira, doc. 1643. 372 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulsos. 371 108 nos da Encarnação e Mercês, podendo levar consigo três matronas e uma das filhas, onde ficariam de manhã até ao pôr do sol373. Em 1813, a senhora marquesa D. Joana Bernarda de Lorena, e antes e depois dela muitas outras, gozaram deste mesmo privilégio374. Também as mães das religiosas professas obtinham, por igual processo, licença para entrar no mosteiro a visitar as suas filhas, permanecendo no interior da clausura por alguns dias. Os breves apostólicos, com o beneplácito régio dos palácios de Queluz, Nossa Senhora da Ajuda, Bemposta e até do Rio de Janeiro, multiplicaram-se. Houve mães que, “por amor maternal e para sua consolação espiritual”, tiveram autorização para entrar “três vezes por ano” pelo espaço de três dias, e até “uma vez por mês”, acompanhadas de outras filhas, tias, sobrinhas e cunhadas375. Foi o caso da D. Joana Francisca de Carvalhal de Britto, D. Isabel Jacinta Esmeraldo, viúva do capitão-mor Bento João de Freitas Esmeraldo, D. Maria Joaquina Valéria, D. Maria Balbina, D. Ana Augusta de Ornelas e tantas outras. Esta nobre senhora, em 1828, obteve licença de entrar com suas sete filhas, cunhada e sobrinha, três de cada vez, três vezes ao ano durante três anos, para visitar uma sua filha, Maria Clementina do Menino Jesus376. Poderíamos ainda acrescentar a presença de educandas, “moças nobres”, que chegaram a ser muitas e que tantas vezes dificultavam a vida dentro da clausura!377. É evidente que tudo ajudava ao afastamento da vida de austeridade com que se iniciara aquele mosteiro. Está fora de dúvida que o secularismo se foi acentuando dentro da comunidade e com ele muitos males nasceram. 2.3 O abuso dos locutórios: excesso de visitas Não faltam escritores, alguns dos quais turistas, que, referindo-se ao mosteiro de Santa Clara no final do século XVIII e século XIX, abordam outro aspecto degenerativo do carisma próprio: o abuso dos locutórios. No século XIX, sobretudo, as visitas tornaram-se não só frequentes como impróprias. Em certos dias, escreveu Emily Shore em 1839, a afluência ao mosteiro chegava a atingir duzentas pessoas. No trajecto dos turistas, a passagem por Santa Clara era ponto de referência. Algumas destas visitas tinham como motivação o contacto com freiras de particular beleza como eram as Madres Maria Clementina, Cândida Luísa, Genoveva, Helena Maria da Exaltação e outras. Sobretudo Maria Clementina, loura e de olhos azuis, de maneiras delicadas, mas afectadas e mundanas, suscitava admiradores. As visitas começavam pela entrada no locutório e entrega de ofertas às freiras e terminavam com a aquisição de recordações: florinhas feitas de penas pintadas, flores de cera, gulodices ou compotas. As conversas eram longas, geralmente banais, onde não faltavam os galanteios. Depois apareciam os doces e as bebidas. Na expressão de Júlio Dantas, “uma espécie de chá das cinco, oferecido pelas freiras na grade grande, a todos os visitantes assíduos”378 . Neste ambiente, mais mundano que conventual, gostavam as freiras de cantar para os seus admiradores. Maria Clementina que, segundo o testemunho dos seus familiares, aos cinquenta anos, com modos mais próprios da corte que do claustro, e vestindo não o burel mas vestuário requintado, ainda ostentava a sua excepcional beleza, gostava de cantar acompanhada de guitarra379. 373 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 1, doc. avulso. AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 3, docs. avulsos. 375 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 2 e 3, docs. avulsos. 376 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso 377 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso.; AHU, Madeira, doc. 4576 e 4578. 378 António Ribeiro Marques da Silva, Apontamentos sobre o quotidiano madeirense, Lisboa 1994, p. 125. 379 António Ribeiro Marques da Silva, op. cit., p. 105. 374 109 Decorria a primeira metade do século XIX. A autoridade régia facilitava o evoluir destes desregramentos. Em 1836, o vigário capitular em cumprimento das ordens de D. Maria II, comunicava às religiosas: “querendo a Rainha que gozem daquelas comodidades que, de certo modo, suavizam a vida claustral”(...), achou por bem determinar “que no tempo do Advento e Quaresma possam as religiosas desse convento gozar de parlatórios e comunicar com os seus parentes e mais pessoas de seus conhecimentos”380. Não podendo a autoridade eclesiástica subtraír-se ao cumprimento da ordem régia, mandou que a abadessa “convocasse todas as suas súbditas e fizesse ler o referido ofício para que todas ficassem inteiradas do seu conteúdo”381. A abertura excessiva do mosteiro a olhos estranhos foi progressiva, atingindo maiores proporções no século XIX, como vimos dizendo. Criou-se então um ambiente propício a irregularidades a que o Padre Fernando Augusto da Silva se refere no Elucidário Madeirense. O ambiente mundano, generalizado nos mosteiros da Europa, chegara à Madeira. O mosteiro de Santa Clara do Funchal sofreu, em cheio, a influência desta ideologia. Também certas sessões literárias e culturais que se vinham fazendo em certos mosteiros, mas que nada tinham de religioso, eram nocivas. Contavam com a presença de homens de letras, alguns, escritores de talento. Porém, tais encontros não passavam de exibições literárias e musicais, que em nada contribuíam para o crescimento humano e espiritual da comunidade e que geralmente degeneravam em veleidade. No mosteiro de Santa Clara estes círculos literários tiveram lugar. Algumas freiras acompanhando esta evolução, tornaram-se leitoras entusiastas de obras profanas como sucedeu com a Madre Maria Clementina, grande admiradora de Madame Stäel. 2.4. Saídas da clausura A partir das últimas décadas do século XVIII, as saídas da clausura tornaram-se frequentes. A situação ia-se degradando progressivamente. Em 1835 a Madre Maria Clementina do Menino Jesus fez saber à autoridade eclesiástica “que tinha uma imperiosa necessidade de sair a tomar ares de campo por alguns meses”382, por causa da moléstia de que sofria, diarreia crónica, conforme o atestado do Dr. Luís Henriques, médico e cirurgião na cidade do Funchal383. Bem inserida no novo sistema liberal, entendia que o vigário geral, “conforme o espírito do feliz sistema que nos rege e leis novíssimas”384, sem recurso a outras autoridades, podia permitir a sua saída. Obteve, de facto, licença de sair “e permanecer fora da clausura, entregue aos desvelos de seu irmão e tia, sem limitação de tempo”385, enquanto durasse a doença. Em 1836 a Madre Helena Maria da Exaltação pedia para “deixar a clausura por algum tempo para procurar fora dela remédio profícuo à sua saúde”, pois necessitava de “dar passeios, de ares de campo, de banhos de mar”. Com licença pontifícia e régia esteve, pois, em casa do seu irmão, o capitão João Diogo de Meneses, durante quatro meses”386. Dois anos mais tarde, alegando “ser direito natural de todo o indivíduo procurar os meios da sua conservação”, obteve nova licença: “sair para casa de sua prima D. Maria Madre de Deus 380 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc avulso : Ofício do P. Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro, provisor do bispado, de 22 de Novembro de 1836, para a abadessa do mosteiro de Santa Clara. 381 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4 , doc. avulso: Ofício do P. Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro, (...) para a abadessa do mosteiro de Santa Clara 382 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Carta da Madre Maria Clementina do Menino Jesus para o vigário geral do bispado, de Abril de 1835. 383 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Atestado médico passado pelo Dr. Luís Henriques de 21 de Março de 1835. 384 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Carta da Madre Maria Clementina do Menino Jesus (...) para o vigário geral do bispado, de Abril de 1835. 385 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso: Alvará de António Alfredo, vigário geral, de 11 de Abril de 1835. 386 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso. 110 Faria Bettencourt, assistente em casa de seu irmão, o morgado Joaquim José de Faria Bettencourt, morador no Funchal, pelo tempo que for necessário para tratar da sua saúde”387. E os casos iam-se repetindo. A Madre Augusta Carlota do Céu solicitou a D. Maria II o beneplácito régio para o breve pontifício que a autorizava “a permanecer mais um ano com os familiares em tratamento das suas moléstias”388. O que é interpelante não é o facto de haver necessidade, reconhecida pelo médico, de sair da clausura, para restabelecimento da saúde, mas sim a assiduidade com que isso acontecia e, mais ainda, a ideologia que, alguns pedidos reflectem. Por exemplo, a Madre Helena Maria da Exaltação, já referida, entendia que “conforme a liberal carta constitucional do excelso Imperador do Brasil, o senhor D. Pedro IV, de eterna saudade, deu a liberdade aos portugueses, também as religiosas deveriam usufruir dessa mesma bem entendida liberdade”389. Em 1851, a Madre Luciana Joaquina da Conceição enviou à rainha, para confirmação, o breve apostólico já obtido, que lhe concedia licença de permanecer fora da clausura durante seis meses390. À medida que a ideologia liberal ia penetrando no mosteiro, é natural que se mudassem mentalidades e ideais. Se o encanto pelo Senhor, a intimidade com Deus, não era em cada religiosa motivação geradora de felicidade, de alegria, bem estar e harmonia íntima, não admira que outras necessidades se criassem. Se Deus não é tudo em nós, a vida deixa de ter encanto e beleza. 2.5 Tentativas para deter o mal Algumas abadessas, desejosas de um bom ambiente e tentando deter a onda decadente, empenharam esforços para evitar abusos, eliminando as suas causas. Abundam as cartas para a autoridade eclesiástica e régia, procurando solução para estes graves problemas. Assim, a 18 de Fevereiro de 1819, o bispo do Funchal, a pedido das religiosas, enviou uma súplica a D. João VI com a informação de que deviam ser atendidas. Queixavam-se de que, “vivendo em tranquilidade e paz (...)” eram perturbadas por algumas moças nobres que, “por ordem régia têm entrado no convento a título de educandas”391. Sem vocação religiosa e “gostando dos encantos do mundo,” a sua presença era inconveniente. Suplicavam, pois, ao monarca, “a especial graça de não conceder licença a moça alguma daquela Ilha, seja de que qualidade for, para entrar no mosteiro como educanda”, pois que, a sua presença era causa de “alterar a caridade fraterna e apartar as religiosas do retiro e oração a que vivem aplicadas na fiel observância das suas regras”392. E, porque o abuso continuou, mais uma carta chegou a Sua Majestade, em que se detecta uma situação aflitiva e preocupante: “ (...) rogo a V. A. R. que, por sua piedade, se digne cortar absolutamente toda a admissão ulterior de outras quaisquer pessoas seculares que, por bem triste experiência, vão disseminar no claustro males antipáticos (...) males que, deixados a vigorar, causarão, sem dúvida, irreparáveis e bem visíveis danos”393. Desejosa de pôr cobro a tais males, a abadessa termina deste modo: “Peço a V. A. R. queira, por sua religiosa piedade, expedir as providências mais eficazes aos dois assuntos que a suplicante apresenta”394. 387 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso. AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso. AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso. 390 AHDF, Conv. S. Clara. F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso. 391 AHU, Madeira, doc. 4578. 392 AHU, Madeira, doc. 4578. 393 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso. 394 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso. 388 389 111 Era tarde. O secularismo fora-se impondo, crescendo e avassalando o ambiente, em detrimento do carisma próprio. Como se foi diluindo o ambiente de oração, de silêncio, de fraterna simplicidade, de encanto pelo Senhor, por tudo o que é belo e bom!?... A 1 de Junho de 1825, do palácio de Bemposta, acusava-se a recepção de um requerimento da abadessa e religiosas do real mosteiro de Santa Clara do Funchal que, depois de bem analisado, teve a seguinte resposta: “Houve o Senhor por bem, determinar que se conserve o referido mosteiro na sua primitiva instituição, não sendo nele admitidas seculares, senão as que se proponham à vida religiosa”395. Nesta resposta régia está patente a gravidade da situação. Não poderão detectar-se tentativas de transformação do mosteiro em simples recolhimento? Se isso não aconteceu em 1825, foi porque na alma da abadessa e da sua comunidade houve alguma inquietação e desejo de fidelidade ao compromisso assumido. Não fora isso e o mosteiro de Santa Clara do Funchal teria conhecido outro destino ainda antes da extinção das Ordens Religiosas pelas leis liberais. 3. O mosteiro de Santa Clara nos fins do Século XVIII: Crise espiritual e económica À sobriedade dos primeiros tempos seguiu-se a prosperidade do século XVII, que se traduziu em opulência no seguinte: os rendimentos eram abundantes, o mosteiro pôde realizar grandes obras, e a comunidade atingiu o número máximo de religiosas, cento e setenta, em 1722396. Simultaneamente, as religiosas foram-se deixando influenciar pela ideologia materialista da época em detrimento da sua vida espiritual. 3.1. Crise espiritual Com o século XVIII, nasceu uma nova mentalidade, como consequência de uma nova ideologia. O cientismo com o seu gosto pelo saber, o criticismo agnóstico que se traduzia na falta de fé, o secularismo, o exagerado exibicionismo, iam dominando a sociedade e tomando o lugar do sagrado. Toda esta ideologia e doutrina foi entrando no mosteiro, traduzindo-se em formas concretas: as freiras, deixando o burel cor de cinza de Santa Clara, vestiram-se de seda azul arrastando pomposas caudas, adoptaram modas e costumes mundanos, entraram num letargo espiritual que se concretizou na decadência da virtude e da disciplina conventual, males que as cartas de D. Gaspar Brandão e D. José da Costa Torres, bispos do Funchal, deixam transparecer397. Evidentemente, que o resfriamento do fervor não começou no século XVIII. Desde há muito, no mosteiro de Santa Clara, estavam latentes as causas da decadência que agora se concretizava. As muitas criadas que o Elucidário Madeirense apelidava de “imperdoável abuso”, a presença de freiras sem vocação, de senhoras recolhidas, de educandas e outras arbitrariedades, lentamente, foram afastando a comunidade do caminho certo. Se atendermos ao estrato social donde provinham as religiosas e com o qual mantinham relações exageradas, apesar da clausura, facilmente compreenderemos a influência que a sociedade exerceu sobre elas. O cronista Frei Fernando da Soledade, falando da virtude, da santidade das primeiras religiosas e da fama do mosteiro de Santa Clara, nos anos que se seguiram à fundação, quase 395 AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 3, doc. avulso. Noronha, op. cit., p. 264. 397 AHU, Madeira, doc. 260 –261 e 842. 396 112 em tom profético, escreveu: “(...) será lastima que o descuido das preladas, ocasione alguma relaxação, por onde venha a descair desta ilustre perfeição”398. È um facto que o espírito de oração se foi perdendo, com o consequente enfraquecimento da intimidade com Deus, que a prática das virtudes humanas e cristãs se foi descurando, que a felicidade interior de cada religiosa foi resfriando. Daí a procura de compensações, que se traduziram em vaidades, amizades mundanas, vida superficial. Não é, pois, sem razão, que o P. Fernando Augusto da Silva, autor do Elucidário Madeirense, insiste, referindo-se ao ambiente da comunidade nos século XVIII e XIX, na falta de fervor, fuga à austeridade de vida, inobservância das regras conventuais, abusos e escândalos que exigiram a intervenção da autoridade eclesiástica e a aplicação de penas canónicas. Tempo houve em que o viver das freiras não se distinguia do resto da sociedade a que pertenciam399, diz o mesmo autor. Nem lhes faltou o tabaco400, cujo uso se generalizou na sociedade de então, pelas suas propriedades medicinais, especialmente como analgésico, chegando, contudo, a ser consumido viciosamente. A partir de meados do século XVIII, o uso do tabaco no mosteiro tornou-se habitual. A abadessa oferecia-o às freiras pelo Natal, ano novo, dia de Reis, festa da Madre e outras mais. Uma grande maioria gostava de “cheirar tabaco”. Quando em 1820 houve eleição de abadessa, o Custódio Franciscano queixou-se da “(...) decadência da virtude e da disciplina regular”401. Contudo, não duvidamos de que, entre formas decadentes de virtude e fugas ao carisma próprio, houvesse baluartes de santidade, almas de eleição que embalsamavam a comunidade e o exterior com o bom aroma da virtude. Havia santas, sem dúvida. No meio de uma certa frivolidade, de irregularidades e dispersão, também ali morava o espírito de oração e a intimidade com Cristo em muitas religiosas. Ao lado das pouco fervorosas, houve baluartes de fé, almas santas. 3.2. Crise económica Podemos afirmar que, no mosteiro de Santa Clara, no início não havia preocupação de lucros, desejando as religiosas obter somente o necessário para a sua subsistência. Porém, ao longo dos anos, lamentavelmente, foi-se acentuando um certo espírito lucrativo, diremos mesmo, empresarial, que, obviamente, foi enfraquecendo a sensibilidade espiritual. À prosperidade do século XVII e primeira metade do XVIII, seguiu-se uma crise económica que se foi agravando, sem que ninguém conseguisse detê-la. Para esta crise, podemos apontar razões de varia ordem: as leis pombalinas desfavoráveis aos conventos que, cerceando seus direitos e privilégios, lhes reduziram os rendimentos; a ganância dos procuradores que em pouco tempo enriqueciam à custa do mosteiro; a má administração de algumas abadessas e escrivãs; as más colheitas, resultantes de irregularidades climáticas, na medida em que diminuíam os rendimentos em géneros a entregar à comunidade, dado o regime de meias e rendas pagas em géneros; aumento de preços, resultante de conflitos bélicos como sejam a Guerra dos Sete Anos e consequente guerra dos corsários no Atlântico, bem como a guerra da independência das colónias inglesas da América do Norte, que, afectando grandemente o comércio da Ilha, condicionavam e limitavam a exportação. 398 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 353. Elucidário Madeirense, I, p. 310. Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 75. 401 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., Livro das Eleições das Abadessas e mais oficiais deste mosteiro de Santa Clara, ano de 1733 e ss; João José Abreu de Sousa, op. cit., p. 49. 399 400 113 Assim, a partir de 1770, as receitas foram diminuindo e, não raro, nem sequer cobriam as despesas. Vejamos: Quadro nº.14 - Desequilíbrio financeiro Ano Rendimento/réis Despesa/réis Saldo Negativo 1773 11 157 568 9 553 565 1774 8 925 726 9 667 276 750 550 1775 11 073 740 10 419 850 1776 8 874 836 9 367 548 482 612 1777 5 491 641 9 001 599 3 509 958 1778 10 108 686 8 999 001 1834 7 163 787 8 485 816 1 322 029 1835 6 781 761 8 686 833 1 905 072 Fontes: AHU, Madeira, doc. 627; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 67. Não paginado. O maior défice verificou-se em 1777, não porque tivesse havido aumento de despesas mas porque as receitas desceram para quase metade, talvez porque nesse ano não tivesse sido possível a exportação do vinho, dado os conflitos políticos e bélicos que então deflagravam e que tanto afectaram o comércio intercontinental. Quase imobilizaram o porto do Funchal, determinando não só uma quebra na vinda dos indispensáveis cereais e outros mantimentos mas também a exportação de produtos da Madeira, particularmente do vinho, o que criou situações drásticas que se traduziam em dificuldades de toda a ordem e até em períodos de fome na Ilha. As dificuldades eram reais e graves. Em 1781, na opinião do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, havia problemas económicos que afectavam o viver quotidiano das religiosas. Quando a 21 de Julho daquele ano, para satisfazer o pedido da rainha D. Maria I, D. Gaspar Brandão enviou ao ministro Martinho Melo e Castro um relatório sobre o mosteiro, que fazia acompanhar da relação nominal das noventa e duas religiosas, falou nestes termos: “(...) o sustento das religiosas com que lhe contribui a comunidade diariamente (...) manifesta a penúria com que são assistidas (...) e, na doença, se lhes não dá mais coisa alguma senão a mesma porção e a mesma qualidade costumada no tempo da saúde (...)”.A mesma dificuldade havia na compra de medicamentos e vestuário, pelo que as religiosas não queriam que se aceitassem noviças, pois diziam: “quantas mais freiras existirem, maiores serão os gastos da comunidade”402. Quando em 29 de Janeiro de 1832 foi eleita como abadessa a Madre D. Maria Júlia do Espírito Santo, o mosteiro atravessava um período muito difícil. No final do segundo ano do seu governo (1834), o saldo negativo atingiu 1.322.019 réis, tendo o mesmo, no fim do terceiro ano, aumentado para 1.905.072 reis403. E, porque os gastos eram realmente grandes e as receitas diminutas, houve necessidade de aumentar o dote com que cada religiosa entrava por ocasião da sua admissão. Segundo o Elucidário Madeirense, no segundo quartel do século XIX, passou para 800 mil reis, além de outras despesas, pelo que a entrada de uma freira não custava menos que um conto de reis”,404 valor muito elevado, que mereceu ao mosteiro censuras eclesiásticas. Em carta de 22 de Agosto de 1814, D. Frei Joaquim Meneses e Ataíde, Arcebispo de Meliapor que governou a diocese do Funchal como vigário apostólico de 1811 a 1819, procurou defender o mosteiro, junto da autoridade régia, subtraindo-o ao pagamento de dízimos a que a Junta da Real Fazenda da Ilha pretendia obrigar as religiosas. “Não sabemos”, diz, “em que se fundamentam os actuais administradores dos dízimos, para quererem exigir 402 AHU, Madeira, doc. 620. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 67. Não está paginado. 404 Elucidário Madeirense, I, p. 310. 403 114 das freiras, os dízimos dos frutos das propriedades que elas administram, quando é certo que, desde tempos antiquíssimos, elas gozam do privilégio de os não pagar, privilégio que lhes tem sido muitas vezes disputado, mas que sempre lhes é concedido por sentença dos tribunais”405. CAPÍTULO VIII O MOSTEIRO DE SANTA CLARA NA POSSE DO ESTADO. SITUAÇÃO ACTUAL 1. O mosteiro na posse do Estado 1.1.Extinção das Ordens Religiosas (1832-1834) Desde há muito, o regalismo, defendendo os direitos do Estado sobre a Igreja, se fazia sentir na Europa. Na Áustria, o imperador José II, a 12 de Janeiro de 1782, suprimiu muitos conventos e mosteiros, sobretudo de religiosas contemplativas. Em França, com a Revolução Francesa, foram igualmente suprimidos os conventos por lei de 17 de Agosto de 1792406. Esta onda anti-religiosa foi avançando para ocidente e chegou a Portugal. O advento do Liberalismo marcou o início da segunda fase da história das Clarissas, durante a qual todos os mosteiros foram suprimidos em virtude de circunstâncias políticas adversas. O programa anticongreganista liberal começou nos Açores em 1832, quando D. Pedro dominava apenas esta parcela do território nacional, e estendeu-se ao continente depois da conquista de Lisboa pelas tropas liberais a 24 de Julho de 1833407. Por decreto de 5 de Agosto de 1833, não seria permitida aos Institutos Religiosos a admissão ao noviciado, nem a emissão de votos, “na previsão da extinção gradual das 405 AHU, Madeira, doc. 3 563. Lazaro Iriarte, ofm cap., op. cit., 504; Historia Universal, adaptada e revista por Jorge Borges Macedo, Lisboa, II, 1994, pp. 196 e 198 – 205. 407 António Montes Moreira, op. cit., p. 225. 406 115 Ordens” 408. Logo em seguida, o decreto de 28 de Maio de 1834, de Joaquim António de Aguiar, promulgado por D. Pedro a 30 de Maio de 1834409, ordenou a extinção imediata de todas as casas religiosas masculinas de Portugal e Ultramar410. O decreto que afectou quatrocentas e uma casas religiosas, incluindo colégios e hospícios, aboliu todos os mosteiros e conventos masculinos e dispersou a sua população411. Porém, não atingiu os institutos femininos que ficaram sujeitos à lei de 5 de Agosto de 1833. Os mosteiros femininos iam-se extinguindo por si próprios, uma vez que não podiam receber candidatas. Quando morresse a última religiosa, o Estado procedia à ocupação do edifício. Em muitos casos, não se esperou pelo último falecimento; quando o número baixava para quatro destinava-se-lhes um pequeno sector da casa e o resto começava, por orientação das autoridades civis, a ser utilizado para outros fins412. Alguns mosteiros de Clarissas continuaram a receber candidatas, que usavam, quando possível, o hábito religioso e viviam com as religiosas, comprometendo-se com o carisma da comunidade. Pelo menos três mosteiros mantiveram-se deste modo até 1910-1911: Nossa Senhora das Mercês do Funchal, Santíssimo Sacramento do Louriçal e o de Lisboa. 1.2. Supressão do mosteiro de Santa Clara (1890) À data do decreto da extinção, as religiosas professas do mosteiro de Santa Clara não eram mais de umas cinquenta, poucas e envelhecidas. A última noviça, Genoveva Carlota do Monte, havia professado a 22 de Dezembro de 1831413, a última profissão antes do decreto da extinção. A 15 de Novembro de 1890 morreu a última religiosa professa do mosteiro de Santa Clara, a Madre Maria Amália do Patrocínio414, ficando um grupo de pupilas, servas e senhoras recolhidas, num total de trinta e uma. Como já foi referido, a partir do quinto capitão donatário, os condes e marqueses de Castelo Melhor, sempre se consideraram, não só padroeiros do mosteiro e respectiva igreja mas seus legítimos senhores e proprietários415, pelo que, após a extinção das Ordens Religiosas em 1834, reivindicaram a sua posse. Em 1867, depois de um pleito judicial intentado em 1862, em que demonstraram o direito que lhes assistia à propriedade do mosteiro, registaram-no na Conservatória da Comarca do Funchal.416 Por ocasião da morte da última religiosa, podiam os marqueses de Castelo Melhor ter-se legitimamente apropriado do edifício, o que não aconteceu, caindo o imóvel em poder do Estado. Apressaram-se as autoridades a mandar concluir o inventário dos bens daquele mosteiro, “não só para evitar-se que os empregados encarregados daquele serviço tenham de entrar repetidas vezes naquela casa, onde vivem recatadas muitas senhoras de diferentes idades mas também, para que, recebida nesta Secretaria de Estado uma cópia do inventário, possa dispor-se convenientemente das alfaias, vasos sagrados, paramentos e mais objectos de culto que ali se acham, em conformidade com o artigo décimo das instruções de 31 de Maio de 1862”417. 408 Oliveira Marques, op. cit., III, p. 115. Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, p. 202. Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, pp. 202 - 203. 411 Oliveira Marques, op. cit., II, p. 115. 412 Atónio Montes Moreira, ofm, op. cit., pp. 225 - 226. 413 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. S. Clara F., L 28, Livro dos autos de perguntas, feito no segundo triénio da Madre D. Coleta Rosa de Santo Agostinho, sendo escrivã Margarida Jacinta de Santa Rosa, ano de 1742. 414 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. 415 Elucidário Madeirense, I, p. 309. 416 Elucidário Madeirense, I, p. 309. 417 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. 409 410 116 1.3.Encerramento e reabertura da igreja de Santa Clara Nos primeiros dias de Março de 1891, tornou-se voz corrente, que o Estado ia proceder ao encerramento da igreja de Santa Clara418. Desafogando a sua mágoa e fazendo-se intérprete do desejo da população do Funchal, o bispo da diocese, D. Manuel Agostinho Barreto, no ensejo de impedir o acontecimento, escrevia às autoridades: “Aquela igreja é necessária, não só às pessoas recolhidas naquela casa em número de trinta e uma, como também às muitas pessoas de toda a cidade e especialmente da vizinhança, que costumam satisfazer ali os seus preceitos religiosos”419. Apesar dos esforços do prelado o facto consumou-se. Por essa razão, em 10 de Abril de 1891, seguiu para o rei uma exposição do visconde Dr. João Barbosa de Mattos e Câmara, reitor da confraria do Senhor dos Passos, onde se lê que: “já a igreja do extinto mosteiro de Santa Clara, se encontrava fechada, tendo sido removido o sacrário e algumas alfaias de culto e suspensos os actos religiosos na mesma igreja”420. A igreja de Santa Clara, onde se celebrava missa todos os dias a hora certa, onde eram feitas com notável esplendor muitas festividades religiosas e a referida confraria tinha a sua sede, não podia permanecer fechada. Insistia, portanto, Matos e Câmara em que se dignassem “conceder-lhes o uso da igreja, das alfaias e objectos de culto que a ela pertencem, e ainda as pequenas casas que servem de moradia aos respectivos empregados, a fim de que ali se possam continuar a celebrar os actos religiosos como dantes (...) sob a orientação do ordinário da diocese”421. A 14 do mesmo mês, as autoridades do Funchal reforçaram o pedido422. A resposta de Lisboa não se fez esperar. A 2 de Maio, em cumprimento do telegrama de 24 de Abril, emitido pelo Ministério da Fazenda, as autoridades competentes, em acto público, fizeram a entrega das chaves ao reitor da confraria do Senhor dos Passos423. Deste acto lavrou-se uma acta, a 24 de Maio, que foi assinada pelo Dr. João Barbosa de Mattos e Câmara, pelo tesoureiro, secretário e primeiro oficial da Repartição da Fazenda Distrital do Funchal, Francisco Joaquim Pestana. 2. O edifício. Seu destino e utilidade 2.1. Recolhimento Quando a 15 de Novembro de 1890 morreu a última religiosa professa, a Madre Maria Amália do Patrocínio, ficavam no edifício treze pupilas, onze servas e sete senhoras recolhidas, sob a direcção de uma regente, a pupila Domiciana Ifigénia de França Bivar424. Desejosas de ali permanecerem, a 25 desse mesmo mês, as pupilas e servas fizeram seguir para Lisboa um requerimento em que suplicavam que lhes fosse concedida, “à semelhança do que já em 1888 acontecera com o mosteiro da Madre de Deus da cidade de Guimarães e outros, a graça de poderem conservar-se no edifício com o usufruto dos móveis ali existentes”425. Nesse mesmo dia, um outro requerimento foi expedido, este das senhoras ali 418 419 420 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. AHDF, Conv. S. Clara F., caixa 27, capilha 4, doc. avulso. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. . 421 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. 423 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. IV/B/27/36. A 23 de Abril, a Confraria do Senhor dos Passos recebeu informação particular de que estava autorizada, provisoriamente, a fazer uso da igreja, sacristia e anexos indispensáveis, ficando a concessão definitiva dependente da resolução das cortes legislativas. 424 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. 425 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa.2072, doc. avulso. 422 117 recolhidas. Apressavam-se a solicitar licença régia de permanecer “naquele lugar que tinham escolhido para refúgio do mundo, pois, previam ser convidadas a sair”, diziam, “se Vossa Majestade, não vier obstar a que lhes seja imposto mais este doloroso sacrifício”426. Por despacho de 5 de Dezembro de 1890, todas elas, pupilas, servas e senhoras, foram autorizadas a permanecer no edifício e, a 16 de Janeiro do ano seguinte, era concedido um subsídio mensal às mais necessitadas427, de acordo com o artigo quarto do decreto de 28 de Maio de 1834428. Desta forma, passava o extinto mosteiro a recolhimento provisório, subordinado ao bispo do Funchal, pois que, dizia o ministro e secretário dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça: “pela sua elevada posição, especial competência e autoridade, é quem deverá superintender no governo interno daquela casa, enquanto for habitada por pessoas que ali se conservam por autorização superior”429. Quando a 5 de Agosto de 1896 se fazia a entrega provisória do edifício e dependências do suprimido mosteiro à Sociedade Auxiliar das Missões Ultramarinas, entidade civil correspondente à Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria, exceptuava-se “a parte do convento conhecida pela denominação de dormitório da calçada de São Pedro (…), julgada indispensável para a habitação das pupilas (...) e recolhidas (...) da qual a mesma Associação, só poderá tomar posse por falecimento da última”430. Nessa data eram vinte e nove as recolhidas, sendo a maior parte delas pobres e idosas, pelo que, na opinião de Luís do Rego Barreto, delegado do Tesouro, protegê-las seria “um acto de beneficência e de justiça”, até porque algumas delas ali haviam entrado muito novas, “mal conhecendo a vida exterior”431. Segundo uma relação da Repartição da Fazenda do distrito do Funchal, em 22 de Maio de 1897, residiam no recolhimento, nove pupilas, nove servas e onze senhoras, uma das quais D. Maria Isabel de Quental, admitida a 20 de Maio de 1896. Era um total de vinte e nove pessoas sendo a mais nova, Ester de Freitas da Silva, de quinze anos, e as restantes de idade variável entre os vinte e nove, e oitenta e seis anos. Em 1940, segundo as Ilhas de Zargo, informação confirmada pelas Franciscanas Missionárias de Maria, então no edifício, ainda ali se encontravam algumas pupilas. 2. 2. Colégio ao serviço da Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas Por decreto de 12 de Março de 1896 e nos termos do artigo décimo primeiro da carta de lei de 4 de Abril de 1861, o edifício do extinto mosteiro de Santa Clara foi cedido à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas. Destinava-se à fundação de um estabelecimento ou colégio de educação, um sanatório para as irmãs voltadas de África refazerem a saúde e as forças, uma escola preparatória para as aspirantes a irmãs missionárias que, se o desejassem, seguiam para o instituto de formação em Carnide, um asilo para raparigas pobres e ainda outras obras de caridade, se para tanto chegassem os meios432. A concessão era provisória e com a cláusula de ser o decreto sujeito à aprovação das cortes e reversão para o Estado, sem indemnização alguma, no caso de não ter as mencionadas aplicações, ou quando ao Estado conviesse dar outra aplicação ao edifício em causa433. A 5 de 426 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. 428 Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, Legislação Portugueza, 42 (1833-1834)189. Citado por Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, p. 202. 429 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. 430 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. 431 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. IV/B/47/33. 432 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso: Carta de Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro de l2 de Março de 1896. Esta portaria foi publicada no Diário do Governo, n.º 63, de 18 de Março de 1896. 433 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa. 2072, doc. avulso. 427 118 Agosto daquele mesmo ano procedeu-se, na presença do vigário geral, o Dr. João Joaquim Pinto, na qualidade de delegado do bispo do Funchal, do procurador da Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, Dr. Romano Santa Clara Gomes e do delegado do Tesouro do distrito do Funchal, Barros Lima, à entrega oficial do edifício, dependências e cerca.434 A condessa da Silva Sanches, na qualidade de vice-presidente da Associação, a 14 de Julho de 1896, constituira o Dr. Romano Santa Clara Gomes, seu procurador, a fim de tomar posse do mosteiro de Santa Clara em favor da dita Associação, em conformidade com o decreto de 12 de Março daquele ano435. Para assumir esta responsabilidade, solicitou o Dr. Romano a disponibilidade da Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria que, apesar da sua insistência, só em 18 de Janeiro de 1898, depois de bem ponderado o assunto, teve uma resposta favorável e definitiva. Em Outubro de 1898 começou a funcionar o Colégio de Santa Clara, que iria servir as famílias da Ilha, particularmente da cidade do Funchal, até 1910, ano em que, proclamada a República, as religiosas foram convidadas a retirar. 2.3. Novamente ao serviço da Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas O antigo mosteiro foi então abandonado à cobiça de quem quis apoderar-se dos seus mais preciosos valores artísticos436. Nos anos que se seguiram à proclamação da República, o imóvel foi concedido sucessivamente à Câmara Municipal do Funchal, à Santa Casa da Misericórdia e à Associação Auxílio Maternal, para fins específicos. A pretexto de obras, que não chegaram a realizar-se, foi demolida uma parte considerável do mosteiro, “praticando-se então actos de verdadeira destruição e vandalismo”437 e de desrespeito por aquele santuário artístico, simultaneamente religioso e pátrio. Posteriormente, por não se haverem realizado as obras projectadas e não se ter cumprido o fim específico da concessão438, o imóvel voltou à posse do Estado. Em 1926, havendo o Governo tomado o compromisso de fortalecer a obra missionária nas colónias portuguesas, por decreto de 25 de Janeiro de 1927 e portaria de 12 de Junho do mesmo ano, o Ministério das Finanças autorizava a cedência do antigo mosteiro de Santa Clara ao Ministério das Colónias, para ser de novo entregue à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas439. Chamadas novamente, as Franciscanas Missionárias de Maria para ali regressam em 1928, retomando as suas funções pedagógicas e apostólicas. O Colégio de Santa Clara começou, a partir de então, em novos moldes de funcionamento 2.4. Obras de restauro Após o regresso das Franciscanas Missionárias de Maria, o edifício, classificado como Monumento Nacional pelo decreto 30 762 de 26 de Setembro de 1940440 e reclassificado a 18 de Agosto de 1943 pelo novo decreto 32 973441, sofreu algumas adaptações, em função das actividades que as religiosas ali iriam desenvolver. 434 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso: Termo da entrega provisória do edifício e dependências do suprimido convento de Santa Clara à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, de 5 de Agosto de 1896. 435 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso: Termo da procuração da entrega provisória. 436 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. 437 Elucidário Madeirense, I, p. 311. 438 Elucidário Madeirense, I, p. 311. 439 Elucidário Madeirense, I, p. 311 440 Diário do Governo, nº 225, I série, de 26 de Setembro de 1940. 441 Diário do Governo, nº 175, I série, de 18 de Agosto de 1943; Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Conventos, Plano de Obras, in Album do Plano de Obras da DGEMN, F 1-53, A-22-1, A; Ilhas de Zargo, .II, p. 691. 119 Na década de quarenta, “ porque se encontrava bastante necessitado de obras, as quais em pequena parte foram ultimamente realizadas”, dizia o arquitecto chefe da primeira secção a 1 de Outubro de 1948, decidiram os Monumentos Nacionais proceder a obras de restauro, nesta data, orçamentadas em 1.692.000$00, conforme o quadro: Quadro nº.15 - Obras a realizar Obras exteriores Reconstrução da armação e cobertura dos telhados, excluindo a ala já reconstruída Reconstrução de duas alas do claustro de betão armado avimento de tijolo prensado, assente com argamassa, no claustro Reparação geral de rebocos com argamassa hidráulica Construção de caixilharias e portas e reparação de outras Demolição duma varanda de betão construída há poucos anos Arranjo do jardim do claustro e logradouro 600.000$00 60.000$00 70.000$00 100.000$00 200.000$00 5.000$00 45.000$00 Obras interiores Pavimento de lagedo na galeria do claustro, junto à igreja Reconstrução do pavimento dos dormitórios, incluindo o tecto de carvalho da galeria Pavimento de tijolo prensado nas arrecadações, sala do capítulo e anexos Restauro de azulejos policromados do século XVIII na igreja Reparação e reconstrução de rebocos interiores SOMAS: 20% para imprevisto e administração 60.000$00 150.000$00 50.000$00 20.000$00 50.000$00 1.410.000$00 282.000$00 1.692.000$00 TOTAL: Fonte: O Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Conventos, Plano de Obras, in Album do Plano de Obras da DGEMN, F 1- 53, A- 22-1, A. A 15 de Novembro do mesmo ano o mosteiro de Santa Clara do Funchal figurava na lista de dezassete Monumentos Nacionais, para cujas obras, já orçamentadas, se estabeleciam prazos de execução. As respeitantes ao mosteiro de Santa Clara, nas quais se gastaria a verba supracitada, deviam ser levadas a cabo no espaço de três anos, conforme o despacho do respectivo Director dos Serviços442. 3. Situação Actual No antigo mosteiro que, desde 1928, foi semi-internato, escola primária e lar de estudantes, funciona actualmente um Jardim de Infância ao cuidado das Franciscanas Missionárias de Maria, prestando as religiosas relevantes serviços à Igreja local e à população madeirense, nomeadamente à do Funchal. As religiosas têm tido aquela casa aberta a encontros bíblicos, retiros e outros apoios, à acção cultural e pastoral. Verdadeira jóia arquitectónica, é assiduamente visitado por turistas quer portugueses quer estrangeiros, que admiram a grandiosidade, a precisão estética e evocação histórica deste vetusto edifício. Mas o mosteiro de Santa Clara não é somente um tesouro artístico de excepcional valor, uma jóia arquitectónica que nos fala eloquentemente dos “ nossos maiores” e que deve ser preservado, a todo o custo, de qualquer adulteração da sua arquitectura original. O mosteiro de Santa Clara é, sobretudo, evocação dum passado glorioso, afirmação da gesta 442 Ministério das Obras Públicas, Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Conventos, Plano de Obras; in Album do Plano de Obras da DGEMN, F 1- 53, A-22-1, A. 120 ímpar dos nossos navegantes e descobridores, presença palpável do sentir nacional, social e religioso de cinco séculos; é tesouro sagrado, onde se podem ler páginas da história de Portugal, páginas da sua sublime vocação marítima, do seu “dar ao mundo novos mundos”. Que a Ilha da Madeira o guarde como pérola de raro valor!... II SECÇÃO MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DA ENCARNAÇÃO 1660 - 1890 121 (fotografia) 122 18. Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal. Litografia de Picken. Desenho de F. Dillon, 1850 (Casa Museu Frederico de Freitas). Lá no alto do Funchal, desfrutando de “um panorama arrebatador” ficava o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. CAPÍTULO I O RECOLHIMENTO DE SANTA TERESA 1. Voto do Cónego Henrique Calaça de Viveiros O mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação foi fruto de um voto do Cónego Henrique Calaça de Viveiros: "levantar um convento em honra e louvor da Virgem da Encarnação, de quem era muito devoto, quando o seu país se libertasse do férreo jugo castelhano"443, e "dar graças a Deus pela feliz aclamação de D. João IV"444. Acrescia que o surto populacional que se verificava na Madeira, exigia a existência de mais mosteiros. Havia, realmente, um grande número de meninas "nobres e de mais condição "que desejavam servir a Deus em clausura, mas não o podiam fazer, por não existir "em toda a Ilha e bispado mais que um mosteiro de freiras da Ordem de Santa Clara, no qual viviam as freiras com muito aperto, por serem muitas e o sítio mui limitado e se não poderem estender por estar entre caminhos e rocha"445. O mosteiro que o cónego se dispunha a construir dava resposta a esta premente necessidade. Natural da Ilha do Porto Santo, Henrique Calaça de Viveiros era filho de Bento Martins e de Cecília Calaça, casados na Sé do Funchal a 18 de Agosto de 1588. Por parte de sua mãe, era neto de Maria Gonçalves de Viveiros e de Guilherme Acré, do qual procedem os elementos do seu brasão, como se pode ver no seu retrato a óleo. A família era de pequeno 443 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa. 2070, doc. 25; Elucidário Madeirense, II, p 307: “Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 84 (1956) 36. João Cabral do Nascimento, A Restauração de Portugal e o Convento da Encarnação, Funchal, 1940, p. 14: Instrumento de Doação do Cónego Henrique Calaça de Viveiros de 14 de Fevereiro de 1668. Noronha, op. cit., p 276. 445 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 14-15 : Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 444 123 relevo social, mas de haveres, que o fundador herdou e reuniu no seu património, vindo a empenhá-los na construção do mosteiro da Encarnação e respectiva dotação. Fez os seus estudos nas escolas da diocese do Funchal e, ainda novo, decidiu-se pela carreira eclesiástica. Homem recto, bem dotado e empreendedor, exerceu o múnus sacerdotal com muita competência e dignidade. Foi escrivão da Câmara Eclesiástica e cónego reitor do Colégio Real do Seminário, capitular da Sé do Funchal e chanceler da mesma. Depois de uma vida dada a Deus, à Igreja e à sociedade do seu tempo, com entusiasmo e amor, morreu a 26 de Maio de 1662 com setenta e quatro anos446. Para cumprimento do seu voto soube enfrentar, com serenidade mas firmeza, todas as dificuldades. Nada nem ninguém o fez recuar e, assim, conseguiu chegar onde desejava: transformar o recolhimento de Santa Teresa, que inicialmente funcionou no edifício, em mosteiro professo, para o que conseguiu licença papal e alvará régio. Homem santo, sem ambições ou desejo de prestígio, que de tudo se despojou, até do gosto de deixar os seus bens aos familiares para empenhá-los todos na construção e dotação do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, que fez "só com grande zelo do serviço de Deus e amparo das donzelas "447. Era, o bondoso cónego, homem tão despretensioso que, até ao direito de padroado teria renunciado, se a isso não obstasse Sua Majestade que, com firmeza, determinou que lhe pertencia " com todas as honras e direitos e proeminências "448. 19. Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação. O mosteiro sobressai na panorâmica geral da zona de Santa Luzia, destacando-se a cúpula da sua capela. Lá do alto, eram visíveis a parte baixa da cidade, o porto e as campinas. Fotografia de Perestrellos Photógraphos – “Museu Vicentes”. 2. A construção do edifício Triunfante a revolução de 1640, logo o patriótico cónego, então membro do cabido da Sé do Funchal, cumpriu religiosamente o seu voto, fazendo erguer um recolhimento para donzelas numa "formosa e grande quinta” que possuía “no melhor sítio de toda a cidade” e contígua à ermida de Nossa Senhora da Encarnação. Nessa excelente propriedade, a 20 de Novembro de 1645, foi lançada a primeira pedra do indispensável edifício"449. Planta 2 Convencido de que iria concretizar tão piedoso anseio, não fez caso algum do decreto de 1610 do rei Filipe II que proibia a fundação de novos mosteiros450. Cheio de confiança em Deus, "foi fabricando a obra do dito recolhimento com todas as oficinas e mais coisas necessárias, para que, sendo Sua Majestade servido conceder que pudesse ser mosteiro professo, não lhe faltasse coisa alguma para isso (...)"451. Nele fez três dormitórios com celas suficientes para trinta religiosas professas e as divisões necessárias para os serviços. Forneceo de móveis e alfaias que bastassem para uma comunidade ordenada. Todo o edifício e a cerca 446 AR M, Paroquiais, Livro de Óbitos da Sé, nº 74, fol. 26 v. João Cabral do Nascimento, op. cit., p 16 : Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 448 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 24 : Doação e Erecção do recolhimento em mosteiro Professo, de 13 de Abril de 1660. 449 ; “Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 36. Fernando Augusto da Silva, op. cit., I, p 182; Elucidário Madeirense, p 307. 450 João Cabral do Nascimento, op.cit., p 15 : Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 451 João Cabral do Nascimento, op.cit, pp. 12 e 15: Petição do Cónego. 447 124 estavam rodeados de muro alto de pedra e cal com uma única porta de entrada. O cónego pôs nas obras "tal grandeza, que nelas gastou perto de vinte mil cruzados"452. Segundo o auto da vistoria, a cerca do mosteiro estava rodeada de muros, tinha dormitórios suficientes, um refeitório, bastantes cozinhas, granéis, despensa e oficinas "e em tudo mais se achou bastantemente ornado e provido"453. Porém, sabendo o cónego que o mosteiro não estava totalmente concluído, embora com o necessário para a fundação, determinou que se retirassem sempre 100.000 reis do dote de cada religiosa para a sua continuação e remodelação. As obras foram, pois, prosseguindo. Por exemplo, a Madre Clara de São Bernardo, em 1666, andava empenhada na construção de um dormitório novo e para ele deixou, no fim do seu mandato, uma grande quantidade de materiais, entre os quais cinquenta dúzias de tabuado de til para soalhar, grande quantidade de castanho, travejamento de til, tabuado de pinho, mais de vinte e oito mil réis de pregos, uma fornada de cal, cantaria já lavrada para todo o dormitório e telha454. 3. A incorporação da capela de Nossa Senhora da Encarnação De arquitectura gótico-manuelina, a capela da Encarnação teria sido "instituída, segundo se presume, por António Mialheiro, finado em 1565455, na qual D. Isabel Maria Acciaiuoli mandou fazer a capela-mor"456, onde existiu um tríptico flamengo de Nossa Senhora da Encarnação. 20. Capela de Nossa Senhora da Encarnação. A fotografia mostra-nos a capela de Nossa. Senhora da Encarnação no traçado que ainda tinha no início do séc. XX. As duas janelas sobrepostas à porta principal, gótico manuelina, iluminavam o coro das religiosas. 21. Portal principal da capela do mosteiro da Encarnação. Pormenor da artística cantaria do portal principal, cuja estrutura tem afinidades com a Sé do Funchal. Nela podemos detectar marcas decanteiro e máscaras, também visíveis no púlpito da Sé. Fotografia de Rui Camacho, DRAC A porta principal apresentava uma estrutura idêntica à da Sé Catedral do Funchal, embora em escala menor, desenhando a última arquivolta o mesmo tipo de arco contracurvado de remate. Há ainda outras afinidades, como sejam as máscaras do demónio e marcas de canteiro, entre as quais se distinguem, com muita nitidez, letras, uma das quais o R, bem visíveis na cantaria das portas principal e lateral da capela, e igualmente, na escada no púlpito oferecido por D. Manuel à Sé457. Estes elementos valem como assinatura e como 452 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv Enc. F., caixa 2070, doc. 25 : Inventário dos bens móveis e imóveis do convento de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, 14 de Abril de 1863; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv Enc., F., fol. 7-9; João Cabral do Nascimento, op. cit., p 19: Provisão Régia de 15 de Novembro de 1659. 453 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 29 : Auto da Vistoria de 11 de Abril de 1660. 454 João Cabral do Nascimento, op. cit., p 45: Inventário dos materiais que a Madre Abadessa de São Bernardo deixou ao convento para acabar o dormitório novo. 455 Os Mialheiros, fidalgos da Galiza, estabeleceram-se em Portugal nos princípios do século XV, tendo passado à Madeira ainda nesse século. Pedro Gonçalves Mialheiro, falecido em 1521, designado o Amo, por ter sido o responsável pela educação de Simão Gonçalves da Câmara, terceiro capitão donatário, foi o avô de António Mialheiro, o fundador da capela de Nossa Senhora da Encarnação. Este fidalgo da casa do rei levou vida de larga ostentação, sendo chamado à corte por D. João III, em 1556 (Noronha, op.cit., p 278 e João José Abreu de Sousa. “ Os Mialheiros. Século XVI-XVII, Islenha, 9 (1991)50 ). Do seu casamento com D. Cecília da Silva deixou um filho, Jorge Mialheiro Pereira, que veio a desposar D. Helena de Menezes, a 13 de Junho de 1559 ( João José Abreu de Sousa, art. cit., Islenha, 9 (1991) 50 e Noronha, op cit., p 278). 456 “Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 35; Elucidário Madeirense, .I, p. 307. 457 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997, p. 70. 125 datação e permitem concluir que o gracioso templo gótico da Encarnação foi traçado pelo mesmo mestre-arquitecto da Sé e edificado pouco tempo depois da época da construção da Sé Catedral (1493-1518)458. Esse mestre-arquitecto, segundo António Aragão, foi Pero Anes e não Gil Enes, conforme durante muito tempo se pensou; este ultimo, na realidade, foi apenas o pedreiro-mestre.459 Em 1658, esta igreja manuelina, já então administrada pelo cabido da Sé, foi incorporada no mosteiro, servindo, feitas as necessárias adaptações, de igreja conventual460. No auto da vistoria feito pelo deão do cabido461, lavrado a 11 de Abril de 1660, referese que o mosteiro se encostou à capela que, depois de adaptada, ficou "suficientemente ornada, com sacrário do Santíssimo Sacramento, e mais coisas necessárias (...) grades para a segurança da clausura, coro baixo e alto, e tribuna junto do altar"462. O mesmo dignitário eclesiástico achou também que a capela estava com grande dignidade e apetrechada com todos os paramentos necessários para as celebrações do culto divino e o mosteiro bem edificado e próprio para a clausura463. A capela-mor recebeu os restos mortais de António Mialheiro, direito que lhe assistia como instituidor, de sua mulher e herdeiros. A lápide tumular, a meio da capela-mor e em frente do altar, ostenta, ainda hoje, em letras de bom tamanho e facilmente legíveis, o nome do filho, Jorge Mialheiro Pereira, e de sua esposa D. Helena de Menezes, ali sepultados em 1585 e 1583, respectivamente464. “Não obstante o letreiro daquela sepultura”, diz Noronha: “nela achámos já sepultado seu pai, António Mialheiro (...), fidalgo da Casa del Rei, que faleceu em 15 de Janeiro de 1565”465. 22. Porta lateral da capela da Encarnação. Esta porta é encimada por uma cabeça esculpida, coberta por um barrete, tipicamente quinhentista. Na esquina do contraforte, à esquerda, vemos uma máscara do demónio, muito semelhante à do púlpito da Sé do Funchal. Fotografia de Rui Camacho, DRAC Por disposições testamentárias do cónego fundador do mosteiro, também os padroeiros proprietários, que foram, por disposição do mesmo, os provedores da Fazenda Real de Sua Majestade, Francisco de Andrada e seus sucessores no cargo, adquiriram o direito de ter sepultura na capela-mor no mosteiro da Encarnação466. Noronha, referindo-se ao altar de Santa Teresa, situado na capela-mor do lado do Evangelho, afirma: “A seus pés têm seu enterro os Provedores, proprietários da fazenda real, e nele jaz Ambrósio Vieira de Andrada, fidalgo da Casa de Sua Majestade, provedor proprietário, que faleceu em Setembro de 1699, a quem as religiosas concederam o Padroado”467, conforme o testamento do fundador. Também 458 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 70 António Aragão, Para a História do Funchal, 2ª edição, 1987, p. 128. 460 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 28 - 29: Auto da Vistoria; Luiza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 70. 461 Deão é o dignitário eclesiástico que preside ao cabido, ou seja, à assembleia dos cónegos da Sé ou Catedral. Após a morte de D. Jerónimo Fernando, a diocese ficou vaga durante 30 anos, pois só em 1671 a cidade do Funchal teve novo bispo residencial, D. Frei Gabriel de Almeida; esta a razão porque o processo de fundação do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, em 1660, e de Nossa Senhora das Mercês, em 1667, passou pelo Dr. Pedro Moreira, na qualidade de provisor e vigário geral em todo o bispado. (Ilhas de Zargo, II, pp. 448 – 449). 462 João Cabral do Nascimento, op.cit., pp. 28 - 29:Auto da Vistoria. 463 João Cabral do Nascimento, op.cit.,, pp. 28 - 30: Auto da Vistoria. 464 Noronha, op. cit., p. 278; Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934) 34; João José Abreu de Sousa “Os Mialheiros - século XVI-XVII, Islenha, 9 (1991) 50; “A Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 34. 465 Noronha, op. cit. 278; João José Abreu de Sousa, art. cit., Islenha, 9 (1991) 50; “ A Igreja da Encarnação “(Funchal), Boletim da DGEMN, 84 (1956) 34. 466 Noronha, op. cit., 278 - 279; João Cabral do Nascimento, op cit., p. 38. 467 Noronha, op. cit., p. 278 - 279. 459 126 Fernando de Menezes Vaz esclarece que já lá havia sido sepultado Francisco de Andrada e sua esposa468. 23. Lápide tumular do instituidor da capela. No presbitério da capela, em frente do altar de cantaria branca, pode ver-se a “Sepultura de Iorge Mialheiro Pereira e de sua Molher Dona Ilena de Menezes e seus Erdeiros”. Fotografia de Rui Camacho, DRAC 24. Lápide tumular dos padroeiros Ao lado da sepultura do instituidor da capela, onde outrora ficava o altar de Santa Teresa, vê-se a lápide tumular dos padroeiros. Nela pode ler-se: “Sepultura de Maria Frere de Andrada e de seus Filhos com Legado nesta Capela”. Fotografia de Daniel António Silveira Teixeira, ofm 4. Abertura do Recolhimento de Santa Teresa Um ano depois do começo das obras, entravam no edifício as cinco primeiras recolhidas, cujo número foi aumentando posteriormente469. O fundador deu-lhes a regra Terceira da Ordem do Carmo e organizou-as como se fossem uma comunidade religiosa. Este recolhimento, intitulado de Santa Teresa de Jesus, era superintendido por uma regente, Teresa de Jesus, sobrinha do fundador, que, no exercício das suas funções, era auxiliada pela vigária, Catarina da Encarnação, e a escrivã, Teodora de Jesus. Eram porteiras Maria do Sacramento e Clara da Conceição, esta também sobrinha do cónego. O trabalho de sacristã estava confiado a Luzia de São José. A estas se juntavam onze recolhidas e quatro servas, que executavam os trabalhos domésticos e outras tarefas. Em 1658, quando o cónego dirigiu uma petição à rainha regente para que pudessem professar, já eram vinte470. Segundo Noronha, "principiou com grandes alicerces este recolhimento"471. Algumas senhoras "que não chegaram a professar, por lhes faltar a vida" ali viveram com grande santidade472. Acontecia, porém, que, o recolhimento fundado não poderia passar a mosteiro professo da ordem da bem-aventurada Santa Teresa de Jesus, dado que a regra da Ordem do Carmo, proibindo o uso da carne, exigia o recurso ao peixe, lacticínios e legumes473. Ora, sabemos que o peixe não abundava na Ilha e, precisamente no século XVII, a falta de pescado fez-se sentir de tal forma na Madeira, que havia necessidade de recorrer ao peixe da Berbéria, em Marrocos, e das Canárias474. O fundador foi-se, pois, consciencializando de que seria necessário optar por outra regra, uma vez que, para prescindir do uso da carne, precisavam de recorrer aos ovos, lacticínios e peixe. Ora, a falta de pescado era um grave problema. Acrescia também que os legumes, parte substancial da alimentação das recolhidas, segundo a regra, não eram muito abundantes na zona. 468 Fernando de Menezes Vaz, Famílias da Madeira e Porto Santo, Funchal, 1964, l I, p. 94. Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 182. 470 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 14: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 471 Noronha, op. cit., p. 279. 472 O P. João Ribeiro, jesuíta, que acompanhou espiritualmente o recolhimento, chegou a escrever a vida de Maria da Encarnação, falecida em 1653, pois fora alma verdadeiramente exemplar. Este mesmo sacerdote aponta o nome de outras recolhidas que ali viveram virtuosamente e com grande edificação de todos (Noronha, op. cit., pp. 279-280). 473 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 17.. Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 474 ARM, Conventos, Conv. Enc., F., L 16, fol. 109 e L 22, fol. 60. 469 127 O cónego acabou por compreender que o mosteiro não poderia ser de professas da Ordem do Carmo. Impunha-se outra opção. CAPÍTULO II PASSAGEM A MOSTEIRO DE CLARISSAS 1 Autorização apostólica (1651) Estando as obras em bom seguimento e o recolhimento de Santa Teresa de Jesus com óptima organização em tudo, muita virtude e santidade, impetrou o cónego uma bula de Sua Santidade para que fosse mosteiro professo. Um breve apostólico de Inocêncio X, dado em Roma a 16 de Novembro de 1651, dirigido ao deão e ao cabido da Sé, autorizava a fundação de um mosteiro professo no recolhimento já em funcionamento, sob a jurisdição do bispo da diocese. Permitia o referido breve a saída de uma religiosa do mosteiro de Santa Clara do Funchal para "instrutora, mestra e plantadora" da regra que as religiosas viessem a professar, "a qual seria uma das regras já aprovadas pela Santa Sé"475. Munido desta autorização papal e estando o edifício provido do necessário e bem dotado, o cónego dirigiu-se a Sua Majestade, em 1658, solicitando a passagem do recolhimento a mosteiro476. 2. Autorização régia (1659 ) 475 Frei Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 354; João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 26: Breve apostólico de Inocêncio X, dado em Roma a 16 de Novembro de 1651. 476 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 13 - 18 Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 128 De acordo com o Concílio de Trento, os mosteiros deviam ser dotados pelos seus fundadores e, só depois de estar assegurada a sua sustentação com dotes, rendas ou esmolas certas, se podia proceder à respectiva fundação e erecção canónica477. Foi essa a razão pela qual o cónego se apressou a dotá-lo. O instrumento público da dotação do mosteiro, lavrado na capela de Nossa Senhora da Encarnação pelo tabelião Luís Gonçalves, na presença do deão do cabido Dr. Pedro Moreira, do dotador e das recolhidas, teve lugar no dia 14 de Fevereiro de 1658478. O cónego dotava o mosteiro da "quinta, casas, fazendas e foros" que possuía, e "mais bens que se achassem, por sua morte, móveis e de raiz, caso Sua Majestade concedesse de ser mosteiro professo”; pedindo também, porque tinha parentes pobres, “dois lugares de freiras para duas sobrinhas"479. Além dos outorgantes assinou o instrumento público de dotação o P. Francisco Gonçalves, pelas testemunhas que não sabiam escrever, bem como José de Barros e Francisco de Sousa, moradores no Funchal480. A resposta de Sua Majestade, dada pela provisão de 15 de Novembro de 1659, foi favorável à petição da criação do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, atendendo a que a Madeira já tinha uma cidade e cinco vilas e um só mosteiro, o de Santa Clara, à decisão do cónego de custear a fundação do mosteiro e ainda às cartas de empenhamento e aprovação que merecera do cabido, governadores, Câmara Eclesiástica, religiosos, nobreza e povo das Ilhas da Madeira e Porto Santo. Assim, por alvará de 15 de Novembro de 1659, foram concedidas as licenças ao cónego fundador, no que respeitava à profissão das sobrinhas e ao número de professas e noviças, que deveria ser igual a trinta, não podendo fazer-se alteração deste número, sem prévia autorização régia. A finalizar, pedia Sua Majestade que o alvará fosse registado no arquivo do mosteiro, do cabido e da Câmara Eclesiástica481. 3. Execução do breve de Inocêncio X No dia 11 de Abril de 1660, o deão Dr. Pedro de Moreira, com a autoridade apostólica que lhe assistia, fez a vistoria do edifício, achando que "a casa estava bem edificada e a igreja mui decente"482. A 13 de Abril de 1660, conforme consta na "Sentença de Fundação e Erecção de recolhimento em mosteiro", iniciou-se a clausura, ficando as religiosas subordinadas ao prelado da diocese.483 Neste documento, fazia-se referência ao breve pontifício que autorizava a transferência de uma religiosa professa do mosteiro de Santa Clara para exercer o múnus de abadessa da nova casa religiosa. As recolhidas ficavam autorizadas a iniciar o noviciado, no fim do qual podiam fazer profissão, ficando a usufruir todos os privilégios e isenções da Ordem de Santa Clara484. Ficava, assim, fundado e erecto este mosteiro. 477 AHU, Madeira, doc. 623: Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou o Frei José da Conceição do Convento de Alferrara da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720. 478 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 18: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 479 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc., F., caixa 2070, doc. 25; João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 16 17: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 480 João Cabral do Nascimento, op. cit., p.18 Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658. 481 João Cabral do Nascimento, op. cit., p 20: Provisão régia de 1659. João Cabral do Nascimento, op cit., pp. 28 – 29: Auto da Vistoria. 483 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc., F., caixa 2070, doc. 25; João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 24 27: Breve apostólico de Inocêncio X, de 16 de Novembro de 1651. 484 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 23 : Sentença da fundação e erecção do recolhimento em mosteiro professo do deão, Dr. Pedro Moreira, Vigário Geral e Cabido da Sé do Funchal, de 13 de Abril de 1660. 482 129 A autoridade eclesiástica foi buscar a primeira abadessa, a Madre Clara de São Bernardo, à comunidade de Santa Clara, dado que o novo mosteiro dependia do bispo do Funchal e a bula papal assim o determinava. A Madre passou para o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, no dia 18 de Abril de 1660, sete dias após a sentença de criação do novo mosteiro, dada pelo deão, provisor e vigário geral485. Nesta deslocação, a abadessa foi acompanhada de muitas senhoras nobres, do clero, do cabido, do comissário do convento de São Francisco do Funchal, o P. José da Natividade, e muito povo da Madeira. A Madre Clara de São Bernardo foi recebida no recolhimento pela regente e recolhidas, que aceitaram a sua prelada com muita reverência, “fechando-se em seguida a porta da clausura"486. Além de abadessa, cargo que exerceu durante dois triénios consecutivos, foi "Mestra de vida espiritual e, sendo só, nesta empresa de Deus, este Senhor lhe dispensou tais forças que foi suficiente para ensinar vinte e nove, informando-as dos estilos regulares, com grande consolação e aproveitamento de todas"487. 4. Regra e Constituições ou Estatutos Quanto à regra a adoptar, diante da impossibilidade de o mosteiro seguir a regra de Nossa Senhora do Carmo, uma vez que o breve apostólico de Inocêncio X dava a possibilidade de "seguir qualquer regra aprovada pela Sé Apostólica", o cónego decidiu colher o parecer régio. Por isso, quando no final do ano de 1658 escrevia a Sua Majestade, pedindolhe licença para que o recolhimento passasse a mosteiro professo e que as senhoras ali recolhidas pudessem professar, deixava à rainha regente toda a liberdade de decidir quanto à regra a observar488. A resposta foi rápida. Na provisão real de 15 de Novembro de 1659, que autorizava que o convento fosse professo, D. Luísa de Gusmão, remetia para o cónego aquela opção. Calaça de Viveiros, conhecedor do apreço que a rainha, desde há muito, vinha mostrando pela Ordem de Santa Clara, achou por bem, depois de consultadas as recolhidas, que o mosteiro fosse de espiritualidade franciscana, o que o deão, o Dr. Pedro Moreira, e o cabido, em seu nome e dos prelados futuros, aceitaram. Escolhida a Regra de Urbano IV pelo cónego e recolhidas, o vigário geral concedeu-lhes “licença para tomarem o hábito que pedem da gloriosa virgem Santa Clara"489 e iniciarem o noviciado, no fim do qual fizeram a profissão. À Regra juntavam-se as Constituições ou Estatutos que, nada acrescentando ao texto da fundadora, pormenorizavam, para cada circunstância, a forma de agir e as atitudes a assumir. A comunidade devia observá-los no seu viver quotidiano. Elaborados após o Concilio de Trento, e no seguimento dos princípios por ele preconizados, estabeleciam uma certa uniformidade nos mosteiros da Ordem de Santa Clara, seguidores da Regra de Urbano IV. Continham um total de cinquenta e um capítulos, dos quais os cinco primeiros diziam respeito à Abadessa: eleição, atribuições e deveres. Os três seguintes estabeleciam as condições de admissão e os restantes diziam respeito à oração, entradas na clausura e exéquias 485 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. 25; Fernando da Soledade, op. cit., III, p 354; João Cabral do Nascimento, op. cit, pp. 32-33: Auto da entrega que fazem o reverendo comissário dos convento de São Francisco e de Santa Clara desta cidade e a madre dele, da reverenda Madre Clara de São Bernardo, freira professa do dito mosteiro de Santa Clara, para ir fundar o novo da Encarnação, em virtude de um breve de Sua Santidade. 486 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 32-34 : Auto da entrega que fez o Juiz Apostólico da Madre Clara de São Bernardo, dentro da clausura do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, desta cidade, de 18 de Abril de 1660. 487 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 354. 488 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 17 - 18. 489 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 23 : Sentença da fundação e erecção do recolhimento em mosteiro professo (...), de 13 de Abril de 1660. 130 5. Padroado Edificado o mosteiro a expensas do Cónego Henrique Calaça de Viveiros, e por ele dotado segundo as normas do Concílio de Trento, assistiam-lhe todos os direitos do padroado. Ele, porém, cumpridas as obrigações de fundador, não desejando para si direitos nem honras consequentes, pediu que "Sua Majestade seja servido incorporar em sua real coroa todo o honorífico da dita obra e padroado" e que, se fosse servido, o desse "a uma das pessoas reais como o são os sereníssimos infantes deste Reino"490. E, na sua modéstia, acrescentou que "ele em nada quer ser nomeado nem gozar de honras algumas e até a sua sepultura quer que seja na capela maior da Sé, aonde se enterram os mais capitulares dela"491e não na igreja do mosteiro, honra que lhe cabia como fundador. Pediu apenas que, como tinha parentes pobres que, sem dúvida, esperariam herdar os seus bens, lhe fosse concedido que os dois lugares já ocupados no recolhimento por Teresa de Jesus e Clara da Conceição, suas sobrinhas, ficassem para sempre, isto é, fossem perpétuos, para que, após a sua morte, outras pudessem entrar, escolhidas pelo bispo da diocese entre os descendentes do lado de pai e da mãe, alternadamente492. O alvará régio, de 15 de Novembro de 1659, dava resposta satisfatória em tudo, salvo no que dizia respeito ao padroado do mosteiro. "E no mais do Padroado que ao suplicante, o Reverendo Cónego Henrique Calaça pertence por fundador do dito mosteiro, mandamos se lhe guarde em todo, com todas as honras, direitos e proeminências que de jure lhe pertencem"493. O cónego, primeiro padroeiro do mosteiro por ele fundado, teve sepultura na capelamor. No seu testamento deixou exarado: “No que toca a meu enterramento não disponho nada porque como sou cónego nesta santa Sé do Funchal e vejo a caridade e amor com que o muito Reverendo Cabido enterra os seus Irmãos, não me fica lugar mais que de lhe pedir seja servido de me perdoar minhas faltas”494. Porém, as religiosas fizeram questão de que os seus restos mortais tivessem sepultura na capela do mosteiro, direito que lhe assistia como fundador e padroeiro. O Livro de Óbitos da Sé, 74, confirma o sobredito: “Aos 26 de Maio de 1662 faleceu o Reverendo Cónego Henrique Calaça, fundador do Convento da Encarnação (...), foi sepultado no mesmo Convento”495. No seu testamento, feito a 11 de Maio de 1662, deixou escrito: " e todo o direito que tenho do dito mosteiro como fundador, que fui dele, à minha custa, deixo a minha sobrinha Teresa de Jesus para que ela procure que vá em aumento o temporal dele. E peço à muito Reverenda abadessa e mais Religiosas lhe tenham sempre o respeito devido e com ela se aconselhem (...), que a experiência tem mostrado que para tudo tem talento e é a que tem e sempre teve, maior trabalho na conservação do dito mosteiro"496. O cónego, embora tivesse deixado por sua testamenteira a sobrinha Teresa de Jesus, religiosa professa do mosteiro, quis associar a ela mais um membro: “deixo também por testamenteiro e procurador do dito convento o P. João de Sousa de Almeida, Beneficiado da igreja de Nossa Senhora do Calhau, por entender que com muito zelo procurará as coisas do mosteiro”497. 490 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 16: Instrumento de Doação (...) de 14 de Fevereiro de 1658, e p.19: Provisão régia de 15 de Novembro 1659. 491 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. 25, fol.1v: Auto de Avaliação do mosteiro de 14 de Abril de 1863.; João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 16 : Instrumento de Doação (...)de 14 de Fevereiro de 1658. 492 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 16: Instrumento de doação (...)de 14 de Fevereiro de 1658. 493 João Cabral do Nascimento, op. cit, p. 24 : Sentença de Fundação e erecção de recolhimento em mosteiro professo, de 15 de Abril de 1660. 494 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 37: Treslado do próprio testamento do Cónego Henrique Calaça de 11 de Maio 1662. 495 ARM, Paroquiais , Livro de Óbitos da Sé, 74, fol. 26v. 496 João Cabral do Nascimento, op. cit., p.38: Treslado do próprio testamento (...) de 11 de Maio de 1662. 497 João Cabral do Nascimento, op. cit. ,p.39: Treslado do próprio testamento (...) de 11 de Maio de 1662. 131 Por escritura, de que no mesmo testamento se faz menção, a protecção do mosteiro ficava confiada “ ao senhor Francisco de Andrada, provedor da Fazenda de Sua Majestade, e a todos os seus sucessores no dito cargo, de que me fio que sempre ampararão o mosteiro como seus protectores, no que farão grande serviço a Deus"498. CAPÍTULO III A FAMÍLIA CONVENTUAL A comunidade era constituída por religiosas professas, que tinham o título de Madres e por noviças, às quais estavam ligadas as candidatas, meninas que, por sua vontade ou dos familiares, ali estavam para serem criadas para freiras e que, na idade própria, eram admitidas ao noviciado. Para todos os trabalhos necessários havia as servas, também chamadas irmãs, ligadas à comunidade por um compromisso religioso. Com fins educativos entravam algumas moças nobres cuja formação era sempre objecto de cuidados específicos por parte das religiosas. A vida comunitária, caracterizada, então, pela regularidade, uniformidade e recolhimento, era a forma mais profunda e radical de responder ao apelo de Cristo. Em função do seu carisma, a ocupação mais importante das religiosas era a oração. Para isso, o mosteiro tinha o seu horário de oração comunitária, na qual todas as religiosas deviam participar. 1. Constituição da família conventual 1.1. Candidatas ao noviciado 498 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 38. Trata-se da família Andrada e não Andrade. 132 Segundo a Regra de Urbano IV, nenhuma candidata deveria ser admitida ao noviciado “sem prévio consentimento de todas as Irmãs ou pelo menos de dois terços delas”499 e depois de se ter obtido licença do bispo da diocese. Durante o noviciado deveriam ser informadas sobre o teor da vida da Ordem, para que a sua opção fosse livre e consciente. Não poderiam ser admitidas à profissão candidatas com idade avançada ou doentes, para que não se perturbasse ou relaxasse o vigor da vida religiosa. E, concluía a Regra de Urbano IV, “tenhase suficiente cuidado com as pessoas que se admitem, a fim de se evitarem tais perigos”500. As candidatas do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação eram oriundas essencialmente da Ilha da Madeira, mas também lá viveram religiosas de Porto Santo, de Lisboa, Viana, Leiria, Brasil e Irlanda. De Viana eram as Madres Mariana de Santa Teresa e Luísa Maria dos Santos, esta órfã de pai, que professaram em 1689 e 1712, respectivamente. Neste último ano professou a Maria Teresa de Jesus cujos pais eram de Leiria e em 1733 professou a Ana de São José, natural da Irlanda, viúva do morgado José Carvalhal.501Do Brasil vieram três candidatas, das quais duas eram irmãs, órfãs de mãe, que professaram em 1706 e 1712. A outra, Teresa de Jesus, também órfã, professou em 1739502. Segundo as leis canónicas, as candidatas não podiam entrar sem dote. As religiosas do número legitimamente estabelecido pagavam o dote de 400.000 reis503 que, por meados do século XVIII, passou para 600.000 e, em 1819, para 800.000504, enquanto as extranumerárias, que aparecem a partir de 1677, entravam com o dote de 600.000 reis505 que, em meados do mesmo século, atingiu 1.000.000 de réis506. Seis filhas do Dr. Luís Dias e de D. Beatriz Mendes Saldanha, irmãs do Cónego Saldanha e do desembargador Bento Teixeira Saldanha, que entraram a 6 de Junho de 1683 e professaram um ano depois como extranumerárias, gozaram do especial privilégio de pagar o dote de 400.000 reis507. O dote era entregue ao mosteiro, ou, pelo menos, era-lhe garantida a entrega antes da profissão. Nalguns casos, o dotador ficava a dever o dote e dele pagava juros. As candidatas madeirenses eram quase todas da parte meridional da Ilha, zona produtiva e rica, pois que, sendo o dote muito elevado, não era fácil a entrada a jovens pertencentes a famílias economicamente débeis. A maior parte delas eram naturais da cidade do Funchal, predominando as filhas de famílias da capitania. Desde 1660 a 1777, das trezentas e cinco religiosas que viveram no mosteiro, pelo menos cento e trinta e sete seriam naturais do Funchal, pois lá viviam os seus progenitores 508. Por imperativo da época, a maior parte das candidatas entrava de tenra idade, cinco, sete, dez e doze anos, sendo ali “criadas para freiras”. A título de exemplo diremos que, em meados do século XVII, a menina Úrsula, filha do provedor da Real Fazenda, entrou com oito anos e em 1853 a Elisa Amália Correia, natural do Funchal, com onze509. O mosteiro resolvia habitualmente problemas de orfandade. Num total de trezentas e cinco admissões, desde a sua origem até 1740, sessenta e cinco, ou seja 20% aproximadamente, eram órfãs. Entre elas havia quinze órfãs de pai e de mãe, dezasseis órfãs 499 RU 4, III, 7, in FF II, p. 348. RU 4, III, 7 in FF II., p. 348. 501 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 7, fol. 65; Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação. Subsídios para a sua História, Funchal, 1995, p. 34. Esta dissertação de mestrado é trabalho bem documentado e de valor histórico. 502 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 4; Eduarda Maria de Sousa Gomes , op. cit., p. 34. 503 Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 70; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 8, 14 e 15; ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 14 e 15. 504 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 35. 505 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 7 ; ARM, Conventos, Conv. Enc.F., L15 e 18. 506 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16. 507 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 7, fol. 58; Noronha, op. cit., p. 281. 508 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 4; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op .cit., p. 33. 509 AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 6, doc. avulso: Súplica de Júlio Correia em favor de sua filha Elisa Amália Correia e despacho do tesoureiro da Câmara Eclesiástica de 6 de Fevereiro de 1853. No mesmo documento Júlio Correia declara ter recebido a quantia solicitada. 500 133 de pai e trinta e quatro de mãe510. O mosteiro da Encarnação prestou neste campo serviço relevante à sociedade madeirense. Enquanto umas entravam em meninas, outras ingressavam numa fase tardia da vida, como aconteceu com as seis irmãs do Cónego Saldanha e do desembargador Bento Saldanha, que entraram a 6 de Junho de 1683 e professaram no ano seguinte, sendo de idades compreendidas entre os cinquenta e cinco e os setenta e dois511. Estes e tantos outros casos mostram, à evidência, que o mosteiro dava resposta a problemas de ordem social, conforme a mentalidade da época. No que concerne à origem social, verifica-se a entrada de candidatas nobres e também de famílias humildes. Entre as que ascendiam à nobreza apontamos, como exemplo, quatro filhas512 e uma neta513de Francisco de Andrada, “nosso fidalgo da Casa de sua Majestade, cavaleiro professo de hábito de Cristo e provedor da Real Fazenda”514; duas filhas do capitão Brás de Freitas da Silva, fidalgo de Sua Majestade e cavaleiro de Cristo515; várias sobrinhas do cónego fundador e algumas filhas de morgados, entre os quais, Robert Vilovi. O mosteiro recebia jovens com dificuldades económicas, particularmente se nelas se detectasse verdadeira vocação. Em 1754, a comunidade pagou 4.445 reis que os pais da religiosa Antónia de Santo Agostinho ainda deviam, por serem pobres e, consequentemente, terem dificuldades económicas. Também o bispado auxiliava algumas vezes a completar o dote a jovens pobres, como foi o caso de Elisa Amália Correia, a quem a Câmara Eclesiástica ajudou com 26.000 reis516. É certo que, se houve casos de religiosas cuja opção não foi livre, porque foram pressionadas por familiares e por condicionalismos de natureza social, outras houve, e em número bem maior, que foram movidas pelo desejo de viverem para o Senhor, pelo anseio de se consagrarem a Deus pela profissão religiosa. Há casos encantadores: em 1827 uma filha de João Mendes, a Matilde, da freguesia de Santa Luzia, entrou porque, diz o pai, “tem sumo desejo e sincera vocação de servir a Deus no estado religioso, no mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação”517; a Elisa Amália Correia, já referida, filha de Júlio Correia da Silva Acciaiuoli, morador na freguesia de Santa Maria Maior, que tinha no mosteiro uma irmã e uma tia, freiras professas, desejava tanto entrar no noviciado que o pai se viu na obrigação de auxiliá-la na concretização do seu anseio. “Esta criança” diz ele, “tendo visitado aquelas tias até a idade de sete anos, ficou com toda a vocação de viver naquela casa e insta continuamente para ser pupila nela”518. 1.2. Profissão religiosa Normalmente, a jovem era admitida ao noviciado aos quinze anos; se a entrada no mosteiro se fizesse mais cedo, aguardava a idade legal uma vez que a profissão só podia fazer-se depois dos dezasseis anos. No coro, em cerimónia religiosa, em que presidia o prelado ou um seu delegado, recebia o burel de Santa Clara cor de cinza e véu branco, que na profissão era substituído por um véu preto. 510 Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit , p. 32. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 7, fol. 58. Trata-se de D. Isabel , D. Maria, D. Úrsula e D. Mariana de Andrada (Fernando de Menezes, op. cit., p. 94). 513 Trata-se de D. Teresa, filha do provedor da Real Fazenda e padroeiro do mosteiro, Ambrósio Vieira de Andrada, que sucedeu ao pai no cargo real e no padroado do mosteiro (Fernando de Menezes, op. cit., p 94). 514 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 1, doc. avulso.. 515 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 7, fol. 12. 516 AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 6, doc. avulso: Súplica de Júlio Correia em favor de sua filha Elisa Amália Correia (...) de Fevereiro de 1853. 517 AHDF, Conv. Enc. F., caixa. 25, capilha 5, doc. avulso. 518 AHDF, Conv. Enc. F., caixa. 25, capilha 6, doc. avulso. 511 512 134 Antes de terminar o noviciado, a admissão ou despedimento da candidata decidiam-se por votação secreta. Se tivesse a seu favor a maioria das religiosas professas, disso se informava o bispo da diocese, que deveria, antes da profissão, mandar fazer o exame canónico, a fim de se informar da recta intenção, da autenticidade da vocação e da liberdade de opção. Antes da profissão deveria ser feita e assinada a escritura de dotação. Com antecedência se tomavam as necessárias providências para que a capela se revestisse de festa, profusão de flores, muitos círios, as mais belas toalhas e paramentos. Em 1676, a comunidade pagou 150 réis pelo aluguer de vinte círios para a profissão de Joana de Jesus519. Este acto de consagração tinha lugar no coro baixo, na presença da comunidade, dos familiares e amigos. A ela presidia o prelado ou um seu delegado. A neoprofessa comprometia-se, diante de Deus, da Igreja e da Ordem, a “viver todo o tempo da sua vida sob a regra concedida pelo Senhor Papa Urbano IV, em obediência, sem próprio, em castidade e em clausura, segundo o que está ordenado na mesma regra”520. A sua profissão era um testemunho público da prioridade de Deus. Dela se fazia uma acta em livro próprio, assinada pelo presidente da celebração, pela abadessa e sua vigária, a mestra de noviças, as discretas e a neoprofessa. O dia da profissão era dia festivo, um dia celebrado com amor fraterno e carinho. Não faltavam as flores, os bolos, o encanto e a alegria no rosto de todas, testemunhando a felicidade das religiosas, que viam aumentada a comunidade com um novo membro, um membro empenhado na prática da virtude e conquista da santidade. Não foi sem razão que Noronha escreveu: “muitas têm sido as religiosas desta casa (...), que acabaram nela com mostras de santidade; e delas teríamos muito que escrever (...); algumas floresceram nas virtudes”521. Fernando Augusto da Silva refere que “muitas das suas religiosas foram modelos na prática de todas as virtudes, tendo algumas deixado o nome aureolado pela santidade”522. 1.3. Evolução da comunidade Conforme a petição do cónego fundador, a provisão régia e o breve apostólico, o mosteiro era instituído para trinta religiosas; porém, bem depressa passou a ter mais. Na segunda década da sua existência, as religiosas já eram sessenta, número que foi legalizado pela autoridade competente. A estas religiosas ditas “do número” ou numerárias, foram-se juntando as extranumerárias, também designadas supranumerárias, que nalgumas épocas chegaram a ser mais que as do número autorizado. Embora com alguma dúvida, apresentamos os seguintes dados estatísticos: Quadro nº.16 - Evolução da Comunidade Ano Professas523 Noviças Educandas Servas 519 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 9, fol. 129; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p..28. RU 4, III, 9, in FF II., p. 348. 521 Noronha, op .cit., p. 279. 522 Ferrando Augusto da Silva , op. cit.,.I, p. 183. 523 O quadro inclui as religiosas numerárias e extranumerárias. Não é possível dissociá-las por falta de clareza documental. 520 135 1660 1666 1671 1677 1682 1690 1694 1697 1700 1702 1704 1705 1709 1712 1720 1725 1728 1731 1732 1733 1735 1740 1750 1764 1788 1808 1820 1822 1843 1861 1872 30 35 50 63 62 90 87 91 74 96 104 106 114 114 120 130 138 140 143 144 121 118 114 130 69 42 33 31 31 10 4 6 - 9 2 2 2 10 16 30 30 27 30 13 17 17 Fontes: AHU, Madeira, doc. 261 e 842; AHDF, Conv. Enc.F., caixa 25, capilha 3, doc. avulso; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 41; ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 1. Observando estes dados, podemos constatar um aumento ininterrupto de religiosas desde a origem do mosteiro até 1733, ano em que a comunidade atingiu o número máximo, com cento e quarenta e quatro membros; as extranumerárias eram, então, em maior número. Por uma relação de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, prelado do Funchal, enviada ao ministro Francisco Xavier de Mendonça Furtado a 16 de Agosto de 1764, sabe-se que as religiosas extranumerárias eram então setenta524. O aumento da comunidade verificado na primeira metade do século XVIII é explicável pela prosperidade que então se constatava na Ilha e consequente surto populacional. Tal prosperidade traduziu-se no mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação em opulência e ascensão. A partir de 1764, a descida foi brusca. Era a repercussão, no interior da comunidade, das leis pombalinas que proibiam a admissão ao noviciado. As religiosas foram diminuindo e envelhecendo, sem que jamais se pudesse revitalizar a comunidade. As medidas pombalinas e depois delas as leis liberais, fizeram entrar o mosteiro em lenta agonia. A descida continuou até 1890, ano em que o edifício, por morte da última professa, a Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, foi tomado pelo Estado 525. 1.4. Moças educandas Na época que estamos a considerar, os mosteiros apareciam como lugares de concretização de anseios espirituais - consagração religiosa - mas também de preservação e defesa de valores humanos, morais e religiosos da sociedade. A teor desta mentalidade, a 524 AHU, Madeira, doc. 261: Relação de todos os mosteiros de religiosas que tem esta Ilha da Madeira e bispado do Funchal e do número de todas as ditas religiosas que residem nele. 525 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 3; O jornal A Verdade, de 24 de Outubro de 1890. 136 nobreza orgulhava-se não só de que as suas filhas professassem nos mosteiros como também de que fossem educadas pelas religiosas as filhas que julgavam destinadas ao casamento. Os documentos apelidam-nas de “moças nobres” ou “moças educandas”. Entravam por ordem régia ou pelo menos, com a respectiva licença, com fins educativos. Depois de uma boa educação religiosa, cultural e artística, a que se aliava uma primorosa formação feminina, isto é, governo da casa e condução dos trabalhos domésticos, voltavam ao seio da sociedade. A elas voltaremos nos apartados da Cultura e da Decadência. 1.5. Servas, servos e assalariados O capítulo 37 dos Estatutos do mosteiro previa e permitia a existência de servas no interior da clausura e determinava o seu número: um terço do número das freiras526. As servas também apelidadas de moças e irmãs, estavam ao serviço da comunidade, mas sem dela fazerem parte. Realizavam serviços no interior da clausura e ficavam alojadas na chamada casa das servas. Tinham estatuto próprio, que lhes impunha um regulamento e exigia um comportamento honesto e exemplar. A maior parte delas estava integrada na Irmandade das Almas527. Além destas servas ou irmãs528, o mosteiro tinha ao seu serviço servos que habitavam na loja do mosteiro e eram alimentados, vestidos e calçados pela comunidade. Alguns deles encontravam-se na condição de escravos. A comunidade recorria também a assalariados ou jornaleiros que executavam todos os trabalhos agrícolas das duas cercas, administradas por exploração directa: trabalhos de lavoura, rega, horta, ceifa, encana, poda, vindima, trasfega, idas à serra, limpeza dos terreiros e outras tarefas. Na primeira metade do século XVIII, o número dos assalariados, bem como a sua diária, foi sempre aumentando, chegando o mosteiro a ocupar em certos meses, sessenta, setenta, oitenta e cinco, cento e oito homens, trabalhando em “rancho”. Os preços diários eram os correntes, mas variáveis conforme trabalhavam a seco ou a comer529. A partir de 1756 os trabalhadores foram reduzidos ao mínimo: vinte, quinze, sete, quatro e por vezes um, por mês530. Ao serviço do mosteiro estava também o almocreve, que se encarregava de alguns transportes e o abastecia de lenha, e o boieiro, encarregado da moenda, de alguns carretos e da debulha do trigo531. 2. O governo da comunidade 2.1. A abadessa De acordo com a Regra e Estatutos do mosteiro a primeira autoridade era a abadessa. Seria livremente eleita pela comunidade e confirmada pela autoridade jurídica competente, que era o bispo da diocese ou o seu legítimo representante, salvo de 1807 a 1814, período em que, estando a comunidade incorporada na de Santa Clara, dependiam do Custódio Provincial da Ordem dos Frades Menores da Madeira. 526 Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit, p. 38. ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 1. Hoje, às religiosas de qualquer instituto feminino apraz-lhes serem chamadas Irmãs. Na época que estamos a considerar, irmã era a serva, a moça, a criada, pois os membros da comunidade autodenominavam-se madres ou freiras, nome que não tinha, então, o sentido pouco amistoso dos tempos actuais. Também os membros de qualquer confraria usavam o apelativo de irmãos e irmãs. 529 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22 e 23. 530 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L. 16, 22 e 24. 531 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 24, fol. 32 e L 33, fol. 42. 527 528 137 A Regra de Urbano IV recomendava que as religiosas deveriam ter o cuidado de eleger para abadessa “uma religiosa virtuosa que se distinga das outras pela santidade de vida (...) que seja fiel à vida comunitária, a fim de que as outras, estimuladas pelo seu exemplo, lhe obedeçam por amor”532. A eleição fazia-se por três anos somente e nenhuma abadessa podia exercer o cargo dois triénios consecutivos. À eleição presidia o prelado ou um seu delegado. Obtida a maioria dos Quadro nº.17 – Eleições das abadessas (1749-1882) Triénios Abadessas Votantes Votos 1749 – 1752 1752 – 1755 1755 – 1758 1758 – 1761 1761 – 1764 1764 – 1767 1767 – 1770 1770 – 1773 1773 – 1776 1776 – 1779 1779 – 1782 1782 – 1785 1785 – 1789 1789 – 1792 1792 – 1795 1795 – 1798 1798 – 1801 1801 – 1804 1804 – 1807 1807 – 1811 1811 – 1814 1815 – 1817 1817 – 1820 1820 – 1823 1824 – 1826 1826 – 1829 1829 – 1832 1832 – 1834 1834 – 1837 1837 – 1840 1840 – 1843 1843 – 1846 1846 – 1849 1849 – 1852 1852 – 1855 1855 – 1858 1858 – 1861 1861 – 1864 1864 – 1867 1867 – 1870 1870 – 1873 1873 – 1876 1876 – 1879 1879 – 1882 1882 - ..... Teresa Josefa de Santa Maria Joana Luísa da Ressurreição Luísa de Jesus Maria Teodora do Monte Olivete Luísa de Jesus Maria Maria Bernarda do Vencimento Lauriana Luísa da Natividade Mariana da Paixão Maria Bernarda do Vencimento Luísa Catarina de São João FranciscaTeresa dos Querubins Juliana Maria da Vitória Luísa Catarina de São João Francisca dos Querubins Luísa Catarina de São João Juliana Maria da Vitória Mariana Agostinha de Santa Gertrudes Leonor Maria da Pureza Ana Filipa do Vencimento Luísa Maria da Estrela Mariana Inácia de São Bernardo Tomásia Delfina de Cantuária Mariana Inácia de São Bernardo Vicência Joaquina do Amor Sagrado Filipa Nery do Espírito Santo Vicência Joaquina do Amor Sagrado Isabel Jacinta da Visitação Vicência Joaquina do Amor Sagrado Filipa Nery do Espirito Santo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São. Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo Emília Romana do Empírio Felisberta Cândida de São Bernardo 85 88 94 100 105 102 104 106 98 91 84 79 79 62 52 49 42 41 33 30 Nomeação 28 25 23 28 29 27 31 31 29 29 28 24 23 21 20 14 9 8 8 6 6 4 4 Nomeação 66 66 46 69 47 56 54 75 57 49 62 44 32 33 29 29 22 20 16 17 18 15 19 15 12 13 15 15 20 17 16 13 8 7 6 5 4 3 3 - Fontes: ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1 votos, era proclamada a eleita: “eu (...) secretário da eleição de todas as religiosas que votaram, declaro por eleita em abadessa deste mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, a muito reverenda madre (...), com (...) votos” 533. O bispo, ou o seu delegado, devia confirmar a eleição. Depois procedia-se à eleição da vigária, do grupo das “conselheiras ou discretas”534, 532 RU 4, XXII, 36, in FF II, p. 362. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1, acta 2. As conselheiras ou discretas não eram as antigas abadessas, como supõe Eduarda Maria de Sousa Gomes (op. cit., p. 26), mas sim as Irmãs que, eleitas trienalmente, constituíam, como sucede ainda hoje, um corpo consultivo permanente, que a abadessa devia ouvir nos casos previstos pela Regra e pelas Constituições. 533 534 138 em escrutínios secretos, escrivã e mestra de noviças. Estes cargos conferidos por três anos careciam igualmente de confirmação do bispo da diocese. A abadessa com o seu conselho ou discretório, tendo em conta a opinião da comunidade, procedia à nomeação das religiosas para os ofícios mais importantes: porteiras, rodeira, enfermeira, mestra da ordem, sacristã e outros, que eram renovados cada ano; as listas eram enviadas ao prelado para aprovação e confirmação535. Houve abadessas que fizeram mais que um triénio, mas nunca consecutivos, como sucedeu com as Madres Luísa de Jesus Maria, Maria Bernarda do Vencimento, de ascendência inglesa, Luísa Catarina de São João e Francisca dos Querubins, no século XVIII; Mariana Inácia de São Bernardo, Vicência Joaquina do Amor Sagrado e Emília Romana do Empírio, no século XIX. Quadro nº.18 – Abadessas com mais que um triénio Nome da Abadessa Luísa de Jesus Maria Maria Bernarda do Vencimento Luísa Catarina de São João Francisca dos Querubins Mariana Inácia de São Bernardo Vicência Joaquina do Amor Sagrado Emília Romana do Empírio Triénios 1755 – 1758 e 1761 – 1764 1764 – 1767 e 1773 – 1776 1776 – 1779, 1785 – 1789 e 1792 – 1795 1779 – 1782 e 1789 – 1792 1811 – 1814 e 1817 – 1820 1820 – 1823, 1826 – 1829 e 1832 – 1834 1834 – 1837 e 1843 – 1846 Fonte: ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1, Livro das Eleições. A Madre Clara de São Bernardo, na origem do mosteiro, governou durante dois triénios consecutivos, isto é, de 1660-1666, mas, isto aconteceu porque, estando a comunidade no seu começo, ainda não havia religiosas em circunstâncias de serem eleitas, pois, para o cargo de abadessa, era necessário no mínimo trinta anos de idade e cinco de profissão e também ser religiosa competente e com a devida experiência. Com o Liberalismo a situação no interior do mosteiro tornou-se delicada. Não mais houve profissões e as religiosas iam envelhecendo e adoecendo. As jovens que entravam ficavam como pupilas. A ocupação do lugar de Abadessa passou a ser difícil quer pela ideologia que começou a reinar no interior da comunidade quer pela situação política do país. Desde o decreto de extinção (1834) até à morte da última professa (1890), verifica-se uma alternância ininterrupta entre as Madres Emília Romana do Empírio e Felisberta Clara de São Bernardo. Seriam as únicas religiosas capazes de exercer aquela função governativa com a necessária prudência. A partir de 1882, não havendo condições para eleição canónica o prelado fez simplesmente a sua nomeação. Nos processos eleitorais, registam-se casos em que a abadessa eleita reunia a quase totalidade dos votos, recaindo os restantes num grande número de religiosas. Noutros casos, os votos recaíam, essencialmente, em duas eleitoras, sendo a eleição decidida por uma diferença mínima de votos, por vezes, apenas um, como sucedeu em 1755, com a Madre Luísa de Jesus Maria que ganhou a eleição com quarenta e seis votos, tendo a Madre Teodora do Monte Oliveti, quarenta e cinco. Verifica-se que, nestes casos, a segunda religiosa mais votada era, normalmente, a eleita no triénio seguinte. Quadro nº.19 – Votações mais aproximadas Ano Votantes 1755 94 Madres mais votadas Teodora do Monte Oliveti Nº de votos 45 535 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Pautas dos ofícios do Convento da Nossa Senhora da Encarnação dos anos 1805 e 1806. 139 1761 105 1764 102 1767 104 1773 98 1776 91 Luísa de Jesus Maria Luísa Joana da Ressurreição Luísa de Jesus Maria Lauriana Luísa da Natividade Maria Bernarda do Vencimento Maria da Paixão Lauriana Luísa da Natividade Luísa Catarina de São João Maria Bernarda do Vencimento Francisca Querubins Luísa Catarina de São João 46 42 47 41 56 37 54 32 57 32 49 Fonte: ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 1, Livro das Eleições. Reparando nos quadros 17 e 19, verificamos que, de facto, das duas madres mais votadas, apenas a Madre Luísa Joana da Ressurreição não foi eleita no triénio seguinte, talvez por já ter sido abadessa de 1752 a 1755. 2.2. O Discretório Após a eleição da abadessa, eram eleitas, como ficou dito, as discretas ou conselheiras. O seu número era variável pois dependia da totalidade das religiosas que constituíam a comunidade. Sendo três o número mínimo, quando a comunidade atingiu o seu crescimento máximo, na primeira metade do século XVIII, as discretas chegaram a ser oito. Atendendo à responsabilidade das suas funções, deviam ser religiosas professas virtuosas, almas de oração e de paz, cheias de prudência e de bom senso. O seu mandato durava três anos, não devendo ser reeleitas para um triénio consecutivo. As excepções foram raras e sempre careciam de razões. As discretas, juntamente com a vigária, constituíam um corpo permanente governativo – o discretório. Cabia-lhes ajudar a abadessa do mosteiro com o seu parecer, ou o seu voto conforme os casos, aliás previstos nos estatutos. Esta assembleia, pela importância que tinha e pelo seu carácter de mobilidade, era um testemunho de corresponsabilidade governativa e simultaneamente um sinal da dignidade em que era tida a religiosa no seio da comunidade. 2.3. O capítulo conventual O capítulo conventual, constituído pelas religiosas professas, gozava de voto deliberativo ou consultivo, conforme os casos. Para que pudesse emitir um juízo justo e chegar a uma decisão responsável, devia ser informado pela abadessa em cada caso, com toda a clareza e rectidão. Só desta forma poderia ser feito um discernimento comunitário consciente e assumida a responsabilidade de um voto por parte de cada religiosa. A abadessa tinha o dever de consultar o capítulo conventual, em todos os assuntos de particular importância. Assistia à comunidade o direito de ser convocada semanalmente para “dialogar sobre os assuntos considerados úteis e importantes no âmbito espiritual e material, e até as mais novas deviam ser ouvidas, porque”, diz Santa Clara “muitas vezes é aos mais pequeninos que o Senhor revela o que é melhor”536. Era dever da abadessa dar contas à comunidade da administração, pois que, embora pertencendo-lhe a gerência dos bens, não era senhora deles537. Não podia vender propriedades, fazer contratos, aceitar ou doar bens, contrair dívidas ou tomar outras decisões importantes sem consentimento das religiosas capitulares e do respectivo prelado. De três em três meses devia apresentar as contas de 536 537 RU 4, XXII, 37, in FF II., p. 363. ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 15, fol. 117. 140 receitas e despesas ao capítulo ou, pelo menos, a quatro Irmãs nomeadas especialmente para o efeito538. O parecer da totalidade das religiosas, ou da sua maioria, devia ser respeitado. Esta corresponsabilidade, na sociedade de então, era uma verdadeira dignificação da mulher e afirmação da fraternidade cristã. Segundo a Regra, para que tudo fosse bem administrado, o mosteiro devia ter um procurador ou síndico, prudente e fiel, “nomeado e removido pela abadessa e a comunidade, como lhes parecesse oportuno”539. Este procurador devia prestar contas “de todas as receitas e despesas, à abadessa e Irmãs nomeadas para o efeito pela comunidade e ao visitador, sempre que este o requeresse, e nada podia vender, hipotecar ou alienar, sem consentimento da abadessa e comunidade”540. Ao capítulo conventual, órgão supremo de governo, assistia o direito de estar devidamente informado sobre os actos administrativos do procurador. 2.4. Livros de receitas e despesas No início de cada triénio, o mosteiro recebia um livro de contas onde seriam lançadas todas as receitas e despesas que tivessem lugar ao longo daqueles três anos. Na primeira folha averbava-se a sua finalidade: “Livro em que será lançada a receita deste mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, sendo abadessa (...) e escrivã (...) no presente triénio que começa a (...)”. Por ordem do bispo, o livro era paginado e as suas folhas rubricadas pelo confessor, o secretário da Câmara Eclesiástica ou outra entidade designada para o efeito541. A escrivã lançava neste livro todos os rendimentos das propriedades rústicas e urbanas, os juros, vendas, e qualquer outra receita, com muita minúcia e clareza. De igual forma, ali registava todas as despesas: pagamento do capelão, sacristão, missas, despesas com a igreja, reparações, despesas com as servas, servos e assalariados, procuradores, médicos, boticário, calçado das religiosas, vestuário, compra de produtos de consumo – trigo, açúcar, especiarias, peixe, carne e tantos outros. Trimestral ou quadrimestralmente, a abadessa dava a conhecer o estado de contas ao capítulo conventual, sendo, seguidamente, submetidas ao revisor indicado pela autoridade eclesiástica, após o que, se estivessem correctas, eram aprovadas pelo bispo. Verificamos que, em certos casos a aprovação episcopal se fazia no fim de cada ano. Vejamos, a título de exemplo: a 26 de Junho de 1823 o P. João Manuel Andrade que, por ordem do bispo, examinava as contas, deixou exarado no respectivo livro: “Em observância do provimento de Vossa Excelência, examinei esta conta de receita do último trimestre da muito reverenda abadessa D. Vicência Joaquina do Amor Sagrado e, conferindo-as com os documentos, as achei conformes e certas (...) e lançadas com muita clareza”542. Era então escrivã a Madre Felisberta Cândida de São Bernardo. Pôde, pois, o prelado do Funchal, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, aprová-las, o que aconteceu no dia 14 de Julho: “aprovamos as presentes contas de receita que houve no quarto trimestre do terceiro ano em que foi abadessa a reverenda Madre Vicência Joaquina do Amor Sagrado e muito louvamos o zelo e cuidado com que administrou as rendas do convento de Nossa Senhora da Encarnação”543. Ocasiões houve, e não poucas, em que nos livros ficavam averbadas observações pela falta de clareza, ou porque foram encontrados erros, o que obrigava à revisão das contas. 538 RU 4, XXII, 38, in FF II., p. 363. RU 4, XXI, 34, in FF II., p. 362. 540 RU 4, XXI, 34, in FF II., p. 362. 541 Assim se lê em cada livro: “Damos comissão ao escrivão da nossa Câmara para numerar e rubricar este livro, que servirá para no mesmo se lançarem as contas da receita do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação e fará no fim o competente encerramento. Paço Episcopal, 30 de Maio de 1826” (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 35). 542 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 33, fol. 70. 539 543 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F, L 33, fol. 70 v. 141 À medida que estes livros nos passaram pelas mãos, verificámos a competência das religiosas e a perfeição com que trabalhavam. Verificámos também que, raríssimas vezes, a mesma religiosa exercia o ofício de escrivã mais que um triénio. Esta contínua mutação demonstra que havia no mosteiro muitas religiosas cultas e aptas. CAPÍTULO IV ESPIRITUALIDADE E CULTURA 1. Vida espiritual 1.1. Eucaristia e ofício divino A oração litúrgica - missa e ofício divino - era tempo prioritário na vida espiritual da comunidade. O ofício, rezado ou cantado, era celebrado segundo o costume da Primeira Ordem Franciscana e, recomendava a Regra, que devia ser celebrado com seriedade e modéstia. Esta oração da Igreja estendia-se ao longo das vinte e quatro horas: Matinas à meianoite, Laudes e Prima ao romper da aurora, Tércia, Sexta e Noa, às nove, doze e quinze horas 142 respectivamente e Vésperas pelas dezoito horas. O dia terminava com a oração da noite, Completas544, pelas vinte e uma horas. Esta oração tinha lugar no coro e nela participavam os fiéis que o desejassem. A missa tinha lugar depois de Laudes e nela participava a comunidade, bem como as pessoas que, vivendo no mosteiro ou na zona circunvizinha, a isso se sentissem movidas. Continuadoras do carisma eucarístico, específico da Ordem de Santa Clara, o mosteiro tinha o Santíssimo Sacramento solenemente exposto, devendo cada religiosa ter, pelo menos, meia hora de adoração, fazendo-se, nesse momento, representante de toda a humanidade junto de Jesus Cristo. Este amor ao Santíssimo Sacramento receberam-no as clarissas da sua fundadora, Santa Clara, mulher extraordinariamente eucarística. E tão gostosamente o assumiram que, ao longo dos tempos, jamais os mosteiros deixaram de privilegiar a Eucaristia, mantendo o Santíssimo Sacramento solenemente exposto, se não todo o dia, pelo menos durante umas largas horas. No mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação viveram religiosas marcadas por este amor. Entre outras, mencionamos as Madres Teodora de Jesus, Joana Baptista e Filipa da Encarnação545. A coroa portuguesa, ligada à orgânica dos mosteiros, contribuía para a manutenção do culto eucarístico. A Câmara Eclesiástica do Funchal entregou, duma só vez, 36.060 reis para quatro arrobas e meia de azeite e duas de cera, de que Sua Majestade dispunha para o culto do Santíssimo Sacramento546. O Funchal teve, ao longo dos séculos, três mosteiros de religiosas clarissas, mantendo a adoração diurna; daí irradiou o amor a Jesus Eucaristia, que se tornou forte e palpável entre a população! Não terá sido essa a razão que levou D. Francisco Antunes Santana, bispo do Funchal, a chamar ao arquipélago da Madeira, nas suas prédicas, “Ilhas do Santíssimo Sacramento”? 1.2. Outros actos de piedade As religiosas, para além da oração dita comunitária, procuravam alimentar a sua vida espiritual com práticas de piedade, particularmente a via-sacra, devoção caracteristicamente franciscana. As solenidades da igreja mais significativas deviam as religiosas celebrá-las com esplendor não só na igreja mas na própria vida conventual. A alegria e o ar festivo assinalavam o Natal, a Páscoa, as festas da Nossa Senhora, particularmente da Conceição e da Encarnação, de Santa Clara, São Francisco, Todos os Santos e outras. Eram sempre antecedidas por novenas preparatórias ou pelo menos por um tríduo, habitualmente, sob a orientação dum pregador. Respondendo ao sentir da época e, por vezes, até às solicitações dos prelados, as religiosas inseriam-se em irmandades e confrarias, como aconteceu com a irmandade das Almas547 e a confraria de Nossa Senhora do Monte, cumprindo todas as obrigações devocionais a que cada membro se comprometia548. Procuravam cumprir devotamente as capelas e outros legados pios e ainda os sufrágios pelas religiosas e benfeitores falecidos e responder aos pedidos de oração que tantas vezes lhes eram dirigidos: interceder pela saúde de alguém, pedir o regresso da guerra, a boa viagem no mar549, o retorno ao bom caminho e até orar pela rainha quando esperava ser mãe. D. 544 RU 4, VI, 13, in FF II., p. 350. Noronha, op. cit., pp. 279 - 282. 546 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 28, fol. 51 v. 547 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1. 548 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 2. 549 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 5, doc. avulso. 545 143 Maria II, feliz por se haverem reatado as relações do Estado Português com a Sé Apostólica, suplicava, em Junho de 1841, que “no primeiro Domingo ou dia santo, se cantasse o Te Deum com solenidade, em cada uma das igrejas dos respectivos mosteiros e se rendesse graças a Deus Nosso Senhor”550. Mais pedia que se solenizasse esse dia com “repiques de sinos”. Em 1865 foram pedidos três dias de oração, 6, 7 e 8 de Abril, aos mosteiros de clarissas do Funchal, para obter a graça de um feliz nascimento do filho de D. Maria Pia de Sabóia, esposa de D. Luís551. 1.3. Vida de recolhimento e ascese Sabendo que a íntima comunhão com Deus supõe a necessidade de recolhimento de todo o ser, o silêncio era vivenciado pelas religiosas, não como um mandato, mas como espaço interior essencial e necessário para escutar o Senhor. Santa Clara, boa pedagoga nesta matéria, “ensinava as irmãs a afastarem dos corações toda a espécie de ruído, a fim de se fixarem unicamente na intimidade de Deus”552. Segundo a Regra de Urbano IV, que a comunidade professava, o silêncio devia ser observado fielmente, sempre que não houvesse razões para o contrário. Na enfermaria, contudo, essa exigência desaparecia: “tanto as débeis e doentes como as enfermeiras, podem falar para consolação das enfermas”553. Durante a noite, desde a hora de Completas até Tércia, as religiosas deviam guardar silêncio rigoroso, em atitude de fraterna caridade. Só um motivo grave podia justificar uma excepção. Nas festas e solenidades, para além do recreio ou convívio habitual, a abadessa podia autorizar um segundo recreio “para falar sobre a solenidade e os piedosos exemplos dos santos e sobre outras coisa lícitas e honestas, num lugar destinado para esse efeito”554. Em atitude penitencial e no seguimento da pessoa de Cristo, deviam levar vida ascética e mortificada. A regra que professavam prescrevia o jejum no Advento e Quaresma, bem como às sextas-feiras e noutros dias prescritos pela Igreja. Contudo, a abadessa, podia “dispensar, por caridade (...), as mais novas, débeis e idosas”, como achasse melhor, “de acordo com as suas debilidades e fraquezas”555. As religiosas viviam estas formas de penitência com amorosa generosidade, porque sabiam o valor da sua fecundidade apostólica. As religiosas sabiam também que a vida porque haviam optado era caminho de transformação, de seguimento de Cristo. Daí a obrigação de se empenharem na prática da caridade, humildade, espírito de sacrifício, conhecimento dos próprios limites. Não deveriam “dar muita importância às exigências do corpo frágil”556, como recomendava Santa Clara às suas irmãs no mosteiro de São Damião. No apartado Testemunhos de Santidade, desceremos a casos concretos pois muitas religiosas da comunidade da Encarnação foram modelos na prática destas virtudes. 1.4. Filiação em duas confrarias Na Ilha da Madeira, a espiritualidade mariana estava muito vinculada à vivência religiosa da população, espiritualidade essa que tinha manifestações concretas e, muitas vezes, conduzia à criação de confrarias. 550 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 6, doc. avulso. AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 6,doc. avulso: Carta circular de 5 de Abril 1865. 552 LCL, 36, in FF II, p. 267. 553 RU 4, IX, 19, in FF II, p. 353. 554 RU 4, IX, 19, in FF II, p. 353. 555 RU 4, XI, 21, in FF II, p. 354. 556 LCL, 36, in FF II, p. 268 551 144 Em 1750, quando D. Frei João do Nascimento, bispo do Funchal, criou a confraria da Senhora do Monte, sabendo da piedade mariana das religiosas, dirigiu uma carta à abadessa, a Madre Teresa Josefa de Santa Maria, dando orientações para que a comunidade e pessoas residentes no mosteiro se inscrevessem na nova milícia da Senhora. “Reconhecendo”, dizia o prelado, “e louvando a devoção que têm para com a Nossa Senhora do Monte, padroeira desta Ilha, todas as religiosas e mais pessoas do mosteiro que com toda a devoção, desejam e pretendem constituir-se escravas e servas da dita Senhora na confraria erigida em sua igreja, lhes concedemos licença para se alistarem na dita confraria”557. Para o efeito, o bispo enviou à escrivã do mosteiro um livro com termos onde devia fazer-se os assentos. A mesma escrivã recebia as esmolas anuais que, no final de cada Quaresma, remetia ao tesoureiro da Câmara Eclesiástica. Erecta a confraria em 6 de Abril de 1750, logo nesse mesmo mês, se procedeu ao preenchimento do livro de assentos. Em termos de texto repetitivo, se inscreveram cento e catorze religiosas, seis noviças, nove educandas e vinte e nove servas. Nos anos seguintes continuaram as entradas.558Os membros da confraria de Nossa Senhora do Monte gozavam de favores espirituais e de sufrágios depois da morte. Os bens de que dispunha esta e outras confrarias eram aplicados na ajuda dos confrades ou doutras pessoas carenciadas. Contudo, ao longo dos anos, os abusos aconteceram. Disso se queixou D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, em carta dirigida a D. Maria I, em 1788. Para evitá-los, apontava formas de “aplicação útil dos sobejos do dinheiro”559, que o prelado não chegou a especificar. Na época, também era grande a devoção às Almas do Purgatório. As pessoas procuravam auxiliá-las espiritualmente e também garantir sufrágios em seu próprio favor. Dentro desta doutrina, aliás estimulada pelo Concílio de Trento, no mosteiro da Encarnação instituiu-se em 1666 a Irmandade das Almas “por ordem e licença do prelado”, na qual se inscreviam as religiosas e servas. Cada membro da irmandade comprometia-se a “mandar dizer uma missa rezada por alma das Irmãs que falecessem”. A escrivã da irmandade assumia a responsabilidade de receber a esmola das missas, de as mandar celebrar, receber as quitações dos celebrantes e elaborar os respectivos termos560. Com as funções da escrivã conjugava-se a acção de um administrador cuja responsabilidade, em l686, cabia ao P. Manuel Pereira561. Quando a comunidade se tornou numerosa, o número de missas chegou a oitenta, noventa, cem e mais, por cada membro que falecia. Para além disso, todos os anos, dentro da oitava dos fieis defuntos, era celebrada uma missa com todo o cerimonial das missas de funeral, em que participavam todos os membros da irmandade e se rezava o ofício de defuntos de nove lições562. Nesta irmandade não eram recebidas pessoas seculares, mas podiam ser seus membros os confessores e os capelães do mosteiro, com iguais obrigações e direitos. Em 1692 e 1693 faleceram, como irmãos confessores, os padres Álvaro d’Atouguia e António Moniz e em 1729, o padre Gaspar Mendes dos Santos, sendo celebradas por cada um oitenta missas e rezado o ofício de defuntos de nove lições563. 557 ARM, Conventos, Cnv. Enc. F., doc. avulso: Carta do Cónego Manuel Álvares da Silva, escrivão da Câmara Eclesiástica, para a abadessa do mosteiro. ARM, Conventos,, Conv. Enc. F, L 2. 559 AHU, Madeira,, doc. 842. 560 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1: Termo do compromisso n.º 3. 561 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1, fol. 42 v. 562 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1: Termo do compromisso n.º 5. 563 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1, fol. 42 v. 558 145 O membro que, durante os oito dias que se seguiam à morte de alguma irmã, não entregasse à escrivã o estipêndio da missa pela qual era responsável, podia ser convidado a abandonar a irmandade564. De 1680 até meados do século XVIII, isto é, enquanto a capela de Nossa Senhora da Encarnação funcionou como sede da paróquia de Santa Luzia, a comunidade gozou também dos benefícios espirituais anexos à confraria do Senhor Bom Jesus e Almas. Dentro do mosteiro devia haver uma capela ou altar com um painel das Almas do Purgatório para que mais as recordassem, aumentasse a “devoção e orações pelas almas das suas Irmãs e fiéis”565. Talvez por isso, em 1746, o Papa Bento XIV concedeu ao mosteiro “lugares sagrados com benefícios espirituais de indulgências” num altar de São Pedro e São Paulo, não na igreja, mas na parte habitacional, em favor das madres falecidas566. 1.5. Testemunhos de santidade Segundo o cronista franciscano Frei Fernando da Soledade, “as religiosas empenhavamse na prática das virtudes cristãs e observâncias conventuais. Viviam com devoção os estilos regulares e santos costumes. Era o mosteiro da Encarnação de grandes perfeições e preciosas virtudes”567. Também Henrique Henriques de Noronha, nas Memórias Seculares e Eclesiásticas, se refere às religiosas que deram “singulares mostras de santidade (...), que floresceram nas virtudes”568. De facto, mesmo no meio de irregularidades, tantas vezes problemáticas, quantas religiosas ali se santificaram, deixando os mais belos exemplos de virtude!?... Religiosas que viviam sempre contentes, irradiavam felicidade e eram, para a sociedade do seu tempo, sinal de que Deus é bom e Pai. Segundo o mesmo cronista, no recolhimento da Encarnação, ainda antes de estar constituído em clausura, havia um ambiente de muita virtude. As recolhidas prezavam a sua vida espiritual e de união com o Senhor e, talvez por isso, quando houve licença de ser professo, todas pediram para serem admitidas ao noviciado, até mesmo a própria regente, Teresa de Jesus. Ouçamos Noronha: “A Madre Clara de S. Bernardo (...) plantou neste vergel as odoríferas flores da virtude (...); não só com a lição, mas com o exemplo, se particularizou tanto nas virtudes, que deixou uma grande memória de santidade, com que se faz saudosa às suas filhas”569. Maria de Corpus Christi, sobrinha do cónego fundador, “se adiantou tanto nas virtudes que (...), sendo a primeira de todas as que ali professaram (1661), se esmerou tanto na observância da santa regra, que serviu de exemplo às demais”570. Nesse mesmo ano professou a Madre Teodora de Jesus que, por ser muito virtuosa, “várias vezes a elegeram prelada, em que deu sempre grande exemplo às suas súbditas”571. A Madre Teodora de Jesus foi alma verdadeiramente eucarística, de muita oração e intimidade com Deus. Quando morreu, em 1673, a comunidade vivia com muito fervor e profundidade espiritual. 564 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 1: Termo do compromisso n.º 7. ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L1: Termo do compromisso n.º 7. No “Livro das Imãs das Almas e contrato espiritual entre as religiosas e o Convento”, de 1666, ano da instituição da irmandade, onde se encontram as inscrições e os termos dos sufrágios aplicados a cada membro após a morte, foram inscritas, até 1740, duzentas e noventa e uma irmãs religiosas. 566 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 2, doc. avulso; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p.113. 567 Fernando da Soledade, op.cit., III, p. 354. 568 Noronha, op. cit., p. 279. 569 Noronha, op. cit., p. 280. 570 Noronha, op. cit., p. 280. 571 Noronha, op. cit., p. 281. 565 146 Já “mulher maior”, entrou no mosteiro, com mais cinco irmãs, membros da família Saldanha, a que já aludimos, a Madre Maria do Socorro, cuja vida foi exemplar. “Na última doença que teve, de que faleceu, em que todo o corpo lhe ficou cheio de chagas, teve tanta resignação e paciência que nunca se lhe ouviu uma queixa”. Faleceu na sexta-feira santa, 28 de Março de 1687, quando a comunidade rezava Matinas. Sua irmã de sangue, Catarina Maria de Nazaré, falecida seis anos mais tarde, deixou maravilhosos exemplos de espírito de sacrifício e de penitência572. Nos começos do século XVIII, em 1705, faleceu a Madre Conceição, sobrinha do Cónego Calaça de Viveiros, que ocupara um dos lugares que o tio pedira para suas parentes. “Foi uma exacta observadora da sua santa regra, pelo que mereceu particulares mimos de Deus, ainda nesta vida, e dos que está possuindo hoje, nos informa o seu corpo intacto e incorrupto, exalando um odorífero cheiro, causa porque está vedado o abrir-se-lhe a sua sepultura”573. Almas verdadeiramente piedosas, almas de oração, foram as Madres Joana Baptista e Filipa da Encarnação, que chegaram a ter grande intimidade com Jesus Sacramentado. Também a Madre Maria dos Santos, natural de Porto Santo, falecida em Agosto de 1679, que depois de viúva professou no mosteiro da Encarnação, foi exemplaríssima na prática de todas as virtudes, “cuja vida aprovou Deus na sua morte, com alguns sinais de predestinação”. Da mesma ilha, veio uma filha de Sebastião Coelho Calaça, Guiomar do Espírito Santo, que, à semelhança de tantas religiosas da sua família que ali viveram santamente, também ela se distingiu pelo espírito de oração e prática das mais excelsas virtudes, particularmente da caridade. “Alma profundamente mística, passou os últimos anos entrevada sem poder levantar-se. Nela eram frequentes os êxtases que, unindo-a ao Senhor, a alheavam das coisas desta terra”574. Faleceu com claros sinais de santidade a 25 de Maio de 1722. Entre a opulência do mosteiro e de certa dispersão, quanta santidade!... Fernando Augusto da Silva, falando da vida da comunidade nos primeiros cem anos, assim testemunha: “neste mosteiro manteve-se sempre a disciplina conventual (...) a prática de todas as virtudes (...) a santidade”575. Aconteceu, porém, que a ideologia do séc. XVIII, que se traduziu em opulência primeiro e em decadência espiritual e económica depois, abriu caminho a irregularidades conventuais que marcaram o começo de uma crise que progressivamente se foi arrastando e levou o mosteiro à morte em 1890. É pena que o mosteiro que começou tão bem e onde reinava a ordem e a virtude, se tivesse afastado do fervor inicial. 1.6. Ao serviço da Igreja local Na segunda metade do século XVII, o bispo do Funchal, D. Frei António Teles da Silva, de vida profundamente exemplar, que administrou a diocese com o mais solícito empenho, procurou dotá-la, material e espiritualmente, com os meios necessários à sua organização. Reconhecendo a necessidade de descongestionar a freguesia da Sé para uma regularização dos serviços paroquiais, foi escolhida a capela de Santa Luzia, situada perto do mosteiro da Encarnação, para sede de uma nova paróquia. Criada por “Alvará do Senhor Rei 572 Noronha, op. cit., p. 281. Noronha, op. cit., p. 281. 574 Noronha, op. cit., p. 283. 575 Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 183. 573 147 D. Pedro II, em 28 de Dezembro de 1676”576, foi seu primeiro vigário o P. Amaro de Atouguia da Costa. Na capela de Santa Luzia, pela sua pequenez e, sobretudo, pelo estado de degradação em que se encontrava, nunca chegou a ter lugar o serviço paroquial. Enquanto não foi construída uma nova igreja, funcionou a capela do mosteiro como sede da freguesia. As religiosas tiveram a sua capela disponível para o serviço paroquial pelo espaço de uns setenta anos577. Ai decorria toda a vida espiritual da paróquia de Santa Luzia, missas, baptismos, casamentos, exéquias, práticas de piedade e devoções. No termo de abertura dos livros de baptismo, matrimónio e defuntos, lê-se: “Livro dos Termos (...) desta igreja de Nossa Senhora da Encarnação, intitulada de Santa Luzia (...) 1680”578. O primeiro baptismo realizou-se em 13 de Julho de 1680; o primeiro óbito está averbado com a data de 15 de Outubro do mesmo ano e o primeiro casamento realizou-se a 5 de Junho de 1681579. A capela do mosteiro usufruiu, ao longo de quase setenta anos, de alguns benefícios especiais concedidos à paróquia de Santa Luzia, logo após a sua criação. Assim, a 3 de Dezembro 1680, quatro anos após a criação da paróquia, era erecta a confraria do Santíssimo Sacramento por alvará concedido pelo prelado diocesano, D. António Teles da Silva. Tal concessão foi causa de júbilo para as religiosas, dado que a igreja do mosteiro seria a sua sede enquanto ali estivessem os serviços paroquiais. Foi grato constatar como o culto do Santíssimo Sacramento se desenvolveu, tornando-se a igreja do mosteiro o centro de um riquíssimo património espiritual de vida eucarística. Em breve a paróquia era agraciada com um novo favor espiritual: A confraria do Senhor Bom Jesus e Almas, criada em 1681, vinculada ao culto das Almas do Purgatório580. Embora no mosteiro funcionasse desde 1666 a Irmandade das Almas, esta confraria favoreceu a vivência devocional às Almas do Purgatório. A população do Funchal, e não só da referida paróquia, acorria à igreja da Encarnação para desfrutar a beleza do ofício divino das religiosas e tomar parte nas celebrações litúrgicas tão enriquecidas pelo canto, em que a comunidade primava. Ali se concentrava a mais alta fidalguia da Ilha nas grandes solenidades e pregações. Muitas pessoas, movidas pelo amor à Eucaristia, vinham fazer oração diante do Santíssimo Sacramento, que as religiosas costumavam manter solenemente exposto. Nas grandes solenidades, a custódia ocupava lugar de relevo na tribuna, dando à capela um maravilhoso ar festivo. Aos sábados costumava a população citadina reunir-se neste templo para oração e devoções pessoais. As festas de Nossa Senhora da Encarnação, que se revestiam de beleza e pompa, eram custeadas totalmente pela nobreza da ilha, especialmente do Funchal. Entretanto, por alvará régio de 1719, mandara D. João V proceder à construção de uma igreja de Santa Luzia. Situada em local um pouco afastado da antiga ermida, surgiu ampla, bela e digna. Desconhece-se o ano certo em que começaram as obras, mas sabe-se que foram retardadas e que decorreram com morosidade, pois, em 1740, ainda estavam em curso e só teriam sido concluídas no ano seguinte. “O alvará régio do Senhor D. João V, de 13 de Agosto de 1745, criou um curato nesta freguesia”581. Após a conclusão das obras, os serviços paroquiais, que tinham lugar na capela do mosteiro, passaram para a nova igreja de Santa Luzia. 576 Ilhas de Zargo, II, pp. 429, 449 e 741; Tricentenário da freguesia de Santa Luzia, 1676 –1976. Monografia comemorativa e histórica, Funchal., 1977, p 48 - 49; Fernando Augusto da Silva, op. cit., I, pp. 238 – 239. 577 A igreja de Nossa Senhora da Encarnação serviu de matriz, “não aproximadamente vinte anos”, como se lê, em Eduarda Maria de Sousa Gomes (op. cit., p. 110), mas uns setenta, isto é, desde 1676, até 1745, ano em que D. João V criou um curato na nova igreja de Santa Luzia. 578 Tricentenário, (... ), pp. 69 , 71, e 73 579 Tricentenário ( ... ) pp. 70, 72 e 74. O volume XX do Arquivo Histórico da Madeira reproduz, na página 78, o artístico frontispício do Livro de Óbitos. 580 Tricentenário, (...), pp. 107 - 108. A mais antiga confraria das Almas, na Ilha da Madeira, teve a sua sede na Sé do Funchal , 1587-1816 (“Confrarias e Irmandades”, Arquivo Histórico da Madeira, 20( l997)128 ). 581 Tricentenário (...), p. 48. Ilhas de Zargo, II, pp. 429, 449 e 741. 148 2. Cultura 2.1. O cultivo das letras e das artes no mosteiro A comunidade, para poder desempenhar com competência as suas funções religiosas precisava de uma boa formação cultural. Sendo o mais importante dos seus deveres, segundo a Regra, a oração, e, com especial relevo, a oração da Igreja, o ofício divino, as religiosas precisavam de conhecimentos culturais, particularmente a leitura, a escrita e o canto. E devemos salientar, que o ofício era em latim. Daí que houvesse na comunidade grande interesse em estudá-lo, no que se faziam auxiliar pelo capelão e pelo confessor. Pelos menos na leitura deviam ser exímias. Diz a Regra de Urbano IV: “Em relação ao ofício divino, que se deve tributar ao Senhor, tanto de dia como de noite (...) as que sabem ler e cantar, devem celebrá-lo, segundo o costume da Ordem dos Frades Menores”582. Também a música sacra era cultivada com muito interesse, dado que as celebrações litúrgicas deviam ser vivenciadas pelo canto. Tanto a missa como o ofício divino pediam a competência das religiosas nesta matéria. É evidente que, nos séculos XVII e XVIII, o desejo de cultivar-se se ia generalizando. Às candidatas que entravam devia dar-se a cultura literária necessária. Dentro do campo artístico, o desenho e a pintura mereceram a atenção das religiosas; as artes menores, que cultivaram esmeradamente, transmitiram-nas às candidatas. Pelas assinaturas das actas das tomadas de hábito e profissões, se detecta que cada religiosa sabia escrever correctamente. À medida que manuseámos os livros de recitas e despesas, os livros de actas, de óbitos e a correspondência oficial, verificámos a competência das religiosas, a perfeição com que trabalhavam. Algumas escrivãs distinguem-se pela perfeição e método, beleza artística e dotes caligráficos, como por exemplo as Madres Mariana de Santa Teresa (1708-1711)583, Mariana da Paixão (1755-1757)584, Carlota Matilde da Conceição (1808-1811)585, Felisberta Cândida de São Bernardo (1820-1823 e 1826-1829)586, Emília Romana do Empírio (1831-1833)587. A fotografia inserta na página seguinte, reproduzindo o frontispício do Livro de receitas e despesas dos anos 1708-1711, é um exemplar belíssimo da capacidade artística da Madre Mariana de Santa Teresa. A minúcia do desenho, a beleza do sombreado, a perfeição caligráfica, a artística letra capitular, enfim, a harmonia do conjunto revelam dons apreciáveis. Na arte de bordar tornaram-se exímias. O Museu de Arte Sacra possui alguns paramentos litúrgicos de igrejas da diocese do Funchal que certamente terão sidos bordados nos mosteiros da cidade ao longo dos séculos XVII e XVIII, entre os quais podemos mencionar o de Nossa Senhora da Encarnação. O bordado era feito sobre seda e linho, em matiz, ouro e prata, com aquele requinte que a finalidade exigia. O linho, para os trabalhos litúrgicos, cultivava-se nas propriedades do Campanário, Porto Santo e outras588 . 25. Frontispício do Livro de Receitas e Despesas. Este belíssimo frontispício do Livro de Receitas e Despesas do triénio da Madre D. Mariana de São Bernardo (1708-1711) é uma amostra feliz da capacidade artística da Madre Mariana de Santa Teresa, escrivã. A perfeição e harmonia do desenho, o bom gosto, a delicadeza do sombreado revelam espírito criativo, talento artístico, sensibilidade estética. Fotografia de Jorge Valdemar Guerra, ARM 582 RU 4, VI, 13, in FF II, pp. 350 - 351. ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 18. 584 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 16. 585 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 30. 586 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 23 e 36. 587 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc., F., L 38. 588 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 32, fol. 19 v - 23. 583 149 2.2 A educação de “moças nobres” Como era habitual na época, no mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação entravam “moças nobres” que, com licença régia e eclesiástica, ficavam na clausura alguns anos, com fins pedagógicos. Foi o que aconteceu com Úrsula de Andrada, que entrou em 1671, Ana Eugénia da Conceição em 1742 e Rita Joaquina de Cássia no final do século XVIII. E os casos foram muitos. Já no século XIX, em 1807, o visconde da Anadia, em nome do príncipe regente, comunicava ao prelado do Funchal a entrada de D. Isabel Anacleta Bettencourt e Câmara e D. Jesuína Bárbara da Câmara, como educandas. Um irmão encarregava-se das despesas, o que nos faz pensar que seriam órfãs. O mesmo visconde pedia ao bispo, em nome do mesmo príncipe: “nesta conformidade expeça as ordens necessárias à prelada do mosteiro”589. Para as educandas havia mestras específicas que, além da valorização cultural - leitura, escrita e música -, lhes transmitiam conhecimentos das chamadas artes menores e outros saberes: desenho, pintura, iluminura, decoração, culinária, particularmente as doçarias. Em toda a espécie de doçaria e dos mais requintados pratos e raros manjares, ficavam especializadas estas pupilas fidalgas. A par desta formação cultural e feminina, prezavam as religiosas a preparação e vivência espiritual das suas educandas. Alias, quando os pais procuravam munir-se das respectivas licenças, referiam-se sempre a esse aspecto: “a sua educação civil e religiosa”. A esta formação juntavam as religiosas a aquisição de boas maneiras e regras de delicadeza, de cortesia e de relacionamento, tão necessárias às jovens que, uma vez na sociedade, deveriam comportar-se com muita dignidade e distinção. Como facilmente poderemos intuir, estas jovens foram muitas vezes causa de problemas no interior da clausura, dado o seu gosto pelas vaidades do mundo. Em contrapartida, entre elas, despertaram algumas vocações. Em 1677 a filha do provedor Francisco de Andrada, acima referida, a menina Úrsula, que entrara com oito anos de idade como educanda, solicitou a entrada no noviciado quando fez quinze anos590. Também Ana Eugénia da Conceição, que havia entrado com dez anos, completados os quinze pediu para ser admitida como candidata ao noviciado, porque desejava muito “ser noviça”591. Nos princípios do século XIX, foi Rita Joaquina de Cássia que, recebida aos cinco anos como educanda, quis professar, facto que se verificou por 1810 1811 no mosteiro de Santa Clara, aquando da estadia da comunidade nesse mosteiro592, por razões que indicaremos no capítulo Tentativas de superação da crise. CAPÍTULO V PATRIMÓNIO, ECONOMIA E SUBSISTÊNCIA DO MOSTEIRO 1. Património 1.1. Propriedades rústicas 589 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Mello, de 30 de Setembro de 1807, para o bispo do Funchal. 590 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, doc. avulso : Petição de Francisco de Andrada, feita em 1671. 591 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 2, doc. avulso : Petição de Ana Eugénia da Conceição de 1747. 592 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso. 150 A Regra de Urbano IV, que o mosteiro professava, permitia que "as irmãs pudessem receber, possuir e reter em comum rendas e possessões," contrariamente à Regra de Santa Clara que exigia pobreza pessoal e colectiva593. Assim, e porque os papas e reis queriam por este meio garantir a sobrevivência dos mosteiros, as propriedades foram-se acumulando, bem como as rendas e privilégios. Estes bens eram provenientes dos dotes das religiosas, de heranças, de arrematações e de compras. Os bens imóveis do mosteiro consistiam em propriedades rústicas e urbanas. Ao longo dos tempos estas propriedades foram aumentando, dada a sua proveniência. O mosteiro da Encarnação teve propriedades em vários concelhos da Madeira. Entre as muitas propriedades rústicas dispersas pela Ilha, mencionamos como as mais importantes: Quadro nº.20 – Propriedades rústicas do mosteiro Funchal São Roque São Gonçalo (9 fazendas) São Martinho Monte Santa Luzia Santo António Corujeira Calheta Arco da Calheta (8 fazendas) Lombo da Atouguia Jardim de Baixo Caminho do Risco Ponta do Sol Machico Madalena do Mar Água de Pena Fajã da Areia Porto da Cruz (4 fazendas) Lombo das Terças Sítio do Caramaxão Achada do L. de S. João Canhas Tabúa Serra d’Água Sítio da Ribeira Ribeira Brava Pé de Vargem Cabouco S. Vicente Pico da Murta Fajã da Areia Ribeirão Boaventura Santana Achada do Vigário Queimadas Sítio da Furna Sítio do Calhau de S. Jorge Santa Cruz Gaula Lombada Sítio da Fonte Camacha Montados Caniço Curral Velho Sítio do Curral C. Lobos Campanário Palmeira Covão Fonte: ANTT, Arquivo do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. 4, 5 e 9; AHU, Madeira, doc. 262 e 263; ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L. 12 e 23. Eram um total de sessenta e seis propriedades rústicas de valor variável594. A estas devemos juntar o património que o mosteiro possuía no Porto Santo, constituído pela dotação do fundador e dotes de algumas religiosas, como por exemplo, Maria dos Santos. Ali, o mosteiro tinha propriedades no Sítio da Ponte, Sítio das Madres, Campo de Baixo, Lombas, Marinhas, Fontinha, Sítio das Terças, Sítio das Freiras e outras mais. Um total de trinta e oito propriedades que ocupavam uma área de 1 931 865 metros quadrados 595. Nestas propriedades da Madeira e Porto Santo cultivavam-se os mais variados produtos: vinha, trigo, centeio, batatas (semilhas), batata-doce, frutas, inhame, hortaliças que, como veremos, eram fonte de receita para o mosteiro. Quanto à forma de exploração das propriedades rústicas, encontramos o sistema de “meias” ou meação, de arrendamento e foros. O mosteiro cedia o domínio útil da terra mediante o pagamento de certo quantitativo em dinheiro e, por vezes, em géneros. O centro pagador dos foros era o mosteiro. No entanto, a sua cobrança podia fazer-se localmente, de início ao procurador que, para o efeito, se deslocava às freguesias; depois, aos arrecadadores locais e nalguns casos aos vigários596. 593 RU 4, XXI, 34 , in F F II, p 362. O livro 32 aponta e descreve as propriedades rústicas que o mosteiro possuía na Madeira e Porto Santo em 1815, ali averbadas pela escrivã Madre Maria Angélica dos Serafins. Nessa data estavam reduzidas a cinquenta e três. 595 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 12; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 78. 596 Eduarda Maria de Sousa Gomes, .op. cit., p. 41-42. 594 151 No mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, o procurador foi sempre o cobrador de rendas, trabalho que o obrigava a deslocamentos frequentes. Com o aumento do património imobiliário, passou a ser auxiliado pelos arrecadadores, espécie de procuradores locais. A partir de pelo menos meados do século XVIII, o mosteiro tinha um procurador em Lisboa, a quem competia tratar das demandas que corriam na corte597. Normalmente, estes síndicos ou procuradores eram membros do clero. Havia também um solicitador que ajudava a comunidade nos assuntos de justiça. 1.2 Prédios urbanos Os prédios urbanos que a comunidade possuía em 1764 situavam-se no Funchal e Porto Santo. Os do Funchal encontravam-se no Corpo Santo, Rua dos Tanoeiros, Rua Direita, Calçada da Encarnação, Rua do Monteiro, Rua de Santa Maria, Rua dos Murças, Rua da Queimada598. Algumas destas casas estiveram arrendadas a inquilinos diversos que deveriam fazer nelas as obras de manutenção que fossem necessárias, pelo que o seu rendimento não era líquido. O sobrado da casa da Rua dos Murças, no século XVIII, esteve arrendado aos ingleses Guilherme Mordok e Robert Franch599 e a loja a mercadores da mesma nacionalidade, Thomas Lamar e Matheus Hiccok600. Desde a fundação o mosteiro possuiu duas casas na rua dos Tanoeiros. O número de prédios urbanos, ao longo dos séculos XVII e XVIII, foi sempre aumentando, dada a sua proveniência: doação e dotação, arrematação, heranças e compra601. No Porto Santo tinha, além de outras, uma casa térrea que durante alguns anos serviu de habitação a um dos meeiros do mosteiro, Estevão Calaça602. 1.3. Juros Os dotes em dinheiro eram uma fonte financeira muito substancial. O total de dotes a render ascendia algumas vezes a mais de cem, dado que nenhuma religiosa professava sem ele. O dinheiro era posto a rentabilizar, sendo os empréstimos a juros um processo usual no mosteiro para o aumento de rendas que ajudava à auto-suficiência da comunidade. O juro aplicável era normalmente de 5%. Houve épocas em que o total dos contratos de empréstimos de dinheiro ascendia a mais de duzentas pessoas. Por exemplo, entre 1673-1749 o mosteiro fez um total de duzentos e trinta e seis novos contratos de empréstimo, alguns dos quais a dotadores603. 2. Economia: relações comerciais do mosteiro 2.1. Os produtos de consumo No final do século XVII, o mosteiro comercializava parte do trigo cultivado nas suas muitas propriedades, sendo por vezes moeda de pagamento para a aquisição de outros produtos. No triénio 1675-1678, o mosteiro vendeu trigo: trinta e cinco moios e nove 597 ARM, Conventos Conv. Enc. F., L 18, fol. 14. AHU, Madeira, doc 262 e 263; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 9, fol. 83; ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 12, 14, 16 e 23. 599 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23, fol. 35 e 148, respectivamente; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op.cit., p. 68. 600 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L. 16, 22 e 24; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 69. 601 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 12, 14, 16 e 23. 602 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 9, fol. 81. 603 Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 85 - 86. 598 152 alqueires; no de 1681-1684, dois moios e cinquenta e sete alqueires604. A partir de fins do mesmo século, jamais foi auto-suficiente deste cereal que passou a comprar, por intermédio de comerciantes ingleses, nas “Ilhas do Senhor Santo Cristo”, pois que os Açores desempenhavam um papel relevante no fornecimento de pão à Madeira605. As referências ao trigo das ilhas , trigo de Santa Maria, trigo de São Miguel, são frequentes nos livros de receitas e despesas nas últimas décadas do século XVIII. Não admira, pois, que a ordem régia de 1557, que limitava a exportação do trigo açoriano à “praça de Mazagão” e à Corte, tivesse criado problemas na Madeira e, evidentemente, nos mosteiros606. O mosteiro da Encarnação já em meados do século tinha muita dificuldade na aquisição de trigo, pelo que a porção dada às religiosas que não comiam no refeitório comum, passou a ser dada em dinheiro. Em 1741, por ordem do bispo da diocese, o vigário do Campanário entregou trigo ao mosteiro. Nessa altura, o pão que se fazia para os trabalhadores era uma mistura de trigo e centeio607. Na Ilha da Madeira cruzavam-se as rotas comerciais entre a Europa, a Ásia e o Continente Americano, que se desenvolveram nos séculos XVII e XVIII. Com a passagem do centro financeiro de Amesterdão para Londres, a influência comercial francesa foi substituída pela dos ingleses, que se tornaram detentores do comércio das ilhas do Atlântico, chegando muitos deles a radicar-se na Madeira. As colónias inglesas da América do Norte e as Antilhas passaram então a alimentar o comércio madeirense608. Os ingleses não abasteciam a Ilha somente de trigo dos Açores mas também, e sobretudo, de produtos das suas colónias da América, tais como cereais, peixe, carne e tabaco, bem como de bacalhau, arroz e “trigo inglês de Londres”609, que traziam de outra zonas. No mosteiro da Encarnação o vinho, e nalguns casos a aguardente, era a moeda com que se pagavam não só os produtos necessários ao quotidiano da comunidade mas também alguns artigos ricos e quantidades consideráveis de tabaco. Era a única forma de conseguir exportar o vinho. O mosteiro vendia vinho e aguardente para o Brasil610. Com outras áreas geográficas mantinha relações directas ou por intermediários, como mostra o facto de entre 1690-1693 ter perdido trinta e dois mil reis que enviara para a Ilha de Samatra611, talvez destinados ao pagamento de especiarias que de lá houvessem importado. No Funchal havia duas casas inglesas, a Casa do Cônsul e a Casa da Companhia Velha, habituais abastecedoras da comunidade. 2.2. O tabaco O tabaco, planta herbácea de origem americana, foi durante muito tempo designada “erva santa” pelas suas propriedades medicinais, particularmente como analgésico. Muitas pessoas, quando tinham dores de dentes, a ele recorriam como forma de alívio. Um outro emprego era em feridas ou golpes de pouca extensão e profundidade. Aplicado sobre a parte afectada, era rápida a cicatrização. Porém, “o cheirar tabaco” tornou-se um hábito corrente na sociedade de então, e em muitos casos degenerou em vício. O seu uso generalizou-se, sobretudo em pessoas de certa 604 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9 e 16, respectivamente. Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 91 e 101. 606 Sobre o abastecimento dos presídios do Norte de África, pode ver-se o nosso trabalho: Portugal em Marrocos na época de D. João III – Permanência ou abandono?. Trata-se da tese de licenciatura apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, em 1966, publicada pelo Centro de Estudos de História do Atlântico do Funchal em 1998. 607 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 22, fol. 46. 608 Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 95 - 96. 609 Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 95 - 96; A.H. Oliveira Marques, História de Portugal, Lisboa, 1985, II, p. 259. 610 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23. 611 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 15, fol. 150. 605 153 idade, tornando-se como que um atributo da sua vivência. Tanto homens como mulheres fizeram do “cheirar tabaco” um requinte e prazer612. No século XVIII o uso do tabaco generalizou-se na Ilha e isto porque passou a ser a moeda para a compra do vinho. Neste século o comércio inglês, por falta da moeda metálica, assentava na troca directa e, portanto, as religiosas, para terem garantida a exportação do vinho e da aguardente, recebiam das mãos dos ingleses os produtos que lhes eram oferecidos, entre os quais o tabaco. Na comunidade o uso do tabaco apareceu em 1705. No Natal desse ano foi uma das ofertas da abadessa às religiosas. Desde então, passou a ser-lhes dado nas grandes festas: Natal, Reis, Festa da Madre e outras613. Além do uso terapêutico que lhe era dado, as freiras também gostavam de cheirar tabaco. A partir daquela data, o tabaco passou a entrar no mosteiro em quantidades progressivas. De 1735 a 1763 recebeu anualmente uma média de doze a dezoito arráteis, o que é muito. Servia para presentear os feitores, procuradores e arrecadadores, médicos e outras pessoas a quem as religiosas fossem devedoras de delicadezas. Em 1748 o arrecadador da Calheta foi presenteado com tabaco,614como aconteceu ao procurador da mesma localidade, José Bernardes, em 1750, que recebeu como presente, além de um presunto, uma certa quantidade de tabaco615. O procurador do Porto Santo, que habitualmente não aceitava remuneração, recebia frequentes presentes em tabaco. Em Agosto de 1761, em Janeiro de 1762 e em Junho de 1763, foi “mimoseado”, com um quarto de arrátel616. O tabaco que o mosteiro recebia das mãos dos ingleses em troca de vinho, serviu, muitas vezes, de moeda para pagar os trabalhadores agrícolas, os homens da poda, da vindima, da trasfega617e igualmente para venda. Em 1705 um meeiro comprou às religiosas tabaco que pagou com vinho618. 3. A subsistência do mosteiro 3.1. Os produtos, como meio de subsistência O mosteiro dispunha de duas cercas, a cerca de cima e a cerca de baixo, numa área de 7.897 metros quadrados619. A cerca de cima, inicialmente, produzia trigo que veio a dar lugar à vinha, pelo menos até 1768; depois cultivou-se simultaneamente vinha e trigo. A cerca de baixo fornecia às religiosas legumes e hortaliças - cebolas, couves, abóboras, agriões e nabos620. Contudo, a produção das cercas era insuficiente, pois, além do elevado número de religiosas, servas e servos e, geralmente, trabalhadores agrícolas, havia ainda as educandas e senhoras recolhidas. Por isso, recebiam produtos de outras propriedades, trabalhadas em regimes de meias, tais como o trigo e o centeio de São Vicente, o centeio, vinho, inhame, abóboras, castanhas, tremoços, feijão de várias qualidades e galinhas, da Calheta e Santana, o trigo e fruta, especialmente pêras, do Porto Moniz. De Santa Cruz, Câmara de Lobos e Porto Novo vinham, além de trigo e vinho, muitas cebolas, nozes, pêssegos, inhame, castanhas, 612 Rui Santos, Crónicas de outros tempos, Funchal, 1996, pp. 110 - 118. Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., pp. 144 - 145. 614 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22. 615 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23, fol. 35. 616 ARM, Conventos, Conv. Enc., F, L 23; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., 145. 617 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 24. 618 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 17; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 144. 619 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso. 620 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 23. 613 154 fruta, batatas e abóboras. De Machico chegavam, galinhas, feijão e ervilhas. O norte da Ilha fornecia trigo e, muito esporadicamente, aves e favas621. Da Ilha de Porto Santo chegavam os produtos mais variados. Além dos cereais, trigo, cevada, centeio, vinha, fruta, açafrão, lentilhas, abóboras, melancias, muitos cordeiros para abate622. Os grãos, ervilhas, lentilhas, feijão e favas, eram consumidos secos, visto que os importavam. Além dos produtos a que tinha direito pelo regime de exploração, o mosteiro também comprava, segundo as suas necessidades, aos arrendatários. Havia dotadores que, ficando devedores dos dotes de suas filhas, os pagavam em géneros. Em 1731, o capitão Francisco França, viúvo, residente na Calheta, pai de três filhas que haviam professado em 1722, entregou à comunidade aves e ovos no valor de 1.900 réis623 e, em Agosto do ano seguinte, entregou também aves e ovos no valor de 2.000 réis624. O capitão Brás Moniz de Meneses, residente no Porto da Cruz, com três filhas no mosteiro, que haviam professado em 1699, 1726 e 1729, pagou à comunidade os dotes de suas filhas em géneros. O açúcar, apesar de haver alguma produção nas fazendas do mosteiro, era comprado às caixas. Esta aquisição aumentava nos meses festivos de Dezembro, Abril e Agosto ou nos precedentes. Em Lisboa a comunidade abastecia-se de azeite, grãos, especiarias, cera, papel, louça e por vezes de trigo625. O peixe, que se adquiria à porta626, era fornecido por Câmara de Lobos. As sardinhas vinham de Lisboa. A comunidade comia peixe da Berbéria, em Marrocos627e das Canárias628. A carne obtinha-se no açougue, quando os almotacéis impediam a compra de gado. A 7 de Março de 1726, D. João V, respondendo ao pedido que lhe fora apresentado, autorizou a matar e cortar carne no próprio mosteiro, privilégio de que também gozava o Santa Clara629. 3.2. O quotidiano e os dias festivos Em dias normais a alimentação era sadia mas sóbria. Faziam normalmente duas refeições - jantar e ceia - podendo haver mais uma refeição ligeira. Uma das bases da alimentação era o pão, feito no próprio mosteiro. Daí, o enorme consumo de farinha de trigo. O arroz foi, depois do trigo, o cereal básico na alimentação da comunidade. A carne, especialmente de vaca em dias comuns e de galinha nos dias festivos, era o conduto mais frequente fora dos dias de jejum. Nestes, optava-se pelo peixe e mais frequentemente por ovos ou queijo, dado que o pescado não abundava na Madeira. O peixe - bacalhau, atum, sardinha, chicharro, pargo e arenque -, era consumido fresco, salgado e fumado. As religiosas também gastavam legumes que provinham, na sua maioria, da cerca de baixo. Àquelas que não se serviam do refeitório da comunidade, mas tinham cozinhas particulares, entregava-se, segundo os Estatutos, uma determinada quantidade de trigo, carne e peixe. Em períodos de difícil aquisição de produtos, essas religiosas recebiam o valor correspondente em dinheiro630. As religiosas da Encarnação consumiam, abundantemente, as especiarias que, a partir do século XV, inundaram a Europa: pimenta, canela, cravo, noz-moscada e outras. 621 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9, 14-16, 18-19, 22, 24; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 90 e 175-181. ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9, 14-16, 18-19, 22, 24; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 90 e 182-184. 623 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 18, fol. 23; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p.96. 624 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 18, fol. 25. 625 ARM, Conventos, Conv. Enc., F, L 16, fol. 175. 626 ARM, Convento, Conv. Enc. F, L 16, fol. 114; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit. p. 93. 627 ARM, Convento , Conv. Enc. F, L 16, fol. 109; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 93. 628 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L22, fol. 60. 629 ANTT, Chancelaria Régia de D. João V, L 70, fol. 5 v - 6; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p 92. 630 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 14, 15, 16 e 18. 622 155 Utilizavam-nas na preparação de pastéis, picados, chouriços, arroz-doce, bolos de mel e outros manjares. Em dias festivos, Páscoa, Natal, festa de Santa Clara, de São Francisco, de Nossa Senhora da Encarnação, da Imaculada Conceição, dia de Todos os Santos, festa de São Tiago Menor, padroeiro da diocese, no primeiro de Maio, e outras grandes solenidades, as refeições eram melhoradas631. As religiosas celebravam estas festas com alegria, exultação e júbilo. Não faltavam, então, os bolos, pastéis, arroz-doce e outros manjares segundo a época: a batatada no Natal, as talhadas e queijadas na Senhora da Encarnação e na Páscoa, os bolos de cevada pelo São João632. Os Estatutos previam que, nas grandes festividades, se desse a cada religiosa um pão de leite, um bolo, duas dúzias de argolinhas e outras iguarias conforme a época, mesmo àquelas que não se serviam da cozinha da comunidade. 3.3. Peritas em doçarias e outros manjares O açúcar, vindo do Oriente, durante muito tempo, foi vendido nas farmácias, pois era destinado aos doentes. Introduzido na Ilha da Madeira o cultivo da cana sacarina, logo o açúcar inundou os mercados da Europa, passando a usar-se largamente na doçaria em vez do mel. A Madeira guarda o segredo da confecção duma grande variedade de gulodices afamadas, que deram nome mundial aos mosteiros de Santa Clara e da Encarnação. Estas receitas divulgaram-se pelas casas fidalgas e destas passaram às mãos do povo. Por um códice manuscrito do mosteiro da Encarnação, publicado no Arquivo Histórico da Madeira, em Maio de 1937, pode fazer-se uma ideia da confeitaria conventual, com que as religiosas e as suas pupilas fidalgas presenteavam doadores, eclesiásticos, padroeiros e feitores das suas terras, como era costume no tempo633. Na ementa referente ao triénio 1811-1814, faz-se referência a pastéis, sonhos, bolos, rapadura, batatada, fartes, alféloa (massa de melaço em ponto forte), talhadas de amêndoa, broas, cavacas, rosquilhas, pão-de-ló, biscoitos, bolo de mel e queijadas. Os doces, confeccionados em quantidades medidas por alqueires, para ofertas, e para festejar as grandes solenidades religiosas e suas oitavas634, abundavam no Natal, Reis, Páscoa, primeiro de Maio, nas festas de São João, São Pedro, Santa Clara, São Francisco, Nossa Senhora da Encarnação, no Pão-por-Deus (Todos os Santos) e outras. Também as exéquias e os dias de ofícios pelos defuntos eram assinalados com alguma especialidade. Em 1761, gastaram-se sete alqueires de trigo na confecção de bolos para o dia do ofício635de D. Frei João do Nascimento, Bispo do Funchal e, em 1769, os clérigos receberam dez libras de chocolate no funeral da Madre Joana Baptista636. Em 1814, confeccionou-se um bolo no dia do ofício da senhora marquesa637. Nunca deixava de assinalar-se o dia dos Fiéis Defuntos, 2 de Novembro, com algum bolo638. Nesta doçaria, tradicional na Madeira, gastavam muita farinha e muito açúcar e tantos doces fizeram que se tornaram peritas e mestras em doçaria e outras iguarias. Os bolos de mel, segredo das freiras da Encarnação, eram por elas muito apreciados, bem como por todos aqueles que tinham a dita de os receber como “mimos”. Iguaria 631 ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 11, fol. 39, L 21, fol. 21v e outros. ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 14, 16, 18, 20 e 22. 633 João Cabral do Nascimento, “As freiras e os doces do Convento da Encarnação”, Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 68-75 ; Ilhas de Zargo, II, p 583. João Cabral do Nascimento refere a confecção de pão-de-ló e outros manjares para os feitores (p.73 e 74). 634 João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 ( 1937) 68-75; Ilhas de Zargo, II, p. 583. 635 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 23; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 137. 636 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 24, fol. 20; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 138. 637 João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira,5 (1937) 74. 638 João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 72. 632 156 requintada, servia muitas vezes para presentear a quem se deviam particulares favores ou a quem se dedicava especial amizade639. Sabe-se que, com o uso das especiarias, o bolo ganhou requinte. Condimentado com os mais estranhos acepipes, tenro e quebradiço, aromatizado com essências orientais, ornamentado de arabescos, marchetado de cidra, miolo de nozes, amêndoa e passas, era, pelo Natal, oferenda de ostentação, um mimo requintado de cortesia. Bolo rico, rescendente, para fidalgos e clerezia640. A batatada, tão característica do Natal, era algumas vezes confeccionada para satisfazer obrigações devidas a pessoas de fora. Era feita de açúcar e batata-doce e, por vezes, levava almíscar. Era guardada em taças e conservava-se bem, chegando a ser enviada para o Continente. Por exemplo, em Novembro de 1753 foi enviado um presente de batatada, seis dúzias de cubos, ao procurador do mosteiro em Lisboa641. As talhadas de amêndoa eram usadas na festa da Nossa Senhora da Encarnação, titular do mosteiro, e também na Páscoa, juntamente com os coscorões, feitos essencialmente de açúcar e ovos. No Domingo de Ramos não faltava o arroz-doce642. Os bolos de cevada confeccionavam-se com açúcar, erva-doce, manteiga ou leite e farinha de cevada. Os sonhos, feitos com perfeição e requinte, eram um manjar muito apreciado pelas freiras. Sempre se faziam na entrada da Quaresma, no Advento e na festa da Imaculada Conceição643. Quadro nº.21– Iguarias usuais nas festividades Festividades Iguarias Santa Clara São Francisco Advento e Ent. da Quaresma Nossa Senhora da Conceição Natal Fiéis Defuntos Dia de Reis Domingo de Ramos Páscoa Nossa Senhora da Encarnação Espírito Santo Sao José São João SãoPedro Nossa Senhora do Monte Corpo de Deus Pastel , pastelão, bolo de mel, rapadura e miolo de manjar Pastel e bolo doce Sonhos Fartes, sonhos, bolo doce, cuscuz e alféloa Argolinhas, bolo de mel, pão de leite, batatada e chouriços Bolo de manteiga Bolo de mel Arroz-doce Talhadas de amêndoa e queijadas Arroz-doce, cavacas, broas, rapadura, caramelo, talhadas de amêndoa,.queijadas e coscorões Bolo doce e cuscuz Rosquilhas e cavacas Pão-de-leite, queijadas, arroz-doce, farte, pastel e pastelão Chouriços, paios, presunto, queijo, gila e coalhada Farte, bolo de manteiga Pastel Fontes: ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 20 - 24; João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 72-75. As religiosas nunca se esqueciam de fazer todos os anos uma boa quantidade de marmelada que, das suas mãos, saía sempre uma especialidade. Os Estatutos previam que cada religiosa pudesse ter certa quantidade de marmelada e doces para seu uso particular. 639 Pode ver-se “O bolo de mel das freiras da Encarnação” de Álvaro Manso de Sousa, in Das Artes e da História da Madeira, Funchal, 1948–1949, p. 51, onde se dá a esta confecção culinária grande realce. É pena que não tivesse chegado até nós a receita usada no mosteiro. 640 Ilhas de Zargo, II, pp. 583 - 584. 641 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22, fol. 165. 642 João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 73. 643 João Cabral do Nascimento, art. cit., in Arquivo Histórico da Madeira, 5 (1937) 68-75; ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F., L 11, fol. 39. 157 CAPÍTULO VI PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO E ARTÍSTICO 158 1. Melhoramentos nos séculos XVII e XVIII As rendas das propriedades rústicas e urbanas, o comércio do vinho e outros proventos, desde as últimas décadas do século XVII até meados do século XVIII, proporcionaram ao mosteiro uma vida desafogada. A boa economia da comunidade permitiu importantes melhoramentos no mosteiro, que passou a dispor de uma cozinha e refeitório remodelados, um coro maior e com melhores condições, bem como de mais espaço habitacional para poder receber mais candidatas. Estas transformações e acrescentamentos, alguns já previstos pelo cónego fundador que, para o efeito, determinara que cem mil réis de cada dote reverteria a favor de obras, iam tornando o edifício mais funcional. Face ao aumento do número de religiosas, o edifício foi sendo ampliado. Assim, por 1682 construiu-se uma sala capitular, remodelou-se a cozinha, uma varanda e o refeitório, que foi embelezado com azulejos. Remodelaram-se as celas e, naturalmente, aumentou-se o seu número. Fez-se também um dormitório para as servas644. Em 1751 a Fazenda Real “contribuiu com 750 mil reis para a construção do grande muro que ladeia a estrada que conduz à igreja de Santa Luzia”645 e em 1757 com 1.000.000 réis para as obras de restauro. Quando, a 14 de Abril de 1863, em cumprimento da portaria régia de 20 de Junho de 1857, a comissão, para o efeito designada, procedeu à inventariação dos bens móveis e imóveis do mosteiro, deixou-nos uma minuciosa explanação da estrutura do edifício. Lê-se no referido documento: “Compõe-se o convento de uma igreja, sacristia, campanário, coro alto e baixo, tribuna e sacristia da clausura, diferentes dormitórios, casas de oficinas, locutórios646, portaria, duas cercas, uma maior e outra menor, duas pequenas capelas na cerca, casa do capelão, confessor e sacristão, bem como a residência dos servos”647. Segundo o mesmo inventário, havia quatro dormitórios. O primeiro com vinte e três celas, junto do qual ficava o celeiro; o dormitório novo, com vinte e uma perto da casa do noviciado; no andar inferior estava o dormitório velho que, por não ter celas, simplesmente servia de passagem para outras divisões. Neste mesmo andar ficava o refeitório, a sala capitular, a cozinha e a casa de amassar o pão. Por baixo do dormitório encontrava-se a casa da lenha. Na portaria situava-se o dormitório das servas. 2. A capela no século XVIII A capela do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, resultante da ampliação e adaptações feitas na capela inicial do século XVI, sofreu na primeira metade do século XVIII importantes obras. Temos dificuldade em falar com precisão dos restauros que nela então se fizeram, mas sabemos que as Memórias Seculares e Eclesiásticas de Noronha, editadas em 1722, a apresentam com dois altares laterais: “o da parte da Epístola, dedicado a Santo António e o da parte do Evangelho a Santa Teresa”648, a que o auto da vistoria, feito em 1660, não faz qualquer alusão649. O inventário de 14 de Abril de 1863 descreve a capela como construção do século XVI, de arquitectura gótica, com uma só nave e quatro altares, o da capela-mor, dois laterais e um quarto à porta da capela. O altar-mor é “de talha de madeira dourada, tendo a meio o sacrário e, no cimo deste, um quadro que representa a Anunciação do Arcanjo à Santíssima Virgem 644 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 15, fol. 2. Elucidário Madeirense, I, p. 307. 646 Assim se designavam as salas onde as religiosas recebiam as visitas. 647 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa. 2070, doc. 25. 648 Noronha, op. cit., p. 278. 649 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 28-29 : Auto da Vistoria. 645 159 Nossa Senhora, pintura antiga, em madeira, feita por artista hábil”. O altar colateral da direita, junto ao arco da capela-mor, em talha dourada, dedicado a Santa Teresa, tem uma imagem da Santa, “antiga, de boa escultura”. Do lado esquerdo, igualmente em talha dourada, fica o altar dedicado a Santo António, cuja imagem é “bela e bem esculpida”. O altar lateral, junto à “porta da igreja, em belíssima talha dourada é da invocação de Santa Úrsula”650. Nele há três imagens: a da Santa, ao centro, e outras duas, companheiras no martírio, dos lados. Na capela-mor, encontravam-se, além do tríptico de Nossa Senhora da Encarnação, três pinturas em madeira, que o inventário atribui a um mesmo autor: - “um quadro pequeno que representa a Assunção da Virgem Santíssima de mão hábil (...); - um quadro que representa S. Joaquim e Santa Ana na porta áurea; - um quadro que representa o nascimento do Salvador, de boa madeira.” Estas pinturas, pela “beleza do colorido, a atitude das diferentes figuras que nela existem, as belas roupagens, o interessante das fisionomias que cada uma delas, representando ao vivo os sentimentos de que deveriam estar penetrados (...), são dignas de muito apreço”651. O coro alto foi objecto de importantes obras. Acontecia que, entre a muita população da Ilha, não faltava quem desejasse viver no recolhimento e paz da clausura. A comunidade não parava de crescer. No século XVIII, houve, pois, que fazer obras, “sendo então construído um vasto coro, em substituição do antigo, que era de acanhadas dimensões”. Para estas obras contribuiu a Fazenda Real com um conto de reis, concedido por alvará régio de Fevereiro de 1750652. O adro da capela era grande e seguro “por ser defendido pelo sul e oeste, por uma grande muralha”; dava-lhe acesso uma entrada larga, calcetada de pedra miúda e uma escada de cantaria. Gozava de “uma vista deliciosa para a cidade”. Fora do alpendre encontravam-se dois jardins pequenos e cercados de gradeação de ferro, donde se avistava a cidade e o porto e as campinas, “panorama arrebatador”653. Esta beleza, pelo menos em parte, advinha-lhe do século XVIII; nestas obras gastaram as religiosas muitos dos seus proventos. 3. Valores em ouro e prata Quando se procedia à inventariação do mosteiro da Encarnação, foram encontradas três peças em ouro: dois pares de botões com cadeia e uma chave do sacrário, enfiada num cordão também de ouro, com o peso de quarenta e cinco gramas e quarenta, e nove peças de prata. Entre estas peças mencionamos: Quadro nº.22 - Valores em ouro e prata Objecto Castiçais de madeira revestidos de prata Crucifixos Coroas pequenas Coroas grandes Resplendores Cálices em prata dourada Estante de madeira e prata Cruzes 650 Total 6 2 4 1 7 2 1 2 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25 : Inventário de bens imóveis do Convento da Encarnação, datado de 14 de abril de 1863. 651 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25 : Inventário de bens imóveis do Convento da Encarnação, datado de 14 de abril de 1863. 652 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25. 653 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc., F, caixa. 2070, doc. 25. 160 Bandeja Caldeirinha Turíbulos Jarra Rosário654 Palma Lampadário655 1 1 2 1 1 1 1 Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F.,caixa 2070; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op.cit., pp. 122 - 123. Alguns destes valiosos objectos eram feitos com as jóias das religiosas. Sabemos que com a prata deixada pela Madre Maria da Coroa a comunidade mandou fazer um vaso para a Santa Unção656. Estes objectos de metal precioso, foram então avaliados em 804.087 réis, sem contar o sacrário que era valiosíssimo. Preciosas eram também as vestes litúrgicas da igreja do mosteiro. Não faltavam os pluviais, dalmáticas, paramentos, capas de asperge, casulas, véus de ombros, em damasco ou seda valiosa, bordados a fio de prata e ouro e com franjas e galões do mesmo metal precioso. 4. Pintura 4.1. Pintura flamenga Tríptico de Nossa Senhora da Encarnação Os painéis deste tríptico, pelas grandes dimensões, pela integração das figuras, pelas suas atitudes e gestos em profunda atmosfera religiosa e ainda pelo modelado das vestes, harmonia e vivacidade das cores, são um belo exemplar de pintura flamenga do século XVI, mais propriamente da Escola de Antuérpia. O conjunto é surpreendente. A precisão do desenho, o brilho do colorido, a magnificência da indumentária e do mobiliário, a grandiosidade, enfim, de toda a composição, contribuem para converter este retábulo numa obra de alto merecimento, na opinião de Manuel Almeida Cayola Zagallo657. Este retábulo, cuja temática é o mistério da Encarnação, apresenta duas leituras conforme se apresenta aberto ou fechado. Aberto, é todo ele, nos seus painéis, uma ilustração maravilhosa e encantadora do tema da Encarnação do Verbo: a concepção puríssima de Maria, escolhida para ser a mãe de Deus feito homem, no volante esquerdo; a Anunciação e o mistério da Encarnação no painel central; e nascimento de Jesus no volante direito. Fechado, o retábulo evoca dois intercessores privilegiados da comunidade local nos inícios de Quinhentos: um dos santos protectores contra o flagelo da peste, São Sebastião, e o taumaturgo português, Santo António. Os anversos dos volantes e o painel central são da mesma mão, possivelmente de Joos Van Cleve658, enquanto os reversos serão de colaboradores ou ajudantes de menos qualidade, o que era, aliás, comum nas oficinas da época e, designadamente, no pintor referido659. 654 Este rosário tinha sessenta e duas contas revestidas de prata lavrada e uma medalha, tendo de um lado a imagem de Nossa Senhora em relevo e do outro uma custódia. 655 Este lampadário foi oferecido ao mosteiro por João de Sousa Almeida, segundo informa o cónego fundador no seu testamento (João Cabral do Nascimento, op .cit., p. 39). 656 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 22. 657 Manuel Almeida Cayola Zagallo, “Algumas palavras sobre o património artístico da Ilha da Madeira”, Arquivo Histórico da Madeira , 4 ( 1934) 30. 658 Joos Van Cleve, pintor neerlandês, começou por ser conhecido como o mestre da Morte da Virgem, devido aos dois trípticos que representam a Morte da Virgem e se conservam em Munique e Colónia. Sofreu sucessivamente a influência de Gérard David, Metsys e dos maneiristas de Antuérpia, assim como de Leornado da Vinci. Morreu em Antuérpia em 1540 ou 1541 (Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op.cit, p. 62). 659 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 72. 161 26. Triptíco flamengo da capela-mor do mosteiro da Encarnação. Pintura a óleo, sobre madeira de carvalho (205x194), cerca de 1510-1515, atribuída a Joos Van Clevee colaboradores. Painel Central: Anunciação; Volante esquerdo: Natividade (anverso) e Santo António (reverso); Volante direito: Genealogia da Virgem (anverso) e São Sebastião. Reprodução de Carlos Fotógrafo. A Saudação Angélica assume neste tríptico características específicas que nos orientam no sentido da compreensão do significado profundo do mistério da Encarnação do Verbo. O arcanjo Gabriel apresenta-se com majestade de enviado de Deus. A atitude de Maria revela, por seu turno, que a intenção do pintor visou sublinhar não apenas a saudação mas, preferencialmente, o seu resultado, ou seja, a Encarnação. Com efeito, a Virgem, de olhos semi-cerrados e escutando a mensagem de que o anjo é portador, manifesta a aceitação dos desígnios divinos660. A seus pés há uma jarra de açucenas, símbolo de pureza. No volante direito, o que mais contemplar? A suavidade da Senhora e a graciosidade do Menino e dos anjos ou o realismo dos pastores que olham, embevecidos, o Redentor? No esquerdo, que expressividade em São Joaquim e Santa Ana, recolhida, como que interiorizando o mistério!... Acima, a Virgem com o Menino nos braços, coroada pelos anjos661, não transparece interioridade, contemplação amorosa do mistério?!... Segundo os críticos de História de Arte, a execução deste tríptico terá de situar-se no tempo do primeiro período de actividade conhecida de Joos Van Cleve, ou seja, entre 1510 e 1515662. Este tríptico, antes de recolher ao Museu de Arte Sacra, onde se encontra desde 1955, esteve na Igreja de São Martinho, para onde foi levado quando, alguns anos após a implantação da República, o templo, em estado de degradação, foi despejado do seu recheio artístico663. Para ser adaptado ao altar-mor, sofreu mutilações. Contudo, graças a um correcto restauro, é possível a leitura do que seria o original. São Jerónimo Esta pequena pintura, de acentuado carácter ascético, actualmente no Museu de Arte Sacra do Funchal, foi pela primeira vez identificada e descrita por Manuel Almeida Cayola Zagallo, em 1939. Este crítico de História de Arte considerou-a proveniente do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, uma vez que o inventário de 1862 dessa casa religiosa, menciona um quadro “ de São Jerónimo, pintado em madeira, no valor de 100 réis”664. Cayola Zagallo refere que o então director da Pinacoteca de Munique, a pedido do Dr. João Couto, classificara a obra a partir duma fotografia, como pertencente à escola holandesa da primeira metade do século XVI665. Na recente obra, Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, de Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, atribui-se o quadro a Marinus Van Reymerswalle, que se teria inspirado directamente no São Jerónimo de Albrecht Dürer, de 1521, existente no Museu de Arte Antiga, em Lisboa. Rui Fernandes de Almada ou Rodrigo de Portugal tê-lo-ia recebido directamente do próprio Dürer numa das suas visitas aos Países Baixos. A atribuição, feita pela primeira vez ao referido autor flamengo, baseia-se nas notórias afinidades composicionais e de caracterização que o quadro de São Jerónimo do Funchal 660 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p.72. Manuel Almeida Cayola Zagallo, art. cit., Arquivo Histórico da Madeira, 4 (1934) 30-32. 662 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op cit., p. 72. 663 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 72. 664 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., Caixa 2070, doc. avulso. 665 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 100. 661 162 partilha com outros exemplares do mesmo pintor, nomeadamente o do museu da Cartuxa de Douai. O mesmo pode dizer-se relativamente à escolha dos elementos simbólicos fundamentais comuns aos dois quadros, como sejam, a caveira, o livro e o veleiro666. 27. S. Jerónimo667. Pintura a óleo sobre madeira de carvalho (25x32 cm), cerca de1521-1540, atribuída a Marinus Van Reymerswaelle668. Reprodução de Carlos Fotógrafo Esta bela pintura, de carácter místico, representa o Doutor da Igreja, São Jerónimo, em meditação sobre o livro das Sagradas Escrituras, assente sobre o chapéu cardinalício e apontando para uma caveira. No alto, à esquerda, divisa-se um relógio de parede, com os respectivos pesos, enquadrado por uma moldura renascença, alusão ao tempo que foge, aproximando o homem da eternidade. No lado direito vê-se uma cartela da qual pende um cordão de pérolas com uma inscrição latina, Memorare novissima tua et in aeternum non peccabis, que tem a seguinte tradução: Lembra-te dos novíssimos e jamais pecarás. 4.2. Outras pinturas Além do belíssimo tríptico flamengo Nossa Senhora da Encarnação, do quadro de São Jerónimo e dos três pequenos quadros da capela, podemos mencionar, outros mais, alguns apreciáveis obras de arte. São eles: Os retratos do fundador, o Cónego Henrique de Viveiros e de uma sobrinha que ali professou; Nossa Senhora da Conceição, em folha de cobre; Nossa Senhora das Mercês, da Nazaré, da Graça, do Rosário e da Conceição; a Fuga para o Egipto, a Descida da Cruz, Santo Antão, São João, Santa Joana, São Martinho e São Francisco, em alto-relevo. O Museu de Arte Sacra conserva dois baixos-relevos do mosteiro: São João Evangelista e a Virgem, em madeira de carvalho, estofados, dourados e policromados, da segunda metade do mesmo século XVI, obra da escola portuguesa. 4.3. A escultura Para além das imagens já referidas, os inventários de 1863 e 1891 dão-nos conhecimento de outras obras de arte da capela e da parte habitacional, que constituíam um valioso património artístico. Podemos mencionar as seguintes imagens: Santa Clara, São Francisco, Sagrada Família, Nossa Senhora da Conceição, Senhor da Coluna, Senhor dos Passos, Senhor do Lava-Pés, São Martinho, São Pedro, Santa Bárbara, Santo António, Santa Teresa, Santa Isabel de Portugal, São Brás e cinco crucifixos669. Destas imagens, conhecem-se somente a do Senhor da Coluna, em capela particular no sítio da Estrela, na Calheta, para onde foi levada aquando da extinção do mosteiro, e a imagem de Santa Isabel de Portugal670, do século XVII, em madeira estofada, dourada e policromada, actualmente no Museu de Arte Sacra. Nesta valiosa imagem, podemos ver a 666 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 100-101. Reprodução de Museu de Artye Sacra do Funchal. Arte Flamenga (p.101). Marinus Van Reymerswaelle foi pintor neerlandês, cuja obras revelam a influência de Metsys e, no tema iconográfico Meditações de São Jerónimo, do protótipo de Dürer. Teria morrido cerca de 1566 ( Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit, p. 98). 669 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso. 670 Embora não figure nos inventários, a Rainha Santa Isabel teria pertencido ao mosteiro da Encarnação (Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p 119). Eduarda de Sousa Gomes admite que esta imagem representa Santa Isabel da Hungria (op. cit., p 119). Deve corrigir-se este conceito. Trata-se, de facto , de Santa Isabel de Portugal. 667 668 163 escarcela, bolsa de couro presa à cintura, e a concha de um molusco lamelibrânquio, vulgarmente designado vieira, usada no chapéu pelos peregrinos, especialmente os de Santiago de Compostela, o que nos permite afirmar que se trata, de facto, da Rainha Santa671. 4.4. As capelas da cerca Além da capela de Nossa Senhora da Encarnação, o mosteiro tinha duas ermidas, na cerca. A maior e mais antiga, da invocação de São Francisco, recebeu autorização eclesiástica a 22 de Abril 1698, depois de feita a vistoria pelo cónego chanceler do bispado. Estava situada a norte do mosteiro cercada de “bem altos e grossos muros”672. A segunda ermida era dedicada a São João Baptista673. Eram apreciáveis lugares de recolhimento para as religiosas, onde podiam ter tempos de oração e desfrutar espaços de intimidade pessoal com o Senhor. Lembravam pequenos eremitérios. Hoje nada resta destas capelas. CAPÍTULO VII DECADÊNCIA ESPIRITUAL E ECONÓMICA DESDE MEADOS DO SÉCULO XVIII 671 Devemos agradecer este esclarecimento à actual directora do Museu da Arte Sacra do Funchal, Luíza Clode. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. 25; AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 1, doc. avulso: Autorização para a criação da ermida de São Francisco de Assis, 1698; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 110. 673 Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 110. 672 164 1. A caminho da decadência - a presença de senhoras e criadas na clausura Ao longo da história a situação da mulher foi muito condicionada por mentalidades e ideologias que a tornavam dependente do querer dos outros. No século XVII esta dependência foi muito marcante. Para as jovens nobres, para quem não foi possível um casamento favorável até um dado momento, a sua continuação no seio da família, por vezes com o pai e os irmãos no Brasil, Índia ou outros lugares, ainda que provisoriamente, não era prudente, pois poderia acontecer um casamento desvantajoso para os interesses familiares ou algo pior. O mesmo risco corria uma viúva, sobretudo tendo riqueza, sentindo-se sem parentes chegados e sem alguém que pudesse administrar os seus bens. A orfandade era outro grave problema. Crianças sem mãe e sem pai precisavam de quem assumisse a sua educação e projecção na vida. A agudeza destas necessidades, reais e de todos os dias, entre a população do século XVII e XVIII, urgia solução. Daí que se pretendesse que os mosteiros, neste caso também o da Encarnação, fossem a resposta a tais problemas. Concretizando o que acabamos de expor, apontaremos alguns casos de pessoas que viveram neste mosteiro sem profissão. Em 1805 João Ângelo de Vasconcelos pedia a Sua Majestade que sua irmã Ana Joaquina de Vasconcelos “se recolhesse com uma criada no convento de Nossa Senhora da Encarnação da Ilha da Madeira, prontificando-se ele a sustentá-la à sua custa”674. Em 1840 D. Emiliana Gil Gomes obteve igual concessão675. Em 1877 D. Joana Teresa Campos e Brito, D. Antónia Guiomar Campos e Brito e D. Rosa Maria da Câmara Campos, filhas de Manuel da Costa Campos, cavaleiro professo da Ordem de São Tiago de Espada, que viviam com um tio de avançada idade, também elas idosas, eram autorizadas pelo rei D. Luís, o prelado e a abadessa, a “entrar no Convento da Encarnação como Seculares Recolhidas, pagando uma pensão e levando consigo uma criada para as servir”676. Em tais concessões havia o cuidado de recomendar às suplicantes a dignidade, modéstia e moderação na forma de vestir. Outro obstáculo eram as educandas que dificultavam a tranquilidade e a paz no seio da comunidade. Por isso, a 18 de Fevereiro 1819, o prelado do Funchal enviou ao monarca uma súplica das religiosas da Encarnação, acompanhada de uma instrução sua. Pedia-se que não fosse permitida a entrada de seculares no mosteiro677. Queixavam-se as religiosas de que “vivendo com muita tranquilidade na fiel observância da regra (...) tem acontecido que, por ordem de Vossa Majestade, têm entrado no mosteiro algumas mulheres que, tendo gostado dos encantos do século, têm incomodado muito o mosteiro”. Solicitavam pois, “por especial graça, o não conceder licença a mulher alguma daquelas ilhas, seja de que qualidade for, para entrar por muito nem pouco tempo no mosteiro”, para que as religiosas não fossem “apartadas da oração e exercício das suas funções religiosas”678. Às recolhidas e educandas devemos juntar as senhoras piedosas, geralmente nobres, que se muniam de breves pontifícios com beneplácito régio, para poderem entrar no mosteiro e nele permanecer por alguns dias para sua consolação espiritual. Em 1804 D. Mariana Francisca de Caires obteve um breve do Núncio Apostólico, com a respectiva confirmação 674 AHDF, Conv. Enc, caixa, 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do visconde da Anadia, João Rodrigues de Sá e Mello, do Palácio de Queluz, de 6 de Julho de 1805. AHDF, Conv. Enc., caixa, 25, capilha 5, doc. avulso: Ofício de António Bernardo da Costa Cabral, do Paço das Necessidades, de 16 de Março de 1840. 676 AHU, Madeira, doc. 1 023, 1 024 e 1 025: Petição de D. Joana Teresa, D. Antónia Guiomar Campos e Brito e D. Rosa Maria da Câmara Campos. 677 AHU, Madeira, doc. 4 576. 678 AHU, Madeira, doc. 4 577. 675 165 régia, que lhe permitia entrar na clausura três vezes por ano e nela permanecer alguns dias679. O mesmo aconteceu com outras senhoras. Gerou-se também o costume de os familiares das religiosas, não querendo nas suas visitas limitar-se aos locutórios, entrarem na clausura para o que obtinham licença eclesiástica e régia. Outra presença de seculares na clausura eram as criadas. O mosteiro nunca prescindiu da presença de criadas para o serviço da comunidade, embora em número moderado; contudo, não era permitido às religiosas terem criadas particulares. No final do século XVII aparecem os primeiros pedidos nesse sentido, alegando razões de saúde, mas, sobretudo, a sua distinção e nobreza. É o caso das Madres Isabel do Espírito Santo, Micaela dos Serafins e Úrsula Santo Ambrósio, filhas do provedor da Fazenda Real que, em Fevereiro de 1688, pediram para ter duas criadas particulares para seu serviço porque eram nobres e estavam doentes680. É possível que estas religiosas não tivessem sido autorizadas, pois que em 1763 D. Gaspar Brandão informava o nosso rei D. José de “não haver alguma criada particular, de religiosas”681. Quando, depois de 1764, a comunidade começou a diminuir em virtude da proibição de receber noviças, o número de criadas manteve-se. De facto, o bispo do Funchal, D. José da Costa Torres, no relatório que em 1788 enviou à rainha D. Maria, lamentava-se de que, apesar da diminuição considerável de freiras, o mosteiro sempre conservava as mesmas criadas. Apesar da discordância do bispo do Funchal, as religiosas começaram, a partir de fins do século XVIII, a ter criadas particulares. A 9 de Outubro de 1794, D. Maria autorizava a Madre Ana Filipa do Vencimento a ter uma criada682. Em 1806 à Madre Vicência Joaquina do Amor Sagrado era feita igual concessão683. Em 1808 a Madre Tomásia Delfina de Cantuária, que já há alguns anos obtivera licença de Sua Santidade para ter criada, passou a ter a seu lado a Januária Maria, para que se ocupasse do seu serviço e lhe assistisse nas suas necessidades. Ao longo do século XIX os pedidos para ter criadas particulares multiplicaram-se. As religiosas do mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação haviam esquecido que a Regra que professavam mandava “cuidar das doentes com o máximo de solicitude (...) com ardente caridade, benignidade e atenção”684. Lamentavelmente, na sua posição de nobres, encontravam motivo para se dispensarem do exercício da caridade fraterna, deixando as suas doentes nas mãos de criadas. A presença destas criadas para o serviço particular das religiosas representou não só um aumento do número de pessoas sem profissão no interior da clausura, como demonstrou que valores importantes e profundos, que deviam marcar o seu viver comunitário, se iam perdendo. 2. Situação espiritual No plano espiritual a situação do mosteiro não era melhor. A ideologia do século XVIII havia entrado em cheio na comunidade e, evidentemente, mudado mentalidades e desvirtuado valores. A atmosfera exterior, lentamente, foi penetrando na clausura e, quase sem que as religiosas disso se apercebessem, o ambiente foi-se deteriorando e desembocou em crise espiritual. 679 AHDF, Conv. Enc. F, caixa25, capilha 3, doc. avulso. BNA, Rerum Lusitanicarum, CVIII, pp. 535 - 536; Eduarda Maria de Sousa Gomes, op.cit., p 36. 681 AHU, Madeira, doc. 261. 682 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 2, doc. avulso: Beneplácito Régio de D. Maria I dado no Palácio de Queluz a 9 de Outubro de 1794. 683 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Beneplácito Régio de 31 de Março de 1806. 684 RU 4, XII, 22, in FF II, p. 355. 680 166 O Iluminismo, o exibicionismo do século, a falta de fé e superficialidade de vida reflectiram-se no interior do claustro. De facto, os costumes e as modas do século entraram e, com elas, se foi perdendo a moderação, a simplicidade, as observâncias regulares. As freiras passam a vestir-se de seda azul depondo o burel cinzento de Santa Clara, que só com dificuldade vieram a retomar. As visitas tornaram-se frequentes e, por vezes, inoportunas, o que mereceu a intervenção da autoridade eclesiástica. Assim, em 1815 D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde limitou as idas aos locutórios e reservou para si o direito de decidir sobre a oportunidade de certas visitas que só seriam permitidas com licença sua, dada por escrito685. Em virtude das leis de 1764, que proibiam a admissão de noviças, as religiosas tornaram-se cada vez menos e, em breve, insuficientes para manter uma vida ordenada e regular, já que eram poucas, envelhecidas e doentes. Não admira que D. José da Costa Torres, em 1788 em carta para o ministro Martinho de Mello e Castro, dissesse que não tinham vida comum, que se encontravam em estado de decadência e que o ambiente era de relaxação686. O prelado do Funchal, consciente da decadência em que encontrava a comunidade e convencido de que não havia qualquer hipótese de retrocesso, mais dizia: “eu vou proibindo a entrada às que querem substituir os lugares vagos fazendo-me entretanto surdo às petições e queixas da abadessa; e se não fossem certas considerações, que me embaraçam já teria mandado por fora do convento uma grande parte delas”687. Esta falta de vivência espiritual, que se evidencia no mosteiro na segunda metade do século XVIII, tem por detrás causas profundas, como sejam: penetração das ideias do século XVIII no interior da clausura e excesso do contacto com o exterior, como em cima ficou dito, com a consequente entrada de maneiras mundanas e vaidades, tão contrárias à simplicidade evangélica; vida faustosa e opulenta; fuga à vida de oração; falta de submissão à autoridade eclesiástica, que não raro teve de recorrer a penas canónicas para reprimir irregularidades e abusos. A mais grave porém foi, sem dúvida, a falta de discernimento na admissão das candidatas. Ali entraram muitas jovens sem vocação, pressionadas pelos familiares, que não podiam sentir-se felizes nem produzir frutos de santidade. Ouçamos o testemunho de uma freira constitucional, que O Patriota Funchalense tornou público em 8 de Setembro de 1821: “No recinto desta clausura onde me prenderam em uma idade em que tudo me parecia bom e agradável, para satisfazer os desejos de meus Pais, tenho vivido, não digo bem, existido, para amargurar a minha cruel sorte”688. A presença de pessoas seculares sem profissão religiosa, como eram as recolhidas, as educandas, as criadas, também não era positiva; as abadessas e a comunidade disso se deram de conta, mas já muito tarde. 3. Dificuldades económicas À prosperidade e à opulência que o mosteiro conheceu até meados do século XVIII seguiu-se a decadência. Muitas foram as causas que contribuíram para isso: Em primeiro lugar, a má administração, diremos mesmo, o abuso de alguns procuradores que, conforme se afirma numa carta do bispo do Funchal, pretendiam enriquecer à custa do mosteiro: “as religiosas do convento da Encarnação do Funchal, que segundo o provável cálculo das suas rendas, tinham toda a razão para ter uma manutenção frugal e honesta, estão reduzidas à mais lamentável situação de pobreza e miséria; todas as suspeitas e toda a desconfiança recai sobre os administradores que, entrando pobres e aparecendo ricos, excogitam todos os meios para não dar conta da sua administração e como pretexto de 685 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 35. AHU, Madeira, doc. 842. 687 AHU, Madeira, doc. 842. 688 “Huma freira constitucional” in O Patriota Funchalense, de 8 de Setembro de 1821. 686 167 credores querem ali conservar-se com detrimento das freiras”689. O prelado culpa o P. António Nicolau Lobo de Matos e o administrador Nicolau Baptista Spínola e pede a intervenção régia para os despedir das suas funções administrativas. Com esta administração abusiva de alguns procuradores associou-se a má administração de certas abadessas, que chegaram a ser chamadas à atenção pela autoridade eclesiástica. Nos livros de contas detectam-se algumas dessas observações. Também, como escreveu D. José da Costa Torres em 1788, teria contribuído para a decadência económica do mosteiro o aumento incontrolado de membros da comunidade: “(...) se o mosteiro tivesse sempre conservado o número da sua instituição, certamente não chegaria a tal decadência”690. De facto, o aumento sempre crescente de religiosas, que, de trinta, número da instituição, passaram para sessenta, às quais se foram juntando as extranumerárias, por vezes em maior número, causou verdadeiro desequilíbrio. “Por isso”, continua o prelado, “as freiras não têm o necessário para viver que lhes dê o Convento, padecem necessidades e, por consequência, não há vida comum”691. O bispo do Funchal temia ir ao mosteiro, por lhe parecer que a reforma seria “mui difícil, se não impossível”; além disso, “todas hão-de encalhar na falta do necessário, que é primeira causa da relaxação”,692 acrescentava o prelado. Na época que estamos a considerar verificaram-se irregularidades climáticas. Os maus anos agrícolas e, por consequência, as más colheitas, na medida em que diminuíam o quantitativo a entregar ao mosteiro, quer em géneros quer em dinheiro, e ainda o consequente aumento de preços, foram também responsáveis pelos problemas financeiros no interior da clausura. Como a comunidade tinha mais da terça parte das suas propriedades no Porto Santo, os anos estéreis naquela Ilha criavam uma situação verdadeiramente problemática na subsistência e vida económica do mosteiro. Já em 1764, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, em carta para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, referia que as rendas do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação provenientes do Porto Santo eram diminutas, 160.000 reis, e explicava que, apesar de as sementes serem fornecidas pelo mosteiro, os colonos ficavam com a metade da produção693. Na década de setenta a situação do mosteiro agravou-se. O alvará régio de 19 de Outubro de 1770, dos quintos e oitavos, não beneficiou o mosteiro, pois que “ (...) nas terras de Porto Santo os colonos que as fabricavam”, conforme a determinação régia passaram a pagar “aos senhorios das ditas terras o quinto e oitavo em lugar da metade”694. As religiosas, afectadas na sua economia, dirigiram ao rei um requerimento, pedindo a abolição da referida lei. Alegavam para tanto a sua pobreza, consequência das leis económicas que as vinham atingindo. A lei dos quintos e oitavos, contudo, não foi revogada, o que ocasionou ainda maior diminuição nas suas rendas. No entanto, a falta de produtos de consumo e a subida de preços não eram unicamente dependentes de crises internas, mas também das vicissitudes do comércio internacional da época. Os acontecimentos bélicos do século XVIII, particularmente a Guerra dos Sete Anos, a luta pela independência das colónias inglesas da América do Norte e a actividade dos corsários no Atlântico, contribuíram poderosamente para a falta de géneros que se fez sentir 689 AHDF, Conv. Enc., F, caixa. 25, doc. avulso: Carta do bispo do Funchal, sem data. Este documento foi publicado por Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 160. 690 AHU, Madeira, doc. 842. 691 AHU, Madeira, doc. 842. 692 AHU, Madeira, doc. 842. 693 AHU, Madeira, doc. 263. 694 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 12, fol. 104 - 105. Este documento foi publicado por Eduarda Maria de Sousa Gomes, op. cit., p. 158. 168 na Madeira e de que o mosteiro se ressentiu. Acresce que os seus rendimentos diminuíram muito, dada a dificuldade da exportação do vinho. Os comerciantes ingleses, habituais abastecedores da Ilha e do mosteiro, começaram a faltar com os produtos, pois que, sendo o porto do Funchal afectado pelas guerras, as transacções comerciais não se faziam. Esta falta de produtos de consumo fez nascer a carestia e a fome. Como consequência assistiu-se, na segunda metade do século XVIII, não só à subida de preços dos mais indispensáveis produtos de subsistência como também dos mais diversos ordenados. Vejamos: - ao procurador António Gomes Silva, a partir de 1749, o mosteiro passou a dar em vez de 30.000 reis, 70.000695; - ao capelão, que no início do século recebia 15.000 reis, 696passou a dar 24.000 reis a partir de 1748, ordenado do P. Francisco Luís Oliveira e sucessores697; - ao médico de 15.000 reis,698passou a dar, 30.000 reis, a partir de 1744, , valor pedido pelo Dr. José F. Tavares, em 1744699; - o sangrador, que até 1720 recebia 4.000 reis,700passou a receber 8.000 em 1734701. No Boticário os quantitativos a pagar aumentaram substancialmente, como nos mostra o quadro 23. À riqueza, à opulência e à prosperidade seguiram-se a pobreza, a falta do necessário, o desequilíbrio económico e financeiro. Quadro nº.23 – Despesas no boticário Triénios Quantitativo (reis) 1717 - 1720 1749 - 1751 1767 - 1769 194.555 354.507 355.800 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 19, 23 e 24, respecti- vamente. Segundo o mapa que o bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, por ordem régia, remeteu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado em 10 de Dezembro de 1764, os rendimentos anuais do mosteiro, resultantes dos foros a vinho e trigo, de alugueres de casas, dos rendimentos das propriedades e juros, que ascendiam a 3.424.222 reis, já então eram considerados insuficientes para sustentar cento e trinta religiosas que nele viviam, às quais se juntavam, pelo menos, trinta criadas, servos e assalariados702. 695 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16, 18, 22, 23. ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 18,19, 20 , 22. ARM, Conventos, Conv. Enc .F, L 22 e 23. 698 ARM, Conventos, Conv. Enc .F, L 14, 15, 16, 18, 19, 22. 699 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16, 22, 23. 700 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 9, 14, 15, 16, 18, 19. 701 ARM, Conventos, Conv. Enc. F, L 16, 22. 702 AHU, Madeira, doc. 263. Francisco Xavier de Mendonça servia no exército quando seu irmão, o marquês de Pombal, entrou para o governo. Foi, então, nomeado governador e capitão-mor do Pará e Maranhão, com encargo de reprimir os jesuítas, defensores dos direitos dos índios. Do Brasil, enviou a seu irmão vários relatórios desfavoráveis àqueles missionários. Regressando a Portugal ocupou a pasta dos Negócios do Reino e seguidamente a da Marinha e Ultramar. 696 697 169 CAPÍTULO VIII TENTAVIVAS DE SUPERAÇÃO DA CRISE 1. Projectos de reforma do bispo D. José da Costa Torres (1784-1796) Segundo o parecer do bispo D. José da Costa Torres, sentia-se a necessidade de duas instituições na Madeira e particularmente no Funchal: uma casa de correcção para mulheres que, no dizer do prelado, poderia funcionar no antigo seminário e ser sustentada, pelo menos em parte, com os juros das confrarias703; um colégio para educação de meninas que, bem formadas, fossem esperança de uma sociedade melhor. O mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação poderia ser o espaço necessário para este segundo empreendimento, na opinião do mesmo. Segundo D. José da Costa Torres, o estado decadente do mosteiro, tanto no plano material como espiritual, urgia solução. Em carta de 10 de Agosto de 1788 para Martinho de Mello e Castro pedia que se propusesse à rainha a sua incorporação no de Santa Clara, “sujeito aos franciscanos, o qual tem melhor governo e é rico”704. O edifício da Encarnação, uma vez vago, “poderia ser ocupado por Salésias, para a educação de meninas, que é Instituto de suma utilidade”705. Estas religiosas, assumindo este trabalho pedagógico e formativo, dariam resposta a uma das mais prementes necessidades da Madeira. Mais pedia o bispo que, se a rainha não concordasse com esta medida, ao menos permitisse a saída de quatro religiosas do convento de Ursulinas de Lisboa para o Funchal, onde fariam uma fundação. E acrescentava: “correrá por minha conta a sustentação das fundadoras, ao menos por três anos”706.Incorporando a comunidade da Encarnação na de Santa Clara, metade das rendas daquele mosteiro passariam de imediato para as religiosas Ursulinas e, por morte de todas elas,707aplicar-se-ia à nova comunidade a sua totalidade que, segundo o prelado, poderia sustentar, sem dificuldade, vinte Ursulinas. Convicto de que a concretização deste plano traria a solução para os graves problemas da Madeira, acrescentava: “se sua Majestade for servida atender ao que tenho escrito, poderei fazer um plano mais circunstanciado nesta matéria”708. 2. O breve do Papa Pio VII de 1807 Desconhecemos os trâmites por que terá passado tão importante e delicado assunto e se D. José da Costa Torres terá feito mais algumas diligências para consumá-lo. Sabemos, contudo, que o seu sucessor, D. Luís Rodrigues Vilares, fez chegar a Roma o problema e solicitou ao Papa não só a incorporação da comunidade da Encarnação na de Santa Clara mas também a sua subordinação à Ordem Franciscana709. Ponderadas na Cúria Romana as razões que levaram o prelado a pedir a reunião das duas comunidades, decadência material e espiritual, o Papa Pio VII, por breve apostólico, 703 AHU, Madeira, doc. 842. AHU, Madeira, doc. 842. Falam também da necessidade da incorporação dos mosteiros os documentos 1753, 1755 e 3047. AHU, Madeira, doc. 842. Salésias eram as religiosas da Ordem de Nossa Senhora da Visitação, instituída por São Francisco de Sales e Santa Joana Francisca de Chantal, em 1612. 706 AHU, Madeira, doc. 842. As Ursulinas, religiosas da Ordem de Santa Úrsula, foram fundadas em 1537 por Ângela de Merici. 707 Dentro de dez anos, mais ou menos, calculava o prelado, a morte das religiosas aconteceria, pois quase todas elas tinham setenta e mais anos. 708 AHU, Madeira, doc. 842. 709 AHU, Madeira, doc. 3 047 e 3 049. O documento 3049 do mesmo arquivo contém um aviso ao bispo da diocese, D. Luís Rodrigues Vilares, do seguinte teor: “Remeto a V. Excelência o incluso breve com o real beneplácito, para a união que V. Excelência solicitou dos dois conventos de religiosas franciscanas da sua diocese”. 704 705 170 dado em Roma a 25 de Setembro de 1807, consentiu na incorporação e determinou-a710. .De facto, o Papa, atendendo a que ambos os mosteiros professavam a mesma regra, facilmente concedeu a autorização que lhe era pedida, convencido, como o prelado, de que tal união representasse o fim das dificuldades espirituais e económicas711, que desde há muito se vinham fazendo sentir na Encarnação. O segundo problema, sujeitar os dois mosteiros à jurisdição da Primeira Ordem Franciscana, Pio VII remeteu-o para o Núncio Apostólico, em Lisboa, por despacho de 15 de Outubro do mesmo ano, com autorização “para que, em nome da Santa Sé, delegasse no prelado do Funchal as necessárias e oportunas faculdades”712. A resolução cabia, pois, em última análise, ao bispo da diocese. Este breve teve beneplácito régio, dado no palácio de Nossa Senhora da Ajuda a 10 de Novembro do mesmo ano: “O príncipe regente, Nosso Senhor, há por bem acordar o seu beneplácito para a execução deste breve”713. Entretanto, um acontecimento de natureza militar e política, veio precipitar a execução da incorporação determinada neste breve: a ocupação militar da Ilha da Madeira pelas tropas do general britânico William Carr Beresford. 3.União dos dois mosteiros urbanistas do Funchal Avançavam os exércitos de Napoleão Bonaparte Europa fora, no intuito, loucamente concebido, de se tornar senhor de um império que se estendesse da Península Ibérica aos Montes Urais e do Báltico ao Mediterrâneo. Em 1807 as tropas francesas estavam em Portugal714. Foi dentro deste contexto que a acção militar da Inglaterra se fez sentir no nosso país e se processou a ocupação da Madeira em Dezembro daquele ano. William Beresford, sob o pretexto de defendê-la dos franceses, invadiu a Ilha e instalou-se no palácio de São Lourenço, como governador e comandante militar. Esta atitude foi arbitrária e abusiva, violação do direito internacional. Beresford, só em 1809, por decreto de 7 de Março, foi eleito marechal de campo do exército português. Só então lhe foram dados plenos poderes pela Junta Governativa que, de certo modo, lhe permitiram governar o país até 1820715. 3.1. Retirada das religiosas da Encarnação e transformação do mosteiro em hospital Depois de aquartelada “uma grande parte das tropas de sua Majestade Britânica” no colégio de Jesuítas, então a funcionar como seminário, e no mosteiro de São Francisco, ainda uma parte delas estava sem alojamento, permanecendo “abarracada no campo da Penha de França”. O major general, julgando estratégica a situação do mosteiro da Encarnação, pretendia que o governador do bispado mandasse retirar as religiosas que ali viviam. Era formal a carta que Beresford enviou à referida autoridade eclesiástica: “É com o maior pesar que verifico que todas as diligências feitas para se aquartelarem os meus soldados, têm sido infrutíferas e que me vejo precisado de pedir a Vossa Senhoria que avise a madre abadessa da triste 710 AHU, Madeira, doc. 3 049. AHU, Madeira, docs. 3 047 e 3 049. AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso AHU; Oficio do conde de Anadia para o bispo do Funchal de 10 de Novembro de 1807. 713 AHU, Madeira, doc. 3 049: Breve de Pio VII, com o beneplácito régio, assinado pelo visconde de Anadia, dado no palácio de Nossa Senhora da Ajuda a 10 Novembro de 1807. 714 História Universal, adaptada e revista por Jorge Borges de Macedo, II, pp. 212-213; Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VII, pp. 13-37. 715 Oliveira Marques, op. cit., II, p. 363. 711 712 171 necessidade em que estou de as incomodar, passando-as para o mosteiro de Santa Clara (...). Gostaria que o mosteiro estivesse despejado até quinta-feira, ao mais tardar”716. Num segundo ofício, datado de 3 de Janeiro de 1808, Beresford exigia que o governador do bispado mandasse “passar as ordens necessárias para as ditas religiosas saírem no dia 7 do dito mês”717. O próprio Beresford fez diligências em Santa Clara para que não obstassem à execução da sua determinação. A saída das quarenta e duas religiosas fez-se com “aquela decência, silêncio, piedade e aparato religioso, que exigia um acto tão sério”718. A exigência do comandante militar inglês foi precipitada e imponderada, pois, uma vez despejado o mosteiro, logo se verificou a sua insegurança e quanto estava danificado. Assim, a 16 de Janeiro, já William Beresford, em carta para o governador do bispado lamentava o sacrifício exigido às religiosas, pois o mosteiro não servia para quartel. Só com enorme despesa ficaria com a segurança necessária. Assim escrevia: “O convento da Encarnação foi recusado pelo engenheiro inglês para servir de quartel (...) sinto não ter sabido antes, pois que livrava a abadessa e as suas religiosas daquele convento, do incómodo que tiveram. Ofereçolhes a liberdade de voltarem”719. Um mês depois, exactamente a 16 de Fevereiro de 1808, já o major general, temendo que as religiosas optassem pelo regresso à Encarnação, pressionava a autoridade eclesiástica a que “tratasse imediatamente de ultimar a sua união e incorporação no mosteiro de Santa Clara, unindo, outrossim, todas as rendas de que até agora desfrutavam”, que deveriam manter-se “enquanto durar alguma das ditas religiosas do convento da Encarnação”, pois o mosteiro era-lhe necessário “para hospital das tropas britânicas”, sendo, portanto, “o regresso das ditas religiosas para aquele convento impraticável” 720. 3.2.União e incorporação das duas comunidades Vencidas algumas dificuldades e resistências, as duas comunidades puseram-se de acordo, acabando até por ver vantagens na união. A autoridade eclesiástica, que tantos esforços havia feito para incorporar as duas comunidades, tinha agora uma ocasião, oferecida pelas circunstâncias ocorrentes, para a levar a cabo. A abadessa e a comunidade de Santa Clara “recebem suas irmãs com excesso de amor e ternura”721. O próprio Beresford em carta de 16 de Janeiro de 1808 para António Correia de Bettencourt Vasconcelos, deão e governador do bispado, refere “a maneira tão benemérita porque foram recebidas em Santa Clara”722. A 16 do mês seguinte é ainda Beresford que, possivelmente com uma pontinha de lisonja, assim fala: “Participarão da abundância e bom regimento que ali reina, que tem sido uma honra bem evidente, no magnífico agasalho e tratamento com que foram recebidas”723. “Tal facto”, dizia Beresford, “tem merecido os 716 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William Beresford, de 31 de Dezembro de 1807, para o governador do bispado do Funchal. 717 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Lista das reverendas madres do mosteiro da Encarnação. 718 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença e carta do deão Dr. António Correia de Bettencourt e Vasconcelos, governador do bispado em nome de D. Luís Rodrigues Vilares, dada no Funchal a 5 de Março de 1808, escrita por Manuel Joaquim Monteiro Cabral, escrivão da Câmara Eclesiástica do Funchal. 719 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de Wiliam Beresford para o governador do bispado do palácio de São Lourenço, de 16 de Janeiro de 1808. As religiosas, dado o estado deplorável do edifício, a exiguidade das suas rendas, cada vez em maior diminuição e desordem (AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso) e a esperança que tinham naquela união, não manifestaram qualquer interesse no regresso e, felizmente, pois o comportamento de Beresford era por de mais arbitrário. 720 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso. 721 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso. 722 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William Beresford para o governador do bispado, de 16 de Janeiro de 1808 723 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William Beresford para o governador do bispado, de 16 de Fevereiro de 1908 172 maiores louvores em toda esta ilha e confirmado a alta opinião em que se tinham de suas piedosas virtudes”724. No auto de anexação e união do mosteiro da Encarnação ao de Santa Clara, lavrado a 20 de Janeiro de 1808 por Manuel Joaquim Cabral, escrivão da Câmara Eclesiástica, testemunhase que as religiosas foram tão bem recebidas em Santa Clara “que, mesmo quando souberam que poderiam regressar, elas o não quiseram”.725 O Dr. António Correia Bettencourt e Vasconcelos, na qualidade de deão e governador do bispado, devidamente credenciado pela Sé Apostólica e por D. Luís Rodrigues Vilares, bispo do Funchal, então exilado no Santo da Serra, diante da disponibilidade das religiosas dos dois mosteiros, achou que a união das duas comunidades era possível. Assim, a 5 de Março de 1808, executou essa união: “Havemos por bem, suprimido e extinto o dito convento de Nossa Senhora da Encarnação (...), podendo fazer-se do seu edifício, o uso e aplicação que convier”726; e, como consequência, “unimos, anexamos, e incorporamos” as comunidades para que constituam “uma única onde todas, sob a dependência da abadessa de Santa Clara, terão iguais direitos”. Esclareceu e determinou o deão que só após a morte de todas as religiosas da Encarnação, passariam “todos os bens, juros e rendas ao mosteiro de Santa Clara, para serem aplicados como for serviço de Deus, da Igreja e bem do Estado, por ordem e determinação dos legítimos superiores”727. O Núncio Apostólico de Portugal, atendendo a que “em ambos os mosteiros se professa a mesma regra e as religiosas da Ordem de Santa Clara estão bem satisfeitas com a incorporação das suas Irmãs”728, em nome do Papa Pio VII, confirmou a incorporação, ficando as religiosas da Encarnação a gozar de voz activa e passiva e de mais direitos e privilégios, como se no mosteiro de Santa Clara houvessem professado. Esta confirmação era dada pelos espaço de três anos, dentro dos quais “haverão de recorrer ao Santo Padre” e acolher, se necessário, outras determinações729. O Custódio Provincial Franciscano, da Ilha da Madeira, como autoridade jurídica que era no mosteiro de Santa Clara, foi notificado desta incorporação e respectiva confirmação do Núncio Apostólico. 4. Regresso ao mosteiro da Encarnação 4.1. Reacção das freiras perante o comportamento dos ingleses Não passaram muitos anos sem que as religiosas começassem a desejar o seu regresso ao mosteiro da Encarnação. Desse anseio e do repúdio pelo que os ingleses iam fazendo no edifício, é testemunho gritante uma carta de 30 de Abril de 1813, assinada por dezoito religiosas, enviada a D. Frei Joaquim Meneses e Ataíde que desde 1811 governava a diocese do Funchal como vigário apostólico. Os ocupantes, dizem elas, “têm faltado a pagar à nossa comunidade o aluguer ajustado, têm feito quantas obras querem sem licença do senhorio, que é a comunidade.” A agravar a situação estavam outros factos: “os senhores ingleses querem fazer no dito convento uma ermida, abrir portas no coro baixo, parte da igreja que ainda se 724 AHDF Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de William (...) de 16 de Fevereiro de 1908 . AHDF, Conv, Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença de anexação e união e incorporação do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação com Santa Clara, dada no Funchal, a 5 de Março de 1808, pelo deão e governador do bispado, Dr. António Correia de Bettencourt e Vasconcelos 726 AHDF, Conv, Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença de anexação e união e incorporação (...). 727 AHDF, Conv, Enc.,. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Sentença de anexação e união e incorporação (...). 728 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de D. Lourenço, Núncio Apostólico dos Reinos de Portugal, Algarve e seus domínios, de 29 de Julho de 1808, ano IX do Pontificado de Pio VII. 729 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de D. Lourenço (...). 725 173 não profanou”. E lamentavam-se, amargamente, de que desta forma ficavam sem “o seu convento para onde querem voltar” 730. As freiras da Encarnação residentes no mosteiro de Santa Clara que, a 7 de Janeiro de 1808, haviam saído do seu mosteiro “por cega obediência às ordens do General do Estado”, protestavam agora contra o que acontecia, pedindo a D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde que não as desamparasse, que as tomasse sob o seu cuidado e obstasse a que “se faça ermida no mosteiro sem ordem régia”731. E, quase desorientadas, escrevem: “logo que tenhamos notícia que tal obra se principia, nós sairemos e iremos para o nosso Convento”732. 4.2. Polémica entre o vigário apostólico D. Frei Joaquim Meneses e Ataíde e o general inglês Jorge Hamilton Gordon Porque as religiosas pediam insistentemente ao prelado “que oficie esta sua decisão aos senhores governadores”, bem depressa Jorge Hamilton Gordon tomou conhecimento de que não podia dar cumprimento às obras anunciadas. Assim escreveu o vigário apostólico do Funchal: “Consta-me que o coro baixo e o adro da igreja da Encarnação se vai aplicar a usos profanos. Eu não posso nem devo consentir que estes lugares sagrados, que são contemplados como partes integrantes da mesma igreja, se destinem para usos não sagrados”733. O vigário apostólico, como membro da Igreja Católica Romana “dominante nesta ilha”, procurou fazer compreender a Gordon que não podia permitir tal acto, pois isso significaria ultrapassar as regras da Igreja Católica, “que sua Alteza Real tanto respeita”734. Daqui nasceu uma polémica epistolar entre o capitão general e D. Frei Joaquim Meneses de Ataíde, que ganhou volume. Versava a polémica à volta da profanação dos lugares referidos e da própria palavra “profanar”, utilizada pelo bispo em ofício dirigido ao general. Diante da sensibilidade do major general, em carta subsequente, explicava D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde que “profanar quer dizer secularizar, isto é, aplicar a usos civis aquilo que pertence ao culto religioso”735e que, certamente, o intérprete não conheceria um termo inglês que explicasse o conteúdo exacto do vocábulo. No emaranhado da questão o vigário apostólico do Funchal lembrou a Gordon: “A Nação Britânica sempre se distinguiu pela observância das suas leis, e V. Ex.cia, como digno filho desta Nação, jamais poderá sentir-se de que eu cumpra as leis do meu país e da Igreja”. E, com firmeza, acrescentou “o Senhor Arcebispo de Cantuária, mais que uma vez tem feito castigar as transgressões das leis Eclesiásticas. Ele é ouvido pelo seu Príncipe”. D. Joaquim de Meneses e Ataíde, estranhando deveras o comportamento de Gordon, mais diz: “Em Lisboa, aquartelando-se as tropas britânicas em muitos e diferentes conventos, nunca ocuparam e sempre respeitaram o templo, a sacristia, o coro e adro como lugares destinados ao culto religioso”736. 4.3. Saída para o mosteiro da Encarnação em 1814 730 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de algumas religiosas da Encarnação, residentes em Santa Clara, para o bispo do Funchal, de 30 de Abril de 1813. 731 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de algumas religiosas da Encarnação(...). 732 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta de algumas religiosas da Encarnação (...). 733 AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo vigário apostólico para o governador e capitão general deste Estado, de 22 de Abril de 1813. 734 AHDF, Conv. Enc. F., caixa 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo vigário apostólico para o governador e capitão general deste Estado , de 22 de Abril de 1813. 735 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo do Funchal para Gordon, 1813. 736 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Carta do bispo do Funchal para Gordon, 1813. 174 A 1 de Outubro de 1814 o escrivão da Câmara Eclesiástica do Funchal, Manuel Joaquim Monteiro Cabral, procedeu na igreja do mosteiro de Santa Clara, por ordem e em nome do vigário apostólico, a um inquérito às religiosas da Encarnação. A cada uma se perguntava se queria voltar para o mosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, se queria ficar em Santa Clara, sujeita à obediência dos religiosos franciscanos, se o mosteiro da Encarnação tinha rendas que pudessem sustentar trinta religiosas, o número da fundação, e ainda se lá podia haver observância regular e educandas seculares sem prejuízo da comunidade737. Deste inquérito resultou que, das quarenta e duas religiosas que haviam passado para Santa Clara a 7 de Janeiro de 1808, vinte e oito regressaram ao mosteiro da Encarnação. “Na manhã do dia 2 de Dezembro de 1814, sexta-feira, saíram do mosteiro de Santa Clara em palanquins mui decentes, acompanhadas dos senhores Ministros Eclesiásticos, seus Oficiais, Clero e Nobreza. Na portaria do seu mosteiro as esperavam o Ex.mo e Rev.mo Sr. Bispo, Vigário Apostólico, Corregedor, e Juiz de Fora, sendo grande o concurso do povo nesta ocasião”738. As religiosas voltaram a depender canonicamente do bispo do Funchal 5. Reestruturação da comunidade 5.1 Dificuldades e esforços Reorganizar a vida comunitária com um pequeno número de religiosas cansadas e envelhecidas!?... Numa casa desmantelada e sem o mínimo necessário, tudo eram dificuldades. O edifício estava não só danificado mas também modificado na sua estrutura. Depois de seis anos ao serviço das tropas britânicas como hospital, o imóvel encontrava-se “todo estragado, pois que desmancharam as celas, ficando cada dormitório uma sala para enfermaria”739. Por isso, quando as religiosas para ali voltaram, “além dos reparos que fizeram no mosteiro, cada religiosa teve de mandar fazer cela à sua custa, com dinheiro seu ou que seus parentes lhe deram”740. De facto, o inventário de 1862 refere que um dos dormitórios não tinha celas porque “as que nele havia foram desmanteladas pelos ingleses e não se reedificaram outras, pelo que serve unicamente de passagem”741. Num esforço quase heróico, todas tentaram adaptar-se à nova situação. Estavam ali voluntariamente, porque o seu regresso lhes parecera mais agradável do que a sua permanência em Santa Clara, onde, no entanto, havia ordem e vida conventual organizada. Entretanto, algumas candidatas, qual aurora a romper cheia de esperança, solicitaram a sua entrada: Matilde, da freguesia de Santa Luzia, em 1827; Ana Baptista Gambarro de ascendência italiana, Elisa Amália Correia e outras, alguns anos mais tarde742. Aconteceu, porém, que também entraram moças educandas e senhoras que ali pretendiam ficar recolhidas. A sua presença dificultava a reestruturação da comunidade. Os problemas avolumaram-se e a sua solução, além de difícil, era urgente. Não faltaram esforços. Contudo, apesar das súplicas das religiosas, a entrada de pessoas seculares continuou a verificar-se. Em 1830 entrou como educanda a Angélica Rita, filha de Lourenço Bartolomeu de Barros, que queria “recolhê-la no Convento, para livrá-la dos perigos do mundo”743. Em 737 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: Inquérito feito às religiosas pelo escrivão da Câmara Eclesiástica, por ordem do bispo, a 1 de Outubro de 1814. AHDF, Conv. Enc. caixa. 25, capilha 3, doc. avulso: .Memória do regresso das religiosas da Encarnação, de 2 de Dezembro de 1814. 739 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc.F., caixa 2070, doc. 25, fol. 2 740 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25, fol. 2. 741 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25, fol. 3. 742 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 5, docs avulsos. 743 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Provisão de 7 de Julho de 1830. 738 175 1840, satisfazendo o pedido de D. Emiliana Gil Gomes e da sua irmã D. Ana Gil Gomes, autorizou D. Maria II “que fossem admitidas no convento (...) a primeira como secular e a segunda como educanda, sustentando-se à sua própria custa (...) e guardando a modéstia e moderação nos vestidos, como cumpre às seculares na clausura religiosa”. E, em seu favor, se acentuava: “ficando entendido, que não poderão de algum modo, ser obrigadas a fazer votos religiosos, sob pena de se proceder, como é lei, contra a comunidade onde se tal praticar”744. A agravar a situação, entrou a mentalidade da época. No interior da clausura viviam freiras sem vocação que acompanhavam a nova ideologia liberal e por ela tomavam partido, como atrás ficou dito. 5.2. Problemas de natureza económica Diante da agudeza dos problemas económicos que afectavam a comunidade, as religiosas haviam deixado de cumprir alguns encargos pios, facto que, naturalmente, inquietava as suas consciências “mormente daquelas que têm a administração a seu cargo”745. Nestas circunstâncias, em 1835, Madre Maria do Lado, então abadessa, dirigiu-se à autoridade eclesiástica dizendo: “O convento tem encargos que não pode cumprir por causa dos seus diminutos rendimentos (...) Em razão dos muitos danos e detrimento que o convento experimenta nas suas rendas (...), nem é possível prover à sustentação das religiosas, não obstante a mais vigorosa economia”746. Assim, viu-se na necessidade de solicitar a comutação de dois encargos pios: o primeiro de duas missas semanais pelo fundador, conforme determinação sua na escritura de doação de seus bens ao mosteiro: “Mando que se digam, enquanto o mundo durar, duas missas cada semana, por minha intenção no mesmo convento”747; o segundo de uma missa quotidiana da capela instituída por D. Frei João do Nascimento.748 Face a esta dificuldade, o governador e vigário capitular em nome do bispo da diocese, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, à data exilado em Génova, decidiu comutar os referidos legados: o primeiro em uma missa anual de defuntos, cantada, e o segundo em quatro missas rezadas, duas no Advento e duas na Quaresma. Além disso, a comunidade devia rezar o salmo Miserere em todas as sextas-feiras, durante um ano, em atitude penitencial749. Diante desta situação, em 1835, o vigário capitular tomou algumas providências para obstar “à progressiva e rápida decadência em que se acham os negócios da comunidade, em outro tempo florescente e rica, mas actualmente tão destituída de recursos, que não pode fornecer às suas religiosas o indispensável para seu vestuário e sustentação”750. Para esse efeito, fez a nomeação de um síndico ou procurador dedicado pelo mosteiro, que “deveria ordenar todos os actos de arrecadação e administração dos rendimentos da comunidade”751.A escolha recaiu em António Joaquim Ferreira Pestana, reitor do seminário e chanceler do bispado752. 744 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Carta de A. B. da Costa Cabral para o governador do bispado, do Paço das Necessidades de 16 de Março de 1840. 745 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Carta da abadessa Maria do Lado para o governador e vigário capitular, de 1835. 746 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Carta da abadessa Maria do Lado para o governador e vigário capitular de 1835. O bispo, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, como consequência de posições assumidas no período difícil das lutas entre os partidários de D. Pedro e de D. Miguel, encontrava-se exilado em Génova, onde faleceu ( Ilhas de Zargo, II, pp. 452 - 453). 747 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 38 : Treslado do próprio testamento do reverendo Cónego Henrique Calaça. 748 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso: Indulto do Governador Vigário Capitular, António Alfredo, de 8 de Maio de 1835. 749 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso : Indulto do Governador (...). 750 AHDF, Conv. Enc. F, caixa. 25, capilha 5, doc. avulso : Indulto do Governador (...) ; João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 35 - 36. 751 João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 36. 752 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 35 - 36. Já em 1819 D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde, vigário apostólico do Funchal, diante da decadência em quer se encontrava o mosteiro determinou que o dote das freiras que entrassem não fosse inferior a 800.000 reis, salvo para as muito pobres ou prendadas no canto e música (João Cabral do Nascimento, op. cit., p. 35). 176 Em 1841, o Dr. Januário Vicente Camacho, deão da Sé do Funchal, comendador da Ordem de Cristo e governador do bispado, determinou que a abadessa não podia fazer obras sem consentimento do governo do mosteiro, mesmo que fossem pequenas, e do bispo, se tivessem maior vulto; além disso, proibiu toda e qualquer obra nova, sob de pena de seis meses de suspensão do ofício de abadessa753. Os anos iam passando; no mosteiro envelheciam religiosas e servas. A 7 de Outubro de 1840 o vigário capitular, apesar das dificuldades de natureza financeira, permitiu a entrada de Isabel Augusta Borges como criada, uma vez que duas servas se achavam “quase impossibilitadas para exercer os seus empregos”754. Em 1843, a comunidade era constituída por trinta e uma religiosas755 que, pelas suas doenças e idades, eram insuficientes para o bom funcionamento da vida claustral. Dado que, segundo as leis liberais, não eram possíveis as profissões, a comunidade ia diminuindo, envelhecendo e, lentamente, caminhava para o seu fim. A estas dificuldade juntavam-se as de ordem económica como nos é dado ver pelo quadro anexo: Quadro nº.24 - Desequilíbrio orçamental em fins do século XIX Anos 1884 – 1885 1886 – 1887 1887 – 1888 1888 – 1889 Receita (réis) Despesa (réis) 2.242 .940 1.180. 610 1.832. 988 2.463. 029 1. 894. 826 1 .915 .135 2 .089. 610 2 .514 .641 Saldo negativo (réis) 734.525 256. 612 51. 612 Fonte: ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 28, fols. 1 - 45. Como poderemos ver pelo quadro anexo, nos últimos anos em que foi abadessa a Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, na sequência do desequilíbrio orçamental que se verificava, as receitas normalmente não cobriam as despesas. 753 João Cabral do Nascimento, op. cit., pp. 35 - 36. AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 5, doc. avulso: Licença dada pelo Paço Episcopal a 10 de Outubro de 1840. 755 AHDF, Conv. Enc. F, caixa 25, capilha 6, doc. avulso: Ofício da abadessa Felisberta Cândida de São Bernardo para o governador do bispado do Funchal , de 10 de Fevereiro de 1843. 754 177 CAPÍTULO IX O SEMINÁRIO DIOCESANO NO LOCAL DO EX-MOSTEIRO 1. Extinção do mosteiro e passagem do imóvel para o Estado. O século XIX que, com o liberalismo político sistemático, abriu um período antireligioso e anticongreganista, levou à extinção das Ordens Religiosas em Portugal e Ultramar. O programa anticongreganista liberal começou a ser executado nos Açores em 1832, quando D. Pedro IV dominava o arquipélago. Um ano depois, o decreto de 5 de Agosto de 1833 proibiu a admissão de noviças, bem como a emissão de votos. Era uma forma de extinção das casas religiosas por morte lenta. O decreto mais conhecido é o de 28 de Maio de 1834, logo a seguir à vitória final do liberalismo, que ordenou a extinção imediata. Contudo, este decreto de Joaquim António de Aguiar não se aplicava aos institutos femininos. Para estes, continuava em vigor a lei de 5 de Agosto de 1833, que proibia a admissão de noviças e as profissões. Apesar da lei civil, os mosteiros iam admitindo candidatas conhecidas por pupilas, que viviam com as religiosas, e como as religiosas, mas não podiam emitir votos. No mosteiro da Encarnação, devido à entrada de pupilas ter sido diminuta, a comunidade foi morrendo lentamente. A 24 de Outubro de 1890, faleceu a última religiosa professa, Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, que contava 94 anos756. De imediato, o Estado tomou posse do edifício, aliás “um casarão velho e desmantelado, em adiantada ruína”757. A 26 do mesmo mês, o jornal O Réclame informava sobre o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação: “saíram ontem as últimas recolhidas que ali se achavam; (...) todos os bens e propriedades anexas passaram para o Estado”. Possivelmente, teriam sido convidadas a sair, pois, a 12 de Fevereiro de 1891, quatro pupilas alojadas algures solicitavam licença “para serem recolhidas no extinto mosteiro de Santa Clara”758. Algumas, porque eram cultas, entraram no funcionalismo do Estado, enquanto outras ficaram nas suas famílias759. Posteriormente no extinto mosteiro recolheram-se algumas senhoras solteiras e também viúvas. Em 1895, ano em que morreu uma delas, ainda ali viviam cinco senhoras760. Já então, o imóvel estava a ser alvo de solicitações diversas. 2. Solicitado para Hospital Civil e Oficinas de São José Após a morte da última religiosa professa, D. Manuel Agostinho Barreto, bispo do Funchal, pensou solicitar o mosteiro para seminário, o que não fez por lhe “ter afiançado o Governador Civil, querer pedi-lo para recolhimento de raparigas abandonadas ou, segundo o desejo da comissão da Misericórdia, para hospital civil”761. De facto, a 22 de Outubro de 1890, o governador civil do Funchal, em nome da referida comissão, contactou as autoridades 756 O jornal A Verdade, de 24 de Outubro de 1890. Para alguns autores, a Madre Vicência Violante do Céu, natural da freguesia da Calheta, filha de André Nicolau da Silva e de D. Ana Joaquina de Bettencourt Atouguia, falecida em 25 de Abril de 1890, é a última freira professa falecida no mosteiro. No Livro de Óbitos, iniciado em 1794, a notícia da sua morte é realmente a última ali exarada. Acontece, porém, que tal notícia vem assinada pela abadessa, Madre Felisberta Cândida de São Bernardo, donde resulta que a Madre Vicência Violante do Céu, embora sendo a última a figurar no Livro de Óbitos, não foi a última a falecer (ANTT, Conventos e Mosteiros, Conv. Enc. F, L 3). 757 “A Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 41. 758 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. IV/B/47//3. 759 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. avulso: Carta de Isabel Cristina da Câmara Leme, para Sua Majestade, não datada, mas possivelmente de 1905. Esta senhora, funcionária em Lisboa, fora, durante alguns anos, pupila no mosteiro. A 30 de Janeiro de 1906 obteve licença régia para, numa ida à Madeira, ficar por alguns dias, com sua prima Isabel de Quental, residente no recolhimento de Santa Clara. 760 ARM, Conventos, Conv. Enc. F., L 31. 761 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso. 178 centrais, para que obtivessem de Sua Majestade, o rei D. Carlos, autorização para que o Hospital da Misericórdia daquela cidade fosse transferido para o mosteiro da Encarnação. Apresentava como motivo do seu pedido a falta de silêncio, de sossego e salubridade da zona onde o hospital estava situado que, tantas vezes, na opinião dos clínicos, “faziam malograr as operações”. Acrescia que, na opinião do mesmo governador, “feita a mudança, ali poderiam estabelecer-se as repartições do Governo Civil, da Junta Geral da Fazenda e do Comissariado da Polícia, ficando a Fazenda do Reino aliviada das rendas que se pagava pelas casas onde as mesmas se achavam”762. A comissão da Misericórdia, considerando que seria necessário “arrasar o edifício para levantar outro nas condições que a ciência exige, faltando-lhe os recursos para tão dispendiosa edificação”763, desistiu de obtê-lo. Entretanto, o ex-mosteiro foi prometido a uma comissão que se propunha fundar no Funchal uma filial das Oficinas de São José de Lisboa. O seu director, “a convite de diferentes pessoas importantes da Ilha e também para cumprir o desejo de Sua Majestade, a rainha D. Amélia”, chegou a deslocar-se ao Funchal, para verificações in loco764. Por uma portaria de Junho de 1895, foi, ainda que provisoriamente, concedida uma parte do edifício para nele se instalar uma oficina de São José, como vinha sendo solicitado, que ali teve uma vida precária e de curta duração765. 3. O Seminário da Encarnação 3.1. Concessão do ex-mosteiro e construção do seminário Em fins de 1904, o bispo do Funchal fez diligências junto do Ministério da Fazenda para que lhe fosse cedido o edifício do mosteiro da Encarnação, para nele alojar o seminário. “O reverendo bispo”, diz o chefe da Secção Central, Augusto Correia da Silva Melo, “ponderando que o seminário está actualmente numa casa sem as necessárias condições (...), solicita de Sua Majestade a concessão do velho convento, vago desde 1890”. Na opinião do prelado, o local era “excelente, alto, bem arejado, com larga cerca, água suficiente (...) e próximo da Sé Catedral, enquanto que o edifício do seminário é acanhado, situado em lugar baixo, por isso húmido no inverno e calmoso no estio, sem jardim ou cerca aonde os alunos possam recrear-se. Além disso, o povo que circula pelas ruas, os veículos e as oficinas próximas perturbam o ambiente escolar e religioso, com grave prejuízo do estudo, da disciplina e do recolhimento”766. Havia ainda a vantagem de salvar o edifício da ruína, pois era bem visível a sua degradação. O desejo de D. Manuel Agostinho Barreto remontava à supressão do mosteiro em 1890, mas, não querendo obstar a que fosse destinado a outras causas também “justas e humanitárias”, sempre abdicara da sua pretensão767. Porém, atendendo a que as Oficinas de 762 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso. Era bem patente o interesse de muitos pelo edifício e cercas. A 3 de Dezembro de 1894 a Secretaria de Estado dos Negócios de Obras Públicas, Comércio e Indústria, solicitou do respectivo ministro que mandasse “rescindir o arrendamento da cerca do mosteiro, feito a um particular, para que a mesma fosse utilizada para o cultivo de chá e cacau, sob a orientação do Governo do distrito do Funchal”. (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, , doc. avulso: Ofício de Artur Alberto de Campos Henriques, Secretário de Estado dos Negócios de Obras Públicas Comércio e Indústria, para o ministro e secretário de estado dos Negócios da Fazenda, de 3 de Dezembro de 1894. 765 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa 2070, doc. avulso. 766 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso: Carta do Bispo do Funchal para o ministro e secretário dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, de 28 de Dezembro de 1904; e carta de 27 de Fevereiro de 1905 assinada por Augusto Correia da Silva Mello, do Ministério da Fazenda. 767 Entre outras, conhecem-se as cartas do prelado dirigidas à direcção dos Negócios Eclesiásticos de 23 de Setembro de 1895 escrita em Lisboa, e as de 3 de Março de 1896 e de 28 de Novembro de 1904, escritas no Funchal. 763 764 179 São José só ocupavam uma parte do edifício e que “estava posta de parte a ideia de aplicar o edifício do mosteiro a recolhimento de raparigas abandonadas e a Hospital Civil, como em tempos pretendera a Santa Casa da Misericórdia”768, solicitava agora a parte não ocupada. O seminário poderia até prestar auxílio às crianças e jovens das Oficinas de São José. A 5 de Maio de 1905, o governador civil do Funchal informava que “as Oficinas de São José estavam em completa decadência e apenas sustentavam com dificuldade umas seis crianças; que a cerca estava, se não inculta, pelo menos muito mal cultivada; que o edifício ameaçava ruir, estando apenas em melhor estado a capela e a casa do capelão”769. A 15 de Junho de 1905, em função das observações do governador civil, as autoridades superiores foram de opinião que se concedesse “o edifício e cercas do suprimido Convento da Encarnação para nele se estabelecer o seminário diocesano”770. Depois de reiterados esforços por parte do prelado e séria análise feita pelas autoridades, um decreto de 11 de Julho de 1905 concedeu o edifício, capela e as duas cercas do exmosteiro da Nossa Senhora da Encarnação, ao bispo da diocese do Funchal, para ali se edificar uma casa destinada à instalação do seminário771. A 12 de Outubro o delegado do Tesouro da Repartição da Fazenda do distrito do Funchal “fazia a entrega a D. Manuel Agostinho Barreto, prelado diocesano, do edifício e cercas do extinto Convento de Nossa Senhora da Encarnação, lavrando-se um termo com as formalidades legais”772. O edifício era então “um velho e desmantelado casarão em adiantada ruína”773, como atrás dissemos. Dado o seu estado de degradação foi necessário demoli-lo para que no mesmo local se pudesse construir o seminário. À demolição foi poupada a capela, a sacristia, e a casa em que, segundo o inventário de 14 de Abril de 1863 “reside o confessor, que é de sobrado para o lado sul, e para oeste é térrea, tanto que a saída é no adro da igreja”774. Foi autor do projecto o engenheiro João Florêncio da Costa, que também acompanhou as obras. Iniciadas em 1906, avançaram rapidamente, estando em Julho de 1907 concluída a ala ocidental. Assim, no dia 19 de Julho pôde realizar-se na cerca a festa do engalgamento da ala ocidental do novo seminário, que se achava toda embandeirada e engalanada com flores. D. Manuel Agostinho Barreto, acompanhado de alguns eclesiásticos, examinou as obras deixando transparecer a sua satisfação pela boa direcção dos trabalhos. Depois “de ter contemplado o magnífico panorama que se descortina de todas as direcções do andar superior, dirigiu-se para a arcada do sul a fim de oferecer um copo de água aos oitenta mestres e operários que andam na construção”775. A construção continuou sob a direcção do mesmo engenheiro e da mesma equipa de mestres e operários. Nesta obra empenhou D. Manuel Agostinho Barreto os seus próprios bens, os da diocese e ainda os contributos de pessoas de boa vontade que quiseram colaborar nesta importante obra da igreja local. Amplo, com salas suficientes e capela própria, da invocação de Nossa Senhora do Bom Despacho, o seminário surgiu belo e funcional. Em Outubro de 1909, embora com as obras ainda inacabadas, o seminário começou a funcionar. 768 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. 25. Trata-se de um pequeno lapso. A casa era residência do confessor do mosteiro e não do capelão. 770 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso: Ofício de Augusto Correia Mello de 15 de Junho de 1905. 771 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso.; Elucidário Madeirense, II, p. 307, ; “ A Igreja da Encarnação (Funchal ),” Boletim da DGEMN, 84 (1956) 41. 772 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso : Carta do delegado do tesouro da repartição da Fazenda do distrito do Funchal para o conselheiro director geral da Estatística e dos Próprios Nacionais, de 12 de Outubro de 1905. 773 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F, caixa. 2070, doc. avulso; “A Igreja da Encarnação (Funchal )”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 41. 774 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Enc. F., caixa 2070, doc. 25, fol. 3. 775 “ Obras do novo seminário”, in Quinzena Religiosa, de 1 de Agosto de 1907, nº 156, p. 235. 769 180 Planta 3 Planta 4 3.2. Acontecimentos posteriores A República de 1910, na sua política anti-religiosa, extinguiu o seminário por lei de 20 de Abril de 1911 e instalou no edifício uma escola de Utilidade e Belas Artes que começou a funcionar em Fevereiro de 1914776. Ensinava-se ali desenho, pintura, música, geografia, aritmética, línguas, lavores, culinária, jardinagem, horticultura e outras matérias777. Em Setembro de 1919 foram instaladas no edifício as diversas repartições da Junta Geral do distrito que para esse fim o obtivera por compra feita ao Estado778. Com a Revolução de 28 de Maio de 1926 voltou o imóvel à posse da Igreja. O decreto de 25 de Abril desse ano mandava que fosse entregue à Comissão Diocesana do Culto, decisão a que a Junta Geral do distrito do Funchal fez uma tenaz oposição. A entrega só se verificou em Outubro de 1933, depois de uma luta de seis anos. O edifício mandado construir por D. Manuel Agostinho Barreto no local onde existira o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação voltou de novo a funcionar como seminário diocesano. Com o 25 de Abril de 1974, os estudantes do Funchal, passando por cima das mais elementares regras de civismo, ocuparam o edifício e dele tomaram posse. Era o dia 31 de Outubro de 1974. A Junta Geral do Funchal, logo que teve conhecimento do facto, apressouse a entrar em contacto com a autoridade eclesiástica para esclarecimento. A 2 de Novembro do referido ano, sob a presidência do coronel José Afonso, governador militar interino, as delegações do diocese do Funchal e da Junta Geral, em reunião conjunta, debruçaram-se detalhadamente sobre o acontecido779. 776 Elucidário Madeirense, I, p. 307 e 398. Elucidário Madeirense, I, p. 398. Elucidário Madeirense, I, p. 307. 779 Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. avulso: Acta nº 2 da reunião de trabalho entre as delegações da diocese do Funchal e da Junta Geral do distrito, com representantes da Comissão de Gestão do Liceu Nacional do Funchal e das Forças Armadas. A delegação da 777 778 181 Das sessões então havidas, resultou um contrato de arrendamento, seguidamente revisto pelo prelado. Apontamos como cláusulas fundamentais: “A Diocese (...) cede à Junta Geral do Funchal o prédio urbano conhecido por prédio da Calçada da Encarnação, onde esteve até agora instalado o Seminário Menor da mesma Diocese, prédio que se situa na freguesia de Santa Luzia, desta cidade, com exclusão da respectiva Capela e casa de habitação ( com os solos e logradouros desta) e a parte do terreno que está agricultado e tem acesso independente. A parte cedida destinar-se-á exclusivamente para funcionamento de um estabelecimento escolar secundário oficial ou ciclo preparatório. A Junta Geral entregará à Diocese a importância de 50.000.00 mensais (...)”780. A entidade patronal permitia que a Junta Geral efectuasse “no edifício as obras necessárias à máxima eficiência do fim a que o imóvel é destinado”, porém “sem afectar a estrutura e os alçados do prédio, as quais ficarão integradas no mesmo e não serão indemnizáveis finda que seja a situação decorrente deste contrato”781. Desde aquela data, ali tem funcionado a Escola Básica Bartolomeu Perestrelo. A cerca, confiada aos cuidados de alguns trabalhadores, reverte a favor do actual seminário. diocese do Funchal era constituída pelo Cónego Dr. Agostinho Gonçalves Gomes, Dr. Paulo Gouveia e Silva e P. José Crespiano G. de Medeiros; a delegação da Junta Geral, pelo Dr. António E. F. Loja, presidente, Dr. Gaudêncio, vice-presidente., Dr. Pontes Leça e Prof. D. Teresa Pinheiro 780 Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. avulso: Carta de D. Francisco Antunes Santana , bispo do Funchal, de 9 de Novembro de 1974, nº 1, 2 e 3. 781 Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. avulso: Carta de D. Francisco (...), nº 7. 182 CAPÍTULO X A CAPELA DE NOSSA SENHORA DA ENCARNAÇÃO, JÓIA GÓTICO MANUELINA, QUE SUBSISTE 1. O restauro da capela Entretanto, a capela do ex-mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação foi-se arruinando. “ Os telhados que cobriam as abóbadas tinham desaparecido. Os rebocos exteriores caíam aos pedaços. As cantarias estavam negras e em grande parte esbotonadas. Da cornija só havia vestígios. No interior do venerável templo, o mesmo abandono, a mesma ruína, a mesma desolação!...”782 Na década de quarenta783, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacional, querendo evitar a ruína total, procedeu a obras de restauro. Foi, para o efeito, despejada do seu recheio artístico784. Para conseguir a recuperação estrutural, os trabalhos começaram pelas obras de consolidação e prosseguiram com os mais que se tornaram necessários, tendo-se realizado até Novembro de 1948, entre outros de menor importância, os seguintes: consolidação das abóbadas, restauro das fachadas, reconstituição dos remates em cornija, reconstituição do óculo da fachada principal e limpeza geral das cantarias no exterior e interior, incluindo a substituição de algumas785. A 29 de Novembro de 1948, o arquitecto chefe da primeira secção da referida Direcção notificava que estavam em curso obras de restauro da capela da Encarnação do Funchal mas faltava ainda a cobertura do telhado, campanário, portas, vitrais e arranjo do adro, cujo orçamento totaliza 215. 000$00, conforme o quadro: Quadro nº.25 – Obras de restauro s Restauros Construção da armação e cobertura do telhado em madeira de til. Construção de um altar de cantaria, incluindo os degraus. Construção e assentamento das portas, incluindo a pintura. Construção do Campanário, incluindo os sinos e a escada de acesso. Construção e assentamento de vitrais, armados em chumbo. Arranjo do adro, com muro de suporte e escadaria. Subtotal: 20% para imprevistos, fiscalização e administração. Total: Orçamento 60 000$00 30 000$00 35 000$00 40 000$00 10 000$00 40 000$00 215.000$00 43 000$00 258 000$00 Fonte: Ministério das Obras Públicas. Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais Igrejas, Plano de Obras, Album de Obras da DGEMN, F 1-192, A- 24-2, A; “Igreja da Encarnação ( Funchal ), ” Boletim da DGEMN, 84 (1956) 46, porém, sem o orçamento. Planta 5 782 “ Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 43. Não na década de cinquenta, como se lê em alguns autores. Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 72. 785 “ Igreja da Encarnação (Funchal)”, Boletim da DGEMN, 84 (1956) 45 - 46. 783 784 183 Eram concedidos mais 43.000$00 para fiscalização, administração e emprevistos aumentando o orçamento para 258.000$00. Destas obras de restauro resultou a igreja que podemos ver na parte alta da cidade do Funchal, ao lado do edifício que D. Manuel Agostinho Barreto mandou construir para seminário nos anos 1907-1909, no local do mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação. Entretanto, pelo decreto 30.762, de 26 de Setembro de 1940, a capela recebeu a classificação de Monumento Nacional786. Bem pouco depois, pelo decreto 30. 838, de 1 de Novembro do mesmo, como aconteceu com outros imóveis que eram propriedade particular, perdeu aquela classificação. Oito anos mais tarde, o decreto 37. 077, de 29 de Setembro de 1948, retirou à capela gótica de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal a primitiva classificação, para a incluir tão-somente entre os imóveis de interesse público. 2. A sacristia e a casa do confessor do mosteiro Durante a fase de restauro da capela procedeu-se à demolição da sacristia, que era a parte da construção que ligava a capela à casa do confessor, ficando dois imóveis distintos e independentes, conforme a planta anexa. Em 1933, esta casa foi ocupada por uma comunidade de religiosas franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias que, durante quatro décadas, prestaram ao seminário valiosos serviços. Aquando da entrada da comunidade, em 1933, procedeu-se à adaptação de uma sala a capela, lugar necessário para a oração das religiosas. Podemos vê-la, assinalada com uma cruz, na planta aqui inserta. Segundo informações colhidas, a talha dourada do altar e algumas imagens muito antigas deste lugar de oração seriam provenientes da capela de Nossa Senhora da Encarnação787. No dia 25 de Abril de 1974, após a tomada do seminário pelos estudantes, como atrás referimos, as religiosas retiraram e a casa teve novo destino: enquanto a cave foi cedida aos escuteiros de Santa Luzia, o rés-do-chão e o primeiro andar foi ocupado por Francisco Faria e sua família que, por incumbência do bispado, assumira o encargo do cultivo das cercas. Ali se mantiveram até 1994, data em que a Câmara Municipal do Funchal, para proceder ao rompimento da cota 40, obteve autorização para a demolir, com a obrigação, porém, de posteriormente a reconstruir. Presentemente (1999), o projecto de reconstrução da casa do confessor, confiado ao arquitecto João da Cunha Paredes, está em bom andamento. Muito em breve a cidade do Funchal poderá vê-la levantada ao lado da capela de Nossa Senhora da Encarnação. Planta 6 786 Decreto de 29 de Setembro de 1948, Diário do Governo, nº 228, I série, do mesmo dia, mês e ano; Ilhas de Zargo, II, p. 692. A Irmã Ismael Gomes, que foi membro da comunidade durante muitos anos, e o Cónego João Gouveia da Conceição, actual pároco da igreja do Imaculado Coração de Maria do Funchal, que ali ia muitas vezes prestar serviço religioso, assim o testemunham. 787 184 3. A capela de Nossa Senhora da Encarnação, hoje Despida de toda a talha dourada, do tríptico flamengo e demais recheio, a capela mantém as linhas estruturais da arquitectura quinhentista, a beleza e elegância dos arcos ogivais, que se evidenciam no branco das suas paredes. Embora com sobriedade decorativa, a igreja da Encarnação, tal como subsiste, é um dos melhores exemplares da arquitectura gótico-manuelina788. Resistindo às vicissitudes dos tempos marca, ainda hoje, a presença de um passado, de uma história religiosa, social e ideológica que nela se centrou. 28. Interior da capela de Nossa Encarnação. Totalmente despida da talha dourada dos séculos passados, no branco das suas paredes, evidenciam-se as linhas ogivais em grande equilíbrio e elegância. É bela na sobriedade das suas linhas estruturais. Fotografia de Rui Camacho, DRAC Graciosa obra quinhentista, a igreja da Encarnação é “jóia preciosa”, exemplar magnífico da capacidade arquitectónica e artística dos portugueses de antanho, que o Funchal deve guardar com respeitosa veneração, como lembrança sagrada “dos nossos maiores”. 29. Capela de Nossa Senhora da Encarnação. A capela no seu estado actual. Restaurada pelos Monumentos Nacionais na década de quarenta do século XX, mantém as linhas estruturais da arquitectura gótico-manuelina. É jóia quinhentista a recordar o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, de que fazia parte. Ao lado, bem conservada, pode ver-se a casa do confessor do mosteiro. Fotografia de Rui Camacho, DRAC 788 Luíza Clode e Fernando António Baptista Pereira, op. cit., p. 70. 185 III SECÇÃO MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS 1667 - 1910 186 CAPÍTULO I O RECOLHIMENTO DE NOSSA SENHORA DAS MERCÊS 1. Contexto histórico-religioso da Madeira no séc. XVII A sociedade madeirense do século XVII, marcada pela actuação do poder político e religioso, fazia questão de empenhar-se em causas patrióticas, bélicas, de beneficência e, numa perspectiva místico-religiosa, de integrar-se em confrarias ou ligar-se a algum feito memorável em favor da Igreja. A nobreza insular, ao longo de três séculos, para além das lides militares em que sempre andou envolvida, encontrava nas dignidades eclesiásticas e obras de natureza religiosa, um campo óptimo para conquistar honra e prestígio, para obter “mercês” espirituais. Por outro lado, logo a partir dos começos do século XVII, quando o açúcar brasileiro e das Antilhas começou a fazer concorrência ao açúcar das ilhas atlânticas, e a Madeira substituiu a cana pela cultura da vinha, que depressa se tornou fonte de largos rendimentos, o Funchal passou a ser, mais do que antes, ponto de passagem de armadas para todo o mundo. O comércio que, a partir de meados do século, se concentrou nas mãos dos ingleses, deu à Ilha um tal incremento que, em poucos anos, se assistiu a um enriquecimento e consequente aumento populacional. A nobreza insular conheceu então um surto considerável: Nestas circunstâncias o mosteiro de Santa Clara tornou-se insuficiente para receber as filhas dos nobres e gente afidalgada. Como resposta a esta problemática, e por razões já analisadas, na metade do século XVII, a cidade do Funchal levantou mais uma casa religiosa feminina, o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação, onde a nobreza insular encontrou lugar para muitos membros das suas famílias. Aconteceu também que o mesmo século viu nascer e desenvolver-se uma ânsia de vida espiritual profunda, de retiro, de vivência das exigências evangélicas e prática das mais excelsas virtudes. Na Madeira começava então a sentir-se o eco de alguns mosteiros da Ordem de Santa Clara, como o de Jesus de Setúbal e da Madre de Deus de Lisboa que, vivendo, não a regra de Urbano IV mas a de Santa Clara, eram lugares de oração, onde o Espírito de Assis, feito de mansidão e de paz, de fraternidade, de amor e humildade, de sentido profundo de Deus e de empenhamento ao serviço de todos, era vivência e compromisso. Só uma casa religiosa destas poderia oferecer uma vida conventual autêntica, toda voltada para Deus. Só Ele seria a resposta aos anseios espirituais que na Pérola do Atlântico se faziam sentir. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês desabrochou neste contexto histórico-religioso e ofereceu a possibilidade de concretização desta ânsia espiritual, de vivência radical do Evangelho, de intimidade profunda com o Senhor. Deus, condutor da história dos homens, encontrou num casal saído de duas das mais importantes famílias madeirenses, os “Berenguer de Lemilhana e os “França”, os instrumentos para tão nobre empreendimento789. 2. O capitão Gaspar Berenguer No final do século XVI, Pedro Berenguer de Lemilhana, natural de Valencia, na Espanha, doutor em medicina e fidalgo da casa real, estabeleceu-se na Calheta, no lombo por cima da vila, ainda hoje chamado Lombo do Doutor, onde teve terras em abundância, que 789 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso; Alberto Artur Sarmento, “O fundador do convento das Mercês”, in Das artes da história da Madeira, II, nº10, 1952, pp. 19-20. 187 estão na origem do morgadio do Lombo do Doutor. Os Berenguer de Lemilhana “gente principal”, crentes sem disfarces, mas também astutos e ambiciosos, sempre estiveram ligados às lides belicosas790. Quando a companhia das Índias Ocidentais ameaçava a unidade do Brasil, vários membros desta família partiram para lá a defender as terras de Vera Cruz. Entre os mais valentes mencionamos o P. Agostinho César Berenguer Andrade, os seus irmãos Francisco Berenguer de Andrade e D. Luísa Berenguer e ainda o sobrinho Gaspar Berenguer de Andrade e outros. Francisco Berenguer de Andrade bateu-se com denodo em prol da defesa das terras brasileiras. Seu sobrinho Gaspar Berenguer de Andrade pelejou com tal bravura e tenacidade que obteve o foro de fidalgo del-rei e o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo791. Regressando à Madeira coberto de honra e de glória, Gaspar Berenguer sucedeu na Calheta, na casa dos seus avós, isto é, no morgadio do Lombo do Doutor, como filho de Heitor Nunes Berenguer e D. Maria de Lira. Na família “França”, à qual os Berenguer estavam ligados por interesses vários, entre os quais os económicos, encontrou o capitão a esposa que havia de ajudá-lo, e até incentivá-lo, na realização de anelos profundos: construção da capela de Nossa Senhora das Mercês, recolhimento e convento do mesmo nome792. No testamento lavrado pela sua mão a 21 de Dezembro de 1686, detectamos o homem recto, empreendedor, generoso, coerente com a crença que professa. Que prudência e firmeza na dotação do mosteiro e circunstâncias de transmissão!...aquele mosteiro que ele, sua mulher e filhos fizeram “para honra de Deus”793. Cavaleiro da Ordem de Cristo e membro da irmandade da Santa Casa da Misericórdia, desejava deixar o seu nome ligado a uma obra religiosa que lhe desse prestígio. D. Isabel de França, sua esposa que, por piedosíssima que era, se dava muito a práticas religiosas, abriu-lhe horizontes. Decidiram-se, pois, pela construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora. Tudo o mais, o recolhimento e a sua transformação em mosteiro professo, veio como consequência. O capitão dedicava particular afeição à família franciscana, e nela tinha vários membros da sua família. As duas filhas mais velhas, D. Maria de S. Filipe e D. Margarida de São Tiago, professaram no mosteiro de Santa Clara, onde entraram antes da construção do Mosteiro das Mercês794. Sua irmã mais nova, D. Inês, foi terceira franciscana no recolhimento, vindo a professar no novo mosteiro. Também seu irmão, o Cónego Bartolomeu César e seu filho mais velho, José Berenguer, foram membros professos da Terceira Ordem Franciscana. Visto por outra faceta, Gaspar Berenguer foi um político impetuoso e iracundo, sempre pronto à acção. Magoado com o capitão general da Madeira, D. Francisco de Mascarenhas, que fazia justiça sem reparar em quem tocava795, tomou parte activa na sedição de 1668, que aproveitou para abrir as portas da prisão onde se encontravam alguns moços fidalgos, entre os quais seu filho Manuel Berenguer de Andrade. 790 Henrique Henriques de Noronha, op. cit., p. 282; Rui Carita, op. cit., III, p. 342. Fernando de Menezes Vaz, op. cit., I, p. 206. 792 P. Augusto da Silva, I, 1946, p. 180. Elucidário Madeirense, I, p. 308; Alberto Artur Sarmento, art. cit., in Das artes e da história da Madeira, II, nº 10, pp. 19 - 20; Rui Carita, op. cit., III, p. 354, nota 864. 793 ARM, Conventos, Conv. Mercês, L 268, fol. 74: Testamento do fundador e padroeiro do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, Gaspar Berenguer de Andrade, de 21 de Dezembro de 1686; Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. Estando em curso a passagem dos manuscritos do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do fundo documental Governo Civil, onde têm estado integrados, para Conventos, é neste núcleo que os incluímos. 794 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F, L 9, fol. 416v; citado por João José de Abreu de Sousa, op. cit., p. 46; Fernando de Menezes Vaz, op. cit., p. 201. Gaspar Berenguer de Andrade não optou pelo mosteiro de Santa Clara para as suas filhas pelo facto de o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês “ser modesto”, como diz Rui Carita (III, op. cit., p. 345), mas simplesmente porque ainda não estava construído. 795 O governador e capitão general da Madeira, D. Francisco de Mascarenhas, que tomou posse deste cargo a 28 de Novembro de 1665, tinha contra si, por motivos ainda incógnitos, a má vontade do clero e principalmente da nobreza, do que resultou a grave sublevação popular que se deu no Funchal a 18 de Setembro de 1668. Admite-se que D. Francisco de Mascarenhas teria abusado das faculdades que a lei lhe conferia, sendo duro no trato e relações com fidalgos e alguns membros do clero (Elucidário Madeirense, II, pp. 400 e 401). 791 188 Embarcado D. Francisco de Mascarenhas para o Reino, foi Gaspar Berenguer o encarregado de ir a Lisboa dar conhecimento do sucedido e de pedir a sua confirmação796. Ao regressar à Madeira, “foi recebido com grandes demonstrações de regozijo; trazia a notícia de que nas estações superiores se aprovara tudo quanto se fizera durante a revolução”797. Porém, algum tempo depois apareceu na Madeira o desembargador João de Moura, encarregado de proceder a rigorosa sindicância. Causou estranheza que, na devassa a que procedeu o desembargador, nenhum membro do clero, nem sequer o deão Dr. Pedro Moreira que, segundo Álvaro Rodrigues de Azevedo tomara parte activa na sedição, nem tão pouco os nobres mais implicados, como o morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos, “embora processados, não tenham sofrido alguma pena”798. 3. Construção da capela de Nossa Senhora das Mercês A capela dedicada a Nossa Senhora, que o casal Berenguer desejava construir, surgiu “num terreno por ele arrematado numa zona ainda selva”, muito próximo do mosteiro de Santa Clara e da Igreja de São Pedro. Que razões teriam Gaspar Berenguer e sua esposa para que fosse da invocação das “Mercês”? Vejamos. Em 711 árabes e berberes do norte de África entraram na Península Ibérica onde permaneceram cerca de 800 anos e donde só saíram em 1492, quando os Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, conseguiram conquistar Granada. Ao longo dos séculos, muitos cristãos foram levados prisioneiros para o norte de África onde, se não fossem resgatados, eram feitos escravos. A libertação destes cativos tornou-se empenhamento na cristandade ocidental. Assim, em 1218, o francês Pedro Nolasco, auxiliado por Raimundo de Penhaforte, seu confessor, e pelo rei Jaime I de Aragão, fundou a Ordem das Mercês, também chamada da Misericórdia ou da Redenção dos Cativos, que conseguiu, ao longo de muitos anos, o resgate de grande número de prisioneiros. A Senhora das Mercês, cuja festa a Igreja fixou a 24 de Setembro, muito venerada na Espanha e ilhas atlânticas, particularmente nos Açores e Madeira, era a Rainha, a Senhora, a quem se recorria para libertação dos cativos e para agradecer obséquios e mercês, que, como Rainha, podia conceder a quem A invocasse. À Senhora das Mercês se dedicavam capelas, igrejas e até mosteiros. Era a Ela, como Senhora da Misericórdia, que se implorava o resgate dos que iam caindo nas mãos dos maometanos. 30.Nossa Senhora das Mercês799. Esta expressiva imagem, vestida de azul e branco, coroada de rainha e o peito resguardado pelo escudo, é a Senhora das Mercês ou da Misericórdia a quem se pedia o resgate e a libertação dos cativos. Na mão esquerda segura a corrente de ferro com que eram algemados e na outra o escapulário, símbolo da protecção garantida aos seus devotos. 796 Alberto Artur Sarmento, art. cit., in Das artes e da historia da Madeira, II, pp. 19 - 20; Elucidário Madeirense, II, pp. 400 - 401 e p. 343; Rui Carita op. cit., p. 345. 797 Elucidário Madeirense, II, p. 401. 798 Elucidário Madeirense, II, p. 401. 799 À falta do retábulo da imagem de Nossa Senhora das Mercês, localizado na tribuna da capela-mor do mosteiro e da pintura em tela de 2,10 por 1, 44 metros, que existia no coro das religiosas, da mesma Senhora das Mercês, ambos desaparecidos, recorremos ao actual mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, nos Açores, pois, na capela daquela invocação que fazia parte do solar do casal Frazão, hoje integrado no mosteiro, existe uma belíssima imagem daquela invocação. As Irmãs Clarissas, amavelmente nos fizeram a oferta da fotografia que aqui reproduzimos. Desta forma, terão os leitores a possibilidade de tomar conhecimento da forma e simbologia da Virgem das Mercês. Nesta imagem podemos fazer a leitura duma época histórica, inquietante, como foi o domínio na Península Ibérica. Segundo nos informou o senhor Dr. José Pereira da Costa, Presidente do Centro de Estudos de História do Atlântico, na Madeira, na toponímia dos Açores, ainda hoje a Senhora das Mercês é uma referência com significado e conteúdo, simultaneamente religioso e histórico. 189 É possível que o capitão Gaspar Berenguer, cuja família sempre andou ligada a feitos bélicos na Espanha e mais recentemente no Brasil, se sentisse devedor àquela que gostava de venerar com o título de Senhora das Mercês, pois dela julgava ter recebido, bem como a família Berenguer de Lemilhana, muitos obséquios. Além disso é natural que Gaspar Berenguer, ao regressar do Brasil cheio de glória, se sentisse movido a fazer na Ilha algo que o destacasse entre os demais, algo que falasse aos vindouros do coroado esforço de alguns patrióticos madeirenses”, que haviam pelejado com bravura em terras de Vera Cruz, os “Berenguer “800. A construção de uma igreja ou mosteiro seria empreendimento a concretizar. 4. Construção do recolhimento de Nossa Senhora das Mercês Em data que desconhecemos, o capitão Gaspar Berenguer de Andrade e sua esposa arremataram perto da igreja de São Pedro a extensão de terreno, como já referimos, com intuito de “erigirem uma ermida nela, com certa pensão de missas a que ficava vinculada”801, que depois, por devoção, transformaram em igreja e dedicaram a Nossa Senhora das Mercês. Uma vez construída, logo o jesuíta João Ribeiro exortou o capitão e esposa, com quem tinha as melhores relações, a que “erigissem ali um recolhimento de donzelas nobres e virtuosas. D. Isabel de França, que ardia em desejos de agradar a Deus, tomou a resolução em empreender a obra”802, certa de que viria a ser mosteiro professo. Ajudados “com algumas esmolas particulares com que vários devotos quiseram ter parte no merecimento da obra, se romperam os alicerces em 12 de Outubro de 1655 e a 20 do mesmo mês, com a assistência do governador general, Pedro da Silva Cunha, o reitor do Colégio de São João Evangelista, P. Manuel Fernandes, e de toda a nobreza da terra, se celebrou missa solene com sermão que pregou o Cónego António Veloso Lira; e, benzida a primeira pedra com as cerimónias da Igreja, a lançou o dito general, o qual mandou festejar este acto, com repetida artilharia da fortaleza de São João do Pico”803. Os fundadores tiveram de vencer dificuldades e resistências oferecidas pelo vigário geral, Dr. Pedro Moreira, adverso à iniciativa do mosteiro, e pelo governador D. Francisco de Mascarenhas que, segundo algumas fontes, teria mandado interromper as obras ou pelo menos vontade de fazê-lo804. Além disso, surgiram também dificuldades financeiras de certo vulto805. O edifício foi crescendo, acabando por ficar “com suficientes cómodos, com todas as oficinas necessárias e alguma extensão da cerca interior, com uma levada de água contínua”806. 800 Alberto Artur Sarmento, art. cit, in Das artes e da história da Madeira., II, p. 19. Noronha, op. cit., p. 283. 802 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso; Noronha, op. cit., p. 283; Fernando da Soledade, ofm, op. cit., III, p. 354. Lê-se num manuscrito do Padre Neto, confessor do Mosteiro das Mercês, uma interessante lenda que As Saudades da Terra transcrevem e que tem interesse reproduzir. Diz a lenda que foi Nossa Senhora das Mercês, venerada na capela ali construída, que solicitou de D. Isabel de França a tão meritória obra. Quando lhe foi dirigido o pedido, a nobre senhora encontrava-se em má situação financeira, sem qualquer possibilidade de levar a cabo as obras. Mas, uma noite, teve um sonho em que a Senhora das Mercês lhe pedia que empenhasse naquela obra todos os bens. D. Isabel assumiu o pedido e, pouco tempo depois, ela e seu marido deram começo às obras, junto à dita capela “com tenção de ser de religiosas” (Álvaro Rodrigues de Azevedo, in Gaspar Frutuoso, As Saudades da Terra – História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, manucristo do sec. XVI, anotado por Álvaro Rodrigues Azevedo, Funchal, 1873, Livro Segundo, nota XXI, pp. 591- 592). 803 Noronha, op. cit., p. 283. 804 Álvaro Rodrigues de Azevedo, op. cit., p. 592-593. 805 Álvaro Rodrigues de Azevedo, op. cit., p. 592 e 593. O referido anotador, diz que se contava entre as religiosas, o que aliás era tradição corrente, que, quando se debatia o problema da construção, “uma pessoa virtuosa deveria ter visto durante muitas noites, no local onde havia de ficar o mosteiro, uma virgem rodeada de brilhante resplendor, contra a qual, falanges inumeráveis de entes frechavam enfurecidos” (op. cit., nota XXI, p. 591). Houve quem interpretasse esta visão como sendo o espírito do mal a querer impedir a realização de obra tão piedosa. Não faltou também quem desse a esta lenda sentido político, identificando aqueles terríveis seres com autoridades locais que se opunham à construção. Pedro de Mascarenhas, nomeado governador em 1655, pretendeu dificultar o andamento das obras , pelo que D. Isabel, incompreendida, “recolheu os operários em sua casa, para que não fossem presos (...) e, para que a sua obra fosse em aumento, trabalhavam de noite às escondidas, servindo ela e suas moças, como serventes, quando eles faltavam” (op. cit., nota XXI p. 592). 806 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso; Noronha, op. cit., p. 284. 801 190 A capela, depois das necessárias adaptações, ficou um templo bem proporcionado. Na capela-mor via-se “um vistoso Retábulo da Imagem da Nossa Senhora das Mercês, obra de Martim Conrado, insigne pintor estrangeiro, orago da mesma casa”807. No corpo da igreja havia dois altares laterais: o de Santa Maria Madalena e o de Santa Catarina mártir, além dos quais tem o de Nossa Senhora da Conceição. Segundo informação do Padre Neto, recolhida por Álvaro Rodrigues de Azevedo, “na Igreja do convento, que é da primitiva edificação dele, lá está a meio do tecto um medalhão (...), representando a Virgem em sítio agreste, assediada de um esquadrão de demónios disparando frechas para Ela”808. A construção seguiu com morosidade, até porque as dificuldades económicas se fizeram sentir. A coroar todos os esforços, o edifício surgiu belo e acolhedor, embora simples e modesto, como convinha às religiosas que iriam observar e viver a pobreza e austeridades inerentes à vida conventual quando, como era desejo dos fundadores, o recolhimento fosse transformado em convento professo da Regra de Santa Clara de Assis. 5. O recolhimento de Nossa Senhora das Mercês – “lugar pio” A obra que o casal Berenguer de Andrade assumira com entusiasmo foi continuando e, “achando-se já o edifício em termos de habitação, entraram a tomar posse dele sete donzelas de exemplar virtude, no dia de Corpus Christi, 15 de Junho de 1656”809. Eram elas: Isabel da Cruz, Isabel de Jesus, Isabel de São Francisco, que depois passou para o recolhimento do Bom Jesus da Ribeira, Madalena do Sacramento, Catarina da Paixão, Maria da Encarnação, Inês de Jesus, a irmã mais nova do fundador, às quais posteriormente se foram juntando outras810. Nos primeiros anos o recolhimento funcionou sem qualquer compromisso religioso, pois não tinha a complacência do deão e cabido da Sé. O P. João Ribeiro, jesuíta, foi o grande impulsionador da obra e o mestre espiritual das recolhidas nos primeiros anos811. Segundo Álvaro Rodrigues de Azevedo, o anotador de As saudades da Terra, “no princípio do recolhimento o Dr. Pedro Moreira (...), tomou-lhe aversão, de forma que não lhe concedia licença para ter sacrário (...)”812. Entretanto, algo mudou na vida do vigário geral, que o fez olhar o recolhimento de Nossa Senhora das Mercês com benevolência813. Assim a 12 de Fevereiro de 1658, aproveitando a visita que fez à igreja de São Pedro, em cuja paróquia ficava o recolhimento, achou por bem visitá-lo.814 Bem impressionado com a vida das recolhidas, assumiu todos os seus anseios e dos fundadores, permitiu a colocação do sacrário e concedeu-lhes todas as graças e indultos que o direito dá aos lugares pios. Desta forma o recolhimento das Mercês transformava-se em recolhimento religioso, ficando as senhoras ali residentes a observar um estatuto semelhante às regras conventuais, a Regra da Terceira Ordem de São Francisco815. Nessa data as recolhidas eram dezassete, e viviam unicamente das esmolas dos fiéis e de três moios de trigo da renda que possuíam816. 807 Noronha, op. cit., p. 284. Álvaro Rodrigues Azevedo, op. cit., nota XXI, p. 591. 809 Noronha, op. cit., p 283; Fernando da Soledade, op. cit., p. 355, para quem as donzelas eram nove; Fernando Augusto da Silva op. cit., p..l80. 810 Noronha, op. cit., p. 283; Fernando da Soledade, op. cit., III. p. 355. 811 Noronha, op. cit., p. 287; Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 354. 812 Álvaro Rodrigues de Azevedo, op. cit., p. 592. 813 “Aconteceu”, refere o anotador de As Saudades da Terra, “que, foi o dito Doutor desta Ilha para Porto Santo, a coisas do seu ofício: virou-se o barco em que ia, ficando em perigo evidente de vida, e logo lhe ocorreu que era castigo de Deus pelo que estava fazendo às recolhidas de Nossa Senhora das Mercês”. Implorou o auxílio da Senhora, “prometendo-lhe mudar de parecer; e livre de perigo, por milagre da mesma Senhora, veio a pedir perdão, logo mandou pôr sacrário, aceitou o recolhimento em lugar pio e, daí por diante, foi o mais empenhado na fundação deste convento” (op. cit., p. 592). 814 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 268, fol. 5v. 815 Quando a primeira e a segunda Ordem Franciscana já estavam fundadas, São Francisco viu a necessidade de uma ordem para seculares. O santo, contudo, entendia que a secularidade possui os seus valores e, na impossibilidade de todos levarem vida conventual, o que interessava sobremaneira era responder ao projecto de vida evangélica onde a cada um fosse dado viver. A Ordem Franciscana Secular, por ele fundada, 808 191 E o recolhimento cresceu. “A estas plantas do paraíso Seráfico”817, juntaram-se outras. “Sendo pela profissão, terceiras seculares do Hábito de S. Francisco, em breve tempo se fizeram directoras de uma particular observância, por tal modo que quando chegaram a ser discípulas já eram Mestras, sem passarem pelo estado de principiantes”818. Era seu anseio serem religiosas professas. A comunidade organiza-se em moldes conventuais, passando a ser superintendida por uma regente, auxiliada por uma vigária e uma escrivã819; os demais ofícios, sacristã, porteira e outros, foram distribuídos pelas várias recolhidas. Tendo já “uma igreja competentemente ornada da invocação de Nossa Senhora das Mercês, com capelão e confessor (...) com o Santíssimo Sacramento em sacrário”, a sua vida de oração era intensa e estava bem estruturada. E, como o vigário geral lhes prometeu tomá-las “por filhas e súbditas, em seu próprio nome e dos futuros bispos da diocese do Funchal, desde que alcançassem licença de Sua Majestade para erigir o mosteiro com regra aprovada por Sua Santidade e a Sé apostólica”820, logo o capitão fundador tratou de alcançar a necessária autorização. Entretanto a vida no recolhimento ganhou profundidade espiritual e, em 1660, “foi estabelecida clausura, principiando aquelas senhoras, embora sem compromisso canónico, a observar a Primeira Regra de Santa Clara. Depois de quatro anos de vida fervorosa, “com reputação e clausura”821, aquelas senhoras “com suas virtudes e raro exemplo” eram motivo de júbilo e de esperança para todos os moradores da cidade do Funchal: “estado eclesiástico, nobreza e povo”822. A Ilha da Madeira começou a olhá-las “com grande devoção e a sustentálas com suas esmolas com grande piedade”823. Começava a abrir-se caminho para a concretização do sonho dos fundadores: fazer ali um mosteiro professo. De facto, Gaspar Berenguer e D. Isabel de França haviam-no construído para nele “se recolherem e servirem a Deus, Nosso Senhor, nossas nobres e pobres da Ilha (... ) com o intento de que viesse a ser convento de religiosas professas da Primeira Regra de Santa Clara à imitação do Mosteiro da Madre de Deus desta Cidade (Lisboa), em cuja conformidade se foram metendo e recolhendo nele algumas nossas nobres e pobres”824. Havia, contudo, um longo caminho a percorrer. Enquanto se aguardava a autorização régia, as recolhidas iam vivendo como se de religiosas se tratasse. reuniu, e continua a reunir, muitos milhares de membros. O recolhimento de Nossa Senhora das Mercês começou por observar a regra desta Terceira Ordem Franciscana Secular. 816 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. 817 Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 355. 818 Noronha, op. cit., p. 283. 819 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 268, fol. 7v: Instrumento de fundação de 1 de Julho de 1665. 820 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 268, fol. 5v. 821 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5: Petição de Gaspar Berenguer e das recolhidas ao vigário geral de 5 de Julho de 1664. 822 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5v: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663. 823 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5: Petição do capitão Gaspar Berenguer de Andrade (...) de 5 de Julho de 1664. 824 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5v: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663. 192 CAPÍTULO II PASSAGEM DO RECOLHIMENTO A MOSTEIRO DE CLARISSAS 1. Autorização régia e eclesiástica 1.1. Autorização régia (1663) Após a visita do vigário geral ao recolhimento, em 12 de Fevereiro de 1658, a que já fizemos referência, logo uma petição do fundador, regente e recolhidas seguiu para o rei, solicitando a passagem do recolhimento a mosteiro professo da Regra de Santa Clara. A mesma mercê pediu a Sua Majestade o cabido da cidade do Funchal, a Câmara da Ilha e o governador e provedor da Fazenda. A resposta de Sua Majestade não se fez esperar: “Hei por bem, por ser obra tanto do serviço de Deus, nosso Senhor e pia devoção dos moradores da Ilha, que o Recolhimento referido seja convento professo da Primeira Regra de Santa Clara, assim como o é o Mosteiro da Madre de Deus desta cidade de Lisboa, e que fique Gaspar Berenguer de Andrade como fundador do dito convento e padroeiro dele”825. O alvará concedia ao fundador e seus sucessores no padroado “dois lugares de freiras para sempre, para o que (o fundador) o tinha dotado por escrituras, com cento e trinta mil reis de renda em cada ano”. Mais determinava: “o número de religiosas que terá o dito convento será vinte e um. (...) as quais religiosas serão governadas pelos prelados do bispado da Madeira e na sua ausência pelo Deão que ora é, e no adiante for e faltando este, a dignidade que se seguir a que darão obediência”826. Este alvará dado por Sua Majestade a 25 de Agosto de 1661, e confirmado a 19 de Maio de 1662, só foi expedido de Lisboa a 20 de Dezembro de 1663, então, com ordem expressa de que se cumprisse “como nele se contém”. Seguidamente, tratou o capitão de obter autorização eclesiástica, conforme o preceituado pelo direito canónico. 1.2. Processo de erecção episcopal A 5 de Julho de 1664, o capitão, a regente e demais recolhidas dirigiram-se ao deão, solicitando “lhes queira fazer mercê de as tomar debaixo do seu patrocínio em seu nome, e de todos os demais Prelados futuros, concedendo-lhes todos os favores que o direito dá”827. Ao mesmo tempo, o capitão Gaspar Berenguer requereu da mesma autoridade a passagem do recolhimento a mosteiro professo: “O qual Recolhimento está obrado com toda a perfeição, e clausura e oficinas necessárias (...) e também o tem dotado com bastante dote, para poderem viver as ditas Freiras, ajudadas com as esmolas dos fiéis cristãos deste Bispado”828. 31. Alvará régio 825 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5 v e 6: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663, AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26, capilha 1, doc. avulso: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663. D. Isabel de França, sua esposa, falecera a 27 de Novembro de 1659 (Noronha, op cit., p. 285). 826 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 6: Alvará (...); AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26, capilha 1, doc. avulso: Alvará (... ); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. Será necessário rectificar a firmação de que o mosteiro das Mercês “foi instituído inicialmente para dezassete freiras professas” (Rui Carita, op. cit., IV, p. 320). O numerus clausus estabelecido desde a origem foi de vinte e uma religiosas, embora no momento da passagem a mosteiro professo as recolhidas só fossem dezassete. 827 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5: Petição do capitão (...). 828 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 6: Petição do capitão (...); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. 193 As recolhidas, então em número de dezassete, eram governadas pela regente Maria dos Prazeres, auxiliada pela vigária Isabel da Cruz e a escrivã Madalena do Sacramento. Vivendo já à imitação das freiras capuchas da Madre de Deus de Lisboa, pretendiam servir a Deus em pobreza, castidade e obediência. Ouvidos o comissário do convento de S. Francisco do Funchal e o vigário da igreja de São Pedro, como pároco das recolhidas, e não havendo nada que obstasse, o Dr. Pedro Moreira entendeu que podia dar a licença solicitada, pois julgava a erecção do mosteiro um serviço de Deus. Portanto, a 21 do mesmo mês de Julho, dirigiu-se ao recolhimento acompanhado de Francisco da Fonseca, escrivão, “visitou a igreja de Nossa Senhora das Mercês, titular do recolhimento, a qual achou mui ornada e decente para nela haver sacrário, como há, por sua licença, aonde se encerra o Santíssimo Sacramento da Eucaristia; e visitou mais o interior do dito recolhimento a saber: dormitórios, coro superior, locutórios, refeitório, cozinha e cerca, e as mais partes altas, concernentes à clausura das religiosas que nele vivem, e achou que tudo estava capaz de se poder erigir em Convento regular (...), somente julgou ser necessário levantar o muro da cerca pela banda do caminho que vai para o Mosteiro de Santa Clara, seis ou oito palmos (...) e o que vai correndo até às casas do capitão António de Atouguia da Costa, oito a dez palmos”829. E, porque, quanto ao mais tudo lhe pareceu bem, “aprovou este dito recolhimento para nele se poderem professar os quatro votos da religião”830. À vistoria seguiu-se a dotação por parte do fundador. De acordo com o concílio de Trento, nenhum mosteiro podia ser fundado sem que estivesse garantida a sua sustentação com dotes e rendas ou esmolas certas. Do quantitativo desta dotação dependia o numerus clausus com que o mosteiro poderia ser fundado, como esclareceu o Ministro Geral Franciscano quando em 1720 teve de pronunciar-se sobre o assunto: “O Sagrado Concílio Tridentino manda na sessão 25, cap. 3, que em cada um dos conventos de religiosas se faça taxa e determine o número certo de freiras, o qual se possa comodamente sustentar das rendas e esmolas do mesmo convento; e por Constituição Apostólica do Senhor Papa Pio V está proibido receberem-se mais das que segundo o sobredito decreto e número se podem sustentar”831. Para satisfazer às exigências canónicas, Gaspar Berenguer procedeu à dotação do mosteiro. A 1 de Julho de 1665, na presença das recolhidas e do deão, o fundador e seus três filhos, P. Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer e Gaspar Berenguer, declaram que, quando o fizeram, já tinham a intenção de o transformar em mosteiro da Primeira Regra de Santa Clara, segundo o teor de vida do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa e que, portanto, “eles, como padroeiros fundadores e administradores que são e hão-se ser (...) de todos os bens deles, querem que nenhuma coisa falte a sua sustentação”832. Por isso, aos três moios com que estava dotado o recolhimento, juntaram mais onze, ficando o mosteiro dotado com catorze moios de trigo cada ano. Os onze moios referidos estavam vinculados às propriedades da Calheta, Estreito da Calheta, Ponta do Sol e Porto Moniz, com os quais se assegurava “a sustentação das religiosas, de um confessor, um capelão, feitor e de um servente de fora”, caso “as esmolas dos fieis cristãos lhe faltarem para sua sustentação, para que não padecessem necessidade”833, os quais moios “valem cada ano nesta Ilha da 829 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 7: Auto da vistoria de 21 de Julho de 1664. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 7: Auto da vistoria de 21 de Julho de 1664. 831 AHU, Madeira, doc. 623, Cópia do capítulo X da primeira patente que mandou Frei José da Conceição do Convento de Alferrara da Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720. 832 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, , fols. 7v. e 8: Instrumento de fundação de 1 de Julho 1665, fol.. 9 v: Sentença de 1 de Julho de 1665; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. 833 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 8: Instrumento de fundação, (...). 830 194 Madeira duzentos e cinquenta e dois mil reis ou seja seiscentos e trinta cruzados”834. A sustentação de cada freira ficaria anualmente por vinte e cinco cruzados, o confessor, capelão e feitor por quarenta cada um e o servente de fora por vinte e cinco. Esta dotação foi garantida não só pelo fundador mas também pelos três filhos, perante o Dr. Pedro Moreira, na qualidade de deão, provisor e vigário geral da diocese do Funchal. O mosteiro ficava ainda dotado com cento e trinta mil reis por ano, obrigação que ficava vinculada ao morgadio do Lombo do Doutor, com a contrapartida de dois lugares para sempre, de que podiam dispor os padroeiros835. Havendo licença e consentimento de Sua Majestade, estando o edifício conforme as leis de clausura e já dotado, o deão, a 3 de Julho de 1665, pôde proceder à erecção: “erijo (...) e levanto este recolhimento em mosteiro para nele se professar a Primeira Regra da gloriosa Virgem Santa Clara e aceito para dote de vinte e uma religiosas, que somente haverá nele, um confessor, capelão, feitor e servente, os catorze moios de trigo no valor de seiscentos e trinta cruzados”836 e “tomo as ditas recolhidas e as aceito em súbditas do futuro prelado e bispo e, em sua ausência, do seu vigário episcopal (...) para por ele serem regidas, moderadas e visitadas”837. O deão declarou também aceitar o capitão Gaspar Berenguer “como patrono fundador e administrador e a seus herdeiros (...) e que as ditas freiras professavam a Primeira Regra de pobreza de Santa Clara, como professam as do Mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, com seus estatutos”838. Finalmente, o Dr. Pedro Moreira prometeu pedir a Sua Santidade que “confirme esta instituição e erecção do mosteiro, pelo grande serviço que faz a nosso Senhor e consolação que os povos desta Ilha e Bispado recebem em terem pessoas tão virtuosas em quem exercitem as obras de caridade e suas esmolas”839. 1.3. Licença papal - O breve de Alexandre VII O breve impetrado por Gaspar Berenguer, que veio validar o alvará régio e confirmar a erecção episcopal, foi dado em Roma a 17 de Agosto de 1665, que e, chegou ao Funchal em fins de 1666. A sua execução foi confiada ao Dr. Pedro Moreira, na qualidade de juiz apostólico executor do breve840. A 20 de Dezembro daquele mesmo ano, o deão, convocou a regente, então Madre Inês de Jesus e mais Irmãs, para lhes “apresentar o breve de Sua Santidade impetrado a instâncias de Gaspar Berenguer de Andrade”. Depois, “como todo o acatamento e a reverência devida, o tomou em suas mãos e beijou”841, garantindo assumir a responsabilidade da sua execução. Seguiu-se, com visível satisfação de todos, a leitura textual do mesmo breve. A 6 de Junho de 1667, acompanhado do escrivão Francisco da Fonseca, procede à vistoria determinada pelo breve: visitou “a Igreja de Nossa Senhora das Mercês do recolhimento e achou estar suficientemente ornada, com o sacrário do Santíssimo Sacramento e mais coisas necessárias”,842 para guarda da clausura. E na presença da regente, Madre Inês 834 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9v: Petição (...) do capitão Gaspar Berenguer de Andrade e seus filhos (...) e das recolhidas do recolhimento de Nossa Senhora das Mercês de 1 de Julho de 1666. 835 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 5v: Alvará (...); Noronha, op. cit., p. 284. 836 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol.. 11v : Auto da Petição das recolhidas do recolhimento de Nossa Senhora das Mercês e do seu capitão de 3 de Julho de 1665; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. 837 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 11v: Auto da Petição (...). 838 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 11v: Auto da Petição (...), e fol.. 5 v: Alvará (...); AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26, capilha 1, doc. avulso. 839 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol.. 11v: Auto da Petição (...); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. S. Clara F., caixa 2072, doc. avulso. 840 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 12: Breve apostólico de Sua Santidade Alexandre VII, dado em Roma na igreja de Santa Maria Maior a 17 de Agosto de 1665; AHDF, Conv. Mercês, Caixa 26, Capilha 1, doc. avulso: Breve apostólico (...) 841 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 12: Breve apostólico (...). 842 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 14: Auto de vistoria que o deão Pedro Moreira (...) mandou fazer, de 6 de Junho de 1667. Nesta data já havia falecido a regente Prazeres de Jesus, bem como as recolhidas Maria da Madre de Deus e Luzia de São José (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 270, Livro de Óbitos, fol. 1). 195 de Jesus, da vigária de coro, Catarina da Paixão, das irmãs porteiras, Isabel de Jesus e Isabel da Cruz, da vigária da casa, Francisca do Espírito Santo, e restantes irmãs, num total de dezassete, o vigário geral tomou conhecimento das disposições da comunidade843. Feita a vistoria, em virtude da autoridade que lhe era conferida pelo breve, pôde o juiz apostólico escolher “para ir plantar e fundar o dito mosteiro das capuchas a Reverenda Madre D. Branca de Jesus, freira professa do Convento de Santa Clara desta cidade para instrutora, mestra e abadessa trienal, na forma do Concílio Tridentino, por constar da sua vontade e virtude”844. A 13 de Junho de 1667, dia em que se celebrava a festa de Santo António, no pátio exterior do mosteiro de Santa Clara junto à porta, estando a madre abadessa, D. Ana do Evangelista, com muitas religiosas da parte de dentro, e, da parte de fora, o vigário geral, o comissário do convento de São Francisco e do mosteiro de Santa Clara, Frei Domingos da Assunção, desobrigada a Madre D. Branca de Jesus da submissão e dependência da sua Madre, “foi levada (...) numa cadeira fechada (que são as carroças desta Ilha) para o Convento de Nossa Senhora das Mercês, acompanhada de muitas donas fidalgas, virtuosas e exemplares (...) com o estado eclesiástico, câmara e nobreza e povo dela (...) Chegados à porta do novo mosteiro, aonde da parte de dentro a esperavam a Regente Madre Inês de Jesus com as demais Irmãs (...), o Juiz Apostólico (...) entrou na clausura do Mosteiro notificando que ali lhes entregava a sua prelada, eleita e confirmada por ele” 845. Após algumas exortações, o Juiz Apostólico saiu e, fechada a porta da clausura, as religiosas “levaram a sua abadessa cantando o hino Te Deum Laudamus, dando graças a nosso Senhor da grande mercê que lhes fez”846. A Madre Dona Branca de Jesus ali ficava a “transformá-las de terceiras seculares em freiras da mesma ordem, ensinando-lhes a observância da sua primeira regra, com tanto exemplo, destreza e agilidade, como se a tivesse professado e aprendido ao longo de muitos anos”847. Nas suas mãos professaram, ao longo de alguns anos, vinte e seis noviças. “Deixando cultivado este jardim seráfico, com a primeira regra de Santa Clara, a mesma que se guarda na Madre de Deus de Lisboa, donde lhes vieram as instruções para o seu governo, com as quais se fizeram dignas religiosas”, regressou, alguns anos mais tarde, ao mosteiro onde professara848. 1.4. Regra e Constituições ou Estatutos Ao longo dos tempos, por factores de ordem diversa, particularmente por interferências da corte e dos governantes, os mosteiros foram perdendo o fervor inicial e o melhor do seu carisma. A Ordem de Santa Clara foi atingida por esta decadência. Na primeira metade do século XV, uma clarissa francesa, Santa Coleta849, procedeu à reforma da Ordem, reconduzindo-a ao genuíno espírito de Santa Clara de Assis. Esta reforma coletina entrou em Portugal pelo Mosteiro de Jesus em Setúbal, fundado em 1490. Para o “povoar”, foram pedidas sete clarissas ao mosteiro de Gandia, na Espanha, centro da reforma 843 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 14: Auto de vistoria (...). ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 14 v: D. Branca de Jesus era filha de João de Bettencourt de Freitas e de D. Isabel Moniz, sua mulher. Professou em 1636 no convento de Nossa Senhora da Conceição do Funchal (Noronha, op. cit., p. 284). O breve previa que a fundadora pudesse ser uma religiosa do mosteiro de Santa Clara ou de Nossa Senhora da Encarnação. 845 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 14 v. e ss. Auto da entrega que fazem o Reverendo P. Comissário dos Conventos de São Francisco e de Santa Clara da Ilha da Madeira, Frei Domingos da Assunção e Madre abadessa dele, da Reverenda Madre Dona Branca de Jesus, professa do Convento de Santa Clara, para ir fundar o novo mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, em virtude do Breve Apostólico. 846 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 15: Auto da entrega (...). 847 Fernando da Soledade, op. cit.,III, p. 355; Noronha , op. cit., p. 284. 848 Noronha, op. cit., p. 284. 849 Para a reforma de Santa Coleta vejam-se as páginas 27 e 28 desta obra : Movimentos reformadores. 844 196 coletina na Península Ibérica. Para ali viera um grupo de reformadoras de Lezignan, na França850. A 18 de Junho de 1509, o mosteiro de Setúbal enviou sete clarissas para “povoar” o mosteiro da Madre de Deus, em Lisboa (Xabregas), a pedido da benemérita fundadora das Misericórdias, a rainha D. Leonor, esposa de D. João II. A comunidade “guardava fervorosamente a Primeira Regra de Santa Clara”, segundo o testemunho do cronista franciscano, Fernando da Soledade. Deste mosteiro de Lisboa, partir a reforma, para incrementar a observância no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês no Funchal, Ilha da Madeira, que livremente quis assumir a Regra de Santa Clara e os Estatutos ou Constituições de Santa Coleta851. As Constituições, declarações, estatutos e ordenações sobre a Regra de Santa Clara, recebidas do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, constam de quinze capítulos. Com esta legislação pretendia Santa Coleta levar os mosteiros da Ordem à vivência do carisma próprio, segundo o genuíno espírito de Santa Clara e de S. Francisco de Assis. Os dois primeiros capítulos tratam das condições de entrada na Ordem e do hábito religioso; os capítulos III e V dizem directamente respeito à vida espiritual, recitação do ofício divino, confissão e comunhão, enquanto o IV e VI abordam aspectos ascéticos necessários para a profundidade oracional, tais como o silêncio, a abstinência e o jejum. Da clausura, necessária para uma melhor comunhão com Deus, falam os capítulos VI, IX e XIV. Da eleição da abadessa, discretas e capítulo conventual, como expressão de responsabilidade fraterna, tratam os capítulos IV, VII e XIII. À pobreza individual e colectiva, insistindo na “não recepção de rendas nem possessão alguma”, à obrigação de trabalhar e aos cuidados fraternos a ter com os doentes, consagram os Estatutos os capítulos X, XI e XII. E, finalmente, o capítulo XV fala do visitador canónico. O texto termina com uma exortação de Santa Coleta: a sua “religiosíssima observância (...)” porque, diz a reformadora, “quanto mais vos esforçardes a dar fruto na guarda dos vossos Estatutos, quanto mais gloriosos prémios alcançareis”. E, para que cada religiosa conhecendo-os bem, melhor os pudesse observar, mandava: “seis vezes em cada ano, em comunidade, ao tempo de comer, em lugar de outra lição, claramente sejam lidos”852. O texto da Constituições ou Estatutos encontra-se assinado pelo punho da Madre “Branca de Jesus, fundadora e abadessa do Convento de Nossa Senhora das Mercês”853, como que a querer dizer que assumia a responsabilidade de os observar e fazer observar pela comunidade. As religiosas das Mercês eram geralmente designadas por capuchas e também capuchinhas, diminutivo em que o bom povo madeirense, em atitude de apreço e carinho, transformou aquele apelativo. Nessa época, em Portugal, atribuía-se o nome genérico de capuchas às clarissas que seguem a Regra de Santa Clara em vez da Regra do Papa Urbano IV, “por maior elogio da sua forma de vida mais estreita”854. 2.O padroado dos Berenguer 2.1.Direitos e deveres dos padroeiros Na petição dirigida a Sua Majestade, Gaspar Berenguer pedia “lhe fizesse mercê aceitar o padroado e protecção do convento”. A rainha regente, D. Luísa de Gusmão, não só lhe 850 Omaechevarría, ofm, op. cit., pp. 89-103. Sobre a Regra de Santa Clara, para evitar repetições, pode ver-se na Primeira Parte desta obra o capítulo III: Textos legislativos e reformas. 852 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Constituições (...), fol. 44. 853 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Constituições (...), fol. 44v. 854 Apolinário da Conceição, ofm, op. cit., p. 126. As religiosas capuchas das Mercês nada têm a ver com a reforma capuchinha; nem tão pouco, nessa data, havia Capuchinhos no Reino. 851 197 devolveu a dignidade que era o padroado, mas mandou que passasse também a seus sucessores. O capitão, que associara à fundação do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês os seus três filhos, P. Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer e Gaspar Berenguer, vinculou-os então a si como fundadores e dotadores do novo mosteiro, pertencendo-lhes “o direito de padroado, administração, honras, isenções e proeminências eclesiásticas de que gozavam os padroeiros e fundadores”855. Todos gozariam dos direitos especificados no alvará régio: sepultura na capela-mor do mosteiro, escolha de dois lugares perpétuos856, que podiam dar a pessoas beneméritas da sua linhagem ou mesmo de outra, e ainda a nomeação do confessor, capelão, feitor e um de servente de fora, que deviam apresentar à aprovação de prelado857. Sabemos que na capela-mor foram sepultados os fundadores, Gaspar de Berenguer de Andrade, falecido em 1691 e sua mulher D. Isabel de França que, segundo Noronha, morrera a 27 de Novembro de 1659858, bem como os dois filhos que tiveram o padroado: P. Bartolomeu César Berenguer e José de França Berenguer859. 2.2. O padroado, sua constituição e rendas Reportando-nos ao “Instrumento de Fundação do Convento de 1 de Julho de 1665”860 e à “Cópia das fazendas do padroado de 8 de Abril de 1807”861, vemos que o padroado formado pelo capitão Gaspar Berenguer com “a sua Terça”, a terceira parte da herança de que ele, como testador, podia dispor livremente, era constituído por vinte e três propriedades rústicas, e duas urbanas na rua das Mercês: “uma morada de casas com alto e baixo (...) e uma casinha térrea de telha”, a que estava vinculado um serrado ali situado com boas condições para árvores de fruto e hortaliças 862. Estes dois prédios urbanos, o serrado, seriam, segundo as disposições testamentárias de Gaspar Berenguer, a morada dos padroeiros. Quadro nº.26 - Propriedades rústicas do padroado Calheta No Lombo do Doutor-2 Na Levada de São José -3 Estreito da Calheta No Lombo da Igreja - 4 No Lombo do Lameiro -4 No Lombo dos Reis -3 Na Serra do Lombo do Morgado -1 No Lombo dos Moinhos -1 No Lombo da Achada –1 Na Ribeira do Farrobo -1 Ponta do Sol Canhas - 1 Chiqueiros -1 Porto Moniz Fajã do Barro -1 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 8- 8v: Instrumento de fundação e Cópia das fazendas do padroado, fols. 76- 81 . Estas propriedades, estavam localizadas na Calheta, Estreito da Calheta, Ponta do Sol e Porto Moniz. Todas estavam pois situadas no sul da Ilha, excepto a Fajã do Barro. Destas fazendas vinculadas ao morgadio do Lombo do Doutor, aforadas a alqueires de trigo, dinheiro e manteiga, ou entregues a meeiros pelo padroeiro, saíam onze moios de trigo em cada ano, 855 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 8v-9: Instrumento de fundação (...); ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa. 2076, doc. avulso. 856 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 5v- 6: Alvará; AHDF, Conv. Mercês F., caixa. 26, capilha 1, doc. avulso. 857 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9: Instrumento de fundação (...). 858 Noronha op. cit., p. 285. 859 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 84: Testamento de José de França Berenguer, Noronha op. cit., p. 285. 860 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 7v -9: Instrumento de fundação (...). 861 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 76 - 81. 862 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Instrumento de Fundação, fols. 8-8v e Cópia das fazendas do padroado, fols 76-81. 198 para a sustentação das religiosas, capelão, confessor, feitor e um servente de fora.863 A cada uma estava vinculado um certo quantitativo anual de trigo conforme o estipulado pelo fundador. Quadro nº.27 - Trigo fornecido pelas propriedades do padroado Propriedades Estreito da Calheta (15 fazendas) Porto Moniz (1 fazenda) Calheta (5 fazendas) Ponta do Sol (2 fazendas) Descrição Terras semeadas, vinha balseira e árvores Terras de pão Terras semeadas, vinha e árvores Total: Quantitativo dois moios Meio moio seis moios e 44 alqueires Um moio e 46 alqueires onze moios Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Instrumento de fundação, fols. 8- 8v e Cópia das fazendas do padroado, fols. 76- 81 Os outros três moios com que Gaspar Berenguer e sua esposa D. Isabel de França, haviam dotado o recolhimento, provinham de “boas propriedades”864 que não pudemos localizar. As propriedades que constituíam o padroado do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, formado com “a Terça” do fundador, manter-se-iam indivisíveis e in perpetuum nas mãos dos seus descendentes, que poderiam usufruir os seus rendimentos, pois as religiosas só gozariam das rendas a ele vinculadas, quando as ofertas dos fiéis do bispado do Funchal não fossem suficientes. No testamento, Gaspar Berenguer, falando da terça com que dotara o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, explicita: “nunca será vendida nem alienada” e passará aos descendentes “como morgadio in perpetuum (...) na forma seguinte: enquanto (...) os meus dois filhos, Padre Bartolomeu César e José de França forem vivos, comerão os seus rendimentos uniformemente pois me ajudaram a fazer o dote do dito convento e, por morte de ambos,(...) sucederá nela o filho mais velho de meu filho José de França Berenguer, e assim irá ocorrendo perpetuamente de mais velho em mais velho, na forma da lei do reino e, em falta de varão, sucederá a mulher mais velha(...); sempre andará anexa a dita terça, com o padroado e administração do dito convento, em a pessoa que herdar o morgadio do Lombo do Doutor, sito na Vila da Calheta que instituíram meus avós (...)”865. Se, porém, essa pessoa não fosse cumpridora ou não morasse no aposento do fundador, junto ao mosteiro, para dele ter muito cuidado e trazer a igreja com o asseio e o zelo necessário, “passará a dita terça e padroado ao ilustríssimo Senhor Bispo e em sua falta ao deão e isto enquanto durar a vida do que for negligente na sua administração”866. Após a morte do que não fosse cumpridor, voltava ao seu herdeiro ou à pessoa que sucedesse no morgadio do Lombo, “porque”, diz o fundador, “o meu intento não é tirá-lo da minha descendência, mas somente daquele que proceder mal na administração”867. 2.3 Problemática posterior Gaspar Berenguer manteve em suas mãos o padroado do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês até à sua morte que ocorreu em 1691. Dele passou para o filho mais velho, P. 863 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 8 -9: Instrumento de fundação (...); ARM Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols.. 8082. O moio era uma medida de capacidade equivalente a sessenta alqueires. Estavam aforadas quatro propriedades: três no Estreito da Calheta e uma no Paul do Mar. 864 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 8: Instrumento de fundação (...). 865 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 74v: Testamento do capitão Gaspar Berenguer de Andrade. 866 ARM, Convento, Conv. Mercês F., L 268, fol. 74v: Testamento do capitão Gaspar Berenguer de Andrade. 867 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 74v: Testamento do capitão Gaspar Berenguer de Andrade. 199 Bartolomeu César Berenguer” e seguidamente para José de França Berenguer, que o manteve até 1720. José de França Berenguer, cavaleiro da Ordem de Cristo,868 casara com D. Maria de Castelo Branco, da qual tivera seis filhos869. Porém, quando morreu em 1720, já só viviam três: Agostinho César Berenguer Atouguia, José de França Berenguer e D. Lourença de Sena, religiosa no mosteiro das Mercês870. Aconteceu que, no seu testamento constituiu herdeiro de todos os seus bens o filho Agostinho César Berenguer e Atouguia, “a quem também nomeio na administração do padroado no Convento de Nossa Senhora das Mercês”871, o que fez nascer um grave litígio que se perpetuou por cerca de cem anos. É que, do casamento do seu filho mais velho, o morgado João de Andrade Berenguer com D. Tomásia de França e Andrade, realizado na Calheta em Novembro de 1695872, haviam nascido dois filhos: João de Andrade Berenguer, a quem pertencia o padroado, e D. Antónia Josefa, que Fernanado Vaz de Meneses chama Antónia Joaquina. Ora, José de França Berenguer, sem atender aos direitos de Antónia Josefa, já então casada com Jorge Correia Bettencourt, apelidado o Grande, a quem, por morte do irmão em 1716, pertencia o padroado, constituiu padroeiro Agostinho César Berenguer, seu segundo filho. Quando em 1720, Agostinho César passou a administrar o padroado, exaltaram-se ânimos e contestaram-se-lhe direitos e honras Em 1725 D. Manuel Coutinho, o novo bispo do Funchal, deu-se conta de que a confusão sobre a sucessão do padroado era muito grande. O prelado, pelos direitos que lhe dava o testamento do fundador, decidiu assumir o padroado e resguardar os documentos relativos à fundação: “Os autos de fundação e erecção do Convento de Nossa Senhora das Mercês, que estavam no Convento, o Senhor Bispo, D. Frei Manuel Coutinho os levou com os outros mais papéis e os guardou no cofre ou arquivo da Mitra”873. Em seguida foi levantada uma causa judiciária contra Agostinho César, que o privou do padroado do mosteiro, “cujos autos também se acham no arquivo ou cofre”874. Algum tempo depois Gaspar Berenguer, filho de Agostinho César e seu sucessor no padroado, fez chegar a Roma uma carta, simultaneamente, queixa e súplica. Dirigindo-se à Congregação dos Bispos e Regulares, depois de referir os direitos dos padroeiros, acrescentava que os bispos, a quem só fora concedido o governo espiritual, “se têm apoderado do sobredito mosteiro, de tal modo que têm tomado (...) todo o governo e autoridade dos Padroeiros, negando aos padroeiros os direitos que lhes pertencem.” Queixava-se também de que, tendo o mosteiro sido fundado para vinte e uma religiosas, “hoje passam de trinta e uma”. E suplicava: “Como as coisas vão de mal em pior, queiram ordenar que o Bispo largue logo ao padroeiro do mosteiro e seus sucessores todas as escrituras (...) e que não se intrometa no governo do Mosteiro” 875 O Núncio Apostólico de Lisboa, interpelado pela Congregação, a 30 de Novembro de 1754, dirigiu-se ao prelado da diocese do Funchal: “Como da Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares de Roma, me vem cometida a instância, que consta da 868 José de França Berenguer era também membro da Terceira Ordem de São Francisco, irmão de Nossa Senhora do Monte do Carmo e de Nossa Senhora da Soledade, bem como de Nossa Senhora do Monte e da Santa Casa da Misericórdia. No seu testamento pediu para ser amortalhado com o hábito “do meu seráfico pai São Francisco e as insígnias de cavaleiro da Ordem de Cristo” (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 84 -84v). 869 Fernando de Menezes Vaz, op. cit., p. 201. 870 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 84. O capitão teve duas filhas no mosteiro das Mercês, D. Maria e D. Isabel Francisca de São José, que faleceu em 1716 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol.1v; Noronha, op. cit., p..293. 871 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 84. 872 Fernando de Menezes Vaz, op. cit., p.201. 873 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. 874 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. 875 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso, doc. avulso: Súplica de Gaspar Berenguer à Congregação dos Bispos e Regulares de Roma. 200 inclusa súplica, para que examine o que há nesta matéria, e sobre ela dê categórica resposta (...), devo eu prevaler-me de V. S., para que queira ter a bondade de informar-me exactamente 32 Problemática na transmissão do padroado876 sobre o relatado na mencionada súplica, para meu regulamento.”877 Do estudo que o cabido fez do assunto, resultou a carta de 14 de Abril de 1755, em que se diz que o padroeiro “se servia do mosteiro como dum favo de abelhas para apanhar as esmolas que vinham (...), e que as religiosas, por causa da sua pobreza, clamando foram socorridas pelo Bispo D. Frei Manuel Coutinho, que obrigou judicialmente o padroeiro a dar razão da sua administração”878. Desconhecemos qual tenha sido a resposta de Roma, mas em 1788 ainda D. José da Costa Torres, em carta para o ministro Martinho de Mello e Castro, fazia referência a esta situação litigiosa que, sem dúvida, afectava a vida das religiosas879. Na segunda metade do século XVIII, agravaram-se as lutas judiciárias entre a linha representada por D. Antónia Josefa, assumida por Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto e depois dele por Henrique Correia de Vilhena, e os descendentes de Agostinho César, que foram Gaspar Berenguer e José Joaquim de Bettencourt Esmeraldo. Nelas veio a envolver-se a autoridade eclesiástica880. O litígio ganhou volume, chegando os agravados a apelar das sentenças lavradas para a Relação Patriarcal e depois para a Coroa881. Algum tempo mais, e o padroado do mosteiro, depois de um desvio de oitenta e sete anos, passou para os descendentes de D. Antónia Josefa Berenguer Correia Bettencourt, na pessoa de D. Ana Cândida, por sentença de 19 de Abril de 1807882. De facto, sendo José Joaquim de Bettencourt Esmeraldo, depois de contenciosa pleito judicial, convidado a largar a posse do padroado, nele foi investida D. Ana Cândida Berenguer d’Atouguia Neto, casada com Henrique Correia. A investidura teve lugar no Juízo da Correição a 19 de Abril de 1807883. 3. O imóvel 3.1. Localização urbana e estrutura material O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, “um casario de aspecto grave, que se ocultava por detrás de altas muralhas”884, ficava situado “à Rua das Mercês e Travessa das Capuchinhas, freguesia de S. Pedro do Funchal”885. A Travessa das Capuchinhas ou das 876 AHDF, Conv. Mercês F., pasta 130, fol.1. AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta do Núncio Apostólico de Sua Santidade dirigida ao Reverendíssimo Cabido, estando vacante este Bispado do Funchal, sobre a súplica de Gaspar Berenguer, de 30 de Novembro de 1754. 878 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Resposta do Cabido, dada no Funchal. 879 AHU, Madeira, doc. 842: Carta do bispo do Funchal, de 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro. 880 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 88: Sentença que Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto obteve contra o procurador da Mitra, o Cónego Dr. António de Freitas Sousa, e Gaspar Berenguer, filho de Agostinho Berenguer, na reivindicação do padroado do Convento de Nossa Senhora das Mercês, inserta em uns autos, em que foi autor Henrique Correia de Vilhena, como cabeça de sua mulher, D. Ana Cândida Correia, e réu, o Coronel José Joaquim de Bettencourt Esmeraldo, existente no cartório do escrivão Jacinto Medina e Vasconcelos, fols. 252-275, e confirmada por sentença da relação das folhas, fols. 284 e ss. 881 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 88v: Sentença que Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto (...). 882 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94. 883 AHDF, Conv. Mercês F., pasta 130, fol. 1, documento aqui reproduzido; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols.. 88 - 94: Sentença que Jorge Correia Bettencourt de Atouguia Neto (...). 884 “O Convento das Mercês”, Correio da Madeira, 5 de Março de 1927. 885 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação do extinto Convento de Nossa Senhora das Mercês, 20 Novembro de 1895, feita por Teodoro João Henriques, A. Augusto Leme e António Ferreira de Freitas. 877 201 Mercês, então mais estreita do que hoje, por altura da capela das Almas, construída em 1781 por Roque José d’Araújo Viana886, flectia para sul, delimitando a cerca das religiosas. O edifício e a sua cerca eram limitados a norte e oeste pela Travessa das Capuchinhas, a sul pelo terreno dos herdeiros de João Francisco de Florença Pavão e a leste pela Rua das Mercês e o prédio Power Drury e Companhia887. O imóvel integrava, além da parte habitacional, a capela de Nossa Senhora das Mercês, uma pequena sacristia e adro que abria para a Rua das Mercês888. Ao longo dos anos, sofreu remodelações e aumentos. As mais importantes obras de restauro realizaram-se na igreja e na parte habitacional nos anos de 1746-1752889. Possivelmente foi nessa altura que o coro das religiosas foi enriquecido com uma valiosa tela de Nossa Senhora das Mercês de consideráveis dimensões890, que deu ao coro beleza e dignidade. A construção, de rés-do-chão, primeiro e segundo andar, ocupando uma área que media “com a Igreja, o adro e a sacristia, mil trezentos e trinta e cinco metros quadrados”891, distribuía-se à volta do claustro de cento e oitenta metros quadrados, ocupado por dois jardins. A planta anexa, de 1895, permite-nos analisar pormenorizadamente a estrutura do imóvel, e a finalidade das várias divisões, em função da vida comunitária. Assim, vemos que no rés-do-chão, do lado da Rua das Mercês, se localizava a zona de relacionamento com o exterior: a capela, a sacristia, o adro e a portaria, donde partia uma escada que levava à sala de visitas situada no primeiro andar, as duas casas da roda e a torre. Transitava-se desta zona para o interior do mosteiro pela casa de passagem, que abria para o claustro. Ao redor dele, distribuía-se a zona de trabalho: casa das hóstias, cozinha, despensa, casa da farinha e várias lojas, ou seja, as casas da giesta, da lenha, da cera e a tulha, onde se guardava o trigo892. Neste pavimento térreo ficava ainda o refeitório da comunidade, o quarto da abadessa e a sala capitular No primeiro andar, situava-se a sala de noviciado, uma pequena cozinha para o serviço da enfermaria, vinte e uma celas, o coro das religiosas e os locutórios, lugares de atendimento das visitas. O segundo andar, que não acompanhava toda a construção, era ocupado pela enfermaria, duas pequenas salas, rouparia e sala de convívio ou recreio. PLANTA 7 886 Ângela Maria de Freitas Alves, Abel Gomes Fernandes, Julieta Maria R. do Vale Fernandes e Irene Rodrigues, op. cit., p. 156. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...). 888 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...). 889 Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 310. 890 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fol.. 25: Inventário de Setembro de 1895. O ANTT possui dois inventários do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, de 1895. Um assinado por Mons. João Luís Monteiro, como delegado da autoridade eclesiástica, o P. António de Macedo, Alfredo Cirilo dos Santos, da repartição da Fazenda Distrital, Cândido Pereira e João Rodrigues Rebelo, não datado. O outro, de Novembro do mesmo ano, assinado por Alfredo Cirilo dos Santos, Mons. João Luís Monteiro e Francisco de Paula Prado. Dado que em 24 de Setembro de 1895, foi lavrado o termo da “Entrega ao Excelentíssimo e Reverendíssimo Prelado de todas as imagens, alfaias e mais objectos de culto que pertenceram ao suprimido Convento da Senhora das Mercês” (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. IV/B/49/12), o inventário será anterior àquela data, possivelmente de princípios de Setembro, o que vamos admitir por facilidade de referência.Veja-se a nota 15, p. 310. 891 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso. Medição e avaliação (...). 892 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, Medição e avaliação (...). Planta do extinto mosteiro de Nossa Senhora das Mercês de 11 de Setembro de 1895, levantada e desenhada por Joaquim António de Carvalho em Setembro de 1895. 887 202 A cerca, de cento e setenta metros quadrados, era aproveitada como horta e jardim. Contudo, quando em 1895 foi medida e avaliada estava “plantada d’árvores infrutíferas e com uma capela de São Vicente Ferrer”893. Da levada dos Moinhos, que descia na cerca junto ao muro, derivava a levada que servia o mosteiro e a cerca. Apesar de, à data, nada render, acharam os avaliadores que valia quinhentos mil réis. Ao prédio, bastante deteriorado, atribuíram um conto de réis894. 33. Santa Maria Madalena. O quadro de Santa Maria Madalena, pintura em tela, ocupava um dos altares laterais da capela. Vem referido no inventário de Setembro de 1895. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. 3.2. Lugares de culto: a capela, o coro e a ermida da cerca As obras de restauro que, como atrás ficou dito, se efectuaram em meados do séc. XVIII, deixaram a capela bela e acolhedora, sem no entanto perder a sua sobriedade, como diz Fernando Augusto da Silva: “na sua arquitectura, nas suas proporções e nas suas decorações interiores, não passou duma pequena e modesta igreja, mas foi sempre um cenáculo vivo de afervorada piedade, em que as religiosas capuchinhas deram o alto exemplo das mais heróicas virtudes cristãs”895. Tinha, além do altar-mor, dois altares laterais: de S. Lúcio e de Santo António. No altar-mor, a que presidia o belíssimo retábulo de Nossa 34. Santa Catarina mártir. O quadro de Santa Catarina, bela pintura a óleo, vem mencionado no inventário de 1895. Ocupava, segundo Noronha, um dos altares laterais da capela. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. Senhora das Mercês de Conrado Martim, encontravam-se as imagens de Santa Clara, de S. Francisco, de S. João Baptista e de Santa Ifigénia. O sacrário, de madeira de pinho dourada, ocupava posição central. A capela tinha, sem dúvida, o seu camarim. 35. Nossa Senhora da Conceição. Esta linda imagem de Nossa Senhora da Conceição (de roca), do final do século XVII ou princípios do XVIII, ocupava na capela o altar a que deu o nome. Pertencia-lhe, segundo o inventário de Setembro de 1895, “uma coroa em prata lavrada de setecentos e oito gramas”. O altar de São Lúcio, que Noronha, por ter um valioso retábulo de Santa Catarina em tela, denominou altar de Santa Catarina mártir, tinha, além das imagens de São Lúcio e de São Bruno em madeira policromada dourada, um quadro do Sagrado Coração de Jesus com vidro e moldura dourada. No altar de Santo António encontrava-se um retábulo de Santa Maria 893 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...). 894 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação (...) 895 Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 330. 203 Madalena, do mesmo estilo e, sem dúvida, do mesmo autor da tela de Santa Catarina. Havia também, um quadro do Imaculado Coração de Maria com moldura dourada e um crucifixo valioso. Junto ao púlpito, de pinho envernizado e com decoração dourada, ficava o altar de Nossa Senhora da Conceição, bela imagem de roca. Nele se encontravam também as imagens de São Joaquim e de Santa Ana em madeira, um quadro de Santa Filomena com moldura dourada e um crucifixo de apreciável valor. A capela-mor serviu de panteão aos padroeiros, D. Isabel de França e Gaspar Berenguer, falecidos em 1659 e 1691 respectivamente896. Na sacristia, que era relativamente pequena, havia um móvel de nogueira com dois corpos, tendo o inferior a configuração de dois armários e o superior seis pequenas gavetas de cipreste. Como símbolo religioso estava uma cruz ao centro. 36. Cristo crucificado. Trabalho de oficina portuguesa, do século XVII ou XVIII, de 75 por 47 centímetros, em madeira. Tem cerca de cem pedras preciosas em vermelho vivo transparente, rubis, encastoadas no corpo de Cristo, e cravos e resplendor em prata dourada. Reprodução de Carlos Fotógrafo. No coro, situado no primeiro andar, decorria a oração das religiosas. Via-se ao fundo um altar de 180 centímetros, acima do qual ficava um nicho embutido na parede, com uma imagem de roca de Nossa Senhora da Natividade, de 60 centímetros de altura. Dentro estava um outro pequeno nicho de madeira, pintado de azul e com portas de vidro, que encerrava uma imagem de Nossa Senhora da Conceição de 34 centímetros. Havia ainda uma pequena imagem do Menino Jesus sobre uma peanha e quinze pequenas estampas com molduras diferentes a ornamentar o nicho de Nossa Senhora da Natividade. Possivelmente por cima da grade que deixava ver o altar-mor da capela, ficava o retábulo de Nossa Senhora das Mercês de 210 por 144 centímetros. A decorar as paredes, mas sobretudo a acentuar a tonalidade religiosa daquele lugar de oração, havia vários quadros em tela: São José, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora do Carmo, São Miguel e o Senhor da Cana Verde, com molduras douradas897. Incorporando-se harmoniosamente neste conjunto, lá estavam algumas imagens, belas e de diversas invocações. A de maior expressividade mística era a imagem do Senhor da Paciência, de 76 centímetros de altura, valiosa peça do século XVIII, de madeira policromada dourada. Por um manuscrito da Madre Virgínia sabemos que o Senhor da Paciência, que havia sido oferecido à Madre Brites da Paixão por seu pai, o sexto morgado do Caniço, presidia ao coro das religiosas898. Lá se encontravam, também, São Benedito, Santa Ana, Nossa Senhora da Expectação, Nossa Senhora das Mercês, e o Menino Jesus. No coro havia também uma estante de 35 centímetros em madeira de castanho com base torneada, que era ocupada pela religiosa que, no ofício divino, exercia a função de leitora, bem como um rabecão pequeno, ou seja, um violoncelo, para harmonizar a referida oração litúrgica899. Na cerca havia também um lugar de oração que era a capela de São Vicente Ferrer, oferta de uma educanda. Em 1756 encontrava-se no mosteiro D. Vicência Juliana, filha de 896 Noronha, op. cit., p. 285. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 25-26v: Inventário de Setembro de 1895. 898 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscrito da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre Brites da Paixão. 899 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 25-26v: Inventário de Setembro de 1895. 897 204 Francisco Aurélio da Câmara Leme e de sua esposa D. Antónia Maria de Menezes Sá e Acciaiuoli, residentes no Funchal900. Esta jovem tinha grande devoção a São Vicente Ferrer e, por isso, pensou em empenharse na construção de uma capela daquela invocação, na cerca do mosteiro. Seus pais, senhores de considerável fortuna, dispuseram-se a concretizar o desejo da filha, desde que a abadessa e a comunidade dessem o seu consentimento. D. Vicência Juliana dirigiu-se, portanto, à Madre Angela Maria da Glória que, depois de consultado o capítulo conventual, permitiu, e com muita satisfação, que a ermida fosse construída. A 13 de Julho de 1756, o cabido da Sé do Funchal procedeu à apreciação do pedido de autorização, que D. Vicência lhe dirigiu: construção “de uma ermida dedicada a São Vicente Ferrer, na cerca do dito mosteiro, que serviria de oratório em que as religiosas façam os seus exercícios espirituais”901. Para uma mais fácil anuência da autoridade eclesiástica, a carta da educanda esclarecia que já tinha a aprovação da “Reverenda Madre Abadessa e sua comunidade” e que tal obra não representaria despesa para o mosteiro, pois que “toda a que for necessária se há-de fazer à custa do pai e parentes da suplicante”902. Segundo as disposições recebidas do bispado, “a capela podia ter de comprimento vinte e quatro palmos e doze de largo”903, pois, atendendo a que a cerca era pequena, não seria oportuno que ocupasse maior espaço. O inventário de Setembro de 1895 descreve o seu interior. Na parede oposta à entrada ficava um altar de pinho em talha dourada, por cima do qual se via um quadro de São Vicente Ferrer em tela, de 200 centímetros. de comprimento por 110 centímetros de largura. Nela se podia ver um pequeno quadro de São Pedro, pintura sobre cobre e duas pequenas imagens bastante deterioradas e também dois castiçais em madeira904. Esta pequena capela foi, ao longo de quase duzentos anos, lugar de oração das religiosas que, quando o desejavam e o podiam fazer, ali passavam longas horas de intimidade com o Senhor. D. Vicência Juliana, jovem muito piedosa, cuidava da ermida com desvelo e nela passava muito tempo em oração. Entretanto, sentiu nascer-lhe na alma o desejo de ser religiosa professa. Quando em 1760 completou quinze anos, pediu para ser admitida ao noviciado905. 3.3 A parte habitacional Uma sala de particular importância e significado existe num mosteiro: a sala capitular, onde têm lugar os mais importantes actos comunitários: reuniões capitulares, reuniões do discretório ou conselho, votações, recepção de autoridades eclesiásticas e civis e outros mais. No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, a sala capitular ficava no rés-do-chão, ao lado da capela. Ao fundo havia um altar e, acima dele, metido na parede, um nicho de pinho pintado, com um crucifixo de 110 centímetros. Possivelmente por cima deste nicho, ficava a tela da Anunciação que o inventário de Setembro de 1895 localiza na sala capitular. Nas paredes, como que a evidenciar a presença de Cristo, via-se uma cruz de pinho, pintada de preto, de 335 por 150 centímetros. Conjugavam-se com ela, de forma harmónica, algumas pinturas em tela: São Francisco de Assis, Nossa Senhora do Rosário, o Encontro do Senhor, a 900 AHDF, Conv. Mercês, F., L. 25, Recepções, entradas e votos das noviças do Convento de Nossa Senhora das Mercês, 1751-1834, fol. 11v. 901 AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão de 13 de Agosto de 1756. 902 AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão (...). 903 AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão (...). 904 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 31-31v: Inventário de Setembro de 1895. 905 AHDF, Conv. Mercês, F., L. 25, Recepções (...), fol. 11v: Acta da tomada de véu de Vicência Juliana de São Vicente Ferrer, aos cinco dias do mês de Julho de 1760. 205 Santa Face e Nossa Senhora da Piedade. Lá estavam também dois quadros pintados sobre madeira: Cristo, bela pintura seiscentista, e a Descida da Cruz. Não deixaremos de acrescentar que, além do Claustro, também na sala capitular do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, eram sepultadas as religiosas, como acontecia em muitos outros daquele tempo. Alvo da maior consideração, ali ficavam os restos mortais daquelas que partiam e que a comunidade continuava a amar906. Comunicando com a cozinha, por facilidade de serviço, ficava o refeitório. Ali estavam seis mesas de pinho fixas, com 400 centímetros de comprimento por 50 de largura dispostas em U. Além da cruz torneada em castanho, que ocupava posição central, decoravam o refeitório dois quadros de valor: Nossa Senhora da Conceição e o Senhor em Casa de Simão, pinturas a óleo sobre tela, com moldura dourada. Do tecto pendiam seis lamparinas de vidro branco que alumiavam a sala às horas das refeições. Junto à parede estava um púlpito de pinho, onde uma religiosa, no início da refeição, fazia uma leitura de carácter espiritual. Procuravam, desta forma, alimentar o espírito, ao mesmo tempo que fortificavam o corpo907. Ainda no rés-do-chão ficava a portaria. As visitas, depois de passarem pelo adro, entravam na portaria, onde eram atendidas pela porteira-mor. Se fosse necessário subiam ao locutório. A dar ambiente religioso à entrada, estava um pequeno nicho com um crucifixo marchetado de madrepérola e uma pequena imagem de mármore branco, representando Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo. Havia também dois quadros, um de Nossa Senhora, São Joaquim, Menino Jesus e São João Baptista em tela, e o outro de Nossa Senhora da Piedade, pintura em madeira. A dar graciosidade à portaria estava uma pequena mesa de pinho, um banco de mogno polido e um jarrão de cobre, onde as plantas e flores seriam periodicamente renovadas908. No primeiro andar dois lugares nos merecem uma particular referência: a sala do noviciado e de visitas. A sala de noviciado, onde a mestra se ocupava da formação das noviças, era pequena e simples. A decorá-la havia uma tela de Nossa Senhora e um nicho com portas de vidro, tendo dentro duas pequenas imagens: Nossa Senhora e Santa Ana. Lá se encontravam alguns bancos e uma estante de madeira do Brasil, que seria, sem dúvida, a biblioteca das noviças, e um descanso para colocar o rabecão que para ali era levado, para que as noviças pudessem fazer a aprendizagem da melodia do ofício divino909. Na parte exterior da sala de visitas, havia uma mesa, um banco de pinho e seis cadeiras. Do lado da clausura, quatro bancos e uma cadeira de nogueira, torneada de espaldar e braços, com assento de palhinha. De um e de outro lado, dispostas com gosto e harmonia, encontravam-se pinturas de temática religiosa: Nossa Senhora da Conceição, Santa Teresa e São Francisco Xavier, Santo António, Nossa Senhora com o Menino Jesus, de Nossa Senhora da Assunção e dois quadros de Pio IX e Leão XIII. Com funções simbólico-decorativas, havia duas telas de 120 por 95 centímetros, representando uma delas uma parra com cachos de uvas e a outra um molho de espigas de trigo910. O segundo andar era ocupado pela enfermaria e sala de convívio, a que presidia um nicho onde se encontrava Santa Ana, duas imagens de Nossas Senhora do Monte, São 906 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscrito da Madre Virgínia sobre a Madre Brites da Paixão. O Padre Fernando Augusto da Silva diz que os restos mortais da Madre Brites da Paixão foram sepultados no claustro (Diocese do Funchal. Sinopse Cronológica, Funchal, 1945, p. 84) 907 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 15 - 15v: Inventário de Setembro de 1895. 908 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 9-9v: Inventário de Setembro de 1895. 909 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 22-23: Inventário de Setembro de 1895. 910 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fol. 8v e 24: Inventário de Setembro de 1895. 206 Jerónimo e uma pintura a óleo de São Pedro. Como mobiliário, havia dois armários de madeira do Brasil e duas mesas, uma das quais também de pau-brasa911. 911 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 30v-31: Inventário de Setembro de 1895. 207 CAPÍTULO III A COMUNIDADE CONVENTUAL As religiosas do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, observando a Primeira Regra de Santa Clara e as Constituições ou Estatutos de Santa Coleta, segundo os costumes do Mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, não podiam ter rendas nem propriedades912, pois deviam observar pobreza individual e colectiva913. Viveriam, portanto, do seu trabalho, das ofertas dos fiéis e de alguns rendimentos que lhes vinham de dotações e doações feitas à Sacristia do mosteiro e ainda dos legados deixados por pessoas amigas. Quando estes recursos não fossem suficientes, deviam os padroeiros, conforme o estipulado pelo fundador, facultar às religiosas, na sua totalidade ou em parte, as rendas vinculadas ao padroado. Aliás, o Concílio de Trento havia aberto a possibilidade de qualquer mosteiro poder viver “de rendas” ou “de esmolas”914. O Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês mergulhou as suas raízes nesta última hipótese, pois que a Regra de Santa Clara, cujo espírito queriam viver, era clara: “não possuam nem recebem qualquer domínio ou propriedade ou qualquer coisa que possa ser considerada como tal”, salvo “a porção de terra que honestamente se ache necessária para o recolhimento do mosteiro a qual será cultivada como horta para satisfazer às necessidades da comunidade”915. Instituído para vinte e uma religiosas professas916, bem cedo foi autorizado a ter vinte e quatro. “Dizem as actuais freiras, por tradição das antigas, porque não aparece o título”, escreveu o bispo do Funchal, em 10 de Agosto de 1788, “que obtiveram Breve para ter vinte e quatro”917, podendo em certos casos, haver extranumerárias918. A comunidade era constituída por religiosas professas, noviças e candidatas. Algumas pupilas aguardavam no mosteiro a idade de poder entrar no noviciado. Excepcionalmente houve algumas educandas919. Não havia criadas nem criados, salvo um servente de fora que o próprio alvará régio previa920. O mosteiro era de jurisdição episcopal, pelo que era o bispo do Funchal, ou o seu legítimo representante e substituto, a autoridade eclesiástica à qual as religiosas estavam subordinadas. A teor da Regra e das Constituições ou Estatutos, e conforme o alvará régio, a comunidade tinha assegurada a assistência espiritual por um confessor e um capelão, assistido por um sacristão. Para coordenação e gerência e assuntos de natureza material, havia um feitor921 e um procurador ou síndico, por vezes vários, formando um corpo administrativo. 912 ARM, Conventos, Conv. Mercês F , L 268, fol.5 : Petição do capitão Gaspar Berenguer de Andrade de 5 de Julho de 1664 e fol.5 v: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F , caixa 2076, doc. avulso 913 RCL,VI, 12 e 13, in FF II, p. 54. 914 AHU, Madeira, doc. 623, doc. avulso: Cópia do capítulo X da patente que mandou Frei José da Conceição do Convento de Alferrara da Província de Santa Maria da Arrábida, de 30 de Junho de 1720. 915 RCL,VI, 14-15, in FF II, p. 54. 916 ARM, Conventos, Conv. Mercês F , L 268, fol. 5v-6: Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663; AHDF, Conv. Mercês, F , caixa 26, capilha 1, doc. avulso : Alvará régio de 20 de Dezembro de 1663; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F. , caixa 2076, doc. avulso 917 AHU, Madeira, doc.842 : Carta de D. José da Costa Torres, de 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro e doc 789: Petição de Antónia Clara do Sacramento, abadessa, e do seu conselho, sem data. 918 AHU, Madeira, doc. 261: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, acerca da ordem régia que proibia a admissão de noviças nos mosteiros de religiosas, de 16 de Agosto de 1764, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Nessa data, o Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês tinha vinte e uma religiosas do número e sete extranumerárias. 919 AHU, Madeira, doc. 842: Relatório do bispo do Funchal, 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro; AHDF, Conv. Mercês, F , caixa 26, capilha 2, doc. avulso. 920 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 268, fol. 7v: Instrumento de fundação de 1 de Julho de 1660. 208 1. As candidatas ao noviciado 1.1. Exigências, naturalidade e ascendência social Segundo o costume da época, algumas candidatas à vida religiosa eram admitidas nos mosteiros ainda meninas, ficando a aguardar na clausura a idade canónica, ou seja os quinze anos, para poderem ingressar no noviciado. Estas pupilas, enquanto esperavam, iam-se inserindo na vida conventual. As religiosas aproveitavam esse período para prepará-las cultural e tecnicamente para a vida a que desejavam consagrar-se, e, simultaneamente, para as iniciar na vida de oração. Eram meninas que desde muito novas haviam sentido um grande encanto pela vida de consagração religiosa e que, portanto, deviam ser acompanhadas com especial atenção. Normalmente as candidatas que começavam o noviciado com quinze anos haviam entrado no mosteiro antes da idade canónica. Outras entravam já jovens feitas e mesmo senhoras maduras. Quadro nº.28 - Candidatas recebidas sem idade canónica Nome D. Eusébia Atouguia Bettencourt de Freitas D. Ana Vitória de Castelo Branco D. Maria Rita do Sacramento D. Jacinta Rosa Correia Henriques de Vasconcelos D. Delfina Ifigénia de Ornelas Linhares Cabral Matilde Martins de Barros Maria Madalena das Mercês Maria Margarida do Coração de Jesus Maria José da Santíssima Trindade Idade 12 14 13 13 Ano 1752 1755 1899 1803 1816 1886 1887 1891 1891 Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F. , caixa 2076, doc. IV/B/49/24; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, docs avulsos. Um princípio fundamental regia a admissão das candidatas ao noviciado: que se sentissem chamadas “por inspiração divina”922. Na Madeira acontecia que as jovens, quando se sentiam possuídas por um profundo desejo de servir a Deus e à humanidade, de viver em oração, procuravam o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês que, como dizia a candidata D. Perpétua Jacinta Cabral Machado, “lhes aparecia resplandecente em virtude e santidade”923. Se alguma candidata entrasse sem vocação, as abadessas não descansavam enquanto não regressassem à família. Conta Henrique Henriques de Noronha que logo nos primeiros anos, sendo abadessa a Madre Inês de Jesus, sucedeu que entraram sem vocação “certas moças a quem seus parentes quiseram dar aquele estado”924. A Madre, que sentia a agudeza do problema, mesmo incorrendo no desagrado do prelado que facilitara a entrada das jovens, procurou convencê-las a sair do mosteiro, “até que o deixaram por sua vontade”925. O bispo, diz o referido historiador, acabou por pedir desculpa à abadessa926. A entrada de qualquer candidata carecia de autorização episcopal e da comunidade927 e, em épocas de controlo político, do beneplácito régio. Para a entrada no noviciado exigia-se a idade mínima de quinze anos. 921 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 8v: Instrumento de fundação de 1 de Julho de 1660. RCL, II, 1, in FF II, p. 45. 923 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc avulso: Petição de D. Perpétua Jacinta Cabral Machado, deferida no Palácio de Queluz a 26 de Setembro de 1794. 924 Noronha, op. cit., p. 287. 925 Noronha, op. cit., p. 287. 926 Noronha, op. cit., p. 287. 927 RCL, II, 1, in FF II, p. 45; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, docs. avulsos. 922 209 Embora algumas meninas entrassem antes da idade legal, as religiosas preferiam jovens com certa experiência e maturidade. Evitavam, no entanto, a recepção de pessoas de idade avançada. Pudemos apurar a idade de cinquenta e quatro noviças. Como vemos a maioria das candidatas entrou na idade juvenil, entre os dezasseis e vinte e dois anos. As vocações mais tardias correspondiam, geralmente, às candidatas que, em períodos de proibição régia, tiveram de aguardar ou porque o apelo do Senhor só tardiamente se fez sentir. Quadro nº.29 - Admissões ao noviciado: idades Idade candidatas Idade candidatas 15 16 17 18 19 20 21 22 12 4 8 3 4 3 2 2 23 24 25 26 27 28 29 30 1 1 2 5 1 1 1 4 Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...), fols. 2 - 72v; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, docs. avulso. Por vezes eram os próprios pais que, reconhecendo a vocação de suas filhas, faziam as diligências necessárias para o seu ingresso. Em 1829, o alferes Joaquim de Freitas, da freguesia de São Martinho, em carta para o bispo do Funchal, dizia que sua filha Ana das Mercês desejava com veemência entrar para o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês e que, portanto, ele, como pai, queria fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para ajudá-la a “procurar um estado tão santo”928. Diante de autenticidade de vocação, os próprios bispos, quando os pais tinham dificuldades económicas, assumiam o pagamento do dote necessário. Por exemplo, a filha de Bonifácio Bernardo Vieira gozou desse benefício: no dia 2 de Outubro de 1831 “em memória do Santíssimo Rosário da Bem-aventurada Virgem Maria, cuja festividade celebra hoje a Santa Igreja, manda Sua Excelência Reverendíssima remeter a V. S. a quantia de quatrocentos mil reis, para efeito de poder admitir no noviciado a filha” 929, lê-se em documento dirigido ao pai da candidata. O escrivão, ao mesmo tempo que informava: “e findo o tempo de noviciado se prepararam os outros quatrocentos mil reis, para o dote da mesma menina”, solicitava o seu auxílio espiritual em favor do prelado, lembrando-lhe que devia “orar a Deus pela conservação da preciosa vida de Sua Excelência Reverendíssima, seu benfeitor”930. A maior parte das candidatas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês eram oriundas do Funchal e de Câmara de Lobos. Algumas, embora poucas, provinham de outras zonas: Machico, Porto da Cruz, Calheta, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Porto Moniz, São Vicente e até de Lisboa e Coimbra. Conseguimos apurar a naturalidade de cinquenta e quatro noviças, entradas depois de 1751. Em 1861, das dezassete religiosas que constituíam a comunidade, onze eram do Funchal (freguesias de São Pedro, Santa Maria Maior e Santa Luzia), quatro de Câmara de Lobos e duas de São Martinho.931 928 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Petição de Joaquina de Freitas ao prelado, em favor de sua filha Ana das Mercês. 929 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do paço episcopal para a abadessa do mosteiro, de 2 de Outubro de 1831. 930 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do paço episcopal (...) de 2 de Outubro de 1831. 931 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, docs. avulsos. 210 Quadro nº.30 - Procedência das noviças Localidade Funchal Câmara de Lobos Calheta São Vicente Machico Porto da Cruz Número 28 8 4 1 2 2 Localidade Ribeira Brava São Martinho Ponta do Sol Porto Moniz Lisboa Coimbra Número 1 1 3 1 3 1 Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...), fols. 272v. e caixa 26, docs. avulsos; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, docs. avulsos. Sendo o mosteiro das Mercês modesto, e a vida da comunidade exigente e austera, poderíamos pensar que não teria sido procurado por jovens madeirenses ricas ou de ascendência nobre. Não aconteceu assim, contudo. Vemo-lo pretendido, ao longo de quase duzentos e cinquenta anos, por filhas das melhores famílias da Ilha. Nele entraram, e nele levaram vida fervorosa algumas filhas dos França, Bettencourt, Câmaras, Atouguias, Ornelas e Vasconcelos, Esmeraldo, Meneses Sá e Acciaiuoli, Castelo Branco e de outras famílias distintas. Quadro nº.31 - Candidatas de ascendência nobre Nome Inês de Jesus Berenguer D. Brites da Paixão D. Maria e D. Isabel de França Berenguer de Andrade e Castelo Branco D. Mariana, D. Maria e D. Antónia de Andrada e Castelo Branco D. Ana Inácia Berenguer de Castelo Branco D. Eusébia Maria Bettencourt de Freitas Atouguia D. Vicência Juliana de Câmara Leme Meneses Sá e Acciaiuoli D. Maria Paula Bettencourt da Câmara Esmeraldo D. Ana Bárbara de Freitas Drummond e Aragão de Brito Esmeraldo D. Maria Luísa de Ornelas Bettencourt Filiação Morgado Heitor Nunes Berenguer e D. Maria Lira Varela Aires Ornelas e Vasconcelos, sexto morgado do Caniço Capitão José de França Berenguer de Andrade e D. Maria de Castelo Branco Provedor da fazenda real na Ilha da Madeira António Vieira de Andrada e D. Violante Jacinta de C. Branco Morgado Agostinho César Berenguer de Andrade e D. Helena Josefa Mariana Bettencourt Capitão Nicolau Gerardo de Bettencourt de Freitas e D. Isabel Juliana de Atouguia Francisco Aurélio da Câmara Leme e D. Antónia Maria de Meneses Sá e Acciaiuoli António José de Atouguia e D. Francisca Antónia Bettencourt da Câmara Esmeraldo Capitão José Joaquim de Freitas Drummond e Aragão e D. Mariana Luísa de Brito Esmeraldo Morgado Pedro José de Ornelas e D. Ana Francisca Bettencourt Idade Ano - 1656 ? - 1673 ? - 1685 ? - 17...? 16 1751 15 1752 13 1760 - - 16 1795 20 1798 Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, docs. avulsos; AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...), fols. 2-72 v.; Fernando Menezes Vaz, Famílias da Madeira e Porto Santo, I, Funchal, 1964, pp. .94 e 200-202. E a lista podia ser maior. Ao lado das candidatas saídas da alta sociedade, outras havia procedentes de famílias modestas. Acontecia, contudo, que, nobres ou pobres, tornadas Irmãs, viviam em fraterna igualdade. Serem filhas de Deus e por ele chamadas àquela vida santa era a maior distinção e o seu maior título. Jamais se fez, naquela casa religiosa, ostentação de brasões, porque todas se sentiam iguais e irmãs em Jesus Cristo. 1.2. Admissão ao noviciado e recepção do hábito Atingidos os quinze anos, se a comunidade estava convicta de que a candidata tinha verdadeira vocação, a abadessa, obtida licença do prelado, punha a jovem a votos. O capítulo conventual, em votação secreta, decidia em consciência. Era acto de suma responsabilidade 211 pois o resultado era deliberativo. Se a candidata tinha a seu favor a maioria dos votos, estava admitida; caso contrário devia regressar à família932. A jovem, que então ingressava canonicamente na Ordem, recebia o hábito religioso, túnica parda, cordão e véu branco, junto à grade do comungatório, na presença da comunidade, sendo então lavrada uma acta em livro próprio, guardado no arquivo do mosteiro. Cada candidata pagava à sacristia do mosteiro um dote no valor de 400 mil réis933, que foi aumentando, chegando no final do século XVIII ou princípios do XIX a 800 mil reis934. O noviciado, que então começava, durava um ano. A noviça devia empenhar-se na prática de todas as virtudes, na vivência dos mistérios cristãos, certificar-se bem do apelo de Deus à vida de consagração, isto é, da autenticidade da sua vocação. O noviciado era igualmente o período em que a noviça devia inserir-se com perfeição na recitação do ofício divino e em toda a vida espiritual da comunidade, bem como nos trabalhos do mosteiro: tarefas domésticas e trabalhos manuais. Para as noviças havia sempre uma mestra, uma religiosa exemplar, que, sendo “prudente (...) as instrua diligentemente na vida comum e nos bons costumes”935. Importava dar-lhes uma formação doutrinal profunda e prepará-las para as responsabilidades que iriam assumir. 1.3. Profissão religiosa A profissão religiosa era um acto de suma responsabilidade. Exigia a presença de chamamento divino, de dons humanos e espirituais específicos, que permitissem a inserção feliz na vida comunitária. O capítulo conventual era inflexível no critério de admissão. D. José da Costa Torres, em carta para Sua Majestade, testemunhava em 1788 esta criteriosa selecção: “do actual estado de observância deste mosteiro, e da fraternidade e santa paz que nele reina, bem se pode inferir que os Prelados e a comunidade cuidaram sempre em admitir ao noviciado e principalmente à Profissão, só aquelas pessoas que mostravam verdadeira vocação”936. Se havia dúvidas sobre a vocação, as jovens regressavam à família. Por exemplo, em 1819, a comunidade não vendo na noviça Úrsula Rita os requisitos necessários, optou pela não admissão. Informado o prelado e a mãe, a senhora Caetano Rita Rodrigues, a jovem regressou à casa paterna937. Um mês antes do fim do noviciado de cada candidata, o prelado da diocese disso devia ser informado. Se a noviça fosse recebida à profissão pela comunidade, o mesmo prelado devia proceder ao exame canónico, por si próprio ou por um seu delegado, certificando-se da autenticidade de vocação e da liberdade de opção938. A candidata entregava-se de todo o coração à família religiosa onde juridicamente se integrava, consagrando-se ao serviço de Deus, da Igreja e da humanidade em geral. Renunciava a todos os seus bens “e toda nua e desbulhada das coisas terrenas se oferecia nas 932 Cf. RCL, II 1 , FF II, 1, p. 45; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, Constituições, (...), fols. 27-28. AHDF, Conv. Mercês, F., Caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Informação da abadessa do Mosteiro para o prelado de 18 de Agosto de 1829 e carta da Madre Clara Maria de São José, abadessa, para o bispo da diocese, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, de 30 de Agosto de 1829. 934 AHDF, Conv. Mercês, F., Caixa 26, capilha 1, docs. avulso: Carta do paço episcopal de 2 de Outubro de 1803 para a abadessa do Mosteiro e informações da Abadessa de 29 de Março de 1814 e de 18 de Agosto de 1829, sobre a admissão de noviças 935 RCL, II, 21 e 22, FF II, p. 47; AHDF, Conv. Mercês F., L 268, fols. 27-28: Constituições (...). 936 AHU, Madeira, 842: Relatório de D. José da Costa Torres para Martinho de Mello e Castro, de 10 de Agosto de 1788. 937 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso 938 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, doc. avulso 933 212 mãos do crucificado”.939 Comprometia-se livremente a seguir as pisadas de Cristo, segundo a espiritualidade franciscana: “Eu... de minha própria vontade, prometo a Deus e à bemaventurada Virgem Maria, ao bem-aventurado São Francisco e a Santa Clara e a todos os Santos e a vós, Madre, guardar todo o tempo da minha vida esta forma de vida das Irmãs Pobres de Santa Clara, dada pelo mesmo bem-aventurado São Francisco à dita Santa Clara e confirmada pelo Senhor Papa Inocêncio IV, vivendo em obediência, sem próprio em castidade e guardando a clausura”940. A profissão tinha lugar no coro em presença da comunidade, do prelado ou de um seu representante e delegado, de duas testemunhas, dos familiares e pessoas amigas. A capela tomava ar de festa e o júbilo tornava-se geral. Para aquele dia, de profundo significado, davase à capela a mais primorosa decoração. Os cânticos, cuidadosamente seleccionados para a circunstância ocorrente, davam àquela cerimónia religiosa solenidade e expressividade mística O dia comunitário revestia-se de alegria e felicidade, e de muito carinho e ternura para com a professanda. Deste compromisso fazia-se uma acta. Exemplificamos: “Aos onze dias de Outubro de mil setecentos e setenta e oito, neste mosteiro de N. Senhora das Mercês da Ordem de Santa Clara, da Primeira Regra, sendo abadessa a Madre (...), estando congregada a comunidade no coro, apareceu a Irmã (...) e posta de joelhos diante da R. M. Abadessa, lhe pediu que por ter cumprido o ano de noviciado e desejar muito ser admitida à Profissão Religiosa, lhe fizesse a caridade de a admitir a fazer a sua Profissão”941. Finda a cerimónia, a acta era assinada pela abadessa, vigária, mestra de noviças, duas conselheiras, a professanda e finalmente pela escrivã. No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês houve casos de profissões feitas in articulo mortis. A noviça Luísa de Jesus Maria, tendo adoecido gravemente durante o noviciado, pôde, com autorização da abadessa, a Madre Ana Ifigénia, da comunidade e do prelado, D. Manuel Martins Manso, emitir os votos a 27 de Agosto de 1857. Veio a falecer alguns dias depois, a 6 de Setembro seguinte942. 1.4. As educandas Por vezes, ao lado das pupilas encontravam-se, em certas épocas, algumas meninas que entravam, não por razões vocacionais, mas simplesmente como educandas. Esmeravam-se as religiosas em prepará-las para a vida dando-lhes uma formação feminina, humana e espiritual primorosas. Cuidavam a sua educação e cultivavam nelas sentimentos delicados e as boas maneiras. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, contudo, não recebeu muitas educandas. Podemos mencionar entre outras: D. Isabel Berenguer Castelo Branco, filha do padroeiro, José de França Berenguer e de sua mulher D. Maria Castelo Branco943, que, em 1678, entrou no mosteiro com oito anos944; D. Vicência Juliana, filha de Francisco Aurélio da Câmara Leme e a sua esposa D. Maria Menezes e Acciaiuoli, família muito conceituada e rica, que, com nove anos apenas, em 1754 já se encontrava na clausura945; D. Perpétua, e uma sua irmã, netas do fidalgo da casa del Rei, Vasco Martins 939 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 27v: Constituições (...). ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 28v: Constituições (...). 941 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Profissões das noviças do Convento de N. S. das Mercês, 1752, fol.6: Acta da profissão da Irmã Maria Paula do Rosário. 942 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 3 v. 943 Noronha, op. cit., p. 293, Fernando de Menezes Vaz, op.cit., p. 201. 944 Noronha, op. cit., p. 293. 945 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 25, Recepções, entradas, e votos das noviças do Convento de N. S. das Mercês, 1751 - 1834, fols.11v. e L 271, Profissões das noviças do Convento de N. S. das Mercês, fol. 40: Acta da profissão da Irmã Vicência Juliana, 4v. 940 213 Moniz, que entraram “por Decreto especial del Rei D. Pedro II”946. D. Perpétua que não aceitou com gosto, mas “com grande repugnância da sua vontade”947, bem depressa se sentiu muito feliz; D. Maria de São José, filha do Dr. José Ferreira Pazes e natural de Coimbra, que entrou em 1706, com doze anos948, mas não chegou a iniciar o noviciado por ter falecido a 8 de Janeiro de 1709949; no início do séc. XIX entrou D. Josefa Genoveva Pestana. Todas estas educandas, com excepção da irmã de D. Perpétua, em contacto com as religiosas, bem depressa sentiram encanto pela vida conventual e, por sua livre vontade, completados os quinze anos pediram para serem admitidas ao noviciado. D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, quando em 1788, remeteu a Sua Majestade um relatório sobre os mosteiros da sua diocese, referindo o bom ambiente da comunidade das Mercês, dizia com satisfação: “educandas houve algumas que professaram”950. Por uma provisão episcopal que, a 10 de Janeiro de 1804, foi enviada à Madre Antónia Clara do Sacramento, abadessa do mosteiro, a respeito de D. Josefa Genoveva Pestana, filha do capitão Manuel Ferreira Pestana Homem, sabemos que, em 1804, estavam no convento algumas educandas: “Hey por bem participar a V. Reverência que a dita D. Josefa Genoveva Pestana deve ser conservada nesse convento como educanda, observando-se para com ela (...) o mesmo que se pratica com as outras que nesse convento ocupam o mesmo lugar de educandas”951. . 946 Noronha, op. cit., p. 297. Noronha, op. cit., p. 297. 948 Noronha, op. cit., pp. 298-299. 949 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos das religiosas do Convento de N. S. das Mercês, 1667. Noronha localiza o seu óbito a 24 de Janeiro. 950 AHU, Madeira, doc. 842. 951 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Provisão episcopal de 10 de Janeiro de 1804 para a abadessa do mosteiro. O bispo havia recebido um aviso régio, resposta à petição que o capitão Manuel Ferreira Pestana Homem, enviara a Sua Majestade, em que pedia a conservação da sua filha no mosteiro das Mercês como educanda. 947 214 2. Governo da comunidade 2.1. Órgãos de governo A comunidade das Mercês, como acontecia em qualquer mosteiro da Ordem de Santa Clara de Assis, era governada por uma abadessa, que deveria ser “serva e mãe”e eleita pela comunidade sem qualquer interferência de pessoas estranhas à mesma952. A abadessa era auxiliada pela vigária, colaboradora constante e conselheira em todos os assuntos que diziam respeito ao bem espiritual e material da comunidade. Na ausência ou impedimento da abadessa, a vigária presidia aos actos comunitários. Vagando o cargo de abadessa durante o triénio, por morte ou renúncia aceite, era ela que assumia o governo da comunidade até ao capítulo electivo que podia, com o consentimento do prelado, ser antecipado. Além da vigária havia o discretório, corpo das conselheiras ou discretas, escolhidas por eleição, entre as religiosas mais idóneas, em número variável, conforme o total da comunidade. A abadessa devia pedir-lhes conselho sempre que a gravidade dos assuntos o 952 RCL, IV, 2-6, in FF II, p.49; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 33v-35: Constituições (...). 215 exigisse953. As conselheiras deviam ser mulheres de fé, de oração, amigas da paz e cheias de caridade fraterna954. Com funções consultivas ou deliberativas, conforme os casos, funcionava o capítulo conventual, constituído por todas as religiosas professas. O capítulo conventual actuava como órgão de corresponsabilidade fraterna, representando uma verdadeira valorização da família conventual. A abadessa devia convocá-lo pelo menos uma vez por semana, sendo então feita uma revisão de vida com “discernimento e humildade”. Os assuntos respeitantes à vitalidade e bem espiritual da comunidade deviam ser tratados em capítulo955. Em certos casos, como por exemplo na admissão das candidatas ao noviciado e à profissão, contracção de dívidas e outros mais, a abadessa carecia do consentimento do capítulo conventual, que era dado em escrutínio secreto. Em casos de menor importância, funcionava simplesmente como órgão consultivo, podendo a abadessa aceitar ou não a opinião expressa pelas capitulares. Em qualquer circunstância esta assembleia aparecia como a expressão de corresponsabilidade fraterna, assumindo ao lado da abadessa o evoluir da comunidade956. 2.2. Eleições Numa linha de corresponsabilidade fraterna, tão própria da família franciscana, o cargo de abadessa e os demais eram conferidos por eleição. “Para se conservar a unidade do amor mútuo e da paz, a eleição das responsáveis para os cargos comunitários, seja feita com o comum acordo de todas as Irmãs”957. Todas as professas gozavam de voz activa e passiva e deviam assumir criteriosamente esta responsabilidade. Deviam, em consciência, eleger uma Irmã capaz “de se impor às outras, mais pela virtude e uma vida santa, do que pela autoridade do cargo”958. Cada abadessa, antes de cessar o seu triénio, informava o bispo da diocese da obrigatoriedade da eleição de uma outra. À assembleia eleitoral presidia sempre o prelado ou, se estivesse ausente ou impedido, um seu delegado, com designação expressa para aquele acto eleitoral. Segundo as Constituições ou Estatutos, a abadessa devia ter pelo menos “trinta anos de idade, e cinco de profissão, ser exemplar e prudente (...), discreta, temente a Deus (...) e madura”959, recta e boa, de forma que, como diz Santa Clara, “as Irmãs, motivadas pelo seu exemplo, lhe obedeçam por amor”960. Reunido o capítulo conventual e feitas as orações previstas pelos Estatutos e pelo direito canónico, procedia-se à votação, finda a qual o secretário da eleição proclamava eleita a religiosa que tivesse obtido a maioria absoluta ou, pelo menos, a maioria relativa: “Eu (...), secretário desta eleição, em nome de todas as religiosas que em esta eleição comigo consentiram, declaro e nomeio eleita em abadessa a R. M. da Ordem (...)”961. Para validade canónica, a eleição devia ser confirmada pelo presidente. Em casos especiais, como os que se verificaram nos últimos anos do século XIX, em que dentro do contexto político reinante a eleição se tornava difícil, ou quando a comunidade não chegava a um consenso, o bispo podia fazer a nomeação ou recondução da abadessa. Na vida do mosteiro houve de facto, quatro casos de nomeação: o primeiro em 28 de Julho de 953 RCL, IV, 22 e 23, in FF II, p. 51. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 33v-34: Constituições (...). 955 RCL, IV, 15-17, in FF II, p. 50; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 35v: Constituições (...). 956 RCL, IV, 15-23, in FF II, p. 49-51; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 35-35v: Constituições (...). 957 RCL, IV, 22, in FF II, p. 51. 958 RCL, IV, 10, in FF II, p..50. 959 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 34: Constituições (...). 960 RCL, IV, 9, in FF II, p. 50. 961 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições das Abadessas do Convento de N. S. das Mercês, 1756 : Actas de eleições. 954 216 1758, em que D. Gaspar da Costa Brandão, não tendo a comunidade chegado a acordo, teve de recorrer à nomeação da Madre Francisca Teresa da Cruz para o triénio de 1758-1761962; o segundo verificou-se em 1823, quando D. José Francisco Rodrigues de Andrade, depois de três escrutínios infrutíferos, fez a nomeação da Madre Maria Paula do Rosário para o triénio de 1823-1826963; em 1888 não sendo possível a eleição, D. Manuel Agostinho Barreto, reconduziu a Madre Maria Querubina do Céu a um novo triénio, 1888-1891964; igualmente em 1894 “não podendo proceder-se à eleição canónica”, o prelado optou pela nomeação da Madre Emília Maria da Assunção para o triénio de1894-1897965. Depois da eleição da abadessa, em reunião capítular, normalmente sobre a presidência do confessor do mosteiro, procedia-se à eleição da vigária, das discretas e da escrivã, de forma individualizada. Estas eleições careciam da aprovação do prelado. Um dos primeiros actos do novo governo era proceder à eleição das religiosas que deviam desempenhar os diversos ofícios: sacristãs, mestra de noviças, porteiras, provisora, refeitoreira, enfermeira e outros mais. Feitas as eleições, a pauta dos ofícios era enviada ao bispo da diocese para aprovação. Alguns dias depois era devolvida com a confirmação e a indicação do dia e hora em que a autoridade eclesiástica, por ele designada, estaria no mosteiro para dar conhecimento à comunidade da atribuição dos vários ofícios: “aprovamos esta nomeação, a qual será publicada à respectiva comunidade, com as formalidades do estilo, no dia 17 do corrente pelas nove horas da manhã”966. 2.3. Mobilidade dos cargos e ofícios, expressão de corresponsabilida fraterna Nas Mercês, na distribuição dos ofícios não se atendia ao ascendente social das religiosas mas tão somente à sua competência, à presença dos dons necessários. O discretório procurava eleger as Irmãs mais aptas espiritual e culturalmente para que pudessem desempenhar-se das suas funções com competência, como atestam os manuscritos. Os cargos de governo – abadessa, vigárias e discretas ou conselheiras – eram trienais, o que também acontecia com a escrivã. Nenhuma abadessa podia governar mais de três anos seguidos. Conhecemos somente duas excepções: no início da clausura, a Madre D. Branca de Jesus, religiosa professa do mosteiro de Santa Clara que, tendo passado para as Mercês para iniciar a fundação com o grupo de senhoras que já se encontrava no recolhimento, governou dois triénios consecutivos, 1667-1670 e 1670-1673, porque, como é óbvio, numa comunidade nascente não podia haver religiosas que satisfizessem às exigências canónicas e constitucionais para assumir cargos de governo. A outra verificou-se no final do século XIX, Quadro nº.32 - Cargos trienais Triénios 1752-55 1755-58 1758-61 1761-64 1764-67 1767-70 1770-73 1773-76 1776-78967 Abadessa Mariana do Sacramento Ângela Maria da Glória Francisca Teresa da Cruz Maria Madalena de Jesus Antónia Maria da Cruz Francisca Teresa de Jesus Antónia Clara do Sacramento Antónia Maria da Cruz Teresa Rosa de Jesus Vigária Ângela Maria da Glória Ângela de Fulgino Isabel Maria de Jesus Antónia Clara do Sacramento Teresa Rosa de Jesus Quitéria Rosa de Santa Maria Francisca Coleta de Jesus Escrivã Teresa Rosa de Jesus Francisca Teresa de Jesus Teresa Rosa de Jesus Mariana Quitéria do A.Divino Ana Ifigénia da Trindade Mariana Francisca de S. António Ana Maria de Santo. António Ana Ifigénia da Trindade Mariana Francisca de S. António 962 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fols. 6-7. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fols..28v -- 29v. 964 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fol. 93. 965 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 169, Eleições (...), fol. 97. 966 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2 e 3, doc. avulso: Pauta das oficiais do convento de Nossa Senhora das Mercês que hão-de servir este ano de 1845 até 1846. Normalmente o prelado fazia-se representar nesta missão pelo escrivão da Câmara Eclesiástica. 967 A Madre Teresa Rosa de Jesus faleceu em 27 de Agosto de 1777, se bem que, por lapso, no Livro de Óbitos a sua morte está referida em 1778 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol.2. Tanto é assim que as contas do primeiro ano do seu triénio já não vêm assinadas pela Madre, por ter falecido. Foi substituída pela vigária, Francisca Coleta de Jesus, até 31 de Agosto de 1778, altura em que foi 963 217 1778-81 1781-84 1784-88968 1788-91 1791-94 1794-97 1797-1800 1800-03 1803-05969 1805-08 1808-11 1811-14 1814-17 1817-20 1820-23 1823-26 1826-29 1829-32 1832-35 Antónia Clara do Sacramento Antónia Maria da Cruz Antónia Clara do Sacramento Quitéria do Amor Divino Antónia Maria da Cruz Antónia Clara do Sacramento Ana Margarida de São Joaquim Mariana Francisca de S. António Antónia Clara do Sacramento Maria Paula do Rosário Clara Maria de São José Maria Paula do Rosário Clara Maria de São José Maria Paula do Rosário Clara Maria de São José Maria Paula do Rosário Ana Maria do Coração de Jesus Clara Maria de São José Ana Maria da Conceição Quitéria Rosa de Santa Maria Maria Paula do Rosário Ana Margarida de São Joaquim Maria Caetano das Mercês Ana Vitória de Jesus Maria Maria Paula do Rosário Maria Joaquina do Menino Jesus Maria Joaquina do Menino Jesus Ana Rosa do Coração de Jesus Maria Joaquina do Menino Jesus Francisca Eulália do Livramento Perpétua Jacinta dos Serafins Ana Maria de São Lúcio Vicência Juliana de S. Vicente F. Mariana Francisca de S. António Ana Margarida de São Joaquim Clara Maria de São José Clara Maria de São José Maria Paula do Rosário Clara Maria de São José Ana Joaquina de São José Ana Joaquina de São José Ana Maria do Coração de Jesus Ana Joaquina de São José Ana Maria do Coração de Jesus Francisca Paula de Jesus Jacinta Rosa do Socorro Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Profissões ...); 272, Recebimento e despesa das esmolas certas e incertas do Convento das Reverendas Madres Capuchas, 1725; L 273, Receita e despesa das esmolas certas e incertas do Convento de N. S. das Mercês,1737; L 274, Receita e despesa (...), 1764; L 270, Óbitos (...); L 269, Eleições (...); AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções(...). com a morte da última religiosa professa à data do decreto de 28 de Maio de 1834. A situação era grave e delicada. Era necessário agir com extrema prudência. D. Manuel Agostinho Barreto, bispo do Funchal, achou ser conveniente que a Madre Maria Querubina do Céu permanecesse à frente do mosteiro por três triénios consecutivos (1894 a 1903). Quadro nº.33 - Ofícios trienais Ano Porteiras 1818 1819 1820 970 1823-24 1837-38 1839-40 1840-41 1842-42 1843-44 1845-46 Sacristãs Enfermeira Ana Luísa de São Pedro Maria Eduarda Maria de São José Andreza Madalena de Santa Ana Ana Teresa Lomelino Luísa Raimunda Clara Maria de São José Ana da Piedade Angélica Justina dos Serafins Ana da Piedade Hipólita Gualberta Antónia Joana Margarida Gertrudes Francisca Paula Marta de Jesus Cristo Joaquina de Santa Rita Andreza Madalena de Santa Ana Jacinta Rosa do Socorro Ana Maria do Coração de Jesus Francisca Paula de Jesus Andreza Madalena de Santa Ana Antónia Angélica de Viterbo Ana Bárbara da Piedade Maria Marta de Jesus Cristo Jacinta Rosa do Socorro Maria Marta de Jesus Cristo Maria Joana do Espírito Santo Maria Teresa de Santo António Delfina Ifigénia do Sacramento Ana Bárbara da Piedade Maria Jacinta da Encarnação Ana Bárbara da Piedade Maria Jacinta da Encarnação Francisca Paula de Jesus Delfina Ifigénia do Sacramento Mestras de noviças Maria Joaquina do M. Jesus Ana Rosa do Coração de Jesus Ana Ifigénia de Santo Elesbão - Maria Joana do Espírito Santo Ana Teresa de Santo António Maria Joana do Espírito Santo Ana Teresa de Santo António Jacinta Rosa do Socorro Ana Teresa de Santo António Provisoras Eduarda do Triunfo Maria Joana do Espírito Santo Delfina Perpétua Maria Joana do Espírito Santo Maria Madalena do M. Carmo Sancha Maria da SS. Trindade Hipólita Gualberta do A.Divino Maria. Madalena do Monte do Carmo Maria. Madalena do Monte do Carmo Antónia Angélica de Viterbo Francisca Paula de Jesus Francisca Paula de Jesus Antónia Angélica Antónia Angélica de Viterbo Francisca Paula de Jesus Refeitoreiras Maria Jacinta da Encarnação Vitória Maria Ana Teresa de Santo António Ana Teresa de Santo António Maria Jacinta da Encarnação eleita nova abadessa (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, Receita e despesa de todas as esmolas do Convento de N. S. das Mercês, 1764, fol. 115). 968 Neste caso e noutros análogos, as abadessas não governavam quatro anos: O que acontecia é que, por qualquer razão, no caso da Madre Antónia Clara do Sacramento a ausência do prelado, a eleição era retardada por alguns meses (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, Eleições(...), fol. 12-13). Fora de casos como este o governo da abadessa era sempre trienal. 969 O governo foi trienal, pois que a eleição teve lugar em Janeiro de 1803 e terminou em Agosto de 1805 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, Eleições(...), fol.19-20). 970 A partir de 1823, os ofícios anuais iam de Agosto a Agosto seguinte. 218 Ana Ifigénia de Santo Elesbão Ana Ifigénia de Santo Elesbão - Hipólita Gualberta do A.Divino Hipólita Gualberta do A.Divino Maria Jacinta da Encarnação Vitória Joaquina Piedade Vitória Joaquina Piedade Ana Joaquina das Merces Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...); caixa 26, capilha 1, 2 e 3; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Profissões (...). À parte destes casos, jamais se permitiram dois triénios consecutivos. E, o que se verificava com as abadessas, praticava-se normalmente com a vigária, a escrivã e os diversos ofícios comunitários: sacristãs, porteiras, refeitoreiras, enfermeiras, mestras de noviças e outros mais. Estes ofícios eram anuais sem carácter repetitivo, salvo quando uma razão grave o justificasse. Todos os anos se nomeavam novas religiosas para assumir cada uma destas responsabilidades. Os outros trabalhos, tais como, a confecção de hóstias, bordados, trabalhos domésticos, eram distribuídos por todas com fraterna caridade. Entre as religiosas das Mercês, que os manuscritos dos vários arquivos tantas vezes designam humildes, virtuosas e santas, não se conheciam interesses pessoais. Cada uma prezava o crescimento das demais e reconhecia com júbilo os dons com que o Senhor havia enriquecido as suas Irmãs. Nestas circunstâncias as eleições processavam-se com rectidão e uma total liberdade interior. Esta mobilidade de cargos e ofícios exigia uma comunidade culta, bem preparada e bem formada, para que as várias Irmãs pudessem assumir responsabilidades. A valorização espiritual, técnica e cultural era, pois, preocupação de cada abadessa. 2.4. Evolução da comunidade Erecto em 1667, ainda nesse século excedeu o número com que fora fundado, vinte e uma professas, o que determinou o recurso à autoridade eclesiástica. Daí resultou um breve que permitiu ao mosteiro a faculdade de ter vinte e quatro religiosas e receber extranumerárias971. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o mosteiro teve sempre religiosas extranumerárias, isto é, mais do que o número estipulado, salvo aquando das leis pombalinas, cujas consequências se sentiram entre 1777 e 1794. Vejamos o quadro: Quadro nº.34 - Religiosas das Mercês (1752-1834) Ref. /Dez. R. votantes T. de hábito 1752 1753 1754 1755 1756 1762 1764 1777 1778 1779 1793 1794 1795 1796 1797 1798 28 28 27 27 27 27 28 17 18 20 17 16 20 24 25 24 1 1 4 2 1 3 3 1 4 4 1 1 1 Profissões 1 1 2 2 2 4 5 4 1 1 Total972 29 30 32 31 29 28 28 20 23 25 21 21 24 29 27 26 971 AHU, Madeira, doc. 789: Petição da Madre Antónia Clara do Sacramento, Abadessa do mosteiro, sem data e doc. 842: Carta do Bispo do Funchal de 10 de Agosto de 1788, para Martinho de Mello e Castro. 972 Neste total não estão incluídas as candidatas por insuficiência de documentação. 219 1799 1800 1802 1803 1804 1809 1810 1811 1812 1813 1814 1815 1816 1817 1823 1830 1831 1832 1833 Até 28 / 5 / 1834 25 25 24 23 26 20 21 21 23 23 24 24 25 25 24 23 22 23 23 23 2 1 4 1 2 1 1 1 1 1 1 1 1 3 1 1 2 1 4 1 2 1 1 1 1 1 1 1 2 2 28 27 25 28 30 21973 24 23 24 25 26 25 26 26 25 25 24 25 28 26 Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções (...); AHU, Madeira, doc. 261. O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, com profunda vitalidade espiritual, não conheceu crises vocacionais, nem tão pouco se deixou abater diante de leis desfavoráveis, como foi a legislação pombalina no século XVII e as medidas anticongreganistas liberais no século XIX. É certo que a legislação pombalina de 1764974 as afectou um pouco. De facto, a partir daquela data, o mosteiro deixou de receber noviças. Contudo, o afastamento do marquês de Pombal e a subida ao trono de D. Maria na década de setenta, apareceu às religiosas como um raiar da aurora. Assim, em 1777, a Madre Teresa Rosa de Jesus suplicou a Sua Majestade que “fosse servida atender aos humildes rogos das suplicantes, permitindo-lhes a graça que imploravam:”975 a entrada de noviças. A 20 de Agosto de 1777, a rainha autorizava a entrada de seis noviças: “Foi a mesma soberana servida, conceder-lhes licença para aceitarem seis noviças, no caso de se acharem seis lugares vagos, para completar o número (...) com que foi instituído o dito convento”976, informava o ministro Martinho de Mello e Castro. Puderam, pois, receber novas candidatas, já maduras, pois desde há alguns anos aguardavam licença de entrada. Quadro nº.35 - Admissões com autorização régia (1777-78) Nome Entrada Idade Procedência D. Maria Paula Bettencourt Câmara Esmeraldo Ana Júlia D. Luísa Cabral da Encarnação Ana Rosa D. Clara Maria de Meneses D. Maria Joaquina Bettencourt da Câmara 11/10/1777 Out./1777 6/12/1777 Fev./1778 2/9/1778 Dez./1778 26 22 27 Funchal Câmara de Lobos Funchal Calheta Porto da Cruz Machico Fontes: AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso; L 25, Recepções (...). A comunidade rejuvenesceu. Porém, com a morte de mais alguns membros977, as dificuldades de novo se fizeram sentir. Em 1786, a abadessa dirigiu-se uma vez mais à rainha, explicando que no mosteiro “se acham quatro lugares vagos por falecimento de outras tantas e as demais são todas velhas (...); seis se acham na enfermaria e as demais não podem acudir às 973 Esta descida resultou da situação político-social que a Madeira viveu de 1807 a 1814, aquando da ocupação da Ilha pelos ingleses. AHU, Madeira, doc. 260: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, acerca da ordem régia que proibia a entrada de noviças nos mosteiros de religiosas. Tem anexa a relação de todas as freiras existentes nos três mosteiros do bispado do Funchal. 975 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. 976 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Ofício de Martinho de Mello e Castro para o Bispo do Funchal, do Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, de 20 de Agosto de 1777 977 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 2. 974 220 obrigações do convento, pelas suplicantes não terem servas e serem elas que fazem todo o serviço do convento, de cozinhar e servir as enfermas e mais trabalhos por cuja razão só cinco das suplicantes vão ao coro e algumas vezes menos”978. A abadessa pedia, pois, a Sua Majestade que lhe concedesse a graça “de dar facilidade para poder encher os lugares vagos”979. Pouco depois, com santa audácia, a Madre Antónia Clara do Sacramento suplicava: que “daqui em diante, como for vagando algum lugar, se vá logo enchendo, de sorte que esteja sempre completo o número das vinte e quatro”980. D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, encontrava-se em Lisboa, aonde fora chamado para ser investido nas funções de conselheiro régio. Em 1787, recebeu um aviso da rainha, pedindo-lhe que se dignasse “informar a petição da Abadessa do Convento de Nossa Senhora das Mercês”981. O prelado sabendo aproveitar habilmente a circunstância da sua investidura, com muita diplomacia, respondeu à soberana: “Sendo esta a primeira vez que tenho a fortuna de exercitar o benefício (...) do conselho de Vossa Majestade, é para mim feliz princípio começar por um negócio em que interessa o bem espiritual da minha Igreja, qual é a conservação do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, porque ele é observantíssimo e de singular exemplo de virtudes no meu Bispado, como atesta o público, testemunha sem suspeita; e interessa muito que se perpetuem estes vivos exemplos de observância exacta da Moral Cristã e perfeição Evangélica”982. E acrescentava: “faria injúria à sua bem estabelecida reputação se não julgasse verdadeiro tudo quanto as religiosas representam a Sua Majestade”. D. José da Costa Torres tranquilizava a rainha dizendo que nada havia a recear quanto à sustentação do mosteiro, até porque a partir daquela data passava a estar-lhe subordinado. Uma vez no Funchal, o prelado, depois de bem informado, em carta de 22 de Janeiro de 1788, assim escreveu ao ministro: “Não me esquecendo do que Vossa Excelência me recomendou a respeito da licença que a Abadessa e mais religiosas do Convento de Nossa Senhora das Mercês desta cidade pediram a Sua Majestade, para poderem entrar nele as freiras que faltavam ao número do mesmo Convento, fiz a averiguação necessária e achei que têm rendimentos com que possam suficientemente sustentar-se, o que Vossa Excelência pode assegurar a Sua Majestade, para que a mesma Senhora se digne conceder-me a liberdade de prover os lugares vagos e os que vagarem, de sorte que o Convento tenha sempre completo o número das freiras”983. A julgar pelo livro de admissões ao noviciado, a resposta foi demorada, pois só em 1793 começaram a entrar novas candidatas. Em 1795 com a entrada de D. Bárbara Freitas Esmeraldo, o mosteiro ficava com vinte e quatro religiosas, o número autorizado. Quadro nº.36 – Admissões por autorização régia (1793-95) Nome Entrada Idade Procedência Ana Vicência Ana Maria de São Lúcio Ana Jacinta Rosa Bettencourt Andreza Madalena de Santa Ana Bettencourt D. Perpétua Jacinta Cabral Machado Ana Joaquina Clara Joana Rosa Eleutéria D. Ana Bárbara de Freitas Esmeraldo 26/5/1793 26/5/1793 26/5/1793 26/5/1793 1795 19/2/1795 19/2/1795 27/6/1795 16/7/1795 29 28 30 21 30 23 16 Funchal Funchal Ponta do Sol Ponta do Sol Calheta Funchal Funchal Funchal Funchal Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilla 1, docs. avulsos; L 25, Recepções (...). 978 AHU, Madeira, doc. 789. AHU, Madeira, doc. 789. 980 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. Como que a dar força à petição, o documento foi assinado pela abadessa, a vigária, seis discretas e pela escrivã. 981 AHU, Madeira, doc. 788: Carta de 12 de Maio de 1787. 982 AHU, Madeira, doc. 788: Carta de 12 de Maio de 1787. 983 AHU, Madeira, doc. 803: Carta de D. José da Costa Torres para Martinho de Mello e Castro, de 22 de Janeiro de 1788. 979 221 A idade destas candidatas mostra claramente tratar-se de jovens que desde há muito desejavam o seu ingresso na comunidade, mas que, em virtude da proibição régia, tiveram de aguardar alguns anos. Com a facilidade concedida ao prelado da diocese do Funchal, de prover os lugares vagos e os que vagassem, o mosteiro permaneceu sempre cheio. Ao longo de mais de duzentos anos, não conheceu crises, não teve altos e baixos. Quando em 1834, as leis liberais preanunciaram a morte dos mosteiros e conventos, a comunidade era constituída por vinte e seis religiosas, das quais duas eram noviças. As ideias do século XVIII não haviam feito nele os seus estragos. Uma comunidade estável, sem anomalias, normalmente com as vinte e quatro religiosas que constituíam o número autorizado e algumas extranumerárias. Era o fruto da fidelidade ao carisma próprio. Para o período compreendido entre 1834 e 1910, escasseiam as fontes. Aquelas de que dispomos permitem-nos detectar uma média de dezoito religiosas em cada ano, portanto, mais de dois terços do que era habitual, às quais devemos juntar as candidatas ao noviciado. 222 CAPITULO IV AO SERVIÇO DO MOSTEIRO 1. Serviço religioso 1.1. O capelão e o sacristão Segundo a Regra de Santa Clara e as Constituições que as religiosas das Mercês observavam, o capelão devia ser um homem de virtude e de santidade para que pudesse ser auxílio espiritual eficaz. Desde a fundação do mosteiro, a capelania esteve vinculada à colegiada da igreja de S. Pedro, matriz da paróquia a que as religiosas pertenciam. Daí que os seus capelães estivessem ligados e dependentes da referida colegiada. Segundo o instrumento de fundação, o capelão, bem como o confessor, feitor e servente, eram nomeados pelo padroeiro, embora carecessem da aprovação do prelado da diocese984. Contudo, com os anos, o mosteiro, subtraindo-se à tutela dos padroeiros, foi ganhando autonomia espiritual. Desta forma conseguiram as religiosas ter ao seu serviço eclesiásticos competentes e virtuosos. Por alvará de 15 de Agosto de 1818 “o Senhor Dom João 6º (...) ordenou que um dos beneficiados da Colegiada de São Pedro fosse Capelão das religiosas”985. Segundo o mesmo alvará o beneficiado investido na capelania do mosteiro ficaria jubilado, isto é, aposentado em todo o tempo que estivesse ao serviço do mosteiro. Quando em 1834 o P. Filipe, por sobreposição de trabalhos, ficou impedido de celebrar na capela de Nossa Senhora das Mercês, o cabido passou uma carta de capelão ao beneficiado António Luiz Teixeira986, que logo começou a exercer as suas funções. A Madre Ifigénia de Santo Elesbão apressou-se a impetrar do monarca em favor deste sacerdote, “recomendável pelas suas cãs”,987 a concessão “de um benefício na colegiada de S. Pedro (...)”988. Como consequência, a 11 de Abril de 1835, foi passado em favor do referido capelão “um Provimento (...) na Colegiada de Machico”989, onde havia uma vaga por morte do P. Nicolau João de Carvalho. O capelão presidia a toda a liturgia, assumia a celebração das missas de obrigação, como era a missa conventual, missas e ofícios pelos benfeitores e religiosas falecidas, orientava as novenas, trezenas e outras devoções. A pedido da abadessa, podia entrar na clausura para prestar assistência religiosa às doentes990 e, se para tanto estivesse autorizado pelo prelado ou seu legítimo representante, podia assinar as contas anuais do mosteiro, como se verificou com o P. Xavier de Noronha na primeira metade do século XVIII991. Para auxiliar o capelão nas cerimónias religiosas e celebrações litúrgicas, havia sempre um sacristão de nomeação episcopal. Era normalmente um seminarista com ordens menores que, sendo pobre, encontrava no desempenho dessa função o auxílio material de que carecia. Por esta razão, o prelado passava carta de sacristão a jovens seminaristas, como aconteceu na 984 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9. AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Súplica da Madre Ana Ifigénia de Santo Elesbão para o governador do bispado de 1835. 986 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão do Cabido do Funchal, de 4 de Julho de 1834. 987 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Súplica da Madre Ana Ifigénia de Santo Elesbão para o governador do bispado de 1835. O benefício, cargo eclesiástico na Sé, a que estava ligada uma pensão régia, de que gozava o P. António Luís Teixeira, havia sido usurpado. 988 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Súplica da Madre Ana Ifigénia (...) de 1835. 989 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão de 11 de abril de 1835. 990 RCL, XII, 10, in FF II, p. 62; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulso: Súplica da Madre Ana Efigénia de Santo Elesbão de 1857 ou 1858, para o Núncio Apostólico em Lisboa e Carta do Núncio para o bispo do Funchal de 25 de Setembro de 1858. 991 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, Receita e despesa (...), fols. 12, 13, 16 e 17. 985 223 primeira metade do século XIX com Feliciano Augusto Gomes, Francisco de Assis Pimenta, de 22 anos, natural da freguesia da Sé do Funchal, que em 1847 frequentava as aulas de gramática e cantochão no seminário episcopal; com José Gonçalves d’Aguiar, Fernando Augusto de Pontes em 1858 e Ricardo Augusto de Sequeira, António Pereira, João do Espírito Santo, na segunda metade do mesmo século992. O sacristão do mosteiro usufruía de uma pensão régia: “haverá por mantimento a côngrua que Sua Majestade lhe concede”993, que na segunda metade do século XIX tinha o valor de 30.600 réis anuais, com isenção “de selo e de direitos de mercê, em virtude da carta de lei de 23 de Abril de 1866”994. Ao prelado da diocese cabia o direito de passar a carta de sacristão, a quem fosse julgado digno e tivesse necessidade desta mercê. A carta tinha a duração de um ano, podendo, não obstante, ser renovada como acontecia geralmente. 1.2. O confessor Para orientação espiritual de cada religiosa o mosteiro tinha os seus confessores. O instrumento de fundação de 1665 dava aos padroeiros o direito de nomearem os confessores das religiosas995. O capitão Gaspar Berenguer de Andrade pediu a aprovação episcopal, como confessor do mosteiro, para seu irmão Agostinho César Berenguer que, depois de alguns anos de trabalho no Brasil, regressara à Madeira. Em 1686, ano em que o fundador redigiu o seu testamento, ainda o P. Agostinho César era confessor das religiosas. Queria o fundador que sempre dessem importância aos seus conselhos “porque o meu irmão (...) foi o que me ajudou a criar o dito Convento e foi sempre e é confessor das religiosas dele enquanto for vivo”996. Aconteceu, porém, que, as religiosas, após a morte do fundador em 1691, chamaram a si o direito de escolha do confessor. A partir de então, cabia à abadessa, após consulta feita à comunidade, o direito e a obrigação de apresentá-lo à aprovação da autoridade eclesiástica997. Quando em 1816 faleceu o P. João Andrade, desde há muito confessor ordinário das religiosas, a Madre Maria Clara de São José, então abadessa, dirigiu-se ao prelado, pedindo que lhes desse “por confessor desta comunidade o Reverendo P. Matias Jorge Jardim”998. Alegava como razão desta opção comunitária as suas extraordinárias qualidades, “a sua estimável conduta e tudo o que é preciso e se requer para exercitar um ministério de tanta consequência, porque confessa aqui neste convento há trinta e seis anos, e, por isso, estamos bem cientes do seu procedimento”. O P. Matias Jorge Jardim que, embora não sendo confessor ordinário, desde há muito confessava no mosteiro, era realmente pessoa virtuosa. Daí a insistência da abadessa junto do bispo da diocese. Diante da resposta favorável, a abadessa pediu a sua confirmação como confessor ordinário, que obteve a 31 do mesmo mês999. 992 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Súplica de Francisco de Assis Pimenta de 1847; carta de sacristão de Fernando Augusto de Pontes, dada no Funchal a 14 de Outubro de 1859; carta de Ricardo Augusto de Sequeira de 15 de Outubro de 1861 e outras. 993 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Cartas de sacristão de 14 de Outubro de 1859, de 15 de Outubro de 1861, de 30 de Junho de 1868 e 3 de Julho de 1876. 994 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulsos: Cartas de sacristão de 14 de Outubro de 1859, de 15 de Outubro de 1861, de 30 de Junho de 1868 e 3 de Julho de 1876. 995 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 9. 996 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268: fol. 9: Testamento de (...), feito a 21 de Dezembro de 1686; Noronha, op. cit., p.286. 997 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 31-32: Constituições (...); RCL, III, 12, in FF II, p. 49. 998 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Carta da Madre Clara Maria de São José, para o Vigário Apostólico de 28 de Julho de 1816. 999 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Súplica da Madre Clara Maria de São José de 30 de Julho de 1816. Esta carta contêm à margem a confirmação dada a 31 do mesmo mês. 224 Nas primeiras décadas do século XIX, período revolto de lutas civis entre os partidários de D. Pedro e os de D. Miguel, o bispo do Funchal, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, porque não soube ou não pôde manter-se numa situação de imparcialidade, teve de exilar-se em Génova. Na Madeira, era então grande a tensão religiosa. O médico escocês Robert Kalley, calvinista exaltado, dotado de grande capacidade dialéctica e fazendo uma pertinaz propaganda, ocasionava lutas e desinteligências entre católicos e protestantes. Não foi, porém, tão sugestiva e convincente a força da sua oratória que fizesse adeptos capazes de subtraí-lo à ira e violência do povo que, sublevando-se por mais de uma vez, chegou a incendiar-lhe a residência do Vale Formoso e a obrigá-lo, por fim, a embarcar clandestinamente, vestido de mulher, fugindo à perseguição que lhe moviam1000. A divergência de ideias, simultaneamente políticas e religiosas e a consequente inquietação que se vivia na Ilha, teve os seus reflexos no interior das casas religiosas. Alguns sacerdotes iam sendo apelidados de cismáticos. Era grande a confusão. Em 1837 ou 1838, a Madre Ana Maria do Coração de Jesus, abadessa do mosteiro, preocupada com o que acontecia, solicitou de Gregório XVI, por intermédio do Núncio Apostólico em Lisboa, a graça de “terem um ou mais confessores ordinários e extraordinários aprovados pelo seu bispo ou de quem legitimamente faça as suas vezes, pela sua vontade, pois que detestam receber os sacramentos (...) com os cismáticos que hoje tanto afligem a Igreja Lusitana”.1001 Na preocupação das religiosas, que pretendem “confirmar cada vez mais o seu santo e firme propósito de viverem e morrerem na comunhão da Santa Igreja Católica (...) e encontrar conforto (...) por tantas desgraças e escândalos que as circundam e atemorizam”1002, pode ler-se a gravidade da situação. O breve papal de 5 de Março de 18381003, deu ao prelado do Funchal, exilado em Génova, como acima dissemos, as faculdades de providenciar ao que era solicitado pelas religiosas das Mercês. A 30 desse mesmo mês, D. Francisco José Rodrigues de Andrade solucionou o problema que lhe foi apresentado: “Usando das faculdades que pela Santa Sé Apostólica nos foram concedidas no Breve junto e atendendo à súplica da Reverenda Madre Abadessa e Religiosas do Convento de Nossa Senhora das Mercês do Bispado do Funchal, sujeitas à nossa jurisdição, como legítimo Pastor que somos da mesma Diocese (...) e às circunstâncias difíceis em que se acha a nossa Diocese, concedemos faculdade a todos os Reverendos Sacerdotes que se achem por nós aprovados no tempo em que, pelas tristes circunstâncias, fomos obrigados a deixar a residência do nosso Bispado, para que possam confessar as Reverendas Religiosas (...), aos quais delegamos todas as faculdades necessárias (...), enquanto durar o cisma”1004. Com esta resposta passaram as religiosas a fazer a escolha dos confessores que, no entanto, carecia do assentimento e aprovação da abadessa. Em circunstâncias normais, quando terminava o tempo da autorização do confessor, a comunidade podia pedir ao prelado da diocese a sua reconfirmação, como aconteceu em 1839 com o P. Gregório Taumaturgo da Silva1005, ou solicitar outro. O confessor, como aliás o capelão, podia entrar na enfermaria para dar o necessário acompanhamento espiritual às religiosas doentes. Podia também, a convite do prelado, tomar parte no Capítulo Electivo das abadessas, como testemunha e escrutinador. Por delegação do mesmo, o confessor podia estar presente no capítulo em que a nova abadessa, “d’acordo com 1000 Ilhas de Zargo, II , p. 453. AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Abadessa e Freiras Capuchas do mosteiro de N. S. das Mercês da Cidade do Funchal, da Ilha da Madeira, para Sua Santidade, o Papa Gregório XVI. 1002 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Abadessa e Freiras Capuchas (...) . 1003 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Breve de Sua Santidade de 5 de Março de 1838. 1004 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta do prelado do Funchal, dada em Génova a 30 de Março de 1838. 1005 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Madre Ana Ifigénia de Santo Elesbão para o vigário apostólico do Funchal, de 30 de Setembro de 1839. 1001 225 (...) a vigária, fizesse a nomeação dos outros cargos do Convento”1006. No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês houve sempre o cuidado de ter confessores marcados pela santidade. O P. António Gomes Neto, sacerdote culto, digno e austero, quando em 1847 foi nomeado confessor do mosteiro, afirmou que as religiosas das Mercês nunca haviam precisado de reforma, e dava como razão “que até àquela data tiveram as freiras capuchas sempre os melhores eclesiásticos da Madeira por confessores, conhecidos pelas suas virtudes e integridade de vida, distinguindo-se entre os demais o P. Matias Jorge Jardim, natural de São Jorge, onde morreu com fama de santo, o cónego António José de Vasconcelos e o P. Gregório Taumaturgo da Silva”1007. Ao P. Neto, que por muitos anos foi confessor e síndico do mosteiro, sucedeu Monsenhor Monteiro, “alma feita de bondade cativante e de lhaneza evangélica”1008. 2. Serviço administrativo – Os síndicos Para zelar e defender os interesses de ordem material e económica, havia nas comunidades religiosas um procurador ou síndico. No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês para o exercício destas funções, que inicialmente eram assumidas somente por um membro, passou-se no século XVIII para uma comissão de três ou mais membros, um dos quais era sempre clérigo. Deveriam ser dignos, dedicados e honestos, capazes de defender os interesses do mosteiro com rectidão e zelo. Competia-lhes receber as esmolas certas, sendo também portadores de algumas incertas, isto é, feitas espontaneamente. Eram eles que apoiavam a comunidade nas suas carências,1009deixando as religiosas disponíveis para a oração. Em meados do século XVIII, o cónego Dr. António Mendes de Almeida, reitor do colégio de S. João Evangelista, no Funchal, foi síndico muito zeloso e totalmente doado ao bem da comunidade1010. Como comissão administrativa que eram, os síndicos, na década de quarenta do século XIX, puseram uma acção judiciária contra a padroeira D. Ana Cândida Correia Berenguer Atouguia Neto, por falta de pagamento das pensões devidas ao mosteiro, “desde 1844 a 1847 e seguintes, obtiveram uma sentença favorável ao Convento”1011. A ré foi condenada “a pagar 20.000 réis mensais desde Maio de 1844 até esta parte”1012. A 8 de Agosto de 1849, os réus, a padroeira e os herdeiros, apelaram da sentença para o Tribunal de Relação, de que resultou um acórdão favorável às religiosas com a data de 2 de Julho de 18501013, a que já fizemos referência ao tratar do padroado. “Depois de seguidos todos os termos do processo e de seguir-se a execução nos bens dos réus fez-se a escritura da transacção entre os síndicos administradores e Augusto Pinto de Morais Sarmento e seus filhos, como herdeiros legatários de D. Ana Cândida Correia”1014. Quadro nº.37- Comissão administrativa (1847-1859) Provisão episcopal Nome dos síndicos Motivo da substituição ? - 1847 1006 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, Eleições (...),fol. 53 e 53v: Acta da eleição da Madre Maria Querubina do Céu de25 de Outubro de 1900. “O Convento das Mercês,” Correio da Madeira, Funchal, 5 de Março de 1927. 1008 “O Convento das Mercês,” Correio da Madeira, Funchal, 5 de Março de 1927. 1009 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, Receitas e despesas (...), fols. 62, 145, 157, 160, 164, 189, 192, 204 e outros. 1010 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, Receitas e despesas (...), fol.50v. 1011 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, em que foi condenada D. Ana Cândida e Augusto Pinto de Moraes Sarmento e seus filhos, como herdeiros legatários de D. Ana Correia. 1012 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94 e 94v: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, (...). 1013 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94v: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, (...). 1014 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 94v: Sentença do Funchal de 28 de Julho de 1849, (...). 1007 226 - 29/5/1847 18/5/1859 P. Joaquim Gonçalves de Andrade Morgado Pedro Agostinho Teixeira Vasconcelos Dr. José Julião de França Vasconcelos 1847 - 1858 P. António Gomes Neto Tenente Coronel Luís Agostinho de Figueiroa Dr. José Julião de França Vasconcelos 1859 - ? P. António Gomes Neto Tenente Coronel Luís Agostinho de Figueiroa Roberto Leal Ausência Morte Morte Fontes: AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilla 3, doc. avulso: Provisões Episcopais de 29 de Maio de 1847 e de 18 de Maio de 1859. A comissão administrativa do mosteiro, dada a importância das suas funções, não era vitalícia, mas renovável sempre que necessário. Em 1847 era constituída pelo P. Joaquim Gonçalves de Andrade, o morgado Pedro Agostinho Teixeira e o Dr. José França Vasconcelos. Nesse ano, por provisão episcopal de 29 de Maio, fez-se uma nova reestruturação da comissão, pois que faltavam dois membros: o morgado Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcelos, que havia falecido, e o P. Joaquim Gonçalves de Andrade que estava ausente. Por isso, “atendendo às qualidades e merecimento do Tenente Coronel Luís Agostinho de Figueiroa e do Reverendo P. António Gomes Neto, confessor do Convento, havemos por bem nomeá-los (...) síndicos do Convento”1015. Associando estes dois novos membros ao Dr. José Julião de França Vasconcelos, esperava o prelado “que tão beneméritos cidadãos (exerceriam) este caridoso serviço com a melhor vontade a favor daquela casa”1016. Por morte do Dr. José Julião de França Vasconcelos, D. Frei Patrício Xavier de Moura, a 18 de Maio de 1859 solicitou a colaboração de Roberto Leal, negociante do Funchal, que, pelas suas qualidades e muita honestidade, merecia a confiança do bispo da diocese1017. 3. Pessoal trabalhador 3.1. O moço de fora A comunidade do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, na sua opção pela pobreza evangélica e segundo o carisma de Santa Clara, trabalhava. Contrariamente ao que era habitual nas casas religiosas da época, jamais as religiosas tiveram criadas, como se lê em manuscritos diversos1018.O trabalho era para elas uma graça, um dom, uma forma de subsistência e, à luz da época, uma expressão de pobreza. De facto, a comunidade apenas tinha ao seu serviço, de forma permanente, “um moço ou servente de fora”1019, que lhe prestava valiosos serviços. Este moço era alvo de fraternas atenções e cuidados por parte das religiosas, que o vestiam, calçavam e tratavam com delicada caridade quando estava fraco ou doente. Possivelmente, o primeiro moço ao serviço das religiosas foi Pedro Homem Baço, a quem o cónego Bartolomeu César Berenguer deu alforria, “pela fidelidade com que sempre nos serviu e às Reverendas Capuchas”1020. 1015 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão Episcopal de 1847. AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão Episcopal de 1847. 1017 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Provisão Episcopal de 18 de Maio de 1859. 1018 AHU, Madeira, doc. 261: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Torres, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 26 de Agosto de 1764; e doc. 842 : Ofício de D. José da Costa Torres, bispo do Funchal, para o ministro Martinho de Mello e Castro, de 10 de Agosto de 1788; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Petição da Madre Clara do Sacramento, Abadessa, para Sua Majestade. Esta carta não está datada, mas será, sem dúvida, dos princípios de 1777. 1019 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 7v, 9, 10v, 11v e outros. 1020 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 82v: Testamento do Cónego Bartolomeu César Berenguer (...). 1016 227 Nos livros de receitas e despesas há muitas referências às compras de tudo o que era necessário ao moço Roque, ao moço Manuel Caldeira e outros: chapéu, meias, sapatos e, sobretudo, botas que eram consertadas com frequência1021. Para eles e alguns ajudantes, comprava-se com frequência carne de vaca1022, faziam-se bolos e preparava-se cuscuz em abundância. 3.2. Os assalariados No século XVIII, particularmente na segunda metade, com a diminuição do número de religiosas, como consequência das leis pombalinas, a comunidade teve necessidade de recorrer temporariamente a assalariados. Os livros de contas registam os serviços prestados por uma lavadeira e por vezes duas, que cuidavam da roupa do moço e dos servos que o auxiliavam, e dos oficiais, que prestavam serviços na horta, corte e arrumo da lenha e giesta necessárias à cozinha, fornos e ao fogareiro das hóstias1023. Aquelas senhoras prestavam serviços ao mosteiro não de forma permanente, mas em certas ocasiões em que havia legítima necessidade. Em certas épocas do ano, em que o moço não era suficiente, recorria-se a pessoal trabalhador, que os livros designam servos. A despesa que o mosteiro fazia com eles, pouco significativa até meados do século XVIII, passou, na segunda metade do mesmo século, para a ordem dos quarenta, sessenta e setenta mil réis, conforme podemos ver em Vida económica do mosteiro, quadro 48. Para reparações da bomba, da levada, dos fornos, dos telhados, do caldeirão e outras mais, chamavam-se serventes competentes, geralmente certos1024. Para trabalhos mais especializados recorria-se a pintores, pedreiros, carpinteiros e outros profissionais. No mosteiro gastava-se muita lenha e giesta, que era necessário transportar da montanha. Para estas tarefas, aliás muito frequentes, as religiosas recorriam a quem dispusesse de tracção animal. A lenha e giesta, que vinha de diferentes lugares da serra1025, consumia-se na cozinha da comunidade e da enfermaria, bem como no forno do pão. No fogareiro de confecção de hóstias gastava-se sempre giesta1026. Para os carretos mais pesados recorria-se a boieiros, que faziam chegar ao mosteiro carretos de trigo1027 e ofertas enviadas de Lisboa1028. CAPÍTULO V ESPIRITUALIDADE E CULTURA 1. Espiritualidade 1.1. Encanto contemplativo, silêncio e ascese 1021 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols.157, 158, 160, 161v, 162, 163, 164, 164v, 165, 166, 167, 168v, 202v, 204v e outros. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 16, 41, 42, 43, 54, 58; L 274, fols. 157, 159, 160, 160v, 161, 161v, 162, 164, 164v, 165, 165v, 166v, 167, 168, 168v, 169 e muitos outros. 1023 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 113, 166v, 176v, 195, 224v; L 247, fols. 42, 157v, 158, 158v, 160, 164v, 165v, 169v e outros mais. 1024 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10; L 274, fols. 167, 191 e outros. 1025 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10 e outros; L 273, fols. 14, 15, 16, 41, 42, 54 e outros; L 247, fols. 20v, 42v, 136, 156, 157, 160, 162, 162v, 164, 164v, 165, 166, 169 e muitos outros. 1026 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 20v, 42v, 136 e outros. 1027 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 157, 198v e outros. 1028 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 136, 203, 204v e outros. 1022 228 A experiência do encanto por Cristo, feita por Francisco e Clara de Assis, viviam-na as religiosas das Mercês com amor e júbilo. Chamadas ao mosteiro por inspiração divina, exultavam de felicidade e gratidão diante das mercês do Senhor e louvavam-no por todos os homens e por todas as criaturas. Deste contacto íntimo com Deus brotava a alegria e a felicidade que em todas transpareciam. Para as Irmãs das Mercês, a vida contemplativa, misto de oração, de retiro, imolação e de trabalho, implicava o assumir as alegrias, êxitos, preocupações, dores e esperanças da humanidade para delas falar a Deus. Naquele humilde mosteiro rezava-se. Rezava-se por um mundo melhor, por uma sociedade nova, cheia de amor, de paz e de esperança. As religiosas das Mercês sabiam que a contemplação é uma oração silenciosa que se faz no recolhimento do coração e na paz. Sabiam também que a clausura não gera automaticamente a contemplação; simplesmente a ajuda, isto é, faculta um conjunto de condições que a favorecem, uma das quais o silêncio. Porém, como o silêncio não era um fim em si mesmo, mas simplesmente uma necessidade pedida pelo coração para estar a sós com Deus, ele podia moderar-se sempre que o amor fraterno o exigisse. Assim, as religiosas das Mercês, conforme o mandato da sua fundadora, “podiam sempre e em qualquer lugar comunicar o que fosse necessário, porém, em voz baixa e em poucas palavras”1029. Na enfermaria as religiosas podiam falar sempre, embora “de maneira discreta, para consolação e serviço das irmãs enfermas”1030. Em certos lugares, igreja, coro, dormitório e durante a noite, o silêncio devia ser maior para que todas pudessem orar ou descansar sem dificuldade, como pedia a caridade fraterna1031. Algumas Irmãs tiveram particular apreço pelo silêncio. Segundo Noronha, a Madre Inês de Jesus, uma das primeiras religiosas do mosteiro, como consequência da sua grande intimidade com Deus, gostava de viver recolhida e silenciosa1032. No século XIX, entre outras religiosas que prezaram o recolhimento com Deus, podemos mencionar a Madre Ana Maria de Santo Elesbão, que tinha um verdadeiro culto pelo silêncio. Sabemos que todo o ser humano é frágil e limitado. As religiosas das Mercês sentiam em si essa realidade. Noronha ao falar das suas virtudes, refere também limitações e temperamentos difíceis que exigiam vigilância. A Madre Catarina da Paixão, por exemplo, tinha “um génio áspero” que, no entanto, procurava dominar. Contudo, as noviças sofriam um pouco com a sua forma de ser1033. Também a Madre Isabel Francisca de São José era dotada de “génio altivo” e, enquanto jovem, tinha uma grande tendência para se comprazer nos próprios dons1034. De quanto esforço e atenção careciam estas religiosas para que o seu relacionamento com as demais fosse marcado pela bondade e pela paz!?... Esta conversão de cada dia exigia humildade, renúncia, espírito de sacrifício, consciência dos próprios limites. Sem esta ascese jamais poderiam ser almas de oração e percorrer o caminho que leva à contemplação de Deus. As pequenas notícias biográficas, inseridas no Livro de Óbitos do mosteiro, falam-nos da prática da paciência, obediência, caridade e outras virtudes. A mesma fonte, bem como Noronha, referem o espírito de sacrifício, os jejuns, as abstinências e as mortificações voluntárias, que o amor de cada uma lhes ditava. Podemos mencionar religiosas dotadas deste espírito de renúncia e sacrifício: Isabel de Jesus, Catarina da Paixão, Joana de Santo António, Brites da Paixão, Catarina de Sena, Jacinta Rosa do Socorro, Ana Ifigénia de Santo Elesbão, Maria Jacinta da Encarnação, Jerónima Cândida do Coração Imaculado de Maria e muitas outras1035. 1029 RCL, V, 4, in FF II, p. 51. RCL, V, 3, in FF II, p. 51. 1031 RCL, V, 2, in FF II, p. 51. 1032 Noronha, op. cit., p. 285-286. 1033 Noronha, op. cit., p. 289. 1034 Noronha, op. cit., p. 293. 1035 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos, fols.3-9; Noronha, op. cit., pp. 288-298. 1030 229 A Regra de Santa Clara não prescrevia a abstinência mas somente o jejum, do qual a abadessa podia dispensar “as mais jovens, doentes e fracas”1036, em atitude de fraterna caridade. Segundo as Constituições, as religiosas faziam uma refeição principal, o almoço, podendo ter mais duas refeições ligeiras: pequeno almoço e jantar. Porém, em virtude da legislação da Igreja posterior à Regra, deviam “abster-se sempre de carne,”1037. No final do século XVIII, tendo em conta a idade avançada de algumas religiosas e a falta de saúde de outras, a Igreja, sempre atenta e benevolente, a 12 de Dezembro de 1794 permitiu que a comunidade fosse dispensada da abstinência três vezes por semana1038. Houve religiosas que, mesmo doentes, gostavam de manter-se dentro de um regime de austeridade. Conta-se que, estando a Madre Brites da Paixão muito fraca e doente, houve ordem médica para que lhe fosse servida carne. Diante da resistência da religiosa, o médico cedeu, mas deu instruções à enfermeira para que no caldo de grão, que a Madre alegava surtir o mesmo efeito, deitasse carne. A Madre melhorou. Assim, quando o médico voltou ao mosteiro, disse-lhe com graça: “Então meu doutor não tenho passado bem sem a carne?... Sim, minha Madre, mas a verdade Deus a sabe”1039, respondeu o médico. 1.2. Oração litúrgica e comunitária: missa e ofício divino A ocupação, por excelência, das religiosas das Mercês era a oração, força geradora da união com Deus, de paz e de alegria. A sua vida de comunhão com o Senhor centrava-se em duas formas de oração eclesial e litúrgica: a missa e o ofício divino. Para presidir a estas celebrações, o mosteiro tinha um capelão aprovado pelo prelado e sempre assistido por um sacristão. Além da missa conventual, em que todas as religiosas tomavam parte, celebravamse missas cantadas ou rezadas pelos benfeitores defuntos e religiosas. 37. Breviarium Romano-Seraphicum. Era por breviários com este que as religiosas rezavam o ofício divino. Este exemplar, que as Irmãs Clarissas do Mosteiro de Santo António guardam com apreço, pertenceu à Madre Virgínia Brites da Paixão. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Nas grandes solenidades, Páscoa, Natal, Todos os Santos, Ano Novo, Epifania, festas de Santa Clara e de São Francisco, Nossa Senhora da Assunção, das Mercês, Imaculada Conceição e outras, a capela decorava-se com as mais belas flores, quase sempre oferecidas por pessoas amigas. Os sacerdotes revestiam-se dos melhores paramentos. Tudo tomava ar festivo. Nos cânticos, cuidadosamente seleccionados e preparados para a ocorrência, as religiosas empenhavam todos os seus dons musicais e vibração interior. A população circunvizinha gostava de participar nas liturgias da capela do mosteiro, pela grande devoção que tinham a Nossa Senhora das Mercês e também pela consideração em que as religiosas eram tidas. Na segunda metade do século XIX, quando as celebrações religiosas nos mosteiros de Santa Clara e de Nossa Senhora da Encarnação, pela decadência em que se encontravam, começaram a perder a solenidade costumada, a afluência à capela das Mercês tornou-se maior. A celebração eucarística era o centro da vida espiritual das religiosas. Noronha, falando da comunidade, refere algumas Irmãs que assistiam à missa com visível devoção. Entre elas a Madre Isabel Francisca de São José, filha do morgado e padroeiro José de França 1036 RCL, III,10 e 11, in FF II, p.48. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fol. 30v: Constituições (...). 1038 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Permissão para as freiras poderem comer carne três vezes por semana, da Congregação dos Bispos e Regulares, de 12 de Dezembro de 1794. 1039 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia sobre a Madre Brites da Paixão. 1037 230 Berenguer de Andrade, que “assistia sempre ao sacrifício da missa com tão devota atenção, que nela lhe comunicava o Senhor particulares favores”1040. Embora na época não fosse permitida a comunhão quotidiana, as religiosas das Mercês, herdeiras do amor eucarístico tão profundo em Santa Clara de Assis, comungavam com grande devoção todas as vezes que lhes era permitido. O ofício divino era assumido pelas religiosas em nome da Igreja como a expressão de louvor a Deus e de intercessão pela humanidade. O ofício quotidiano, bem como o ofício dos defuntos, sempre em latim, podia ser cantado ou rezado. As diversas horas canónicas estavam distribuídas ao longo das vinte e quatro horas: Matinas à meia-noite, Laudes pelas seis horas, Tércia, Sexta e Noa, às nove, doze e quinze horas, respectivamente, Vésperas às dezoito horas e Completas, a oração de despedida, às vinte e uma horas. O ofício celebrava-se com dignidade e a maior solenidade possível e sempre com a presença de toda a comunidade. As Constituições exortavam as religiosas a prepararem-se para as horas canónicas, bem como para a missa, “em silêncio e em paz”, e acentuavam que “com a excepção das enfermas (e daquelas que) por ordenação da abadessa ou vigária, devam executar, naquela hora, um serviço comunitário”1041, todas deviam estar presentes. E todas tinham esse cuidado. Noronha, referindo a pontualidade e fervor da Madre Joana de Santo António diz: “jamais houve ocupação, ainda que estando na cozinha, que a privasse de assistir aos ofícios divinos”1042. Para solenizar esta oração eclesial, havia no coro um violoncelo, ou seja, “um rabecão pequeno com a respectiva caixa e um descanso de madeira”1043. As Memórias Seculares e Eclesiásticas referem a perfeição e o fervor que as religiosas punham nesta oração eclesial. Entre as demais salientam as Madres Catarina da Paixão e Joana de Santo António “perfeitíssimas e sempre pontuais”1044. Diante das exigências que o ofício divino punha às religiosas – conhecimento do latim e música sacra – no início da vida do mosteiro, nem todas as noviças faziam profissão como coristas. Quando, um ano após o início da clausura, professaram as dezassete senhoras que se encontravam desde há alguns anos no recolhimento de Nossa Senhora das Mercês, pelo menos duas delas, já de certa idade, as Madres Inês de Jesus e Catarina do Monte Sinai, não puderam professar como coristas, mas “para leigas, por não saberem ler”1045. Posteriormente, esta situação teria cessado, pois que, quando em 1818 a comunidade não admitiu à profissão a noviça Úrsula Rita por não ver nela autêntica vocação, salientava-se também outra razão: “não saber ler, condição necessária para (...) o Ofício Divino”1046. Foi, pois, convidada a regressar à casa paterna “por não haver naquela comunidade religiosas leigas em que possa ser admitida”1047. 1.3. Culto eucarístico e adoração do Santíssimo Sacramento Santa Clara de Assis, no seguimento do IV Concílio de Latrão e sob a orientação de São Francisco de Assis, desenvolveu no mosteiro de São Damião, a espiritualidade eucarística, sendo aquela comunidade pioneira na adoração eucarística. A comunidade das Mercês herdou o amor à Eucaristia, o culto do Santíssimo Sacramento, dos seus fundadores. O seu amor a Cristo na Eucaristia foi admirável. O Livro de Óbitos do mosteiro, bem como as 1040 Noronha, op. cit., p. 295. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 268, fols. 29v-30: Constituições (...). 1042 Noronha, op. cit., p. 291. 1043 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, docs. avulsos: Inventário do mosteiro de N. S. das Mercês, sem data e Inventário do mosteiro de N. S. das Mercês de 6 de Novembro de 1895, cópia parcial do primeiro. Veja-se a nota 66, p. 268. 1044 Noronha, op. cit., pp. 289 e 291. 1045 Noronha, op. cit., pp. 286 e 292. 1046 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso. 1047 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso. 1041 231 Memórias Seculares e Eclesiásticas, referem o seu amor e reverência pela Eucaristia. Entre as religiosas mais devotas do Santíssimo Sacramento, podemos mencionar as Madres: Catarina de Sena, Jacinta Rosa do Socorro, Brites da Paixão, Ana Ifigénia, Maria Madalena do Monte do Carmo, Jerónima Cândida do Imaculado Coração de Maria, Rosa do Sacramento, Antónia Maria da Cruz e Virgínia Brites da Paixão1048. Às quintas-feiras algumas religiosas gostavam de rezar, quando lhes era possível, o ofício da festa de Corpus Christi. Até as pupilas iam assimilando esta devoção. Noronha refere que a pupila Maria de São José, “devotíssima do Santíssimo Sacramento, sendo falta de vista, todas as quintas-feiras rezava o ofício da festa de Corpus Christi e gastava noites inteiras no coro em oração”1049. Os dois inventários de 1895 mencionam “uma custódia de prata dourada, lavrada, pesando 2524 gramas, no valor de 75.720 réis”1050, que servia para a exposição do Santíssimo Sacramento, certamente ocupando lugar no camarim da capela1051. 1.4. Devoções Para além da oração comunitária, as religiosas procuravam viver as devoções próprias da sua Ordem, bem como outras que, ao longo dos tempos, a Igreja foi aconselhando. A viasacra, que permitia o aprofundamento da meditação do mistério da Redenção, uma devoção caracteristicamente franciscana, foi prática espiritual que o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês conservou ao longo dos séculos. Houve religiosas particularmente sensíveis à Paixão de Cristo, que concentraram a sua atenção na contemplação do mistério redentor. Entre outras mencionamos: Catarina da Paixão, Catarina de Sena, Vitória Joaquina da Piedade, Brites da Paixão, Jerónima Cândida, e Virgínia Brites da Paixão1052. Na enfermaria não faltava a viasacra, com quinze quadros,1053 representando o último, como vitória sobre a morte, a ressurreição do Senhor. As doentinhas, se ainda o podiam, gostavam de percorrer a via-sacra, meditando no grande amor de Jesus Cristo. No coro havia a imagem do Senhor da Paciência que, na sua expressividade mística, mostrava Cristo sereno e paciente1054. As Madres Brites da Paixão, no século XVII, e Virgínia Brites da Paixão, nos séculos XIX-XX, tiveram particular devoção e veneração por esta imagem de Cristo. O amor à Santíssima Virgem era entre as religiosas muito profundo e terno. Para as grandes solenidades marianas, como eram a Imaculada Conceição, Nossa Senhora das Mercês, a Assunção, Nossa Senhora do Monte e outras mais, preparavam-se espiritualmente; geralmente fazia-se uma novena, com missa e pregação, a que assistia a comunidade e também um grande público. Algumas religiosas tiveram particular devoção à Virgem sob os títulos de Senhora do Socorro, da Visitação, da Encarnação ou Natividade, da Conceição, da Piedade ou Soledade, do Carmo e do Monte, em que se recordava um aspecto particular da 1048 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 3-9; Noronha, op. cit. 285-299. Noronha, op. cit., p..299. ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Inventário de 1895, fol. 5v e Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado. 1051 Embora o camarim não venha referido em nenhum manuscrito, pela estrutura da capela e pelo que então era habitual em templos como este, estamos em crer que existiria. A custódia referida no texto, um pálio, turíbulos, cálices, âmbulas e castiçais, em prata lavrada, constituíram, em 1910, aquando da extinção do mosteiro, o chamado “tesouro parcelar do Convento das Mercês” (Ilhas de Zargo, II, p. .816). As peças referidas vêm descritas e avaliadas nos dois inventários citados. “Depois de arroladas estas alfaias, foram entregues à guarda do Procurador da República da Comarca do Funchal, sendo mais tarde mandada depositar pelo Ministério da Justiça na filial da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência da Madeira. Entretanto a confraria do Santíssimo de Santa Luzia, do Funchal, diligenciou adquiri-las junto da Comissão dos Bens Culturais. Conseguiu a cedência das mesmas pelo Ministério da Justiça, por avaliação oficial, que consta de um processo arquivado no Tribunal da Comarca do Funchal e lhe atribuiu a importância de dezanove mil escudos. Não podendo a referida confraria habilitar-se a este tesouro, interessou nele outras igrejas, entre as quais Santa Clara e S. Pedro, reservando para si apenas as varas do pálio, dois castiçais pequenos, um turíbulo sem naveta, dois cálices e algumas coroas de imagens (Ilhas de Zargo, II, p. 816). 1052 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 3-9; Noronha, op. cit., pp. 290-298. 1053 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso, fol. 28v: Inventário de 1895. 1054 Arquivo do Mosteiro de N. S. da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre Brites da Paixão. 1049 1050 232 vida da Senhora.1055 A comunidade rezava diariamente, conforme a tradição da Ordem, a coroa das sete alegrias, meditando os mistério mais profundos e mais jubilosos da Virgem Maria. Era grande o amor e devoção a Santa Clara e São Francisco, seus fundadores. Todos os anos estas festas franciscanas eram preparadas com uma novena feita com devoção e amor, a que presidia o capelão e em que tomavam parte não só as religiosas mas também as pessoas amigas da comunidade. 38. Novena de Santa Clara. É autor deste livro o cronista franciscano, Fernando da Soledade, tantas vezes citado ao longo deste trabalho. Foi composto a pedido das religiosas do mosteiro da Madre de Deus do Porto. Reprodução de Carlos Fotógrafo Era igualmente grande a devoção a São José. A pupila Isabel Francisca de São José teve por este Santo “ao qual jamais nomeou senão por Pai”1056, um amor muito particular. Havia também grande devoção a São Caetano, fomentada pela Madre Brites da Paixão,1057 Santa Ana, São Lúcio e às Almas do Purgatório. A festa de Santa Ana costumava ser antecedida de uma novena de missas, que em 1765 deu à comunidade a despesa de 2.000 réis1058. Para a decoração da sua imagem, que se encontrava no altar de Nossa Senhora da Conceição, D. Isabel de Vasconcelos deixou o capital de 100.000 réis, que em 1764, rendeu 5.000 réis. Era responsável pelo seu pagamento António Francisco da Praia de São Martinho1059. Na época que estamos a considerar, as procissões religiosas, como manifestações de fé e formas devocionais exteriorizadas, tinham no mosteiro o seu lugar. Por vezes, eram simplesmente expressão de louvor e de reverência para com o Senhor, a Virgem Santíssima ou um Santo da devoção da comunidade; noutras ocasiões visavam a obtenção de uma graça espiritual ou material de que se carecia. Em 1711, a Madre Isabel Francisca de São José, sensibilizada com as necessidades da população da Ilha, “que toda se abrasava por falta de chuva (...),” conseguiu mover a comunidade a fazer “uma procissão de noite, com a imagem da Mãe de Deus, do título da Graça, por nove dias”1060. Das procissões que tinham lugar na cerca do mosteiro, apercebia-se a população circunvizinha que, ouvindo os cânticos e a oração, “santamente curiosa, experimentava os mais diversos meios de captar o que se passava”1061. Em 1782, a pedido da Madre e demais religiosas, o governador do Funchal ordenou uma cuidadosa vistoria à cerca do mosteiro.1062 É que os muros eram devassados em vários sítios, chegando algumas pessoas a ter “a temerária ousadia de abrir buracos e encostarem escadas e outros instrumentos aos muros (...) para assim poderem ver as procissões e outros actos religiosos”1063. As religiosas colaboravam também na organização de procissões de carácter público, como acontecia com a procissão do Encontro, que no Funchal se fazia com muita solenidade. Roque José d’Araújo Viana, conforme se lê no seu testamento, legou ao mosteiro das Mercês 1055 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fols. 4, 4v, 5, 5v e 8v.; Noronha, op. cit., p. 292. Noronha, op. cit., p. 293. 1057 Arquivo do Mosteiro de N. S. da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre Brites da Paixão. 1058 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 20. 1059 AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos dos bens pertencentes ao mosteiro das Capuchas de Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal, que se compõem de juros, à razão de 5% na forma da lei, que repartidamente se pagam pelos meses do ano . 1060 Noronha, op. cit., p. 295. 1061 ARM, Governo Civil, Conv. Mercês F., L 520, fol. 10-11: Relatório de João António Villavicêncio, Capitão Engenheiro, Mestre das reais, de 5 de Janeiro de 1782. 1062 ARM, Governo Civil, Conv. Mercês F., L 520, fol. 10-11: Relatório (...), de 5 de Janeiro de 1782. 1063 ARM, Governo Civil, Conv. Mercês F., L 520, fol. 10-11: Relatório (...), de 5 de Janeiro de 1782. 1056 233 uma valiosa imagem de Nossa Senhora da Piedade1064: “Sou senhor de uma Imagem de Nossa Senhora da Piedade, que serve no encontro da procissão do Senhor dos Passos do Colégio de São João Evangelista, a qual, com todo o seu ornato de vestidos, andor, cortinados e jóias, com o mais que lhe pertence e serve no dito encontro (...), por falecimento de minha mulher, a deixo às religiosas Capuchas de Nossa Senhora das Mercês, com a obrigação de a armarem bem e a mandarem ao dito encontro da referida procissão dos Passos, todos os anos, enquanto durar o mundo”1065. Roque José d’Araújo Viana, para que esta devoção tivesse continuidade, deixou a quantia de “vinte mil réis para venderem a juro de 5% para ajuda do gasto da cera que há-de arder na saída e entrada da mesma Senhora”1066, por cuja pensão ficavam responsáveis os seus herdeiros, segundo o testamento lavrado a 24 de Agosto de 17871067. O andor da Senhora da Soledade, depois de armado pelas religiosas, passava pela igreja do convento de São Francisco, como já se fazia no tempo do seu proprietário, seguia para a procissão do Encontro, e, uma vez terminada, dava novamente entrada no mosteiro1068. 1.5. Festas natalícias no mosteiro das Mercês Preparação e vivência do mistério da Encarnação As religiosas das Mercês viviam com muita ternura as festividades natalícias e para elas se preparavam cuidadosamente. Ao longo do Advento toda a sua atenção de dirigia para o mistério da Encarnação. A própria liturgia as encaminhava para a sua contemplação. Eram filhas de Santa Clara e de São Francisco, os grandes apaixonados pelo mistério de Belém e, simultaneamente, eram filhas da Madeira, onde a encenação de Greccio (1223), o primeiro presépio, com todo o potencial afectivo que comportou por parte de São Francisco e de seus Irmãos, teve eco vibrante e duradoiro. Desde o início do povoamento, os franciscanos e os capitães da Ilha, por sua influência, viveram e difundiram a espiritualidade do mistério da Natividade do Senhor. Ao longo do Advento, as religiosas empenhavam-se na confecção do enxoval do Menino, não de peças de roupa, que também se faziam se fosse necessário, mas de práticas espirituais e actos de virtude. Noronha fala de uma pupila que tinha grande amor a Jesus e “no tempo do Advento, desde os Santos ao Natal, se preparava para receber o Menino Deus, cosendo-lhe a roupinha, a qual fazia de exercícios espirituais para lhe oferecer na feliz noite do seu nascimento”1069. Nos nove dias que precediam o Natal, a preparação era mais intensa. Todos os anos tinham lugar na capela do mosteiro as tradicionais Missas do Parto e a novena preparatória, geralmente orientada por um pregador. No livro Delícias do Coração Cathólico, o Suavíssimo Menino Jesus, de 1757, que as Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conservam com veneração, encontra-se o texto desta novena1070. 1064 Este benfeitor legou também ao mosteiro de Santa Clara a imagem do Senhor dos Passos. AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Testamento de Roque José d’Araújo Viana, de 24 de Agosto de 1787. Trata-se de uma cópia pedida pelas religiosas das Mercês, feita por João Aires Viana, escrivão da Câmara do Funchal e seu termo, em 13 de Abril de 1833. 1066 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos do Convento, de 27 de Fevereiro de 1861. A generosidade e devoção de Roque José d’Araújo Viana foi mais longe: “À Confraria dos Santos Passos do Colégio, por falecimento de minha mulher, se darão oitenta mil réis para venderem a cinco por cento para pagamento do sermão do encontro,” determinava Roque José d' Araújo (AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Testamento de Roque José d’Araújo Viana, de 24 de Agosto de 1787). 1067 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (…) de 27 de Fevereiro de 1861. 1068 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Testamento de Roque José d’Araújo Viana, de 24 de Agosto de 1787. 1069 Noronha, op. cit., p. 293. 1070 O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, continuador da comunidade das Mercês, conserva com grande veneração o livro referido no texto. Em gesto de admiração, pelas suas Irmãs, a comunidade do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade ainda hoje costumam utilizar esta novena, embora com algumas adaptações. 1065 234 Nos últimos dias da novena, armava-se a lapinha da capela, sempre bem original e artística. Os fiéis que costumavam frequentar este templo, gostavam de contribuir para as despesas da lapinha e celebrações natalícias. Por isso, ao longo do ano, iam depondo as suas ofertas na caixa do Menino Jesus que ali se encontrava. O mosteiro ganhava ar festivo; enchia-se das mais belas flores, de lapinhas (rochinha e escadinha)1071, feitas com muita arte. Nunca faltava a lapinha pessoal na cela de cada religiosa, sempre bela e original. Junto ao Menino de Belém aprendiam a arte de amar, de ser pequenas, de ser pobres, despojadas e simples. Não podia faltar a Missa do Galo à meia-noite. Nesta celebração empenhavam-se, o confessor e o sacristão, bem como as religiosas. Quantos nela participavam ficavam cheios de alegria espiritual. Não estando prevista pelas normas canónicas a comunhão nesta missa, as religiosas, pelo grande desejo de se unirem sacramentalmente a Jesus, cuja Encarnação se celebrava, decidiram pedir essa graça a Pio VI. A 17 de agosto de 1792, por um rescrito do mencionado Papa, obtiveram licença “de comungar na missa solene da meia-noite do Natal, pelo tempo de sete anos”1072. 39. Delícias do Coração Cathólico, o Suavíssimo Menino Jesus. Este livro contém a novena preparatória do Natal que se fazia nas Mercês. Em gesto de veneração pelas suas Irmãs, a comunidade da Caldeira ainda agora usa este mesmo texto na novena que antecede o Natal do Senhor. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Após a Missa do Galo havia a consoada, a que se seguiam as loas ao Menino Deus junto à lapinha. O dia da festa, isto é, o dia de Natal, passava-se na intimidade e na alegria comunitária, louvando o recém-nascido com amor e júbilo. À hora determinada, tinha lugar a tradicional cerimónia da Vestição do Menino, parte integrante de uma encenação maior que era o auto Pensar o Menino. À noite nunca faltava o Auto de Natal, cuidadosamente preparado, que lembrava às religiosas a profundidade do mistério que celebravam. Nesta e noutras representações, como a que tinha lugar no dia de Réis, a comunidade mostrava os seus dons artísticos: criatividade, dons musicais, expressividade, sensibilidade estético. Ao longo da oitava sucediam-se as visitas dos familiares e amigos que, em atitude penitencial, sempre se suspendiam durante o Advento. Como manifestação de amizade e gratidão, trocavam-se presentes e votos de boas festas. As religiosas brindavam com os seus familiares, benfeitores e outras pessoas da sua intimidade, os apetitosos bolinhos por elas confeccionados: rosquilhas, broas de mel, cavacas e outras variedades. Tradições natalícias: a Vestição do Menino e Dormida O auto do Natal, o Pensar o Menino, que sempre antecedia a missa da meia-noite, misto de religioso e de profano, em algumas igrejas foi-se transformando em teatro de pastorelas de sabor bucólico da Idade Média. Seguido da entrada dos pastores que iam adorar 1071 Na Madeira faziam-se lapinhas, designativo madeirense do presépio, essencialmente de dois tipos: a rochinha, criativa imitação de um relevo em cuja base se abre uma pequena gruta, onde está representada a natividade do Menino; e a escadinha, constituída por três ou mais degraus armados sobre uma mesa, encimada pela imagem do Menino Jesus. Ambas eram profusamente decoradas com pastores de barro, com frutas diversas, canas de açúcar e outros motivos (Ilhas de Zargo, II, pp.508-513). A criatividade das lapinhas madeirenses suscitou até uma oferta ao príncipe regente em 1811. Nesse ano foi enviada para o Brasil “uma lapinha, primorosamente executada por Manuel de Sousa, Meirinho do Mar. 1072 Arquivo do Mosteiro de N. S. da Piedade, pasta 3, doc. avulso : Rescrito de Pio VI, de 17 de Agosto de 1792; Pio X, o Papa da Eucaristia, abriu as portas à comunhão frequente: Pouco depois, o decreto de 15 de Setembro de 1906, da Congregação do Concílio, explicava que a comunhão não era apenas recomendada aos mais velhos, mas também às crianças, para defesa da sua inocência e da sua piedade (José Maria Javier, Pio X, Coimbra, 1959, pp. 273-274). O decreto de 7 de Dezembro, do mesmo ano, estabeleceu as condições do jejum eucarístico para os doentes e um outro de 1910 permitiu a comunhão às crianças desde que tivessem o necessário esclarecimento e fé (op. cit., pp. 275-276). 235 o Menino, o auto prolongava-se pela noite dentro entre descantes e bailados. Deste auto fazia parte a Vestição do Menino que as religiosas das Mercês, mesmo depois da proibição do auto por parte de D. Manuel Agostinho Barreto, para restrição de abusos1073, conservaram na intimidade da comunidade ao longo dos anos. À hora prevista, reunidas as Irmãs, enquanto a comunidade cantava alegremente, vestia-se ao Menino peça por peça. No livro S. Francisco de Assis na Madeira podem ver-se as trinta e quatro quadras que a comunidade das Mercês cantava durante a Vestição do Menino1074. No final da Vestição, trabalho que competia à abadessa, o Menino, alvo da veneração e ternura das religiosas ao longo da quadra natalícia, era reclinado num belíssimo berço de mogno, decorado com motivos florais1075. Finda esta quadra festiva, retirado do bercinho e vestido de rei, retomava no mosteiro o seu habitual lugar de honra. Tinha o seu enxoval e vestia ao longo do ano segundo as cores da liturgia. Numa arca forrada a coiro lavrado, guardavam-se as suas roupinhas que as Irmãs clarissas madeirenses ainda hoje conservam com apreço. Cuidar do Menino Rei, ao longo do ano, vesti-lo e ornamentá-lo com as mais belas flores, cabia à Rainha do Menino, cuja escolha se fazia no dia de Reis. Na cozinha confeccionavam-se alguns bolinhos, tantos quantas as religiosas, tendo um deles uma fava. Ao jantar, a rainha cessante distribuía-os às religiosas. Aquela que tivesse a fava seria a nova rainha. 40. Menino Jesus. Escultura em madeira policromada, de oficina portuguesa, do século XVIII, com 23 x 12 cm. Pertenceu nas Mercês à Irmã Maria Ângela. Reprodução de Carlos Fotógrafo. 41. Menino Jesus. Escultura de oficina portuguesa, do século XVIII, de 23 x 13 cm, em madeira policromada. Pertenceu nas Mercês à Irmã Querubina. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Além da Vestição, mantiveram as religiosas uma outra tradição curiosa. O mosteiro tinha um Menino Jesus de cinquenta centímetros, de grande beleza que, após o Natal, saia de visita às famílias abastadas da cidade, recolhendo ofertas para o seu mosteiro. Passava uma noite em cada família e era tão disputada a sua visita que não chegava o tempo para satisfazer a devoção a quantos o desejavam em sua casa. Por isso, ultrapassando a quadra natalícia, as visitas do Menino prolongavam-se até ao Carnaval. Durante a noite da Dormida, havia uma magna reunião de parentes e amigos, com honras de carácter religioso e profano e peditório de obrigação. Regressava o Menino ao mosteiro acompanhado dos mais variados presentes e de considerável soma em dinheiro para as primeiras necessidades da comunidade. Esta interessante tradição, com tudo o que tinha de oneroso para a cidade, manteve-se até ao advento da República em 1910. Segundo as Ilhas de Zargo, este Menino das Mercês conserva-se no recolhimento do Bom Jesus do Funchal1076. 1073 Ilhas de Zargo, II, p. 510. José António Correia Pereira, São Francisco de Assis na Madeira, Braga, 1993, pp. 90-93. 1075 O berço do Menino Jesus e o Menino Rei das Mercês podem ver-se na página 332 .desta obra. 1076 Ilhas de Zargo, II, p. 513. 1074 236 1.6. Celebrações pascais No seguimento dos passos de Francisco de Assis, o crucificado do Monte Alverne1077, e de Santa Clara, as Irmãs do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês procuravam viver com profundidade o mistério da Redenção. Daí que na Quaresma, o ambiente fosse de maior exigência. Ao longo desse período procuravam abster-se de visitas, para maior recolhimento interior, e fazer uma caminhada espiritual que as conduzisse à alegria e júbilo da Páscoa de Jesus Cristo. Com a necessária antecedência se diligenciava que as celebrações da Semana Santa se fizessem com toda a dignidade Para isso, além do capelão e confessor, procuravam a colaboração de outros sacerdotes. Em 1725 estas celebrações estiveram a cargo do confessor e de dois clérigos solicitados pela abadessa1078. No segundo triénio da Madre Ana Maria do Coração de Jesus (1835-38) esta colaboração foi dada pelo P. Dionísio que desde há muito vinha prestando este serviço por caridade e amizade para com as religiosas1079. No início da Semana Santa era armado o sepulcro necessário para a Sexta-feira Santa. Os livros de despesas e receitas, todos os anos, nos meses de Março ou Abril, fazem referência às despesas feitas com a compra de tábuas, pregos, trancas, consertos do resplendor, pagamento a carpinteiros e armadores1080. A população que com assiduidade frequentava a capela do mosteiro, em atitude de fraterna colaboração, não deixava de contribuir para as despesas destas solenidades. Ao longo do ano, quem para tanto tinha devoção contribuía para as despesas do sepulcro do Senhor com as suas ofertas que depunha na caixa para isso existente na capela. 1.7. Encargos pios: missas e ofícios de obrigação Por legados feitos ao mosteiro, a comunidade ficava devedora de sufrágios de natureza espiritual, pois os legatários deixavam os seus bens com a imposição ou encargo perpétuo de missas ou outras obras pias, a satisfazer com os seus rendimentos. Os legados maiores tinham obrigação de missas quotidianas, também chamadas anuais e designadas por capelas. Os legados mais reduzidos tinham também obrigações mais restritas: um certo número de missas rezadas ou cantadas e ofícios de defuntos de nove lições1081. Sabe-se que o morgado António José Spínola de Carvalho Valdavesso administrou algumas capelas que totalizavam uma pensão anual de vinte e quatro mil réis, “paga às religiosas capuchas desta cidade, as quais cantavam todos os anos um ofício de nove lições com missa por alma e intenção de todos os instituidores das mencionadas capelas”1082. Era responsável por esta pensão a Misericórdia de Santa Cruz. Nos livros de contas todos os anos se fazia menção de sufrágios de missas e de ofícios em favor dos benfeitores do mosteiro. Tratava-se de instituidores de legados e de outras pessoas que espontaneamente lhe faziam as mais variadas mercês. A comunidade e os revisores dos livros de contas davam a esse dever toda a importância. Era habitual, no início de cada livro de contas, inserir-se uma pauta das missas e ofícios de obrigação, isto é, devidos por legados pios. O prelado, ou o revisor por ele designado, tinha o cuidado de se certificar se haviam sido cumpridos estes sufrágios . Em 1743, antes da aprovação das contas, escreveu-se: 1077 A montanha do Alverne ou La Verna, com 1269 metros de altitude, na Toscana, diocese de Arezzo, foi oferecida a São Francisco pelo conde Orlando de Chiusi, em 1213. O prodígio dos estigmas ocorreu na proximidade na festa da Exaltação da Santa Cruz, em 1224 (São Boaventura, “Legenda Maior”, XIII, 3, in FF I, pp. 700 -701). 1078 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. 1079 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta da Madre Ana Maria do Coração de Jesus para o Governador do Bispado, não datada. 1080 AHDF, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 42v, 130, 136 e outros mais. 1081 Dina Maria dos Ramos Jardim, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal – Século XVIII, Funchal, 1996, p.67. 1082 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso : Pública-forma, de 15 de Janeiro de 1822. 237 “mostra-se, outrossim, ter-se satisfeito a obrigação anual das missas em todo o referido tempo, na forma disposta e ordenada (...) no princípio do livro”1083. O mosteiro tinha a responsabilidade de sufrágios espirituais por muitos benfeitores, entre os quais: Luís de Moura e sua esposa, pelos quais, todos os anos, eram celebradas três missas no Natal1084, o cónego António Lopes1085, D. Antónia Brandão1086, Dr. José Ferreira Pazes1087, P. João Mendonça e Vasconcelos1088 e D. Isabel da Ascensão1089. Por estes benfeitores e outros, cujos nomes não vêm especificados, o mosteiro mandava celebrar na sua capela, com a participação das suas religiosas, missas cantadas ou rezadas, conforme a vontade expressa pelos legatários. Além destes sufrágios em missas, a comunidade cantava ou rezava o ofício dos defuntos de nove lições, quando os benfeitores o deixavam estipulado. Das missas de obrigação, celebradas na capela de Nossa Senhora das Mercês, o sacerdote passava um documento, quitação, certificando que o sufrágio foi cumprido. Em 1736, o P. Francisco Rodrigues, morador na freguesia de São Pedro do Funchal, passou uma quitação correspondente a três missas cantadas no Natal na capela do mosteiro, “pela alma de D. Antónia Brandoa,” pedidas pela Madre Maria Catarina da Purificação, então abadessa. Mais diz a quitação: “e recebi de esmola quatrocentos réis: e por ser verdade (...) passei esta quitação hoje, 13 de Janeiro de 1736”1090. 1.8. Mercês espirituais O mosteiro foi muitas vezes agraciado com mercês de natureza espiritual, entre as quais mencionamos as mais significativas. Em 1725, o marquês Octaviano Acciaiuoli enviou-lhe da Itália uma relíquia “do glorioso Mártir São Faustino, que consistia em uma canobla de um braço (...), que fora dada à marquesa, sua esposa, pelo Pontífice Inocêncio XIII, seu tio”1091. Em 1750, o Papa Bento XIV anunciou ao mundo um novo ano jubilar ao qual estavam vinculadas graças espirituais a conceder aos cristãos. Às religiosas das Mercês, como aliás às demais religiosas de clausura, foi concedido que pudessem ganhar a indulgência no seu próprio mosteiro. Assim se lhes dirigiu o Pontífice Romano: “Às amadas filhas em Cristo (...), chamadas capuchinhas da casa da Madeira (...), benção apostólica. Para aumentar a vossa devoção e empenho pela salvação das almas (...), a todas e a cada uma que, verdadeiramente arrependidas dos seus pecados, confessadas e alimentadas com a sagrada comunhão, tenham subido piedosamente, de joelhos (...) a escada situada no claustro do vosso mosteiro (...) concedemos (...) quatro vezes por ano as indulgências (...) que conseguiríeis se pessoalmente tivésseis subido com devoção e de joelhos a Scala Sancta da Urbe”1092. O mesmo Papa Bento XIV, a 14 de Fevereiro de 1751, enviou ao mosteiro um breve que concedia “ indulgência plenária, por sete anos, aos fiéis cristãos que visitarem a Igreja de Nossa Senhora das Mercês das religiosas capuchas, no dia da festa de São Joaquim”1093. 1083 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 82v. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 20, 136, 145 e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...) que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1085 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 170v e 218; L 274, fols. 20, 136 e outros. 1086 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 170v e 218; L 274, fol. 20v. 1087 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 12, 14, 62, 145, 182, 191 e outros; AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa de rendimentos (...)que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1088 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 144, 189 e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa de rendimentos (...)que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1089 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 62, 145, e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa de rendimentos (...)que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1090 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, doc. avulso: Encontra-se em capilha própria, inserida naquele livro. 1091 Noronha, op. cit,, p. 285. 1092 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc avulso: Breve do Papa Bento XIV, dado em Santa Maria Maior, Roma, no ano de 1750. Este breve foi traduzido do latim pelo P. Dr. Orlando de Freitas Morna, da diocese do Funchal. 1093 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Breve de indulgência de Bento XIV, de 14 de Fevereiro de 1754. 1084 238 Alguns anos mais tarde, Pio VI concedeu à comunidade outros importantes favores espirituais. Por um breve de 7 de Setembro de 1787, favorecia-a com o privilégio de poder ganhar no próprio mosteiro as “Indulgências da Scala Sancta de Roma, por quatro vezes ao ano”, privilégio de que já em 1851 haviam gozado. A 15 de Setembro, por um novo rescrito, estendia a mesma indulgência a mais duas vezes por ano1094; a 7 de Setembro do mesmo ano, agraciou a comunidade com as “Indulgências dos sete altares de Roma,” sendo erectos para o efeito, sete altares no mosteiro; a 4 de Abril de 1788, um breve do mesmo Papa concedia a graça de “altar privilegiado perpétuo ao altar de Nossa Senhora das Mercês”, em favor das almas das religiosas, benefício espiritual que, a 8 de Abril, um novo breve estendeu a “todas as almas do purgatório”; nesse mesmo dia foi emitido o documento que concedia “Indulgência plenária na visita à igreja durante a novena de Nossa Senhora das Mercês, cuja festa se celebrava a 24 de Setembro”1095. Em 1837, as religiosas, por intermédio do Núncio Apostólico, solicitaram do Santo Padre a graça de puderem gozar “de todas as indulgências, privilégios e vantagens que provenham da bula da Cruzada (...) concedida a Portugal e às suas colónias”1096. No ano seguinte, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, bispo do Funchal, exilado em Génova desde 1834, como atrás ficou dito, concedeu às religiosas as graças solicitadas: “usando das faculdades que pela Sede Apostólica nos foram concedidas no breve junto (...), como legítimo Pastor que somos da Diocese”1097. Em 1854, o Papa Pio IX, desejando beneficiar espiritualmente o mundo católico, “criou e erigiu a sociedade pia da Imaculada Conceição da Virgem Maria, com o título de Coroa Áurea”1098, à qual estavam anexados favores espirituais. D. Manuel Martins Manso, prelado do Funchal, por carta de 4 de Setembro do referido ano dirigiu-se ao confessor do mosteiro para que: “exortando as Senhoras Religiosas do Convento e demais pessoas que nele vivem (...) trabalhe por associa-las, nesta pia sociedade em ordem a ganharem as indulgências e graças que lhes são concedidas, cumprindo em congregação as obrigações, a que porventura se ligarem”1099. Cada Coroa Áurea era constituída por trinta e uma pessoas que, reunidas mensalmente num templo, dirigiam a Deus “as suas veementes e fervorosas orações pelas actuais necessidades da Igreja católica e pela conversão dos pecadores, segundo a intenção do Sumo Pontífice, ganhando, por isso, as graças e indulgências que lhe são concedidas e que se acham declaradas”1100. Desconhecemos se as religiosas se constituíram em Coroa Áurea conforme o apelo do prelado. 1.9. Testemunhos de santidade Ao longo de dois séculos O Livro de Óbitos do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, de 1667 a 1882, regista cento e vinte e três óbitos. O livro encerra com a notícia biográfica da Irmã Ana Joaquina das Mercês, a última religiosa professa à data do decreto de 28 de Maio de 1834. Ao longo de 1094 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Breve do Papa Pio VI, 7 de Setembro de 1787. Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, docs. avulso. AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, docs. avulsos: Carta da Abadessa a Sua Santidade, o Papa Gregório XVI, de 1837, e carta de D. Francisco José Rodrigues de Andrade, de 30 de Março de 1838. 1097 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de D. Francisco José Rodrigues de Andrade (...), de 30 de março de 1838. 1098 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular da Câmara Eclesiástica, de 4 de Setembro de 1854, para o confessor ordinário do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês. Segundo a nota averbada à margem, tratava-se de uma circular para o jubileu que foi enviada ao cabido, seminário, mosteiros, recolhimento e câmara municipal. 1099 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular (...). 1100 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular (...). 1095 1096 239 duzentos e quarenta e três anos faleceram nas Mercês umas cento e cinquenta religiosas, das quais cem até l834, conforme o quadro. Quadro nº.38 – Religiosas falecidas Anos Óbitos Anos Óbitos 1667-1700 1700-1710 1710-1720 1720-1730 1730-1740 1740-1750 1750-1760 1760-1770 1770-1780 1780-1790 1790-1800 18 12 5 6 8 2 10 4 9 4 5 1800-1810 1810-1820 1820-1830 1830-1834 1834- 1840 1840-1850 1850-1860 1860-1870 1870-1880 1880-1882 1882-1910 12 1 2 2 0 6 7 5 4 1 ? Fonte: ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 270, Livro de Óbitos. Mas a vida no mosteiro continuou. Em 1910, aquando da expulsão, a comunidade era constituída por quinze religiosas. Alguns escritores transmitem-nos a vida virtuosa e edificante da comunidade e de alguns dos seus membros. Em 1722 Henrique Henriques de Noronha escreveu nas Memórias Seculares e Eclesiásticas: “Floresceram sempre, nesta casa, desde o princípio, as virtudes com o mesmo esplendor com que hoje se vêem brilhar”1101. E, com palpável satisfação, faz uma pequena resenha da vida edificante de várias das suas religiosas. Como que decalcando o cronista Frei Fernando da Soledade, que designou o recolhimento de Nossa Senhora das Mercês “Paraíso Seráfico”1102, Noronha chamou ao mosteiro “cópia daquele paraíso admirável que Deus plantou na terra para delícia e recriação das virtudes”1103. O historiador começa por algumas das primeiras religiosas que professaram no mosteiro, precisamente em 1668, um ano depois da erecção canónica, que desde há alguns anos viviam no recolhimento de Nossa Senhora das Mercês muito virtuosamente. São elas: Inês de Jesus, Isabel de Jesus e sua irmã, Margarida do Sacramento, Catarina da Paixão, natural do Porto da Cruz, Isabel da Conceição, Joana de Santo António e Catarina do Monte Sinai. A Madre Inês de Jesus, irmã do fundador, era filha de Heitor Nunes Berenguer e de D. Maria Lira, sua mulher. Alguns anos antes de entrar no recolhimento, sob a orientação do seu confessor, o jesuíta João Ribeiro, havia recebido o hábito de Terceira do Carmo. Foi regente no recolhimento e, quando transformado em mosteiro professo, “foi a primeira que professou (...) no mês de Junho de 1668, não para o coro, por não saber ler o Ofício Divino”, então em latim. Isto não a impediu, no entanto, de ser uma religiosa “exemplaríssima, com tanta suavidade espiritual (...), sempre com brandura e alegria muito natural (...); na oração foi tão contínua que, ainda nas ocasiões de doença, não se recolhia do coro menos das onze horas da noite e, ainda na cama enferma a não deixava de ter continuada”. Era dotada de grande espírito de sacrifício e capacidade de perdão de que deu provas aquando do assassinato do seu sobrinho, o P. Gaspar Berenguer de Andrade. Movida pelo ideal cristão, procurou exercer toda a influência ao seu alcance “para facilitar o perdão dos culpados”1104. Naturais do Paul, filhas de João Rodrigues de Lessa e de sua mulher Isabel Cordeira, as Madres Isabel de Jesus e Margarida do Sacramento eram muito conceituadas pelas suas virtudes e, por isso, bastante procuradas pelas mais ilustres senhoras da terra, que gostavam de 1101 Noronha, op. cit., p. 285. Fernando da Soledade, op. cit., III, p. 355. 1103 Noronha, op. cit., p. 292. 1104 Noronha, op. cit., p. 286; Fernando de Menezes Vaz, op. cit., I, p. 201. 1102 240 lhes pedir conselhos espirituais. A Madre Isabel foi sempre paciente, humilde, dotada de grande espírito de sacrifício e muito recta. Embora bondosa e delicada sabia ser forte e decidida, se as circunstâncias o exigissem, como aconteceu quando entraram algumas jovens sem vocação, pressionadas pelos familiares, como atrás referimos. Muito sensível diante dos mistérios de Cristo, gostava de entregar-se à contemplação dos sofrimentos do Senhor. Era alma de profunda oração e, embora tivesse passado os últimos anos da sua vida completamente cega, a Madre Isabel continuou a sentir-se feliz, a ser alegre e cheia de ternura para com todas. Teve vida “mui dilatada, porque excedeu alguns anos de um século; porém, os cinco ou seis últimos entrevada”1105. Faleceu a 9 de Fevereiro de 17151106. Quando o recolhimento dava os primeiros passos, querendo “ D. Isabel de França (...) fabricar-lhe os melhores alicerces, empenhou-se na entrada de D. Catarina, senhora de nobre linhagem e de comprovada santidade, natural do Porto da Cruz”. Diz Noronha que D. Catarina, só podendo andar com o auxílio de muletas, resolveu pedir a sua cura a Santa Catarina para poder ser recebida no recolhimento. De facto, entrando na capela de Nossa Senhora das Mercês e “pondo-se de joelhos diante do altar de Santa Catarina, se encomendou à santa com tanta fé que, largando ali as muletas, entrou sem elas e ficou desimpedida para os exercícios do serviço da casa”1107. Em 1668 sendo o recolhimento já mosteiro professo, Catarina da Paixão fez a sua profissão. Alma de oração, modesta e dotada de espírito de abnegação, sabia dominar o seu génio áspero. Foi mestra de todas as que entraram no seu tempo e “como era também grande música e de bela voz, dispôs todas as cerimónias de coro, com particular acerto. Mais do que com palavras, procurava instruí-las com o exemplo de uma vida virtuosa. Faleceu a 30 de Agosto de 1706, com mais de oitenta anos1108. Em data que desconhecemos, Isabel da Conceição, filha de André Gonçalves Homem e de sua mulher Maria de Teive, entrou no recolhimento, já muito adulta. Aplicou-se à prática de todas as virtudes, nomeadamente da obediência, caridade, humildade e oração, donde “lhe nascia a grande ternura, fervor e alegria com que sempre a viam”. Dotada de delicada sensibilidade espiritual, a Madre Isabel da Conceição vibrava diante do mistério da Encarnação e gostava de mostrar o seu amor ao Menino de Belém, em gestos de muita ternura. Neste amor procurava sensibilizar as Irmãs mais novas que “se tinham por ditosas quando se encontravam com ela no recreio. A uma pupila que se criava no mosteiro, a Madre Isabel, já velhinha, costumava dizer que havia de substitui-la, o que veio a acontecer. Faleceu em 1701, “com a mesma candura com que viveu cem anos (...), depois de confortada com os sacramentos”1109. As filhas de Jorge de Andrade Correia e de D. Joana de Menezes, “pessoas principais da primeira nobreza desta Cidade”, costumavam ir ouvir missa à capela de Nossa Senhora das Mercês. Foi ali que D. Joana se sentiu interpelada pelo Senhor a consagrar-lhe a vida. Obtida a licença dos seus pais, as religiosas receberam-na com muita satisfação. Apesar da sua ascendência e distinção, Joana de Santo António soube ser simples, humilde e viver santamente. Refere Noronha que passava longas horas em adoração e que muitas vezes ficava tão absorvida e “tão arrebatada que não dava conta de nada”. Muito metódica e pontual, “jamais houve ocupação, ainda que fosse a cozinha, que a privasse de assistir aos ofícios divinos (...). Sabia ocupar o tempo que lhe sobrava das suas obrigações na cela ou no coro, com Deus”1110. Terá falecido, segundo Noronha, em 1680. 1105 Noronha, op. cit., p. 288. ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 270, Óbitos (...), fol. 1v; Noronha, op. cit., p. 288. 1107 Noronha, op. cit., p. 289. 1108 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v; Noronha, op. cit., p. 290. Noronha considera-a falecida em 31 de Agosto de 1707. 1109 Noronha, op. cit., p. 290. 1110 Noronha, op. cit., p. 291. 1106 241 Por meados do século XVII, vivia na Calheta o casal Vicente Osuna de Menezes e D. Leonor de Andrade, pais de Catarina e um seu irmão. Como mais velha, pretenderam casá-la. Outro era, contudo, o anseio da donzela: consagrar-se a Deus pela profissão religiosa. Temendo que seus pais a obrigassem a aceitar o casamento, Catarina apressou-se a fazer voto de castidade. Os pais, quando o souberam, não podendo obrigá-la a casar, permitiram a sua entrada no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, onde veio a professar em 1668, mas não como corista, por não saber ler. A Madre Catarina do Monte Sinai era muito alegre e jovial, o que fez dela um anjo transmissor de paz, de bem estar e felicidade junto das religiosas, particularmente das doentes que, durante muitos anos, estiveram confiadas aos seus cuidados de enfermeira1111. D. Isabel, filha do capitão José de França Berenguer de Andrade e de sua esposa D. Maria de Castelo Branco, padroeiros do mosteiro, entrou com oito anos, ficando na clausura como educanda. Noronha considera-a “duas vezes filha desta casa, porque (...) se criou nela com o nome de capucha de que tanto se prezava”. Isabel tinha uma forte inclinação para a vida conventual e “todo o seu cuidado era buscar, na comunicação com as mais perfeitas religiosas, um modo de oração e de estar na presença de Deus”. Menina terna e boa, tinha grande devoção ao Menino Jesus e, no Advento, entretinha-se a confeccionar-lhe o enxoval que fazia “de exercícios espirituais para lhe oferecer na feliz noite do seu nascimento”.Era muito devota de Nossa Senhora, para cujas festas se preparava com amor. A sua oração mariana preferida era o rosário que sempre rezava de joelhos. Era igualmente devota de S. José a quem sempre chamava pai. Desde menina, foi grande a sua caridade: “além de servir com grande amor a todas as religiosas, esmerava-se, com particular cuidado, na assistência das doentes”1112. Isabel Francisca de São José também tinha defeitos. Altiva, com muito génio e, envaidecendo-se das suas qualidades, foi-se afastando do seu primeiro fervor. Sua tia materna, a Madre Angela da Glória, “lhe fazia algumas advertências, mas com pouco fruto”. Após a profissão, algumas provações, uma grave doença e a “morte daquela tia a quem devia o amor e a educação de mãe”, tornaram-na humilde e humana, deram-lhe maturidade e operaram nela um recomeço espiritual. Para esta transformação contribuiu o jesuíta P. Miguel Vitus, seu director espiritual. Isabel começou então uma caminhada de aproximação de Deus, vindo a gozar de graças sobrenaturais e místicas que marcaram o seu viver. Sensível às necessidades alheias, em 1711, sofrendo muito a Ilha, “que toda se abrasava por falta de chuva”, não só implorou a misericórdia de Deus, como também procurou actuar junto do P. Luís Leitão, também jesuíta, para que pregasse a emenda de vida e implorasse as bênçãos de Deus para a Madeira. À própria comunidade pediu, como já referimos, que se fizesse uma “procissão de noite, com a imagem da Mãe de Deus, do título da Graça, por nove dias, com algumas penitências públicas”1113. Faleceu não a 19 de Maio de 1717 como refere Noronha, mas a 12 de Maio de 1716, com trinta e oito anos apenas1114. No final do séc. XVII, entrou no mosteiro, como educanda, “por Decreto especial del Rei Dom Pedro II”1115, D. Perpétua Moniz Correia, natural da vila de Santa Cruz. Era quarta neta de Vasco Martins Moniz, fidalgo da casa del Rei, “o primeiro que deste apelido passou a povoar esta Ilha”1116. A menina, que entrara “com tão grande repugnância da sua vontade, que ainda na portaria do mosteiro, deu a entender a violência com que vinha”, sensibilizada com a vida virtuosa das religiosas, bem depressa “se desfazia em afectos de vida religiosa, 1111 Noronha, op. cit., p. 292. Noronha, op. cit., p. 293. 1113 Noronha, op. cit., p. 295. 1114 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 270, Óbitos (...), fol. 1v.; Noronha, op. cit., p. 296. 1115 Noronha, op. cit., p. 297. 1116 Noronha, op. cit., p. 297. Com D. Perpétua entrou uma outra sua irmã, cujo nome Noronha não refere. 1112 242 inclinando-se tanto a ela, com tais auxílios de Deus, que seguia todos os exercícios de boa freira antes de ser noviça”1117. D. Perpétua entregou-se à oração, a obras de caridade e começou a sentir-se bem e feliz. Em 1703, com grande regozijo seu e da comunidade, iniciou o noviciado, recebendo então o nome de Catarina de Sena. Dotada de um bom físico e de ânimo varonil, pôde entregar-se a um regime de vida austera, chegando a passar dias inteiros a pão e água. No tempo que lhe sobrava dos exercícios comunitários e trabalhos da sua obrigação, gostava de rezar, ler vidas de santos e meditar. Com os pobres teve tal caridade que chegava a privar-se do seu jantar e tudo o mais que podia, pedindo às porteiras que tudo distribuíssem por eles. Tentando as Madres levá-la a uma certa moderação nas austeridades a que se entregava, a jovem noviça ficou contrariada e pensou deixar o noviciado e, em gestos de humildade, “ir ser criada no mosteiro da Encarnação”. A Madre Isabel Francisca de São José conseguiu dissuadi-la fazendo-lhe compreender “que o ofício de criadas o exerciam como esposas de Cristo as religiosas desta casa”. Catarina entendeu e cedeu. A 4 de Maio de 1704, teve a dita de fazer a profissão. Entregou-se ao Senhor com grande entusiasmo. Passadas algumas semanas adoeceu gravemente. Sabendo pelo médico que não havia qualquer esperança de melhorar, ficou serena e feliz por sentir muito próximo o seu encontro com o Senhor. “Recebeu os sacramentos com inexplicável devoção (...), pediu perdão (...) das suas faltas”1118 e a 18 de Junho de 1704 partiu para o Senhor1119. Em 1697, um casal de Coimbra, Dr. José Ferreira Pazes e D. Maria Coelho transferiram-se para o Funchal, a pedido de seus tios, Dr. António Spínola e sua esposa D. Francisca Pazes. Acompanhava-os uma filha, Maria de São José, de três anos, de “natural dócil e singelo”, que aos doze anos entrou no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês como educanda. Foi tão grande o encanto que a virtude das religiosas despertou no coração de Maria de São José que bem depressa começou a sentir em si o desejo de, como elas, se consagrar ao Senhor. E era tão grande o seu anseio que, mesmo antes de atingir a idade de admissão ao noviciado, “começou a fazer todas as obrigações de uma boa freira e, com tanta pontualidade, como se já o fora pela profissão e idade”. Gostava de ajudar na cozinha, na enfermaria e em todos os outros serviços. Devotíssima do Santíssimo Sacramento, passava longas horas em oração no coro e todas as quintas-feiras rezava o ofício de Corpus Christi. No Advento empenhava-se, muito a sério, na confecção do enxoval do Menino Jesus, que fazia com devoções e actos de virtude. “Assim vivia esta flor na terra, cultivada entre as virtudes, quando, querendo-a o Senhor transplantar para o céu”1120, adoeceu gravemente. Sendo ainda menina de 14 anos, somente lhe puderam permitir que in articulo mortis fizesse profissão como Terceira Franciscana, o que a jovem aceitou com muita alegria. Faleceu a 18 de Janeiro de 17091121. Aqui termina o relato de Noronha. A partir de 1853, com a morte da Irmã Maria do Coração de Jesus, filha do morgado Jacinto de Faria e sua mulher D. Antónia, o Livro de Óbitos começa a apresentar uma pequena notícia biográfica de cada religiosa falecida, fazendo menção dos dons pessoais, das virtudes vividas, da vida de oração e devoções, das responsabilidades comunitárias assumidas. São páginas de grande beleza, onde facilmente se detecta a grandeza de alma daquelas religiosas, a sua vida de fé e de amor. Algumas alimentaram uma particular devoção as Santíssimo Sacramento, outras a Nossa Senhora, a São José, a Santa Ana ou ao Menino Jesus. São frequentes as referências à prática da caridade, delicadeza e dedicação fraterna, particularmente para com as irmãs doentes. Da Madre Ana Ifigénia, falecida a 30 de Maio de 1117 Noronha, op. cit., p. 297. Noronha, op. cit., p. 298. ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v.; Noronha, op. cit. 298. Noronha refere o seu óbito em 14 de Junho. 1120 Noronha, op. cit., p. 299. 1121 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v.; Noronha, op. cit. 299. 1118 1119 243 1864, se diz que deixou admiráveis exemplos de “caridade, prudência, (...). Era muito devota de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento (...). Sofreu, com muita paciência, (...) uma moléstia crónica, por muitos anos”1122. Nestas notícias necrológicas sente-se o palpitar de corações que souberam amar a Deus e à humanidade. Dois casos específicos: Madre Brites da Paixão e Madre Virgínia Brites da Paixão Em 1733 faleceu, no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, a Madre Brites da Paixão, em odor de santidade. Esta religiosa estava ligada à família Ornelas Vasconcelos, por parte de seu pai, Aires de Ornelas de Vasconcelos, sexto morgado do Caniço, que, por volta de 1672, permitiu a sua entrada no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, dado que D. Brites desejava consagrar-se a Deus pela profissão religiosa1123. D. Brites teria entrado já madura, com uns trinta anos. Fez a sua profissão religiosa em 1674. Da sua santidade falam algumas fontes e obras impressas. “Pela tradição conservada no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês e por alguns manuscritos encontrados no seu arquivo, se constata o grau eminente de perfeição espiritual que atingiu esta religiosa”1124. Nos vários cargos que exerceu, revelou-se sempre competente. Como mestra de noviças a sua acção foi muito fecunda. Segundo o testemunho de uma das suas educandas “a serva de Deus andava sempre abrasada em amor divino, que se comunicava às suas noviças. Dotada de grande espírito de penitência, sempre se absteve de carne e se entregou a rigorosos jejuns e outras práticas penitenciais”1125. Esclarece a mesma testemunha que a Madre Brites costumava preparar-se, com um retiro de dez dias, para o aniversário da sua profissão, que fizera na festividade de S. João Baptista. Os seus familiares gostavam de presenteá-la com tudo aquilo que lhe desse prazer. Deles recebeu a belíssima escultura do Senhor da Paciência, em madeira policromada que, “por ser grande, não estava na sua cela, mas sim no coro”1126. Segundo a tradição conservada entre as religiosas, o Senhor da Paciência falava com ela como se fosse um corpo animado. Alma de oração e comunhão profunda com o Senhor, foi por Ele favorecida com o dom das curas que já aconteciam em sua vida, mas se tornaram mais numerosas depois da sua morte1127. 42. Senhor da Paciência. Escultura valiosa e muito expressiva, em madeira policromada, com 76 x 33,7 x 33 cm, de oficina portuguesa, do século XVIII. Pertenceu nas Mercês à Madre Brites da Paixão, a quem foi oferecida pelos seus familiares. O resplendor que coroa Jesus Cristo é um valioso trabalho em prata. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Em face dos documentos que manuseámos, podemos referir, entre outras, a cura de uma menina de nove anos que sofria de grave enfermidade, de uma religiosa do mosteiro, Ana Bárbara da Piedade que, “sendo ainda nova se achava completamente paralítica e já desenganada dos médicos” 1128, e ainda a graça de chuvas abundantes que se verificaram logo 1122 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fols. 5v-6. Maria Fátima Araújo de Barros Ferreira, “Arquivo da Família Ornelas Vasconcelos. “Instrumentos descritivos”, in Arquivo Histórico da Madeira, 21 (998) 18; Ilhas de Zargo, II, p. 483. 1124 Ilhas de Zargo, II, p. 483. O Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conserva alguns importantes manuscritos, saídos das mãos da Madre Virgínia, que referem a vida virtuosa e santa da filha do sexto morgado do Caniço. 1125 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites sobre a Madre Brites da Paixão. 1126 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (... ). 1127 Ilhas de Zargo, II, p. 483. 1128 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (...). 1123 244 após a sua morte, em resposta à súplica da população que sofria as graves consequências de uma seca muito prolongada1129. Após a sua morte, em 25 de Setembro de 1733, com uns cem anos1130, foi instaurado o processo preparatório da beatificação, tendo o historiador insular P. Fernando Augusto da Silva organizado um processo que continha a narração de muitos milagres feitos pela Madre Brites da Paixão1131. Nos manuscritos que vimos seguindo, a Madre Virgínia pretendia reconstituir, pelos relatos contados pelas religiosas mais antigas, “as principais virtudes, milagres e outras graças obtidas por ela, que são necessárias para a beatificação (...), que estavam na Câmara Eclesiástica e foram destruídos por um incêndio”1132. Os seus familiares detectavam a sua santidade e tinham por ela grande estima e admiração. A Madre Brites da Paixão, lê-se nas Obras de D. Ayres d’Ornellas de Vasconcellos, “morreu com fama de santa”1133, o que, aliás, foi sempre afirmado pelas religiosas do mosteiro e pela população da Madeira que tantas vezes foi alvo da sua protecção espiritual. Não admira, portanto, que na segunda metade do século XVIII D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, bispo do Funchal, tivesse autorizado, como diz o mesmo Agostinho d’Ornellas de Vasconcellos, “um certo culto em sua honra”1134. O segundo caso diz respeito à Madre Virgínia Brites da Paixão, natural do Lombo dos Aguiares, que em 1883 professou no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, com vinte e três anos de idade1135. Ali cresceu em virtude, se sentiu feliz e exerceu cargos de responsabilidade. Era abadessa quando da implantação da República em 1910. Expulsa do mosteiro, como as demais religiosas, passou os seus últimos 19 anos na casa paterna onde morreu em 1929 com sessenta e nove anos. Da santidade da Madre Virgínia Brites da Paixão, muito tem falado, desde há quase cem anos, a população da Madeira, a imprensa, os seus emigrantes; do seu poder de intercessão, falam-nos os ex-votos que no seu quarto, integrado no actual mosteiro de Santo António, se vão acumulando. Nós, dado que falaremos dela mais adiante, ao tratar da fundação do mosteiro de Santo António na sua própria casa, limitamo-nos, neste apartado, a transcrever, quase na íntegra, o que, a 17 de Janeiro de 1941, se escreveu em O Jornal. “Faz hoje uma dúzia de anos. No Lombo dos Aguiares, freguesia de Santo António do Funchal, expirava essa filha da mesma paróquia, que em religião se chamou Madre Virgínia Brites da Paixão. Sentindo-se atraída para a vida religiosa, ainda em plena flor da sua juventude, vestiu o hábito religioso (...). No mosteiro de Nossa Senhora das Mercês desta cidade, deu edificantes exemplos de virtude, de espírito de penitência e de amor a Deus. Foram essas qualidades da sua alma que a elevaram ao cargo de superiora no extinto mosteiro das Capuchas. Quando em 1910, o mosteiro foi extinto, era regida essa casa religiosa pela Madre Virgínia. Retirando-se para modesta casa da sua família no Lombo dos Aguiares, aí viveu até 17 de Janeiro de 1929, continuando a observar as regras da Ordem e da casa donde fora expulsa e de que sentia viva saudade. Ainda em vida julgou-se favorecida por revelações divinas. Em virtude da obediência deixou alguns autógrafos que nos dão conta de algumas dessas comunicações. Entre o povo, espalhou-se a fama da sua virtude invulgar, das suas relações místicas. Por isso, após a sua morte, no cemitério onde repousa e na casa onde 1129 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (...) . Estes e outros milagres vêm descritos com muito realismo. A cura da Madre Ana Bárbara da Piedade também é referida na notícia biográfica desta religiosa (ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 4 v). 1130 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L. 270, Óbitos (...), fol. 1v. 1131 Ilhas de Zargo, II, p. 483. 1132 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia (...). :1133 Agostinho d’Ornellas de Vasconcellos, op. cit., p. 24; Arquivo Histórico da Madeira, 21(1998)18. 1134 Agostinho d’Ornellas de Vasconcellos, op. cit., p. 24; Arquivo Histórico da Madeira, 21(1998)18. 1135 Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a vida da Madre Brites da Paixão, fol.13. 245 habitou, principiaram a aparecer manifestações de veneração que têm durado até aos nossos dias. Nas cidades, nas freguesias suburbanas e rurais, narram-se graças obtidas por sua intercessão”1136. Terminaremos esta nossa referência à vida virtuosa da comunidade das Mercês transcrevendo o testemunho deixado pelo escritor insular, P. Fernando Augusto da Silva. Nos Subsídio para a história da diocese Funchal, onde fixou os acontecimentos mais relevantes que ocorreram entre 1425-1800, este historiador tece à comunidade das Mercês os mais belos elogios: “Embora não se possa duvidar que algumas casas religiosas nem sempre primaram pela rigorosa observância da Regra do seu instituto, deve, contudo, afirmar-se que o convento de Nossa Senhora das Mercês foi em todo o tempo um vivo e eloquente exemplo da prática de todas as virtudes cristãs levadas até à mais heróica austeridade e à mais severa e continua penitência. Era um verdadeiro cenáculo da oração, do recolhimento e do sacrifício, a que voluntariamente se sujeitavam as pessoas que ali iam procurar, como em áspero e longínquo deserto, o seu completo afastamento do mundo e de todos os seus apetecidos e encantadores atractivos. Desde a sua fundação por meados do século XVII, até 1910, em que as suas portas se fecharam, manteve inalteravelmente essa elevada reputação, sem a mais pequena quebra no exacto cumprimento de todos os preceitos impostos pela disciplina conventual. Fazer parte da sua comunidade era o mesmo, pode dizer-se, que adquirir um título de alta e incontestada virtude. E isso constituiu toda a história deste mosteiro” 1137. 2. Cultura 2.1. As letras, música sacra e artes menores As religiosas das Mercês prezaram a sua cultura religiosa e intelectual. Recordamos que as Constituições ou Estatutos recomendavam a existência de uma boa biblioteca que fornecesse os meios para isso necessários. A comunidade teve o cuidado de cultivar a música sacra, a escrita, a aritmética, a caligrafia e as artes menores tais como o desenho, a pintura e a miniatura. 43. Berço do Menino Jesus. Trabalho em madeira de mogno gessada, policromada e dourada, com motivos florais. Tem 39 x 25 cm. Foi, possivelmente, decorado pelas Irmãs das Mercês. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Para o bom exercício das suas funções religiosas, não bastava o conhecimento da leitura e escrita do português. Precisavam de conhecer o latim e, particularmente na sua leitura, deviam ser perfeitas. Dada a frequência das missas cantadas e da solenidade que deviam revestir as Horas Canónicas, as religiosas, além da aprendizagem, do latim cultivavam a música sacra. Os capelães e outras pessoas competentes prestavam à comunidade um auxílio precioso. Entre as religiosas houve algumas com particulares dons musicais. A Madre Catarina da Paixão, falecida em 30 de Agosto de 17061138, “como era grande música e de bela voz, dispôs todas as cerimónias de coro com particular acerto”1139. No coro havia “um 1136 O Jornal, 17 de Janeiro de 1941. Os manuscritos da Madre Virgínia, que o Paço Episcopal conserva cuidadosamente, enquanto aguarda a possibilidade de iniciar o processo de beatificação, dão-nos o conteúdo místico e os aspectos mais profundos e pessoais da sua espiritualidade. 1137 Fernando Augusto da Silva, op. cit., pp. 179-180. 1138 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol.1v. Noronha refere o óbito da Madre Catarina da Paixão a 31 de Agosto de 1707 (op. cit., p. 290). 1139 Noronha, op. cit., pp. 289. 246 rabecão pequeno com a respectiva caixa e um descanso de madeira”1140. Este rabecão pequeno, nome vulgar do contrabaixo de corda, destinava-se a harmonizar o ofício divino. Para aprendizagem das noviças e pupilas, era levado para a sala do noviciado com frequência. Por este motivo lá se encontrava “ um descanso para o rabecão, de pinho pintado”1141. As religiosas eram exímias em desenho e pintura. O Menino Rei, que aqui podemos ver, desenho a tinta da china, colorido, do final do século XVII, é um exemplar feliz. Trabalho harmonioso, feito com muita minúcia e gosto, apresenta-nos o Menino coroado de Rei empunhando o ceptro. A sua autora conseguiu dar ao seu rosto uma expressão de ternura e bondade e até mesmo, pôr no seu semblante um meigo sorriso. É um trabalho pequeno, de12 x 8,5 cm. que ainda hoje as 44. Menino Rei. Desenho e pintura do final do século XVII, de 12 por 8,5 cm, em tinta da china, colorido. Trata-se dum trabalho feito pelas religiosas das Mercês. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conservam no livro Delícias do Coração Cathólico, o Suavísssimo Menino Jesus, e que colocam em lugar de relevo durante a novena do Natal, em gesto de apreço pelas sãs tradições das suas Irmãs das Mercês. O bercinho onde reclinavam o Menino na noite de Natal, de madeira de mogno gessada policromada e dourada e decorado de motivos florais, é igualmente obra primorosa das religiosas. Cremos que as religiosas das Mercês se dedicavam também à montagem de presépios. A senhora D. Maria Carmen de Oliveira Lopes, de 95 anos e em perfeita lucidez, residente no Funchal guarda consigo uma caixa octogonal em pau santo com embutidos de pau cetim avermelhado, que pertencera às Mercês. Segundo testemunham a proprietária e seus familiares, aquele presépio foi oferecido, em gesto de gratidão, à menina Maria Helena de Oliveira, filha do capitão Ferrer de Oliveira que, à volta de 1780 era procurador do mosteiro. A família Oliveira Lopes conserva-o como prenda valiosa, como se de uma relíquia se tratasse. 45. Presépio de caixa octogonal. Além da natividade de Cristo nesta caixa octogonal vêem-se mais treze cenas da vida de Jesus, incluídas a anunciação e o baptismo. Todo ele é trabalho minucioso e harmónico. Esta caixa, de 150 cm. de largura por 70 de altura, quando aberto, encerra catorze cenas da vida de Cristo, desde a anunciação ao baptismo de Jesus no Jordão. As figuras são todas originais. A senhora D. Maria Carmen de Oliveira Lopes, bisneta de Maria Helena de Oliveira, insiste em que eram as Irmãs que faziam estes presépios, que depois vendiam para sua subsistência e também ofereciam a benfeitores. Seriam, além disso, também uma forma de difundir o amor ao Menino de Belém, tão vincado na Madeira. Na opinião da Directora do Museu de Arte Sacra do Funchal, Dr.ª Luíza Clode, as religiosas adquiririam as imagens e procediam em seguida à montagem dos presépios que ficavam com a beleza e a harmonia do exemplar aqui reproduzido1142. 1140 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fol. 26v: Inventário do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês de 1895. 1141 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso, fol. 22v: Inventário do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês de 1895. 1142 Cumpre-nos agradecer à Senhora Drª. Luíza Clode ter-nos dado conhecimento desta peça artística e à Senhora D. Lígia Lopes Brazão, sobrinha da D. Maria Carmen de Oliveira Lopes, a gentileza de nos ter permitido a sua inserção nesta obra. 247 50.Fólio de livro de contas. Este fólio de um dos livros de contas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, que o Arquivo Regional da Madeira guarda, é uma verdadeira perfeição caligráfica. Fotogafia de Rui Camacho, DRAC. As contas, ou seja, a aritmética, também foram alvo da atenção pedagógica da comunidade Os livros de receitas e despesas testemunham que as escrivãs eram competentes, apresentavam as contas com clareza e sempre certas e tinham uma boa formação artística e caligráfica Fazendo um exame destes livros, verificamos que cada escrivã tinha o cuidado de ser clara e metódica. Em geral estão bem ordenados, revelando uma boa cultura e dotes artísticos: boa caligrafia e letras capitulares primorosamente desenhadas. No livro 274, a começar na página 157, as contas correspondentes ao triénio da abadessa Antónia Clara do Sacramento (3 de Agosto de 1784 a 30 de 47. Carta para o escrivão da Câmara Eclesiástica. Esta pequena carta dirigida ao escrivão da Câmara Eclesiástica, escrita pela abadessa, é um belo exemplar de perfeição caligráfica. Revela um bom domínio do português e dons artísticos. É também um belo testemunho de apreço pelo prelado diocesano. Reprodução de Carlos Fotógrafo. Janeiro de 1788), ali lançadas pela escrivã Ana Margarida de São Joaquim, aparecem com tal perfeição, beleza caligráfica e método, que aquelas páginas são uma verdadeira obra prima. A Irmã Ana Margarida era de facto um talento artístico. Também as cartas dirigidas a Sua Majestade, ao prelado da diocese, ao deão, ao escrivão da Câmara Eclesiástica e a outras entidades têm boa apresentação e são reveladoras de competência e formação artística. 2. Confecção de paramentos litúrgicos e bordados As religiosas dedicavam-se também à confecção de paramentos e aos bordados. Os paramentos podiam destinar-se ao mosteiro ou a capelas e igrejas. Nos bordados devemos distinguir os trabalhos destinados ao culto e outras confecções para fins diversos. A matéria prima para estes trabalhos era habitualmente a seda e o linho. Os livros de contas fazem referência à compra e oferta de linho e de estopa e ao pagamento pelo trabalho de teias1143. Da Fajã da Ovelha o mosteiro recebia todos os anos uma certa quantidade de linho que era oferecido pelo vigário. Quadro nº.39 - Consumo de linho e estopa Ano Quantidade Forma de aquisição 1727 1728 1737 1773 1784 1785 1786 20 varas de pano de linho 10 varas de pano de linho 20 libras de linho 45 libras de linho 30 libras de linho 33 libras de linho 28 libras de linho Comprado a 166 réis a vara Comprado a 100 réis a vara Oferta do vigário da Fajã da Ovelha Oferta do vigário da Fajã da Ovelha Oferta do vigário da Fajã da Ovelha Oferta do vigário da Fajã da Ovelha Oferta do vigário da Fajã da Ovelha Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 15 e 18v;L 273, fol. 7; L 274, fols. 63, 157, 160v, 164v, 169 e outros. 1143 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 18v. 248 As religiosas trabalhavam o linho com o qual confeccionavam alvas, roquetes e toalhas de altar. Gastavam-no também na roupa da comunidade, particularmente nos toucados1144. As peças litúrgicas de que fizemos menção, eram, depois de confeccionadas, bordadas com gosto e arte. O actual mosteiro de Nossa Senhora da Piedade guarda, com empenho, um roquete, não de linho mas de tule, com bordado da Madeira: bastido, cordão, caseado, garanitos, pastinha e richelieu. Uma verdadeira maravilha. Segundo o testemunho de religiosas antigas, este trabalho saiu das mãos habilidosas das suas Irmãs das Mercês, que eram peritas na confecção de paramentos litúrgicos destinados às igrejas do Funchal e de outras paróquias. Estes paramentos dos séculos XVII-XIX eram, geralmente, bordados a ouro e a matiz sobre seda, linho e seda, gorgorão de seda, lã e ouro e lhana de ouro. Pelo enxoval do Menino Rei das Mercês, que os mosteiros madeirenses de hoje, guardam com a máxima estima, se vê o requinte com que bordavam a ouro e a matiz, a harmonia das cores e do desenho, a beleza do conjunto. Consta o enxoval ainda existente de seis vestidos das cores litúrgicas: branco, verde, vermelho, roxo e azul, uma faixa bege com galão dourado, uma colcha de berço de damasco vermelho com galão, envolta de renda, quatro camisinhas brancas com renda e “bordado madeira”. Todos estes conhecimentos, que exigiam aprendizagem cuidadosa e metódica, tinham as religiosas o cuidado de transmiti-los às candidatas, de quem esperavam futuras religiosas competentes. 1144 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 157. 249 CAPÍTULO VI VIDA QUOTIDIANA 1. O trabalho 1.1. O cuidado das doentes Entendia São Francisco que para cuidar do Irmão doente, se fosse necessário, se vendessem os vasos sagrados. Santa Clara de Assis, como São Francisco, teve pelas suas Irmãs doentes um verdadeiro culto. Por isso, quer “que sejam tratadas com caridade e misericórdia, que nada lhes falte, que todas as Irmãs cuidem delas e as sirvam como desejariam ser servidas, caso se encontrassem na mesma situação”1145. Mais diz: “é bem que (...) possam usar travesseiros de penas e, em caso de necessidade, possam usar pantufas e meias de lã”1146. As religiosas das Mercês assumiam com fraterno carinho as suas doentes e idosas, às quais nada devia faltar. Pelos livros de contabilidade se detecta o amor e a solicitude de que eram alvo. Em certos meses e até em certos anos, as despesas com as doentes eram sensivelmente metade das havidas com a comunidade. Entre os anos 1764-1790, em que houve muitas religiosas idosas e doentes, as despesas da enfermaria foram os maiores gastos. Nos anos de 1765, 1766 e 1782 atingiu quase os dois terços. Quadro nº.40 – Despesas com as doentes Ano Comunidade (réis) Doentes (réis) 1727 382.300 136.400 1765 326.850 248.800 1766 294.000 158.000 1768 263.900 127.390 1774 266.715 112.760 1782 194.200 124.800 1784 252.850 109.400 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, 273 e 274. Para as doentes se adquiria sempre o necessário: leite, azeite doce, manteiga, carne de vaca, frango, galinha, queijo, açúcar branco1147 e tudo o mais que fosse preciso para a sua saúde. Para elas faziam-se doces especiais para que, nos dias de festas, também pudessem apreciar as boas iguarias. Era a delicadeza, a caridade fraterna. Entre os benfeitores do 1145 Cf. RCL,VIII, 12-15, in FF II, p.56. RCL, III, 17, in FF II, p. 56. 1147 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fol. 157, 160, 164, 167. 1146 250 mosteiro, houve alguns que deixaram legados em favor da enfermaria. Podemos mencionar o P. João Mendonça e o Dr. José Ferreira Pazes, que deixou uma pensão vitalícia à Madre Ângela de Foligno1148. O mosteiro tinha instalações próprias para as doentes, onde lhes era proporcionado o conforto possível. A enfermaria, espaçosa e bem arejada, preparada para ter nove camas, abria para o claustro, podendo as doentes desfrutar da beleza do jardim. Dispunha de cozinha privativa, onde tudo se preparava em função das necessidades de cada doente, e de um pequeno refeitório, onde as Irmãs não acamadas podiam tomar as suas refeições. Um armário de castanho de 1,40m de altura e um outro mais pequeno, permitiam a arrecadação das roupas necessárias às enfermas. Duas mesas, uma das quais de casquinha, e uma cadeira de braços, onde as doentes podiam descansar, completavam o mobiliário. Todos os anos era nomeada uma religiosa para cuidar das doentes. Ao manusear os documentos, apalpa-se a ternura, a caridade e delicadeza de que eram alvo!...Até as pupilas gostavam de ajudar na enfermaria e de prestar às religiosas doentes ou velhinhas os seus ternos cuidados. Por exemplo, Isabel Berenguer, filha de José de França Berenguer de Andrade, padroeiro do mosteiro, gostava de lhes prodigalizar as mais fraternas atenções1149. A primeira religiosa encarregada da enfermaria foi a Madre Catarina do Monte Sinai, uma das dezassete religiosas que professaram em 1668, aquando da passagem do recolhimento a mosteiro professo. Como a Madre Catarina não pôde professar como corista, por não saber ler, estava mais disponível para aquele serviço. No ofício de enfermeira “se ocupou até ser de muita idade; mas com tão especial graça, amor e caridade, que servia de grande alívio e consolação às doentes (...), por ser de natural singelo e sempre alegre”1150. “A Madre Joana de Santo António, filha de Jorge Andrade Correia e de sua mulher D. Joana de Menezes, pessoas principais da primeira nobreza desta cidade (...), na caridade de enfermeira foi tão ávida que, por não faltar na assistência das doentes”1151, se deixou adoecer gravemente. Morreu em 1680. Da Madre Sancha Maria da Santíssima Trindade, falecida em 1854, referiu a escrivã Ana Joaquina das Mercês, no Livro de Óbitos: “sempre se exercitou gostosamente em todos os trabalhos (...), e era de muita caridade especialmente com as enfermas”1152. Para conforto espiritual das religiosas doentes, permitia a Regra de Santa Clara “que o confessor entrasse para distribuir a comunhão, administrar a Santa Unção (...) e, por ocasião das exéquias, no caso de uma celebração eucarística”1153. Em 1857 ou 1858, a Madre Ana Ifigénia dirigiu-se ao Núncio Apostólico de Lisboa, solicitando mais uma graça para as suas doentes: a celebração da Eucaristia na enfermaria nos domingos e festividades. Ouçamo-la: “Algumas religiosas, por idade avançada e moléstias crónicas, não podem já vir ao coro a fim de assistir ao Santo Sacrifício da Missa, privadas assim desta consolação nos domingos e festas da Santa Igreja, com bastante mágoa, não somente das mesmas, mas ainda da própria enfermeira, que lhes deve assistir”1154. A dar força ao seu pedido, referia a Madre que na enfermaria havia “um altar com toda a decência que exige a celebração do Santo Sacrifício”, sobre o qual estava um nicho com um crucifixo de marfim, uma imagem de Nossa Senhora do Rosário e uma outra de São Lúcio. A autoridade eclesiástica acolheu o pedido e pouco tempo depois o mosteiro foi autorizado a que o sacerdote e o acólito entrassem na clausura para as 1148 AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa dos rendimentos (...),que repartidamente se pagam pelos meses do ano; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol.221v; L 274, fols. 12, 14, 62, 145, 182, 191 e outros mais. 1149 Noronha, op. cit., p. 299. 1150 Noronha, op. cit., p. 292. 1151 Noronha, op. cit., p. 291. 1152 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbito (...), fol. 3. 1153 RCL, XX, 12, in FF II, p. 62. 1154 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, docs. avulso: Carta da Abadessa Ana Ifigénia de Santo Elesbão, 1857 ou 1858 e Carta do Núncio Apostólico para o Bispo do Funchal, de 25 de Setembro de 1858. 251 celebrações referidas. A autorização era válida para os “confessores do Convento (...) e qualquer outro sacerdote da sua escolha”1155. As Irmãs doentes eram um tesouro, a que a comunidade prestava a máxima atenção como mandava a caridade cristã. Que grande consolação para aquelas Irmãs velhinhas ou doentes, a veneração, o amor fraterno de que se sentiam alvo!...Que benfazejas eram as mãos carinhosas da enfermeira desvelada e boa!... 1.2. Trabalhos domésticos Como já tivemos ocasião de dizer, as religiosas das Mercês não tinham criadas ao seu serviço. Elas próprias assumiam todos os trabalhos domésticos: limpezas, cozinha, cuidado do refeitório, da capela, da portaria, da enfermaria, cozer o pão, cuidar da roupa da comunidade e da capela e outros mais. O mosteiro devia estar sempre limpo, com a máxima ordem, e nisso punham o maior empenho. Viver do trabalho e do auxílio dos fiéis, não era habitual nos mosteiros da época. As religiosas das Mercês, no entanto, haviam feito, voluntária e evangelicamente, essa opção. Os trabalhos domésticos eram distribuídos por todas. Alguns, como o serviço da cozinha, ia passando rotativamente pelas diversas religiosas. Habitualmente estavam duas em cada semana, segundo informa Noronha nas Memórias Seculares Eclesiásticas. Este autor refere o espírito de sacrifício da Madre Joana de Santo António “nas semanas em que estava na cozinha (...)”1156. E, falando de Maria de São José, pupila que aguardava a idade de entrar no noviciado, diz que “servia na cozinha e em todos os ofícios humildes, com particular gosto, para o que rogava à vigária a pusesse muitas vezes nestas ocupações”1157. Certo dia, conta Noronha, uma noviça, Catarina de Sena, “de natural robusto e ânimo varonil”, porque fora convidada à moderação nas penitências a que queria entregar-se, preparava-se para deixar o mosteiro, desejando, por humildade, ir oferecer-se, como criada no mosteiro da Encarnação. Foi então que a Madre Isabel Francisca de São José a fez reflectir, dizendo-lhe “que o ofício de criadas o exercitavam as religiosas desta casa”1158. Com a excepção dos cuidados de limpeza, asseio e decoração em todo o mosteiro, a zona de trabalho situava-se no rés-do-chão, em volta do pátio interior ou claustro. Ali se encontrava o forno de cozer o pão, a cozinha, com “um fogão de ferro de um lume, forno e caldeira, tendo 1 metro de comprimento, 0,70 metros de largura e 0,32 d’alto”1159, as lojas, onde se guardava a lenha e a giesta, a casa da farinha, a despensa, com uma pequena cozinha, onde se preparavam alguns alimentos ou sobremesas que não precisavam de fogão1160. Assim se aliviava um pouco o trabalho das cozinheiras da semana. Em comunicação com a cozinha ficava a casa das hóstias, com um fogareiro de cantaria, que trabalhava a giesta1161. A sala tinha o mobiliário necessário para as confeccionar e guardar enquanto não saíssem para as igrejas: dois armários, sendo um de madeira do Brasil, com um metro de largo, e outro de pinho, com um metro e trinta; duas mesas de pinho, dois bancos e alguns estrados de til; três prateleiras para arrumação de todos os materiais e 1155 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc avulso : Carta da Abadessa (...), de 25 de Setembro de 1858. Noronha, op. cit., p. 291. 1157 Noronha, op. cit.,, p. 299. 1158 Noronha, op. cit., p. 298. 1159 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. avulso : Inventário de Setembro de 1895. 1160 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Planta do extinto mosteiro, levantada por Joaquim António de Carvalho, em Setembro de 1895. 1161 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 41, 42, 43, 58, 224 v, 225; L 247, fols.. 20 v, 42 v, 157 v, 158, 161 v, 169 e outras. 1156 252 objectos necessários àquele trabalho1162. As religiosas gastavam todos os anos dez alqueires de trigo na confecção de hóstias1163. Toda esta zona de trabalho abria para o claustro, onde dois jardins, com um tanque circular ao centro de cada um, davam beleza àquele recanto. Alguns trabalhos, como os da sacristia e capela, enfermaria, refeitório, arranjo da roupa, serviço da portaria, confecção de hóstias e outros mais, eram distribuídos pelas religiosas todos os anos, enquanto outros, como por exemplo o serviço da cozinha, passava por todas rotativamente. Duas religiosas em cada semana assumiam esse trabalho fraterno. Para além destas tarefas domésticas, dedicavam-se ao bordado, pintura, miniatura, de que falámos ao tratar da Cultura, trabalhos especializados, que exigiam aprendizagem e dons específicos. 2. A cozinha 2.1. A alimentação quotidiana A alimentação era sóbria, embora houvesse a preocupação da conservação da saúde das religiosas. Com as fracas, as doentes, as jovens ou as idosas, havia a máxima atenção. A base da alimentação era o pão, amassado no mosteiro, no qual, se fosse necessário, se misturava um pouco de cevada. Nos livros de contas aparecem referências à conservação e arranjo dos fornos1164 e à compra de lenha e de giesta para cozedura do pão, para a cozinha da comunidade e da enfermaria e a confecção de hóstias1165. Por vezes as escrivãs registam alguns carretos gratuitos, ofertas feitas ao mosteiro. Nos anos em que compravam trigo, se não na totalidade, pelo menos em grande parte, a aquisição deste cereal representava a maior despesa nos gastos alimentares. O preço do moio dependia das boas ou más colheitas e da época da compra. Por isso, a comunidade, que habitualmente comprava um moio por mês, a partir de 1750 passou abastecer-se de maior quantidade nos meses do verão, época em que era mais em conta. Os preços, que em 1737 oscilavam entre os 300 e 450 réis, passaram, em 1750 e anos seguintes, para a ordem dos 400 a 600 réis o alqueire. Quadro n º.41 - Compra de trigo Agosto/Ag. Quantidade/alq. Valor/réis 1737-1738 1739-1740 1745-1746 1746-1747 1747-1748 1749-1750 1750-1751 1751-1752 1752-1753 1753-1754 1754-1755 1755-1756 1756-1757 612 612 685 720 538 650 611 370 600 720 690 234.350 255.000 319.000 309.000 207.000 288.000 244.000 165.000 206.500 255.400 340.000 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 14 1162 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso, fols. 16-17: Inventário de Setembro de 1895. 1163 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 1-44 v, 153-156, 163v, 168, 176, 182, 198v. 1164 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10. Em Novembro de 1725 a comunidade pagou mil réis pelo conserto de um forno e em Dezembro do mesmo ano, mil e duzentos réis (fol. 10). 1165 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols.. 10, 11, 12 e outros; L 273, fols.. 14, 15, 16, 41, 42, 43, 58, 225 e outros; L 247, fols. 20, 20v, 36, 42v, 157, 160, 164, 167, 204 v e muitos outros. 253 - 44 e 111-115v. Este trigo gastava-se no fabrico do pão, como vimos dizendo, na confecção de bolos e doces de qualidades diversas, no cuscuz e também nas hóstias. O gasto médio anual rondava, no século XVIII, pelos 600 a 700 alqueires. O arroz aparece com muita frequência nos livros de contas da comunidade1166. Não temos dificuldade em afirmar que, depois do trigo, o arroz foi o cereal básico na alimentação das religiosas das Mercês. Era aquisição mensal e também oferta frequente dos benfeitores. No mosteiro gastavam-se os mais variados produtos: legumes, hortaliças, açúcar branco e mascavado, lacticínios, peixe, carne, frutas, cebolas, alhos, sal, vinagre, especiarias e outros mais. As hortaliças não aparecem muito discriminadas nos livros. Apenas encontramos referidas a couves, nabos, repolhos e abóboras, quer compradas quer oferecidas. Na pequena cerca do mosteiro também se cultivavam hortaliças. Aparece algumas vezes averbada a compra de semente de couves para a horta. Gastava-se também inhame e frutas de várias qualidades. Entre os legumes aparecem com frequência os grãos pardos, grãos brancos, feijão, ervilhas e lentilhas brancas, que normalmente se compravam aos alqueires para consumo ao longo do ano1167. O azeite, para consumo e para alumiar, era comprado1168 e muitas vezes oferecido1169. Além do azeite vulgar, gasto na cozinha, comprava-se azeite doce, de melhor qualidade, para as doentes, bem como azeite de peixe1170. O leite comprava-se raríssimas vezes, e sempre destinado às doentes. Porém, o uso da manteiga era frequente. Adquiria-se para as doentes e a comunidade. Os bolos e algumas iguarias levavam a maior fatia dessa aquisição1171. O queijo adquiria-se sobretudo pelo Natal1172. Como acompanhamento consumia-se peixe, ovos e carne, cuja compra se fazia mais ou menos mensalmente. No arquipélago da Madeira havia quatro centros piscatórios de particular importância: Câmara de Lobos, Paul do Mar, Machico e Porto Santo. O mosteiro consumia peixe de Câmara de Lobos, normalmente comprado na portaria e muitas vezes oferecido. As escrivãs poucas vezes descriminam as variedades de peixe consumido pela comunidade. Apenas encontramos mencionado o bacalhau1173, o salmão1174, o arenque1175 e o cherne, que se pescava a noroeste do Porto Santo1176. Contudo, conhecendo-se as diversas espécies de peixe então consumidas pela população e nos outros mosteiros do Funchal, poderemos concluir que também gastariam pargo, chicharros, sardinha e atum fresco, fumado e salgado, até porque as escrivãs fazem algumas vezes frequência a peixe de vários preços e qualidades. O bacalhau era a espécie mais consumida pela comunidade. A sua aquisição era constante, sendo também oferecido com frequência. 1166 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 14, 16, 54, 55, 195, 204, 224 e muitos outros; L 274 fols. 20, 42v, 157, 158, 159, 160v, 161, 162v, 163, 166v, 167v, 168, 169, 204v e muitos outros. 1167 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol. 10 e outros; L 273, fols. 12v, 14, 41, 43, 53 e outros; L 274, fols.. 157v, 160v, 166, 169 e outros. 1168 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 159v, 162, 162v, 164v, 165, 165v, 166, 167, 168, 168v, 169 e muitos outros. 1169 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 7v, 8; L 274, fols.62, 160, 162v, 164, 191 e outros. 1170 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 14, 15, 41, 42, 224v, 225 e outros mais; L 274, fols. 157v, 159v, 161, 161v, 162, 163, 165, 166, 168, 168v, 169 e outros. 1171 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 14, 16, 41, 54; L 274, fols. 157, 157v, 159v, 160v, 162, 164, 164v, 165, 168v, 169 e outros. 1172 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols. 10, 14 e outras; L 273, fol. 42; L 274, fols. 169, 277 e outros mais. 1173 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 15, 16, 41, 53, 224v, 225 e muitos outros; L 247, fols.. 157, 158, 159v, 160, 161, 161v, 163, 165, 166, 167, 168, 169 e muitos outros. 1174 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 167. 1175 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 16; L 274, fol. 158. 1176 Ilhas de Zargo, II, p.84. 254 Os ovos abundavam na dieta conventual. Eram produto alimentar normalmente comprado em cada mês1177 e muitas vezes oferecido. No Natal, Páscoa e outras festividades, o gasto de ovos aumentava consideravelmente, o mesmo sucedendo com a farinha, açúcar e manteiga, por causa da confecção dos bolos, doces, cuscuz e outras iguarias. Na mesa das religiosas das Mercês a carne só aparecia em dias festivos. Compravamse essencialmente aves, de várias qualidades, predominando o frango e a galinha As compras estavam um pouco dependentes das ofertas que habitualmente se faziam à comunidade. As aves consumiam-se no Entrudo do Advento, Natal, Entrudo da Quaresma, Páscoa, festa de Santa Clara, de São Francisco, de Nossa Senhora das Mercês, Imaculada Conceição1178. Na merenda de São Pedro, que normalmente tinha lugar na cerca do mosteiro, gastavam-se, se os houvesse, chouriços, paio ou presunto, que pessoas amigas costumavam oferecer. Em Outubro de 1785, para a festa de São Francisco, a comunidade adquiriu trinta aves de diversos preços e de qualidades1179 e em 1786, para a mesma festividade, o bispo da diocese ofereceu três perus, três patos, três aves e um cordeiro1180. Para as doentes e para as fracas comprava-se vaca fresca, mais ou menos todos os meses, como referem os livros de contabilidade. Esta aquisição destinava-se também, e sobretudo, ao moço, servos e trabalhadores1181. Como especiarias, compradas ou oferecidas, em uso na cozinha e sobretudo em doçaria, gastava-se noz-moscada, canela, pimenta, almíscar, cravinho, erva-doce e açafroa1182. 2. 2. Épocas festivas: doces e outros manjares Apesar da austeridade quotidiana, nas festas ao esplendor das liturgias juntava-se a melhoria das refeições. Os bolos e outras iguarias, que sempre apareciam no Natal, Reis, Páscoa, Espírito Santo, festas de Nossa Senhora, Santa Clara, São Francisco, São José, São Lúcio, São Caetano, São João e outras mais, preparavam-se com a devida antecedência. Contudo, nas Mercês, não havia a profusão dos bolos confeccionados nos outros mosteiros do Funchal. Havia moderação. Confeccionavam-se para a comunidade, para as visitas e também para ofertas a pessoas amigas e benfeitores. Na sua confecção, além de farinha de trigo, muito açúcar e ovos, gastava-se mel, melaço, leite, manteiga, especiarias, nozes, amêndoas, passas, erva-doce e outros ingredientes. Os livros de contas não são pródigos quanto à variedade de doces, bolos e outros manjares confeccionados. Apenas fazem menção de sonhos1183, rosquilhas1184, arroz-doce e cuscuz1185. Sabemos, no entanto, pela tradição que se conserva no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, que também faziam broas de mel e cavacas. As rosquilhas, cavacas e broas de mel, dado que eram feitas no forno do pão e se conservavam por muito tempo, confeccionavam-se em grande quantidade. Nelas se gastavam, de cada vez, alguns alqueires de trigo1186. Nas cavacas utilizava-se simplesmente farinha e ovos. Uma vez saídas do forno, eram metidas em calda de açúcar que as tornava mais apetitosas. Nas broas utilizava-se farinha, açúcar, ovos, manteiga, melaço, soda e raspa de 1177 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 20, 157, 159v, 162, 164, 164v, 165, 165v, 166, 167 e 168. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols. 10, 13, 14v, 17v; L 273, fols. 4, 15, 42, 213, 213v, 214, 214v, 224v; L 274, fols.. 162, 164, 165, 167, 169 e outros. 1179 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 160. 1180 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 168v. 1181 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 157, 157v, 158, 159, 159v, 160, 160v, 161, 161v, 162, 162v, 164, 164v, 165, 165v, 166, 166v, 167, 168, 168v, 169 e muitos outros. 1182 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 12v, 41, 42, 155, 187v, 196, 204v; L 247, fols. 20, 160v, 162v, 157, 165, 167, 167v e outros. 1183 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 157. 1184 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 182 e 198. 1185 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 169, 176v, 182, 198 e outras. 1186 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 182 e 198. 1178 255 limão. As rosquilhas, muito trabalhosas, levavam farinha, manteiga, açúcar, água, uma pitada de sal e fermento de padeiro. Uma vez entradas no forno, o tempo da cozedura era calculado pela reza do terço. Quando terminasse esta oração, as rosquilhas estavam cozidas e louras, prontas a sair. Nos sonhos gastava-se farinha, açúcar, ovos, casca de limão e fermento. Faziam-se para a comunidade, visitas e benfeitores. Quadro nº.42- Consumo de trigo em bolos e outras iguarias(alqueires) Variedades e sua finalidade Anos (ref. Dezembro) 1764 1765 1766 1767 1785 1786 1788 Cuscuz (religiosas e moços) 12 14 Rosquilhas (religiosas, visitas e benfeitores) 32,5 20 Bolos (benfeitores) Bolos e iguarias (Natal e mais festas) 42 47 40,5 82 80 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 1- 44v e 157-203. 12 35 1789 1790 12 20 18 37 6 16 15 1793 10 22 28 A cada época ou festividade estava ligada uma determinada especialidade. Assim, no Entrudo do Advento, na Quaresma e na festa de Nossa Senhora da Conceição, não faltavam os sonhos e no Natal sempre havia bolos de mel, carne de vinho e alhos. No domingo de Ramos e festa de São João, estava preceituado o arroz doce e na Páscoa o chocolate. O cuscuz era prato da festa de Nossa Senhora da Conceição e Espírito Santo. Fazia-se para a comunidade e para os servos. No dia de 15 de Janeiro, festa de Santo Amaro e fim das festividades natalícias, acabavam as doçarias. Era “o dia de varrer os armários, impondo-se a obrigação de consumir nessa data o que restava da Festa”1187. As religiosas das Mercês viveram esta curiosa tradição que as suas Irmãs do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade ainda conservam, embora sem o radicalismo outrora habitual. 3 . Convívio fraterno 3. 1. No seio da comunidade As religiosas, que habitualmente viviam em silêncio, tinham necessidade de momentos de descontracção. Por isso, em hora determinada, a comunidade reunia-se para convívio fraterno. Era hora de expansão, de alegria, de comunhão familiar. Este convívio ou recreio tinha lugar em sala própria, situada no segundo andar, muito perto da enfermaria. Nele tomavam parte todas as religiosas, inclusive as doentes, se a sua saúde lho permitisse. As Irmãs, que durante o dia viviam recolhidas, em união com o Senhor, expandiam-se agora à vontade. A alegria franciscana, sã e espontânea, reinava naquele ambiente simples. Com os cânticos, por vezes acompanhados de instrumentos musicais, misturavam-se as anedotas, as histórias, as mais variadas formas de partilha. Por vezes entretinham-se com qualquer trabalho manual: renda, bordado, confecção de flores e trabalhos em linho. Quando as religiosas o queriam e o tempo o permitia, o recreio tinha lugar no claustro ou na cerca e, então, era quem mais corria e se expandia. Por um relatório de 1782, do engenheiro Villavicêncio, mestre das obras reais, se sabe que as pessoas chegavam a “abrir buracos e encostar escadas (...) ao muro (...) para ver as religiosas quando fazem procissões e divertimentos”1188. Donde se infere que, tanto as procissões que tinham lugar no jardim, como 1187 Ilhas de Zargo, II, p. 518. Na Madeira de outrora e em certas localidades ainda hoje, “no dia 14, à noite, o povo percorria as casas da família e de conhecidos, onde a abastança ou parcimónia existissem como virtudes peculiares. Reuniam-se aos grupos, apetrechados com uma vassoura e um espanador, símbolos da limpeza doméstica, e assaltavam despensas e adegas, refastelando-se até de manhã. A última das casas visitada era a mais sacrificada, porque pagava com algumas galinhas a canja de despedida, sobre a madrugada” (p. 518). 1188 ARM, Governo Civil, L 520, fols. 10 -12 : Relatório do capitão engenheiro António Villavicêncio, mestre das obras reais, de 5 de Janeiro de 1782. 256 os divertimentos a que as Irmãs se entregavam nas horas de convívio, se viviam com tal alegria e entusiasmo, que chegavam a despertar a curiosidade dos vizinhos. Em certas festividades de santos populares como São Pedro e São João, as religiosas costumavam recrear-se na cerca onde algumas vezes merendavam. A festividade de São João era também o aniversário da profissão da Madre Brites da Paixão, que a comunidade sempre recordava e festejava com amor. Haviam passado uns cem anos. Por 1830 lá estavam na cerca mais uma vez, lembrando com carinho aquela sua Irmã que tão virtuosa fora. A Irmã Ana Bárbara da Piedade, ainda nova, mas já paralítica, bondosa e cheia de espírito fraterno, sabendo que os momentos de lazer que a comunidade passava lá fora eram deveras agradáveis “ permitiu à enfermeira que acompanhasse as outras irmãs no recreio. Foi então que, encontrando-se sozinha, invocou com fé e confiança a Madre Brites da Paixão e o milagre deu-se. Saltou da cama e depois de vestir o hábito, assomou à janela da enfermaria que dava para a cerca. Rapidamente todas se juntaram ao pé dela escutando e fazendo perguntas1189. Nesse ano, o dia de S. João foi vivência bem original. 3. 2. Relacionamento com o exterior Com as visitas dos familiares, amigos e benfeitores, havia muita comunhão e transparência e, certamente por isso, todos saíam felizes e cheios de gratidão. Estas visitas tinham lugar no locutório e aconteciam especialmente nas épocas festivas: Natal, Páscoa, Santa Clara e outras, pois durante a Quaresma e o Advento as religiosas privavam-se deste convívio por espírito de penitência e para viverem em maior recolhimento. Nessas ocasiões o carinho era grande e traduzia-se em gestos de delicadeza como era a oferta de bolinhos, confeccionados pelas religiosas ou pequenos presentes, como sinal de gratidão por atenções recebidas. Com os benfeitores e autoridades religiosas havia muitas vezes comunicação epistolar testemunhando amizade e gratidão e, sobretudo, prometendo oração. Em carta para a abadessa, a senhora Ana Joaquina Rosa, recordava e agradecia “aquela tarde em que tive o gosto de estar com Vossa Senhoria e juntamente com as mais senhoras. (...) Agora vou agradecer o mimo que Vossa Senhoria nos ofereceu (...)”.E, cheia de gratidão, acrescentava que ainda havia de chegar a ocasião “de mostrar quanto eu e o meu filho vos somos devedores.” Terminava pedindo a oração das religiosas: que “aquele filho me venha a salvamento, para que esta triste mãe possa ter alívio em seu coração”1190. Algumas vezes este convívio com pessoas amigas e piedosas processava-se no interior da clausura. Por costume da época, algumas senhoras, com autorização papal e régia, entravam no mosteiro para nele passarem alguns dias em recolhimento, desfrutando da paz que aí reinava. Se tal costume prejudicou gravemente a disciplina regular nos mosteiros de Santa Clara e de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, e nos de Santarém, Lisboa, Coimbra e outros1191, tal não aconteceu no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês. Ali, não só não sofreu qualquer dano a disciplina claustral mas até acontecia que as senhoras, que tinham o privilégio de nele ficar algum tempo, saíam muito edificadas com a vida das religiosas. Embora sendo escassas estas visitas, referiremos algumas: pelo beneplácito régio de 4 de Maio de 1791, sabemos que D. Isabel Jacinta de Vilhena, obteve uma bula para entrar no mosteiro: “a Rainha, Nossa Senhora, há por bem acordar o seu Real Beneplácito ao breve 1189 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 3, doc. avulso: Manuscritos da Madre Virgínia Brites da Paixão sobre a Madre Brites da Paixão. 1190 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, doc. avulso: Carta de Joana Joaquina Rosa, não datada. Encontra-se inserida, naquele livro, em capilha própria. 1191 Manuel Taveira, ofm, “Bulas referentes à Ordem Franciscanas em Portugal, no Bulário Franciscano”, Itinerarium, 6 (1960) 290-291. 257 incluso, para a suplicante poder entrar nos conventos de que se trata”1192. Pouco depois, em 1796, D. Luísa Francisca Correia Henriques e D. Andreza Gertrudes Bettencourt Atouguia obtiveram um breve de Pio VI, que lhes permitia “entrar no Convento das Mercês do Funchal, com duas matronas a seu arbítrio, três vezes cada ano”1193. Conforme se lê na carta do escrivão da Câmara eclesiástica, o prelado aceitou o breve “em reverência à Sé Apostólica”1194. As referidas senhoras, pertencentes à melhor nobreza da Ilha, ficaram pois autorizadas a “entrar acompanhadas de D. Maria Joaquina de Brito e D. Maria Luísa Correia de Brito, em hábito honesto e decente, na forma declarada no Breve por tempo de dez anos”1195. Estas entradas, como acima ficou dito, foram raras e jamais criaram problemas. É que, nesta casa religiosa, tudo se processava metodicamente. O dia a dia decorria na oração e no trabalho. O viver virtuoso de cada religiosa, a delicadeza, a cortesia, as boas maneiras, o amor fraterno e a simplicidade imprimiam nas visitantes uma viva admiração. Os pedidos de oração eram igualmente ocasião de relacionamento e convívio. O mundo exterior associava as religiosas às suas alegrias e dores e com frequência solicitava a sua oração de louvor e de intercessão. Quando em 1841, o Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Justiça. António Bernardo da Costa Cabral, comunicou ao bispo do Funchal, em nome da rainha D. Maria II, a feliz notícia de que, depois de longas diligências, haviam sido reatadas as relações diplomáticas entre Portugal e a Sé Apostólica1196, o mosteiro foi convidado a cantar “um solene Te Deum (...), a render graças a Deus Nosso Senhor (...), a pedir a conservação da vida da nossa augusta rainha e da sua real família”1197. Em 1852, estando doente a princesa D. Maria Amélia, mandava o prelado do Funchal, D. Manuel Martins Manso: “as religiosas, na igreja desse convento, façam preces por três dias, por suas melhoras, rezando-se a oração pro infirmis, a qual terá lugar nas missas que aí se celebrarem”1198. A 21 de Fevereiro de 1864, as religiosas eram convidadas a dar graças a Deus “pelo solene reconhecimento do Príncipe Real, o Senhor Dom Carlos”1199 e, a 31 de Outubro, “pelo aniversário natalício de Sua Majestade, El Rey, o Senhor Dom Luís Primeiro”1200. Os prelados tinham o cuidado de mandar comunicar às religiosas o que de mais importante se passava e convidá-las a estar em sintonia com cada situação eclesial, social ou política. As cartas de particulares, de familiares e pessoas amigas traziam às religiosas não só pedidos de oração como também o agradecimento por favores recebidos. As religiosas eram auxílio espiritual para a humanidade e em especial para os irmãos mais próximos e mais necessitados. 1192 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de José de Seabra da Silva, com o beneplácito régio, dado em Nossa Senhora da Ajuda, a 4 de Maio de 1791. Esta senhora também estava autorizada a entrar nos outros mosteiros do Funchal. 1193 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de José Seabra da Silva, com o beneplácito dado no Palácio de Queluz, de 9 de Julho de 1796. 1194 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso. 1195 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 1, doc. avulso: Carta de João Venâncio de Vasconcelos, de 9 de Setembro de 1796. 1196 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Carta de António Bernardo da Costa Cabral, do Paço das Necessidades, de 1 de Julho de 1841. 1197 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, doc. avulso: Carta do Paço Episcopal, de 25 de Junho de 1841, do P. José Joaquim de Sá, oficial maior da Câmara Eclesiástica. 1198 AHDF, Conv. Mercês F., doc. avulso : Carta circular da Câmara Eclesiástica, de 7 de Dezembro de 1852. 1199 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular de 21 de Fevereiro de 1864. Por esta agradável notícia, na igreja do mosteiro, como nas demais do Funchal, devia haver “repiques de sinos amanhã, pelo meio-dia e à noite, conformando-se com os sinos da catedral”. 1200 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capilha 3, doc. avulso: Carta circular de Jacinto Joaquim Monteiro Cabral, escrivão da Câmara Eclesiástica, de 30 de Outubro de 1864. 258 CAPÍTULO VII VIDA ECONÓMICA DO MOSTEIRO 1. Fontes de receita 1.1. Dotações feitas à Sacristia Dado que as religiosas das Mercês, em virtude da Regra que professavam, não podiam receber rendas nem ter propriedades1201, qualquer oferta em bens imóveis ou em dinheiro, assim como os dotes das candidatas, eram entregues directamente à Sacristia do mosteiro. Em 1716, Inácia das Chagas e Isabel do Sacramento, membros da Ordem Terceira do Carmo, por escritura de 17 de Julho, feita no tabelião Manuel Rodrigues Pedreira, entregaram à Sacristia do mosteiro “terras semeadas nos sítios do Porão, do Lombo das Laranjeiras e da Grota”1202 na freguesia da Calheta. Estas fazendas, entregues a setenta e um foreiros, revertiam em favor da Sacristia do mosteiro, que recebia o respectivo foro em dinheiro ou em géneros, conforme o estipulado1203. Os quantitativos mais significativos, porém, eram provenientes da dotação que cada religiosa, no acto da sua entrada, fazia à Sacristia. Este dote devia ser dado a juros de 5% ao ano, sendo aplicado o seu rendimento para as despesas da Igreja e do culto divino, e o excedente para as necessidades da comunidade1204. Destes bens fazia-se uma escritura no tabelião. Encontram-se escrituras nos tabeliães José Joaquim de Nóbrega e Matos, Honorato do Monte Falcão, José Joaquim da Silva, Cândido Leal e Lacerda, Matias Gomes de Sousa, José António Pereira Viegas, Sérvulo Nicolau de Sousa Drummond, Jacinto Augusto Pestana, Manuel Rodrigues Pedreira, Francisco Inácio Xavier e Luís d’Oliveira1205. Nestas escrituras constava o valor do capital, o mês em que era vencido o juro e o responsável pela sua entrega. Acontecia muitas vezes que os pais das candidatas não entregavam o dote estipulado e dele ficavam a pagar juros, encargo que à sua morte passava aos herdeiros. Em 1764 a Sacristia do mosteiro tinha cento e dezasseis contratos de juros, dos quais setenta e um diziam respeito a foreiros que trabalhavam as propriedades legadas à Sacristia pelas duas Irmãs Terceiras do Carmo, acima referidas. Segundo D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, os rendimentos de bens pertencentes à Sacristia do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês era constituído por “juros, à razão de cinco por cento, na forma da Ley, que repartidamente se pagam pelos meses do ano”1206 que então totalizavam 5.309.400 réis. Quadro nº.43- Rendimentos da Sacristia (1764) Capital/réis Vencimentoo Juros anuais Contratos de juros (réis) 1201 RCL, VI, 12 e 13, in FF II, p. 54 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1,doc. 1V/B/49/14: Mapa dos rendimentos do Convento de nossa Senhora das Mercês do Funchal, de 27 de Fevereiro de 1861. 1203 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. 1V/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...) 27 de Fevereiro de 1861. 1204 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. 1V/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...) 27 de Fevereiro de 1861; AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa dos rendimentos dos bens pertencentes ao mosteiro das Capuchas de Nossa Senhora das Mercês, da Cidade do Funchal, que se compõem de juros, à razão de 5% na forma da lei, que repartidamente se paga pelos meses do ano. 1205 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14. Mapa dos rendimentos (...) 27 de Fevereiro de 1861. 1206 AHU, Madeira, doc. 264. Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1202 259 100.500 37.900 25.180 64.950 71.700 82.000 165.200 38.100 19.390 62.050 42.500 56.000 19 4 6 11 12 11 13 10 6 10 10 4 765.470 116 Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro 503.600 1.299.000 1.434.000 1.640.000 3.304.000 762.000 387.800 1.241.000 850.000 1.120.000 15.309.400 Fontes: AHU, Madeira, doc. 264:Mapa dos rendimentos (...)que repartidamente se paga pelos meses do ano. Deste capital, contudo, o mosteiro não recebia a totalidade dos juros, 765.470 réis, mas somente 549.900, pois que, conforme se lê no referido documento, alguns arrendatários, num total de dezanove, “não pagavam há muitos anos por falidos,” outros, porque, “morreram com falência de bens”, outros ainda porque simplesmente foram tomando a liberdade de não pagar1207. E o prelado conclui: “este é todo o rendimento que tem a Sacristia do mosteiro das Capuchas de Nossa Senhora das Mercês, desta Cidade do Funchal, e com que se sustentam suas religiosas e mais pessoas da sua obrigação, e com que se satisfazem todas as despesas e gastos do dito convento, como religiosas capuchas da primeira Regra de Santa Clara, não possuem nem herdam bens alguns”1208. D. Gaspar Afonso da Costa Brandão menciona ainda os legados feitos por Luís de Moura, o Dr. José Ferreira Pazes, o P. João Mendonça Vasconcelos e D. Isabel da Ascensão e alguns benefícios régios 1209. Para meados do século XIX, temos um mapa de 27 de Fevereiro de 1861, minuciosa descrição dos rendimentos pertencentes à Sacristia . Quadro nº.44- Rendimentos da Sacristia (1861) Capital 200.000 400.000 461.900 338.760 1.010.000 250.000 60.000 728.000 1207 Juros /réis 10.000 20.000 23.095 16.938 50.500 12.500 3.000 36.400 Proveniência 1 dotação das religiosas 1 dotação das religiosas 6 dotações das religiosas 2 dotações das religiosas 4 dotações das religiosas 2 dotações das religiosas 1 dotação das religiosas 4 dotações das religiosas Mês Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto AHU, Madeira, doc. 264 : Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1209 AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1208 260 300.000 300.000 200.000 2 foros 2 foros 2 fazendas 4.248.660 15.000 15.000 10.000 (géneros) 800 6.900 1 dotação das religiosas 1 dotação das religiosas 1 dotações das religiosas Doação de devotos Doação de devotos Doação de devotos Outubro Novembro Dezembro Agosto Agosto - 220.133 Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilla 1, doc. IV/B/49/14: Mapa de 27 de Fevereiro de 1861. Segundo este mapa, esses rendimentos provinham de vinte e quatro dotações de religiosas e de propriedades doadas por pessoas devotas1210. O mapa de 27 de Fevereiro de 1861 inclui também uma pensão anual por que eram responsáveis os herdeiros de Roque José d’Araújo Viana, que rendia mil réis, e algumas mercês régias, no total de 157.096 réis, concedidas às religiosas. O vencimento destes juros fazia-se ao longo do ano, conforme o estipulado em cada escritura. Segundo o referido mapa, em Março, Maio e Agosto as religiosas recebiam juros de catorze dotações, em Abril e Junho de quatro e das seis restantes ao longo dos outros meses. Daqui se conclui que os arrendatários procuravam entrar com os juros na primavera e verão, quando tinham mais facilidade de venda de produtos agrícolas. 1.2. Legados pios Certas pessoas de sensibilidade religiosa faziam legados pios a casas religiosas ou de beneficência, costume muito generalizado nos séculos XV a XVIII. Essas casas contraíam responsabilidades de ordem espiritual para com os legatários, como atrás ficou dito. Como o mosteiro das Mercês “adoptou a estrita observância da pobreza, não tendo enveredado pela acumulação de bens”1211, muitas pessoas se sentiam movidas a favorecer o mosteiro com estes benefícios. Entre os vários legados feitos em favor do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, pelos quais era responsável a Santa Casa da Misericórdia do Funchal, como detentora dos bens dos legatários, podemos mencionar os legados do Dr. José Ferreira Pazes, de D. Isabel da Ascensão, do P. João Mendonça Vasconcelos e de Luís de Moura. O mosteiro já em 1764 usufruía destes legados, pois vêm mencionados no mapa de rendimentos que o prelado do Funchal enviou naquela data a Sua Majestade. Deles falam igualmente os livros de receitas e despesas do mosteiro. O Dr. José Ferreira Pazes, que legou os seus bens à Santa Casa da Misericórdia, instituiu um legado anual em favor das religiosas, que consistia em: “Sessenta canadas de azeite para as duas lâmpadas de Santo António, tanto do coro como da igreja, e para o dormitório; cera para arder quando se celebrassem as missas no altar do santo, na sua trezena e festas de Natal e da Ascensão; trinta e seis arráteis de cera em pau, para as religiosas fazerem rolos para as matinas da meia-noite; dois almudes e meio de vinho, para as missas da capela que instituiu; cinco mil reis em dinheiro, para se despenderem no ornato do altar do mesmo santo”1212. O mesmo médico deixou também 80.000 réis “à R. M. Ângela de Fulgino, em cada ano, para suas necessidades de saúde e doença enquanto for viva”1213. Esta oferta foi recebida até 1769, ano em que a Madre faleceu1214. 1210 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...) 27 de Fevereiro de 1861. 1211 José Manuel Azevedo e Silva, A Madeira e a construção do mundo atlântico -- séculos XV-XVII, II, Funchal, 1995, p. 934. 1212 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 12, 14, 62, 145, 182, 191 e outros; AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1213 AHU, Madeira, doc.264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1214 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 270, Óbitos (...), fol. 2. 261 D. Isabel da Ascensão fez um legado pio à comunidade, que muito a beneficiou. Destinava-se à aquisição de túnicas das religiosas. O respectivo rendimento era entregue ao mosteiro de três em três anos1215. Os livros de receitas e despesas referem muitas vezes este legado que, por exemplo em 1756, rendeu 81.388 réis1216 e em 1770, apenas 78.838 réis1217. Do legado do Dr. João Mendonça e Vasconcelos, conforme o estipulado pelo legatário, 4.000 réis revertiam em favor da enfermaria e dois mil destinavam-se ao lava-pés do domingo da Paixão1218. Luís de Moura e a sua mulher deixaram o rendimento da sua “terça” para ajuda da compra dos hábitos das religiosas, esmola recebida de três em três anos, que em Outubro de 1770, totalizou 46.875 réis1219. Deste valor foram retirados 1.650 réis para as nove missas que, cada três anos, deviam ser celebradas por Luís de Moura e sua mulher1220. 1.3. Ofertas certas e incertas Aos rendimentos referidos devemos acrescentar as ofertas certas, isto é, aquelas a que alguns clérigos e leigos se comprometiam, e outras ocasionais, embora bastante frequentes, feitas por voluntários. As ofertas certas, normalmente entregues aos síndicos ou procuradores do mosteiro, faziam-se Quadro nº.45-Ofertas certas e incertas (1726-1784) Agosto/Agosto Ofertas certas/réis 1726-27 1727-28 1728-29 1738-39 1739-40 1740-41 1744-45 1745-46 1746-47 1747-48 1748-49 1749-50 1750-51 1751-52 1752-53 1753-54 1754-55 1755-56 1756-57 1757-58 1758-59 1765-66 1768-69 1769-70 1773-74 1774-75 1775-76 1776-77 1777-78 1778-79 1779-80 1215 512.620 483.500 460.410 634.525 631.650 712.450 612.700 556.800 667.700 744.600 797.900 936.282 754.400 740.100 797.375 788.000 757.540 781.250 881.940 896.150 952.200 652.700 645.600 700.500 413.750 339.900 333.350 385.300 243.100 339.650 275.500 Ofertas incertas/réis 60.050 69.550 27.900 33.800 49.490 23.000 29.000 39.600 27.000 29.250 86.400 46.900 108.900 60.800 54.250 58.400 31.000 48.000 19.350 24.300 23.500 68.500 41.550 38.150 78.250 98.400 123.850 52.200 86.450 82.100 101.550 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 62, 136, 145, 167 e outros. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v. 1217 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 62. 1218 AHU, Madeira, doc. 264: Mapa dos rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. ; ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol.. 144, 189 e outros mais. 1219 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v. 1220 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 221v; L 274, fols. 20, 136, 145 e outros. 1216 262 1780-81 1781-82 1782-83 1783-84 340.550 300.800 309.950 341.000 98.850 94.250 136.000 85.800 Fonte: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fol.1-20 e ss, L 273, fols. 1-239 e L 274, fols.13-156v. em dinheiro e em trigo, e as incertas igualmente em dinheiro e nos mais diversos géneros: trigo, hortaliças, legumes, manteiga, bacalhau, arenque, carne de vaca, azeite, aves, carretos de giesta e de lenha, cera para iluminação e o culto divino. Até meados do século XVIII, as ofertas certas e incertas foram sempre em ritmo de crescimento, atingindo o seu valor máximo na década de cinquenta, começando então a declinar. Dos 512.620 réis recebidos como ofertas certas de Agosto de 1726 a Agosto de 1727, passou -se para 952.200 réis, recebidos em 1758-1759. No período de três décadas, o total destas ofertas quase duplicou. O facto tem a ver com o aumento de proventos e a abundância que caracterizou a primeira metade do século XVIII. A partir da década de sessenta, as ofertas certas em dinheiro começaram a diminuir porque alguns dos benfeitores habituais passaram a assumir o fornecimento de trigo. De facto, a partir daquela década, os livros deixaram de apresentar a compra do trigo. As ofertas em dinheiro mantêm mais ou menos o mesmo ritmo, ao longo de todo o século, como mostra o quadro 45. Na época das colheitas havia o costume de se recolherem “nas eiras e lugares” ofertas para o mosteiro. As pessoas encarregadas dessa recolha eram portadoras de um alvará passado pelo prelado: “pelo presente alvará concedemos licença (...) para que pelas eiras e lugares das freguesias deste Bispado e Porto Santo, se possam receber as esmolas que os fiéis voluntariamente quiserem oferecer”1221. Para evitar qualquer abuso, era o pároco que anunciava a presença dos encarregados e fazia a leitura do alvará. Quadro nº.46- Ofertas em trigo (alqueires) Ano Ofertas certas incertas 1765 1769 1770 1774 1775 1776 1777 1778 1779 1780 1781 1782 1783 1784 1785 1786 1790 1791 462 477 573 661 613 361 279 237 320 500 482 322,5 389 403 623 795 608 702 133 130 100 147 199 187 247 151 35 161 115 138 - Despesas Sobras 454 539 608 488 467 431 365 494 521,5 503 475,5 467 491 623 795 554 665 8 71 95 273 146 47 60 73 139,5 14 8 37 50 54 47 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 6 -193. Quadro nº.47- Ofertas em géneros (não incluído o trigo) Agosto/Ag Oferente Ofertas .1221 AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, doc. avulso: Alvará do Bispo do Funchal de 13 de Julho de 1800. 263 1737-381222 Reverendo Bispo General da Ilha Chantre da Sé Provedor da Fazenda Vigário de S. Roque Dr. António Mendes de Almeida Reitor do Colégio Vários 1738-391223 Cura da Ponta do Sol Reverendo Bispo D. Teresa de Campos Senhor Nicolau Chantre da Sé Dr. António Henriques Francisco Luís de Vasconcelos D. Guiomar 1785-861224 Excelências da Fortaleza Tomé José João Pestana Do Síndico 1786-871225 D. Luísa Francisca Correia D. Isabel Maria de Sá José Faria Paulo Malheiro P. Francisco Plácido Do Paul D. Guiomar José de Faria Freguesia de N. S. da Graça D. Joana Teresa de Sá Do Síndico Excelências da Fortaleza D. Isabel Maria de Sá D. Antónia Rosa Governador da Ilha João Pestana Colégio Tomé José Peixe (várias vezes) Dois cestos de peixe Um cordeiro, pescadas e uma arroba de vaca Um cherne Dois barris de vinho para missa Uma cordeira Um carneiro, um queijo e seis línguas Duas arrobas de vaca, dezoito abóboras, um alqueire de feijões, uma perna de vaca, seis canadas de azeite, seis aves, duas dúzias de coelhos e uma arroba de manteiga Oito cabos de cebolas Uma pescada e uma cordeira Doze abóboras e dois cabos de cebolas Uma arroba e meia de arroz Uma perna de vaca e trinta peixes Um alqueire de feijão e outro de grão Um quintal de bacalhau Uma arroba de açúcar e uma e meia de manteiga, um porco e um saco de feijão Peixe (várias vezes) Treze sacos de milho, um saco de feijão e peixe Peixe Peixe, quatro canadas de azeite, vinte e cinco libras de bacalhau, duas arrobas de arroz e meia de salmão Um cordeiro Cinco alqueires de favas e outros cinco de feijão Peixe (várias vezes) Cinco alqueires de milho Vinte canadas de azeite Três dúzias e meia de abóboras Três dúzias de abóboras, um porco, dois sacos de favas e feijão Vários peixes e uma quantidade de atum Dezasseis aves, quinhentos ovos e oito galinhas Dois barris de farinha e quatro arrobas de açúcar Quatro arrobas de arroz e três da manteiga Dois chernes e vários peixes Quatro alqueires de feijão Um alqueire de feijão Um cherne Peixe Uma perna de vaca e um carneiro Dois sacos de milho Na segunda metade do século XVIII o gasto de trigo diminuiu, dado que, em consequência das leis pombalinas, a comunidade foi decrescendo. De um gasto médio de 672 alqueires por ano, que o quadro 41 nos deixa ver, passou-se para um consumo médio de uns 562 alqueires, com a excepção para o final da década de oitenta em que foram levadas a cabo importantes obras (quadro 46). Com operários e servos gastava-se muito trigo. Em 1785-1786 o consumo ascendeu a 795 alqueires. As ofertas de trigo em grão e, por vezes em farinha, apresentadas ao mosteiro, eram abundantes, pois habitualmente sobrava um certo quantitativo para o ano seguinte. Além do trigo, entre muitos produtos oferecidos à comunidade aparece o arroz, a carne de vaca fresca e seca, aves, peixe, particularmente o bacalhau e o cherne, coelhos, carne de porco, manteiga, açúcar, hortaliças, legumes, especialmente o feijão, lentilhas, ervilhas, favas e também cera e linho. Os oferentes eram os mais diversos: o bispo, o vigário geral, o chantre da Sé, os vigários paroquias, o reitor do colégio de S. João Evangelista, o deão, os síndicos do mosteiro, as Excelências da Fortaleza, o governador da Ilha, o provedor da Fazenda Real e sua esposa, o 1222 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 7v-8. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fols. 9-9v. 1224 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 160-162v. 1225 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 164-168. 1223 264 general da Ilha, o almoxarife, a condessa de Ega, enfim um grande número de pessoas residentes na Ilha e até turistas ingleses. O quadro 47 é uma pequena amostra do ritmo de ofertas feitas ao mosteiro de Nossa Senhora das Mercês. Eram muitas as pessoas que gostavam de contribuir para a sustentação daquela comunidade que a todos acompanhava com a sua oração. 1.4. Mercês régias O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, ao longo dos anos, foi alvo da protecção da Coroa. Aquando da fundação, a rainha regente, D. Luísa Francisca de Gusmão, concedeu-lhe a “ Esmola Anual de dezasseis mil réis, por Alvará Régio de 28 de Novembro de 1676, aplicado para as necessidades das religiosas”1226. D. João V deu ao mosteiro a “Esmola de quarenta mil réis concedida às Religiosas capuchas do Convento de Nossa Senhora das Mercês, por Alvará Régio de 19 de Agosto de 1715, aplicada para o pagamento do ordenado do confessor do convento”1227. Em Julho de 1746, por mandado do Conselho da Fazenda, o mosteiro foi agraciado com oitocentos mil réis para obras e em Agosto de 1752 com mais quatrocentos mil para a mesma finalidade1228. Por alvará régio de 3 de Janeiro de 1752, D. José fez à comunidade a mercê anual “de uma arroba de cera (...), aplicada para a festividade de S. José”1229, certamente obséquio para com o santo do seu nome. Sua Majestade Fidelíssima agraciou o mosteiro com “ dezasseis mil réis, pagos pelos seus almoxarifes”1230e, por provisão do Erário Régio de 7 de Junho de 1784, concedeu-lhe “duas arrobas de cera (...) aplicadas para a festividade do Santíssimo Sacramento”1231. Seu filho D. João VI, “por sua benignidade”, agraciou a comunidade com a “Esmola anual de tinta e seis canadas de azeite, por Provisão do Erário Régio de 26 de Janeiro de 1803” 1232 e em 1819, “com a esmola anual de uma pipa de vinho e um moio de trigo, concedidos por Carta Régia de 28 de Agosto de 1819 para pagamento do sacristão do convento”1233. Pelos livros de receitas do mosteiro verificámos que os benefícios régios se cumpriam: “da Alfândega se pagou neste ano (1782) a esmola de quinze mil oitocentos e cinquenta réis mandada por Sua Majestade”1234; “declaro que neste ano (1791) se receberam da Alfândega nove arrobas de cera que a Rainha Nossa Senhora dá de esmola, duas em cada ano, a esta comunidade e uma para a festividade de S. José”1235. E as transcrições podiam ser mais. 2. Economia interna 2.1.Os livros de receitas e despesas 1226 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27 de Fevereiro de 1861. 1227 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27 de Fevereiro de 1861. 1228 Rui Carita, op. cit., IV, p. 395, nota 620. 1229 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27 de Fevereiro de 1861. 1230 AHU, Madeira, doc 264: Mapa do rendimentos (...), que repartidamente se pagam pelos meses do ano. 1231 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27 de Fevereiro de 1861. 1232 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27 de Fevereiro de 1861; AHDF, Conv. Mercês, F. caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Carta da Junta da Fazenda da Ilha da Madeira para Sua Alteza Real de 12 de Agosto de 1803. 1233 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...), de 27 de Fevereiro de 1861. 1234 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fol. 145. 1235 ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fol. 187. 265 As contas eram lançadas em livros próprios. Na primeira página de cada livro escrevia-se: “ Livro das contas de receitas e despesas, das esmolas certas e incertas, do Convento de Nossa Senhora das Mercês, principiado a (...) sendo Abadessa a Madre (...) e sua escrivã (...).” Como as religiosas das Mercês professavam a pobreza individual e colectiva, não tinham propriedades1236. Viviam, portanto, do seu trabalho e das ofertas da população da Madeira e Porto Santo. Assim instituído, o mosteiro estava entregue à providência de Deus e à generosidade dos irmãos que jamais lhes faltaram com as suas ofertas em dinheiro ou géneros. Estes livros, no final de cada ano, e por vezes de cada triénio, eram enviados ao prelado da diocese para verificação e aprovação das contas. Em 1738 as contas foram aprovadas com “um louvor” e, em 1739, o visitador, que por ordem do prelado as verificou, escreveu: “Aprovo estas contas com o louvor que merecem por sua clareza.” Também em 1740, o mesmo visitador, as aprovou “com louvor pela clareza e boa forma com que vão lançadas neste livro”1237. Em 1743, o apreço do escrivão e secretário da Câmara Eclesiástica pela perfeição detectada, é ainda maior: “E como às sobreditas contas, além de se acharem com toda a clareza neste livro (...) lhes não descubro defeito ou imperfeição alguma, não posso deixar de as aprovar (...) louvando a forma delas”1238. No primeiro ano de governo da Madre Mariana do Sacramento, o louvor estendeu-se também ao conselho da abadessa1239. Se a transparência das contas não fosse total ou qualquer erro se detectasse, o livro era devolvido para revisão, como aconteceu no final do triénio da Madre Antónia Clara do Sacramento, em que as contas apresentavam alguns equívocos. À chamada de atenção de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, respondeu a escrivã, Ana Margarida de S. Joaquim, com a respectiva rectificação e o pedido de desculpa. Já com as respectivas alterações, a 7 de Maio de 1781, as contas receberam a aprovação e a assinatura do prelado da diocese1240. 2.2. Balanços anuais Os livros de receitas e despesas dão-nos o esquema económico do mosteiro. O bispado do Funchal, ou seja as Ilhas da Madeira e Porto Santo, assumiu no momento da fundação a responsabilidade da sustentação das religiosas. Se as ofertas não fossem suficientes, as terras do padroado forneceriam ao mosteiro o dote estipulado: 14 moios de trigo. O mosteiro usufruía de ofertas certas e incertas, de legados pios1241, de benefícios régios1242 e dos juros da dotação das candidata. As despesas ordinárias incidiam na alimentação, carretos de lenha, conserto de objectos domésticos, da bomba e da levada, reparações do edifício, particularmente os telhados e fornos, compras para as doentes, despesa com a igreja, o moço de fora e alguns serventes ocasionais. Até à década sessenta do século XVIII iam aumentando as receitas do mosteiro como nos mostra o quadro 49, mas também as despesas da comunidade cresciam progressivamente dada a subida do custo de vida e o crescimento da comunidade. 1236 RCL,VI, 12-13, in FF II, p..54; ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 48v. ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 82v. 1239 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 273, fol. 190. 1240 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 85. 1241 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, 273 e 274; AHU, Madeira, doc. 264. 1242 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, caixa 2076, capilha 1, doc. IV/B/49/14: Mapa dos rendimentos (...) de 27 de Fevereiro de 1861. 1237 1238 266 O mesmo quadro mostra que havia dificuldade em conseguir um perfeito equilíbrio de contas. Facilmente se compreende que a comunidade se imporia restrições a si própria e viveria com muita Quadro nº.48-Despesa da comunidade, doentes, igreja e servos Ano (Agosto) Comunidade Irmãs doentes 1726-27 1727-28 1728-29 1738-39 1739-40 1740-41 1744-45 1745-46 1746-47 1747-48 1748-49 1749-50 1750-51 1751-52 1752-53 1753-54 1754-55 1755-56 1756-57 1757-58 1758-59 1764-65 1765-66 1766-67 1767-68 1768-69 1769-70 1773-74 1774-75 1775-76 1776-77 1777-78 1778-79 1779-80 1780-81 1781-82 1782-83 1783-84 468.790 (réis) 382.300 417.750 515.690 540.260 610.010 525.920 490.400 583.360 626.200 720.900 801.482 716.950 613.050 673.255 692.500 560.800 642.930 725.650 742.370 702.700 326.850 294.000 331.810 263.900 516.450 505.450 266.715 252.735 272.720 270.490 249.280 293.300 221.700 208.700 194.200 216.350 252.850 75.200 (réis) 136.400 45.720 98.690 93.550 77.500 61.960 75.750 69.440 111.300 119.400 145.150 100.800 123.500 107.050 104.400 114.200 113.120 109.700 119.440 180.400 248.800 158.000 70.450 127.390 97.050 128.800 112.760 95.490 86.060 71.140 47.420 45.400 47.550 67.200 124.800 85.350 109.400 Igreja 57.820 (réis) 81.958 75.250 61.630 51.980 90.450 62.300 36.050 44.370 50.450 50.750 37.280 58.350 63.950 82.170 54.000 118.740 66.350 74.350 57.700 86.650 39.800 49.000 27.000 28.650 11.800 15.450 83.500 5.400 51.650 36.850 7.100 54.850 36.550 84.650 65.000 67.450 15.500 Servos 950(réis) 3000 5.800 10.570 14.850 21.700 6.600 10.200 13.150 13.340 6.200 21.400 4.200 10.500 8.800 16.850 12.840 9.940 25.100 60.700 80.200 82.680 79.800 74.000 72.150 45.575 47.175 50.620 48.870 50.600 36.250 8.050 73.850 48.900 37.850 43.500 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 272, fols. 10,....; L 273, fols. 1-90. sobriedade, o que aliás fazia parte do carisma porque haviam optado. Contudo, o mosteiro nunca conheceu desequilíbrios financeiros como sucedeu em tantos outros. As religiosas, com a necessária moderação nos gastos, conseguiam ir equilibrando as despesas no quotidiano, embora utilizando parte das esmolas da capela, que repunham logo que lhes era possível. Porém, diante de gastos extraordinários, como eram as obras, sentindo-se impotentes para lhes fazer face, recorriam à coroa, que muitas vezes as auxiliou. O edifício primitivo era uma construção modesta e sempre se conservou simples e sóbria na sua arquitectura. Havia, no entanto, que reparar estragos e fazer melhoramentos, quando necessário. Em 1746, sendo abadessa a Madre Mariana do Sacramento, deu-se começo a obras de restauro na igreja e na parte habitacional, de que, no dizer de Fernando Augusto da Silva, “muito necessitava todo o edifício.”1243 As obras continuaram ao longo dos triénios das Madres Maria Teresa da Assunção (1747-49) e Maria de São Francisco (175052). Fizeram-se importantes melhoramentos na igreja, no coro das religiosas, na zona de noviciado e dormitório. Foi também reparado o muro da cerca, como podemos intuir do 1243 Fernando Augusto da Silva, op. cit., p. 181. 267 mandado do Conselho da Fazenda de 20 de Julho de 1746, em que se concederam ao mosteiro “oitocentos mil réis por uma só vez (...) para conserto dos muros da cerca, do dormitório, casa de noviciado e coro da igreja (...)” e em 9 de Agosto de 1752 “mais quatrocentos mil réis, sobre os já concedidos oitocentos (...), para completar o muro ”1244. Contribuiu, pois, o Erário Régio com um milhão e duzentos mil réis para estas obras1245. Na segunda metade do século XVIII, com as leis pombalinas, os mosteiros viram os seus rendimentos diminuídos, suprimidos todos os privilégios e, o que era muito mais grave, impedidos de receber noviças1246. Além disso os rendimentos das dotações, legados pios e outros benefícios em favor do mosteiro, que eram constituídos por juros à razão de 5%, sofriam irregularidades, pois os responsáveis por eles nem sempre agiam conscienciosamente e, outras vezes, como informam os documentos, entravam em falência. Acrescia que, andando o padroado em litígio, as religiosas se viam privadas do trigo que deviam receber das terras que constituíam o padroado. Também as esmolas certas, foram descendo gradualmente, passando da média dos 700 mil réis em meados do século, para os 600, 500 e 400 mil, vindo a estabilizar, a partir de 1776, nos 300 mil réis (quadro 45). As esmolas incertas eram muito oscilantes. Por outro lado, não entrando candidatas, dada a proibição régia de 1764, as religiosas foram adoecendo umas e envelhecendo outras, ficando a comunidade reduzida a uma média de dezassete a vinte membros, desde aquela data a 1795, ano em que o bispo do Funchal foi autorizado a prover os lugares que fossem vagando1247. Ao longo destas três décadas as despesas da enfermaria aumentaram consideravelmente, chegando, em certos anos, como sucedeu em 1765, 1766 e 1782, a exceder metade da despesa feita com a comunidade (quadros 40 e 48). E, porque as religiosas eram poucas e com a saúde debilitada, viram-se na necessidade de recorrer a trabalhadores para a cerca e até a ter uma e por vezes duas lavadeiras, o que aumentou substancialmente as despesas de cada mês. Na década de oitenta, houve Quadro nº.49- Balanços anuais Agosto/Ag. Receita / réis Despesa / réis 1737-38 1738-39 1739-40 1740-41 1741-42 1742-43 1743-44 1744-45 1745-46 1746-47 1747-48 1748-49 1749-50 1750-51 1751-52 1752-53 1753-54 1754-55 1755-56 1756-57 1757-581248 1244 686.765 700.640 749.660 702.350 735.800 736.617 656.780 612.400 710.320 794.950 894.050 997.182 882.300 821.900 869.675 861.400 802.540 839.250 921.700 929.450 999.850 686.765 700.640 749.660 702.350 735.800 736.617 656.780 612.400 710.320 794.950 894.050 997.182 882.300 821.900 869.675 861.400 802.540 839.250 921.700 929.450 999.850 Saldo / réis -50.000 -17.460 -20.000 -16.920 -15.080 -16.000 -15.620 -21.100 12.750 -14.000 -19.000 -20.000 -98.000 -15.000 -14.000 -10.000 -20.490 -19.000 -19.150 Citado por Rui Carita, op. cit., IV, p. 395, nota 620. Elucidário Madeirense, II, p.308. 1246 AHU, Madeira, doc. 260: Ofício do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 16 de Agosto de 1764. 1247 AHU, Madeira, docs. 788 e 789 e 803. 1248 No livro 273, contrariamente ao que sucedia com o 274, a escrivã, servindo-se do dinheiro da caixa das esmolas do sepulcro do Senhor ou do Menino Jesus, igualava as despesas e as receitas. Era uma questão de método , pois o saldo continuava negativo. 1245 268 1764-65 1765-66 1766-67 1767-68 1768-69 1769-70 1770-71 1771-72 1772-73 1773-74 1774-75 1775-76 1776-77 1777-78 1778-79 1779-80 1780-81 1781-82 1782-83 1783-84 1784-85 1785-86 1786-87 1788-89 665.100 652.700 531.900 505.340 687.150 738.650 584.250 595.665 630.950 492.000 438.300 457.200 437.500 329.550 421.750 377.050 439.400 395.050 487.900 426.800 480.350 681.500 1.045.423 965.343 675.550 627.900 511.950 499.740 699.300 721.850 557.660 613.875 620.140 507.550 416.350 461.050 427.350 329.400 429.800 362.750 434.400 432.900 471.550 421.250 531.000 681.500 1.045.423 955.743 -10.450 14.350 19.050 5.600 -12.150 16.800 26.590 -18.210 22.600 -15.550 21.950 -3.850 10.150 150 -8.050 14.300 5000 -37.850 16.350 5.550 -50.650 11.000 9600 Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L. 273, fols.1-293, L 274, fols.1v-182. também necessidade de obras, primeiro no muro pois que estava devassado em vários pontos1249e depois na parte habitacional. Como consequência, apesar do auxílio da Coroa, o primeiro ano do triénio da Madre Antónia Maria da Cruz termina com uma divida de 37.850 réis que é saldada no ano seguinte (quadro 49). No triénio 1784-1787, a Madre Antónia do Sacramento levou a cabo importantes obras, que naturalmente desequilibraram as contas do primeiro ano. Os gastos com os pedreiros e serventes, compra de cal, areia e outros materiais, foram consideráveis. Em 1787 o edifício estava todo caiado, belo e harmonioso. Estas obras foram possíveis graças à moderação nos gastos habituais e à generosidade de quantos contribuíram para elas1250. Para conseguir o equilíbrio das contas as religiosas, com conhecimento e autorização do prelado diocesano, recorriam às esmolas da caixa do sepulcro do Senhor ou do Menino Jesus, onde os fiéis lançavam o seu contributo para a armação do sepulcro da Sexta-feira Santa e das festas natalícias. Havia, porém, obrigação e o cuidado de repor sem demora o valor retirado e, sobre isso, incidiam as recomendações da autoridade eclesiástica. Em 1740 o visitador, quando aprovou as contas, “recomendou à abadessa Maria Teresa da Assunção e sua escrivã, Ângela Maria da Glória que, os cinquenta mil réis que haviam, sido retirados das esmolas do sepulcro do Senhor para equilíbrio de contas, se repusessem “o mais depressa possível”1251. Na primeira metade do século XVIII recorreu-se normalmente à caixa de esmolas do sepulcro do Senhor e na segunda metade à caixa do Menino Jesus1252. As religiosas tiveram, então, de entrar num regime de austeridade, reduzindo os gastos ao mínimo possível para que uma crise económica, como a que se verificava nos outros mosteiros do Funchal, não acontecesse. Não obstante tão agudas dificuldades, as abadessa foram conseguindo equilibrar as contas de cada ano,. Podemos mesmo afirmar que, ao longo de duzentos e quarenta e três anos, o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês não conheceu crises económicas. 1249 ARM, Governo Civil, L 520, fols. 10-11 : Relatório do capitão engenheiro João António Villavicêncio, mestre das obras reais, feito no Funchal a 5 de Janeiro de 1782. ARM, Conventos, Conv. Mercês, F., L 274, fols. 160-171. 1251 ARM, Conventos, Conv. Mercês F. , L 273, fols 48v. 1252 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fols. 45v, 58, 66v, 73, 79, 93v, 101, 126, 144, 150v, 156, 159 e 176. 1250 269 CAPÍTULO VIII PATRIMÓNIO ARTÍSTICO O mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, embora modesto, tinha um património artístico de apreciável valor, na sua maioria oferta de amigos e de familiares das religiosas. Aquando da proclamação da República, uma boa parte deste património passou para a Igreja de São Pedro, matriz da paróquia a que o mosteiro pertencia. Sabe-se que, quando em Janeiro de 1911 o imóvel foi cedido à Câmara Municipal para nele instalar a cadeia, os objectos de culto da capela de Nossa Senhora das Mercês foram armazenados em Santa Clara. Em 1914 a confraria do Santíssimo Sacramento da referida paróquia pediu a cedência de alguns desses bens para o serviço de culto1253, pelo que uma boa parte dos objectos religiosos que lá se encontravam passaram para a igreja de São Pedro. Além disso, algumas pessoas procuravam adquirir artigos religiosos das Mercês, que uns conservavam devotamente em suas casas, e outros ofereciam à igreja de São Pedro. 1253 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Carta do inspector das Finanças do Funchal para o director geral da Fazenda Pública de 7 de Novembro de 1914. 270 1. Paramentos e pratas Começaremos por fazer referência a alguns paramentos de valor que a capela possuía, alguns dos quais oferecidos pela Coroa. Sabe-se que, em 1803, as religiosas solicitaram a Sua Alteza, entre outras peças, um par de dalmáticas brancas, pretas, encarnadas, roxas, duas capas de asperges, uma roxa e a outra preta, e um dossel branco1254. Quadro nº.50 - Alguns paramentos Descrição Valor/réis 3 capas de asperges de damasco branco 3 véus de ombro de damasco branco 12 casulas de damasco de cores diversas 1 casula de damasco encarnada bordada a ouro 1 par de dalmáticas de damasco encarnado 1 par de dalmáticas de damasco roxo 1 par de dalmáticas de damasco branco, bordadas a retrós 12 alvas de linho guarnecidas com rendas 12 frontais de damasco do altar mor 10.000 3.000 12.000 5.000 10.000 3.000 20.000 17.000 20.000 Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols.4 -5: Inventário de Setembro de 1895 e Inventário de 6 de Novembro de 1895. Sabemos que os objectos de prata, pertencentes à capela, totalizavam trinta e oito peças, cujo peso somava 38.653 gramas. Esta prata, avaliada à razão de 30 réis o grama, em virtude do uso que os objectos tinham, atingiu o valor de 709.290 réis1255. Fora da capela, a comunidade não possuía qualquer objecto de prata. Quadro nº.51 - Objectos em prata Descrição Peso / grama Valor / réis 1 cruz e respectiva haste 1 custódia em prata dourada, lavrada 1 lâmpada em prata dourada, lavrada 1 lâmpada em prata dourada, lavrada 1 lâmpada em prata dourada, lavrada 1 coroa de prata dourada, lavrada,1256 9 resplendores de vários tamanhos e feitios 1 turíbulo em prata dourada, lavrada 1 naveta e uma colherinha 1 haste e um pendão 1 caixa redonda da chave do sacrário 1 prato para galhetas 1 coroa pequena 1 píxide 1 píxide 1 cálice, patena e colher 1 cálice, patena e colher 4 guarnições do sacrário e sacras 1 purificador 1 bandeja Total: 2.735 2.524 5.637 2.780 3.165 708 690 600 332 60 180 178 23 628 679 720 520 1.226 136 122 23.653 82.050 75.720 169.110 83.400 94.950 21.240 20.700 18.000 9.960 1.800 5.400 5.340 6.090 18.840 20.370 21.600 15.600 36.780 4.080 3.660 709.290 Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols.5v-7: Inventário de Setembro de 1895 e Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado. 1254 AHDF, Conv. Mercês, F., caixa 26, capilha 2, doc. avulso: Petição da Madre Antónia Clara do Sacramento, para sua Alteza D. João VI, de 30 de Abril de 1803. 1255 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, doc. avulso: Inventário de Setembro de 1895, fol. 7; Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado. 1256 Esta coroa pertencia à imagem de Nossa Senhora da Conceição da capela. 271 Segundo as Ilhas de Zargo, a prata ao serviço do mosteiro das Mercês teve fim estranho. O tesouro parcelar, constituído por um pálio, turíbulos, cálices, âmbulas, castiçais e uma custódia, depois de arrolado, foi confiado ao Procurador da República, sendo mais tarde depositado na Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência da Madeira por ordem do Ministério das Finanças. Entretanto, a confraria do Santíssimo Sacramento de Santa Luzia desejou adquirir as referidas peças em prata. Contudo, a 20 de Agosto de 1926, era informada de que o pedido dirigido ao Ministro da Justiça, em que se solicitava a cedência “das alfaias e mais pertenças da extinta capela de Nossa Senhora das Mercês” fora indeferido “por ser vedado por lei entregar quaisquer objectos congreganistas, cuja alienação só pode realizar-se por meio de venda em hasta pública”1257. Três anos depois, a Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais comunicava: O Ministro da Justiça, por seu despacho de ontem, autorizou a cedência, pelo preço da avaliação feita a 25 de Junho de 1926 – 19.853$50 –, a essa Confraria, de todos os objectos que pertenceram ao Convento das Mercês dessa cidade e se encontram depositados na Filial da Caixa Geral de Depósitos, ficando assim deferido o requerimento de V. Ex.cia de 15 de Abril do corrente ano”1258. A confraria, não podendo habilitar-se à totalidade deste tesouro, interessou nele outras igrejas, entre as quais a de São Pedro e a de Santa Clara, reservando para si um turíbulo sem naveta, dois cálices e algumas coroas de imagens1259. Pinturas a óleo e litografias 48. Busto de Cristo. Pintura a óleo sobre madeira de til de 45 x 34 cm, a única peça seiscentista que figurou na exposição centenária; é de escola portuguesa. Conserva-a o Museu de Arte Sacra do Funchal. Fotografia de Rui Camacho, DRAC. Das pinturas que os inventários referem, apenas incluímos nestes quadros as telas e pinturas sobre madeira. Algumas delas são de apreciável valor. A ajuizar pelos dois retábulos ainda existentes e identificados como pertencentes ao mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, que são as pinturas de Santa Catarina mártir e de Santa Maria Madalena, que se encontram actualmente na sacristia maior da igreja de São Pedro (Funchal) e o Busto de Cristo, que o Museu de Arte Sacra do Funchal conserva, o mosteiro possuía um recheio pictórico considerável e valioso. Quadro nº.52 – Pinturas em madeira e tela Designação Em madeira Nossa Senhora da Piedade Descida da cruz Busto de Cristo Nossa Senhora Santo António Nossa Senhora e o M. Jesus Em tela Nossa Senhora das Mercês Nossa Senhora das Mercês Localização Dimensões/cm Valor/réis Portaria Sala capitular Sala capitular Quarto da abadessa Locutório Locutório 60 x 50 85 x 55 50 x 33 26 x 20 47 x 37 30 x 24 15.000 25.000 100.000 200 5.000 1.000 Capela Coro 210 x 144 30.000 - 1257 Arquivo da confraria do Santíssimo Sacramento da igreja de Santa Luzia, doc. avulso: Carta do presidente da Comissão Jurisdicional dos bens das extintas Congregações Religiosas, de 20 de Agosto de 1926, para o reitor da confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Luzia da cidade do Funchal. 1258 Arquivo da confraria do Santíssimo Sacramento da igreja de Santa Luzia, doc. avulso: Carta da Comissão Jurisdicional dos bens das extintas Congregações Religiosas, de 20 de Julho de 1929, para o reitor da confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Luzia da cidade do Funchal. 1259 Ilhas de Zargo, II, p. 816. 272 Santa Catarina mártir Santa Madalena Nossa Senhora., São Joaquim, M. Jesus e São João Baptista São Francisco de Assis São Caetano Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora da Piedade Nossa Senhora Nossa Senhora do Rosário Coroação de Nossa Senhora Nossa Senhora do Carmo Nossa Senhora Encontro do Senhor Anunciação Santa Face Nossa Senhora e o M. Jesus O Senhor em casa de Simão São Francisco Xavier Santa Teresa São José São Miguel Capela Capela 174,5x120 174,5x120 100.000 100.000 Portaria Sala capitular Sala capitular Sala De Profundis Locutório Coro Sala do Noviciado Sala capitular Coro Coro Enfermaria Sala capitular Sala capitular Sala capitular Sala de passagem Refeitório Locutório Locutório Coro Coro 50 x 20 100 x 70 150 x 100 80 x 55 35 x 27 70 x 50 100 x 80 95 x 88 91x 68 80 x 65 150 x 160 60 x 50 60 x 60 110 x 80 27 x 22 45 x 35 45 x 35 95 x 71 15.000 1.000 1.000 200 1.000 10.000 1.000 1.000 - Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols. 131v: Inventário de Setembro de 1895. Além da pintura a óleo em tela ou madeira, os inventários referem outras pinturas, sem fazer menção do material que lhes serviu de fundo. É o caso do quadro de Nossa Senhora da Piedade, localizado na sacristia, de Nossa Senhora da Conceição, avaliado em vinte mil réis e o de São Pedro que se encontrava na sala de convívio das religiosas. Na capela de São Vicente Ferrer, na cerca do mosteiro, havia também um pequeno quadro de São Pedro de 15 por 12 centímetros., pintura em cobre, que em 1895 foi avaliado em mil réis1260. Segundo os mesmos inventários o mosteiro tinha algumas litografias de temática religiosa, quatro das quais ocupavam a tribuna, mas todas elas pequenas e de pouco valor. Quadro nº.53 – Litografias Descrição Ceia do Senhor Descida Espírito Santo Ascensão Senhor Nossa Senhora Assunção de Nossa Senhora Assunção de Nossa Senhora Localização Dimensões/cm Valor/réis Tribuna Tribuna Tribuna Quarto abadessa Locutório Tribuna 25x20 25x20 25x20 35x25 58x28 25x20 1.000 300 300 200 500 300 Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols. 11v-25: Inventário de Setembro de 1895. 3.Imaginária Os inventários de 1895 dão-nos conhecimento de que, na capela de Nossa Senhora das Mercês, se encontravam algumas imagens de valor. A considerar pela de Santa Ifigénia e São Bruno1261, do séc. XVII, em madeira policromada dourada, que a igreja de São Pedro do Funchal guarda com empenho e pelo valor atribuído a outras imagens pelos inventariadores, poderá admitir-se que as imagens da capela do mosteiro fossem todas de madeira policromada 1260 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fol. 31v: Inventário de Setembro de 1895. A localização destas imagens tem algo de curioso: quando, em Novembro de 1997, se procedia à organização da exposição do espólio artístico das Mercês, a Irmã Maria Clarisse Xavier, com 90 anos, insistia em que na igreja de São Pedro havia duas imagens das Mercês. Explicava que, quando era menina, e ia à catequese à igreja, havia lá um santo com uma caveira na mão, e uma santa preta que também segurava uma igreja envolvida em chamas, que ela tinha conseguido evitar que ardesse, e que todas as pessoas diziam que aquelas imagens eram das Mercês. Tal simbologia deveria ter impressionado a criança, pois jamais esqueceu aqueles santos. De facto, as imagens lá estavam, mas hoje em depósito, numa pequena sala da igreja. 1261 273 dourada. Aliás, era habitual numa capela do séc. XVII. As imagens de roca, misto de barro e de madeira, que os inventários referem, vestiam conforme a época. Podemos ainda referir algumas pequenas imagens de barro, marfim, mármore e gesso, aliás muito poucas e pequenas. O mosteiro, segundo o inventário de 1895, possuía quinze crucifixos, alguns dos quais de 49. S. Bruno. Escultura em madeira policromada e dourada, de 51x24 centímetros, de escola portuguesa, do século XVII. Esta imagem, segundo o inventário de Setembro de 1895, encontrava-se no altar de Santa Catarina. Reprodução de Carlos Fotógrafo. 50. Santa Ifigénia. Trabalho de escola portuguesa, do século XVII, de 54,5 x 17 centímetros, em madeira policromada e dourada. Encontrava-se no altar-mor da capela do mosteiro. Segura na mão esquerda uma igreja que, segundo é tradição, salvou das chamas. Reprodução de Carlos Fotógrafo. 51. Menino Jesus. Imagem de oficina portuguesa, do século XVIII, de 27 x 14 centímetros, em madeira policromada com repintes. Pertenceu à Madre Virgínia. Reprodução de Carlos Fotógrafo. assento. Entre eles havia dois com Cristo em marfim, um com madrepérola embutida e três com pedras preciosas em vermelho transparente, engastadas no corpo do Senhor. O maior destes crucifixos, que podemos ver na página 276, de 145 centímetros, que o mosteiro de Nossa Senhora da Piedade guarda, além de mais de cem rubis, tem os cravos e o resplendor em prata dourada. Num outro, página376, valiosa peça de arte do século XVII, vê-se Cristo pintado sobre a própria cruz. O Senhor apresenta-se cheio de beleza e serenidade. Todos estes crucifixos são de oficina portuguesa, dos séculos XVII ao XIX. Alguns destes crucifixos encontravam-se no interior de nichos conjugando-se harmoniosamente, com pequenas imagens. Quadro nº.54 - Imagens de madeira e roca Designação Em madeira São Francisco de Assis Santa Clara São João Baptista Santa Ifigénia São Lúcio São Bruno São Joaquim 274 Localização Capela Capela Capela Capela Capela Capela Capela Altura / cm Valor / réis 54,5 51 - 5000 5000 5000 5000 2000 1000 10000 Santa Ana Senhor da Paciência1262 Nossa Senhora da Conceição São Lourenço Menino Jesus Santa Quitéria De roca Nossa Senhora da Conceição Nossa Senhora do Monte Nossa Senhora do Monte Nossa Senhora do Monte Nossa Senhora da Expectação Nossa Senhora da Natividade Nossa Senhora do Rosário Capela Coro Coro Coro Coro Enfermaria 37 76 34 35 38 27 10000 500 - Capela Sala de recreio Sala de recreio Coro Coro Coro Enfermaria 110 25 46 35 65 60 46 5000 1000 200 - Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, F., caixa 2076, fols.11v - 25: Inventário de Setembro de 1895 e Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado Quadro nº.55 - Nichos Descrição Localização Valor (réis) Cristo crucificado marchetado de madrepérola e Nossa Senhora com o menino Jesus ao colo, em mármore branco. Nossa Senhora e Santa Ana, em pinho, com portas de vidro. Portaria 2 000 Noviciado 800 Coro 5 000 Coro 2 000 Coro - Coro - Enfermaria 10 000 Sala de recreio 3 000 Coro 500 Nossa das Mercês (35 cm), em pinho, com portas de vidro, de 48x 28 cm. De vinhático polido, com portas de vidro de 60x 30 cm ( sem qualquer imagem). Nossa Senhora da Conceição com o Menino Jesus, de 50x28 cm. Nossa Senhora da Natividade, de roca (60cm), metido na parede, com 15 pequenos quadros, tendo dentro o nicho de Nossa Senhora da Conceição . Cristo crucificado (115 cm), Nossa Senhora do Rosário (46cm), Santa Quitéria (27cm), S. Lúcio (46cm) e 14 quadros de diferentes dimensões, com molduras e vidro, que guarneciam o interior do nicho, colocado sobre o altar. Santa Ana (37 cm), Nossa Senhora do Monte (duas imagens de 25 e 46 cm), S. Jerónimo (10 cm), São João Nepomuceno e um quadro de S. Pedro, pintado a óleo, colocado sobre um altar. Menino Jesus (28cm) sobre uma peanha de madeira dourada, com 6 pequenos quadros Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv Mercês, F., caixa 2076, fols. 8-30 : Inventário de Setembro de 1895 e Inventário de 6 de Novembro de 1895, não paginado. Estes nichos, alguns de grande beleza, estavam metidos na parede, outros colocados sobre peanhas ou sobre mesas. O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade conserva um oratório, de oficina portuguesa do século XIX, com 144 por 121 centímetros, em madeira dourada marmoreada com símbolos da Paixão de Cristo, que, embora não se encontre no inventario, pertenceu ao mosteiro de Nossa Senhora das 52. Oratório. Trabalho de oficina portuguesa, do século XIX, de 144 x 121 centímetros, em madeira dourada e marmoreada. Quatro anjos seguram os símbolos da paixão. O crucifixo em madeira policromada que ocupa o centro do oratório, rico em rubis, pertence hoje à igreja de São Martinho do Funchal. Reprodução de Carlos Fotógrafo. 1262 O Senhor da Paciência, existente no coro das religiosas das Mercês não aparece no inventário. Possivelmente teria sido subtraído à inventariação. 275 Mercês. Continha um crucifixo em madeira policromada, de 95 por 41 centímetros, com algumas dezenas de rubis, que actualmente se encontra na igreja de São Martinho. CAPÍTULO IX O MOSTEIRO DAS MERCÊS DO LIBERALISMO À REPUBLICA DE 1910 1. As leis liberais anticongreganistas A conduta do Governo liberal que mais sequelas deixou no corpo da Igreja foi, sem dúvida, a que atingiu o clero regular. Embora alguns sectores mais radicais do Liberalismo acusassem D. Pedro de ter sido demasiado brando nas condições impostas em ÉvoraMonte1263, certo é que foi duro e intransigente para com as ordens regulares masculinas. O decreto datado de 28 de Maio, mas só publicado no dia 30, mais da responsabilidade de D. Pedro do que do ministro da Justiça, Joaquim António de Aguiar, o qual, no entanto, não deixou de ser apelidado de Mata-frades1264, visava a extinção de todas as casas religiosas masculinas em Portugal e no Ultramar. Para os institutos femininos o programa anticongreganista foi diferente. Começou a ser executado nos Açores em 1832, quando D. Pedro IV dominava apenas esta parcela do território nacional. Quando a 24 de Julho de 1833 as tropas liberais conquistaram Lisboa e o governo de D. Pedro se transferiu para a capital, a actuação anticongreganista continuou. Por decreto de 5 de Agosto daquele ano, os institutos religiosos foram proibidos de receber noviços e emitir votos religiosos. Os institutos religiosos femininos ficaram submetidos à legislação deste decreto. As religiosas podiam continuar nos seus mosteiros até à morte da última professa, mas não podiam ter noviciado nem emitir profissões. Era uma supressão por morte lenta, feita silenciosamente. Aguardava-se que a extinção dos noviciados levasse ao encerramento quando falecesse a última professa1265. As autoridades civis não esperavam normalmente pelo último óbito para ocupar os mosteiros. Em alguns deles, quando o número descia para quatro, as religiosas eram convidadas a ocuparem um sector da casa e as restantes partes do edifício começavam a ser 1263 Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, pp. 201 e 202. Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., VIII, p. 202. 1265 A.H. de Oliveira Marques, op. cit., III, p. 115. 1264 276 usadas para outros fins1266. Não aconteceu assim nos mosteiros da Madeira. Aguardou-se o último falecimento e, no caso do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, as religiosas ocuparam o edifício até 13 de Outubro de 1910. Mesmo depois dos decretos anticongreganistas, alguns mosteiros da Ordem de Santa Clara continuaram a receber candidatas, sob a designação de pupilas. Observavam a clausura, seguiam horário conventual, assumiam a vida da comunidade, mas não emitiam votos por proibição da lei civil. Com o mosteiro das Mercês tudo se processou de forma diferente. as candidatas recebiam o hábito da Ordem, emitiam votos e comprometiam-se totalmente com o carisma da Ordem. Isto, assim o cremos, pela força espiritual que lhes assistia e pela benevolência das autoridades locais. 2. A comunidade das Mercês diante da legislação liberal Diante da legislação liberal as Irmãs Clarissas das Mercês não se desorientaram nem intimidaram. Cheias de confiança no Senhor e certas também de que as autoridades madeirenses, religiosas e civis, e a população em geral continuariam a ter por elas o apreço e a solicitude que lhes eram habituais, continuaram a sua vida fervorosa e em muita paz. A entrada de candidatas, as profissões, as eleições das abadessas e para os demais cargos continuaram a processar-se. Tudo fazia prever que, até à morte da última professa à data do decreto de 28 de Maio de 1834, a vida da comunidade seguiria o seu ritmo normal, sem qualquer interposição exterior que perturbasse as religiosas. De facto, dentro da clausura a vida continuou com a costumada regularidade. Na oração fervorosa a Jesus Cristo, encontravam as religiosas a força espiritual de que necessitavam. 53. Cristo na Cruz. Pintura sobre madeira, de 117x75 centímetros, de escola portuguesa, do século XVII. Pode ver-se na Câmara Eclesiástica do Funchal. Fotografia de Carlos Fotógrafo. Quadro nº.56 –Candidatas recebidas após o dec. de 28/5/1834 Candidatas Nome civil 1266 Nome Religioso Entrada Procedência António Montes Moreira, op. cit., p. 226 277 Rosa Maria de Barros Virginia da Silva1267 Vitorina Mª. da Encarnação Freitas Cecília Teresa Pereira Augusta Policarpo Pinto Abreu Matilde Martins de Barros Silvina Matilde de Barros Matilde Augusta de Freitas Elisa Malaquias Sardinha1268 Rosa Dias1269 Maria Correia Rodrigues Mª. Natividade de Barros Conceição Maria Querubina do Céu Ana Augusta da Pureza1270 Luísa de Jesus Maria José1271 Júlia Clara de S José1272 Emília Maria da Assunção Rosa Maria do Monte do Carmo Maria Clara do Coração de Jesus Virgínia Brites da Paixão Vitorina Maria da Encarnação Antónia Angelina da Cruz Augusta Maria do S.S. Sacramento Ana Maria de S José Maria Teresa da Apresentação Maria Francisca da Piedade Maria Matilde da Circuncisão Clara Maria de S. José Maria Madalena das Mercês Maria Joana do Espírito Santo Maria José da Santíssima Trindade Maria Marta de Jesus Cristo Maria Silvina da Natividade Maria Margarida do C. de Jesus Antónia Maria Dantas Maria Ângela de Santo António Maria Pacífica Maria Querubina de Santa Rosa Maria Natividade do Amor Divino Conceição 1844 29/08/1846 06/03/1848 20/05/1849 1863 1870 1870 1876 1879 1880 1883 1883 1883 1886 1886 1886 1887 1890 1891 1891 1891 1891 1900 13/6/1905 12/8/1908 19..? 19..? 19..? S Martinho Funchal Funchal Funchal Câmara de Lobos Funchal Estreito C. Lobos Funchal Funchal Câmara de Lobos Câmara de Lobos Câmara de Lobos S. Martinho Estreito C. Lobos Câmara de Lobos Câmara de Lobos Funchal Porto Moniz Calheta Câmara de Lobos Lisboa Fontes: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês, caixa 2076, docs. avulso: Petição das religiosas de 1 de Abril de 1895 e de 2 de Fevereiro de 1896; AHDF, Conv. Mercês, capilha 3, docs. avulso; Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, pp. 6v e 7; Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol.13-16; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia (trabalho dactilografado), Funchal ,l998,2-7. Contudo, seria olhar o problema com ingenuidade, se não nos déssemos conta de que a comunidade, apesar da simpatia em que era tida, começou, a partir de então, a percorrer uma etapa difícil e de sacrifício, mas também rica em experiências: a confiança e o abandono nas mãos de Deus, o aprofundamento da fé. Tinham, evidentemente, diante de si um futuro interpelante e incerto. Quadro nº.57 – Alguns dados estatísticos1273 Ano 1834 1844 18461274 1847 18481275 18491276 1861 1870 1879 Candidatas Noviças Profissões 1 1 1 1 1 2 1 1 1 - 11278 11279 - Professas Total 17 - 17 - 1267 Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol. 10; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia (trabalho dactilografado), 1978, Funchal, p. 2. 1268 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 6v. 1269 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p .7 1270 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal do convento das Mercês, de 27 de Fevereiro de 1861. Lê-se no documento: “Entrou a 29 de Agosto de 1846 por ordem do Prelado da mesma data”. Tratavase de D.José Xavier Cerveira e Sousa, bispo da diocese do Funchal. 1271 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal (...) de 27 de Fevereiro de 1861. “Entrou a 6 de Março de 1848 por ordem do mesmo Prelado”, lê-se no referido documento. 1272 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal (...) de 27 de Fevereiro de 1861 “Entrou a 20 de Maio de 1849 por ordem do mesmo Prelado”, lê-se no referido documento. 1273 O quadro inclui somente os poucos dados detectados em fontes manuscritas. 278 1880 1881 1883 1886 1891 1895 1896 1905 1907 1908 1909 1910 1 1 3 3 4 1 1 - 11277 1 1 1 1 1 1 1 1280 11281 - 20 19 18 14 20 19 19 15 Lentamente as entradas foram rareando e, como as mais velhas iam falecendo, a comunidade foi diminuindo, reduzindo-se a dois terços do que era habitualmente e finalmente a pouco mais de metade. Em 1910 era constituída por quinze religiosas, das quais catorze eram professas e uma ainda noviça. Como os livros onde eram registadas as admissões ao noviciado, as profissões, os óbitos e outras ocorrências, a partir de 1834, não mais foram preenchidos, temos muita dificuldade em reconstituir a vida da comunidade a partir daquela data. Alguns dados esporádicos permitem-nos, se bem que com lacunas e algumas dúvidas, tentar a sua reconstituição. Nos quadros 56 e 57 apresentamos algumas candidatas que entraram no mosteiro ao longo deste período, bem como alguns dados estatísticos sobre a comunidade até à implantação da Republica. 3. O mosteiro após a morte da última professa à data do decreto de 28 de Maio 3.1. Diligências em favor da comunidade A 26 de Março de 1895, com 83 anos, faleceu no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês a Madre Ana Joaquina das Mercês, a última das religiosas professas à data do decreto de 28 de Maio de 18341282. Vários documentos saídos das mãos das autoridades civis do Funchal comunicaram para Lisboa a morte da religiosa. Naquela data o mosteiro, em função do decreto de 28 de Maio de 1274 Trata-se de Ana Augusta da Pureza, que entrou em 29 de Agosto de 1846 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861. Trata-se de Luísa de Jesus Maria José, que entrou em 6 de Março de 1848 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076,doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861). 1276 Trata-se de Júlia Clara de São José, que entrou em 20 de Maio de 1849 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861). 1277 Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol. 11; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia (trabalho dactilografado), 1978, Funchal, p.3: Tomada de hábito religioso de Virgínia da Silva, a 26 de Fevereiro de 1881.Recebeu então o nome de Virgínia Brites da Paixão. 1278 Profissão de votos simples da Irmã Jerónima Cândida do Coração de Maria, realizada nas Mercês depois do dec. de 28 de Maio de l834 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27 de Fevereiro de 1861). 1279 Profissão da Irmã Maria Querubina do Céu feita nas Mercês em 1847 (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Mapa do pessoal (...), de 27de Fevereiro de 1861). 1280 Profissão da Irmã Virgínia Brites da Paixão, feita nas Mercês a 1 de Novembro de 1883 (Cónego Manuel Pombo Fernandes, Manuscritos sobre a Madre Virgínia Brites da Paixão, fol. 13 ; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida da Madre Virgínia (trabalho dactilografado), 1978, Funchal, p. 3). 1281 Profissão da Irmã Maria Ângela de Santo António feita nas Mercês em 13 de Junho de 1907 (Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 6v). 1282 A Madre Ana Joaquina das Mercês, natural de São Martinho, filha do alferes Joaquim de Freitas e de sua mulher Ana Joaquina, nasceu em 1812. Movida pelo desejo de abraçar a vida de consagração ao Senhor, pediu a sua admissão no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal, onde entrou em 1830. A 17 de Outubro do mesmo ano foi admitida ao noviciado, findo o qual fez a sua profissão religiosa. A esta cerimónia, em que estiveram presentes os pais e outros familiares e amigos, presidiu D. Francisco José Rodrigues de Andrade ( AHDF, Conv. Mercês F., L 25, Recepções, entradas e votos das noviças (...): Acta da tomada de hábito da Irmã Ana Joaquina das Mercês, fol.4; ARM; Conventos, Conv. Mercês F., L 271, Livro das Profissões, fol. 5: Acta da profissão da Irmã Ana Joaquina das Mercês). 1275 279 1834 e das instruções de 31 de Janeiro de 1862, caiu na posse do Estado1283. Acontecia, porém, que a Madre Ana Joaquina das Mercês não era a última professa do mosteiro, pois que as religiosas, apesar das leis do Estado, continuaram a receber candidatas e a emitir profissões. À data da morte daquela religiosa ficavam dezanove professas que, cheias de confiança no Senhor, se decidiram a fazer todos os esforços possíveis para conseguirem autorização de permanecer no mosteiro. De facto, em 1895 começara um novo período para aquela comunidade que, apesar da consideração em que era tida pelas autoridades religiosas e civis bem como pelo bom povo madeirense, arrastou consigo dificuldades de vária ordem. Contudo, as religiosas permaneceram serenas e confiantes, e bem depressa deram começo às necessárias diligências para poderem conservar-se no seu mosteiro. A 1 de Abril dirigiram-se a Sua Majestade, o rei D. Carlos: “As pupilas do convento de Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal, tendo perdido há pouco a sua respeitável superiora, a Madre Ana Joaquina das Mercês, falecida a 26 de Março último, vêm humildes implorar da caridade de Vossa Majestade a graça de lhes permitir a residência n’esta mesma casa, onde vivem desde a sua juventude e onde desejariam morrer”1284. Como que a justificar o seu pedido e a dar-lhe força, acrescentavam: “Consta-lhes que algumas recolhidas d’outros conventos têm sido conservadas depois da extinção dos mesmos e até favorecidas com algum subsídio caridoso. As suplicantes têm fundada esperança de que Vossa Majestade será servido de ter para com elas a mesma benignidade, prometendo continuar suas fervorosas preces ao Altíssimo – como sempre têm feito - , para que conserve por dilatados anos os dias de Vossa Majestade e de toda a Real família”1285. O pedido foi reforçado pelo prelado da diocese, D. Manuel Agostinho Barreto, que, referindo-se às religiosas, que trata por pupilas, escreve: “como o seu mais vivo desejo é continuar a viver ali, junto os meus rogos aos d’elas, para que isso lhes seja concedido”1286. E continua o prelado: “mais do que ninguém são dignas de tal favor, pois que são pobríssimas (...). E tem sido tão observante e piedoso o seu viver que ninguém há nesta cidade que as não respeite e venere, sendo certamente de geral agrado a sua conservação”1287. A petição das religiosas mereceu a consideração do Governador Civil António Augusto de Sousa e Silva: “Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.ª o incluso requerimento que as pupilas do extinto convento de Nossa Senhora das Mercês, desta cidade, dirigem a Sua Majestade, El-Rei, impetrando a graça de lhes ser permitido continuarem a residir no edifício do referido convento (...). Informando esta petição, cumpre-me dizer a V. Ex.ª que é exacto tudo o que as requerentes alegam, sendo além disso certo que elas, pela sua conduta moral e religiosa se tornam dignas da graça que imploram”1288. Também Jerónimo Pereira B. de Bastos, da Secretaria de Estado de Negócios Eclesiásticos e de Justiça, em carta de 23 de Abril para o ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda, reforçou a súplica de D. Manuel Agostinho Barreto: “e porque se me afiguram atendíveis as solicitações do Rev.º Bispo do Funchal, rogo também a V. Ex.ª se 1283 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de 27 de Março de 1895 para o conselheiro director geral dos Próprios Nacionais. 1284 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Petição das pupilas do convento de Nossa Senhora das Mercês dirigida a Sua Majestade, de 1 de Abril de 1895. O manuscrito é assinado pela Madre Maria Querubina do Céu, como abadessa, e pelas outras dezoito religiosas que então constituíam a comunidade 1285 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Petição das pupilas do convento de Nossa Senhora das Mercês dirigida a Sua Majestade de 1 de Abril de 1895. 1286 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de 2 de Abril de 1895, de D. Manuel Agostinho Barreto, para o ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça. 1287 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de 2 de Abril de 1895, de D. Manuel Agostinho Barreto, para o ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça. 1288 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc.IV/B/49/23: Carta de António de Augusto de Sousa e Silva, de 19 de Abril de 1895, para o ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda. 280 digne tomá-las na consideração que merecem dando-me notícias do que a tal respeito for resolvido, para ser oportunamente transmitido àquele prelado”1289. Passou um ano. A 2 de Fevereiro de 1896, as religiosas temendo ser convidadas a deixar o mosteiro, dirigiram-se de novo ao rei: “considerando sua maior ventura” continuar no mosteiro e nele morrer, “pedem por isso encarecidamente a Vossa Majestade esta graça, permitindo-lhes ao mesmo tempo o uso dos seus poucos móveis, das alfaias e paramentos da igreja”1290. Mulheres fortes que, com delicadeza e humildade, sabiam chegar onde queriam!... Pouco depois, cheias de confiança ousaram solicitar do monarca nada menos que a permanência definitiva. Assim, a 24 do mesmo mês de Fevereiro, o delegado do Tesouro do Funchal, Luís do Rego Barreto, juntamente com outros documentos e processos, remeteu para Lisboa o pedido das religiosas um requerimento das recolhidas do convento em que pedem se torne definitiva a sua permanência no: edifício do convento e o uso dos móveis, alfaias e paramentos da igreja”1291. A 2 de Junho, o mesmo delegado enviou a relação das dezanove pupilas das Mercês em que constava o nome, a idade e o tempo de residência no mosteiro. Por ela podemos verificar que todas estas religiosas haviam entrado já depois do triunfo do Liberalismo. A mais antiga ingressara em 1844 e as três mais novas na primeira década do século XX1292. 3.2. Dificuldades Todos olhavam o futuro com inquietação. Também para as religiosas da Ordem de Santa Clara que viviam no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal, embora organizadas em Associação, como veremos, o futuro era incerto e interrogante. Está fora de dúvida que, quando à morte da Madre Ana Joaquina das Mercês foi feito o inventário dos bens imóveis, levantada a planta e feita a medição e avaliação do imóvel, o Estado pretendia tomar posse do edifício e dar-lhe novo destino. Já na década de oitenta, o prelado e as próprias religiosas haviam começado a sentir a agudeza da situação. Por isso, quando em 1888 a Madre Querubina do Céu terminou o triénio, o prelado, pela prudência que o momento requeria, achou por bem reconduzi-la a um novo triénio por provisão de 18 de Outubro de 18881293. Passados três anos, o mesmo prelado, achando que “por razões ponderosas se não podia proceder à eleição canónica, nomeou como Abadessa a Madre Emília Maria da Assunção, assistida pela Madre Maria Querubina do Céu como vigária”1294. Em 1894, prevendo-se para breve a morte da última religiosa professa à data do decreto de 28 de Maio de 1834, a Madre Ana Joaquina das Mercês, retomou o governo a Madre Maria Querubina do Céu em eleição canónica que teve lugar em 25 de Outubro de 1894 sob a presidência do prelado da diocese1295. Com a morte da Madre Ana Joaquina das Mercês de 1895, como atrás ficou dito, a situação tornou-se particularmente delicada. Exigia-se a máxima prudência no contacto com as autoridades e muita sabedoria na condução da comunidade. Assim, pela primeira vez na história do mosteiro, vemos a Abadessa governar vários triénios consecutivos. No curto 1289 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso : Carta de Jerónimo Pereira da Silva B. de Bastos para o ministro e secretário do Estado dos Negócios da Fazenda, de 23 de Abril de 1895. Este documento informa também que a 25 de Outubro de 1861 haviam sido enviados àquela secretaria de Estado “dois cadernos, contendo o inventário dos prédios urbanos e rústicos pertencentes ao mosteiro”. 1290 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta da comunidade do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês de 2 de Fevereiro de 1896, para Sua Majestade. O documento é assinado pelas dezanove religiosas. 1291 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício 144 de 24 de Fevereiro de 1896 do delegado do Tesouro e.IV/B/49/6. 1292 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc.IV/B/49/24. 1293 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, fol. 47-47v: Provisão de D. Manuel Agostinho Barreto de 18 de Outubro de 1888. 1294 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, fol.59 -59v: Provisão de D. Manuel Agostinho Barreto(....) de 21 de Outubro de 1894. 1295 ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269, fol. 61- 61v: Acta da eleição da Madre Querubina do Céu de 25 de Outubro de 1894. 281 espaço de dezoito anos a Madre Maria Querubina do Céu fez cinco triénios. O prelado passou também, contra o que era habitual, a fazer a eleição da vigária e da escrivã na mesma sessão electiva e sob a sua presidência. O quadro junto mostra-nos que neste final da vida do mosteiro os cargos de governo passaram a ter carácter repetitivo porque assim o exigiam as circunstâncias. Quadro nº.58 - Cargos trienais (1856 a 1910) Triénios Abadessas 1856 – 1859 1859 – 1862 1862 – 1865 1865 – 1868 1868 – 1870 1870 – 1873 1873 – 1876 1876 – 1879 1879 – 1882 1882 – 1885 1885 – 1888 1888 – 1891 1891 – 1894 1894 – 1897 1897 – 1900 1900 – 1903 1903 – 1906 1906 – 1909 1909 – Ana Ifigénia de Santo Elesbão Maria Madalena do Monte do Carmo Antónia Angelina de Viterbo Ana Teresa de Santo António Antónia Angelina de Viterbo 1296 Ana Teresa de Santo António Ana Joaquina das Mercês Ana Teresa de Santo António Jerónima Cândida do C. de Maria Ana Joaquina das Mercês Maria Querubina do Céu Maria Querubina do Céu Emília Maria da Assunção Maria Querubina do Céu Maria Querubina do Céu Maria Querubina do Céu Rosa Maria do Monte do Carmo Rosa Maria do Monte do Carmo Maria Virgínia Brites da Paixão Vigárias Mariana Francisca de S. António Ana Margarida de Santo António Maria Querubina do Céu Rosa Maria do Monte do Carmo Virgínia Brites da Paixão Rosa Maria do Monte do Carmo Maria Querubina do Céu Maria Teresa da Apresentação Rosa Maria do Monte do Carmo Escrivãs Ana Teresa de Santo António Ana Joaquina das Mercês Ana Teresa de Santo António Ana Joaquina das Mercês Jerónima Cândida C. de Maria Jerónima Cândida C. de Maria Emília Maria da Assunção Antónia Angelina da Cruz Antónia Angelina da Cruz Antónia Angelina da Cruz Virgínia Brites da Paixão Virgínia Brites da Paixão Maria Matilde da Circuncisão Fontes: ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 269; AHDF, Conv. Mercês F., caixa 26, capila 3, docs. avulso A comunidade, embora cheia de confiança no Senhor e certa do zelo do prelado do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto, estava consciente de que a nova ideologia e a próxima mutação política, tão previsível, iriam exigir delas duros sacrifícios. 3.3. Protegidas pela lei civil: a Associação de Nossa Senhora das Mercês do Funchal As autoridades religiosas e civis, bem como a população em geral, haviam-se habituado a amar aquele mosteiro, onde sempre encontraram acolhimento fraterno e amigo. Aquela comunidade não podia extinguir-se. De facto, o grande público gostava de confiar-lhe as suas preocupações e olhava-as com o máximo respeito. Quando em 1901, na sequência da carta de lei de D. Carlos de 11 de Abril daquele ano1297, o Governo legalizou os institutos religiosos de Portugal sob a forma de “associações”, as Irmãs do mosteiro das Mercês da cidade do Funchal também beneficiaram deste Estatuto. A comunidade, sob o título de Associação de Nossa Senhora das Mercês1298, teve a possibilidade de continuar organizada e de permanecer no mosteiro, agora sede da Associação em que, por força do decreto de 18 de Abril de 1901, se havia legalmente transformado. Os 1296 Faleceu a 2 de Abril de 1870 (ARM, Conventos, Conv. Mercês F., L 274, fol. 6v). Colecção Oficial de Legislação Portugueza, ano 1901, Lisboa, 1902, fol.97-102: Constituição de sociedades por cotas de responsabilidade limitada. Segundo a mesma Colecção (...), a Carta de lei de 11 de Abril de 1901, foi publicada no Diário do Governo nº 81, de 13 de Abril de 1901 (Colecção Oficial de Legislação Portugueza, fol.102) 1298 As Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, congregação fundada na Madeira por Mary Jane Wilson, que tanta dedicação teve pela população madeirense, conseguiram igualmente um estatuto que as constituiu Associação de Nossa Senhora das Vitórias, aprovada pelo mesmo decreto de 18 de Abril de 1901. Era-lhes permitido: “ensinar os ignorantes da doutrina cristã, quando para isso forem chamadas pelos párocos das freguesias onde residem, visitar os pobres e os doentes nos seus domicílios, ensinar as primeiras letras a crianças pobres nas escolas paroquiais, particularmente nas freguesias remotas, tratar doentes nos hospitais rurais e orfanatos de crianças, quando para isso forem chamadas pela autoridade competente. As associadas que para esse fim forem habilitadas podem ensinar os idiomas estrangeiros, obras de mãos, etc., a quem as procurar para isso” (Diário do Governo, 294, Iª. série, de 28 de Dezembro de 1901, pp. 3661 e 3662). 1297 282 respectivos Estatutos, levados ao conhecimento de D. Carlos, mereceram a sua aprovação: “Sua Majestade, El-Rei, a quem foram presentes os estatutos por que deve reger-se, para os efeitos do decreto de 18 de Abril último, a Associação de Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal (...) há por bem conceder-lhes a sua aprovação”1299. Seguidamente, a portaria de 26 de Dezembro do referido ano, de Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, igualmente os aprovava. Com muita subtileza, o teor de vida espiritual e comunitária das religiosas foi transformado em regulamento da Associação. Assim começam os seus Estatutos: “As pupilas do extinto convento de Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal, e nele recolhidas com autorização do governo e as demais pessoas abaixo assinadas, constituem-se pelos presentes estatutos em Associação de carácter religioso, em conformidade com as leis do país com a designação de Associação de Nossa Senhora das Mercês”1300. A Associação tinha por fim “manter, observar e propagar a Religião Católica (...), procurando praticar as virtudes que ela ensina (...), render culto público à Santíssima Virgem das Mercês, a quem toma por Padroeira e a distribuir esmolas aos pobres do sexo feminino dentro dos limites das receitas que alcançar”. No que respeitava ao espiritual, a Associação ficava sujeita “à autoridade do prelado diocesano”, e no temporal “ à inspecção do Estado, tudo nos termos das leis do país”1301. Os membros da Associação dividiam-se em activos, benfeitores e beneméritos. As sócias activas - forma discreta de designar as religiosas -, deviam residir na sede da Associação, isto é, no mosteiro. Competia-lhes a gerência da Associação, a admissão de novas sócias, a orgânica do quotidiano e a eleição dos órgãos de governo. Para poderem continuar a receber candidatas, com as necessárias qualidades, determinavam os artigos oitavo e nono: “As menores só poderão ser admitidas como sócias com autorização escrita dos seus pais ou de seus legítimos superiores (...). A mesa da direcção poderá exigir, quando lhe parecer, que as pretendentes a sócias apresentem atestado de bom comportamento civil passado pelo administrador do concelho e atestado de bom comportamento moral e religioso passado pelo pároco respectivo”1302. Estavam previstas reuniões mensais para análise da vida da Associação e anuais para fins electivos1303. É evidente que, com esta hábil permuta da legislação do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês em regulamento da Associação, a comunidade pôde permanecer no imóvel organizada e com segurança legal, mas não subtrair-se às leis republicanas anticongreganistas e antireligiosas de 1910. 4. O mosteiro no advento da República em 1910 No final do século XIX a situação tornou-se inquietante. A sociedade portuguesa, sobretudo uma pequena facção política onde cresciam e se debatiam novas ideias, estava eivada de vícios. Vivia-se em alta tensão, em atmosfera cheia de dúvidas e perplexidades. A maçonaria havia penetrado nos mais diversos sectores e tornara-se uma força, embora circunscrevendo-se a um limitado círculo de adeptos. A degradação política fazia-se sentir. Claro que a força destruidora vinha detrás, da fraqueza de certos responsáveis, das intrigas partidárias e das manobras políticas. Nem a liderança de Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, nem a tentativa ditatorial de João Franco, que acabou em dissidência, pôde deter os factos. Portugal não era republicano pelo sentimento e jamais poderemos chamar ao 5 de 1299 Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: Portaria de 26 de Dezembro de1901 Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662, artº. 2º. Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: artº. 1, 2 e 3 1302 Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: artº. 8 e 9. 1303 Diário do Governo, 294, I série, de 28 de Dezembro de 1901, p. 3662: artº. 21 e 26. 1300 1301 283 Outubro de 1910 uma revolução popular. Na opinião de Franco Nogueira a revolução foi de certo modo “um acto burocrático”1304, escreveu Joaquim Veríssimo Serrão. Com a implantação da Republica a 5 de Outubro de 1910, Portugal começou a percorrer um caminho anticongreganista e anti-religioso. Mais duros que os liberais, os republicanos ordenaram de imediato o encerramento de todas as casas religiosas e a expulsão de todos os seus membros. Alguns dias depois as religiosas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal receberam ordem de retirada, que se cumpriu a 13 desse mesmo mês. A 14 de Outubro de 1910, o Diário de Notícias do Funchal noticiava: “ Ontem à noite, depois de observadas todas as formalidades legais, o senhor administrador do concelho fez transportar em carros fechados para o palácio de São Lourenço as quinze recolhidas do convento de Nossa Senhora das Mercês, que haviam professado na respectiva Ordem religiosa. Todas as religiosas recolhidas naquele palácio ficaram convenientemente instaladas no rés-do-chão, até que sejam reclamadas por suas famílias”1305. Expulsas do seu mosteiro, as religiosas foram acolhidas pelos familiares que, com amor e solicitude, acorreram à fortaleza de São Lourenço para de lá retirar as filhas que muito estimavam. Momentos dolorosos, para os quais foi preciso alma forte e ânimo viril. 5. Destino do imóvel Enquanto as religiosas tentavam organizar-se em casa particular, na Torre e na Caldeira, para aí continuarem a sua caminhada de ascensão para Deus, na esperança da construção de um novo mosteiro, as autoridades políticas e civis requeriam o edifício para fins diversos. Em Novembro de 1910, Afonso Vieira d’Andrade, presidente da Câmara do Funchal, desejando transferir a cadeia da comarca do velho edifício em que se encontrava para outro local, mandou examinar o imóvel e, achando que podia satisfazer a essa finalidade1306, dirigiu-se ao governador civil pedindo o seu assentimento e a sua intervenção junto das autoridades centrais: “Espera a comissão que Vª Exª acederá ao seu pedido e obterá, pela sua valiosa influência junto do Governo Provisório da República, a cedência do edifício que se deseja, prestando assim Vª Exª (...) assinalado serviço a esta cidade”1307. A 18 de Janeiro do ano seguinte, já o ministro das Finanças dava resposta satisfatória: “Hei por bem (...) conceder à Câmara Municipal do Concelho do Funchal o edifício do suprimido convento das Mercês, da mesma cidade, para nele ser instalada a cadeia civil da comarca, com a cláusula de reversão para a Fazenda Nacional, se lhe não for dado o destino para que é concedido”1308. Para dar cumprimento ao determinado, o bispo do Funchal foi convidado a fazer a entrega da capela de Nossa Senhora das Mercês e respectivos objectos de culto,1309 que foram armazenados numa dependência do extinto mosteiro de Santa Clara1310. No dia 23 de Fevereiro teve lugar o acto oficial da entrega do imóvel: “Hoje, finalmente, dei à Câmara Municipal do concelho do Funchal, a posse do suprimido convento das Mercês, para nele ser instalada a cadeia civil desta cidade”1311. 1304 Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., X, pp. 161-164. Diário de Notícias do Funchal de 14 de Outubro de 1910. Quando chegaram à fortaleza já lá estava prisioneira a Irmã Wilson, fundadora das Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, com outras religiosas. A notícia foi benevolente para não desagradar ao novo governo e não ferir o público, referiu a imprensa. 1306 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício de Afonso Vieira d’Andrade para o Governador Civil, de 11 de Novembro de 1910. 1307 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício de Afonso Vieira d’Andrade (...) de 11 de Novembro de 1910. 1308 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Decreto do ministro das Finanças, dado nos paços do Governo da República a 18 de Janeiro de 1911. 1309 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de Augusto Leme de 23 de Fevereiro de 1911. 1310 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de Augusto Leme de 23 de Fevereiro de 1911. 1311 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de Augusto Leme de 23 de Fevereiro de 1911. 1305 284 Entretanto desistiu-se de alojar a cadeia no imóvel que “só com avultada despesa se poderá adaptar ao fim que se deseja, atendendo a que uma prisão deve obedecer a condições especiais de segurança”1312. Desta forma pôde o governador civil do Funchal, Manuel Augusto Martins, solicitá-lo para “a instalação de quaisquer outros ramos de serviço municipal”1313. Como consequência, em Maio de 1911, a Câmara Municipal obteve autorização de poder utilizar o edifício em causa para “Escola Modelo, Biblioteca Popular ou Museu Municipal”1314. Sabe-se, contudo, que já em carta de 11 de Novembro de 1910 o presidente da Câmara Municipal sugerira ao governador civil a demolição do edifício para “o alargamento da Travessa das Mercês, melhoramento que há muitos anos se impõe como uma necessidade e um grande melhoramento público”1315. Segundo o historiador insular, P. Fernando Augusto da Silva, em 1911, foi, de facto, demolida a “ igreja e a casa conventual”1316. Desta demolição, que atingiu a capela, a sacristia, o adro e a parte do edifício que acompanhava a Travessa das Capuchinhas ou das Mercês, resultou, o alargamento das duas vias de comunicação. Passados quase quatro anos, ainda o restante edifício permanecia “abandonado e em ruínas”1317, pelo que, a 15 de Março de 1915, a direcção do instituto de beneficência Auxílio Maternal o solicitou “para ali instalar uma dependência do mesmo instituto, alargando assim a creche que actualmente funciona anexa ao mesmo, caso Vª Exª não dê ao Convento aplicação diversa e que mais benefícios possa trazer à humanidade pobre e desprotegida d’este distrito”1318. Este requerimento, a enviar ao Ministério das Finanças, mereceu ao governador civil, José Vicente de Freitas, a seguinte nota: “parece-me justo o deferimento do pedido”1319. Além disso, “o Auxílio Maternal da cidade do Funchal enviou às Finanças um requerimento solicitando o terreno onde se acha parte do extinto convento das Mercês – outra parte foi demolida para alargamento da rua – para instalação ou melhor edificação destinada ao mesmo auxílio”1320. Assim, a 17 de Julho de 1915, uma vez que a Câmara Municipal do Funchal não dera ao imóvel o destino previsto pelo decreto de 18 de Janeiro de 1911, o ministro das Finanças, a 23 de Julho de 1915, pôde concedê-lo à referida instituição. “Hei por bem, revogando o mencionado decreto de 18 de Janeiro de 1911, conceder à direcção do instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, o edifício do suprimido convento das Mercês da cidade do Funchal, para nele instalar uma dependência do mesmo instituto”1321. Totalmente demolida a parte ainda existente,1322 ali se levantou o edifício destinado à associação de beneficência Auxílio Maternal, onde actualmente (1999) estão instalados outros serviços: Secretaria Regional do Turismo e Cultura, e o Centro Cívico de Animação e Cultura Cabral do Nascimento. 1312 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta do presidente da Comissão Administrativa da Câmara do Funchal, Manuel Jorge Pinto, de 26 de Abril de 1911, para o ministro das Finanças. 1313 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta para o ministro das Finanças de 26 de Abril de 1911. 1314 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. 1V/B/49/3: Despacho do ministro das Finanças, dos Paços do Governo da República, de Maio de 1911. 1315 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Carta do presidente da Câmara para o governador civil, de 11 de Novembro de 1910. 1316 Elucidário Madeirense, I, p. 308 e Subsídios para a História da Diocese do Funchal, I, p. 182. 1317 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício da comissão directiva do Instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, para o ministro das Finanças de 15 de Março de 1915. O documento está assinado pelos membros da direcção: Henrique Augusto Rodrigues, João de Castro, José Justiniano da Câmara Lomelino, Francisco João Fernandes, Francisco Figueira Ferraz, João Anacleto Rodrigues e Maximiano de Sousa Rodrigues. As assinaturas foram reconhecidas, no Funchal, pelo notário João Valentim Pires, a 16 de Março de 1915. 1318 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Ofício da comissão directiva (...) de 15 de Março de 1915. 1319 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês. F., caixa 2076, doc. avulso: Carta de José Vicente de Freitas, para o ministro das Finanças, de 18 de Março de 1915. 1320 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso, não datado. 1321 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. 1V/B/49/4: Dado nos Paços do Governo da República, de 17 de Julho de 1915. Foi publicado no Diário do Governo, 143, de 23 de Julho de 1915. 1322 A Madre Virgínia Brites da Paixão, em carta de 25 de Setembro de 1926 para a Irmã Ângela, lamentava-se de que do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês não tivesse ficado” pedra sobre pedra, nem sequer sinal desse convento” (Arquivo privado do Paço Episcopal do Funchal, manuscritos da Madre Virgínia, pasta 3, doc. avulso: Carta da Madre Virgínia para a Irmã Ângela, de 25 de Setembro de 1926 285 Do lado leste, a ligar o Auxílio Maternal à Rua das Mercês, ficou o prédio Power Drury & Companhia1323 que, quando demolido em 1996 para dar lugar à Cota 40, funcionava como “Casa de bordados” e “Armazéns de vinhos”1324. O local do mosteiro está agora assinalado com um monumento a Santa Clara, que a cidade do Funchal, em gesto de apreço por aquela casa religiosa, quis erguer, aquando das celebrações centenárias dos quinhentos anos da chegada das primeiras Irmãs Clarissas à Ilha da Madeira , como veremos na crónica do centenário apresentada no Apêndice desta obra. CAPÍTULO X. A COMUNIDADE DAS MERCÊS NO PÓS - REPÚBLICA 1. A comunidade à data da expulsão Quando, a 13 de Outubro de 1910, as religiosas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês receberam ordem de saída, a comunidade era constituída por catorze Irmãs professas e uma noviça. Reportando-nos a uma relação enviada pelo mosteiro de Nossa Senhora das Mercês à Repartição da Fazenda a 2 de Junho de 1896, ao Livro de Óbitos do actual mosteiro de Nossa Senhora da Piedade em Câmara de Lobos (Caldeira) e ainda a depoimentos de pessoas por nós contactadas, podemos dar a lista nominal da comunidade nessa data. Quadro nº.59 – A comunidade em Outubro de 1910 Nome Religioso Nome Civil Idade Rosa Maria do Monte do Carmo Vitorina Maria da Encarnação Maria Francisca da Piedade Antónia Angelina da Cruz Maria Teresa da Apresentação Rosa Maria de Barros Vitorina Mª da Encarnação Freitas Augusta Policarpo Pinto Abreu Cecília Teresa Pereira 66 58 42 52 53 Virgínia Brites da Paixão Virgínia da Silva 49 Clara Maria de S. José Maria Marta de Jesus Cristo Silvina Matilde de Barros Matilde Augusta de Freitas 47 44 Maria Matilde da Circuncisão Matilde Martins de Barros 42 Maria Pacífica (noviça) Margarida do Coração de Jesus Rosa Dias 24 32 Maria Angela de Santo António Maria Querubina de Santa Rosa Maria Natividade do Amor Divino Conceição Elisa Malaquias Sardinha Maria Correia Rodrigues Maria Natividade de Barros Conceição - 21 31 41 - Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. IV/B/49/24; Arquivo de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 1– 6 v, Arquivo paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livros de Óbitos. 2. Tentando fixar-se 1323 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., caixa 2076, doc. avulso: Medição e avaliação do extinto convento de Nossa Senhora das Mercês, de 20 de Novembro de 1895. Estes prédios, contrariamente à ideia que se tem vindo a sustentar, nada tinham o ver com o mosteiro das Mercês, que, de facto, foi totalmente demolido na segunda década do século XX, para tornar possível o alargamento da Rua das Mercês e Travessa das Capuchinhas , bem como a construção do Auxílio Maternal. 1324 286 Em breve, porém, movidas pelo desejo de poderem viver em comunidade, ajudandose mutuamente no seguimento de Cristo segundo o carisma franciscano, estas quinze religiosas formaram dois grupos bem unidos, localizados em Câmara de Lobos. Vejamos o quadro: Quadro nº.60 - Morada após a expulsão Local Religiosas Câmara de Lobos Caldeira Palmeira Na casa paterna Funchal (Santo António) Câmara de Lobos Porto Moniz Total: 3 7 1 3 1 15 Fonte: ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, Conv. Mercês F., Caixa 2076, doc. IV/B/49/24, Arquivo de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 1– 6 v. O grupo mais numeroso, um grupo de sete religiosas, às quais se juntavam com frequência as mais próximas, estabeleceu-se na Palmeira, na casa que fora dos pais da Matilde Martins de Barros (Irmã Maria Matilde da Circuncisão), então habitada por uma filha solteira, Constantina Martins de Barros, de quarenta e nove anos de idade. Esta senhora, boa e generosa, quando soube da expulsão, imediatamente pôs a sua casa à disposição, não só da sua irmã Maria Matilde e da tia Rosa Maria de Barros (Irmã Rosa Maria do Monte do Carmo), professas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, mas também de todas aquelas que quisessem acompanhá-las. Ali se fixaram, além destas duas, mais cinco religiosas: Maria Margarida do Coração de Jesus, Maria Querubina de Santa Rosa, Maria Ângela de Santo António, Conceição e Antónia Angelina da Cruz1325. Um outro grupo fixou-se na Caldeira junto da capelinha de Nossa Senhora da Piedade, numa casa pertencente aos pais da Irmã Maria Francisca da Piedade. Foi ali que viveram as Irmãs: Maria Francisca da Piedade, Maria Teresa da Apresentação, Vitorina Maria da Encarnação e a candidata Maria Júlia de Barros1326. A Madre Virgínia Brites da Paixão e as Irmãs Clara Maria de São José, Maria Marta de Jesus Cristo, Maria Natividade do Amor Divino e Maria Pacífica regressaram à casa paterna. 3. Reorganizadas em Câmara de Lobos. 3.1. A casa da Palmeira, “um pequeno mosteiro” Como já foi afirmado, estas religiosas tinham uma profundidade espiritual invulgar, uma vida de intimidade com Deus fortificada na oração e no sacrifício, tão rica, que lhes permitiu 1325 ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças Conv. Mercês F., caixa 2076,doc IV/B/ 49/24: relação nominal das religiosas do mosteiro das Mercês da Repartição da Fazenda do Distrito do Funchal de 2 de Junho de 1896 e Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, 2 e 5v. 1326 A Maria Júlia de Barros aparece na Caldeira vivendo com as religiosas e seguindo em tudo o seu programa de vida. Porém, quando morreu a 7 de Julho de 1927, não era religiosa professa. Seria, portanto, uma candidata que havia entrado no Mosteiro das Mercês ou, mais provavelmente, se associara ao grupo de religiosas da Caldeira, onde aguardava a possibilidade de professar quando um novo mosteiro existisse (Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livros de Registos de Óbitos, ano de 1927, registo nº 93, fol. 24: Registo de Óbito de Maria Júlia de Barros). 287 permanecerem fiéis ao seu ideal contemplativo e carisma franciscano, diante das maiores provações e dificuldades1327. Na Palmeira, em casa da família Barros, então habitada pela menina Constantininha, assim a designam ainda hoje os seus familiares, estabeleceram-se, como dissemos, sete religiosas, às quais, com muita frequência se juntavam, por longas temporadas, a Madre Virgínia, residente no Lobo dos Aguiares, e as três religiosas que vivam com a família, na Torre, Preces e Serrado d’Adega: Clara Maria de São José, Marta de Jesus Cristo e Maria da Natividade do Amor Divino. Era uma casa rectangular, com sótão, a pequena distância de uma outra casa do mesmo aglomerado familiar. Foi nesta família, de nobilíssimos sentimentos, que as religiosas encontraram acolhimento e muita amizade. Cheias de confiança no Senhor, logo procuraram ajustar-se à nova situação, organizando a sua vida como se em mosteiro vivessem. Com horário organizado, as irmãs rezavam e trabalhavam, certas de que, também ali, podiam amar e louvar o Senhor, ser ajuda espiritual para o género humano. Nem o hábito da Ordem depuseram, antes o conservaram com amor e muita alegria, como sinal de consagração e pertença exclusiva ao Senhor. As pessoas admiravam a sua decisão e coragem1328. A uma pequena distância, no “sítio da Torre”, ficava a capela da Boa Hora, edificada pelo morgado António Corrêa Bettencourt Berenguer na segunda metade do séc. XVII1329, possivelmente em memória da restauração da independência de Portugal, a julgar pela data de 1640 que lemos na cantaria da porta principal1330. Bela e acolhedora, ostenta, ainda hoje, uma pintura bem conservada de apreciável valor histórico pela sua temática e técnica pictórica, de que é autor Martim Conrado, pintor protobarroco do século XVII, já referido. Nela podemos ver, além de Nossa Senhora da Boa Hora, dois membros da ilustre família de Torre Bela. A capela, que fora, ao longo dos séculos, o lugar expressivo da religiosidade dos viscondes e condes da família senhorial de Torre Bela1331, era agora o pequeno templo posto à disposição daquele pequeno grupo de filhas de Santa Clara. De facto, este pequeno templo favorável ao recolhimento, que a Senhora Condessa D. Filomena Gabriela Corrêa Brandão Henriques Noronha, falecida a 9 de Agosto de 1925, se honrava de facultar às religiosas, oferecia-lhes a possibilidade de uma vivência litúrgica. Como à data já não gozava de capelão privativo, costumava ir lá celebrar a Eucaristia, duas ou três vezes por semana. um sacerdote de Câmara de Lobos. Nos outros dias, as religiosas desciam ao Convento de São Bernardino e, em certas festividades, à vila de Câmara de Lobos. Em casa toda a vida de oração estava organizada: ofício divino, meditação, terço, coroa seráfica das sete alegrias de Nossa Senhora. Era na oração que hauriam a força para serem fiéis ao Senhor, para serem felizes. À oração comunitária juntavam a oração pessoal, leitura espiritual e algumas devoções. De quando em quando, ali estava a Madre Virgínia, ajudando-as espiritualmente e também nos trabalhos que iam assumindo, mas, sobretudo, encorajando-as e mantendo no coração de cada uma, sempre bem acesa, a chama do amor e da esperança. Estavam certas de que os ventos revolucionários iriam passar. Ainda viriam a ter o seu mosteiro, onde 1327 Foram as senhoras D. Ester de Barros e sua prima D. Hermínia de Barros, sobrinhas netas da Irmã Maria Matilde, que nos forneceram informações minuciosas sobre a vida das irmãs das Mercês que habitaram na casa da Palmeira, propriedade da família Barros. Pudemos, in loco, ver o imóvel, em bom estado, com o seu poço ao lado e rodeado das mais variadas flores. Hoje, é propriedade da senhora D. Filomena Vieira Pita. 1328 Referiu-nos a senhora D. Ester de Barros que o pai lhe contava que, quando era pequenino, gostava muito de brincar com o cordão branco que as religiosas usavam, pormenor que comprova o uso do hábito. 1329 Elucidário Madeirense, II, p. 450 e III, p. 365. 1330 Maria de Fátima Sousa Henriques, “ A Casa Torre Bela”, in Girão, 3 (1989) 99. 1331 Actualmente encontra-se a superintender as propriedades do ex-condado de Torre Bela, D. Susan Gale Bolger Seldon, residente em Londres, que reparte o seu tempo, como já o fazia em vida do marido, John Seldon, entre a Madeira e a Inglaterra (Maria de Fátima Sousa Henriques, “A Casa Torre Bela,” in Girão 3 (1989) 99-100). A capela está confiada aos cuidados de D. Lucília Martinha de Sousa que zela a sua conservação, a abre aos turistas e a mantém preparada para o culto religioso, conforme a própria nos referiu. 288 retomariam a sua vida contemplativa em clausura. Também o Senhor D. António Manuel Pereira Ribeiro, bispo da diocese do Funchal, as acompanhava com o seu zelo de pastor e pai. A comunidade tinha os seus confessores certos e de nomeação episcopal. A 9 de Dezembro de 1915, o prelado nomeou confessor extraordinário não só das Irmãs que viviam na Palmeira, mas de todas as “Irmãs Franciscanas das Mercês o P. João Joaquim de Carvalho, vigário de Câmara de Lobos desde 19011332”. Este sacerdote, membro da Terceira Ordem Franciscana Secular1333, foi muito dedicado às Irmãs Clarissas. Com esta vida de oração conjugavam algumas actividades apostólicas e o trabalho. Bem cedo assumiram a formação catequética das crianças da localidade que, na sua própria casa, preparavam para a primeira comunhão. Continuavam depois a prestar-lhes a necessária assistência religiosa e tudo faziam para que nelas ganhasse raízes a vida espiritual. Este pequenino mosteiro das Irmãs Clarissas tornou-se amado por todos e particularmente pelas crianças que ali iam receber das religiosas a formação humana e catequética 54. O pequeno mosteiro da Palmeira. Foi nesta casa dos pais da Irmã Maria Matilde da Circuncisão (Matilde Martins de Barros), situada na Palmeira, que viveram sete religiosas saídas do Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal, enquanto aguardavam a possibilidade de construção dum novo mosteiro. Fotografia de Daniel A .S. Teixeira, ofm. . Com a oração e a catequese associavam o trabalho que, graças ao Senhor, não lhes faltou desde a primeira hora. Como já acontecia no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, também ali confeccionavam hóstias para muitas paróquias, bordavam para igrejas e até para particulares que, em atitude de fraterna solidariedade e ajuda, solicitavam os seus serviços. Uma delas, porque bastante culta, a Irmã Conceição, cujos pais viviam em Lisboa, exerceu o professorado. Não havendo escola na Palmeira, a população acolheu a iniciativa das religiosas com grande júbilo e tudo prepararam com entusiasmo. Por D. Ester de Barros e pela Irmã Josefina, clarissa de setenta e quatro anos, membro da comunidade do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, cuja mãe foi aluna durante alguns anos da “menina Conceiçãozinha de Lisboa”, como era designada, sabemos que a Irmã Conceição era uma alma de profunda espiritualidade e de muita delicadeza, o que a fazia amada de todos. Excelente educadora e muito dedicada aos alunos, a Irmã Conceição, para além daquilo que era matéria escolar, empenhava-se na formação catequética, moral e educativa daquelas crianças boas e meigas. O conceito em que eram tidas as capuchinhas das Mercês havia-se transplantado para o pequenino mosteiro da Palmeira. Em gesto de fraterno amor e colaboração, não faltavam a estas heróicas religiosas as mais variadas ofertas dos familiares e pessoas amigas. Do seu espírito de sacrifício, sabia a menina Constantininha que, santamente curiosa, se dava ao trabalho de ir observando atentamente as Irmãs, procurando descobrir o seu espírito de renúncia. Os anos iam passando e as irmãs partindo ao encontro do Pai. A 19 de Outubro de 1913, faleceu a Irmã Rosa Maria do Monte do Carmo (Rosa Maria de Barros)1334, a 11 de Outubro 1332 AHDF, L 5 de Serviços Paroquiais, p. 48. No Arquivo da Terceira Ordem Franciscana de Câmara de Lobos há um documento de 7 de Maio de 1942, em que o padre João Joaquim de Carvalho, por se encontrar “fisicamente impossibilitado”, pede a transferência das suas funções para o novo tesoureiro, Manuel Gonçalves de Sousa. Além disso nos registos de óbito das Irmãs Rosa Maria de Barros e Matilde Martins de Barros, este sacerdote escreveu: “(...) religiosa professa da Segunda Ordem de nosso Pai São Francisco” (Livro de registo de Óbitos da Paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, ano de 1913, registo n.º 144 e ano 1916, registo n.º 119). Esta forma de expressar-se contém em si a afirmação de ser membro da família franciscana. 1334 Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbitos, ano de 1913, registo n.º 144: Registo de óbito de Rosa Maria de Barros. 1333 289 de 1916, com quarenta e oito anos apenas, a Irmã Maria Matilde da Circuncisão (Matilde Martins de Barros) 1335 e, em data que não nos foi possível apurar, faleceu a Irmã Antónia Angelina da Cruz. A Irmã Conceição, depois de alguns anos de vida na Palmeira, a instâncias dos pais e porque parecia não querer raiar a aurora que permitisse a construção do tão desejado mosteiro, seguiu para Lisboa, vindo a falecer santamente, alguns anos depois, na casa de seus pais1336. Dez anos mais tarde, exactamente a 14 de Dezembro de 1926, morreu Constantina Martins de Barros, com sessenta e cinco anos1337, vítima de apoplexia cerebral, passando a casa aos herdeiros. Adiantamos a hipótese, embora com algumas dúvidas, de que teria sido após a morte da proprietária da casa, que as Irmãs Maria Querubina de Santa Rosa e Maria de Santo António, teriam saído da Palmeira para a Torre, para a companhia da Irmã Clara Maria de São José1338. 3.2. O grupo da Caldeira No sítio da Caldeira, construíra o P. Manuel Gonçalves Henriques, no final do século XVIII, junto à sua residência, uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade, que dotara segundo as leis canónicas, por escritura pública de 3 de Abril de 1800. Aquando da implantação da República, era seu proprietário o P. António Rodrigues Dinis Henriques1339. Foi ali, sob o meigo olhar de Nossa Senhora da Piedade, que a Irmã Maria Francisca da Piedade, natural do “sítio”, se acolheu, acompanhada das Irmãs Maria Teresa da Apresentação, do Funchal, Vitorina Maria da Encarnação, da freguesia do Estreito. Bem depressa se lhes juntou, como candidata, Maria Júlia de Barros. Estas religiosas alojaram-se numa casinha pertencente aos pais da Ir. Maria Francisca da Piedade, onde procuraram organizar a sua vida de oração e trabalho, aguardando, assim lho dizia a confiança que em Deus depositavam, a construção de um novo mosteiro. Confeccionavam hóstias para algumas paróquias, dedicavam-se aos bordados e faziam todo o bem espiritual que podiam à população da Caldeira, que à data era muito pouca. Na capela encontravam o espaço para a oração comunitária e pessoal e no P. António Dinis, quando cansado e debilitado pelo peso dos anos, deixou a paróquia da Quinta Grande e passou à sua residência da Caldeira, o mestre espiritual que procurava ajudá-las no caminho de ascensão para Deus. A Ir. Francisca da Piedade foi a enfermeira cuidadosa e dedicada que o tratou solicitamente até à morte, prestando-lhe todos os serviços necessários. Algumas vezes recebiam a visita da Madre Virgínia, que com elas tinha longos tempos de oração. Deixava-as a Madre cheias de coragem e de esperança. A Irmã Teresa da Apresentação, quando a Madre Virgínia, nos últimos anos da sua vida, adoeceu gravemente, deslocou-se para a sua companhia, prestando-lhe todos os cuidados e dando-lhe o melhor do seu amor e carinho. 1335 Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbitos, ano de 1916, registo n.º 119: Registo de óbito de de Matilde Martins de Barros. Segundo informação de D. Ester de Barros, os pais da Irmã Conceição, mesmo depois da sua morte, mantiveram contacto epistolar com a família Barros, falando da sua Conceiçãozinha com viva satisfação, pois sempre a viram empenhada na prática do bem, cheia de amor, delicadeza e bondade. 1337 Arquivo do Registo Civil, Câmara de Lobos, Livro de Registos de Óbitos, ano de 1926, registo n.º 370: Registo de óbito de Constantina Martins de Barros; Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registos de Óbitos, ano de 1926, registo n.º 169: Registo de óbito de Constantina Martins de Barros. 1338 Apesar das diligências feitas, não conseguimos detectar onde teriam passado os seus últimos dias algumas Irmãs deste núcleo; possivelmente, os familiares tê-las-iam levado consigo, quando em estado de doença grave ou idade avançada. 1339 Elucidário Madeirense, II, p. 464. 1336 290 A 6 de Janeiro de 1922, faleceu, na sua residência anexa à capela, o P. António Rodrigues Dinis Henriques, com oitenta e nove anos1340. As religiosas sentiram a morte de tão bom sacerdote, pois ficavam sem a sua ajuda espiritual; porém, uma luz começava a despontar. A capela e propriedades envolventes, segundo disposições testamentárias, não haviam passado para os herdeiros, mas sim para o vigário de Câmara de Lobos, para dar oportunidade a que o desejo que sempre acalentara - levantar ali mesmo um mosteiro para as Irmãs Clarissas, - se pudesse concretizar. Havia, no entanto, que aguardar um ambiente político-social mais favorável. No dia 27 de Setembro do mesmo ano, depois de uma vida virtuosa, o Senhor chamou a Si a Irmã Vitorina Maria da Encarnação. No Livro de Óbitos da paróquia de Câmara de Lobos de 1922 pode ler-se: “faleceu (...) na sua morada, depois de ter recebido os sacramentos pelo Reverendo Cura António Pinto da Silva (...) Vitorina Maria da Encarnação, de sessenta e um anos (...) religiosa capucha do extinto Convento de Nossa Senhora das Mercês da cidade do Funchal (...)”.1341 Cinco anos mais tarde faleceu a Maria Júlia de Barros1342, ficando o pequeno grupo reduzido a dois membros apenas. Quando se reuniam com a Madre Virgínia e as outras Irmãs animavam-se mutuamente, certas de que a hora de Deus começava a raiar. 55. Transformada num pequenino mosteiro. Nesta casa, situada na Caldeira, pertencente aos pais da Ir. Maria Francisca da Piedade (Augusta Policarpo Pinto Abreu) viveram três religiosas do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal e uma candidata no longo período que antecedeu a construção do novo mosteiro. Fotografia de Daniel A. S. Teixeira ofm. 3.3.No seio dos familiares A Madre Virgínia Brites da Paixão e quatro religiosas regressaram à casa paterna onde permaneceram modestamente e empenhadas em obras apostólicas. Aquando da expulsão, a Madre Virgínia recolheu-se à sua casa paterna em Santo António no Lombo dos Aguiares, situada ao lado da residência dos sobrinhos: Luísa, Júlia, Virgínia e João. Não seria prudente que ela, como abadessa do extinto mosteiro, vivesse com as outras religiosas, pois isso despertaria a atenção nas autoridades Quadro nº.61 – Na casa paterna Nome das Religiosas Madre Virgínia Brites da Paixão Clara Maria de São José Maria Marta de Jesus Cristo Maria Natividade do Amor Divino Maria Pacífica Local Funchal (Lombo dos Aguiares) Câmara de Lobos (Torre) Câmara de Lobos (Preces) Câmara de Lobos (Serrado d’Adega) Porto Moniz Fonte: Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos 2-7v. . A Madre Virgínia estabeleceu, pois, residência em Santo António, donde descia muitas vezes a visitar as suas Irmãs nos sítios da Palmeira e da Caldeira. Infundia nelas o alento, estimulava-as na prática de todas as virtudes e na fidelidade ao seu carisma contemplativo, 1340 AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, fol. 9; Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registos de Óbitos do ano de 1922, registo n.º 3: Registo de óbito do Reverendo P. António Rodrigues Dinis Henriques. 1341 Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbito, ano de 1922, registo n.º 140: Registo de óbito de Vitorina Maria da Encarnação. 1342 Arquivo da paróquia de São Sebastião, Câmara de Lobos, Livro de Registo de Óbitos, ano de 1927, registo nº. 93, fol.24: Registo de Maria Júlia de Barros. 291 certa de que um novo mosteiro as iria reunir.Com as Irmãs da Palmeira a Madre ficava temporadas longas, como já foi dito, ajudando-as e dinamizando a sua vida espiritual, como superiora que era. Ali se vinham juntar as mais próximas, sempre que podiam. A Madre Virgínia sentia-se mãe entre suas filhas1343. Na modesta casa de seus pais no Lombo dos Aguiares, onde viveu de fins de 1910 a 17 de Janeiro de 19291344, ou na Palmeira e Caldeira com suas Irmãs, continuou a Madre Virgínia a observar as regras da sua Ordem. Alma de revelações místicas, era admirada não só pelas suas Irmãs, como também pelo povo em geral. Todos a olhavam com estima porque nela viam muita virtude. A Madre foi, podemos afirmá-lo, o elo de ligação entre suas irmãs, luz que apontava o caminho certo, fogo que ateava a chama do amor e da esperança, liame forte e firme que conseguiu manter aquela comunidade dispersa, tão unida e fervorosa . A Irmã Clara Maria de São José estabeleceu-se na Torre, na casa de seus pais. A partir, possivelmente, de 1926 juntaram-se-lhe as Irmãs Maria Ângela de Santo António e Maria Querubina de Santa Rosa. Assumiram a confecção de hóstias a que anteriormente se dedicava o grupo da Palmeira.1345 Viviam com muito espírito fraterno e muita amizade, oravam e trabalhavam. Os seus dias iam deslizando mais ou menos iguais. Algo, porém, era sempre diferente, porque sempre maior e mais profundo: o amor que as ligava a Deus e à humanidade. A Irmã Maria Marta de Jesus Cristo, natural das Preces, Câmara de Lobos, embora vivendo em casa de seus pais até à construção do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, esteve sempre em união com suas Irmãs. A Irmã Maria da Natividade do Amor Divino durante a estadia na família no Serrado d’Adega inseriu-se numa peregrinação a Roma e à Terra Santa, que lhe proporcionou momentos de grande alegria e enriquecimento espiritual. A Irmã Pacifica, natural da pitoresca e bela freguesia de Porto Moniz, que entrara nas Mercês em 1908, era noviça à data da expulsão. Regressando à sua casa aí viveu vinte anos, acalentando sempre o desejo e a esperança de consagrar-se ao Senhor. Com sua irmã Maria Nazaré, um pouco mais velha, dedicou-se a obras de apostolado na sua paróquia, catequizando crianças e adultos1346. 4. Unidas e reorganizadas Concluiremos dizendo que as Irmãs das Mercês do Funchal souberam viver bem unidas ao Senhor, em caridade e oração, e prestando nas suas paróquias importantes serviços apostólicos e catequéticos, enquanto aguardavam condições que permitissem a construção de um novo mosteiro,. Nenhuma estava isolada ou independente, mas sempre em comunicação com as demais e, sobretudo, com a Madre Virgínia, com quem mantinham contacto epistolar e com quem se reuniam sempre que possível. A conduta exemplar destas religiosas não passou despercebidas às autoridades nem ao grande público. Em 1946 escreveu o P. Fernando Augusto da Silva: “ Embora com a mais recatada prudência e sem uma sanção legal que a isso abertamente as autorizasse, 1343 Foi numa destas estadias que se passou um caso que a senhora D. Ester Ramos nos contou. Certo dia, o Rufininho, sobrinho da Irmã Maria Matilde da Circuncisão, cujos pais moravam ao lado das religiosas, caiu ao poço. Aos gritos da mãe, acudiu a Madre Virgínia tranquilizando a senhora e pedindo-lhe que não se afligisse, porque o menino não morreria. Quando a senhora se abeirou do poço encontrou a criança viva e satisfeita à superfície da água. “Este menino,” acrescentou a senhora D. Ester, “foi o meu pai”. Quantas coisas belas conta esta senhora das Irmãs que ali viveram!... 1344 Arquivo do Registo Civil do Funchal, Livro de Registos de Óbitos, ano de 1929, registo n.º 74: Registo de óbito de Madre Maria Virgínia Brites da Paixão; Abel Soares Fernandes, Alguns apontamentos sobre a vida Madre Virgínia Brites da Paixão (trabalho dactilografado), Funchal, 1998, p. 7 e 8. 1345 Pudemos contactar com a senhora D. Lucília Martinha de Sousa, residente na Torre junto à capela da Boa Hora, que ainda se lembra de ir com outras crianças pedir aparas das hóstias às Irmãs. 1346 Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Óbitos, p. 7 e ss. 292 mantiveram-se sempre observando com rigor os preceitos das suas regras, conforme podiam permitir as circunstâncias da ocasião. Foi talvez um caso único ocorrido no nosso país”1347. Assim, à excepção das que foram partindo para o Senhor, a 16 de Abril de 1931, todas entraram no novo remanso de amor e paz - o Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Caldeira em Câmara de Lobos, como vamos ver na Terceira Parte desta obra TERCEIRA PARTE MOSTEIROS DA MADEIRA NO PRESENTE I Secção - Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade (Caldeira - Câmara de Lobos) II Secção - Mosteiro de Santo António (Lombo dos Aguiares - Funchal) 1347 Fernando Augusto da Silva, op. cit., I, p. 181 e 182. 293 I SECÇÃO MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE 294 (fotografia) 56. Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. Ao fundo do pequeno vale da Caldeira, encostado às altas montanhas que o envolvem, fica o branco mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, lugar de oração e de paz, que a população circunvizinha olha com amor. CAPÍTULO I 295 A CONSTRUÇÃO DA CAPELA DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE E SUA TRANSMISSÃO ÀS IRMÃS CLARISSAS 1. A capela de Nossa Senhora da Piedade, iniciativa do P. Manuel Gonçalves Henriques 1.1. A construção O P. Manuel Gonçalves Henriques, filho de Pedro Gonçalves e Guiomar Henriques, naturais de Câmara de Lobos, ordenado sacerdote em 17681348, foi dotado por seus pais com uma propriedade na Caldeira1349, onde veio a construir uma residência. Foi ali que passou os últimos anos da sua vida quando, com a saúde abalada, já não podia exercer o múnus sacerdotal como vigário. Vendo-se impossibilitado de celebrar missa diariamente, pois não podia percorrer os caminhos, umas difíceis veredas, que conduziam a Câmara de Lobos, decidiu o P. Manuel Gonçalves Henriques edificar à sua custa, junto à sua residência “uma capela com tribuna, a qual quer invocar como título de Nossa Senhora da Piedade”1350. Terminada a construção, que se efectuou nos últimos anos do século XVIII1351, tratou o P. Manuel Gonçalves Henriques de apetrechá-la com paramentos litúrgicos e vasos sagrados. No início do ano de 1800, recorreu ao prelado da diocese, para obter licença de nela poder celebrar missa, “para que, facultando-lhe aquela graça, mande proceder à vistoria da mesma capela”1352. O alvará de D. Luís Rodrigues Vilares, de 9 de Abril de 1800, concedia a licença solicitada: “pelo presente Alvará concedemos licença de que se façam as diligências necessárias de Património, que tem dotado o R. Suplicante Manuel Gonçalves Henriques, para a conservação e reparo da capela da Nossa Senhora da Piedade, sita na freguesia de Câmara de Lobos para a erecção da qual temos concedido a licença pedida”1353. 1.2. A dotação A 3 de Março de 1800, o P. Gonçalves Henriques solicitou dois avaliadores à Câmara do Funchal, José Ferreira da Silva e Manuel Francisco do Souto, para “dividir, avaliar e demarcar” a fazenda que iria constituir o dote da capela de Nossa Senhora da Piedade “declarando também, debaixo de juramento, os seus rendimentos anuais”1354. 1348 AHDF, caixa 100, maço 200, n.º 1683, fol. 1 e ss. Veja-se a nota de rodapé página IX. AHDF, caixa 100, maço 200, n.º 1683, fol. 2 e ss. 1350 AHDF, caixa 16 , doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade, erecta na freguesia de Câmara de Lobos, pelo P. Manuel Gonçalves Henriques, fol. 1 e 2. 1351 A construção da capela teve lugar na última década do século XVIII, e não em 1800, como se lê no Elucidário Madeirense, II, p. 464. De facto, em princípios de Março de 1800, já terminada a sua construção e apetrechada com paramentos litúrgicos e vasos sagrados, entrou em curso o processo de dotação canónica, a pedido do P. Manuel Gonçalves Henriques. 1352 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade,(..), fol. 2, comissão de D. Luís Rodrigues Vilares para o vigário de Câmara de Lobos de 24 de Novembro de 1800. 1353 AHDF, caixa 16 , doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 2v, alvará de D. Luís Rodrigues Vilares, dado no Funchal a 9 de Abril de 1800. 1354 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 6-8: Auto de avaliação de 3 de Março de 1800. 1349 296 57. Residência do P. Manuel Gonçalves Henriques. Esta porta, mostrando na padieira a data da construção do edifício, 1771, era a porta de entrada da residência. Tratava-se de uma propriedade plantada com vinha que confrontava a norte com Sebastiana Maria Rosa, viúva de Inácio Nunes Pereira; a sul com José Ferreira e com os herdeiros de António Gonçalves Henriques; a leste com os ditos herdeiros de António Gonçalves Henriques; a oeste com a Levada de Heréos, que ia para o Rancho.1355 Acharam os avaliadores que “com todas as benfeitorias que tem que são paredes, latadas e vinha (...) e a parte da água que lhe pertence (...) vale 850. 000 réis”1356. Avaliada a fazenda, foi lavrado o instrumento público de dotação, acto que teve lugar a “3 de Abril do referido ano, nesta freguesia de Câmara de Lobos, no sítio da Caldeira, em casa do Reverendo Manuel Gonçalves Henriques (...) perante testemunhas”. Disse o dotador que tinha feito ali a capela de Nossa Senhora da Piedade para nela dizer Missa e que “a dotava com um bocado de terra coberta de vinha”1357, com as confrontações já demarcadas pelos avaliadores. Ficava a referida propriedade vinculada à capela “por todo o tempo do mundo”1358. A 8 de Agosto o Cónego Jacinto Manuel Borges de Bettencourt, na qualidade de vigário geral da diocese e em nome do prelado, mandou que o cura de Câmara de Lobos designasse “dois avaliadores de boa consciência e com juramento feito nos Santos Evangelhos (...) para dividir, avaliar, demarcar e confrontar a fazenda doada, declarando também debaixo do mesmo juramento os seus rendimentos anuais”1359, devendo enviar à Câmara Eclesiástica os respectivos autos. Em obediência a esta determinação, o cura de Câmara de Lobos, Domingos de Sá Pinto, na qualidade de inquiridor comissário, a 13 de Agosto nomeou os avaliadores Mateus de Faria e Manuel Martins, que juraram sobre os Evangelhos proceder com toda a rectidão1360. A propriedade com que estava dotada a capela de Nossa Senhora da Piedade, foi então avaliada em 875.000 réis, valor que excedia em 25.000 réis a avaliação anteriormente feita, e o seu rendimento anual foi fixado em 50 mil réis1361. A 31 de Agosto foi dado conhecimento da construção da capela e respectiva dotação na missa dominical em Câmara de Lobos, ficando o respectivo documento afixado na porta da igreja pelo espaço de três dias, a pedido do Vigário Geral da diocese, para que pudesse pronunciar-se quem fosse conhecedor de algum dos impedimentos seguintes: se a capela está de posse da propriedade dotada, sem contradição de pessoa alguma; se vale menos de 875.000 réis; se é livre e desembargada; se é de morgado, prazo ou capela; se a fazenda dotada é do dotador e por que título lhe pertence e se, sem prejuízo seu ou de terceiros, pode fazer este dote1362. A 14 de Setembro do referido ano o cura Domingos da Silva Pinto comunicava ao vigário geral: “Foi publicado (...) no dia 31 de Agosto (...). Não houve impedimento algum 1355 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 6: Auto de avaliação (...) e fols. 7- 8 : Auto de demarcação de 3 de Abril. 1356 AHDF, caixa 16,doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 6: Auto de avaliação (...), fol. 6. 1357 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 3 – 4: Instrumento público de Dotação de 3 de Abril de 1800. 1358 AHDF caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 10 -11v: Auto de Avaliação (...). 1359 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 9– 9v: Provisão de Jacinto Manuel Borges de Bettencourt, dada no Funchal a 8 de Agosto de 1800. 1360 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol.10: Testemunho do cura de Câmara de Lobos, Domingos da Silva Pinto. 1361 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 13: Carta do provisor Jacinto (...) de 2 8 de Agosto de 1800. 1362 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 13: Carta do provisor Jacinto (...) de 28 de Agosto de 1800 297 nem denúncia”1363. Assim sendo, a fazenda com que o P. Manuel Gonçalves Henriques “por sua livre vontade e muito gosto (...)” dotava a capela de Nossa Senhora da Piedade, “fazenda herdada de seus pais e parte comprada aos herdeiros”1364, ficava vinculada como património perpétuo à capela de Nossa Senhora da Piedade de Câmara de Lobos, sítio da Caldeira. A referida fazenda gozava “de todas as prerrogativas, privilégios e isenções”, não podendo ser objecto de qualquer “alienação, convenção ou transacção que possa, directa ou indirectamente, prejudicar a mesma capela”1365. Ficava, pois, “para a conservação decente da capela, situada no lugar denominado da Caldeira, na freguesia de Câmara de Lobos, para que fiquem os seus rendimentos in perpetuum, servindo para os reparos e paramentos necessários da sobredita capela”1366. 58. Frontispício da capela de Nossa Senhora da Piedade. A capela de Nossa Senhora da Piedade evoca a figura do P. Manuel Gonçalves Henriques que a mandou construir junto à sua residência. A porta de entrada apresenta toda a beleza e originalidade da arquitectura da época. A 24 de Novembro do mesmo ano, o bispo do Funchal, encarregava o vigário de Câmara de Lobos da vistoria da capela construída e dotada pelo P. Manuel Gonçalves Henriques “para que não fiquem seus desejos frustrados e para sua consolação”1367. Em obediência ao mandato de D. Luís Rodrigues Vilares, a 26 de Novembro do mesmo ano o vigário de Câmara de Lobos, José de Freitas Spínola, procedeu à vistoria da capela “que se acha decentemente asseada, o altar em tudo pronto e os paramentos não só necessários para celebrar o santo sacrifício da missa com decência em uma capela particular mas ainda em qualquer igreja paroquial pelos ter de todas as cores de que usa a Igreja nas suas diferentes festividades; além disso está a mesma capela provida de cálice, patena, missal e caderno de defuntos, com tudo o mais que é necessário para o mencionado fim”1368. 1.3. A benção da capela Uma vez vistoriada e aprovada para o culto religioso, o fundador suplicou ao prelado da diocese se dignasse “conferir a necessária jurisdição ao Reverendo Pároco que fez a vistoria (...)” para a benzer, assim como os paramentos e as imagens, a fim de que se pudesse “celebrar nela o Santo Sacrifício da Missa”1369. Respondendo a esta legítima súplica, o bispo, por provisão de 28 de Novembro de 1800, concedeu ao pároco da freguesia de Câmara de Lobos a licença solicitada: “ Havemos por bem conceder licença ao Reverendo vigário da dita freguesia para que na forma do ritual de Paulo V, possa benzer a dita capela, assim como também as imagens nela colocadas e os mesmos ornamentos; e permitimos se diga missa nela, ficando sujeita à nossa jurisdição para ser visitada e para tudo o mais que 1363 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 13 v. AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 18–18v: Auto do cura Domingos de Sá Pinto, inquiridor comissário, de 4 de Setembro de 1800. 1365 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 19. 1366 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 19v: Sentença de 9 de Setembro de 1800. 1367 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fols. 21- 21v: Comissão dirigida ao vigário de Câmara de Lobos, dada no Funchal a 24 de Novembro de 1800. 1368 AHDF, caixa 16, Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...), fol. 22: Auto da vistoria feito pelo escrivão eleito, João António de Abreu Almeida, de 22 de Novembro de 1800. 1369 AHDF, caixa 16, doc. avulso: Património da capela da Nossa Senhora da Piedade (...): Súplica do P. Manuel Gonçalves Henriques ao Prelado da Diocese. Este documento, certamente por lapso, não está inserido no processo. Encontra-se escrito numa folha de papel de igual qualidade, mas dobrado e colocado no final do processo. 1364 298 determinarmos; com cláusula de não poder impedir aos fiéis que nela quiserem ouvir missa, nem aos sacerdotes que tiverem devoção de celebrar na mesma capela”1370. Concedida a licença para a benção, o P. José de Freitas Spínola, vigário de Câmara de Lobos, deu cumprimento à provisão episcopal benzendo a capela de Nossa Senhora da Piedade, a 30 de Novembro de 1800. Tal como determinava a referida provisão, elaborou e enviou à Câmara Eclesiástica a respectiva certidão: “Eu José de Freitas Espínola, vigário nesta Colegiada de Câmara de Lobos, em virtude da Provisão supra, fui ao sítio da Caldeira, onde se acha a capela de Nossa senhora da Piedade (...) e a benzi na forma do Ritual determinado de Paulo quinto, como também as imagens e paramentos”1371. Chegava-se ao final do processo canónico, ficando o fundador a gozar dos direitos vinculados à sua capela. 2. Transmissão da capela e seu património por testamento do P. Manuel Gonçalves Henriques Acabado pelos anos, a 24 de Dezembro de 1831, no sítio da Caldeira da freguesia de São Sebastião de Câmara de Lobos, confortado com todos os sacramentos, faleceu o P. Manuel Gonçalves Henriques. Deixou exarado no seu testamento que o seu corpo fosse “revestido das vestes sacerdotais, sepultado na sua capela da Nossa Senhora da Piedade (...) que na mesma capela fosse depositado o seu corpo e se lhe fizesse um ofício de corpo presente com a assistência do seu pároco e clérigos desta freguesia e da do Estreito, do cura da capela de Nossa Senhora dos Remédios e dos religiosos do mosteiro de São Bernardino e que neste acto funerário assistissem os pobres que quisessem, dando-se a cada um de esmola cinquenta mil réis”1372. Como seu universal herdeiro e testamenteiro designou “seu sobrinho António Gonçalves Henriques Correia, Capitão de Milícias”. Transitava, pois, para ele não só a capela como também a residência e propriedades. Por uma declaração de quitação lavrada pelo notário Manuel de Sousa Drummond, em 18 de Maio de 1868, sabe-se que estas propriedades, incluindo a residência e a capela, foram hipotecadas em vida do capitão em virtude de uma divida contraída a uma casa comercial1373. Após a sua morte, que ocorreu a 4 de Abril de 1866, com oitenta e oito anos, os seus filhos, Ana Júlia de Freitas Henriques, Tibúrcio Justino Henriques, António Gonçalves Henriques, casados, e Luís Agostinho Henriques, na altura solteiro, decidiram sanar aquela situação. Assim, por escritura de 23 de setembro de 1867, feita no tabelião de notas Cândido Leal Lacerda, saldaram a divida e receberam as propriedades hipotecadas que, segundo a referida declaração de quitação, passaram a pertencer a todos os irmãos1374. 3. O P. António Rodrigues Dinis Henriques, proprietário da capela de Nossa Senhora da Piedade, e seu património 3.1 . Compra e transmissão 1370 ARM, Câmara Municipal do Funchal, Livro 4º do Tombo da Câmara. fols. 223 v - 224v, em microfilme; AHDF, L 77, fols. 223v - 224; Manuel Pedro Freitas “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II - Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 27 de Setembro de 1998, p. 13. 1371 ARM, Câmara Municipal do Funchal, Livro 4º do Tombo da Câmara. fols. 223 v -224v, em microfilme; AHDF, L 77, fols. 223v-224; Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 27 de Setembro de 1998, p. 12. 1372 ARM, Paroquiais, L 325, fols. 13 8 v-139 : Registo de Óbito do P. Manuel Gonçalves Henriques. Tem incluso o testamento. 1373 ARM, Notariais, L 13 do Tabelião Manuel Sousa Drummond, da Câmara Municipal do Funchal, fol. 48. 1374 Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de 1998, p. 12. 299 O P. António Rodrigues Dinis Henriques nasceu a 2 de Setembro de 1833, sendo ordenado presbítero a 23 de Julho de 18651375. Era filho de Manuel Rodrigues Dinis e de D. Maria Correia Henriques, proprietários, naturais da freguesia de Câmara de Lobos1376. No dia 18 de Agosto de 1864, seus pais, moradores no sítio da Caldeira, para cumprimento das leis canónicas, dotaram-no, antes da ordenação sacerdotal, com uma “ terra e benfeitorias (...) que tem a medição superficial de quarenta e cinco ares e trezentos e setenta e cinco centiares quadrados, que (...) confronta a norte com o prédio de João Pinto da Silva e Francisco Figueira, a sul com João Gonçalves Henriques e António Pinto, a leste com o ribeiro da Caldeira e a oeste com João Gonçalves Henriques, e foi avaliada com as benfeitorias que tem, em 435.500 réis”1377. Pelo instrumento público, lavrado no Funchal diante do tabelião, José Joaquim de Nóbrega e Matos, António Rodrigues Dinis Henriques ficava dotado da “referida “propriedade e suas benfeitorias, com suas entradas e regalias anexas, direitos e acções, para lhe servir de património enquanto for vivo, contanto que lhe sejam concedidas as últimas Ordens Eclesiásticas e que chegue a dizer Missa”1378. A 30 de Junho de 1866 já o P. António Rodrigues Dinis Henriques estava na Quinta Grande como vice-vigário e a 15 de Abril de 1879, por portaria régia, foi nomeado vigário colado da mesma freguesia1379. Pouco depois da morte do capitão António Gonçalves Henriques, o P. Dinis e seu irmão Manuel Rodrigues Dinis, solteiro, residente na Caldeira, por escritura de 18 de Maio de 1868, feita pelo notário Manuel de Sousa Drummond, compraram por 700.000 réis três propriedades no sítio da Caldeira aos filhos do capitão, onde estava incluída a capela, ficando o P. Dinis com dois terços da compra e seu irmão com um terço1380. Com esta aquisição o P. António Rodrigues Dinis Henriques sucedeu ao capitão António Gonçalves Henriques e aos seus herdeiros na posse da capela de Nossa Senhora da Piedade, tendo, possivelmente, partilhado a residência com o seu irmão. A parte anexa à capela teria ficado pertença sua e a outra de seu irmão. Ignoramos a data em que o vigário da Quinta Grande teria passado a residir na Caldeira, na casa anexa à capela de Nossa Senhora da Piedade, mas sabemos que já ali se encontrava a 8 de Janeiro de 1914, data da redacção do seu testamento, lavrado “no sítio da Caldeira, actual residência do Padre António Rodrigues Dinis Henriques1381. Pelo conteúdo de uma inscrição em tempos existente no pavimento da capela, podemos concluir que, em 1894, nela se realizaram obras à responsabilidade do P. António Dinis Rodrigues, sem, contudo, adulterar a sua arquitectura original1382. Também nos finais de 1914, segundo o Diário da Madeira de 7 de Outubro desse ano, se teria procedido a trabalhos de pintura e decoração da capela sob a responsabilidade do pintor José Zeferino Nunes1383. Em 1914, sentindo-se já bastante doente, mas “em perfeito juízo e livre de coacção, (...) fez o seu testamento perante o notário Cândido Eduardo de Freitas e cinco testemunhas 1375 AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 9. AHDF, caixa 168, maço 336, nº 2749, fol. 6. AHDF, caixa 168, maço 336, nº 2749, fol. 6 e 6 v. 1378 AHDF caixa 168, maço 336, nº 2749, fol. 6 v. 1379 AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 9. 1380 Manuel Pedro Freitas. “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de 1998, p. 12. 1381 ARM, Notariais, L 3 857, Livro de Testamentos, Cartório Notarial de Câmara de Lobos, fol. 7 1382 ARM, Câmara Municipal do Funchal, Livro 4º do Tombo da Câmara. fols. 223 v - 224v, em microfilme; AHDF, L 77, fols. 223v - 224; Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II- Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de 1998, p 13. No Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade encontra-se a referida inscrição manuscrita por um operário quando, posteriormente, sendo já propriedade das religiosas, se procedia à remodelação do pavimento. 1383 Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade, Parte I - Construção e Benção”, in Jornal da Madeira de 4 de Outubro de 1998, p. 13. Outras obras, ampliações e melhoramentos que a capela sofreu mais tarde, foram da iniciativa das Irmãs Clarissas que, a partir de 1931, se tornaram suas proprietárias. 1376 1377 300 idóneas”1384. Verificamos que, enquanto lega bens imóveis situados na Caldeira e na Eira do Lombo a vários sobrinhos, transmite, com todas as formalidades legais, ao P. João Joaquim de Carvalho, vigário da freguesia de Câmara de Lobos e, na sua falta, ao P. Manuel Joaquim de Paiva, da freguesia de São Pedro, no Funchal, os prédios seguintes: “ Uma porção de terra, no sítio da Caldeira, freguesia de Câmara de Lobos, com vinha e árvores de fruto e uma casa coberta de colmo, a confinar a norte e a leste com António da Silva e Augusto Policarpo, a sul com o mesmo António da Silva e a oeste com a Levada de Heréos, (...) e um prédio rústico e urbano, contendo árvores de fruto, um palheiro, uma casa de habitação, onde actualmente reside o testador, loja e cozinha e uma capela contígua, sob a invocação de Nossa Senhora Piedade(...)” Era desejo do testador e assim o pedia ao respectivo legatário que “ na sua capela continue sempre a celebrar-se o culto católico”1385. 3.2. Cumprimento de uma vontade: a construção dum mosteiro de Clarissas A transmissão da capela e propriedade a ela vinculada ao vigário de Câmara de Lobos obedecia a um plano preconcebido: o P. Dinis desejava que ali fosse construído um mosteiro da Ordem de Santa Clara de Assis, onde se congregassem as religiosas das Mercês que ainda viviam., Disso era sabedor D. António Manuel Pereira Ribeiro, bispo do Funchal e, com essa finalidade, foram os referidos bens imóveis transmitidos ao vigário de Câmara de Lobos1386. De facto, na impossibilidade de passarem aqueles bens à diocese do Funchal, em virtude das leis do Estado pós-republicanas, que não reconheciam à Igreja o direito de propriedade, a transmissão da capela e seu património ao P. João Joaquim de Carvalho, membro da Terceira Ordem Franciscana, grande admirador das religiosas e da total confiança do testador e do prelado, era, tão somente, uma forma de reserva dos referidos bens, para a finalidade em vista. Segundo algumas religiosas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, que nele viveram dezenas de anos com suas Irmãs vindas das Mercês, a construção do mosteiro na propriedade pertencente à capela, e a inclusão desta no novo edifício, era aspiração profunda da alma bondosa do P. António Dinis1387. Em 1927-1928 começaram a fazer-se diligências para a construção do almejado mosteiro, com grande júbilo do P. João Joaquim de Carvalho, que via chegada a hora de se concretizarem os objectivos que haviam determinado a passagem daqueles bens para as suas mãos. A confirmar o sobredito, está o facto de, em 1928, o P. João Joaquim de Carvalho ter autorizado as Irmãs Clarissas a construir nos terrenos em questão, sem qualquer venda, ainda que fictícia e, em 1938, ter encontrado um meio de lhes transmitir os imóveis. Com efeito, por escritura de 5 de Janeiro daquele ano, a capela e as 1384 ARM, Notariais, L 3857, Livro de Testamentos, Cartório Notarial de Câmara de Lobos, fol. 6 v. ARM, Notariais, L 3857, Livro de Testamentos, Cartório Notarial de Câmara de Lobos, fol. 8. Do manuseamento de todos os seus bens, direitos e acções, o testador instituiu herdeiro universal o P. João Joaquim de Carvalho e, na sua falta, o P. Manuel Joaquim de Paiva, os quais nomeou também testamenteiros, pedindo-lhes que se encarregassem do seu funeral e bem da sua alma ( fol. 8). O P. João Joaquim de Carvalho, filho de Manuel José de Carvalho e de Maria Antónia Leça de Carvalho, era natural da freguesia da Sé do Funchal, onde nasceu a 14 de Abril de 1865. Foi ordenado presbítero a 13 de Junho de 1889 (AHDF, caixa 172, maço 343, nº 1886; Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 12 ). A sua actividade, como sacerdote e pároco, foi muito meritória. Com a sua acção caracteristicamente religiosa associou uma notável actuação sócio- pedagógica que visou essencialmente a classe piscatória de Câmara de Lobos. De todos os padres que no decurso deste século XX passaram por esta cidade, o P. João Joaquim de Carvalho terá sido a figura mais importante e distinta. (Manuel Pedro Freitas, Jornal da Madeira, 20 de Setembro de 1998, p. 11). A sua dedicação por todos, mas principalmente pelos mais carenciados, a sua abertura e bondade nasciam-lhe da sua alma franciscana, boa e plena de amor. Este sacerdote, nomeado Cónego da Sé Catedral por provisão de 24 de Outubro de 1936, foi até à sua morte, ocorrida a 15 de Dezembro de 1942 (AHDF, Livro 5 de Serviços Paroquiais, p. 12), um grande amigo e benfeitor do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. 1386 O senhor João Quirino da Silva e algumas Irmãs idosas que vivem no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, e que tiveram contacto com o referido prelado e o P. João Joaquim de Carvalho, assim o testemunham. 1387 A Irmã Maria Clarisse Xavier, à data (1999) com noventa anos feitos, em plena posse das suas faculdades mentais, fala, com vivacidade e muita clareza, deste desejo do P. António Dinis. O senhor João Quirino da Silva, que vive ao lado do mosteiro e conviveu, bem de perto, com o P. António Dinis e as Irmãs Clarissas, confirma esta informação. 1385 301 respectivas propriedades passaram daquele sacerdote a um grupo de Irmãs Clarissas1388, constituídas dois dias antes em Sociedade, sob a denominação de Associação Protectora das Senhoras Pobres1389. Uma vez mais a sua posse é protegida, por forma a não correr o risco de passar para o Estado. Com efeito, não só a transferência foi feita para a referida Associação e não directamente à Ordem, como não se fez a título gracioso. Naturalmente, pelo que nos é dado saber, os valores envolvidos nesta transacção foram puramente convencionais1390. As religiosas de mais idade e algumas pessoas que conheceram e privaram de perto com o P. Carvalho e o P. Dinis assim o atestam. CAPÍTULO II O NOVO MOSTEIRO 1. O despontar da aurora 1388 ARM, Notariais, L 139 do notário de Câmara de Lobos, Manuel Pontes de Gouveia, fol.29v e ss. : Venda do P. João Joaquim de Carvalho à Associação Protectora das Senhoras Pobres; Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Fundação da capela e mosteiro. Foram outorgantes da Associação Protectora das Senhoras Pobres: Firmínia Ferraz (leiga), Silvina Matilde de Barros (Ir. Clara Maria de São José), Augusta Policarpo Abreu (Ir. Maria Francisca da Piedade), Mónica Teresa de Ornelas (Ir. Maria Mónica dos Santos) e Maria Matilde Martins (Ir. Maria Bernardete do Sagrado Coração). Tratava-se, evidentemente, de uma solução jurídica que visava a transmissão daqueles bens imóveis às Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. 1389 ARM, Notariais, L 139 do notário Alberto de Sousa Drummond Borges, fol.28 e ss: Escritura de Sociedade por Cotas, lavrada a 3 de Janeiro de 1938, 28 e ss. ; Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, pasta 1, doc. avulso: Fundação da capela e mosteiro. No Instituto Português de Cartografia e Cadastro da Madeira, a associação aparece, por equívoco, com a designação de Associação das Senhoras Pobres. 1390 Manuel Pedro Freitas, “ Capela de Nossa Senhora da Piedade. Parte II - Os seus proprietários”, Jornal da Madeira de 4 de Outubro de 1998, p. 13. 302 Com a Revolução de 28 de Maio de 1926, novos horizontes se abriram. O novo regime começou a respeitar a liberdade da Igreja, contrariada e ofendida pela Republica de 1910. Caminhava-se para a formação do Estado Novo, a que a Constituição Política de 1933, veio dar estabilidade. A partir desta data, pôde D. António Manuel Pereira Ribeiro, bispo do Funchal, concretizar na sua diocese uma profunda renovação: vemo-lo a dinamizar a juventude, a dar expansão às confrarias de São Vicente de Paulo, a diligenciar a introdução das Ordens Regulares pelas quais tinha particular apreço, como sejam os Franciscanos, Carmelitas e Salesianos; a solicitar a presença de Congregações Religiosas femininas: à Congregação das Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, fundada na Madeira, juntaram-se, as Franciscanas Missionárias de Maria, as religiosas de São José de Cluny, da Apresentação de Maria e outras mais. Para com a Ordem de Santa Clara que, com valentia e dignidade soube permanecer na Madeira, foi pai desvelado, desde a primeira hora do seu episcopado. A 17 de Janeiro de 1929, partiu para Deus a Madre Virgínia Brites da Paixão, alma mística que, com entranhas de mãe, soubera acalentar a esperança das suas Irmãs e incentiválas na fidelidade ao carisma. Bem depressa, D. António Manuel Pereira Ribeiro e o P. João Joaquim de Carvalho entregaram a capela de Nossa Senhora da Piedade de Câmara de Lobos e propriedades anexas às Irmãs Clarissas, estimulando-as à construção do tão desejado mosteiro. Segundo depoimento do senhor João Quirino da Silva, um outro factor pesava nesta decisão. O P. João Joaquim de Carvalho, simples intermediário na transmissão dos bens do P. Dinis para às Irmãs Clarissas1391, desejava ver construído o mosteiro o mais depressa possível, pois para isso recebera aquele património. Era para ele um dever de consciência. 2. A construção, obra de muitos Que júbilo o das Irmãs Clarissas! Ei-las, mais felizes que os passarinhos do espaço, diligenciando à aquisição de meios que lhes permitissem a construção do tão desejado mosteiro. Que mais admirar? O zelo paternal do prelado, a alegria das religiosas ou a disponibilidade e acolhimento generoso e amável das autoridades e do povo madeirense? Tudo se conjugava para a consecução de tão importante empreendimento, como era um mosteiro de religiosas contemplativas, onde as jovens da Pérola do Atlântico, chamadas por Deus ao silêncio do claustro, fariam nascer na sua terra, pela oração fervorosa, um espírito novo, cheio de amor e de esperança. Na Caldeira todos ajudavam oferecendo ou transportando materiais, dando dias gratuitos, manifestando a sua amizade grande e sincera1392. Com o sacrifício e dedicação de muitos, o pequenino mosteiro, simples e pobre, mas belo e acolhedor, tornou-se, muito em breve, uma realidade. Levantado ao lado da capelinha de Nossa Senhora da Piedade, que nele ficou integrada, não poderia ter outro nome senão o de mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. E, não fora sob o olhar maternal da Senhora da Piedade que, durante vinte e um anos, algumas das Irmãs tinham vivido, sofrido e esperado?... 3. A entrada das religiosas 1391 O senhor João Quirino da Silva, afilhado do P. João Joaquim de Carvalho, refere o receio que havia de que, morrendo este sacerdote antes da construção do mosteiro, os herdeiros pudessem dificultar o cumprimento do desejo do P. Dinis. 1392 Nas visitas que, talvez umas duas mil pessoas, fizeram à exposição do espólio do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, organizada numa das salas do actual mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, no período das Celebrações Centenárias dos 500 Anos, pudemos ouvir testemunhos emocionantes. Como não lembrar aquele casal madeirense, já de cabelos brancos, radicado na Venezuela?!... Com muita vivacidade dizia o senhor: “Era eu então um rapazinho de dez anos. Como me lembro bem de ver chegar os burrinhos carregados de cimento e outros materiais que, por pobres veredas, subiam de Câmara de Lobos até aqui!... “O meu pai”, dizia, “deu às Irmãs muitos dias de trabalho por amizade e toda a gente do sítio, ajudava com muita caridade”. É assim. As obras de Deus fazem-se com o contributo de todos aqueles que compreendem que a solidariedade, por amor, dignifica e enobrece. 303 59. A comunidade das Mercês, no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. Grupo das religiosas que constituíram a comunidade inicial do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade. No primeiro plano, da esquerda para a direita: Maria Natividade do Amor Divino, Clara Maria de São José e Maria Francisca da Piedade. Em cima, Maria Ângela de Santo António, Maria Querubina de Santa Rosa e Maria Pacífica. À esquerda a Ir. Maria Teresa da Apresentação1393. Em Abril de 1931, já só viviam oito Irmãs, pois que, ao longo deste tempo de espera, sete delas haviam partido para o Céu. Aquele pequeno resto de Irmãs Clarissas, com a ajuda de Deus, vencera! Que alegria imensa ao verem concluído o seu novo remanso de paz e amor! Ditoso aquele dia 16 de Abril de 1931, em que a comunidade do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal, reduzida a oito sobreviventes e acompanhada de duas candidatas, via realizado o sonho acalentado durante vinte e um anos. Tudo era paz, alegria e serenidade no novo mosteiro. No dia 25 do mesmo mês, no meio de festa e com grande solenidade, fez-se a transladação do Santíssimo Sacramento para a pequena, mas linda capela. Neste percurso processional, saído de Câmara de Lobos, integraram-se autoridades religiosas e civis, membros do clero, organismos religiosos e muito povo da vila e da Caldeira que, rezando e cantando, iam subindo o pequeno vale até à encosta, onde sobressaía o pequeno mosteiro branco. Nem faltou a banda musical, homenageando o Santíssimo Sacramento e dando à procissão brilho e dignidade. Jesus Eucaristia ficava, a partir daquele momento, entre as religiosas como Senhor e Rei das suas vidas. 4. Primeiros passos da comunidade Nada nem ninguém conseguira vencer o ânimo e a esperança das religiosas das Mercês. Mais fortes que as circunstâncias político-sociais que as envolveram, elas ali estavam a testemunhar que Deus é o Senhor e o condutor da história dos homens e que o seu amor triunfa contra todos os obstáculos. Caso ímpar, único na história de Santa Clara em Portugal. Estas religiosas foram os pilares bem fortes que sustentaram a Ordem de Santa Clara em Terra Lusa. Sete religiosas professas, uma noviça e duas candidatas eram o grupo pequeno mas boa Quadro nº.62 - A comunidade do mosteiro nascente Nome civil Nome Religioso Cecília Teresa Pereira Matilde Augusta de Freitas Maria Natividade de Barros Augusta Policarpo Pinto Abreu Silvina Matilde de Barros Maria Correia Rodrigues Elisa Malaquias Sardinha Rosa Dias (noviça) Maria Baptista Martins (candidata) Maria Nazaré Dias (candidata) Maria Teresa da Apresentação Maria Marta de Jesus Cristo Maria Natividade do Amor Divino Maria Francisca da Piedade Clara Maria de São José Maria Querubina de Santa Rosa Maria Ângela de Santo António Maria Pacífica (noviça) - Idade 74 65 62 61 63 68 52 45 14 ? Fonte: Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Registos. semente, que em breve iria crescer e se tornaria árvore frondosa. 1393 A fotografia da Irmã Maria Teresa da Apresentação foi-nos oferecida por uma sobrinha neta, a senhora D. Maria do Monte, residente no Funchal. No grupo, falta a Irmã Marta de Jesus Cristo de quem não conseguimos qualquer fotografia. 304 No Céu, o grupo das sete que haviam partido, comungava da alegria das suas Irmãs. A 12 de Junho seguinte, solenidade do Sagrado Coração de Jesus, fez-se a inauguração do novo mosteiro sob a presidência do bispo do Funchal, que tanta estima consagrava às religiosas. Presentes a este significativo acto estavam, entre outros sacerdotes, o P. José Porfírio Rodrigues Figueira, secretário de Sua Excelência Reverendíssima, o Cónego João Joaquim de Carvalho, vigário de Câmara de Lobos, zeloso pelos interesses das Irmãs Clarissas, que via, finalmente, concretizado o objectivo do P. António Gonçalves Dinis Henriques e ainda religiosas e pessoas amigas em grande número. O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade era uma consoladora realidade! Para dirigir a comunidade até ao primeiro capítulo electivo, cuja data seria marcada oportunamente, o prelado nomeou a Madre Maria Teresa da Apresentação1394. A comunidade teve, desde a primeira hora, capelão privativo, o P. Jacob Sardinha, irmão de uma das religiosas, a Irmã Ângela de Santo António. Este dedicado sacerdote, capelão do mosteiro até à sua morte, residia na casa onde haviam vivido as clarissas vindas das Mercês. A ele se seguiram, entre outros, os padres Alfredo Camacho e Manuel Júlio Inocêncio de Castro. Entretanto, as vocações foram afluindo, bênçãos de Deus, manifestas provas da sua bondade e do seu infinito amor. Para a comunidade, estas jovens eram alegria e esperança, frutos maduros, nascidos de tantos sacrifícios vividos com amor ao longo de vinte e um anos! Em breve já eram cinco. A 13 de Novembro, sob a presidência de Frei Leonardo de Castro, franciscano, delegado do prelado do Funchal para o efeito, acompanhado pelo Cónego João Joaquim de Carvalho, teve lugar o capítulo electivo, segundo as normas do Código do Direito Canónico vigente1395. Ficou a presidir aos destinos da comunidade a Madre Clara Maria de São José, auxiliada pela Madre Maria Teresa da Apresentação como vigária e mestra de noviças1396. Neste mesmo dia, receberam o hábito da Ordem cinco candidatas, ficando a comunidade muito enriquecida. Cinco noviças!... Eram elas: Maria Bernardete do Sagrado Coração, Maria Virgínia Brites da Paixão, Maria Isabel do Cenáculo, Maria Nazaré de S. Francisco e Maria Pacífica. Que augúrios de bom futuro!...Outras aguardavam a idade canónica. A comunidade tinha uma boa assistência espiritual. Além do capelão, o bispo empenhou-se em que sacerdotes zelosos e de reconhecida virtude a assistissem e orientassem. Destacamos entre eles os Cónegos Francisco Fulgêncio de Andrade, João Joaquim de Carvalho e Manuel Pombo Fernandes, bem como o P. Manuel José Teotónio Gonçalves . A oração comunitária e leitura espiritual garantiam à comunidade não só a vivência profunda do seu ideal franciscano e contemplativo como também lhes abriam o coração à comunhão com a humanidade, cujas alegrias e preocupações procuravam apresentar ao Senhor. As tomadas de hábito e as profissões sucediam-se, o que era motivo de júbilo para a Ordem, para a diocese do Funchal e para o Povo de Deus. 1394 A Ordem de Santa Clara em Portugal, p. 222. A ninguém ocorreu ao longo da caminhada feita pela comunidade das Mercês, nem tão pouco quando as religiosas se reorganizaram no novo mosteiro da Caldeira, solicitar de Roma um documento de “não extinção” do mosteiro das Mercês do Funchal, que segundo os canonistas seria a medida exacta. Mais tarde, para apagar qualquer dúvida, D. Fernando Cento, o Núncio Apostólico em Portugal, mandatado pela Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, por decreto de l8 de Julho de 1958, concedeu a erecção canónica, sanando qualquer lacuna ou irregularidade que porventura pudesse ter havido em tomadas de hábito ou profissões. 1396 A Ordem de Santa Clara em Portugal, p. 223. 1395 305 CAPÍTULO III A AMPLIAÇÃO DO IMÓVEL EM 1954. O INCÊNDIO DE 1959. A RECONSTRUÇÃO 1. Ampliação do imóvel 1.1. As obras de 1954 As vocações para a vida contemplativa surgiam de todos os recantos da Ilha, qual chuva de bênçãos caindo sobre o mosteiro e sobre a Pérola do Atlântico, que sempre soube apreciar e ajudar as filhas de Santa Clara. A população sabia ler na opção das jovens madeirenses pela vida contemplativa em clausura a prioridade absoluta de Deus. A vida contemplativa, misto de oração, de retiro e de trabalho, é sinal da primazia de Deus, sinal da necessidade que se impõe ao coração humano de se concentrar na pessoa de Cristo, na certeza de que n’Ele se encontra a plenitude do amor. As jovens madeirenses 306 compreendiam que a vida contemplativa é reflexo da alegria que está em Deus e que d’Ele dimana; compreendiam que é profecia de felicidade e paz sem fim. Por isso, atraídas pelo Senhor, acorriam ao mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, onde desejam viver louvando e amando o autor de todo o bem. Em breve o mosteiro tornou-se pequeno para receber todas as jovens que desejavam seguir esta forma de vida. De facto, começando com oito religiosas e duas candidatas em 1931, no final dos anos quarenta, a comunidade já tinha dezassete religiosas e algumas jovens vocacionadas. Em pouco mais de duas décadas o número de Irmãs duplicou. De uma comunidade inicial de dez membros, foi passando para dezasseis, dezassete e mais, chegando ao início da década de cinquenta com vinte e um membros. Impunha-se, portanto, a sua ampliação. Depois de sério e consciencioso estudo do problema, viu o responsável pelas obras a possibilidade de conseguir o aproveitamento do sótão de forma bastante económica. Diante da precária situação financeira do mosteiro, o P. Abel Ferreira, coadjutor na paróquia de Câmara de Lobos, grande impulsionador da Terceira Ordem Franciscana de que era membro, desde há muitos anos dedicadíssimo às Irmãs Clarissas e à data seu procurador, assumiu a responsabilidade das obras. Feito e aprovado o projecto, o P. Abel encontrou no prelado o apoio necessário. D. António Manuel Pereira Ribeiro sempre mostrara pela Ordem de Santa Clara viva estima e apreço. Fora ele o pastor solícito que, na hora da prova, soubera estimular e encorajar as religiosas e que, no momento exacto, apoiara e abençoara a construção do mosteiro; foi ainda ele que, nesta hora feliz, soube assumir aquele empreendimento. D. António Ribeiro fez ao mosteiro o empréstimo necessário para levar a cabo as obras de ampliação, empréstimo esse que a comunidade iria amortizando, a longo prazo, conforme as suas possibilidades. Na primavera de 1954 os trabalhos estavam em curso. Levantado o telhado, foi possível um excelente aproveitamento das águas furtadas, onde surgiu a rouparia, a sala de lavores, a enfermaria e a secção reservada ao Noviciado – sala e quartos. A Madre Maria Bernardete do Sagrado Coração, então abadessa, acompanhou as obras com zelo, procurando que tudo ficasse bem e funcional. Concluídas no final de 1954, ofereceram à comunidade novas e melhores condições de trabalho e um pouco mais de conforto. A comunidade, viveiro de vocações, não parava de crescer e, bem depressa, todos os quartos estavam ocupados. Jamais faltaram jovens que, movidas por um grande amor ao Senhor, desejavam consagrar-se ao seu serviço. O mosteiro, espaço de oração silenciosa, de paz e de amor, ia dizendo a todos que Deus basta, que Ele é plenitude da felicidade e que vale a pena dar a Deus o primeiro lugar. 1.2. A bênção das novas instalações pelo Núncio Apostólico Em 1954, D. Fernando Cento teve de visitar a Madeira por razões apostólicas. Quando soube da existência de filhas de Santa Clara na Ilha, logo manifestou desejo de visitá-las. D. Fernando Cento era admirador das Clarissas, de quem falava sempre com grande estima1397. Ao prelado do Funchal agradou aquele desejo, pois lhe proporcionava uma alegria: o Núncio Apostólico iria benzer a parte acabada de construir. O acesso à Caldeira era difícil, pois que, acima da vila de Câmara de Lobos não havia estradas, mas simplesmente algumas veredas. Esta dificuldade, porém, não foi obstáculo. Assim, a 6 de Dezembro, uma ilustre comitiva saiu do Funchal em direcção ao Cabo Girão. Dali para o mosteiro, o Núncio Apostólico e o bispo foram levados em rede1398, seguindo os 1397 1398 A Ordem de Santa Clara em Portugal, p. 225. Meio de transporte então habitual na Ilha, em lugares de difícil acesso. 307 restantes visitantes a pé. Eram eles: Cónego António Félix de Freitas; P. João Evangelista Lopes, pároco de S. Pedro, no Funchal; P. António Rodrigues, secretário do prelado; P. Abel Ferreira, procurador do mosteiro; Dr. Vasco Réis Gonçalves, médico da comunidade e Presidente da Câmara Municipal de Câmara de Lobos. Seguia-os muito povo das zonas mais próximas. Junto do mosteiro foram saudados pelo capelão, P. Manuel Júlio Inocêncio de Castro, e uma multidão de pessoas da região, que expressou a sua alegria com salvas de palmas e de morteiros, acompanhadas do repicar festivo do sino da capela de Nossa Senhora da Piedade. Alguns momentos mais e ei-los na clausura. Após as saudações de boas-vindas, presidiu o Núncio à bênção da parte nova do mosteiro. Finda esta cerimónia, dirigiu a palavra às religiosas, salientando a sublimidade da sua vocação, a beleza da vida contemplativa, o encanto do carisma franciscano. Depois de um convívio, onde eram visíveis os sinais da pobreza1399 e o calor da amizade expressa com tanta simplicidade, estes ilustres visitantes regressaram ao Funchal. A noite começava a cair sobre o pequeno vale da Caldeira... No coração silencioso das religiosas ficara impresso, o júbilo a alegria, a paz e a ternura do “Altíssimo, Omnipotente e bom Senhor”. 2. Uma dura prova: O incêndio de 1959 2.1. O deflagrar do incêndio Reinava a alegria e a felicidade naquele modesto mas encantador conventinho da Caldeira. O número de religiosas aumentava sempre mais, como se o Senhor quisesse recompensar todo o sofrimento que, desde 1910, havia atingido aquelas boas religiosas. No final de 1958, a comunidade, apesar de terem falecido alguns dos seus membros, era constituída por vinte uma religiosas professas, três noviças e três postulantes. Que lindo número! Era à tardinha...Ninguém podia imaginar que, naquele 24 de Abril de 1959, o mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, marcando com a sua brancura o sopé das altas montanhas da Cruz da Caldeira, beijadas pelo estreito vale, ia ser palco de uma grande tragédia. Um pequeno descuido com um ferro de engomar foi suficiente para que na sala de costura começasse a deflagrar um incêndio. Ao toque aflitivo do sino da capela do mosteiro, acorreram muitas pessoas que, lutando contra o fogo por todos os meios possíveis, enquanto se aguardava a chegada dos bombeiros, conseguiram evitar a perda de vidas e salvar uma pequena parte do recheio do mosteiro. As obras, há bem pouco concluídas, quase totalmente em madeira, e as pinturas feitas posteriormente, ainda frescas, favoreceram o alastrar das chamas. Não havendo telefone, o pedido de socorro à Corporação dos Bombeiros Voluntários da vila de Câmara de Lobos levou o seu tempo e a falta de estrada dificultou e retardou a sua chegada. Uma vez ali, a sua actuação contra as chamas, sob a orientação do seu comandante e adjunto, os senhores António Avelino de Abreu e Aníbal Cristóvão de Jesus, foi imediata, mas difícil, pois que o incêndio havia já atingido grandes proporções. Além disso, a falta de estrada não permitia o acesso de veículos. Nestas circunstâncias, o seu esforço centrou-se na capela e zona anexa, tentando salvar aquele lugar sagrado. Foram verdadeiramente heróicos não só eles mas também o bom povo da Caldeira. Depois de oito horas de luta corajosa, a capela de Nossa 1399 Dizem as Irmãs que o Núncio Apostólico, não aceitando a cadeira que lhe estava destinada, com muita singeleza se sentou num banquinho. Admirável gesto de simplicidade!.. 308 Senhora da Piedade estava fora de perigo1400. Os Bombeiros Voluntários de Câmara de Lobos tiveram uma actuação meritória, digna dos maiores louvores. Foi uma dura prova para as Irmãs Clarissas. Contudo, cumpre-nos salientar que, no meio de tanto sacrifício, muitas foram as provas de solidariedade, de dedicação desinteressada, de amizade profunda e sincera que receberam. 2.2. Solidariedade fraterna As Franciscanas Missionárias de Maria bem depressa acorrem ao local, oferecendo às Irmãs Clarissas os seus préstimos e convidando-as a acompanhá-las para o mosteiro de Santa Clara do Funchal, onde trabalhavam. “Em nossa casa”, disse a Madre Reparadora, “ temos lugar para todas”. Também as Irmãs da Apresentação de Maria apareceram na Caldeira a oferecer a sua casa. Para não dividir a comunidade, o que seria mais um sacrifício, as Irmãs Clarissas foram todas para o mosteiro de Santa Clara, onde as Missionárias de Maria lhes dispensaram as mais delicadas atenções. Jamais se pouparam a qualquer sacrifício. Passados alguns meses o Governador do distrito, João Inocêncio Camacho de Freitas, conseguiu uma casa na rua das Mercês, nº. 45. Depois de sofrer algumas adaptações, passou a ser a residência das Irmãs. Como homem de nobres sentimentos que era, ofereceu-se para pagar a renda enquanto não houvesse um mosteiro. Após o regresso das religiosas à Caldeira, desejando auxiliá-las no seguimento das obras, continuou a enviar-lhes o respectivo valor monetário. Só depois da sua morte, que ocorreu em 1969, as religiosas vieram a saber que o benefício que ao longo de dez anos haviam recebido do Governador do distrito, era pessoal e não do Governo, como se supunha. Nesta casa provisória, que as Irmãs ocuparam durante dois anos, organizou-se a vida conventual: estabeleceu-se um horário que orientava o quotidiano da vida comunitária, organizou-se a adoração ao Santíssimo Sacramento, receberam-se candidatas e emitiram-se profissões. Mesmo depois da mudança, continuaram as Irmãs Missionárias de Maria a interessarse pelas suas Irmãs Clarissas. Para o dia 12 de Agosto, então festa de Santa Clara, prepararam uma agradável surpresa - uma festinha com muitas e variadas ofertas: um sacrário, um cálice, uma custódia em prata, paramentos e várias alfaias destinadas ao culto religioso. A confraternização, a que as mesmas providenciaram, revestiu-se de tanta delicadeza e amor fraterno que a emoção foi geral. Eram lágrimas de reconhecimento pela inexcedível caridade das religiosas, que descobriam mil maneiras de prodigalizar amizade e carinho às filhas de Santa Clara. Ao apoio que recebiam das religiosas Missionárias de Maria juntava-se a bondade e generosidade de muitas pessoas amigas, que acorriam à rua das Mercês com as mais variadas ofertas. O Pai, que sustenta as aves do céu e veste os lírios do campo1401, velava por aquelas filhas que nele confiavam. 3. Reconstrução do mosteiro e regresso da comunidade Para a reconstrução do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade contribuiu o Ministério das Obras Públicas com um donativo no valor de quarenta contos, à data valor considerável, a pedido do Governador do distrito do Funchal, João Inocêncio Camacho de Freitas, bem como a população madeirense. Foram muitos os benfeitores não só do Funchal mas também de toda a Ilha da Madeira e até emigrantes. 1400 1401 “Acção dos Bombeiros Voluntários de Câmara de Lobos”, in Jornal da Madeira, 25 de Abril de 1959. Mt. 6, 28; Lc, 12, 27. 309 A 30 de Setembro de 1961, as Irmãs Clarissas puderam regressar ao seu mosteiro reconstruído no mesmo local. Foi nesta altura que se procedeu à ampliação da capela. O altar recuou e o coro das religiosas ganhou posição lateral, conforme se encontra actualmente, o que permitiu fazer voltar o coro alto à forma que tivera inicialmente. O sino voltou a tocar e a capelinha de novo se animou com a oração das religiosas e do povo da Caldeira. Porém, os últimos acabamentos estavam por fazer: não havia portas, nem sequer exteriores, mas as Irmãs não tinham receio dos ladrões, pois o seu tesouro era todo e só o Senhor. Houve, porém, que fazer muita penitência, pois, estando os quartos e todo o mosteiro só em cimento, sentiram todo o frio do Inverno, que nesse ano foi bem rigoroso. Contudo, a alegria que sentiam por se encontrarem de novo na sua casa era imensa e chegava bem para superar todas as dificuldades. Ao regressarem do Funchal, as Irmãs tiveram a alegria de ver entrar no mosteiro de Nossa Senhora da Piedade dez candidatas. As bênçãos de Deus vinham coroar tantos sacrifícios1402. A partir de então, foram as próprias religiosas que dirigiram os trabalhos. Como era belo vê-las pintando portas e caiando paredes, a tudo dando ar de asseio e de festa! Que alegres e felizes!... A seguir, remodelaram a casa do capelão, muito deteriorada. E, quem diria?!... Quando as obras do mosteiro chegaram ao fim, não havia dívidas. Nem as religiosas sabiam explicar o que aconteceu. Milagre da providência de Deus, do grande amor do Pai! CAPÍTULO IV PERFIL DA COMUNIDADE 1. Vida de oração e trabalho 1.1. A vida diária de oração das Irmãs O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, continuador da comunidade das Mercês do Funchal, como todos os mosteiros de Portugal, segue a Regra de Santa Clara e as Constituições Gerais, elaboradas segundo o espírito do Concílio Vaticano II e o novo Direito Canónico, aprovadas a 13 de Maio de 1988 por decreto do cardeal Hamer, prefeito da Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares. Sendo a oração a vocação específica das Irmãs Clarissas, as religiosas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade a ela se consagram ao longo das vinte e quatro horas do dia. É seu dever a celebração das horas canónicas, para as quais devem preparar-se no silêncio e no recolhimento. A celebração da Liturgia das Horas, segundo o calendário franciscano, e a 1402 Se toda a Ilha da Madeira colaborou com generosidade na reconstrução do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, que dizer da população da Caldeira?.... Pessoas simples, boas e amigas, que ofereceram dias de trabalho, transportaram materiais e encorajaram as Irmãs. Que alegria a sua ao vê-las de novo no mosteiro que, de certo modo, consideram seu!...Nas visitas feitas à exposição do espólio do mosteiro das Mercês, a que já aludimos, não faltou quem recordasse este acontecimento com emoção!... E que belos testemunhos! Uma senhora dizia com carinho: “ Eu própria trouxe à cabeça muitos sacos de cimento, lá de cima da Cruz da Caldeira e meu pai trabalhou na reconstrução sem levar nenhum dinheiro. Toda a gente, de uma maneira ou de outra, colaborou na reconstrução do nosso conventinho”. Solidariedade amiga! Sensibilidade humana e cristã! Cumpre-nos ainda mencionar o nome do senhor João Quirino da Silva, vizinho do mosteiro que, no momento do incêndio, acolheu as religiosas em sua casa e depois se dedicou à reconstrução como bom amigo. 310 Eucaristia, constituem o cerne e o cume de toda a vida de fraternidade. A Liturgia das Horas, que celebram integralmente, santifica as vinte e quatro horas de cada dia. Consta de: Ofício de Leituras, que as Clarissas da Caldeira rezam às sete horas, Laudes às sete horas e meia, Tércia às nove menos um quarto, Sexta ao meio-dia, Noa às quinze horas, Vésperas às dezoito e meia e Completas às vinte e uma e meia. Esta oração litúrgica, para maior vivência, deve ser cantada, pelo menos as horas mais importantes: Laudes e Vésperas. Entre as religiosas do mosteiro da Caldeira á habitual cantar-se com acompanhamento de órgão estas duas horas canónicas e algumas partes das outras horas, como seja o hino, antífonas ou qualquer salmo. Quadro nº.63 - Horário de oração comunitária Hora 7h00 7h30 7h40 8h15 12h00 15h00 18h30 19h00 19h30 21h30 Celebrações Ofício de leituras Laudes (cantadas) e Tércia Meditação Celebração Eucarística Sexta, coroa das sete alegrias de Nossa Senhora e oração pelos sacerdotes Noa e via-sacra às sextas feiras Vésperas (cantadas) Terço e ladaínha de Nossa Senhora Meditação Oração a Santa Clara, a São Francisco de Assis e a São José. Completas A celebração eucarística, habitualmente às oito e um quarto, é sempre vivenciada com cânticos acompanhados a órgão, a que fervorosamente se associam algumas pessoas da área circunvizinha, também presentes. As Irmãs organistas, Cândida Teresa de Gouveia e Adelaide Maria da Cruz, têm o cuidado de estarem sempre actualizadas na música sacra e de darem à comunidade a necessária preparação. 60. Em adoração eucarística. Na capela do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, conforme a tradição da Ordem, o Santíssimo Sacramento permanece solenemente exposto ao longo do dia. Nesta oração silenciosa encontram as religiosas a alegria e a paz na sua caminhada de ascensão para o Senhor. As religiosa herdeiras do amor à Eucaristia, tão específico em Clara de Assis, mantêm o Santíssimo Sacramento solenemente exposto ao longo do dia, assumindo cada religiosa meia hora de adoração diariamente. São momentos de particular intimidade com o Senhor. Todos os dias devem dedicar uma hora e meia à oração mental para que, no silêncio e na paz, cresçam no aprofundamento dos mistérios cristãos e na sua vivência. O carisma da Ordem deixa um largo espaço à devoção mariana. As Constituições Gerais recomendam a devoção para com a Mãe de Deus e insistem em que se mantenham as sãs tradições da Ordem. A comunidade das Irmãs Clarissas da Caldeira reza todos os ias, além do terço, a coroa das sete alegrias de Nossa Senhora, sem jamais esquecer a consagração à Virgem Santíssima. As grandes solenidades são normalmente precedidas por uma novena ou pelo menos de um tríduo como acontece pelo Natal, Imaculada Conceição, festa de Santa Clara e de São Francisco. Todos os meses as Irmãs consagram um dia a retiro espiritual e cada ano uma semana, procurando nessas ocasiões o auxílio de sacerdotes idóneos e competentes. Para além da oração comunitária, em que todas devem tomar parte, cada religiosa pode, conforme o seu anseio e dons de piedade, desenvolver outras devoções. A comunidade deseja a presença da população da Caldeira nas suas celebrações religiosas. A partir do momento em que as Religiosas das Mercês, depois de vinte e um anos de espera, puderam reestruturar a sua vida comunitária em novo mosteiro, agora na Caldeira, sempre estiveram disponíveis para partilhar com a população circunvizinha o seu património 311 espiritual. Além da oração na qual, em atitude eclesial, a todos procuravam ter presentes, não deixaram de contribuir, pela forma que lhes era possível, para o desenvolvimento da população e o seu crescimento na fé. Quando em 19601403 se criou a paróquia do Carmo, o mosteiro passou a ter, com grande regozijo das religiosas, a sua capela aberta ao culto e disponível para os serviços paroquiais. Em breve, a população da Caldeira começou a tomar parte na oração das religiosas: Liturgia das Horas, particularmente Laudes antes da Eucaristia e Vésperas à tarde, via-sacra, terço e outros encontros de oração, especialmente no Advento e na Quaresma. A celebração eucarística quotidiana, em que participam sempre algumas pessoas, tornou-se muito frequentada aos domingos e sábados, em que se celebra Missa vespertina. Actualmente a presença da população da Caldeira na capela do mosteiro em dias de semana já não é tão significativa. As Irmãs Clarissas, como partilha do seu carisma contemplativo, têm incentivado no povo de Deus a vivência das celebrações litúrgicas, levando-as a assumir responsabilidades. Assim, alternando com as religiosas, as jovens e senhoras da zona, assumem diariamente as leituras da Missa, bem como a organização do cortejo de oferendas e o serviço eclesial dos ministros da comunhão nas missas dominicais. A população, boa e amiga, traz à comunidade as suas mais belas flores para ornamentar a capela de Nossa Senhora da Piedade. E com que amor e devoção as fazem chegar às mãos das religiosas, através das crianças que acorrem alegremente ao mosteiro todos os sábados e nas grandes solenidades! 1.2. Festas natalícias São Francisco viveu o encanto e o deslumbramento dos mistérios relativos ao Menino de Belém, encanto que partilhava com sua irmã espiritual Santa Clara de Assis. O Pobrezinho chamava ao Natal a Festas das Festas e celebrava-o com inefável alegria: queria que nesse dia os ricos dessem aos pobres alimentação abundante e que até os animais tivessem ração dobrada. Francisco de Assis quis mesmo reproduzir ao vivo o acontecimento histórico de Belém. Santa Clara acompanhava em contemplação, com indizível ternura, a Senhora Pobrezinha que, naquela noite de Belém, envolveu o seu Menino em pobres paninhos e O deitou numa manjedoura. Franciscanos e Clarissas sempre viveram o mistério do Natal com encanto e profundidade. Na Ilha da Madeira foram estes filhos e filhas de São Francisco que infundiram na população o culto do presépio. Daí, a devoção tão grande e terna dos madeirenses ao Deus Menino. Não admira que, ainda hoje, o Natal seja, para a população da Ilha, uma Festa única, sempre cheia de calor, alegria e encanto. O mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, como é óbvio, também partilha e vive intensamente as celebrações natalícias. As Irmãs Clarissas da Caldeira são as fiéis continuadoras das belas tradições do mosteiro das Mercês. A anteceder o dia do nascimento do Menino de Belém e como preparação para ele, decorre a novena das tradicionais Missas do Parto, com seus cânticos próprios, de sabor arcaico, verdadeira riqueza histórica, literária e musical, que nos faz remontar aos séculos passados. Património religioso de apreciável valor de que os madeirenses se prezam e de que se orgulham de ser depositários. A imagem do Menino Jesus, venerada pela comunidade na quadra natalícia, ocupa um lugar privilegiado nas celebrações comunitárias. Todas as Irmãs fazem um pequeno presépio no seu quarto. No dia da Festa à noite a comunidade, ao som de instrumentos regionais e cânticos natalícios, vai de quarto em quarto apreciar as surpresas, algumas belíssimas e originais. Perante a criatividade de cada uma, onde nunca falta a lapinha madeirense, surgem 1403 A paróquia do Carmo, criada por decreto de 8 de Dezembro de 1960, começou a funcionar a 1 de Janeiro do ano seguinte. 312 espontâneas manifestações de alegria e de sincero apreço. O cortejo finaliza junto do presépio da capela com novos louvores ao Deus Menino. Na noite de consoada não falta o Auto de Natal, que em todas desperta o encanto pelo Menino de Belém e sua Mãe Pobrezinha. As Irmãs Clarissas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade mantêm viva a encantadora cerimónia da Vestição do Menino, antiquíssima entre a população da Ilha da Madeira, a qual fazia parte da encenação Pensar o Menino. Uma vez vestido, o Menino, alvo do carinho da comunidade, fica no seu lindo bercinho, ao longo de toda a quadra natalícia. No fim do tempo festivo do Natal, Jesus é retirado do bercinho e, como se fazia no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, depois de vestido de Menino Rei, é colocado em lugar de destaque onde todas o podem venerar. Ao longo do ano, o Menino Rei veste com as cores da liturgia, cuidado que pertence à religiosa eleita “rainha do Menino” que é substituída anualmente. No dia de Reis, uma encenação relativa à adoração dos Magos, designada A Estrela, lembra e interioriza no coração de cada religiosa a paz e o amor que o Menino Deus vem oferecer a todos os povos1404. 1.3. A festa de Nossa Senhora da Piedade Remonta a quase dois séculos a devoção da população da Caldeira e arredores, a Nossa Senhora da Piedade, isto é, à data da construção da capela, no final do século XVIII. 61. Nossa Senhora da Piedade, venerada na capela do mosteiro. Remonta a duzentos anos a veneração da população da Caldeira por Nossa Senhora da Piedade. Foi sob o Seu olhar e protecção que se acolheu um pequeno grupo de clarissas, em 1910. Todos os anos, no segundo domingo de Julho, esta festa se reveste de novo brilho. As religiosas esmeram-se na decoração da capela, onde aparecem as mais belas flores da localidade, e no arranjo do andor da Senhora que, entre gestos de amor e de fé, é levada processionalmente pelas estradas da Caldeira, engalanadas com flores e luzes. Os festeiros têm o cuidado de convidar uma das bandas musicais de Câmara de Lobos, para abrilhantar a festa da Virgem Maria. Tradicionalmente prepara-se um lindo arraial, onde nunca falta o bazar, os conjuntos musicais e os morteiros. A esta festa associam-se as populações vizinhas. É, de facto, grande a devoção a Nossa Senhora da Piedade quer dos residentes quer dos emigrantes e a ela se recorre habitualmente e, muito especialmente, nos momentos mais difíceis da vida. Não falta quem, em atitude de súplica ou de gratidão, lhe ofereça as suas mais belas jóias. A muitos noivos apraz-lhes assumir os seus compromissos matrimoniais aos pés de Nossa Senhora da Piedade. Alguns casais também gostam de celebrar as Bodas de Prata ou as Bodas de Ouro de vida matrimonial nesta capelinha. A Senhora da Piedade é a Mãe terna e vigilante a quem todos recordam e acorrem filialmente para agradecer os favores recebidos. 2. Vida de trabalho como base de sustento económico 1404 Este apartado, reflectindo tanto encanto pelo Menino de Belém, foi redigido pela Irmã Adelaide Maria da Cruz, membro da comunidade. O mosteiro tem a dita de ainda possuir a pequena arca do mosteiro das Mercês do Funchal, em madeira forrada de couro lavrado, onde eram guardadas as roupas do Menino, bem como o lindo berço que recebia o Divino Infante depois da cerimónia da Vestição. É de referir que o bercinho das Mercês e as roupas guardadas na dita arca são relíquias preciosas herdadas do mosteiro das Mercês, em que não se toca. Para uso actual, confeccionou-se outro berço e outro enxoval, com requinte e bom gosto; também o Menino é outro, pois que o do mosteiro de Nossa Senhora das Mercês ardeu aquando do incêndio de 1959. 313 Fora do horário da oração, a comunidade ocupa-se em trabalhos que se coadunam com a vida contemplativa. Para Santa Clara o trabalho era expressão de pobreza evangélica, por isso escreveu na Regra: “as Irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar, ocupem-se fiel e devotamente num trabalho honesto e de comum utilidade”1405. As religiosas deste mosteiro trabalham: dedicam-se à Quadro nº.64 – Horário comunitário Horas 6h30 7h00 9h00 9h30 12h00 12h45 14h00 15h00 15h15 17h00 18h30 20h00 21h00 21h30 22h00 Ocupações Levantar Oração Pequeno almoço e trabalhos domésticos Período de trabalho Oração Almoço e trabalhos domésticos Tempo livre Oração Período de trabalho Lanche (facultativo) Oração Jantar e trabalhos domésticos Convívio fraterno Oração Descanso confecção de hóstias, seu principal meio de subsistência, assumem o tratamento da roupa da Sé do Funchal e a confecção de paramentos litúrgicos. Algumas Irmãs dedicam-se aos bordados. E que maravilhosas obras de arte saem das suas mãos!... Pormenorizando: As Irmãs Clarissas têm o seu tempo programado segundo o horário conventual. O seu tempo está dividido entre a oração o trabalho e o descanso, e deve viver-se na presença de Deus. Desde a origem do mosteiro e numa linha de continuidade com o passado, que tem a raiz no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês do Funchal e depois na casa da Palmeira, as Irmãs Clarissas da Caldeira têm como trabalho fundamental a confecção de hóstias praticamente para toda a diocese do Funchal, isto é, Madeira e Porto Santo. 62.Confecção de hóstias. A confecção de hóstias passa por etapas. A Irmã Maria Cecília está a cortar as hóstias pequenas, que em seguida são peneiradas para ficarem limpas de possíveis fragmentos. Depois de metidas em sacos plásticos, estão prontas para seguir para as paróquias. O trabalho das hóstias não é fácil. Exige competência e paciência, pois muitos são os factores que afectam a sua confecção: qualidade da farinha, intensidade da corrente eléctrica, condições climatéricas, etc. É, no entanto, um trabalho que fica bem às religiosas contemplativas, pois representa uma colaboração com a Igreja local, por ser um serviço prestado às paróquias e às casas religiosas. Para além deste aspecto eclesial, confecção de hóstias, trabalho sempre certo, é o melhor contributo para o sustento da comunidade. Nesta ocupação têm-se dedicado ao longo dos anos muitas religiosas: Irmã Maria de Jesus Nazaré, já falecida, Maria Salomé do Rosário, Inês de Cristo Rei, Maria Cecília, Catarina de Vasconcelos Berenguer, Ariana Maria Gomes, Inês Freitas de Sousa e outras mais. Colaborando com os párocos, entregues a múltiplas ocupações, todas as quartas feiras, o 1405 RCL, in F.F. II, p. 54. 314 mosteiro tem o cuidado de colocar na Sé do Funchal as encomendas habituais. Aí as vão buscar com mais facilidade os sacerdotes e as diversas comunidades religiosas. Ainda numa linha de colaboração com a Igreja local, a comunidade assumiu, na década de sessenta, o cuidado da roupa da igreja de São Pedro e Santa Luzia e desde 1970 da roupa da Sé do Funchal. Todas as semanas é enviada à Caldeira uma quantidade de vestes litúrgicas e toalhas de altar que, na semana seguinte, depois de lavada e engomada, é devolvida à Sé. Nesta trabalho eclesial têm-se ocupado ao longo dos anos, além de outras, as Irmãs Teresa Laurita Gonçalves de Brito, Cândida Teresa de Gouveia, Rosa Maria da Paz, Maria José Réis Gonçalves, Maria de Fátima Moniz Baptista, Maria Salete Rodrigues e outras. As religiosas dedicam-se também ao “bordado madeira”, bordado em matiz e ouro e picotagem em pergaminho. Embora dando preferência aos trabalhos litúrgicos - paramentos, alvas, toalhas, estolas e outros -, também aceitam, quando possível, trabalhos de outro género. Nestes últimos anos têm se dedicado aos bordados as Irmãs Maria Clarisse Xavier, Teresa do Santíssimo Sacramento, presentemente no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês nos Açores, Maria Natália de Jesus Infante, Maria de Fátima Moniz Baptista, Teresa Laurita Gonçalves de Brito, Maria Isabel de Sousa. Além do “bordado madeira” confeccionam trabalhos em matiz e ouro. Lavores especializados e de grande beleza são os enxovais do Menino Jesus em que é mestra a Irmã Cândida Teresa de Gouveia. Para cada imagem, além das roupinhas interiores, arranjadas com minúcia, confecciona-se um vestidinho e sandálias em cetim, seda natural ou linho. Tudo é decorado com galões dourados e artístico bordado em canutilho, pérolas, fio de ouro e missanga dourada ou prateada. Para as imagens maiores, quando as pessoas o desejam, os meninos são também revestidos de um manto de veludo vermelho, trabalhado a ouro, que lhes dá dignidade e beleza. Algumas Irmãs são artistas na picotagem em pergaminho. São elas: Jacinta Maria do Carmo, Adelaide Maria da Cruz, Maria Angélica do Menino Jesus, Maria de Fátima Moniz Baptista e Ariana Maria Gomes. Das suas mãos saem, quando necessário, verdadeiros rendilhados em pergaminho que, 63. Bordados em ouro. Neste vestido de seda natural, bordados a fio de ouro, canutilho, lantejoulas e missanga dourada, podemos admirar a perfeição, a harmonia e a beleza. É um exemplar entre muitos outros trabalhos saídos das mãos da Irmã Cândida Teresa de Gouveia. quando a Irmã Adelaide Maria da Cruz lhes associa uma pintura ou uma mensagem em letra gótica, ficam ainda mais belos. As Irmãs entregam-se também ao cultivo da fazenda onde crescem boas saladas, hortaliças e legumes, árvores de fruto, vinha, batata-doce, milho e inhame. Várias Irmãs, entre as quais a Irmã Maria Cecília, Maria Henriques de Viveiros Leal, Ariana Maria Gomes e Catarina de Vasconcelos Berenguer têm feito frutificar a fazenda em favor da comunidade. O mosteiro possui também uma fazenda fora da zona da clausura, ocupada com vinha e bananeiras, onde se encontra a casa que de 1910 a 1931 foi habitada por algumas religiosas saídas das Mercês e mais tarde pelo capelão do mosteiro. Ocupa-se na sua exploração um casal vizinho, em regime de assalariado, revertendo para a comunidade a respectiva produção. Não podia deixar de salientar-se o cultivo de flores, quase paixão entre madeirenses. Cada Irmã gosta de ter as suas flores, os seus vasos, onde crescem as mais variadas espécies. Além 315 de serem fonte de alegria, decoram belamente a capela e o mosteiro, quando distribuídos com arte pela parte habitacional. A criação de animais merece também a atenção das religiosas: galinhas, perus e coelhos que fornecem à mesa das religiosas carne e ovos, trabalho a que no passado se dedicaram as Irmãs Maria Beatriz de São José, actualmente no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês nos Açores, e Maria Fernanda Baptista Teixeira Lopes, hoje no mosteiro de Santa Clara no Brasil e outras. Presentemente , esse trabalho, muito importante para a economia do mosteiro, está a cargo das Irmãs Maria Henriques de Viveiros Leal e Catarina de Vasconcelos Berenguer. Para além destes trabalhos há as tarefas domésticas: lavandaria, costura, arranjo e limpeza da capela, cozinha, refeitório, atendimento na portaria, limpeza e asseio da casa, trabalhos que são fraternalmente distribuídos por todas e alguns, como o trabalho da cozinha, feito rotativamente às semanas. O cuidado das doentes, que tanto carinho merecem à comunidade, é também um trabalho importante. Às Irmãs velhinhas e doentes se prestam as atenções e os cuidados necessários, pois que, segundo a Regra de Santa Clara, as doentes devem ser tratadas “com caridade e misericórdia” e a abadessa deve tomar previdências para que “nada lhes falte”1406. Todos os anos costuma nomear-se uma enfermeira que assume esta fraterna responsabilidade. Nos primeiros anos da vida do mosteiro foi enfermeira desvelada a Irmã Maria Teresa da Apresentação e mais recentemente têm-se dedicado às doentes duas religiosas enfermeiras: Maria das Neves Gouveia Berenguer, presentemente na fundação feita no Brasil (Nova Iguaçu), e a Irmã Madalena do Divino Mestre, que cuida com muito carinho das suas Irmãs doentes. 3 . O governo da comunidade 3.1. A abadessa Na Ordem de Santa Clara os mosteiros são autónomos, ainda que constituindo uma família cujo liame é a fraternidade. A teor da Regra de Santa Clara e das Constituições Gerais, cada mosteiro é governado pela abadessa com o auxílio do discretório e do capítulo conventual. A abadessa deve exercer o seu ofício “com espírito de fé, caridade fraterna e humilde serviço, a exemplo de Cristo”1407. Não pode tomar para si toda a responsabilidade, mas deve tratar com as suas Irmãs, reunidas em capítulo, o que deve ser feito para bem e utilidade do mosteiro. Segundo as Constituições Gerais “para o ofício de abadessa deve ser eleita uma irmã de votos solenes, que já tenha completado trinta anos, tenha ao menos cinco de profissão solene na Ordem de Santa Clara e possua os (necessários) requisitos e qualidades (...): espírito de fé e contemplação, sentido eclesial, verdadeira caridade para com todas as irmãs, ciência e conhecimento do tempo presente, carências espirituais da sociedade humana hodierna, prudência e maturidade religiosa”1408. “A abadessa é eleita para um triénio; terminado este, poderá ser eleita para outro, sem entreposta vagatura”1409. Pode, a teor do direito, ser postulada para um terceiro e quarto triénio, desde que obtenha dois terços dos votos. Porém, a postulação é excepção e, segundo o carisma franciscano, que tanto valoriza a responsabilidade fraterna, não deve tornar-se habitual. A cada abadessa assiste o dever e a obrigação de incrementar o crescimento espiritual, humano e cultural da comunidade, para que a atribuição de cargos e 1406 RCL, VIII, 12 e 13, in FF II p. 56. Constituições Gerais da Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara, Roma, 1988, IX, artº. 217, p. 167: Estrutura do Governo. 1408 Constituições Gerais, IX, artº. 233, p. 174. 1409 Constituições Gerais, IX, artº. 234, § 1, p. 174. 1407 316 ofícios possa ter mobilidade. Tal mobilidade, além de ser dignificante para a comunidade, é sinal de liberdade individual e será, sem dúvida, fonte de enriquecimento comunitário. A abadessa é auxiliada pela vigária, igualmente eleita, que é simultaneamente a primeira conselheira ou discreta. Cumpre-lhe ajudar a abadessa em todos os assuntos que respeitem ao bem espiritual e material do mosteiro. É ela que preside à comunidade todas as vezes que a abadessa estiver ausente ou impedida. Quando o ofício da abadessa, por morte ou renúncia, vagar, a vigária assume imediatamente o governo do mosteiro até ao próximo capítulo electivo. Nas funções formativas é auxiliada pela mestra de noviças, a quem compete a formação das candidatas à profissão. Se for necessário, pode ser nomeada uma sub-mestra, que fica na dependência da mestra de noviças, em tudo o que diz respeito ao noviciado. Normalmente as postulantes que aguardam no mosteiro o começo do noviciado, são confiadas aos cuidados da mestra de noviças. No mosteiro de Nossa Senhora da Piedade há presentemente (1999) uma noviça, a Irmã Olívia de Freitas Candelária, cuja mestra é a Irmã Adelaide Maria da Cruz. A teor da Regra, a abadessa, em funções de governo, para a validade dos seus actos, deve pedir o consentimento ou o parecer do discretório e do capítulo conventual, conforme os casos. Segundo as Constituições Gerais, “se se exigir o consentimento, é inválido o acto da abadessa que não solicitou o consentimento dessas pessoas ou que precede contra o voto das mesmas”1410. Esta norma constitucional valoriza o discretório e a assembleia capitular, como iremos dizer. 3.2. O discretório O discretório ou conselho é formado pela abadessa, a vigária e as discretas ou conselheiras. O seu número é variável. Depende da totalidade de professas de cada mosteiro. Serão duas se o número de Irmãs não exceder dez professa solenes, quatro para os que não excedem trinta e seis para os que têm mais que este número. Os valores apontados incluem a vigária. As discretas são eleitas por um triénio, podendo ser reeleitas imediatamente para outros triénios, tendo, porém, o cuidado de que em cada triénio seja eleito pelo menos um membro novo. Devem ser religiosas dotadas de “espírito de fé e de oração, amor à paz e caridade fraternas, prudência e bom senso, sentido de responsabilidade e cooperação, cultura humana e religiosa”1411. Ao discretório pertence ajudar a abadessa no governo do mosteiro com o seu parecer ou com o seu voto. Tem pois funções consultivas ou deliberativas, conforme os casos previstos pelo direito próprio, que são as Constituições Gerais. Após a eleição da abadessa compete ao discretório escolher por votos secretos, entre as candidatas por ela propostas, depois de prévia consulta à comunidade, a mestra de noviças, secretária, ecónoma, porteiras e sacristãs. Para outros ofícios basta que a abadessa peça o parecer do discretório e das Irmãs. Quadro nº.65 - Ofícios trienais Triénio 1931 – 1935 1935 – 1938 1938 – 1941 1941 –1943 Abadessa Maria Clara de São José Maria Clara de São José Maria Clara de São José Maria Mónica dos Santos Vigária Mestra de noviças Maria Teresa da Apresentação Maria Teresa da Apresentação Maria Teresa da Apresentação Maria Bernardete do S. Coração Maria Teresa da Apresentação Maria Teresa da Apresentação Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração 1410 Constituições Gerais, IX, artº. 245, § 2, nº.1, p. 179: Discretório. Constituições Gerais, IX, artº. 240, p. 177: Discretório. 1412 A Madre Maria Bernardete do Sagrado Coração faleceu a 8 de Outubro de 1978. 1411 317 1943 – 1947 1947 – 1950 1950 – 1954 1954 – 1957 1957 – 1960 1960 – 1963 1963 – 1966 1966 – 1969 1969 – 1971 1971 – 1974 1974 – 1977 1977 - 19781412 1978 – 1981 1981 – 1984 1984 – 1987 1987 – 1990 1990 – 1993 1993 – 1996 1996 –1999 1999 – 2002 Maria Mónica dos Santos Maria Mónica dos Santos Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Isabel do Cenáculo Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Angélica do M. Jesus Maria Angélica do M. Jesus Maria Angélica do M. Jesus Maria Josefina de S. Rafael Maria Angélica do M. Jesus Maria Angélica do M. Jesus Madalena do Divino Mestre Maria Angélica do M. Jesus Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Clara da Esperança Maria Clara da Esperança Maria Clara da Esperança Maria Bernardete do S. Coração Maria Clara do Espírito Santo Maria Clara do Espírito Santo Maria Bernardete do S. Coração Maria Isabel do Cenáculo Maria Isabel do Cenáculo Maria Isabel do Cenáculo Maria Isabel do Cenáculo Cândida Teresa da Eucaristia Maria da Imaculada Conceição Maria Angélica do M. Jesus Maria Josefina de S. Rafael Cândida Teresa da Eucaristia Maria Angélica do M. Jesus Adelaide Maria da Cruz Maria Bernardete do S. Coração Maria Bernardete do S. Coração Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria Gertrudes do Crucifixo Maria da Imaculada Maria da Imaculada Maria da Imaculada Cândida Teresa da Eucaristia Maria Angélica do M. Jesus Maria Angélica do M. Jesus Maria Angélica do M. Jesus Adelaide Maria da Cruz Adelaide Maria da Cruz Adelaide Maria da Cruz Fontes: Arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, Livro de Eleições e Visitas Canónicas, fols. 1-18 A abadessa tem a obrigação de reunir o discretório ao menos quatro vezes por ano e todas as vezes que for necessário e oportuno. Com ele deve tratar “da vida espiritual e actividades das irmãs, dos assuntos mais graves, da administração económica, dos trabalhos a empreender e das despesas extraordinárias”1413. Neste momento o discretório do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade tem a seguinte constituição: Quadro nº.66 - Discretório para 1999-2002 Nome civil Nome religioso Cargo Maria de Freitas Leal Adelaide Encarnação de Sousa Cândida Teresa de Gouveia Agostinha de Vasconcelos Arlete Fátima de Sousa Maria Angélica do Menino Jesus Adelaide Maria da Cruz Cândida Teresa da Eucaristia Maria Madalena do Divino Mestre Maria Natália de Jesus Infante Abadessa Vigária Discreta Discreta Discreta Fontes : Arquivo do Mosteiro da Piedade, Livro de Registos, fols. 11-34 v. 3.3. O capítulo conventual Para promover o bem de toda a comunidade, o mosteiro tem o capítulo conventual que é constituído por todas as Irmãs solene ou perpetuamente professas. O seu voto é deliberativo ou consultivo, conforme os casos previstos nas Constituições Gerais. O capítulo conventual deve ser convocado pela abadessa ao menos quatro vezes no ano e todas as vezes que devem ser tratados assuntos que são da sua competência. Antes das reuniões capitulares, a não ser que se trate de assunto muito urgente, todos os temas a tratar devem ser comunicados às capitulares com tempo suficiente, para que possam estudá-los. É a abadessa que preside ao capítulo ou, no seu impedimento, a vigária. O capítulo conventual tem poderes electivos. Só ele pode eleger a abadessa, a vigária e as discretas. O seu voto é deliberativo em todos os assuntos que dizem respeito à admissão de candidatas ao noviciado ou à profissão, à guarda da clausura, transição de religiosas para outro mosteiro, assuntos económicos de maior relevo, dispensa da observância das leis disciplinares das Constituições Gerais, aprovação dos Estatutos particulares. Compete ao capítulo conventual dar conselho sobre a admissão de candidatas, a forma de rezar o ofício divino, sobre os trabalhos manuais a aceitar, etc. Tem direito de ser informado sobre a 1413 Constituições Gerais, IX, artº. 246, p. 179 : Estrutura do Governo. 318 orgânica do horário conventual, de tomar conhecimento das contas da comunidade e, enfim, de todos os assuntos de maior importância para a vida das Irmãs1414. No momento presente o capítulo conventual do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade é constituído por vinte religiosas das quais a mais antiga tem noventa e um anos, a Irmã Maria Clarisse Xavier, e a mais nova, a Irmã Ariana Maria, trinta e dois. 4. Inserção do mosteiro na Federação do Imaculado Coração de Maria No seguimento da Constituição Apostólica Sponsa Christi de Pio XII de 21 de Novembro de 1950, e por decreto da Sagrada Congregação dos Religiosos de 22 de Agosto de 1967, os mosteiros foram exortados a constituir-se em Federação, para maior auxílio fraterno. Cada Federação deve elaborar Estatutos próprios, que submeterá à aprovação da Sé Apostólica. Os Estatutos, no entanto, não poderão afectar ou prejudicar a autonomia de cada mosteiro. Como no conselho federal então organizado, todas as conselheiras eram dos mosteiros do Continente, o Assistente da Federação, Frei José do Nascimento Barreira bem depressa viu a conveniência de que houvesse uma conselheira dos mosteiros das Ilhas. Foi eleita para o efeito a Madre Maria Bernardete de Sagrado Coração, então abadessa do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade, a qual permaneceu no conselho até à sua morte, que ocorreu a 8 de Outubro de 1978. Seguidamente foi eleita a Madre Maria Angélica do Menino Jesus que fez três sexénios consecutivos, 1979-1985, 1985-1991 e 1991-1997, sendo nestes dois últimos conselheira e vigária. Em 1997 foi a mesma eleita Presidente da Federação. Também a Irmã Adelaide Maria da Cruz, do mesmo mosteiro de Nossa Senhora da Piedade da Caldeira, tem vindo a exercer responsabilidades na Federação. Foi conselheira de 1991 a 1997, encontrando-se agora a fazer um segundo sexénio (1997-2003) e a desempenhar simultaneamente o cargo de secretária federal. 5. Apoio recebido da família franciscana Lembram as Constituições Gerais das Irmãs Clarissas que entre a Ordem de Santa Clara e a Primeira Ordem franciscana deve haver um relacionamento “bastante familiar e íntimo, tanto nas coisas espirituais como nas jurídicas e materiais”1415. O mesmo texto legislativo exorta as irmãs a “solicitar o auxílio espiritual dos Frades Menores e preferi-los como seus capelães, pregadores de exercício espirituais, confessores e encarregados da sua formação permanente”1416. É que as duas Ordens foram não só resposta a um mesmo apelo de Cristo a S. Francisco, como também obra dos mesmos fundadores e resposta às necessidades da Igreja do século XIII. Santa Clara, no seu Testamento, depois de lembrar que São Francisco, como irmão zeloso e amigo, se empenhou na formação espiritual das suas irmãs “com as suas palavras e exemplos”, diz com decisão: “(...) recomendo e entrego as minhas irmãs, presentes e futuras, ao sucessor do nosso bem aventurado Pai Francisco e a toda a Ordem, para que nos ajudem a progredir cada vez mais no serviço de Deus”.1417 Sendo a ligação das Irmãs Clarissas com os seus irmão da Primeira Ordem vontade expressa dos fundadores e garantia de crescimento espiritual, a comunidade do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade procurou ter, desde a origem, as melhores relações com os seus irmãos. Neles têm encontrado os pregadores de retiros e conferencistas, entre os quais Frei José do Nascimento Barreira, Manuel Torres Monteiro Branco, Joaquim Carreira Marcelino das Neves, Alexandre Henriques Jorge, Mário de Jesus Pereira da Silva, José da Costa Santos, 1414 Constituições Gerais, IX, art. 249-250, pp. 182-185: Capítulo conventual. Constituições Gerais, VI, artº. 121, § 1, p.119. 1416 Constituições Gerais, VI, artº. 121, § 5, p. 120. 1417 TCL, 48, in FF II, p. 73. 1415 319 Manuel Marques Novo, David de Azevedo, José António Correia Pereira, Álvaro Cruz Santos da Silva, Daniel António Silveira Teixeira e outros. Nos Franciscanos residentes na fraternidade da Penha de França, no Funchal, têm encontrado os seus confessores. Entre outros, Frei Francisco Dias Correia Portela, Albino Fernandes Portela, António Gonçalves Janeiro, Manuel Luís de Sousa, Acindino Dias Borges Pacheco, Armando de São José Novais Pacheco, José Manuel de Araújo Morais, Sebastião Sabino Crisóstomo, Jorge Chaves e, mais recentemente, Alexandre Henriques Jorge e Francisco Rodrigues Macedo. Em Frei Acindino Dias Borges Pacheco, falecido a 30 de Março de 1999, encontraram as Irmãs Clarissas, ao longo de vinte anos, não só o confessor sábio e prudente mas também o irmão amigo e dedicado. Para além do auxilio espiritual que vêm prestando ao mosteiro, os Franciscanos têm dado às suas Irmãs todo o apoio possível em momentos especialmente significativos como por exemplo o oitavo centenário do nascimento de Santa Clara em 1993-1994, em que Frei Jorge Chaves muito se dedicou, e as celebrações dos quinhentos anos da chegada das Irmãs Clarissas à Madeira, que tiveram lugar em 1997, efeméride que mereceu a Frei Daniel António Silveira Teixeira uma admirável doação. Dos Ministros Gerais, a quem compete visitar fraternalmente os mosteiros, por si ou por um Irmão por ele designado, exortar as suas irmãs, estimulá-las à fidelidade à própria vocação e a guardar o património espiritual da Ordem, a comunidade tem recebido cartas fraternas e de aprofundamento espiritual, que mantêm acesa a chama de ligação entre as duas Ordens. Os Ministros Provinciais, nas suas viagens à Madeira, sempre procuram visitar as irmãs do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade bem como as do mosteiro de Santo António. Registamos as visitas destas últimas décadas: Frei David de Azevedo, Manuel Marques Novo, Mário de Jesus Pereira da Silva, António Montes Moreira e José Pereira das Neves, actual Provincial. Nas suas visitas dirigiram às religiosas palavras amigas e fraternas, exortando-as a viver em profundidade o carisma franciscano. Também os Franciscanos Capuchinhos têm apoiado fraternalmente esta comunidade. Não lhes têm faltado com suas visitas amigas, retiros e os cursos bíblicos orientados por Frei Miguel de Negreiros e Acílio Mendes. As músicas litúrgicas de Frei Acílio, como as de Frei Mário de Jesus Pereira da Silva, chegam frequentemente e são um valioso apoio na música sacra. As religiosas franciscanas da Ilha, Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias e as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, têm com as suas Irmãs Clarissas dedicação e carinho e gostam de visitá-las quando lhes é possível. Delas têm recebido inegáveis provas de amor e estima, como aconteceu em 1959, aquando do incêndio e em muitas outras circunstâncias. Os membros da Terceira Ordem Franciscana, quer a nível nacional quer regional, nunca esquecem as suas Irmãs. No oitavo centenário do nascimento de Santa Clara, a TOF ofereceu a todos os mosteiros de Portugal uma lápide em mármore onde se lê: “O Senhor esteja convosco e faça que estejais sempre com Ele. A TOF a suas Irmãs”. A que coube a esta comunidade pode ver-se no átrio da portaria. A fraternidade da Ordem Terceira de Câmara de Lobos e as de outras zonas da Madeira gostam de se tornar presentes nas grandes festividades e nas efemérides mais relevantes como foi o oitavo centenário de Nascimento de Santa Clara e a celebração dos quinhentos anos da chegada das primeiras Clarissas à Ilha da Madeira. As religiosas do mosteiro de Nossa Senhora da Piedade dão a este apoio todo o valor e, por sua vez, procuram acolher os seus Irmãos e Irmãs da família franciscana, como todas as pessoas que visitam o mosteiro, com cortesia e amor. Há sempre algo a partilhar, um gesto de carinho ou atenção a ter. 320 6. Evolução da comunidade A comunidade começou pequena: sete religiosas professas, uma noviça e duas postulantes em 16 de Abril de 1931, como atrás ficou dito. Era, porém, boa semente que bem cedo cresceu e deu frutos. No final daquele ano a comunidade contava doze membros: seis professas solenes, duas professas simples e quatro noviças. E o ritmo de crescimento continuou, como nos é dado ver no quadro que aqui inserimos. Ao longo das décadas de quarenta e cinquenta o número de religiosas foi sempre aumentando, o que justificou as obras de ampliação feitas em 1954. Após o regresso das Irmãs da cidade do Funchal em 1961, onde estiveram dois anos e meio por causa do incêndio de 1959, a comunidade teve um crescimento muito rápido. De lá veio enriquecida com dez candidatas que iniciaram o seu noviciado em 1962 e fizeram a profissão religiosa em 1963. São elas: Maria Assumpta de São João Baptista, Jacinta Maria do Carmo, Rosa Maria Reparadora do Divino Redentor, Margarida Maria Amada de Jesus e Francisca Maria Assis de Jesus Hóstia, que receberam o hábito da Ordem a 19 de Março de 19621418, festa de São José, e emitiram votos a 25 de Março de 19631419, festa da Anunciação do Senhor; e Maria Madalena do Divino Mestre, Maria Celina do Divino Coração, Maria Benigna do Amor Divino, Maria Angélica do Menino Jesus e Maria Clara de Jesus Cristo, que iniciaram o noviciado a 12 de Agosto de 19621420, festa de Santa Clara de As