UNIVERSIDADE GAMA FILHO PPGEF – MESTRADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA UM OLHAR SOBRE OS INTELECTUAIS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NA REVISTA MOVIMENTO
André Malina
RIO DE JANEIRO FEVEREIRO DE 2001 UM OLHAR SOBRE OS INTELECTUAIS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A
PARTIR DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NA REVISTA
MOVIMENTO
por
André Malina
“Dissertação Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho Como Requisito Parcial à Obtenção do Título de Mestre em Educação Física”. Fevereiro - 2001
UM OLHAR SOBRE OS INTELECTUAIS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NA REVISTA MOVIMENTO
André Malina
Apresenta a Dissertação
Banca Examinadora:
__________________________________
Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira
- Orientador -
___________________________________
Prof. Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo
____________________________________
Prof. Dr. Eloísa da Silva Gomes de Oliveira
Fevereiro de 2001
“Penso que se deve considerar a produção cultural (em qualquer de suas espécies) a
dois níveis, o da produção em si e o da sua incidência social; ou, se se quiser, do ponto
de vista do criador, do investigador, e do ponto de vista da coletividade. No primeiro
nível, a produção cultural é um fim em si – de fato, o investigador e o criador só serão
autênticos produtores enquanto a procura da verdade constituir para eles um objeto e
não um meio. (...) Para as coletividades, entretanto, a cultura não é um fim em si: é
um meio para conhecer melhor a natureza e a sociedade, para controlar e dirigir as
forças do mundo natural e social, para garantir a reprodução da sociedade em
condições progressivamente melhores. É neste nível que a intervenção dos intelectuais
se conjuga à intervenção dos membros da coletividade – é o nível da escolha de
prioridades, da seleção de recursos, etc. É neste nível que se põe à política cultural.”
SALOMÃO MALINA
“O fundamento ontológico da história é a relação do homem com os outros homens, o
fato de que o “eu” individual só existe como pano de fundo da comunidade. O que
procuramos no conhecimento do passado é a mesma coisa que procuramos no
conhecimento dos homens contemporâneos. Primeiro, as atitudes fundamentais dos
indivíduos e dos grupos humanos em face dos valores, da comunidade e do universo.
Se o conhecimento da história nos apresenta uma importância prática, é porque nela
aprendemos a conhecer os homens que, em condições diferentes e com meios
diferentes, no mais das vezes inaplicáveis à nossa época, lutaram por valores e ideais,
análogos, idênticos ou opostos aos que possuímos hoje; o que nos dá consciência de
fazer parte dum todo que nos transcende, a que no presente damos continuidade, e
que os homens vindos depois de nós continuarão no porvir. A consciência histórica
existe apenas para uma atitude que ultrapassa o eu individualista, ela é precisamente
um dos principais meios para realizar essa superação.”
LUCIEN GOLDMANN
Dedico esta dissertação a minha família, minha companheira Ângela, meu filho Mateus,
meu filho Henrique, minha mãe Rosa, meu pai Salomão, meus irmãos Léo, Mateus (in
memorian), Maurício, Carlinhos, Jaques, meus amigos e a todos que devido às
contradições sociais não puderam chegar neste patamar. Por todos estes e por mim,
materializou-se a minha dissertação.
AGRADECIMENTOS
Os meus sinceros agradecimentos às pessoas, abaixo relacionadas, por
tudo que envolve esta etapa conquistada na trajetória de fazer-se um
pesquisador:
- Ângela Celeste Barreto de Azevedo; - (GEPHEFE) Grupo de Estudo e Pesquisa em História da Educação Física e do Esporte – RJ e MS
- Sílvio de Cássio Costa Telles
- Ao corpo docente, discente e funcionários do Programa de Pós-Graduação
em Educação Física da Universidade Gama Filho –, sob a coordenação do
Prof. Dr. Helder Guerra Resende
- Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira, meu orientador e amigo;
- Prof. Dr. Heloísa da Silva Gomes de Oliveira;
- Prof. Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo
- A CAPES, que investiu na minha qualificação profissional;
- Aos entrevistados que muito gentilmente me receberam: Professores Dr.
Adroaldo Gaya, Dr. Celi Nelza Zulke Taffarel, Dr. Silvino Santin, Dr.
Hugo Rodolfo Lovisolo, Dr. Lamartine Pereira DaCosta.
- Em especial a minha família e amigos, como Fernando, Rogério, Marcelo,
Vítor, Walace, Valder, Leonardo, Patrick, Edna, Soraya, Elza e outros que
viveram momentos importantes em minha vida.
MALINA, André. Um Olhar sobre os Intelectuais da Educação Física a
partir do Debate Epistemológico na Revista Movimento. (Dissertação
de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF, 2001.
Orientador: Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira
RESUMO
O aprofundamento na discussão sobre o
intelectual e sua função social pode ser verificado a
partir do debate epistemológico ocorrido na revista
Movimento, iniciado com os artigos de Gaya (1994)
e Taffarel e Escobar (1994). No presente estudo, tal
debate é analisado a luz de emblemáticos autores
sobre a concepção de intelectual, como Mannheim
(1982 e 1986) e, especialmente, Gramsci (1966,
1978, 1987 e 1995), onde discutimos o intelectual da
educação física em conjunto com os conceitos
gramscianos de intelectual e de hegemonia. Para
tanto, foi utilizado o método dialético, através do
conceito de concreticidade de Kosik (1995) na busca
da essência do fenômeno, apoiado pela perspectiva
teórica de Goldmann (1967 e 1980). À análise dos
artigos, unimos entrevistas realizadas com seus
autores, além do referido referencial teórico. Diante
disto, obtivemos como resultado a importância do
intelectual no desenvolvimento cultural e social.
Estes intelectuais subsidiam inclusive a docência na
EF, e, ao mesmo tempo, influenciam os rumos da
sociedade, quer numa perspectiva hegemônica ou
contra-hegemônica, construindo tais perspectivas
buscando um consenso com o senso comum.
MALINA, André. An Overlook of the Physical Educations Intelectuals
from the Epistemologic Debate in the Movimento Magazine. (Master
Dissertation). Rio de Janeiro: Gama Filho University (Pós Graduate
Program on Physical Educacion), 2001.
ADVISER: Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira
ABSTRACT
The depth in the discussion about intellectuals
and their social function may be verifyed from the
epistemologic debate that took place in the
Movimento magazine, initiated with the Gaya’s
articles (1994) and Taffarel and Escobar (1994). In
the present study, this debate is analyzed in the light
of important authors on the definition of intellectual,
such as Mannheim (1982 and 1986) and, especially
Gramsci (1966, 1978, 1987 and 1995), where we
discussed the physical education intelectual together
with the gramscianos concepts about the intellectual
and the hegemony. To do that, the dialectical method
was used, through Kosik’s concreteness concept
(1995), in the search for the essence of the
phenomenom based on the theoretical perpective of
Goldmann (1967 and 1980).The analysis of the
articles were added to interviews with the authors,
besides the theoric referential. As a result we have
the importance of the intelectual in the social and
cultural development. These intellectuals even
support the faculty in physical education, and
influence, at the same time, the direction of the
society on a hegemonic or counter-hegemonic
perspective constructing such perspectives by trying
to reach a consensus with the common sense.
ÍNDICE
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
1.1 – Introdução/problematização........................................................................... p. 01 1.2 – Formulação da situação-problema ..................................................................p. 06 1.3 – Objetivo do estudo...........................................................................................p. 07 1.4 – Questões a investigar.......................................................................................p. 07 1.5 – Relevância do estudo.......................................................................................p. 07 1.6 – Metodologia.....................................................................................................p. 09 1.6.1 - Procedimentos metodológicos..............................................................p. 12 CAPÍTULO II – OS INTELECTUAIS E A HEGEMONIA
2.1 – Conceitos de intelectual...................................................................................p. 15 2.1.1 – O conceito de intelectual de Karl Mannheim......................................p. 17 2.1.2 – O conceito de intelectual de Antonio Gramsci....................................p. 23 2.1.3 – Uma síntese.........................................................................................p. 31 2.2 – O conceito de hegemonia de Antonio Gramsci...............................................p. 33 CAPÍTULO III – A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA ÓTICA DE
ALGUNS DOS SEUS INTELECTUAIS E A QUESTÃO DA
HEGEMONIA
3.1 – Os artigos da revista Movimento.....................................................................p. 45 3.1.1 – Análise do artigo de Gaya...................................................................p. 46 3.1.2 – Análise do artigo de Taffarel & Escobar.............................................p. 63 3.2
–
Os
intelectuais
da
educação
física
frente
à
questão
da
hegemonia..................................................................................................................p. 77
CAPÍTULO IV – CONCLUSÃO
4.1 – Conclusão.........................................................................................................p. 89 4.2 – Referências bibliográficas................................................................................p. 103 4.3 – Anexos..............................................................................................................p. 108
4.3.1 - Anexo 01...............................................................................................p. 110 4.3.2 – Anexo 02..............................................................................................p. 130
CAPÍTULO I - Introdução:
Introdução/Problematização:
O aprofundamento no trato da questão do discurso teórico do intelectual e sua
prática conseqüente é recente no âmbito da Educação Física (EF) brasileira e sua
manifestação pode ser verificada de forma mais organizada na discussão sobre a concepção
de EF. Antes dos anos 80, registram-se poucas iniciativas neste sentido. No contexto
ditatorial pós-64, relacionado à EF, por exemplo, podemos citar as publicações de Faria
Júnior (1969) e DaCosta (1971) como significativas de tal discussão. Nesta época,
aumentou o número de Instituições de Ensino Superior e houve uma reforma curricular na
EF (1969), o que denota indicativos da importância que a área assume.
Faria Júnior (1969), enfatiza a necessidade de introdução de técnicas pedagógicas
de ensino na EF, apoiado numa perspectiva técnica relacionada à Teoria Geral dos
Sistemas, dividindo os objetivos educacionais entre objetivos físico-motores e técnicopedagógicos. Essas técnicas pedagógicas seriam utilizadas a partir de modelos propostos,
como exercícios de aula e de planejamento. Apesar de privilegiar a técnica, a contribuição
deste estudo foi de suma importância para a EF na época, por haver trazido a discussão
sobre a relevância das disciplinas pedagógicas e da própria pedagogia para o ensino da EF.
DaCosta (1971), tinha como objetivo traçar um diagnóstico sobre a área da EF e dos
desportos no Brasil. O livro pretendia levantar dados em nível macro, e submetidos também
à análise sistêmica. A escolha pela utilização da Teoria Geral dos Sistemas deu-se porque,
segundo o autor, daria bons índices de correlação com outros países e seria o melhor
caminho de análise para países em desenvolvimento. Desta forma, a EF e o desporto são
caracterizados pelo modelo de pirâmide, onde se encontrava o desporto de massa na base,
logo acima a EF escolar e no topo o desporto de alto nível. DaCosta ainda conclui que
havia aumentado a importância da EF/desportos entre 1964 e 1970, período que coincidiu
com o Golpe e a conseqüente ditadura militar, e apontou para um desenvolvimento
significativo da área (1). Por outro lado, também referiu para a necessidade de maior
participação do Governo Federal na educação e nos desportos e para a inexistência de uma
política adequada de EF/desportos.
A partir da década de 80, houve expansão de cursos em nível de pós-graduação na
EF, deslocamento de profissionais para realizarem estes cursos em áreas de conhecimento
correlatas, principalmente na Educação, bem como atuação de profissionais dessas áreas na
EF. Nessa década, ocorre também efervescência na discussão sobre a concepção de EF por
seus intelectuais em âmbito qualitativo. Destacam-se Oliveira (1983), Faria Júnior (1987), e
Guiraldelli Júnior (1988) como exemplos de intelectuais que retratam essa questão.
Oliveira (1983), numa publicação inicialmente destinada ao antigo Segundo Grau
(atual Ensino Médio), mas também adotada em muitas universidades, problematizou a
identidade da EF com a pergunta “O que é Educação Física?”. Este livro catapultou esta
indagação, suscitando debates posteriores. Nele, o autor enfatiza a História para
entendermos como foi tratada a EF através dos tempos, perguntando se ela seria esporte,
jogo ou medicina, e caracteriza aproximações e distanciamentos com estes e outros
conhecimentos correlatos.
Posteriormente, Faria Júnior (1987) discutiu em um artigo a formação profissional
em EF, indo às suas origens e identificação político-social. O autor defendeu uma formação
profissional generalista, o que, em países como o Brasil, acreditava ser uma tendência que
se deve defender. O autor também apontou para o risco da formação de especialistas,
especialmente com o advento da Resolução 03/87, trazendo a possibilidade da criação dos
cursos de bacharelado (2) e, acarretando, segundo ele, numa fragmentação da área. Tal fato
levaria também a criação de códigos de ética, regulamentação da profissão, conseqüente
reserva de mercado, enfatizando o entendimento do professor de EF como um técnico.
Guiraldelli Júnior (1988), prefaciado por José Carlos Libâneo, tentou aplicar a
Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos à EF, abordando inicialmente, através da história,
as diferentes concepções de EF e suas respectivas filosofias. Desta forma, classificou cinco
tendências da EF no Brasil: Higienista (até 1930); Militarista (1930-1945); Pedagogicista
(1945-1964); Competitivista (pós-64) e, finalmente a Popular, que existe sem uma
teorização formal e é, para o autor, mais abrangente, pois é “uma concepção de EF que,
paralela e subterraneamente, veio historicamente se desenvolvendo com e contra as
concepções ligadas à ideologia dominante” (Ghuiraldelli Júnior, 1988, p. 21). A concepção
de EF Popular e sua filosofia estariam inseridas num marco de lutas de classes, ligadas ao
Movimento Operário e Popular que ocorria no Brasil, ganhando corpo no fim dos anos 20 e
reforçado no breve período em que tal movimento não esteve na clandestinidade, após o
fim do Estado Novo, período ditatorial governado por Getúlio Vargas (1937-1945). O autor
apontou o professor de EF como um intelectual e demonstrou indicativos para o
entendimento de uma EF crítico-social dos conteúdos.
Na década de 90, a discussão sobre a concepção de EF foi aprofundada, bem como
encontramos preocupações de diferentes autores sobre a posição encontrada no discurso
dos intelectuais da área, reportando-se inclusive à década anterior.
No livro Metodologia do Ensino de Educação Física, que ficou conhecido como
Coletivo de Autores (1992), houve uma proposta metodológica de ensino para a EF escolar,
tomando por base a década de 80. Os autores justificam a escolha desta década, por
entendê-la como questionadora do papel da EF frente aos problemas de época, observados
por diferentes prismas, como o sócio-político-econômico. Eles acreditavam que a partir de
diversos paradigmas resultariam também diversas práticas pedagógicas, e concebem a EF
como prática pedagógica vivenciada no ambiente escolar, tematizando “formas de
atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, (...) que configuram uma área de
conhecimento que podemos chamar de cultura corporal (3)” (Soares et alli, 1992, p. 50).
Noutra vertente, Oliveira (1994) destacou dois
pólos de propostas teóricas de atuação: a pedagogia
do Consenso e a do Conflito, e demonstra que
muitos autores, inclusive alguns ligados às
discussões mais avançadas politicamente na década
de 80, não possuíam discurso especialmente voltado
à pedagogia do Conflito, aproximando pari passu
suas concepções de EF da pedagogia do Consenso,
ou no máximo identificando-as com posições ditas
progressistas.
Neste contexto, rico em produções relacionadas a diferentes concepções de EF, foi
promovido em setembro de 1994 o lançamento da revista Movimento, publicada pela
Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Esta revista traz em destaque um debate sobre a concepção de EF, delineando
discursos e conseqüentes posições de intelectuais da área, porque tinha como pretensão,
escrita no seu editorial, a contribuição para “uma relação entre os pensadores da área e
destes com a sociedade." (p. 04). Nas páginas centrais da revista, criou-se uma seção,
chamada Temas Polêmicos, e assim formulada por este editorial:
"Foi a preocupação em estabelecer realmente a
comunicação que nos levou a criar a seção Temas
Polêmicos, onde o espaço para o pensamento
divergente
será
garantido,
proporcionando
um
ambiente aberto à reflexão que contribua para o
movimento do conhecimento da área.” (1994, p. 04).
No seu primeiro número, tal seção contemplou a questão epistemológica da
identidade da EF, protagonizada inicialmente pelo artigo do professor Adroaldo Gaya
(Gaya), proveniente de sua aula inaugural na UFRGS, denominado "Mas Afinal, o que é
Educação Física?", também baseado em estudo realizado na sua tese de doutorado. Este
artigo foi analisado pelas professoras Celi Nelza Zulke Taffarel (Taffarel) e Micheli
Escobar (Escobar), resultando num outro artigo, denominado "Mas, afinal, o que é
Educação Física?: um exemplo de simplismo intelectual".
A partir desse debate inicial, outros intelectuais foram convidados a se
pronunciarem, escrevendo sobre tais artigos e, por conseguinte, sobre a concepção de EF.
Estes escritos foram publicados nas páginas centrais dos números 2 - 3 e 4 dessa revista.
Assim, além de Gaya (1994) e Taffarel & Escobar (1994), também Bracht (1995), Lovisolo
(1995), Santin (1995), Ghiraldelli Júnior (1995), Pallafox (1996) e DaCosta (1996);
manifestaram suas opiniões, que conotavam perspectivas e tendências da EF sob diferentes
prismas e relativamente sobre suas visões sociais de mundo.
O pensamento dos intelectuais acima descritos apontou para uma concepção de EF
de época e ao produzirem tal concepção passaram a exercer uma função intelectual nos
termos do debate sobre a questão epistemológica. Desta forma, cabe a análise sistemática
dos textos dos autores eleitos no presente estudo (Gaya e Taffarel e Escobar), produzidos
para a revista Movimento, o que pode demonstrar posicionamentos assumidos, com
conseqüentes desdobramentos e hegemonia vigente.
1.2 - Formulação da situação problema:
No contexto acima delineado, evidencia-se a necessidade da investigação de problemas
centrais da EF, como a posição demonstrada no discurso de seus intelectuais, manifestada
através de concepções relativas à área. Isto posto, a pesquisa inicia-se com o seguinte
problema:
Compreender posições hegemônicas delineadas por intelectuais através de seus
discursos sobre a concepção de EF no âmbito do debate da questão epistemológica.
Os artigos de Gaya e Taffarel & Escobar, escritos para a revista Movimento, foram
os eleitos para análise, visando a resolução da situação-problema. Cabe ressaltar que a
revista Movimento é considerada relevante para a área de EF, é muito lida por estudantes e
professores, além de ter promovido o prolongamento deste debate sobre a concepção de EF
a partir dos artigos inicialmente publicados.
1.3 - Objetivo do estudo:
Verificar em que medida os intelectuais da EF organizam a cultura e constroem um
consenso hegemônico através do discurso sobre a concepção de EF.
1.4 - Questões a investigar:
- Qual a concepção de EF presente nos textos de Gaya, Taffarel & Escobar que foram
publicados na revista Movimento.
- Quais os aspectos que caracterizam o caminho para o processo de construção de uma
hegemonia?
1.5 - Relevância do estudo:
Neste estudo evidencia-se a importância do trabalho de revisão da literatura, com
ênfase no conceito de intelectual de Gramsci e Mannheim e de hegemonia de Gramsci, por
se tratarem de autores destacados nas perspectivas teóricas diferenciadas que apresentam,
além de muitos discutidos e problematizados em diversas áreas de conhecimento. A
compreensão das idéias destes autores pode delimitar o discurso dos intelectuais da EF
relacionadamente através da análise dos conceitos teóricos e função social que propõem.
Generalizando as questões levantadas no estudo, pode-se dizer que a significação
social é condição sine qua non do fazer-científico referente a uma prática pedagógica como
a EF. Por isso, é importante a postura do intelectual frente aos objetivos de sua produção
científica e o que irão fazer dela, ou seja, como os intelectuais pretendem que sua
intervenção na área e na sociedade como um todo, seja utilizada. A característica de
levantamento dos dados de forma meramente factual não direciona a produção do
conhecimento, e nem assim torna-se neutra.
É importante também considerar a compreensão
que baseia a contribuição dos intelectuais na
dinâmica do conhecimento na área da EF porque,
embora possuindo características peculiares, ela não
é dissociada dos problemas e contradições inerentes
à sociedade em geral. Com isto, os intelectuais que
produzem conhecimento, também não possuem um
discurso dissociado da ideologia, como em qualquer
âmbito científico. É pressuposto, no entanto, que a
investigação de seus discursos, demonstre que tal
ideologia seja subordinada à realidade dos fatos.
Ao demonstrar a posição de intelectuais da área através de seu discurso, produz-se
um retrato enfocado na produção de consenso, onde se estabelecem determinadas
concepções de mundo que podem visar uma postura favorável ou contrária à manutenção
dos propósitos sócio-político-econômicos dominantes e com diferentes abordagens. A
existência de uma hegemonia em tal discurso indica uma aliança tácita com alguma dessas
concepções de mundo e pode ser desvelada.
A relação dos dados levantados no presente estudo pode, por sua vez, indicar a
matriz teórica que norteia a concepção hegemônica e a contra-hegemônica de EF. Tal fato é
dado de contribuição para demonstrar a base teórico-epistemológica da discussão sobre
estas concepções, direcionando para o avanço do estabelecimento da demarcação dessa
área.
Nestes termos, torna-se relevante o estudo referente à questão da discussão dos
intelectuais sobre a concepção de EF, no bojo de discussões com cunho epistemológico,
porque possibilita a provocação de reflexões críticas sobre a construção de um consenso
hegemônico ou de contra-hegemonia através do conceito de EF.
As conclusões do estudo podem possibilitar ainda desdobramentos e considerações
decorrentes da verificação realizada, indicando uma base teórica sobre a produção científica
dos intelectuais da área em determinada época, incitando estudos sobre a atual produção
científica e concepção de EF de seus intelectuais.
Assim sendo, este estudo pretende se situar na verificação dos discursos de
intelectuais da EF, a função social dos discursos e dos intelectuais em relação à área e a
sociedade, ampliando a produção científica existente sobre o assunto e buscando
aproximação para uma identidade da EF.
1.6 – Metodologia:
No presente estudo utilizamos o método dialético, por considerarmos como o mais
adequado no atendimento do objetivo proposto, assumindo, desta forma, as idéias de Kosik
(1995) sobre a busca da essência do fenômeno para além da pseudoconcreticidade. (4)
Segundo Kosik (1995), para compreendermos a essência de um fenômeno faz-se
necessário propor antecipadamente a decomposição do todo na ação e no conhecimento
filosófico, decorrendo, neste sentido, uma separação do que seja essencial e secundário
neste fenômeno. Apesar do fenômeno mostrar-se como um todo, isto não ocorre de forma
imediata, mas como uma visão de mundo das aparências. Este mundo das aparências que
parece nos mostrar o todo, não reconhece a essência verdadeira. Tal visão de mundo
aparente é denominada pseudoconcreticidade.
Ao tentarmos atingir a essência precisamos do fenômeno e de sua manifestação, que
é a coisa (5) e os elementos constitutivos para tratarmos esta coisa. A representação do
fenômeno e de sua manifestação, contudo, pode não ser uma qualidade natural da coisa e da
realidade, mas sim “uma projeção na consciência do sujeito, de determinadas condições
históricas petrificadas” (Kosik, 1995, p. 19).
O mundo real ou totalidade concreta encontra-se oculto pelo mundo da
pseudoconcreticidade, precisando ser desvelado para que se tente maior aproximação com a
verdade. Essas aproximações são sucessivas e permanentes, como um ir e vir do
conhecimento em relação ao fenômeno analisado, ou seja, é necessário realizar-se um
detóur (Kosik, 1995). Conseguir chegar ao concreto parece ser possível somente com esta
mediação do abstrato ou mediação da análise, como Saviani (1986) chama o detóur de
Kosik.
Isto posto, a maior aproximação com a verdade depende do conhecimento sobre
esse fenômeno, que é relativo à construção histórica do sujeito e influenciada por múltiplas
relações sociais e com a própria construção do conhecimento.
Neste sentido, a compreensão da história ocorre através de explicações com cunho
sociológico. Para transpor o modelo de registro de fatos históricos simplesmente,
pressupõe, entretanto, mais que a junção das disciplinas história e sociologia tratadas
metafisicamente, somando-se as suas abstrações. Uma ciência articulada só poderia ser uma
sociologia histórica ou uma história sociológica. Por esta ótica, para se considerar uma
ciência como sendo de fatos humanos, deve-se abandonar toda sociologia ou história
metafísicas para alcançar uma sociologia que só pode ser concreta se for histórica. Desta
forma, “o conhecimento concreto não é a soma mas síntese de abstrações justificadas.”
(Goldmann, 1980, p. 17).
Na perspectiva de uma teoria materialista do conhecimento, é necessário utilizar-se
a consciência de maneira dialética (6), visto que, “a consciência humana é reflexo e
projeção, registra e constrói, toma nota e planeja, reflete e antecipa, é ao mesmo tempo
receptiva e ativa.” (Kosik, 1995, p. 32-33). Segundo Kosik (1995), é pressuposto a
ocorrência de uma visão dialética de mundo pelas pessoas, considerada não-reduzida ou
ampliada. A partir do conhecimento velho é possível alcançar tal visão e atingir um
conhecimento novo, onde a história é o ponto de partida para atingir este conhecimento,
para se alcançar à totalidade concreta. Esta totalidade concreta pode ser atingida ao obter-se
o conhecimento da concreticidade do real, sempre acrescentando fatos novos
dialeticamente. Tal realidade é um todo dialético que não compreende a realidade total, mas
uma teoria da realidade em que o conhecimento humano vem sendo permanentemente
acumulado e processado em forma de espiral e na qual a concretização se desloca das
partes para o todo e vice-versa. Nessa espiral, todo princípio é abstrato e relativo. (id))
O sujeito desta realidade é, invariavelmente, social, um ser produtivo por meio do
desenvolvimento de suas atividades, onde conhece o mundo e se relaciona dialeticamente
com ele. Por isso, faz-se necessário conhecer a realidade social do sujeito para melhor
compreensão do todo. Ao conhecermos a realidade do sujeito historicamente construído,
aproximamo-nos da compreensão do todo e afastamo-nos da pseudoconcreticidade, até a
sua destruição, saindo da aparência do fenômeno para chegar à sua verdadeira
objetividade (Kosik, 1995).
A dialética por sua vez, prevê que as interpretações feitas relativas ao mundo devem
ser encaradas como passíveis de mudanças e reconstruções, pois a interpretação prática de
transformar o mundo em que vivemos, desencadeia ao mesmo tempo um processo de
transformação pessoal num mundo em permanente transformação. Este processo deve ser o
da autocrítica e da crítica à realidade social. Tal pensamento é tratado como dialético e deve
ser aplicado na prática, apesar da dificuldade e da sedução de estabelecer-se a priori e
também de pensar que todos seremos felizes porque pensamos dialeticamente. O método
dialético, no entanto, pode causar desconforto em certos segmentos de classe, porque
pressupõe mudanças em conceitos admitidos como verdades, até mesmo quando visa se
aproximar mais destas.
Na vertente dialética, existe uma unidade e uma unicidade entre teoria e prática, isto
é, entre o conhecimento e a ação. Existe, portanto, uma visão de mundo orgânica,
propiciada pela dialética em que o “ser” o é em detrimento do “ter” e passa a existir
também uma oposição relativa à metafísica, pois o movimento ocorre invariavelmente e é
concreto. Por outro lado, segundo Politzer et alli (1980), a dialética contraria a lógica
formal, porque busca a totalidade dos aspectos do processo, em detrimento do resultado
imediato e aparente.
Portanto, as conceituações abordadas no presente estudo se respaldam na visão do método
dialético proposto por autores marxistas.
1.6.1 - Procedimentos metodológicos:
O primeiro procedimento desta pesquisa será analisar a literatura pertinente,
buscando evidências necessárias para elaboração de um trabalho de cunho sócio-filosófico.
Tendo em vista esta natureza da pesquisa, faz-se necessário recorrer a determinados
conceitos ligados à compreensão de significados relacionados à busca da essência do
fenômeno. Para tentar aproximações com a verdade existente no fenômeno analisado,
buscando alcançar a sua essência, sem permanecer na aparência desse fenômeno,
utilizaremos o conceito de busca da essência do fenômeno para além da
pseudoconcreticidade, de Kosik (1995), recorrendo também a outros autores, como
Goldmann (1980) e Japiassú & Marcondes (1996).
Desta forma, busca-se compreender conceitos emitidos pelos intelectuais da
educação física, por refletirem sua função para a sociedade. Para chegar à compreensão
destes conceitos, utilizamos primeiramente o conceito de intelectual proposto por Giroux
(1992). Em seguida, discutimos o conceito de intelectual proposto por dois emblemáticos
autores no trato dessa questão: Gramsci (1966, 1978, 1995) e Mannheim (1982 e 1986).
Posteriormente, adotamos o conceito gramsciano de intelectual por aproximação
ideológica e em virtude da interligação deste com todos os seus outros conceitos
explicativos relacionados ao homem e a sociedade que compõem sua proposta teórica. No
sentido de possibilitar o aprofundamento na análise dos pressupostos assumidos,
utilizaremos especialmente o conceito de hegemonia proposto por Gramsci. Da mesma
forma, tal conceito permeia toda a teoria gramsciana, embora se possa afirmar que também
funciona como um elo com outros conceitos, delineando a pretensão do presente estudo.
Outros autores também auxiliarão no trato desses conceitos ao longo do estudo, como Marx
(1987), Bottomore et alli (1997), Bocayuva & Veiga (1992), e Jesus (1989).
Finalmente, será verificada a concepção de educação física e feita à análise e
descrição do que escreveram os seguintes intelectuais para a Revista Movimento: Gaya
(1994), Taffarel & Escobar (1994). Além disso, quando necessário for, para melhor
compreender as diferentes concepções de educação física destes referidos autores, serão
descritas e analisadas algumas de suas obras, como tese de doutorado ou livro. Por
conseguinte, também quando necessário recorreremos a entrevistas realizadas com os
autores desses artigos, através de perguntas abertas e estruturadas, para dirimir dúvidas e
emitir um parecer condizente com os fatos estudados (7). Desta forma, visa-se argüir sobre
suas concepções de EF da época dos artigos, seus conhecimentos e afinidades com os
conceitos teóricos adotados no estudo e a possibilidade de autocrítica perante tal
concepção.
Isto posto, tendo em vista os objetivos a alcançar, apresentamos nos capítulos
seguintes análises destas abordagens adotadas, determinadas como mais adequadas
metodologicamente. Assim sendo, no capítulo II abordaremos o referencial teórico
necessário para a pesquisa, partindo de uma descrição de conceitos de intelectual, do
conceito gramsciano de hegemonia. No capítulo III, adotaremos o estilo descritivo-analítico
com os artigos dos autores eleitos para análise publicados na revista Movimento e suas
respectivas obras, quando consultadas, a luz do referencial teórico. Para desvelar fatos
decorrentes serão ainda utilizadas entrevistas. Com esta análise busca-se identificar uma
concepção de educação física que atenda a construção de hegemonia ou de contra­
hegemonia.
Já no capítulo IV, descreveremos a conclusão acerca da temática abordada,
verificando elementos identificadores sobre uma concepção de EF produzida por seus
intelectuais, alinhada com a hegemonia ou contra-hegemonia.
CAPÍTULO II – OS INTELECTUAIS E A HEGEMONIA:
2.1 – Conceitos de intelectual:
O conhecimento vinculado ao intelectual e a função desempenhada por este na
sociedade, vêm sendo discutido no decorrer dos tempos. Na Grécia antiga, por exemplo, o
conhecimento e a verdade eram tratados harmoniosamente. Com o advento do cristianismo,
no entanto, surgem problemas como a separação entre corpo e alma, fé e razão, humano e
divino. Neste sentido, a verdade passou a ser encarada como infinita e divina,
diferentemente do ser humano, que por possuir uma existência terrena finita, não pode
conhecê-la. Processualmente, a fé passa a ser o problema central da filosofia na Idade
Média. (Chauí, 1995). Nesta época, os principais intelectuais estavam vinculados à Igreja
que detinha o conhecimento e selecionava os conteúdos a serem transmitidos conforme
seus interesses.
Com os filósofos modernos, ocorrem mudanças de paradigmas na filosofia. O
tratamento da questão do conhecimento é modificado através de explicações sobre fatores
como: a separação entre fé e razão, que se tornam distintas entre si; a imaterialidade das
idéias tanto quanto da alma; e a sobreposição da razão e do pensamento em detrimento da
vontade, que passa a ser controlável, evitando assim o erro. O processo de modificação da
questão do conhecimento provoca uma ruptura com o modelo anterior, produzindo um
novo pensamento filosófico que trata a inter-relação entre sujeito e objeto do conhecimento
a partir da capacidade humana para o erro e a verdade. Surgem, neste período, proposições
de teorias do conhecimento com intelectuais como Francis Bacon, René Descartes e John
Locke, tornando a Teoria do Conhecimento uma categoria de estudo central da filosofia. A
questão do conhecimento para os intelectuais mencionados é anterior a questão da
ontologia, bem como pré-requisito para o tratamento da filosofia e das ciências. (Chauí,
1995). Assim, os intelectuais continuam a manter o domínio do conhecimento, mas com
um caráter cientificista, ao invés do escolástico.
Contemporaneamente, a questão do que são intelectuais e sua função para a
sociedade vêm sendo abordada diferentemente por diversos autores, como Mannheim e
Gramsci. Embora ratificando a valorosa contribuição de outros autores à questão, como
Giroux (1992) (8), o presente estudo elegeu esses autores para seu tratamento. Portanto,
neste item será abordado o conceito de intelectual através de uma descrição do pensamento
destes dois emblemáticos autores nesse assunto. Tal escolha ocorreu por apresentarem suas
propostas de maneira consistente e de forma mais adequada para o estudo e por divergirem
entre si relativamente às suas concepções de mundo.
2.1.1 - O conceito de intelectual de Karl Mannheim:
Mannheim associa a questão dos intelectuais como um problema da sociologia do
conhecimento e da sociologia política, ou seja, o fazer científico dos intelectuais é
relacionado a outras questões e passível de análise por parte de uma disciplina específica. O
olhar dirigido ao fazer científico por parte do intelectual define a formulação do problema,
a abordagem do problema, a classificação, ordenação e as categorias utilizadas. Mannheim
define tal olhar como “posição social do observador”. (1986).
Os intelectuais por possuírem uma posição social, assumem uma determinada
decisão política, o que aparentemente inviabilizaria uma ciência política – e que Mannheim
tenta comprovar sua viabilidade apesar dos fatos descritos.
Já a própria política, pela ótica do autor, possui uma pedagogia, que transmite
valores em forma de uma atitude frente ao mundo e que passa por toda a vida de quem os
assimila.
A situação de época verifica que toda concepção de mundo seja partidária,
especialmente uma visão política de mundo. O conhecimento está fragmentado, mas pode
ser integrado complementarmente através de diversos pontos de vista. Nesse sentido, as
teorias opostas são produtos de fatos sociais determinados e podem se completar
possibilitando preliminarmente uma ciência política. A ciência política não seria, no
entanto, uma ciência partidária, mas geral, do todo. (Mannheim, 1986).
Na tentativa de elaborar uma Sociologia do Conhecimento e uma Sociologia
Política, Mannheim observa o intelectual como aspecto crucial nesta formação. Este
intelectual publica seu principal livro Ideologie und Utopie em 1929, pelo qual é apontado
como um dos “críticos do marxismo” (Bottomore et alli, in: Bottomore et alli, 1997).
Nestes termos, embora tenha sofrido influência do marxismo em seus estudos iniciais,
Mannheim se afasta progressivamente deste, alinhando-se cada vez mais com o pensamento
de Max Weber. (Delacampagne, 1995).
Mannheim (1982, 1986) discute a função dos intelectuais e a questão da ideologia,
mas sua ótica, entretanto, é peculiar. Ele destaca que, embora não sejam os únicos, os
intelectuais podem ser responsáveis pela melhor elaboração de sínteses relativas à
sociedade. Para o autor, se adotarmos uma síntese absoluta, recaímos num intelectualismo
estático, admitindo que o pensamento político tem origem desinteressada e que a síntese só
ocorreria através de fontes de dentro do próprio âmbito político. Portanto, se o pensamento
político vincula-se a uma perspectiva dentro do contexto social, uma síntese total deve
tender a estar incorporada em algum grupo social, que pode estar localizado externamente
ao meio político.
A verdadeira síntese deve ser relativa e dinâmica, adequada ao tempo e espaço
presentes e, para ser válida, "deve-se basear numa posição política que venha a constituir
um desenvolvimento progressivo, no sentido de reter e utilizar boa parte das aquisições
culturais e energias sociais acumuladas na época anterior" (Mannheim, 1986),
especialmente no sentido de avaliar o que é necessário e o que ainda não é possível. (id)
Esta nova ordem deve permear, se possível, toda a sociedade, buscando transformá-la. Para
Mannheim (1986), a intelligentsia (9) seria o estrato que melhor desempenharia esta
função, pois o estrato ideal deve ser "relativamente sem classe, cuja situação na ordem
social não seja demasiado firme" (p. 180).
Em relação à posição dos intelectuais, Mannheim afirma que uma sociologia
orientada para referir-se somente às classes sócio-econômicas não conseguirá compreender
adequadamente este fenômeno, pois, desta forma, os intelectuais se constituiriam numa
classe. É considerável que muitos intelectuais vêm de estratos sociais rentistas (10),
diretamente vinculados aos processos econômicos da sociedade. Alguns grupos de
funcionários e profissionais liberais também poderiam ir nesta mesma linha de análise, e,
com base nesta sociologia, pertenceriam igualmente à intelligentsia. Ao verificarmos tal
questão com maior profundidade, conclui-se com um exame da sua base social, que há um
menor vínculo destes grupos com uma classe, diferenciando-os dos estratos rentistas,
atuantes mais diretamente no processo econômico. (Mannheim, 1986).
Ao analisarmos os intelectuais historicamente - pois consideramos a forma mais
adequada de entendê-los - verifica-se que possuem grande heterogeneidade, devido
principalmente, às modificações nas relações de classe. Estas relações de classe afetaram
ora favoravelmente, ora desfavoravelmente aos diferentes grupos existentes, acarretando
conseqüentemente a não determinação de sua homogeneidade. Os intelectuais estão
unificados pelo que lhes é comum: a herança cultural e a educação, que tendem a "suprimir
as diferenças de nascimento, status, profissão e riqueza, e a unir os indivíduos instruídos
com base na educação recebida" (Mannheim, 1986, p. 181), mas sem que desapareça
completamente seu status e seus laços de classe. (id).
A educação moderna é um retrato das contradições da sociedade. A pessoa que
recebe esta educação formal é influenciada por tais visões contraditórias e contrárias,
chocando-se com a sua orientação, que não é processada baseada na instrução recebida,
tendendo a agir influenciado somente por sua situação social imediata. (Mannheim1986).
Na vida moderna, a atividade intelectual não ocorre exclusivamente por meio de
uma classe, mas por um estrato desvinculado de qualquer classe social, especialmente após
a ascensão da burguesia, que, modernamente, tem duas origens sociais: os proprietários do
capital e os que possuem como capital, sua instrução. (Mannheim, 1986).
Para compreensão desta sociedade moderna, surge um estrato de uma sociologia
que dificilmente irá compreende-la caso se oriente exclusivamente em termos de classe.
Este estrato não se configura uma classe média, mas tem os processos que ocorrem na vida
social. Quanto maior o número e as variantes das classes e estratos onde se recrutam os
intelectuais, existirão mais correntes e tendências teóricas que os unem, causando um
conflito na pessoa participante deste processo. (Mannheim, 1986).
Para o autor, os intelectuais possuem em seu interior, ainda que parcialmente
suprimidos, os conflitos e contradições inerentes à vida social, tanto quanto forem maiores
os estratos e classes de onde eles provenham. Assim, estão ligados ao seu ponto originário,
mas estão "também determinados, em seus pontos de vista, por este meio intelectual que
contém todos os pontos de vista contraditórios" (Mannheim, 1986, p. 182). Estes conflitos
permitem que apreendam à totalidade da situação analisada com mais profundidade. Dessa
forma, o intelectual pode apresentar-se desvinculado, pertencente a uma ordem única, a dos
intelectuais. Embora tenham conflitos inerentes tanto à origem quanto à ordem constituída,
eles encontram-se também desvinculados para analisarem e emitirem pareceres mais
aprofundados a um amplo espectro da sociedade.
O pragmatismo e a instabilidade social são aspectos negativos dos intelectuais
desvinculados, rótulo adquirido, em grande parte, devido a acusações de grupos
politicamente extremistas. Para reverter tal situação, estes intelectuais apostam em duas
linhas de ação:
1- A filiação a uma classe social, ou fornecendo teóricos aos conservadores - que não
possuem autoconsciência teórica - ou ao proletariado - que não possuem condições para
adquirirem conhecimento necessário face aos conflitos políticos modernos - ou a burguesia
liberal.
2- Perscrutam suas raízes sociais e tentam cumprir sua predestinada missão de defender
interesses intelectuais do todo. (Mannheim, 1986).
Os intelectuais podem se filiar a uma classe, pois se adaptam a qualquer ponto de
vista e possuem as devidas condições para escolher uma filiação. Entretanto, as pessoas que
ainda não são intelectuais e são vinculadas a uma classe, quase sempre não ultrapassam os
limites da sua visão de classe. Por outro lado, um indivíduo da classe proletária que ascende
a condição de intelectual, não raras vezes muda sua personalidade social. (Mannheim,
1986).
Pela teoria mannheimniana, a sociologia dos intelectuais está intrinsecamente ligada
à formação de uma ciência política que venha a ser ensinada nas Universidades para jovens,
com compreensão da perspectiva e concepção do todo. Não existe a pretensão de que numa
escola desta natureza, os professores não tenham tendências partidárias ou não se chegue a
decisões políticas, mas
“existe uma profunda diferença entre um professor que,
após cuidadosa deliberação, se dirige a seus alunos,
cujas mentes ainda não estão formadas, de um ponto de
vista
adquirido
por
uma
cuidadosa
meditação,
conduzindo a uma compreensão da situação total, e um
professor exclusivamente interessado em inculcar um
ponto de vista partidário já firmemente estabelecido.”
(Mannheim, 1986, p. 187)
Uma disciplina como a Sociologia Política, poderá ser útil para resolver questões
tais como: Que interesse existe dentro de um contexto de fatos? Este interesse produzirá
qual pensamento e que visão do processo social total? As respostas encontradas podem ser
relações existentes dentro e fora do campo da política. Na perspectiva de Mannheim, a
Sociologia Política deve se ater ao seu fundamento primário: as relações estruturais,
passíveis de ensino. Tal ensino não deve se ater aos juízos de valor, mas compreender sua
realidade social e a perspectiva de seus adversários, através de suas motivações e de sua
realidade histórica e social. Desta forma, a Sociologia Política atinge como ciência a função
de melhor síntese para sua época.
2.1.2 - O conceito de intelectual de Antonio Gramsci:
Gramsci é um autor que também discute a questão dos intelectuais, sua origem e
função para a sociedade, porém numa perspectiva diferente de Mannheim.
Gramsci adota uma perspectiva teórica identificada com o marxismo e parte dessa
teoria para elaboração de sua proposta, onde tenta evidenciar o papel do intelectual como
organizador da sociedade e da cultura (11), vista como dimensão superestrutural da
sociedade. A teoria gramsciana de sociedade é formulada quando Gramsci é preso, após
pertencer como deputado ao parlamento italiano e ser identificado pelo Governo fascista de
Benito Mussolini como um perigo à sociedade por suas idéias. Além disso, Gramsci
pertencia e era um dos líderes do Partido Comunista Italiano - PCI - , do qual foi um dos
fundadores. Na cadeia, ele escreve os “Quaderni del Carcere”, apontamentos teóricos
feitos à mão, com escassa literatura. Gramsci morre em 1937 logo após ter saído da cadeia,
mas sua visão social de mundo é publicada em sete volumes, no período compreendido
entre 1947 e 1951, tornando-o um dos maiores teóricos do marxismo ocidental. (Fiori,
1974).
De acordo com as publicações de Gramsci, as pessoas se destacam em sociedade
por diferentes meios. A atividade profissional pode ser considerada um desses meios - com
função relevante para a sociedade ou não - dependendo da atuação desenvolvida. O
destaque profissional é capacidade de todas as pessoas, mas a maioria não consegue
desenvolvê-la ou exercê-la, bem como atingir função de líderes. Neste sentido, um
engenheiro com formação para construir pontes e que trabalhe como cozinheiro, por
exemplo, utiliza-se desta sua formação somente para aprimorar o ofício ao qual está
vinculado socialmente. Podem ser chamados de intelectuais às pessoas que conseguem
exercitar sua capacidade plenamente. Diversos são os fatores, no entanto, ocorridos durante
o processo de aprendizado ou do surgimento de oportunidades na vida que interferem no
exercício da capacidade plena das pessoas, mas mesmo as que não conseguem alcançá-la,
continuam mantendo a capacidade de se tornarem intelectuais. A priori, todos são
intelectuais, mas nem todos exercem função de intelectual para a sociedade.
Todos os grupos sociais que tem origem em funções estratégicas para a economia
geram paralelamente um ou mais grupos de intelectuais, dando consistência e consciência
de sua função para diferentes campos de atuação, como o social e o político, além do
econômico. (Gramsci, 1978 e 1995). Pode ser denominado intelectual orgânico o grupo
social que, dentro de suas próprias fileiras, produz intelectuais organizadores e dirigentes da
sociedade, fundamentais na busca por uma nova ordem vigente para a sociedade a partir de
uma classe social. Nesta perspectiva, são chamados intelectuais atuantes os que
desempenham uma função de destaque ou crucial numa sociedade, e de intelectuais não
atuantes os que não desempenham.
Para Gramsci (1966, 1978, 1995), os intelectuais são detentores e produtores de um
discurso que influencia a organização da sociedade e da cultura, pois
"uma massa humana não (...) se torna independente ...
sem organizar-se (...); e não existe organização sem
intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, sem
que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se
distinga concretamente em um estrato de pessoas
"especializadas" na elaboração conceitual e filosófica."
(Gramsci, 1966, p. 41).
Os intelectuais são responsáveis pela organização da rede de crenças e relações
tanto institucionais quanto sociais. Os que dominam essas relações são hegemônicos (classe
dominante) e esta hegemonia, quando é coercitiva às outras classes, utiliza-se dos
intelectuais para obtenção do consentimento das ações da classe dominante frente às outras.
É neste sentido que ganha consistência, na teoria de Gramsci, a crítica sobre a redefinição
do Estado como força + consentimento. (Sassoon, in: Bottomore et alli, 1997; Gramsci,
1978 e 1995). Um exemplo do papel dos intelectuais pela teoria gramsciana foi frente ao
novo Estado-nação que surgiu com a unificação da Itália. Gramsci atribuiu o seu sucesso
graças ao campesinato, que consentiu a nova ordem política. Os camponeses eram uma
exceção ao amplo leque de grupos sociais em que poderiam se produzir intelectuais
orgânicos, pois partilhavam com as idéias dos intelectuais tradicionais, embora não os
assimilassem em suas bases. (Kiernam, in: Bottomore et alli, 1997; Gramsci, 1978 e 1995).
Os intelectuais tradicionais reproduziam idéias dos grupos mais antigos
historicamente, e não eram comprometidos com o progresso, mas sim com tradições
históricas anteriores. Eles se consideravam uma classe paralela às outras, o que é uma
irrealidade pensada na filosofia idealista.(Kiernam, in Bottomore et alli, 1997; Gramsci,
1978, e 1995). São exemplos de grupos tradicionais: a aristocracia fundiária, os
eclesiásticos - ligados organicamente à aristocracia fundiária -, que dominaram
historicamente as instituições pertencentes à superestrutura e entraram em conflito com
outros grupos tradicionais, podendo ser exemplificado, pelos teóricos e pelos filósofos
daquele contexto. (Gramsci, 1995).
O senso comum (12) é uma categoria mais restrita às atividades intelectuais e só
poderia estar interligado com a intelectualidade se ela emergisse da massa populacional que
compõe sua própria classe. Isto posto, os princípios e necessidades que existem,
provenientes de suas atividades práticas, seriam mediados pelos intelectuais orgânicos em
busca de soluções para alcançar um real movimento filosófico, solidificando assim um
bloco sócio-cultural. (Gramsci, 1966)
A história da filosofia tem origem com a filosofia dos intelectuais. Tal história pode
ser considerada como um ápice da atividade intelectual progressiva do senso comum dos
estratos de maior poder cultural da sociedade atingindo, conseqüentemente, os estratos de
menor poder cultural (13). Na impossibilidade de se elaborar uma história do senso comum,
a história da filosofia vem a ser a maior fonte de referências para as pessoas, sendo a
política historicamente definida como uma mediadora deste processo. A partir do senso
comum é possível concluir que todos são filósofos, todos têm uma linguagem, que quanto
mais rica maior a possibilidade de avanço para a sociedade (14) (Gramsci, 1966).
O progresso para alcançar uma filosofia da praxis (15) inicia-se com a catarsis, a
superação do modelo de pensamento precedente e do pensamento concreto presente, e não
com a introdução de uma ciência na vida individual das pessoas, ou seja, o marxismo tem
início ao tornar nova uma atividade pregressa no mundo cultural-concreto existente.
(Gramsci, 1966).
No mundo moderno, a atividade intelectual desempenha um papel importante na
sociedade, que busca a ampliação das capacidades do indivíduo, desenvolvendo e
multiplicando espaços para sua especialização e aperfeiçoamento, tanto na ciência quanto
nas atividades técnicas. Por esta vertente, a escola seria o melhor instrumento para
formação de intelectuais nos mais diferentes níveis. Gramsci (1978 e 1995), considera que
quanto maior o espaço físico da escola e mais níveis possuir, mais complexo será o mundo
cultural e a civilização do Estado.
A categoria ideologia, por sua vez, pode determinar a função social do intelectual
atuante, pois embora todos os homens sejam intelectuais, conforme foi abordado
anteriormente, nem todos exercem esta função, como no desempenho de um projeto de luta
política emancipatória. Nestes termos, os intelectuais atuantes podem também ser agentes
da ideologia dominante, criando um senso comum (16) servil, de universalização de idéias,
funcionando como um elo de ligação para difusão da racionalização de um contexto social,
embutido de valores e normas da classe dominante. A ideologia é vista assim, como "um
processo geral de produção de significados e idéias que soldam e moldam como um
cimento da sociedade a partir do que ela é” (Bocayuva & Veiga, 1992, p. 216). Constituise, portanto, um bloco histórico, assim chamado na perspectiva gramsciana por retratar a
sociedade em seu momento histórico.
Desta forma, cabe questionar como se pode analisar a repercussão do que cada
intelectual atuante faz com seu potencial de ação e, também, se convém uma análise para
conhecer a existência de uma repercussão social em torno do que o intelectual atuante
promove com suas ações, sua fala e sua escrita na atividade profissional desenvolvida.
Em busca de respostas aproximadas, é pertinente considerar que:
a) O critério distinto do intelectual e de sua atividade intelectual em relação a outros grupos
sociais não deve ser procurado intrinsecamente, mas ser encontrado no todo das relações
que eles individualmente encontram no conjunto das relações sociais e históricas
determinadas, tais como os grupos que representam. Afinal,
“Quais são os limites “máximos” da acepção de
“intelectual”? É Possível encontrar um critério
unitário para caracterizar igualmente todas as diversas
e variadas atividades intelectuais e para distinguí-las,
ao mesmo tempo e de um modo essencial, dos outros
agrupamentos sociais? O erro metodológico mais
difundido, ao que me parece, consiste em se ter buscado
este critério de distinção no que é intrínseco às
atividades intelectuais ao invés de buscá-lo no conjunto
do sistema de relações no qual estas atividades (e
portanto os grupos que as personificam) se encontram
no conjunto geral das relações sociais. Na verdade, o
operário ou proletário, por exemplo, não se caracteriza
especificamente pelo trabalho manual ou instrumental,
mas por este trabalho em determinadas condições e em
determinadas relações sociais ...” (Gramsci, 1995, p 6­
7).
b) A sociedade produz o ser humano que por sua vez produz a sociedade, tornando o
homem caracteristicamente um ser social. Um homem se mostra para o outro somente
socialmente, do contrário deixa de sê-lo. A humanidade essencial encontrada na natureza,
existe somente para o homem social, e este ser social é a característica fundamental da
existência enquanto ser humano. Nestes termos, a sociedade une o homem à natureza,
sendo o homem social, tanto individual quanto coletivamente, mesmo quando sua atuação
profissional é de caráter científico, pois atua como homem. Todo o material envolvido
nesta atividade científica, bem como a linguagem utilizada - na qual existe também
atividade pessoal - são produtos sociais. Em suma, o que se faz com a atividade científica,
se faz para a sociedade e com consciência da existência enquanto ser social. O que se pensa
e o que se faz, embora sejam coisas diferentes, unificam-se quando em conjunto. (Marx,
1987). Desta forma, o vir-a-ser do homem depende da repercussão social dos seus atos,
especialmente quando advindos de uma atividade científica.
c) A repercussão social dos atos dos intelectuais, principalmente dos que fazem atividade
científica, é passível de discussão, pois quando é realizada, é ideológica, mesmo quando o
realizador não tem esta intenção. Ao compreendermos a ciência e o fazer científico como
um fenômeno social - pois este fazer é produzido por pessoas, seres sociais ­
compreendemos que a atividade científica, apesar de não ser sinônimo de ideologia, está
invariavelmente atrelada a ela. Não há ciência nem fazer científico sem ideologia, sob
pena de aceitarmos o mito da neutralidade na ciência. Para demarcarmos algo
cientificamente, no entanto, é preciso haver critérios de distinção do que é científico,
sabendo-se que o científico não é óbvio, mas sim um fenômeno discutível. É considerável
ressaltar que o fazer científico puro e intencionalmente ideológico também pode acarretar
distorções na análise do fenômeno estudado, norteando a atividade científica para a
atividade que tem como princípio o fazer científico ideológico-partidário, sem o
distanciamento necessário para a apuração mais próxima da verdade dos fatos. Nestes
termos, é considerável também que estes fatores fazem parte dos significados sociais da
atividade científica realizada pelos intelectuais, embora muitas vezes não sejam
considerados ou sequer observados.
Neste sentido, a valorização extrema da erudição leva ao cientificismo, enquanto
que a subordinação da pesquisa à ideologia leva ao surgimento de a prioris, ou seja, a
erudição, o conhecimento aprofundado no assunto que está em pauta, é ponto importante no
fazer científico, mesmo porque se a pesquisa não está concluída, não se sabe sua relevância,
embora se acredite nela. Por outro lado, o fazer científico como uma característica
particular da mente humana, está ligado "às condutas humanas e às ações do homem no
meio ambiente. Fim último para o investigador, o pensamento científico é apenas meio para
o grupo social e para a humanidade inteira" (Goldmann, 1980).
Assim sendo, para o surgimento de um novo grupo intelectual, pela teoria
gramsciana, é necessário que a atividade intelectual seja estimulada e desenvolvida,
invertendo a relação da atividade muscular operária, para que essa mesma atividade seja
responsável pela construção de um pensamento diferenciado, novo, concebendo o mundo
integralmente. (Gramsci, 1978 e 1995).
2.1.3 - Uma síntese:
Mannheim, embora influenciado em sua formação teórica pelo marxismo, discorda
de sua gênese, adotando uma perspectiva teórica de manutenção do sistema sócio-político­
econômico vigente. Nesta perspectiva, o intelectual é visto como se pairasse sobre a
sociedade, com mais capacidade de produzir análises sem ser obrigatoriamente vinculado,
através de suas idéias, a uma classe.
Pela perspectiva de Mannheim, os intelectuais dão suporte às classes, mas através
de vinculações extrínsecas, pois mesmo o proletário que adquire vigor intelectual, modifica
sua personalidade. Ademais, sua classe passa a observá-lo não mais como um proletário,
mas como um intelectual, o que gera desconfiança da própria classe. Cabe ressaltar que esta
desconfiança ocorre com qualquer intelectual. Tal perspectiva adota o ponto de vista da
emancipação dos intelectuais como o principal problema para estes. Há por parte dos
intelectuais, uma inquietação por não serem uma classe. Para Mannheim, a grande questão
que propiciaria seu avanço, é a tomada de consciência de sua função ou missão
predestinada com a sociedade, mas nos termos dos intelectuais, não das classes.
Na concepção de Mannheim, os intelectuais são os mais capazes de produzir
sínteses, pairando sobre as questões analisadas e também sobre a sociedade, emitindo seus
pareceres desvinculados de uma classe social, ou seja, é a chamada freischwebende
Intelligenz (17). Oportunamente, entretanto, os intelectuais se vinculam a uma perspectiva
social, porém ideologicamente sem comprometimento (Löwy, 1998).
Já Gramsci adota uma perspectiva teórica identificada com o marxismo e parte desta
teoria para elaboração de sua proposta, onde tenta evidenciar o papel do intelectual como
organizador da sociedade e da cultura, vista como parte superestrutural da sociedade.
Para Gramsci, o intelectual identifica-se invariavelmente a uma classe, visando à
manutenção da sociedade ou sua transformação por meio de uma ruptura social, que o
diferencia ideologicamente de Mannheim. Na perspectiva gramsciana, os intelectuais
podem ser orgânicos, advindos da própria classe a que pertencem, e a teoria, neste caso,
emerge intrinsecamente na classe, não havendo necessariamente uma vinculação advinda
de maneira extrínseca.
Desta forma, os valores são fundamentais para os intelectuais quando vistos através da
teoria gramsciana. Suas concepções ou visões sociais de mundo são determinantes na
escolha da perspectiva de vida, do modelo de sociedade e da vinculação social à classe
dominante ou à dominada.
Cabe ressaltar que o conceito de intelectual na perspectiva gramsciana é parte do
seu todo teórico, onde outros conceitos emergem, sendo necessário para solução do
problema proposto, elucidarmos outro conceito gramsciano: o de hegemonia.
2.2 - O Conceito de hegemonia de Antonio Gramsci:
A palavra hegemonia significa supremacia, predomínio (Luft et alli, 1999), termo
que é derivado do grego hghemonia, e tinha significado de direcionamento e superioridade
no comando de um exército. Modernamente, este termo assume o significado de
“capacidade de direção política e cultural; de um grupo ou classe social sobre as demais
classes sociais e suas frações” (Bocayuva e Veiga, 1992). Para Jesus (1989), tal termo
origina-se de dois verbos gregos, com o sentido de guiar, conduzir, num significado
político-militar, que persistiu até o período moderno. À hegemonia acresceram-se fatores
econômicos, culturais e religiosos que no período contemporâneo se mantém presentes,
embora continue havendo um predomínio político-militar em sua utilização, com destaque
para o segundo. Historicamente o termo hegemonia permanece com sentido de poderdireção ou dominação-consenso, onde dirigir é equivalente a guiar, conduzir, ser líder e
dominar possui significado de governar, mandar, ou seja, são binômios que tem
significados próximos. Unindo-se estes binômios pode-se alcançar um conceito de
hegemonia pleno. (Jesus, 1989).
No pensamento gramsciano, o conceito de hegemonia aparece implicitamente desde
seus primeiros escritos, quando considera que há necessidade da classe trabalhadora de
tornar-se dominante e dirigente. Pode-se afirmar, segundo Jesus (1989), que este
pensamento em Gramsci tem o objetivo de domínio consensual nas áreas política, cultural,
moral e lingüística (18). Até 1926, o termo “prestígio” era o mais utilizado por Gramsci
com sentido de hegemonia. Somente a partir deste ano é que o termo hegemonia aparece
explicitado, primeiro numa carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União
Soviética e depois num trabalho incompleto (por causa de sua prisão em novembro desse
ano) denominado Alguns Temas sobre a Questão Meridional, onde se pode notar
explicitamente a categoria hegemonia, bem como a realização de aplicação prática na
questão meridional. Na prisão, quando estuda as relações entre infra-estrutura e
superestrutura, Gramsci demonstra que considerava Lênin (19) o principal teórico do
conceito de hegemonia, que se unia em torno da direção e do domínio enquanto categorias.
Lênin foi sua principal fonte inspiradora para continuidade da elaboração conceitual da
hegemonia. (Jesus, 1989).
A questão meridional é um conjunto de escritos desde 1916 até 1926, época de sua
militância política. Neles, clarifica-se a sobreposição do norte sobre o sul da Itália,
tornando-o hegemônico, mas com um grau de consentimento do sul. Gramsci (1987),
nestes escritos, também elabora um pensamento para que as alianças dos operários do norte
com os operários do sul desbanquem o poder burguês.
No pensamento gramsciano, a hegemonia é um conceito fundamental, interligandose dialeticamente a todos os outros. Trataremos a seguir especialmente de sua descrição,
recorrendo, quando necessário, a interligação com outros conceitos gramscianos, como o de
intelectual e o de educação, sabendo que outros conceitos gramscianos ou conceitos de
autores com perspectivas similares poderão emergir ao longo desta descrição.
Segundo Gramsci (1966), o homem produtivo possui consciência teórica, mas não
possui exata clareza desta consciência nem de sua ação, que é um conhecimento
pertencente ao mundo e que provoca transformações. Tal consciência teórica, algumas
vezes encontra-se historicamente em contradição com a ação, tornando-se, possivelmente,
uma consciência contraditória ou duas consciências teóricas, onde uma é intrínseca à ação
que o une aos seus pares na transformação do mundo e a outra é explícita ou verbal, que o
sujeito herda historicamente, mas sem críticas. A consciência teórica verbal possui
conseqüências diretas, influenciando
“sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de
uma maneira mais ou menos intensa, que pode,
inclusive, atingir um ponto no qual a contraditoriedade
da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma
escolha e produza um estado de passividade moral e
política.” (Gramsci, 1966, p. 20-21).
Nos termos citados, o sujeito adquire compreensão sobre si mesmo por meio de um
confronto de diferentes referenciais de hegemonia política, que perpassam inicialmente a
ética, posteriormente a política e, finalmente, uma consciência maior sobre a sua concepção
do real. Ao conscientizar-se que é parte de uma força hegemônica, dá-se o primeiro passo
para alcance da autoconsciência, onde os elementos teoria e prática unem-se num processo
histórico que culmina numa concepção de mundo coerente e unitária. Neste sentido, na
medida que o conceito de hegemonia se desenvolve politicamente, ele representa um
desenvolvimento filosófico, onde existe “uma unidade intelectual e uma ética adequadas a
uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro
de limites ainda restritos.” (Gramsci, 1966, p. 21). Portanto, para alcance da hegemonia fazse necessário possuir uma massa organizada, mediada por uma elite intelectual com função
organizativa ou diretiva.
Gramsci considera que as relações que se traduzem em hegemonia são sempre
pedagógicas. Tal relação, entretanto, extrapola os limites da escola, onde o conhecimento
adquirido pelas novas gerações deve suplantar dialeticamente o conhecimento transmitido
pelas gerações anteriores, e perpassa toda a sociedade, no seu todo e no contato indivíduo­
indivíduo(s); entre intelectuais e os que não tem esta função. Afinal, a relação pedagógica
pode ser verificada não somente “no interior de uma nação, entre as diversas forças que a
compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações
nacionais e continentais” (Gramsci, 1966).
Em Gramsci, a natureza humana pensada historicamente apresenta uma pretensa
igualdade real, tal como existe em empresas privadas, públicas e no sistema político. Nestas
instituições, internamente existe uma igualdade entre os membros pertencentes a uma delas,
mas que promove desigualdades quando comparados a outras instituições e os membros
que a compõem. Estas igualdades e desigualdades são variáveis conforme o sujeito
conscientiza-se individualmente ou em grupo. Da mesma forma, alcança-se à igualdade
entre filosofia e política. Em Gramsci, como em Marx, a filosofia é política, e a vida é a
história atuante, pois esta é a única filosofia, e tudo é político. Somente nestes termos
pode-se compreender, por exemplo, a tese de que a classe proletária alemã é herdeira da
filosofia clássica deste país, ou afirmar que tanto a realização como a teorização leninista
da hegemonia foi um acontecimento metafísico (20). Desta forma, a transformação social
pode ser promovida, através de uma nova hegemonia, existindo a partir e na natureza
humana.
Pode-se afirmar, no entanto, que determinadas questões ontológicas permanecem,
como “o que seria o homem?”, ou “o que seria a natureza humana?”. Quando o homem é
definido como indivíduo, as questões futuras e passadas não possuem solução, mas quando
o homem é definido como conjunto das relações sociais, a comparação histórica entre
homens assume dois sentidos:
1º - a comparação temporal entre homens torna-se impossível, pois são coisas diferentes, ou até mesmo heterogêneas. 2º - pode-se verificar a diferença entre o que houve e o que existe, pois é possível a verificação do progresso de dominação da natureza pelo homem.
O que o homem pode ou não fazer importa no valor daquilo que ele faz, pois a
possibilidade é uma (e não a) realidade. Se a possibilidade quer dizer liberdade, sua medida
também define o homem. Um exemplo disso é a fome. Há possibilidades de que não se
morra de fome, mas, de fato, se morre. Tal fato é passível de constatação e espanto (para
alguns, talvez muitos) e não é dissociado dos fatores conjunturais que o cercam, desde o
indivíduo até uma atividade profissional - que é composta de indivíduos - como a educação
física.
Nestes termos, são sinônimos: condições objetivas, possibilidade e liberdade,
embora não baste apenas reconhecer a existência dos termos, mas conhecê-los, saber
utilizá-los e, principalmente, querer utilizá-los, pois o homem é vontade concreta, ou
“aplicação efetiva do querer abstrato ou do impulso vital aos meios concretos que realizam
esta vontade” (Gramsci, 1966, p. 47). A personalidade do homem é criada dando um
direcionamento determinado e concreto à vontade, identificando os mecanismos para que
esta vontade não seja arbitrária e contribuindo para a modificação de todas as condições
concretas da realização desta vontade. O homem “deve ser concebido como um bloco
histórico de elementos puramente subjetivos individuais e de elementos de massa –
objetivos ou materiais - com os quais o indivíduo está em relação ativa” (Gramsci, 1966, p.
47). Ao transformar o mundo, as relações como um todo, o homem se fortalece, se
desenvolve, pois a elevação da dimensão ética não é só individual, mas também coletiva,
tanto com os outros homens como com a natureza, alcançando diversos níveis e relações,
até a sua totalidade, quando abarca toda a espécie humana. (Gramsci, 1966).
Já Goldmann (1980), no mesmo sentido, ao demonstrar a elaboração de sua
proposta de um humanismo materialista dialético - ou humanismo concreto - e a
existência do materialismo dialético como uma filosofia, indaga se em sua base há
confirmações e juízos de valor que se pretendam universais e validados para os homens em
qualquer tempo. A questão, para ele, é a dificuldade advinda do pensar na liberdade do
homem, e em seu caráter proveniente da história, onde ao transformar o mundo ele se
transforma num processo inexorável, pois tal assertiva não permite verdades imutáveis.
Cabe ressaltar, entretanto, que o humanismo materialista dialético realmente possui
propostas que se pretendem ter valor universal, e cita, por exemplo, o caráter histórico e
social da vida e da manifestação humana. Neste sentido, o humanismo materialista dialético
quer como seu maior valor, a
“realização histórica de uma comunidade humana
autêntica que só pode existir entre homens inteiramente
livres, comunidade que pressupõe a supressão de todos
os entraves sociais, jurídicos e econômicos à liberdade
individual, a supressão das classes sociais e da
exploração.” (Goldmann, 1980, p. 33).
Pela ótica gramsciana, o princípio teórico-prático da hegemonia é importante em
termos de teoria do conhecimento, de uma forma genérica, onde Lênin tem uma
contribuição teórica decisiva por fazer progredir o aparato doutrinário e político e, por
conseguinte, a filosofia no seu papel real de filosofia. Neste sentido, a prática de uma
hegemonia cria uma nova ideologia e reforma consciências e métodos de conhecimento.
Isto, para Gramsci, é uma questão filosófica abordada em sua prática.
Assim, emerge um bloco histórico formado pela infra-estrutura e pela
superestrutura, onde esta reflete a complexidade das relações sociais de produção que são
encontradas num primeiro instante por àquela inter-relacionada a essa, na forma de um
conjunto único, refletindo às próprias contradições e discordâncias imbricadas no processo
descrito. Nestes termos, somente um sistema único de ideologia consegue, de maneira
racional, refletir “a contradição da estrutura e representar a existência das condições
objetivas para a inversão da práxis”. (Gramsci, 1966, p. 52). A convergência ideológica
total da estrutura, propicia às condições objetivas para tal inversão, pois, neste caso, a
dialética ocorre num processo real e concreto. (Gramsci, 1966).
A estrutura processual dialética como dado de realidade pode ser expressa pelo
termo catarsis, que
“indica a passagem do momento puramente econômico
(ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é
a elaboração superior da estrutura em superestrutura
na consciência dos homens. Isto significa, também, a
passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à
liberdade’. A estrutura da força exterior que subjuga o
homem,
assimilando-o
e
o
tornando
passivo,
transforma-se em meio de liberdade, em instrumento
para criar uma nova forma ético política, em fonte de
novas iniciativas. A fixação do momento ‘catártico’
torna-se assim, creio, o ponto de partida de toda a
filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a
cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento
dialético.” Gramsci, 1966, p. 53)
Ao abordar a questão de uma transposição da filosofia puramente especulativa,
Gramsci recoloca a idéia de uma nova hegemonia, afirmando que qualquer país tem ou teve
em sua História, uma fase em que a filosofia especulativa, escolástica, predominou
hegemonicamente como base político-ideológica. No momento em que esse domínio é
aparentemente total, contudo, pode coincidir com o momento de desagregação dessa
hegemonia real em sua base, com os indivíduos que a compõem. Deste fato, decorre uma
reação de aperfeiçoamento dogmático no processo de domínio total – decadência – da
filosofia refinada e especulativa. Desta forma, cabe criticamente traduzir tal especulação
em termos ideológicos e políticos, servindo a uma ação concreta. Mas essa crítica que
aponta para uma direção concreta marca um novo tempo, que terá uma nova e necessária
fase filosófica especulativa, e que alcançará da mesma forma o seu limiar. Assim, é
pertinente demonstrar que este limiar pode significar o princípio de um novo tempo, onde o
binômio necessidade-liberdade (21) - em que o segundo termo de todos os binômios
sempre parece se fazer mais importante no pensamento de Gramsci do que o primeiro existirão de fato, de maneira orgânica, abolindo as contradições sociais, forçando uma
dialética conceitual e não mais das tensões produzidas historicamente pela luta de classes.
(Gramsci, 1966).
Nos termos citados, o conceito gramsciano de hegemonia apresenta-se como sendo
um dos mais importantes de sua teoria e, tal como os outros, está dialeticamente amarrado
aos demais. Em síntese, seu conceito de hegemonia considera que na sociedade existe uma
hegemonia da classe dominante, que culmina com ações desta e da classe dominada. Esta
dominação, no entanto, ocorre não só pelo viés da violência, mas também por uma ordem
consentida pela classe dominada. O Estado, como parte superestrutural da classe
dominante, exerce seu poder no somatório de força ou coerção + consentimento, conforme
descrito anteriormente. Na base da classe dominada, encontra-se a massa populacional mais
suscetível a este processo, o senso comum, que compreende o mundo de maneira enviesada
e é, devido ao seu pouco poder intelectual e organizativo, influenciável pelo discurso
hegemônico da classe dominante. Os mediadores deste processo são os intelectuais que
com a sua postura e o seu discurso vinculado, mantém uma aliança tácita entre as forças
dominantes e as forças dominadas, fornecendo um equilíbrio entre as partes. A sociedade,
nestes termos, é dividida em superestrutura e estrutura, estando na superestrutura as
instituições necessárias à manutenção da hegemonia vigente, como a Igreja, a família, a
escola, entre outras. A ideologia também é considerada por Gramsci como parte
superestrutural da sociedade, podendo ser considerada como um amálgama ou cimento da
sociedade, selando o acordo existente. Este processo ocorre sem que o senso comum tenha
percepção de tal ocorrência no campo de tensão existente. Gramsci denomina bloco
histórico social ao processo como um todo, que ocorre num continuum. O intelectual,
mediador da hegemonia, conforme visto anteriormente, pode ser do tipo tradicional,
vinculado aos grupos tradicionais, antigos, oligárquicos, ou do tipo orgânico, mais urbano,
vinculado aos grupos mais progressistas (no sentido de progresso mesmo). Os intelectuais
orgânicos emergem de uma classe, mas nem por isso são necessariamente vinculados a ela,
podendo ser cooptados pela classe dominante, e ele próprio ser agente da hegemonia
vigente (22).
Nestes termos, pode ser exemplo de hegemonia na teoria gramsciana, o predomínio
do norte sobre o sul na Itália, que ocorre através do consenso entre grupos dominantes –
dominados na questão meridional. Outro exemplo é o papel desempenhado pela Igreja na
Idade Média, onde utilizou coerção e violência sobre o povo e intelectuais orgânicos que
contestavam a ordem vigente, bem como das letras, que eram dominados pelos aparelhos
pertencentes à superestrutura, especialmente pela própria Igreja.
Na periferia deste processo, muitas vezes existem lacunas de desagrado encontradas
dispersas e desagregadas. Estas lacunas existentes possuem espaços que podem ser
preenchidos por uma luta contra-hegemônica, na qual resultam numa organização com um
pensar teórico-ideológico diferenciado dos mantenedores da hegemonia vigente. Os
aparelhos de luta contra-hegemônica são, em sua maioria, exatamente os que são mantidos
e direcionados pela hegemonia, como a Escola e a Igreja. Os mediadores deste processo de
luta contra-hegemônica também são os intelectuais, especialmente os orgânicos, que, em
lugar de flutuarem por sobre as classes vinculando-se oportunamente a elas, como os do
tipo mannheimniano, emergem e lutam por elas, formando um discurso mais ou menos
homogêneo para tentativa de transformação social.
O campo de tensão gerado devido a estes fatores, tem demonstrado as dificuldades
por que passam tais tentativas, pois o aparato hegemônico mostra-se eficaz na supressão
das lutas, até por que é hegemônico e domina os aparelhos usados para contra-hegemonia.
Uma das formas de supressão, não especificamente ou explicitamente violenta, se dá
quando vão sendo tomados muitos espaços dos aparelhos hegemônicos e isto é percebido
pela classe dirigente, justamente quando já se está próximo ou perto do início de um
processo de luta ou elevação do patamar de consciência. Quando isto ocorre, a classe
dirigente – dominante propõe que o mundo se encontra em crise e que necessita de ajustes
para manutenção do direcionamento proposto, só que sob uma outra capa, solucionando
parcialmente o problema, até que haja uma nova crise. Este quadro pode ser exemplificado
pela pressão atual de organismos como o Banco Mundial para que se dirijam mais verbas
direcionadas aos aspectos sociais do mundo.
O processo descrito ocorre tanto a nível macro quanto em nível menor, em espaços
como a escola, mas dentro dele é permeado todas essas intrincadas relações existentes no
plano macro. Todos os processos hegemônicos e contra-hegemônicos são necessariamente
pedagógicos, pois visam intervir no meio existente, trespassado pelas relações sociais, e
pretendem a manutenção ou a ruptura do sistema vigente, a nível macro ou a nível micro.
Muitas vezes, existem tentativas de mudança que aparentam propor ruptura, mas na
verdade são concessões do sistema justamente para seu aperfeiçoamento e manutenção.
No processo de luta contra-hegemônica, deve-se lutar por uma nova hegemonia,
construída a partir da existente. O início desta luta ocorre na compreensão das relações que
propiciam a manutenção da hegemonia vigente, compreensão esta que invariavelmente
acontece através do viés histórico. A história não só tem papel fundamental; na
compreensão do processo existente, mas em sua possível transformação, pois se interliga
com as relações do homem com o homem e do homem com a natureza. Isto posto, a
história não é só um agrupamento de fatos passados, mas um permanente retrato do
passado, que faz o homem compreender o presente e aponta possibilidades para o futuro.
Em verdade, o homem é produto da História, mas ao mesmo tempo faz sua História, porque
esta existe por causa do homem e não o contrário. A possibilidade de o homem fazer a sua
História diferentemente é que moveu Gramsci a delinear seu conceito de uma nova
hegemonia, interligando-a com outros conceitos.
O princípio educativo em Gramsci, por exemplo, é pertinente ao conteúdo formador
de uma nova hegemonia. O procedimento de desta nova hegemonia também é
necessariamente uma tarefa pedagógica, onde a escola tem papel fundamental por dispor de
meios para formação de intelectuais especializados e uma nova classe dirigente, elevando o
nível de consciência da população através também de uma escola única, unitária. O fato de
existir uma escola única, no entanto, não significa fazer a mesma abordagem em todas as
escolas, levando-se em consideração características diferenciadas, como a cultura local.
Na nova hegemonia, o homem é compreendido como um complexo conjunto de
relações sociais, compreendido histórica e filosoficamente, mas capaz de fazer a sua
história a partir de uma profunda compreensão do que se passou, até que ele fizesse parte
dela. Por outro lado, o fazer-histórico coletivo deve ser produzido consensualmente, mas
numa inversão social nos termos dirigentes, derivando de maneira dialética a maior
hegemonia possível, para também ser possível o seu maior consenso, utilizando sua nova
formação organizativa - onde muitos e não mais poucos participam - para mediar esse
processo, aumentando a capacidade de direcionamento político.
CAPÍTULO III – A Concepção de Educação Física na Ótica de alguns dos seus Intelectuais e a Questão da Hegemonia
3.1 - Os artigos da revista Movimento:
No presente capítulo, analisaremos inicialmente o artigo que originou o tema o que
é EF, com autoria de Gaya, baseado em sua aula inaugural ministrada na UFRGS (1994) e
publicado na revista Movimento, intitulado “Mas Afinal, o que é EF?”. Em seguida,
analisaremos os argumentos da polêmica levantada por Celi Taffarel e Micheli Escobar no
artigo intitulado “Mas, Afinal, o que é EF: um exemplo de simplismo intelectual”, frente às
posições assumidas, segundo elas, por Gaya em seu artigo, tal como o distanciamento em
relação ao marxismo. Tal fato é negado posteriormente, em entrevista, por Gaya, que
admite apenas ter se desligado de um grupo marxista da EF brasileira, sectário e
antidialético, mas não de haver-se desligado do marxismo. Nestes termos, no conjunto da
análise, ambos se dizem marxistas e caracterizam o outro de não sê-lo.
Paralelamente, através do método dialético, será colocada como contraponto às
propostas delimitadas pelos dois artigos, a vertente marxista utilizada como referência neste
estudo, anunciada e discutida anteriormente. Além disso, recorreremos a trechos de
entrevistas realizadas com esses autores envolvidos, para elucidação de questões
pertinentes (23). Desta forma, nos dirigimos para demarcar o debate em torno da questão
epistemológica com proposições dos destacados intelectuais da EF que escreveram para a
revista Movimento - em 94 – tendo como eixo central os artigos de Gaya e Taffarel e
Escobar, onde dissertam sobre o conceito de EF e sua identidade, confrontados com os
conceitos de intelectual e hegemonia em que se baseia este estudo.
Reapresentamos abaixo os artigos publicados na revista Movimento em 1994 que
deram origem ao debate:
1 – Adroaldo Gaya (Gaya) – Mas, Afinal, O Que é Educação Física? (1994).
2 – Celi Nelza Zulke Taffarel (Taffarel) e Micheli Escobar (Escobar) - Mas Afinal, O que é
Educação Física? Um exemplo de simplismo intelectual (1994).
Primeiramente, será analisado o artigo que originou o tema em questão, de autoria
de Gaya, baseado em sua aula inaugural ministrada na UFRGS (1994) e em sua tese de
doutoramento, apresentada na Universidade do Porto (1994) e posteriormente o artigo de
Taffarel & Escobar, que analisaram o artigo de Gaya.
3.1.1 - Análise do artigo de Gaya:
O artigo de Gaya (1994) discutiu sobre a questão acerca do que é a EF. A revisão
bibliográfica que realizou para discutir tal questão, levou-o a concluir ser possível reduzir
respectivas respostas a duas tendências:
1ª- Na primeira, a EF seria concebida como ciência, tese que ele considera amplamente
dominante na área, da qual decorreriam duas perspectivas: Uma delas se constituiria em
teorias de grande abrangência, como a Ciência da Motricidade Humana. A outra
perspectiva seriam as ciências do Desporto e do Treinamento Desportivo que criaria um
espaço para tratamento científico das questões do desporto em qualquer disciplina
científica.
2ª- Na segunda tendência, que pretende a EF uma filosofia da corporeidade, também
surgem duas perspectivas: (a) a existencialista, concebendo a EF discursada como uma
filosofia da corporeidade. (b) a culturalista, prevendo “a reconstrução da EF na ótica do
lazer, dos jogos populares e tradicionais" (Gaya, 1994, p. 31).
Desta forma, Gaya estabeleceu um campo de tensão onde estaria formulada a
pergunta se a EF seria uma ciência ou uma filosofia, bem como a possibilidade de negação
dessas duas tendências, partindo para a formulação de sua proposta, que é a percepção da
EF como uma pedagogia.
Assim sendo, este autor veio conceber EF como sendo uma disciplina normativa e
que por isso se constitui numa prática pedagógica com ênfase na transmissão de valores.
Nestes termos, a EF teria uma concepção filosófica, sem, contudo, ser um "subproduto da
filosofia" (Gaya, 1994, p. 32), porque a EF seria “uma prática de intervenção no mundo
concreto enquanto a filosofia não assume esta prerrogativa" (id). Para Gaya, “enquanto os
discursos científicos procuram responder aos critérios inerentes aos juízos epistemológicos,
a prática da EF enfrenta o desafio que, entretanto, se coloca ao homem concreto". (p. 32­
33). Desta forma, com suas especificidades, a EF seria uma pedagogia com valores
normativos inserida em um projeto antropológico.
Ao analisar esse artigo de Gaya (1994), pretendemos estabelecer comparações entre
sua perspectiva marxista - na qual diz se enquadrar e haver se engajado - e à vertente
marxista utilizada neste estudo. Em relação a esse fato, Taffarel afirma, por exemplo, que
sempre reconheceu nele “uma pessoa que defendia um projeto histórico socialista, que
defendia uma concepção de homem emancipado, que defendia uma perspectiva
epistemológica marxista”. (Taffarel, 2000, Anexo 02). Nossa análise é sustentável na
medida que Taffarel afirma que Gaya não se alinhou com uma perspectiva marxista, ao
contrário, formulou uma proposta que se choca com tal perspectiva. Por outro lado, embora
Gaya diga que se afastou de um grupo que diz ser radical, afirma em entrevista que
continua defendendo posições à esquerda, mais dialético do que este grupo radical, e na
militância política em um partido considerado de esquerda.
“Eu costumava, até em muitas conversas que eu
tinha com o professor Go Tani, ele começou a brincar
dizendo que eu fui expulso da esquerda, que eu fui
expulso da esquerda e que à direita não me queria.
Então eu estava em cima do muro, não é? Vamos deixar
bem claro isso: as posições de esquerda são
fundamentais. O que eu estou chamando de esquerda,
talvez, é esse grupo que se diz tanto, se diz à esquerda,
e usa isso como uma categorização, característica. Eu
não me sinto menos à esquerda que nenhum deles. Até
temos o mesmo partido, temos as mesmas causas muitas
vezes, mas, é o trato da EF que eu vejo que nós nos
diferenciamos muito”. (Gaya, 2000, Anexo 01).
Nestes termos, cabe considerar que Gaya, embora afirme que se mantenha marxista,
demonstra estar com uma concepção marxista de mundo compreendida numa perspectiva
de revisão em alguns fundamentos.
“Absolutamente, eu não nego essa visão, essa teoria
marxista de intervenção social. Não é isso, muito pelo
contrário. O que eu acho é que, às vezes, ela nos é
passada ou é reproduzida de uma forma maniqueísta,
ou seja, eu uso aquilo para impor às minhas vontades e
não simplesmente para uma prática dialética, para
fazer algo concreto. Eu entendo a teoria marxista como
uma teoria fundamental em termos de humanidade, em
termos de sociedade, e dela a gente não pode querer
sair, porque na realidade nós não somos marxistas ou
deixamos de ser porque está na moda, nós somos
porque os valores que nós temos levam a nos aproximar
daquele ponto de vista, e isso eu mantenho claramente.
Evidentemente, eu mantenho essa perspectiva. A busca
do socialismo para mim é uma luta presente, adequada,
e
que
temos
que
continuar
fazendo
(...).
Eu
particularmente acho que alguns elementos da teoria
marxista não se aplicam mais na atualidade. Acho que
essas opções, da Revolução, essas coisas assim, eu acho
que esses valores, – talvez um exemplo seria esse –
quem seriam hoje os donos dos meios de produção? Os
fazendeiros estão pobres, só os banqueiros é que estão
bem na vida, e eles não têm meios de produção, o meio
de produção é o dinheiro.” (Gaya, 2000, Anexo 01).
Apesar de rever alguns fundamentos da teoria marxista, Gaya mantém posições que
diz serem claras, e que se considera uma pessoa à esquerda. Se por um lado afirma que
queria em primeiro lugar um debate fértil relativo a EF, e que não conseguiu realizá-lo em
virtude das críticas recebidas, por outro afirma a existência de uma intenção implícita de
crítica ao chamado grupo radical de esquerda da EF, mesmo que de forma pouco incisiva,
pois
“Eu diria assim: em primeiro lugar, que a minha
crítica talvez foi o que me moveu a escrever o artigo.
Me parece que o artigo não passa claramente isso. Não
tenho muita clareza disso, mas, eu tinha intenção de
dizer essas coisas, mas acho que no artigo não está
muito explícito isso. Sem dúvida a resposta da Celi e da
Micheli foram muito mais veementes e muito mais
pessoais do que a questão que o artigo abordava.
Então, houve ali uma clara evidência de que, digamos
assim, perdemos um aliado da esquerda brasileira.
Mais um que foi pra Europa e voltou liberal ou coisa
assim. Isso é o que está explícito ali. Isso me chateou
muito, pessoalmente me chateou muito, pois o debate
não era pra ser esse, o debate era pra buscar uma
síntese, e aí pegaram frases, linhas do texto, e fizeram
com as frases o que bem entenderam”. (Gaya, 2000,
Anexo 01).
Essa intenção implícita de crítica ao dito grupo radical da EF, também pode ser
exemplificada quando foi indagado se a inserção no seu texto da necessidade de
intervenção da EF no mundo concreto tinha uma conotação marxista, no que respondeu
afirmativamente:
“Isso. Sem dúvida. Eu quis, mas havia uma intenção,
talvez, uma intenção muito mais implícita no artigo,
uma intenção lá no fundo, talvez, que me moveu, e eu
estou sendo muito sincero com você, (...) e que eu acho
importante alguém estudar isso, é que havia uma
intenção no fundo de mostrar, que aqueles que se dizem
tão marxistas, não eram tão marxistas assim, não é? E
aí a necessidade de se dizer talvez algumas palavras
tipo práxis, tipo intervenção social. Me parece que eu
queria dizer isso: que os nossos dialéticos eram muito
pouco dialéticos”. (Gaya, 2000, Anexo 01).
Gaya se refere ao grupo radical da EF, composto, segundo ele, por Celi Taffarel e
Micheli Escobar, entre outros. Assim, tal como na referida entrevista com trechos acima
registrados, Gaya aponta em seu texto do artigo para uma perspectiva de homem concreto,
que desafia a prática da EF, na qual os discursos ditos científicos estão distantes. Gaya
também se refere à EF como uma prática de intervenção no mundo concreto (p. 32) e num
percurso entre a filosofia e a ciência (p. 33).
Cabe questionar, a posteriori, por exemplo, a qual filosofia Gaya ressalta que há
identificação da EF. Numa perspectiva marxista a filosofia é exatamente o ato de reflexão
crítica em relação ao mundo concreto e se traduz numa intervenção e, portanto, é pari
passu intervenção no mundo concreto. Com isso, não basta ter uma concepção filosófica na
EF, mas inter-relacionar-se simbioticamente com ela quando em uma proposta de
intervenção.
No texto de Gaya verificamos também uma distinção entre o discurso científico da
EF, classificado por ele como teórico; e o desafio do homem concreto, por sua vez
classificado como prática. Tal direcionamento nega o princípio dialético, que se propõe
partir da prática - ou do dito desafio do homem concreto - para tratar o fenômeno
teoricamente. Entretanto, este tratamento teórico do fenômeno seria com a finalidade de em
seguida retornar à prática, com uma melhor compreensão deste mesmo fenômeno, para
novamente tratá-lo teoricamente, num sucessivo ir e vir. Kosik (1995), por exemplo, realiza
desta forma a busca para compreender a essência do fenômeno.
Neste sentido, podemos verificar que Gaya nega o princípio dialético:
primeiramente ao propor uma idéia de dicotomização entre teoria e prática e,
posteriormente, ao propor uma intervenção com compreensão do fenômeno puramente
empírica, para resolver os desafios do chamado homem concreto. Pela proposição marxista
de Kosik (1995), diferentemente de Gaya, o mundo concreto é o mundo ocultado pelo
mundo da pseudoconcreticidade ou mundo das aparências, que é preciso desvelar para se
chegar à essência. O mundo concreto está além do fenômeno como se manifesta, empírico.
Já o homem concreto está inserido neste mundo com plena capacidade de mantê-lo ou de
transformá-lo.
Para exemplificar, podemos citar a alienação do trabalhador (24) como sendo o
mundo aparente e a exposição para o trabalhador de sua alienação como sendo o mundo
concreto. A transposição do mundo aparente, fazendo com que o trabalhador tome
consciência do real concreto pode ser atingida através de uma intervenção pedagógica. A
realização desta intervenção pedagógica por um professor seria possível, e a dialética seria
uma proposta de atuação, um método, utilizado na tentativa desse professor alcançar seus
objetivos. Sendo o professor de EF o trabalhador que faz intervenção pedagógica, poderia
ser utilizado como meio, como instrumento de ação, o esporte, a ginástica, a recreação, a
dança, etc.
Gaya, tal como Goldmann (1980), ressalta que só historicamente se compreende o
mundo concreto. Entretanto, Goldmann compreende o mundo concreto com explicações
sociológicas, articulando a história e a sociologia com a filosofia. Para ele, a ciência deveria
unir a compreensão histórica e sociológica, tratando-as em relação a esse mundo concreto.
Além disso, acredita que o conhecimento de tal mundo concreto só pode existir, enquanto
uma compreensão da humanidade, se existir a filosofia. A filosofia, bem como a sociologia
e a história, são abstrações teóricas desse mundo concreto, e se justificam para resultar
numa síntese, que posteriormente deve necessariamente retornar a esse mesmo mundo
concreto. Sem a filosofia, o mundo concreto só conseguirá ter o máximo de consciência
possível face si mesmo. Por esta perspectiva, a EF deve ser uma filosofia na mesma medida
que é uma intervenção no mundo concreto.
Para Gaya, as tendências teóricas apontadas criticamente em seu artigo, se inclinam
para redução da EF a uma ciência ou a uma filosofia. Compreendemos no presente estudo
que, ao ser entendida como ciência, realmente a EF se reduz devido, por exemplo, à
especificidade e ao estatuto para ser ciência. Ao ser filosofia, no entanto, a EF não se torna
reduzida, pois ela não precisa necessariamente ser somente (25) filosofia, mas, ao
contrário, também filosofia. A questão a ser levantada sobre tal assertiva, é que a tendência
da filosofia expressa no texto de Gaya é, segundo ele, existencialista ou culturalista,
excluindo outras perspectivas filosóficas. Ao fazer esta opção como síntese do conceito da
EF, formulada através dos seus autores, reduziu-a a estas duas tendências - além de
considerar a sua própria formulação conceitual de EF - tal como quando se refere ao
referencial teórico que utiliza. Ou seja: Tendência 1 + Tendência 2 = Conjunto das
tendências da EF (enquanto subproduto da filosofia) expressa pelo conjunto de seus
principais intelectuais em nível nacional e internacional, somado à proposta conceitual do
próprio Gaya. Desta forma, podemos concluir que Gaya obtém como produto final, uma
redução da EF a:
- um subproduto da filosofia como propõe a análise de Gaya acerca dos autores da EF por
ele utilizados em seu artigo;
- um percurso entre a filosofia e a ciência como propõe Gaya e,
- conseqüentemente, a redução da expressão do conjunto de autores da EF a tais propostas,
bem como dos seus atores sociais.
Nestes termos, a EF se descarrila do mundo, de seus conflitos políticos, filosóficos,
ideológicos, etc., como se estivesse fora dele, onde a EF só fosse atingida pelos espectros
filosóficos existencialista e culturalista, ou liberto das implicações filosóficas e científicas
embutidas na sua prática social.
Ao fazermos uma análise ampliada da EF, poderíamos considerar preliminarmente,
a prática como início de um método para entendimento e posterior intervenção de um
fenômeno. Diferentemente, Gaya propõe-nos verificar somente a prática para
compreendermos o real concreto, indo diretamente para a intervenção, o que,
pressupostamente, resultaria numa visão aparente deste real concreto. Nesta perspectiva de
Gaya, uma academia de ginástica poderia ser compreendida se fosse entendido o conjunto
dos membros que a compõem, os que praticam ginástica, os que praticam natação, os que
praticam musculação, os professores, os faxineiros, os donos, enfim, sua população.
Aprofundando tal afirmativa, contudo, observamos que apenas esta análise preliminar do
método de entendimento do real somente pela prática, pela manifestação empírica,
propicia-nos um entendimento abstrato, pois entender uma população relevando as classes
que estão embutidas neste processo é uma abstração. Da mesma forma, seria também uma
abstração se entendêssemos a palavra classe e ignorássemos as formas de manifestações
que as determinam, como o capital e o trabalho assalariado, que por sua vez fazem supor,
por exemplo, a divisão do trabalho e o preço. Portanto, ao iniciarmos uma análise de
academias de ginástica somente pelos membros que a compõem, somente seria possível ver
o todo representado caoticamente e, através da análise por este método - que resulta numa
visão do aparente concreto -, teríamos sucessivas abstrações reduzindo o fenômeno às
abstrações mais simples.
Isto posto, faz-se necessário refazer o caminho percorrido anteriormente de forma
invertida, chegando à população que compõe a academia de ginástica pelo entendimento da
composição dos seus membros e não mais como o todo representado caoticamente, mas um
todo composto de determinações e múltiplas relações. Analogicamente, ao analisar o que é
EF somente a partir do que aparenta ser, do aparente real e concreto, sem levarmos em
consideração os determinantes e a tecitura das relações envolvidas num todo complexo,
teremos também abstrações cada vez mais simples, mas que distanciam o entendimento do
real que é real e concreto. Vemos aí um exemplo de dicotomização entre teoria e prática
que parece ter ocorrido com a proposta contida no artigo de Gaya.
Por outro lado, o entendimento de Gramsci (1966, 1995) nos proporciona
compreender em qual medida, na verdade, a história da filosofia dos intelectuais – como os
que escreveram os artigos analisados - é um refinamento da análise intelectual que foi
proposta inicialmente pelo senso comum, e que tem como partida este senso comum
relacionado diretamente ao mundo concreto. É a partir deste mundo concreto e da reflexão
crítica (filosófica) em cima dele que se promove o retorno também refinado da análise dos
intelectuais, exatamente para este mundo concreto, ponto de partida da idéia inicial de
análise. Tal análise, no entanto, provoca uma ascendência dos intelectuais sobre a massa
pouco intelectualizada. Este fato existe em maior ou menor grau, e pode promover – tanto
na intervenção pedagógica do professor como num livro escrito por uma autoridade
intelectual ou numa entrevista de um jogador de futebol - a desocultação ou ocultação do
real concreto, dependendo, entre outros fatores, das condições objetivas existentes, de quem
faz a intervenção, da visão social de mundo (ou ideologia) de quem a propõe. Isto é a
atividade intelectual (política) mediadora desse processo, e que auxilia uma hegemonia ou
uma contra-hegemonia, importante papel exercido pelo intelectual enquanto organizador da
cultura.
Portanto, a EF proposta como intervenção no mundo concreto é atividade social e
participa, compreendida desta maneira, da definição da ontologia do homem: ser social.
Nestes termos, cabe perguntar se existe alguma atividade - por mais existencial que seja não-social, mesmo quando se pretende a neutralidade. Esta é a responsabilidade social do
intelectual, do interventor pedagógico do mundo concreto. Em verdade, a EF não é ciência,
mas o fazer científico dela é eminentemente social, portanto filosófico. Já a filosofia é
política, enquanto que a vida ou a consciência da vida, existe no mundo concreto pela
história pessoal (sócio-interativa) e pela história social propriamente dita. A vida e a
história estão em permanente atuação e transformação pela atividade intelectual do homem,
traduzida como trabalho e perpassada na sociedade pela luta de classes. Neste sentido, a EF
enquanto intervenção pedagógica é filosofia pura, atuante. Ao ser localizada, no entanto,
como estando em um percurso entre esta e a ciência, perde o sentido da totalidade, gerando
exclusão contextual por ocultação do real e visualização empiricista e a-histórica.
Em outro ponto do artigo, Gaya ressalta que a aula de EF pressupõe uma
intencionalidade, uma visão de mundo, afirmando que “Portanto, o dar aulas de educação
física pressupõe inicialmente uma intencionalidade (26), uma determinada visão de
mundo, enfim, uma concepção filosófica”. (Gaya, 1994, p. 32). O termo filosófico
intencionalidade remete-nos a uma perspectiva fenomenológica, talvez por que Gaya tenha
compreendido uma tendência da EF com esta perspectiva. De qualquer forma, a categoria
intencionalidade não está no horizonte marxista. Para Japiassú & Marcondes (1996) e Mora
(1982), o termo intencionalidade é um conceito fulcral da fenomenologia, que tem
inspiração originária da Escolástica e que, ao definir a consciência, está voltada para um
objeto. Nesta acepção, a intencionalidade tentaria superar os opostos idealismo e realismo,
mas em nenhum momento se aproximaria da vertente marxista, a qual Gaya diz estar
vinculado. Utilizando-se da lógica de Goldmann (1980), verificamos que o marxismo
compreende os fenômenos através da história, procurando, tal como a fenomenologia, os
significados derivados de ações conscientes, mas, além disso, os seus significados
objetivos. Por exemplo: as manifestações esportivas e o interesse na formação profissional
em nível superior da EF no Brasil, à época da ditadura militar mais recente, foram uma
realização que ocorreu para o povo, alheia às circunstâncias dominantes de época? Ou foi
justamente um aparato ideológico de apoio à hegemonia vigente? A resposta deve advir de
dois planos:
1 - decorrente da consciência dos realizadores do fenômeno, especialmente os líderes do
processo.
2 - decorrente do contexto sócio-político-econômico que determinavam o movimento do
Esporte Para Todos (EPT), quaisquer que fossem as intenções de seus líderes, bem como
dos significados que tinha para eles.
Da mesma forma, a EF existe, mas não em si, ou entre parênteses, isolada do
contexto sócio-histórico de época, o que resultaria numa dicotomização teoria e prática.
Cabe apontar ainda que Gaya (p.30) coloca em seu texto a referência de Santin ­
autor com formação na filosofia existencialista - como representante de uma tendência da
EF, que a entende enquanto uma filosofia da corporeidade, entendida como uma
perspectiva existencialista (p. 31). Santin (1995), contudo, nega em seu artigo ter afirmado
que compreende a EF como uma filosofia da corporeidade, e acrescenta que “tal equívoco
entendo que possa ter acontecido ou por falta de clareza de meus escritos ou por uma leitura
parcial”. (p. XII). Neste mesmo artigo, Santin também afirma que em outro texto seu,
considera a EF como uma ação pedagógica, e que existe a necessidade de repensar as
ciências, mas não de negá-las.
Em síntese, ao lermos o artigo de Gaya, verificamos que existe uma preocupação
central de abordagem da questão sobre a identidade da EF, configurando-se, na medida que
é uma discussão sobre uma categoria filosófica, passível de análise pelo presente estudo.
Ao realizarmos um contraponto do artigo de Gaya à perspectiva marxista, notamos que ele
norteia a identidade enquanto um fim, mas num sentido de revelar-se numa relação de
completitude e semelhança entre coisas que acabam sendo uma coisa só. Se a EF possui
identidade nesta perspectiva, ela passa a ser própria, única e deixa de ser a mesma coisa que
outra coisa que tem as mesmas semelhanças, ou seja, todas as definições de EF
compreendidas como tendências em seu artigo, acabam resultando em uma só, o que é a
sua própria identidade.
Por outro lado, Gaya também discorda de outras terminologias e define a EF
enquanto projeto pedagógico em um percurso entre a ciência e a filosofia. Esta questão nos
aponta exatamente para a questão da identidade e da diferença, do mesmo e do outro. A
diferença caracteriza a identidade e pode ser definida como relação de alteridade que existe
entre coisas possuidoras de elementos que são idênticos. “Quando comparamos dois
objetos, eles apresentam semelhanças e diferenças, as diferenças podendo ser de atributos
acidentais ou de qualidades essenciais". (Japiassú & Marcondes, 1996, p. 72).
A partir desta definição de Gaya, podemos tomar dois rumos:
1- compreender que se a EF tem diferença, identidade, mas se esta diferença for máxima
entre objetos, como num percurso entre a ciência e à filosofia – conforme citado por Gaya o não-traço em comum será sua contradição.
2- compreender a questão pelo conceito de totalidade, não somente como vários elementos
que formam uma unidade, mas talvez no sentido dialético, onde através das diferenças e
contradições buscam-se aproximações com a verdade, pois o objeto é concreto e não
metafísico, e está em permanente traço de mudança. Portanto, o objeto é dependente do
tempo histórico e das relações sociais e nestes termos, "o conceito dialético de totalidade é
dinâmico, refletindo as mediações e transformações abrangentes, mas historicamente
mutáveis, da realidade objetiva". (Mészáros, in: Bottomore et alli, 1997, p. 381).
A segunda proposta não pareceu ser o rumo tomado por Gaya, pois a totalidade não
pode ser alcançada, senão como uma "dominação geral e determinante do todo sobre as
partes" (id, p. 382). Desta forma, ao assumir uma definição de EF em si mesmo, sem
compreendê-la na totalidade do conjunto das relações sociais, Gaya assumiu uma posição
não-dialética, em que a questão chegou ao fim, muito embora ressalte que ela exige
progressos. Nesta ótica, a concepção de EF da época do artigo não necessitaria ser passível
de análise, pois já estaria definida, o que por um lado pode ser considerado como uma
tentativa plausível, que tende ao progresso de se estabelecer academicamente parâmetros de
identidade da área; mas por outro demonstra a posição assumida por Gaya relativa a
contextos anteriores, o que o presente estudo aponta como retrocesso de análise contextual
do mundo e, dialeticamente, da EF.
A identidade da EF - concordamos com Gaya - é encontrada a partir de sua prática,
mas também necessita de tratamento teórico para que não seja concebida em si, onde a = a,
e onde ela não seja por outro lado excludente à ‘a’. A EF possui identidade, e com isso ela
passa a ser ‘b’. Sendo ‘b’, ela é ‘não-a’. Ao mesmo tempo, A EF é incluída em ‘a’ e inclui
‘a’, não para retirar ou dar somente subsídios, mas para, num todo uno, ter semelhanças que
sejam maiores que as diferenças existentes, com vistas à contribuição no processo de
intervenção pedagógica. Nestes termos, não pode existir a EF embaixo, na prática,
enquanto a ciência e, principalmente, a filosofia, está acima, como teoria puramente no
campo das idéias, que somente pode informar a EF e não fazer parte dela sem afetar sua
identidade.
Em relação ao artigo, podemos afirmar ainda a existência de indicativos apontados,
de que Gaya tem uma terminologia muito próxima da visão marxista, mas quando
analisamos mais profundamente alguns aspectos elucida-se um avançado distanciamento
desta visão. Assim, Gaya não estava trabalhando, na essência, por uma vertente marxista, e
acabou convergindo por outras direções, excluindo, inclusive, esta manifestação filosófica,
que para ele não se configurou como uma tendência da EF. Ao negar a existência de uma
perspectiva marxista ou à esquerda na EF, Gaya acabou por negar o discurso e o referencial
no qual disse que se apoiava, apresentando uma escolha repensada e nova.
Nos termos demonstrados, o percurso que Gaya aponta-nos em seu artigo, está entre
um idealismo e o cientificismo, colocando a si próprio - em vários trechos do artigo - sem
saída. Ao usar estes pressupostos idealista e cientificista para análise do que é a EF, as
variáveis teóricas não dão conta de sua própria especificidade proposta por Gaya. Isto
propõe novamente um distanciamento entre teoria e prática, o que se traduz num problema:
ao analisarmos a prática não encontramos teoria para dialetizar, encontrando assim uma
forte aproximação com propostas do tipo empírico-analíticas, pois conceitos da filosofia e
da ciência são considerados como apoio e não parte integrante do processo. Por
conseguinte, este fato poderia derivar estrategicamente a forçar o encontro de uma teoria
própria de dentro da EF, o que poderia também se traduzir em um outro problema: a
concepção de EF em si, per se.
Na vertente adotada por este estudo, a EF não
está entre a ciência e a filosofia, separadamente,
mas está imbricada nelas, especialmente na filosofia,
pois é educação, antes de educação física. Existe aí,
uma simbiose indissolúvel. A EF é vida, é atividade
humana e é prática social que, quando
contextualizada, faz interface com o todo. Portanto,
a EF é e deve ser uma filosofia na mesma medida
que é uma intervenção no mundo concreto, e neste
sentido se opõe à posição adotada no artigo por
Gaya, afinal ela é especialmente filosofia, e também
ciência.
Por outro lado, cabe ressaltar que a clarificação de um posicionamento de
afastamento da vertente marxista demonstrado por Gaya, é resultante de uma modificação
que envolve o caráter profissional e pessoal, sendo necessariamente respeitável no regime
democrático que queremos dar à sociedade em que vivemos. Conforme ressaltado
anteriormente, o fato de ser marxista ou trabalhar com método dialético não faz com que
nos tornemos bons ou melhores que outros que não o façam. Nesta perspectiva, embora
acreditemos que houve retrocesso no modo de pensar de Gaya no decorrer do artigo em
relação a épocas anteriores, podemos verificar uma tentativa de demarcação da área, através
de uma opção teórica (que lamentavelmente ou sutilmente esquece-se que parte das pessoas
que compõem a área da EF tem identificação com o marxismo) e consegue avanços neste
sentido. Tais afirmativas são confirmadas ao enunciarmos que:
- Gaya acredita na EF como pedagogia, convergindo com idéias apresentadas neste estudo,
creditando-a como intervenção pedagógica;
- Gaya insere a EF como disciplina normativa, portanto como portadora necessária de
valores anteriores e ulteriores a sua prática;
- Existe, para Gaya, uma necessidade de intervenção no mundo concreto por parte da
docência na EF;
Assim sendo, Gaya faz uma opção teórica distanciada e, de certo modo, oposta ao
marxismo, e, mais ainda, o desconsidera enquanto proposta epistemológica ao enunciar as
tendências da EF sem abranger uma tendência marxista na EF dentro das perspectivas
teóricas que estão em seu artigo. Tal fato não coaduna com uma massa de estudantes e
profissionais, livros e artigos convergentes com uma perspectiva marxista dentro da
concepção de EF.
3.1.2 - Análise do artigo de Taffarel e Escobar:
O artigo de Taffarel e Escobar terminou de ser escrito em 30/11/93, sendo publicado
no primeiro número da revista Movimento em 94. Elas constroem uma crítica ao texto de
Gaya, tomando como base às referências que ele utilizou, classificadas por elas como
idealistas. No trato da questão em pauta consideram-se menos simplistas e mais críticas,
adotando como referencial a dialética materialista histórica.
A utilização, para as autoras, do simplismo por Gaya é uma recorrência, um
artifício, para "sistematizar um conhecimento produzido sobre o assunto" (Taffarel &
Escobar, 1994, p. 35). Um exemplo disto é as referências regionais relativas à produção de
conhecimento que foram adotadas. Para elas, Gaya também não considerou a categoria
atividade no sentido marxista quando fez a análise das duas tendências estabelecidas de
concepção do que seria EF (p. 36). Desta forma,
"Gaya e suas referências não levam em conta a
relação do desenvolvimento geral da sociedade e da
sua base material como determinante da 'qualidade' da
produção da cultura corporal, que, em um modo de
produção capitalista, sobrepõe ao caráter lúdico das
atividades, a violência, a competitividade exacerbada, a
estimulação por drogas, enfim, os subprodutos da
cultura dos esportes de alto rendimento". (Taffarel e
Escobar, 1994, p. 37).
Para as autoras, Gaya incorre em um erro quando desconsidera "os referenciais da
dialética materialista-histórica" (Taffarel & Escobar, 1994, p. 37). Para elas, o autor
criticado concluiu que a EF é uma prática de intervenção no mundo concreto, enquanto a
Filosofia não assumiria esta prerrogativa. A intervenção no mundo concreto,
"não está limitada ao mundo das aparências. A prática
da EF em si não garante a intervenção no real, visto
que esta prática pode-se dar de maneira alienada e pela
apreensão do real a partir de representações, a
exemplo da forma como o esporte é considerado na
escola, abordado como um trabalho abstrato... e sem
avaliar
a
qualidade
destrutiva
da
socialização
subjacente a essa concepção." (Taffarel e Escobar,
1994, p. 37)
Segundo as autoras, a EF depende das possibilidades históricas que surgem
enquanto que o idealismo demonstrado por Gaya não é suficiente para apreensão dos
fenômenos sociais concretos. Ao fazer uma crítica do pensamento de Gaya, clarificou-se,
para elas, o estabelecimento de uma dicotomia entre ciência e filosofia, visto que o autor,
quando reduz às abstrações de um discurso especulativo de cunho axiológico, recusa a
filosofia da práxis e cai na lógica de raciocínio utilizada pelo seu referencial teórico.
As autoras radicalizam a compreensão dialética materialista-histórica enquanto
teoria do conhecimento, assumindo que, desta forma, poderiam ser apontados os equívocos
na terminologia referente à EF, que, quando empregadas pelos autores citados por Gaya,
tornam-se concepções idealistas. Nestes termos, no texto de sua autoria, Gaya não
considerou, segundo Taffarel e Escobar (1994), que o fazer científico ocorre inserido em
determinadas relações históricas, caracterizando a ciência enquanto força produtiva,
dominação política e ideologia. Segundo as autoras, também é passível de críticas a EF
enquanto Pedagogia no âmbito de um projeto antropológico e interveniente no real. Para
Taffarel & Escobar (1994), "a intervenção no real está na dependência da qualidade da
práxis social historicamente determinada no marco de produção da vida e segundo
interesses de classe". (p. 39).
O pensamento dos autores descritos aponta para uma determinada concepção de EF.
Ao produzir tal concepção, passam a exercer uma função intelectual nos termos do debate
sobre a questão epistemológica. Tal fato pode ser indicativo de relação entre o pensamento
dos referidos autores com a dinâmica do pensamento intelectual sobre a concepção atual de
EF.
Cabe ressaltar que através do posicionamento enunciado pelas autoras, as visões de
mundo diferenciadas podem, numa ótica marxista, demarcar posicionamentos que refletem
interesses de classe ou de grupos dominantes, evitando assim conflitos e exercendo
dominação, pois
"As idéias dominantes nada mais são do que a
expressão ideal das relações materiais dominantes, as
relações materiais concebidas como idéias; portanto, a
expressão das relações que tornam uma classe a classe
dominante; portanto, as idéias de sua dominação."
(Marx & Engels, 1986, p. 72).
Neste sentido, Taffarel e Escobar (1994) ao intitularem seu artigo em crítica ao de
Gaya como “um exemplo do simplismo intelectual”, demonstram a priori um certo
descrédito com o artigo de Gaya. Santin (1995), denota o caráter da crítica feita a Gaya na
questão desse sub-título, demonstrando que
“O texto começa de maneira contundente, o que
facilita identificar, já no seu título, o teor contestador
imprimido no mesmo. Por outro lado, esta franqueza
frontal pode provocar um pré-julgamento nos leitores,
impossibilitando uma atitude mais crítica, que se forma
ao longo da força da argumentação”. (p. XIII).
Em entrevista recente, Santin (2000, Anexo 03) corrobora com tal posicionamento,
afirmando que
“... a posição da Celi era uma posição, digamos, de
denúncia ou de crítica, baseada numa proposta de um
paradigma marxista, em que denunciava que a
compreensão da educação física do professor Gaya, era
de uma EF asséptica, neutra, sem explicações de ordem
social, e que o professor Gaya se baseava numa
cientificidade que também seria neutra. A preocupação
era simplesmente saber em que consiste ou o que é EF,
e não via na cientificidade uma vinculação com a
ordem social, e portanto a Celi critica logo no início
com um discurso muito dirigido, muito radical – não é a
palavra que eu gostaria de dizer, mas não estou no
momento achando uma melhor – e que caracterizava o
seu tipo de discurso, e que portanto, eu digo no meu
texto, o autor que perceber no início essa postura da
Celi, era capaz de nem mais ler, pois saberia o que ela
iria dizer”.
Apesar de considerarmos que a crítica de Santin não esgota a questão, é importante
frisar Taffarel e Escobar acentuando a crítica com teor semelhante ao ‘simplismo
intelectual’ por mais 19 vezes num artigo de seis páginas. Tal fato pode ser exemplificado
quando escreve que “... assim desconhecendo, ingenuamente e sem sutilezas” ou “...
cometendo um equívoco seríssimo...” (p. 37), ou ainda “... Na saga dos equívocos
teóricos...” (p. 37), “...completa o quadro de equívocos...” (p. 39), “... Absurdo teórico...”
(p. 39), “... sucatas científicas idealistas...” (p. 39) e “... trocarmos nosso ouro por
espelhos...” (p. 39). Deste modo, as críticas contidas nessas 20 assertivas não conseguem
ser demonstradas ao longo do texto, possibilitando críticas posteriores.
O cerne do texto, no entanto, é que Taffarel e Escobar se esforçaram por
desenvolver a tese do idealismo das referências adotadas por Gaya. Por isto ele mesmo
acaba por tornar-se identificado com as suas referências. Este tema central pode ter sido
deslocado por autores que se seguiram nesse debate, onde não o discutiram, optando pelas
críticas às posições consideradas radicais em detrimento de críticas diretas a posição
teórica.
A temática central do texto é postular uma crítica radical às referências utilizadas
por Gaya, classificadas como idealistas pelas autoras. Taffarel e Escobar referem-se no
texto ao idealismo no resumo, quando afirmam que o “idealismo é insuficiente para
apreender os fenômenos sociais concretos” (p. 37), e quando radicalizam a compreensão de
teoria do conhecimento sob o ponto de vista da dialética materialista e histórica, afirmando
que ela pode colocar os termos de denominação de EF, movimento humano, psicocinética,
ciências do esporte, ciências do desporto e motricidade humana como
“marco referencial das concepções idealistas e da
referência científica empírico-analítica, hermenêutica e
fenomenológica. Nelas fica evidente um recorrer às
ciências humanas e sociais somente para legitimar uma
perspectiva filosófico-científica superada, esgotada,
que é o idealismo e o método empírico-analítico de
pesquisa”. (Taffarel e Escobar, 1994, p. 39).
Não fica claro neste fragmento de texto se a tendência que, segundo o artigo de
Gaya, compreende a EF como filosofia da corporeidade, também é considerada por Taffarel
e Escobar como idealista. Isto ocorre porque, neste caso, só foram citadas explicitamente
por elas as denominações da primeira tendência exposta por Gaya - que configuram “a EF
como uma ciência relativamente autônoma” (Gaya, 1994, p. 31). Por outro lado, não é
explicitado pelas autoras se o idealismo referido é stricto sensu o criticado por Marx,
tornando incompleta a crítica proposta, pois para Marx existe mais de uma manifestação de
idealismo. Concordando com Taffarel e Escobar, acreditamos que o problema não está em
considerar as idéias, mas em torná-las modelos que tendem a impedir o aprofundamento da
análise do concreto e também o retorno das idéias a este mesmo concreto para sua
transformação. Desta forma, incorre-se numa vertente de unidade pelas idéias. Não há
indicativo de que as autoras consideraram positiva alguma das referências propostas por
Gaya, considerando-as com a mesma perspectiva. Acreditamos também que melhor
sintetizaria a crítica de Taffarel e Escobar se recorressem à sexta tese de Marx quando este
analisa Feuerbarch e demonstra seu idealismo (27). Entretanto, pode também ter sido
criticado por Taffarel e Escobar um idealismo com sentido de alienação, ignorância do
concreto das ações do homem, o que não acreditamos. Gaya é um intelectual com
qualidades acadêmicas reconhecidas, e que, conforme Taffarel afirmou em entrevista
(Anexo 02), em outra época esteve política e teoricamente a seu lado, possibilitando
deduzir-se ter sido, nesta ótica, uma crítica irônica.
Quando perguntada em entrevista, no entanto, se classificou Gaya ao chamá-lo de
idealista, tal como achou que foi classificada por autores que se seguiram no debate,
Taffarel respondeu:
“Me mostra no texto que eu chamei Gaya de
idealista. O que eu vou te mostrar no texto é que a
opção teórica que ele fez foi explicar um fenômeno
epistemológico, etc. Idealista. É idealista a opção que
ele fez. Ele fez uma opção epistemológica. Então, é isso
que precisa ficar esclarecido.” (Taffarel, 2000, Anexo
02).
Além disso, Taffarel já houvera negado ter feito qualquer ataque pessoal a Gaya,
afirmando que:
“...eu não fiz ataque pessoal nenhum, isso foi uma
tentativa de um monte de gente, muitas pessoas
quiseram dizer que eu ataquei pessoalmente Adroaldo
Gaya, eu não ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya,
respeito o meu colega professor Adroaldo Gaya,
respeito todo o trabalho que ele fez ao longo da
história, respeito a nossa convivência, mas me dou o
direito de ter divergências e dizer que o companheiro,
na sua trajetória, teve aproximações com referências
epistemológicas que o levaram a formulações como
aquela que nos coube analisar. E esta formulação que
ele elaborou, expressou naquele texto no qual nós nos
posicionamos, merece questionamentos, e nós fizemos
esses questionamentos, e a ciência, ela evolui porque
nós somos capazes de questionar.” (Taffarel, 2000,
Anexo 02).
Voltando ao ponto anterior de nossa análise, cabe ressaltar que as autoras em mais
de um momento do texto as autoras procuram mostrar Gaya desembocando. Ratifica-se
esse fato ao fazerem afirmações como “... isto é negado, demonstrando, mais uma vez seu
raciocínio idealista”. (Taffarel e Escobar, 1994, p. 38), ou “ao estabelecer uma dicotomia
entre ciência e filosofia (...) o autor recusa a filosofia da práxis e cai na lógica de raciocínio
utilizada pelos autores que ele analisa” (Taffarel e Escobar, 1994, p. 38), ou ainda citando
Kosik, onde diz que o posicionamento de Gaya pareceu a de “(...) um abstrato sujeito
cognoscente, de uma mente pensante, que examina a realidade especulativamente.” (Kosik,
1976, p. 9-33. In: Taffarel e Escobar, 1994, p. 38). Esta citação de Kosik está na primeira
página do primeiro capítulo do seu livro, denominado Dialética do Concreto,
necessitando-se de uma leitura mais rigorosa para que se compreenda a afirmação de
Taffarel e Escobar. Ao fazerem a opção de utilizarem-se da idéia do autor sem explicá-la
em sua profundidade, as autoras não iluminam totalmente a crítica realizada.
Kosik trata da coisa em si ou real concreto, mas demonstra que ele não se manifesta
ao homem de forma imediata, e que compreendê-lo exige um esforço e uma estratégia, uma
amarração (détour). Por isso, o pensar dialético faz uma distinção entre a representação e o
conceito do real concreto, “com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois
graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e, sobretudo, duas qualidades da
práxis humana” (Kosik, 1995, p. 13). E continua: “a atitude primordial e imediata do
homem, em face da realidade, não (28) é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma
mente pensante que examina a realidade especulativamente” (id). Neste ponto, Taffarel e
Escobar aplicam de forma inadequada a proposta de Kosik, enquadrando Gaya, num
modelo pré-concebido, que antecede à crítica por elas realizada. Talvez a crítica fosse mais
bem explicitada na continuidade da citação de Kosik utilizada. Neste ponto, ele propõe o
que acredita ser o melhor procedimento de observar a realidade. Taffarel e Escobar
enquadram Gaya a partir de uma citação de Kosik, um autor importante, mas que, embora
fale do mesmo assunto, é extrínseco ao debate. Ele afirma, conforme dito anteriormente,
que a atitude primária ao homem não é de um ser que pensa e verifica a realidade de forma
especulativa. Neste ponto do texto, inicia a proposta positiva de Kosik, e não com a citação
utilizada por Taffarel e Escobar, o que demonstra sua crítica, mas não clarifica sua proposta
epistemológica, possivelmente similar à de Kosik. Este autor continua o texto assim:
“(...), porém, a de um ser que age objetiva e
praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a
sua atividade prática no trato com a natureza e com os
outros homens, tendo em vista a consecução dos
próprios fins e interesses, dentro de um determinado
conjunto de relações sociais” (1995, p. 13).
Desta forma, emerge o procedimento de Kosik em relação ao binômio aparênciaessência, onde o primeiro termo é o mundo da pseudoconcreticidade, o olhar sobre o
mundo que as autoras afirmam ser o de Gaya. Faltaria às autoras explicitarem a proposta de
Kosik – só para ficarmos na primeira parte da leitura de seu livro – sobre o mundo da
concreticidade. Segundo este autor ele nos mostra a verdade, apesar de não conseguimos
alcançá-la, embora tenhamos que fazer sucessivas idas e vindas, e um détour para nos
aproximarmos dela. Ou seja, Kosik está tentando ressaltar a importância da dialética na
concepção de mundo e, conseqüentemente, no fazer científico, o que não parece estar bem
explicitado no texto de Taffarel e Escobar.
Numa outra vertente, foi perguntado em entrevista a Taffarel, se o texto de Gaya era
existencial, um texto que marcaria sua saída da esquerda. Ela afirma:
“Não, eu não posso, para não ser leviana, fazer
colocações do tipo: Adroaldo Gaya saiu da esquerda.
Não, seria leviandade da minha parte. O que eu posso
dizer é que a base teórica, a fundamentação
epistemológica daquele escrito de Adroaldo Gaya, se
contradiz com à referência marxista. E ao dizer isto,
nós reconhecemos que esta contradição à referência
marxista,
ela
pode
perfeitamente
estar
sendo
influenciada por todo um programa desenvolvido por
todo um programa, por toda uma orientação, que nós
recebemos sim, quando nós decidimos fazer um
programa de pós-graduação, e aí, esse texto ele foi
produzido dentro de um programa de pós-graduação.
Ele representa uma parte de um estudo de doutorado,
que se coloca dentro de uma vertente epistemológica.
Ou será que nós brasileiros não temos a competência
de verificar quais são as vertentes epistemológicas que
estão orientando os programas de pós-graduação em
Portugal? O que é que tem predominado? O que é que é
enfático? O que está sendo trazido para o Brasil,
enquanto influência epistemológica? Será que nós
brasileiros não temos capacidade de fazer isto? Não
podemos criticar isso? Na condição de brasileira, de
professora de ensino superior, de quem se propõe a
fazer ciência no nosso país, eu quero discutir as bases
epistemológicas da produção desse conhecimento. E foi
o que nós fizemos. Sem ofensas pessoais, sem atacar o
companheiro Adroaldo Gaya, sem nada disso. Isso é
uma interpretação de alguém que quer reduzir esse
debate a um confronto pessoal, e isto é equivocado”
(Taffarel, 2000).
Em síntese, concordamos com Taffarel e Escobar no conjunto de sua análise crítica
relacionada ao artigo de Gaya, mas consideramos inadequada a forma encontrada por elas
nesta análise. Da mesma forma, a postura inflexível no sentido de aparentar um repúdio
radical à proposta formulada neste artigo de Gaya, não nos parece a melhor estratégia de
ocupação desse espaço de luta contra-hegemônica. Tal fato caracteriza-se inclusive pelas
contradições expostas dentro da própria proposta de Gaya. Essa postura determinou um
deslocamento da discussão, permitindo a colocação de outras questões dentro do foco
central, em detrimento do debate diretamente epistemológico. Como Taffarel e Escobar
foram enfáticas no trato de questões secundárias, conforme abordado anteriormente, pôde
haver esse deslocamento prejudicial ao debate.
Concluindo, a questão central de Gaya, conforme o próprio título afirma, é a da
identidade da EF, e sobre isto não basta tentar relacioná-la enquanto prática, como
capitalista ou socialista. Não é a prática da EF que é em si a proposta de Gaya como
Taffarel e Escobar parecem querer demonstrar, mas a própria identidade da EF que dentro
da proposta formulada por Gaya, acaba por ser per se. Isto inclui especialmente a docência,
por ser ela prática pedagógica. A atividade física realizada não é, por si, politizada. O
sentido que lhe é dado em aula, na prática docente, no esporte, este sim é, em maior ou
menor grau, ideologizado, parcial, reflexivo das contradições sociais e posicionado a favor
ou contra a hegemonia vigente. Ao mesmo tempo, deixa de ser uma atividade física
aleatória e passa a ser realizada com uma intervenção pedagógica, que clarifica sua relação
com a sociedade. Neste sentido, por exemplo, a análise de Taffarel e Escobar é periférica.
Por outro lado, o caminho tomado pela intervenção pedagógica em relação à
hegemonia é fundamental em sua manutenção ou em sua contestação. Esta intervenção é
feita pelo docente, um indivíduo construído historicamente, com suas convicções criadas
também pelas suas referências teóricas. Assim, os autores que subsidiam este indivíduo
docente, ratificam sua posição já predisposta ou, pelo contrário, modificam sua concepção
de mundo, influenciando sobremaneira o produto pedagógico, resultante na própria
docência. Tais autores subsidiadores constituem-se, num sentido gramsciano adotado neste
estudo, como intelectuais orgânicos (organizadores da cultura), mediadores do poder
vigente representado pelo Estado + sociedade civil, e a massa populacional ou senso
comum. Esta mediação é a favor da hegemonia, embora existam intelectuais orgânicos do
tipo contra-hegemônico, que ocupam os espaços deixados pela hegemonia vigente.
Portanto, os autores - enquanto intelectuais orgânicos - têm papel fundamental na mediação
da intervenção pedagógica docente, na EF ou em qualquer outra área passível desta
intervenção. Desta forma, Gaya, Taffarel e Escobar assim como os autores que se seguiram
nesse debate, representam papel relevante na manutenção da hegemonia vigente ou na
contra-hegemonia, visto que a EF enquanto uma intervenção do tipo pedagógica forma
unidade com o todo da sociedade. Assim sendo, não basta entendermos o debate somente
nos dizeres dos textos desses intelectuais, mas o que estes dizeres promovem para seus
leitores como construção de um consenso hegemônico na EF e que pode atender ou não à
hegemonia vigente ou à contra-hegemonia, sob risco de entendermos a função intelectual
de forma fragmentada.
3.2 – Os intelectuais da EF frente à questão da hegemonia:
Conforme foi abordado anteriormente en passant, o conceito de hegemonia em
Gramsci reflete uma busca do domínio em torno de idéias que se articulam de maneira
combinada entre um consenso das idéias do Estado e da classe dominante para com as
massas e que quando não se estabelece, utiliza-se a força ou a coerção. Este consenso é
mediado pelos intelectuais, que organizam a cultura e solidificam para o senso comum, a
hegemonia em torno das idéias do Estado e da classe dominante. Tal solidificação dá-se
com a ideologia funcionando como um cimento, ou seja, os intelectuais têm a ideologia
quando fazem a articulação das idéias, que é transmitida nas idéias adquiridas pelo senso
comum. Neste sentido, os intelectuais têm papel fundamental na construção da hegemonia
em torno das idéias do Estado e da classe dominante.
Por outro lado, conforme existe o consenso hegemônico, vão aparecendo
contradições no sistema e sendo oferecidos espaços de ocupação nos espaços de domínio da
hegemonia vigente, que é a hegemonia da classe dominante. Esses espaços existem
especialmente nos aparelhos ideológicos, e são ocupados exatamente através das mesmas
lideranças que mediatizam as idéias do Estado e da classe dominante. Ou seja, existem
intelectuais que agem contra a hegemonia vigente e lideram o senso comum especialmente no seu núcleo bom, ou bom senso – para tomada dos espaços deixados pela
hegemonia, oferecendo resistência a ela, e processando uma contra-hegemonia. Esta contra­
hegemonia também se pretende hegemonia, e para isso busca estratégias de alcance do
poder. Como isto ocorre em nível macro, em todos os espaços, na verdade se está
contribuindo (ou resistindo, no caso da contra-hegemonia) para manutenção do poder.
Neste sentido, também os intelectuais têm papel fundamental tanto na contra-hegemonia
quanto na construção de uma nova hegemonia e dos meios para se alcançá-la.
Mas, e na EF? Na EF não é diferente. A EF é uma área de conhecimento que tem
um papel tão importante, fundamental ou superficial, quanto qualquer outra, dependendo
das circunstâncias históricas, no contexto hegemônico e contra-hegemônico exemplificado.
Não são poucos os exemplos em que a EF foi utilizada tanto como meio de manutenção,
propaganda de um sistema político, como de resistência velada ou explícita a ele.
Tampouco conteúdos trabalhados na EF têm menos importância do que outros, podendo ser
citado, por exemplo, o esporte e a ginástica. Ocorre isto é uma transposição tênue para o
contexto amplo da hegemonia e contra-hegemonia, e que sofre várias interferências nesse
caminho que dificultam generalizações e a prioris em julgamentos, sob o risco de
cometermos erros graves tanto em relação a intelectuais que transitam pela hegemonia
como pela contra-hegemonia, especialmente se tratando de dentro de uma prática social
como a EF.
Desta forma, o pensamento gramsciano acerca da questão da hegemonia foi levado
em consideração no momento de analisarmos as formulações de propostas, conceito,
identidade e reflexões sobre a EF brasileira. O debate na revista Movimento não indica uma
hegemonia no pensamento da EF, mas pode indicar como se auxilia na manutenção da
hegemonia vigente, ao mesmo tempo em que se constróem convergências em torno de
idéias hegemônicas dentro da EF ou, ao contrário, se ocupam ou tentam ocupar os espaços
deixados pela hegemonia do Estado e da classe dominante para que haja luta contra­
hegemônica na EF, com vistas a construção de uma nova hegemonia.
Gramsci, conforme apontado anteriormente, ratifica a concepção de hegemonia com
sentido de dominar e dirigir politicamente, com o Estado utilizando-se de força ou coerção
+ consentimento com a população visando seu domínio, em diálogo para construção da
hegemonia com a sociedade civil. Este domínio é mediado pelos intelectuais, formadores
de consenso e organizadores da cultura. Mas, e a EF, o que tem a ver com isso?
A EF é ministrada por professores, intelectuais orgânicos vinculados às classes
dominantes ou não e de diferentes maneiras, sendo, portanto, mediadores do consenso entre
Estado e senso comum, e, conseqüentemente, entre classes sociais. A Escola, instituição na
qual muitos professores de EF atuam, é um aparelho da sociedade civil, tal como a
Universidade que formam os intelectuais que irão promover a continuidade deste processo
ou a tentativa de rompimento com ele. Os intelectuais que tentam promover tal ruptura são
chamados de contra-hegemônicos, e podem ocupar os espaços deixados na sociedade por
parte do Estado e classe dominante, especialmente os espaços deixados na sociedade civil,
ambiente em que ao mesmo tempo existe quase uma extensão do Estado e um forte
contraponto a ele, ou pelo menos essa possibilidade.
Os intelectuais da EF citados no presente estudo subsidiam, através da produção de
conhecimento, professores e acadêmicos, com suas idéias, argumentos, posições, ideologias
enfim, tal como na hegemonia usam dessa ideologia para consolidar o bloco histórico,
agindo como um cimento das idéias do Estado na sociedade e, conseqüentemente, na
sociedade civil. Portanto, os intelectuais da EF são passíveis de contornos das ideologias do
tipo hegemônicas e das contra-hegemônicas, e, assim, formam também uma hegemonia,
um consenso em torno de idéias para sua categoria, exercendo liderança em torno de suas
proposições. Desta forma, os intelectuais orgânicos da EF que escreveram para a revista
Movimento atendem a uma perspectiva gramsciana de hegemonia ou contra-hegemonia, e
de diferentes maneiras e, ao mesmo tempo, tentam construir uma hegemonia em torno de
suas idéias, ou simplesmente externam estas idéias como contribuição para construção do
conhecimento na área, mas atendendo à perspectiva hegemônica ou à contra-hegemônica.
Nestes termos, nesse debate epistemológico da EF ocorre uma tentativa de produção
de um consenso hegemônico. Por um lado, Gaya e por outro Taffarel e Escobar,
protagonizam um campo de tensão em torno desta tentativa. De acordo com a ótica de
Gramsci em relação ao conceito de hegemonia, uma proposta formulada no âmbito da
epistemologia de uma prática social como a EF, está em sintonia com uma perspectiva
política ampliada de manutenção ou de contrariedade ao poder vigente. Ao adotando uma
postura historicista radical, a conjuntura histórica atual relativa ao poder vigente indica uma
perspectiva à direita nos principais campos de poder que perpassam a proposta hegemônica
criticada por Gramsci. Tanto a sociedade civil quanto o Estado estão alinhados com uma
proposta mais ampliada de um movimento mundial de tentativa para manutenção do
capitalismo como sistema econômico dominante, inclusive através das suas derivações
políticas de sustentação, como a dita democracia da atualidade. Em que pese o avanço
político relacionado a alguns momentos anteriores no nosso país, vemos uma distância
bastante grande de uma sociedade avançada em termos de democracia, e maior ainda de
uma sociedade verdadeiramente democrática, um humanismo radical, como o marxismo.
Isto posto, verificamos, conforme os dados levantados anteriormente, Gaya afirmando uma
aproximação com uma perspectiva dialética à esquerda, diferentemente de um chamado –
pelo mesmo Gaya - grupo radical de esquerda da EF. Posteriormente, verificamos no artigo
de Taffarel e Escobar, confirmado posteriormente em entrevista (2000, Anexo 02), um
repúdio à proposta de Gaya, por não a considerarem nesta perspectiva dialética.
Portanto, a análise dos dados retoma dois pólos de discussão: No primeiro, se Gaya
adota, como diz, uma perspectiva contra-hegemônica, o fato de postular uma crítica direta a
um chamado grupo radical da esquerda da EF, contra-hegemônico, conota uma postura que
propõe uma fragmentação exatamente nesta luta contra-hegemônica, pois, ao contrário, as
diferenças existentes teriam que ser superadas em prol de um trabalho coletivo e
estratégico, e através do qual o que os uniriam, os identificariam, seria a afinidade teórica e
a concepção de mundo, do mundo que se quer construir. De outra forma, Taffarel e
Escobar, se também identificam em Gaya um intelectual orgânico do tipo contra­
hegemônico, conforme Taffarel afirma em entrevista que sempre reconheceu em Gaya
“uma pessoa que defendia um projeto histórico socialista, que defendia uma concepção de
homem emancipado, que defendia uma perspectiva epistemológica marxista” (2000, Anexo
02), e que seria leviandade de sua parte afirmar que Gaya saiu da esquerda, também
precisariam buscar aproximações com essa perspectiva de esquerda na qual acreditavam
que Gaya estaria, para conseguir pontos convergentes e diminuir distâncias entre propostas.
Noutro sentido, se Gaya é um intelectual orgânico que adota uma postura afinada
com uma perspectiva hegemônica, sua estratégia a partir do seu artigo é correta. Seu
discurso é posicionado com determinadas ênfases como nos valores, que aparentam ser
contra-hegemônicas, mas na essência acabam por se aproximar de propostas do tipo
hegemônicas. Tal análise é corroborada na medida que não verifica no seu artigo nenhuma
tendência do tipo contra-hegemônica em seu artigo - fato que ocorre ao contrário em sua
tese de doutorado (1994), onde verifica uma tendência da produção de conhecimento do
tipo contra-hegemônica -, o que pode ser parte de sua estratégia. Por outro lado, Gaya
afirmou em entrevista não pretender que o artigo da revista Movimento tomasse a
proporção ocorrida. Este fato, entre outros, demonstra fazer-se necessário perscrutar essa
sua tese de doutorado, pois devido ao seu teor também epistemológico, possivelmente
encontraríamos subsídios sobre sua posição frente a propostas do tipo hegemônicas e
contra-hegemônicas, bem como possíveis problemas de ordem metodológica por análise
comparativa com seu artigo.
Concomitantemente, verificamos que Gaya analisa em seu artigo diversos autores
de maneira aparentemente superficial. Santin, por exemplo, nega no artigo publicado na
revista Movimento e, posteriormente, em entrevista, a vertente explorada por Gaya de que
conceberia a EF como filosofia da corporeidade e que negaria a ciência, conforme visto
anteriormente. O principal indicativo do artigo consiste em que diversos autores são citados
somente por um livro ou artigo e mecanicamente enquadrados em uma tendência da EF
sem análises conotativas. Portanto, são citados muitos autores sem que Gaya explicite com
maior consistência suas propostas teóricas, incorrendo no risco de não ir a essência do que
estes autores realmente propuseram, enquadrando-os nas tendências apontadas. Para
entendermos se houve uma análise profunda, mas não explicitada, recorreremos também à
tese de doutorado de Gaya, publicada no mesmo ano do artigo da revista Movimento, 1994,
no sentido de verificarmos se é um enxugamento do texto, onde não explicitou para o leitor
a proposta do autor, ou um ranço metodológico equivocado, em que a idéia do autor não é,
possivelmente, esmiuçada a ponto de explicitação e, conseqüentemente, superficializada.
Cabe tal análise na medida que Gaya também se baseou nesta tese para escrever seu artigo.
Isto ocorreu em grande escala, a ponto de Gaya praticamente transpor as páginas 19 e 20
dela para o artigo da revista Movimento.
Gaya, em sua tese, pretendeu verificar a produção científica na área dos desportos
em congressos e revistas de EF, com vistas a verificar as tendências dessa produção. O
principal resultado conclusivo é que a área dos desportos não se constitui em uma ciência.
Em sua tese, Gaya demonstra dificuldades em conciliar a teoria utilizada ao trabalho
de campo, de aplicação na análise empírica, sendo monolítico o complexo referencial
teórico. Gaya, quando consultado, assumiu essa dificuldade no estudo, afirmando em
entrevista que
“eu concordo com sua crítica, eu acho que ela é bem
feita. Eu acho que a tese tem duas partes: uma parte
que fala e outra parte em que eu fui pra campo, e que
talvez esteja um pouco desvinculada. O trabalho
prático é mais empiricista, é mais empírico, no sentido
de contar as produções científicas para verificar e
discutir. Realmente, foi muito bem visto de sua parte,
que as coisas não fluem tão diretamente como deveriam
fluir. Mas eu te digo com tranqüilidade, eu acho até que
por falta de competência, e também por uma mania
triste de querer ser intelectualista, mostrar que lê as
coisas. Eu acho que isso passa muito por nós. Tinha a
preocupação de fazer uma revisão de literatura
também, a preocupação de dizer que leu os principais
autores,
eu
acho
que
passa
muito
por
isso.
Sinceramente. A questão psicológica, talvez por
vaidade pessoal, não sei, mas você me fez ver isso com
muita clareza agora também, ver com muita clareza. A
tese tem dois enfoques: o teórico não se enquadra muito
com o trabalho de campo. Eu te agradeço por isso.”
(Gaya, Anexo I, 2000).
Além dessa crítica, podemos apontar um indicativo de erro do ponto de vista da
metodologia de um trabalho de cunho filosófico em sua tese, pois Gaya aponta diversos
autores desta área, de grande complexidade e com perspectivas diferenciadas num mesmo
estudo. Neste sentido, termina aparentando superficialidade na análise. Por outro lado,
esses autores complexos, como Adorno, Althusser, Bachelard, Durkheim, Habermas, entre
outros, são tratados em poucas linhas, o que banaliza suas teorias. Podemos exemplificar
isto com Durkheim e Habermas, onde o primeiro mereceu quatro linhas, e o segundo,
quatro palavras na primeira menção e 05 linhas na segunda. Em que pese não serem
referências principais na elaboração de sua tese, suas teorias são grandiosas e complexas
por demais para tal análise, ou mesmo para corroboração de uma idéia. Analogicamente,
portanto, a tese de Gaya apresenta sintomaticamente esse problema de maneira similar ao
artigo.
Por outro lado, ao abordar a produção científica relativa às ciências do desporto,
Gaya tenta traçar um perfil das ciências do desporto que desemboca em publicações
multidisciplinares possuidora de interesses das áreas disciplinares as quais se originam, no
Brasil e em Portugal. Gaya destaca na área sócio-antropológica, 11,9% da produção
científica no período compreendido entre 1975 e 1990, com aumento significativo nos
cinco últimos anos. Um fator a ser considerado nesta área disciplinar,
“são as fortes influências político-ideológicas o que, ao
nosso ver, tem ocasionado expressões de sectarismo
que prejudicam sensivelmente o debate das idéias
científicas. Deste modo, as investigações de abordagem
sócio-antropológicas (principalmente as sociológicas),
que surgem na esteira crítica dos modelos empiristas e
objetivistas, acabam, ao assumir contornos políticoideológicos exacerbados, por reforçar ainda mais as
fronteiras multidisciplinares das ciências do desporto.
Este fenômeno pode ser facilmente observado no
âmbito da comunidade científica onde é evidente a
dificuldade de convivência e diálogo entre grupos de
pesquisadores provenientes da área biológica e do
treino desportivo e das áreas sócio-antropológica e
filosófica. Mas, sobretudo devemos reconhecer que
estas dicotomias acabam por trazer sérios prejuízos às
ciências do desporto na medida que o produto de suas
investigações se reduz aos limites estritos ou de uma
miopia empirista ou de uma falácia intelectualista com
evidentes dificuldades de desenvolvimento de teorias
capazes de expressar o significado transdisciplinar do
desporto contemporâneo”. (Gaya, 1994, p. 61).
Ao analisar em sua tese a produção de conhecimento relativo a estudos na área
filosófica, Gaya a considerou pequena - da ordem de 6,7% do total ou 62 trabalhos ­
pouco satisfatória em termos qualitativos e crescente nos últimos cinco anos dos quinze
analisados, tal como à área sócio-antropológica. Gaya também ressalta que tais trabalhos
têm pouco rigor metodológico, e que muitos deles
“configuram-se em citações de pequenos insertos de
importantes filósofos, muitas vezes em contexto
impróprio, com o intuito de justificar determinados
pontos de vista contra ou a favor do desporto. Portanto,
nestas
condições,
esses
trabalhos
acabam
por
constituir-se em discursos claramente de cunho
ideológico acarretando dificuldades à consolidação de
pressupostos que possam orientar reflexões filosóficas
sobre os problemas multidimensionais das práticas
desportivas.
Paradoxalmente, a dificuldade de uma relação
interdisciplinar é, da mesma forma, evidente na área
filosófica das ciências do desporto. Observam-se
tendências ou concepções distintas que se excluem
mutuamente. São discursos diversos que assumem
radicalismos críticos e exacerbados em relação ao
desporto. Discursos, em grande parte, elaborados a
partir de referenciais teóricos limitados a determinadas
correntes de pensamento que acabam por delinear
contornos ideológicos de tamanha rigidez e sectarismo
que impõem limites intransponíveis à possibilidade de
interação
entre
as
diversas
expressões
do
conhecimento.
Nestas situações o que se evidencia são argumentos
no intuito de afirmar a soberania das diversas correntes
filosóficas umas sobre as outras, permanecendo as
discussões relacionadas ao desporto e suas práticas
relegadas a um plano secundário.” (Gaya, 1994, p. 63).
Portanto, Gaya aponta ao longo de sua tese, conforme exemplificado, trabalhos
científicos que diz serem permeados em vários momentos por questões ideológicas e com
posições sectárias, demonstrando similaridade com as críticas implícitas no artigo - e
confirmadas em entrevista - relativas ao chamado grupo da esquerda radical da EF. Nestes
termos, conclui-se preliminarmente que tal grupo produz conhecimento e poderia
configurar como uma tendência da EF, na medida que faz parte dela e contém elementos
epistemológicos de compreensão sobre a identidade da EF.
Assim posto, cabe ressaltar, que um consenso hegemônico se faz em torno de idéias
que refletem uma hegemonia ou uma contra-hegemonia, e de diferentes maneiras. A EF
participa na formação de um consenso hegemônico com base numa hegemonia ou numa
contra-hegemonia de dentro de um Estado que se diz democrático e, embora o que seja
democrático neste Estado seja discutível e questionável, dentro dele é que estão os espaços
de ocupação para luta contra-hegemônica e formação de uma nova hegemonia. Para nós,
esta luta contra-hegemônica pressupõe alianças em torno de uma identidade entre
intelectuais que supere as diferenças e se forme pelas idéias sim, mas também pela forma
com que se chega a elas, sem conciliar o que não é passível disto - conforme aparentam
ser Gaya e Taffarel e Escobar - mas não afastando o que é passível de conciliação.
Neste sentido, compreendemos que não basta somente a perspectiva de interagir
com o mundo, de se inserir nele e viver em sociedade, nesta sociedade, mas lutar para
transpassar enquanto interventor pedagógico, a maior aproximação com a compreensão da
realidade, como a inversão entre racional-irracional propiciada pelo sistema, ou seja,
entendendo o sujeito como parte integrante da totalidade na busca de uma sociedade sem
classes.
CAPÍTULO IV - CONCLUSÃO
4.1 – Conclusão:
Os dados analisados demonstram que a proposta do texto de Gaya quando
verificada em sua essência e combinadas com a sua tese de doutorado e entrevista, conotam
uma perspectiva que remete a propostas que ratificam posições hegemônicas na EF
brasileira, e se aproximam com uma vertente empírico-analítica relativa à identidade da EF,
na sua prática e, especialmente, na sua docência. Por conseguinte, foi verificado um
distanciamento pari passu do referencial marxista e, conseqüentemente, de suas categorias
- na qual afirmou em entrevista manter proximidade –, em especial na práxis e na dialética,
ou seja, tanto na filosofia quanto no método.
O artigo de Gaya foi elaborado com propostas de também instigar o debate,
criticando – ainda que dissesse ser de forma implícita – uma vertente da EF que chamou de
esquerda radical. Nestes termos, o debate prosseguiu com o editorial chamando exatamente
intelectuais considerados membros desta vertente marxista referida, o que aparentemente
não foi casual, mas deliberado, provocando naturalmente um acaloramento no debate, até
por Taffarel e Escobar perceberem, possivelmente, a crítica implícita ao chamado grupo de
esquerda radical da EF.
Entretanto, embora atenda a uma perspectiva hegemônica, no sentido gramsciano do
termo, o artigo de Gaya avança no sentido da delimitação de uma identidade da área, bem
como no debate epistemológico, sendo suficientemente crítico relacionadamente a
perspectivas que não incorporam elementos fundantes de uma prática social - como os
valores, por exemplo. Além disso, tais perspectivas desconsideram a EF enquanto uma
intervenção pedagógica, conforme foi exemplificado pelo próprio Gaya quando se referiu a
tendência que identifica a EF enquanto ciência. Neste sentido, a proposta formulada por
Gaya é claramente progressista.
Noutros termos, Gaya encaminha sua proposta epistemológica para uma concepção
de EF como um fim em si mesma, distanciando-se tanto da filosofia quanto da ciência, não
incorporando elementos que propiciariam uma concepção no conjunto, no bojo da
totalidade que a abrange. Numa perspectiva contra-hegemônica, a EF poderia, enquanto
intervenção pedagógica, propiciar a tomada de espaços deixados pela hegemonia vigente
nos seus diferentes ambientes de atuação, com destaque para a Escola, aparelho de luta
ideológica que necessita de maior incorporação de sua importância pelo docente enquanto
intelectual orgânico que atua nesta intervenção pedagógica.
Taffarel e Escobar, por sua vez, tentaram ao longo do seu texto demonstrar as
contradições no interior do texto de Gaya, mas incorporaram uma certa radicalização na
forma com que escreveram seu texto. Esta radicalização compromete seus esforços de
verificação de tais contradições e, dialeticamente, acaba por ocultá-las. Este fato revela-se
quando analisamos o seu texto de crítica ao de Gaya, visto que não ocorreu a radicalização
proposta no texto das autoras referente ao conteúdo escrito por Gaya. As críticas, em sua
maioria, eram pertinentes, mas careciam de maior aprofundamento teórico devido à sua
natureza, limitado claramente por se tratar de um artigo de poucas páginas, o que não
impediria um maior cuidado na forma e ainda economizaria linhas importantes que
poderiam ser utilizadas para críticas de conteúdo, evitando adjetivações que pouco
acrescentam ao debate.
A forma com que Taffarel e Escobar escreveram o texto acabou por propiciar
posteriormente um deslocamento no debate epistemológico, auxiliando contraditoriamente
aos que combatem a vertente marxista das autoras. Assim, os críticos a esta vertente
puderam defender suas posições de dentro da forma com que Taffarel e Escobar
escreveram em seu texto, como se o fato de ser marxista fosse ser radical na forma,
esquecendo-se que também ocorre o contrário, através, por exemplo, de ideólogos de
direita ou anti-marxistas dentro e fora da EF (29).
É pertinente salientar a forma e conteúdo parcial da crítica construída pelas
autoras do texto de Gaya, ao utilizarem-se da proposta teórica de Kosik. A referência da
primeira página do seu livro não clarifica sua idéia por completo e ainda aparece
invertida na ordem, pois seu principal argumento, embora parta da refutação da
pseudoconcreticidade, está na defesa da concreticidade.
A análise realizada pelas autoras, no entanto, revelou autenticidade teórica dos
princípios e valores estabelecidos, de acordo com uma determinada visão de mundo
marxista, estabelecendo uma construção teórico-argumentativa com coerência interna,
sendo singular a defesa destes princípios e valores contra-hegemônicos.
De outro modo, também o intelectual orgânico que atua no ambiente acadêmico
exerce liderança e é formador de opinião, organizador da cultura, contribuindo nas
diferentes manifestações contidas no conceito de hegemonia. Estas manifestações ocorrem
sob forma da manutenção da hegemonia, na luta contra-hegemônica e na construção de
uma nova hegemonia, onde novamente existirão espaços de luta contra-hegemônica para
obtenção de outra nova hegemonia, porém já com uma perspectiva qualitativamente
diferenciada, especialmente no que tange aos valores. Assim, os intelectuais orgânicos que
escreveram os artigos para a revista Movimento se enquadram em uma das perspectivas
citadas anteriormente, relativas ao conceito de hegemonia proposto por Gramsci, e exibem
importância fundamental para a área e para a sociedade.
Nos termos citados, todo movimento que ocorre na EF reflete no ambiente
acadêmico e vice-versa, num intercâmbio dialético que credencia os intelectuais orgânicos
mantenedores ou contestadores da hegemonia vigente a intervirem pedagogicamente como
mediadores ideológicos de uma massa de professores, influenciando-os em maior ou menor
grau. De outra forma, faz-se necessário repensar-se mecanismos de integração entre a
Academia e a docência nos diferentes espaços, como clubes e escolas, para participação
mais efetiva de intercâmbio, tanto dos membros da Academia quanto dos docentes que
promovem a intervenção pedagógica das massas, auspiciando um processo de
popularização do conhecimento e elevando o patamar de consciência da sociedade.
Desta forma, embora nenhum dos autores dos artigos analisados adote uma
perspectiva de neutralidade, cabe salientar que o intelectual não é neutro, pois tem uma
postura que antecede sua prática. Quando este intelectual faz o possível para adotar tal
neutralidade, acaba por recair numa perspectiva derivativa do Positivismo que tende a
enviesar o seu estudo, anulando sua contribuição pessoal. Por outro lado, numa perspectiva
goldmaniana, quando o intelectual subordina a ideologia aos fatos estudados, parte destes
fatos e consegue resultados mais transparentes e com posicionamentos mais explícitos no
encaminhamento de suas propostas e objetivos.
Cabe ressaltar que desde a seleção do problema a ser estudado até o referencial
teórico adotado, não nos livramos da ideologia, pois esta permeia a prática acadêmicocientífica. Diferentemente, quando a ideologia é sobreposta a esta prática, enviesamos as
análises e amarramos os resultados, desprovendo de significado o fazer científico e/ou a
docência.
Por outro lado, existem intelectuais que acreditam ser mais capazes de produzirem
sínteses, negando o intelectual orgânico que emerge de sua categoria profissional e exerce
liderança, embora seja desprovido de grande bagagem enciclopédica. Esta perspectiva
mannheimniana se enquadra numa tipologia epistemológica da concepção de intelectual
produtora de adeptos. Este intelectual paira sobre o senso comum e vincula-se ora a uma
ora a outra classe social conforme sua síntese. Deste modo acredita ser imparcial e, ao
mesmo tempo, realiza ingerências livremente. Nesta perspectiva o intelectual está numa
camada intersticial da sociedade, e também pode ser encontrado na EF ou em outra área de
conhecimento.
É pertinente salientar ainda a existência de uma hegemonia que se manifesta em
diversas vertentes, e que são transpostas, por exemplo, da política e da luta de classes, para
a EF e vice-versa, pois tal luta de classes atravessa todos os espaços sociais. Ocorre que,
embora a luta de classes seja uma realidade, deve perpassar o trabalho científico, mas sem
transpô-lo. A análise intelectual de uma área do conhecimento não pode subjugar-se a
questão ideológica, nem tampouco se abster da totalidade. Não podemos negar, no entanto,
que a questão da hegemonia é traduzida como uma construção pedagógica, manifestando-se
também na EF como um campo fértil – o da educação – na construção de um consenso em
torno de idéias, que produzam alguma hegemonia.
A aproximação de Gaya com propostas hegemônicas e Taffarel e Escobar com
propostas contra-hegêmonicas, acontece de maneira peculiar e, conforme afirmamos
anteriormente, de maneira diferenciada em relação a outras propostas hegemônicas e
contra-hegemônicas. Não cabe, no presente estudo, generalizar, mas sim particularizar a
análise realçando que não se pode nivelar a perspectiva de Gaya ou de Taffarel e Escobar
com outras perspectivas do tipo hegemônicas mais radicais ou contra-hegemônicas menos
radicais, respectivamente.
Assim sendo, acreditamos na importância da existência do capitalismo como etapa
de superação no sentido que é dado rumo ao socialismo. Nessa medida, o capitalismo é
fundamental enquanto etapa precedente.
Notas:
(1) – No Brasil destaca-se nas décadas de 60 e 70, a cientifização do esporte, com
importantes avanços no treinamento desportivo, na biomecânica e na fisiologia. Por outro
lado, houve um crescente número de Instituições de Ensino Superior oferecendo cursos de
EF, o que pode caracterizar os avanços desta área na época.
(2) – Para melhor elucidação do histórico da EF desde a implantação do curso de graduação
em EF na Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1939 até a Resolução 03/87, ver
também:
AZEVEDO, Ângela Celeste Barreto de. Novas Abordagens sobre o Currículo de
Formação Superior em Educação Física no Brasil: memória e documentos –
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PPGEF/UGF, 1999.
(3) - Grifo meu.
(4) - Kosik trabalha com a manifestação do fenômeno com uma pseudo-essência que
necessita ser ultrapassada para que se chegue à verdadeira essência que, no entanto, pode
ser alcançada pela via dialética. Isto não se manifesta, contudo, com um conceito de
verdade plenamente alcançável, mas com sucessivas aproximações em sua busca. Por outro
lado, Saviani (1986), ressalta que o binômio fenômeno-essência é similar ao empírico­
concreto, onde o empírico, ao mesmo tempo, revela e oculta o concreto. Para ele, o binômio
fenômeno-essência tem eco tanto metafísico quanto idealista, e que poucas vezes um desses
termos foi utilizado pelo Marx ‘maduro’. Apesar disto, segundo Saviani (1986), Kosik
recupera estes termos resultantes desse binômio e articula-os, com vistas à elaboração de
uma dialética da totalidade concreta.
(5) – COISA – Tudo aquilo que possui uma existência individual e concreta. Sinônimo de
objeto, portanto realidade objetiva, isto é, independente da representação. Nesse sentido, a
coisa se opõe à idéia. (Japiassú & Marcondes, 1996). Não se trata, contudo, neste estudo, de
tratar fatos sociais ou pessoas como coisas, pois acreditamos que os fatos sociais ou as
pessoas devem ser tratados de dentro dos fatos sociais, que são geradores de conseqüências.
Ou seja, conscientizar as pessoas ou grupos dos fatos conseqüentes que são provocados
quando existe adesão a determinados valores decorrentes do fato social e/ou que estão
implícitos ou explícitos neles. (Goldmann, 1980).
(6) – Kosik refere-se à dialética marxista
(7) – Também foram realizadas entrevistas com Silvino Santin, Hugo Rodolfo Lovisolo e
Lamartine Pereira DaCosta, autores de artigos escritos para a revista Movimento sobre este
debate. Em função do prazo de entrega da dissertação, somente foi inclusa a contribuição
de Silvino Santin, na íntegra no anexo 03. As outras entrevistas, não menos importantes,
poderão ser utilizadas em estudos posteriores.
(8) - Giroux (1992) aborda significativamente a função dos intelectuais na sociedade. Ele
discute a função política dos intelectuais, defendendo a necessidade dos professores
identificados com a pedagogia radical, serem intelectuais transformadores. Neste sentido, a
escola seria um espaço onde cabe a oposição, e a pedagogia radical uma política cultural. O
autor focaliza o contexto norte-americano para propor suas idéias, entendendo-o, no
aspecto educacional, como em crise. Para ele, a docência não só se proletariza pari passu,
como vêm sendo subjugada à divisão social e técnica do trabalho. Deste modo, as forças
político-ideológicas que estão envolvidas neste processo são similares às dos países
periféricos. Cabe acrescentar que, para esse autor, o intelectual enquanto categoria formata­
se como fornecedor de bases teóricas examinadoras da atividade do professor, visando o
esclarecimento das condições que propiciam o trabalho intelectual e desvelando ideologias
e interesses que o trabalho docente produz e legitima.
(9) – O termo intelligentsia aparece pela primeira vez na Rússia, no século XIX, como
inteligencija, referindo-se a um grupo social local. Hoje, possui um sentido de
convergência ideológica de um indivíduo ou grupo. (Bocayuva & Veiga, 1992).
(10) – Mannheim refere-se aos estratos que possuem renda e vivem dela.
(11) – A expressão “os intelectuais como organizadores da cultura” embora seja título de
um livro de Gramsci (1995), aparece somente de maneira esporádica em sua obra. Este
livro é um trecho dos seus escritos no cárcere, em forma de coletânea, o que não significa
que tal expressão não retrate a visão gramsciana da função dos intelectuais, mas sim que o
título do livro tem esse nome por causa dos editores. (Coutinho, 1981).
(12) – Por senso comum, Gramsci compreende como às camadas da população que não
tinham acesso à apreensão de elementos que podem ser entendidos como cultura, o que
ocorre com grande parte dela. Existe dentro do senso comum um núcleo sadio, que é
chamado bom senso, e que corresponderia a uma primeira etapa de desenvolvimento
cultural em direção a intelectualidade. Este processo está diretamente ligado ao avanço de
uma sociedade.
(13) – Neste caso, Gramsci chama o bom senso de senso comum ao referir-se ao estrato de
maior poder cultural frente à sociedade do primeiro em detrimento do segundo. Neste
sentido, o bom senso existe como uma camada mais intelectualizada, com uma visão de
mundo menos enviesada relativamente ao senso comum, embora seja parte dele.
(14) – Gramsci discorre sobre a formação dos intelectuais, que possui relação direta com a
formação do senso comum. Ver referências bibliográficas.
(15) – Gramsci traça um paralelo entre a formação e aquisição da linguagem num sentido
amplo, como um dos elementos responsáveis pelo progresso de uma sociedade. Em
especial, ele analisa os efeitos da construção da linguagem na Itália. Ver referências
bibliográficas.
(16) – Gramsci refere-se ao marxismo como ‘filosofia da praxis’, possivelmente por
encontrar-se preso, à época de seus escritos.
(17) – Freischwebende Intelligenz, é um termo utilizado por Max Weber para referir-se a
uma intelligentsia socialmente desvinculada (Mannheim, 1986). Em outra publicação,
Mannheim afirma que utilizou a expressão Relativ freischwebende Intelligenz, que quer
dizer grupo intelectual relativamente descomprometido e advém de Max Weber, mas que
não significa um grupo completamente afastado das relações entre classes, e pretendeu
demonstrar que “certos tipos de intelectual têm maiores oportunidades de testar e usar as
visões socialmente disponíveis e de experimentar suas incoerências” (Mannheim, 1956, in:
Foracchi, 1982, p. 106).
(18) - Jesus (1989) afirma que a dominação consensual ocorreria para Gramsci sem
utilização de violência como meio para o alcance desse domínio. Tal afirmação adquire
polêmica ao se perscrutar autores que se manifestem sobre tal questão. Bocayuva & Veiga
(1992), por exemplo, afirmam na mesma direção que Gramsci critica a idéia de assalto ao
poder e aponta a Revolução como processual e como guerra de posições. Outros autores,
contudo, negam que a posição de Gramsci era meramente estratégica ou revolucionária
com restrições, como Dias (1987 vols. I-II), onde afirma também a necessidade de
entendimento sobre com quem e contra quem Gramsci luta em seus escritos. A questão
aparentemente se encontra na aceitação ou não do conceito marxista de práxis
revolucionária.
O presente estudo admite considerar o consenso sem utilização de violência como o
meio mais adequado para tomada do poder numa sociedade, mas não parece ser exatamente
isso o que emerge do pensamento gramsciano. A resposta para esta questão parece estar no
conceito de guerra de posição X guerra de movimento, onde o primeiro momento é
tático, de ocupação dos espaços deixados pela hegemonia vigente até se encontrar num
momento onde existam condições objetivas combinadas com produção de subjetividades
suficientes que viabilizem a tomada do poder pelos proletários. A via para esta tomada de
poder, é dependente das circunstâncias de época e da complexificação da sociedade.
Ainda assim, Gramsci aparenta estar mais preocupado em encontrar os meios para
explicação da sociedade, ocupando uma lacuna marxiana do estudo da superestrutura - sem
negar que, em última análise ela é determinada pela infra-estrutura – e demonstrando
possibilidades de avanço dentro do próprio sistema vigente. Além disso, aponta para os
benefícios de uma sociedade socialista, bem como os seus limites, derrubando, por outro
lado, a tese de que o socialismo é o fim da história e que acabam as contradições com o fim
da luta de classes.
Portanto, parece ser mais central para Gramsci a tomada do poder pelos proletários
do que a forma com que isto ocorreria.
(19) - Lênin ou Lenine aparece citado por Gramsci também como Ilitch, Vilitch ou o maior
teórico moderno da filosofia da práxis por causa da censura aos seus escritos à época da
prisão. O pseudônimo Vilitch é proveniente de Vladimir Ilitch, primeiros nomes de Lênin,
juntndo a inicial ‘V’ + Ilicht, ou seja, de V. Ilicht decorre Vilicht.
(20) - Deve-se entender o sentido do termo metafísico utilizado por Gramsci em relação a
Lênin, como o “ponto mais alto da filosofia da práxis, e não como uma aceitação da
filosofia tradicional que Gramsci tenazmente combatia” (Jesus, 1989, p. 25).
(21) - Quando ocorrem binômios no pensamento gramsciano, pode-se considerar o segundo
termo como sendo o objetivo a se alcançar, o termo que subordina o primeiro. Não se tem
precisão sobre a sua consciência na utilização deste fato, mas parece que, mesmo que
estivesse inconsciente do ato, devido a sua consciência filosófica, este se transforma em ato
consciente. (Jesus, 1989).
(22) - Ferreira (1998), quando aborda a disputa entre intelectuais tradicionais versus
orgânicos na EF brasileira das décadas de 80 a de 90, coloca o intelectual orgânico numa
condição única de crítica à hegemonia vigente e com vistas à criação de uma nova
hegemonia. Este parece ser apenas um tipo de intelectual orgânico, mas existe na
perspectiva gramsciana, contudo, o intelectual orgânico do tipo cooptado ou vinculado
espontaneamente às classes dominantes, conforme descrito anteriormente. Cabe ressaltar
ainda, a existência de intelectuais orgânicos que, apesar de críticos à hegemonia vigente,
não visam na sua atuação a ruptura definitiva com ela.
(23) – Ver nota número 07
(24) – Neste exemplo, cabe tanto o sentido marxista de alienação relativo ao produto
conseguido através do seu próprio trabalho ou a ele próprio, quanto o sentido mais comum
de ignorar a realidade.
(25) - A palavra ‘somente’, está posta por causa da aparente perspectiva do texto de Gaya,
que a considera uma redução, quando compreendida como sendo também EF. No presente
estudo, a filosofia neste estudo é entendida como a síntese da totalidade, como a capacidade
de compreensão e intervenção do homem no real concreto.
(26) - Grifo meu
(27) – “Feuerbach resolve o mundo religioso na essência humana. Mas a essência humana
não é abstrato residindo no indivíduo único. Em sua efetividade é o conjunto das relações
sociais. Feuerbach, que não entra na crítica dessa essência efetiva, é por isso forçado: 1) A abstrair o curso histórico e fixar o ânimo religioso como para-si, pressupondo um
indivíduo humano, abstrato e isolado.
2) Por isso a essência só pode ser captada como “gênero”, generalidade intera, muda, que
liga muitos indivíduos de modo natural.” (Marx, 1987, p. 52).
(28) – Grifo meu.
(29) - Pode-se citar como exemplo disto, o filósofo Olavo de Carvalho, quando escreve
para centenas de milhares de leitores, que a intelectualidade marxista é culpada pela
rebelião nos presídios paulistas, pois
“... os acontecimentos sangrentos da semana passada
foram o efeito lógico e inevitável de uma ação coerente
contínua e pertinaz, empreendida pela intelectualidade
ativista na intenção de fomentar a revolta e transformar
o Brasil primeiro numa Colômbia, depois numa Cuba.”
(2001, p. 07).
4.2 – Referências Bibliográficas:
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TAFFAREL, Celi Nelza Zulka. Entrevista. Juiz de Fora: Anexo 02, 2000.
4.3 – Anexos:
Nestes anexos, estamos colocando a disposição do leitor os artigos de Gaya (1994) e
de Taffarel e Escobar (1994), que deram origem ao debate e foram analisados no presente
estudo, em conjunto com o artigo de Santin (1995), já do segundo número da revista
Movimento, que versa sobre esse debate (Anexo 01). Também anexamos às entrevistas
realizadas com Gaya, Taffarel e Santin (Anexo 02). Cabe ressaltar, conforme
anteriormente, que também foram entrevistados Hugo Rodolfo Lovisolo e Lamartine
Pereira DaCosta mas, em virtude do tempo definido para entrega deste estudo, não foram
citados e, portanto, não estão disponibilizados. Suas entrevistas, no entanto, servirão para
aprofundamento das questões abordadas, em épocas posteriores, bem como seus artigos
datados de 1995 e 1996, respectivamente, e de Walter Bracht (1995), Paulo Guiraldelli
Júnior (1995), Gabriel Pallafox (1996), assim como o livro de Mauri de Carvalho (1997),
todos relativos ao mesmo debate.
4.3.1 - Anexo 02: Entrevistas realizadas com Gaya, Taffarel e Santin, respectivamente.
- Entrevista com Adroaldo César Araújo Gaya. Gramado/2000
(André Malina) – Entrevista com o Professor Adroaldo Gaya, perguntando
primeiramente a sua identificação: nome, onde trabalha ...
(Adroaldo Gaya) – Bem, meu nome é Adroaldo César Araújo Gaya e trabalho na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e sou professor de educação física. Lá, foi
onde eu fiz meu curso de licenciatura, aonde eu fiz o mestrado em educação e, é lá onde eu
vivo, desde 1970.
(André Malina) – Me diga uma coisa, como é que foi a tua trajetória? Você pegou, fez
a graduação, mestrado e o doutorado, posteriormente, foi fora, não é isso?
(Adroaldo Gaya) – Eu fiz a minha licenciatura 70-73, e, naquela época, o meu grande
núcleo de interesse - que não deixou depois de ser também - era o treinamento desportivo.
O sonho era ser preparador físico, e eu tive professores que me deram assim, muito carinho,
me deram muitas indicações, e mais ou menos minha trajetória foi nesse ponto, no
treinamento desportivo. Me formei em 73, dei aula em escolas públicas, depois dei aula um
ano na cidade de Cruz Alta. Já na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fui fazer o
mestrado em educação, no programa em educação. Bom, esse mestrado, de certa forma me
levou a uma outra dimensão que foi sobre questões filosóficas, questões históricas, enfim,
numa área mais das ciências humanas. A primeira reação nesse estágio, foi uma negação de
um passado mais tecnológico, como diriam: tecnicista, biologicista, não sei o quê. Então eu
fiquei um pouco negando aquilo que eu tinha feito anteriormente. Posteriormente, comecei
a perceber que esta dicotomia é artificial e eu estava mais sendo ideologicamente levado às
questões de negar o esporte, de negar o rendimento, de negar a competição, de negar o
treinamento, toda uma questão ideológica, do que propriamente uma questão de
convencimento próprio. Bom, aí surgiu, nessa época, no Brasil, o Professor Manuel Sérgio,
que estava aqui, com a tese da “Motricidade Humana” e por questões de contingência,
desde Recife, foi um Encontro em Recife do CBCE, nós começamos a entrar em polêmica.
(isso mais ou menos em que ano?) Foi em Recife, acho que foi nos anos ... 86, ou no
início dos anos 90, não, não, foi por volta de 86/87/88. Tive um Congresso no Rio de
Janeiro, que foi o primeiro Congresso de Língua Portuguesa, aonde tive francamente um
debate com um professor muito forte, professor Manuel Sérgio, e aí então, nesse momento,
fui convidado pelo professor Jorge Bento e pelo professor Antônio Marques, Antônio
Porto, a fazer o doutorado em Portugal. Eu fui pra Portugal, e, chegando lá, a minha tese
era basicamente em cima da educação física, a questão da multidisciplinaridade, essas
coisas todas, e lá eu fui mais ou menos convencido, foi também uma questão casual:
estávamos discutindo, eu, o professor Jorge Bento e o professor Marques, estávamos
tomando um vinho, brincando assim, e aí ele falou das ciências do desporto, e eu disse:
“olha, a ciência do desporto não existe, isso aí é invenção”. Aí então, o Jorge Bento naquela
época me convenceu a fazer uma tese pra demonstrar que ciência é essa. Bom, aí eu fiz a
minha tese de doutorado que foi analisando a produção científica no Brasil e em Portugal
no âmbito das práticas desportivas, esportes. Essa tese foi fundamental na minha vida.
Porque? Porque ela me mostrou que havia, no meu ponto de vista evidentemente, um
distanciamento enorme, enorme, entre o que a Academia produz e a prática do professor,
do treinador, seja na escola, no clube, na academia, na piscina, na pista. Volto de lá com a
idéia de reorganizar a minha vida no Brasil, depois de quatro anos fora, com um grupo de
pesquisa e ia, num primeiro momento, passar a fazer uma radiografia do real, pra em cima
desse real então, propor algumas idéias de ordem pedagógica ou de ordem do treino, enfim.
Construímos um grupo de pesquisa, já fazem basicamente sete anos, vamos festejar este
ano, de um grupo de alunos, bolsistas, enfim. Nós começamos a fazer um convênio com a
prefeitura de Porto Alegre, e o nosso primeiro trabalho foi uma análise sobre o estilo de
vida, hábitos de vida, motivação, crescimento e desenvolvimento, aspectos nutricionais,
aptidão física, foi feito um perfil das crianças da Rede Municipal de Porto Alegre, que vai
dar, isso, num livro que, possivelmente, será publicado, cujo objetivo era ter indicadores da
realidade, e sobre ela então propor discussões, propor aspectos pedagógicos de intervenção.
Nesse meio tempo, entrou na nossa história da Universidade o Centro INDESP, o Centro
desportivo, que era mais voltado pros esportes de rendimento, enfim. E aí, eu parei pra
discutir sobre isso, e me colocou uma posição bastante interessante, porque diferentemente
da discussão usual no Brasil, eu não distingo esporte de rendimento, esporte escolar,
esporte de deficiente, (perspectiva de esporte educacional, esporte de rendimento, etc.)
eu entendo que a prática de esportes pode ter várias motivações pra fazer. Eu posso jogar
um tênis contigo, você estar jogando pra me ganhar, pra competir, e eu estou jogando pra
manter a saúde ou simplesmente pra tomar uma cervejinha depois do jogo. Eu acho que o
esporte tem esses vários sentidos. Eu posso dar a ele um sentido educacional, um sentido de
saúde, um sentido de rendimento, um sentido estético, enfim. Mas há algo no esporte, no
meu ponto de vista, que é sua natureza intrínseca que perpassa as suas várias dimensões, e
entre elas, por exemplo, o rendimento desportivo, a competição, são inerentes a ela. Eu
acho que nós no Brasil deturpamos muito a palavra rendimento. Bom, a partir daí então,
entrou a parte de esportes, nós participamos de três Jogos da Juventude, onde avaliamos
atletas e tal e coisa, então nós já estamos tendo assim uma preocupação de dois níveis:
primeiro, uma preocupação com a EF na escola e, tudo que nós fizemos, está muito
precário; e uma outra preocupação nossa também, que é com crianças e jovens que fazem
esporte de rendimento. Isto talvez seja minha trajetória nesse meio tempo, e eu passei de 90
a 94 em Portugal fazendo doutorado.
(André Malina) - Nessa sua trajetória, quais foram os autores, os teóricos que
te marcaram, te influenciaram mais nesses pontos que você demarcou, quer dizer,
quando você iniciou com o treinamento desportivo, depois quando você foi pro
mestrado de educação, depois quando você foi pro Porto, e quando você voltou, que
foi a época que você escreveu o artigo?
(Adroaldo Gaya) – Tem uma pessoa que marcou a minha vida na EF muito
profundamente, desde o treinamento desportivo até as questões mais filosóficas hoje, que
foi o Lamartine. O Lamartine Pereira DaCosta é uma pessoa que - aquele livro Ciência do
Treinamento Desportivo, que foi publicado nos anos 70, né? Foi à base dos estudos naquela
época – depois o Lamartine passa por uma fase voltada para o Esporte Para Todos, enfim, é
uma pessoa que marcou muito minha vida. (o Lamartine ou o Tubino?) O Lamartine. O
Tubino também, porque no treinamento desportivo nós jamais podemos nos esquecer a
importância do professor Tubino, e eu faço um parênteses pra dizer que não só a
importância do Tubino como professor e cientista, mas também com o seu papel de
administrador que foi muito importante para a História do Brasil no meu ponto de vista,
embora possa haver algumas divergências de ordem ideológica, política, mas eu reconheço
que a EF deve muito ao Tubino também, ao seu caminho. Fechando o parênteses,
posteriormente eu acho também que nós entramos naquela fase política, aonde a literatura
de comunistas franceses que fazem aquela crítica radical ao esporte, ali também foi muito
importante, e depois eu volto a ter uma retomada, uma mudança na minha vida, que foi o
doutorado. Foi ali que eu achei que deveria superar – desculpe a má palavra – alguns ranços
ideológicos pra tentar buscar algo mais ligado a realidade, o concreto, olhar com os olhos,
se possível, dentro das possibilidades – não digo neutro porque isso não faz sentido -, mas,
sem tomar uma posição a priori e forçar essa posição naquilo que eu ver. Digamos assim,
mais isento talvez, mais isento, e isso foi o que me deu assim uma linda alegria, que hoje eu
estou trabalhando muito, eu estou vendo um grupo maravilhoso trabalhar comigo, e isso
tem em levado grandes alegrias por um lado, e algumas tristezas no sentido que ainda
percebo, desculpe a minha, a minha arrogância talvez, não é essa a minha idéia, mas é uma
questão de muita honestidade contigo, em dizer que eu acho que infelizmente a EF
brasileira ainda está muito mais voltada pra disputas ideológicas do que propriamente para
a construção de um conhecimento. Esse artigo que iniciou o debate, ele nunca teve a
pretensão de se constituir naquilo que ele foi. É curioso isso. Aquilo foi uma aula inaugural.
Eu estava em Portugal e vim ao Brasil, e, como ia começar o ano letivo, o então Diretor me
convidou para que eu desse uma aula inaugural, já que eu estava voltando ao Brasil, e
aquele texto foi nesse sentido, de uma aula inaugural, e depois na revista foi publicado e
deu toda aquela série de debates, que foi muito importante, muito interessante, mas também
eu entendo que, no meu ponto de vista, muitas incompreensões de alguns críticos,
principalmente da Celi e da Micheli, em que eu percebi que a questão do artigo em si não
foi trabalhada, em prol de outros ataques que eram devido ao texto em si mesmo. Eu acho
que isso muito bem o artigo do Lovisolo depois retoma essa questão.
(André Malina) – Você acha que foi devido ao que? Devido à questão
ideológica? Você falou em ranço ideológico na EF. Você está se referindo a chamada
esquerda da EF marxista, ou à direita da EF?
(Adroaldo Gaya) – Eu não vou dizer que é à esquerda porque também me considero
uma pessoa de esquerda. Portanto, eu acho que esse grupo que nós estamos falando,
emboras sem citar, se acha mais esquerda do que os outros. Mais simplesmente é o grupo
da Celi Taffarel, o grupo do Mauri, da própria Micheli, embora seja muito heterogêneo. Eu
tenho uma admiração muito grande pela Celi Taffarel. Nós fomos colegas no CBCE num
certo tempo, o próprio Lino é uma pessoa muito inteligente, a Carminha, mas há diferenças.
Por que eu digo isso? Porque naquele texto da Celi e da Micheli fica evidenciado isso,
principalmente nos parágrafos finais, com aquele texto infeliz, que fere as pessoas que
estão estudando fora do país. Está trocando ouro por espelhos, não sei o que. O que mostra
claramente que era uma advertência de um grupo, dizendo olha aqui, você está indo por um
caminho perigoso. Como assim fosse uma declaração dizendo que eu estivesse excluído da
tal esquerda brasileira. Então isso mostra o que? Que havia exatamente uma preocupação
em atacar alguém que tinha se ligado a uma outra vertente de pensamento, e que, portanto
poderia trazer prejuízo ao pensamento hegemônico que esse grupo sempre tendeu a impor
ao Brasil, e eu acho legítimo, só me dei o direito de discordar. Então, o artigo tinha essa
idéia de entender, de classificar a EF, dar um conceito pra ela. Aí veio aquelas ofensas
todas, de simplista, de não sei o que, aquelas coisas, os adjetivos muito comuns nos nossos
encontros de EF, que não levam a nada, não fazem o conhecimento avançar, mas a gente
tem que conviver com isso também. Então esse trabalho tinha essa idéia. Eu queria
demonstrar, e talvez não tenha sido muito feliz nisso, que a EF não pode ser cerceada à
condição de ciência, e que no meu ponto de vista a EF é educação, e eu não vejo como a
educação possa ser feita sem iniciar por princípios axiológicos, de valores. Quem educa,
educa sobre valores, sejam eles éticos, estéticos, políticos, mas são valores, e
evidentemente os valores não são uma área de estudo da ciência, são da filosofia. Portanto,
se eu quiser enfiar a EF na ciência, certamente eu estou tirando muito da sua relevância, da
sua identidade. Por outro lado também, é evidente que a ciência é fundamental, quando
aplicada a nossa realidade, não se pode negar isso. Mas, enquanto for só ciência, não é EF.
Enquanto for só filosofia, não é EF. Agora, quando a filosofia e a ciência se exteriorizam
no ato pedagógico auxiliam a educação. Então a EF pra mim não é filosofia, não é ciência,
é pedagogia. Foi esse sentido que eu quis dar no texto.
(André Malina) – A filosofia então, pelo que eu entendi, está mais voltada para
o campo das idéias, enquanto que a intervenção seria mais pedagógica, foi mais ou
menos isto?
(Adroaldo Gaya) – É, é. No meu ponto de vista, a filosofia trata do mundo como ele
deveria ser, já a ciência trata do mundo como ele normalmente é, evidentemente
minimizando essa questão de verdade absoluta. Então eu acho que a ciência aplicada a EF
é algo mais concreto, empírico. É mais empírico, trata dos fenômenos como eles se
manifestam de algum modo. Já a filosofia é mais reflexiva, é mais da base dos valores do
pensamento, dos princípios. Eu acho que isso é importante. Como a educação parte dos
princípios, de valores, evidentemente nós temos que ter a filosofia como um dos pilares da
nossa formação, como também a ciência. Mas, veja agora, a EF é o ato pedagógico de
ensinar. É ali quando eu passo meus valores através das técnicas, enfim, a EF é esse ato
pedagógico. Por isso é que eu discordava do Manuel Sérgio quando ele queria propor a
motricidade humana como sendo a EF, porque reduz a EF a algo que no meu ponto de
vista não a caracteriza como deveria.
(André Malina) – Esse ato pedagógico, pelo que eu entendi é a aula (é aula, é
aula), deve ser – pelo que eu entendi do que você falou daquele patrulhamento
ideológico, policiamento ideológico que você se referiu - mais liberta, deve ser menos
ideologizada?
(Adroaldo Gaya) – Eu acho, sinceramente, e eu agradeço a oportunidade de estar
falando, desculpe eu já ter feito isso, mas eu quero deixar registrado o meu agradecimento e
a honra de estar sendo entrevistado sobre este tema. Bom, o que eu acho na realidade é que
a EF nas escolas não é permeada por isso. Os professores que estão nas escolas não estão
sendo permeados por este discurso. (esse discurso não chega?) Até chega, mas chega aos
ouvidos dos professores, mas não é inserido na sua prática. Possivelmente, eu estou fazendo
uma pesquisa com meus professores, e eu estou fazendo isto com uma doutoranda minha, o
discurso é mais ou menos este, agora, a prática é totalmente desvinculada desse discurso.
Uma prática tradicional, ou uma prática que se diz revolucionária, mas que não muda
muito, então, eu percebo que, lá na minha escola as coisas acontecem um pouco diferente
do que os nossos intelectuais pretendem que fosse. Eu posso dizer isso porque estou a
quatro anos investigando dentro da Escola, escolas carentes, vendo lá dentro da Escola,
professores, etc.
(André Malina) – Do ponto de vista filosófico, que você caracterizou como
dever ser, a EF deveria ser assim, ou talvez devesse ser mais – como você falou, se os
professores de EF tivessem melhor essa articulação realizada na sua prática – ela
deveria ser filosoficamente dessa forma, mais revolucionária, mais ideologizada, ou
mais distante, como você colocou anteriormente?
(Adroaldo Gaya) – Eu entendo de duas formas: talvez a primeira eu diria, como já
disse anteriormente, que o discurso da Academia é uma prática teórica, e há uma prática
prática, que é a prática do professor da escola. Essa prática pedagógica está distanciada do
saber científico da Academia. Eu acho que há um saber teórico e um saber prático. Este
saber prático não é investigado. Nós conhecemos um colega nosso, um grande professor de
EF, esse professor se aposenta, morre, e a pedagogia dele foi junto com ele, sem nunca ter
explicitado isso. O que a Academia faz está muito longe da prática. Ora, a ideologia é
inerente a cada um de nós, suas opções. Então, essa EF vai ser ideologizada na medida que
o profissional ou evidentemente nós, que temos um conceito mais de fraternidade, mais de
solidariedade, um conceito trabalhado nesse sentido, não tem como negar. Agora, pode ser
que do meu lado tenha alguém liberal total, que tenha princípios diferentes dos meus. Eu
acho que isso não tem como existir, a EF ideologizada, porque é a idéia hegemônica de
alguma corrente. O que eu acho é que a Academia tenta se impor, com uma certa ideologia,
oriunda de outras áreas, você sabe muito bem da onde, mas isso não chega até lá na Escola,
no meu ponto de vista. Os professores continuam tentando fazer das tripas coração pra
conseguir dar a sua aula, enfim. Deixa eu te dizer mais uma coisinha: desculpe, eu acho que
estou falando demais. (não, não, por gentileza, quanto mais você se estender, melhor)
(André Malina) – O artigo transmitiu tudo o que você queria, ou você acha que ele
não foi bem esclarecido em algum ponto que você queria esclarecer agora?
(Adroaldo Gaya) – Eu acho que talvez ele poderia ter tido um cuidado mais, mais
detalhado nas coisas, porque ele não tinha a pretensão de criar um debate tão grande
como ele criou, mas o que eu sinto mais, é que foi visto através de uma ótica que não era a
ótica intrínseca. O meu negócio era discutir EF, o que é EF, e não discutir se eu sou
simplista, alienado ou não. O artigo das minhas colegas Taffarel e Micheli foi exatamente
para o ataque pessoal, claramente para o ataque pessoal, tanto que eu tinha a resposta
para os artigos, e não o fiz exatamente porque a resposta também teria que ser a nível do
pessoal, e eu entendi que isso não iria colaborar em nada com aquele debate, então eu
resolvi me retirar do debate, e depois, para minha felicidade, o Lovisolo, o Lamartine, o
Pallafox, o Santin, o Walter Bracht, que é uma pessoa que eu admiro muito o Walter
Bracht, tenho um respeito acadêmico por ele imenso. Então as pessoas se manifestaram e
aí enriqueceu, mas o problema central do debate foi desviado. Eu acho que o professor
Lovisolo foi muito feliz, não por ter saído em minha defesa, mas foi muito feliz em colocar
esta questão.
(André Malina) – Desfocando um pouquinho o artigo, qual a sua conceituação
de intelectual? O que você compreende como intelectual, Já sabendo que eu trabalho
com Mannheim e Gramsci?
(Adroaldo Gaya) – Pra mim, o intelectual é aquele que trabalha com o
conhecimento, ou seja, é aquele indivíduo que deve, dentro das suas possibilidades,
trabalhar com a questão da cultura, com a questão do conhecimento enfim, trazendo de
certa forma, alguns pressupostos, sejam eles filosóficos, sejam eles éticos, estéticos,
políticos, construindo isso para que possa servir como base para uma aplicação posterior.
No meu ponto de vista, aí é interessante, eu entendo que intelectual, por exemplo, ele
deveria estar mais ou menos distante das questões ideológicas no sentido partidário, radical,
enfim, e sectário. O intelectual tem que ter liberdade de circular o mundo todo e tem que ter
liberdade de expressar a sua criatura intelectual, e o que eu acho, você tem todo o direito de
não concordar comigo evidentemente, é que no Brasil, os nossos jovens da faculdade de
EF, a eles já é atribuído que ideologia eles devem ter. Não há espaço para as outras
discussões. É imposta uma certa ideologia como a única, e o mais curioso de tudo meu
amigo, é que essas pessoas de uma só ideologia, se dizem dialéticos. (você está se
referindo as pessoas que se dizem marxistas) É. Não todas, existem pessoas que são
extremamente competentes neste discurso. (você está dizendo que muitos professores
universitários são assim) É, é.
(André Malina) - Você vê isso do outro lado também? Pessoas que são anti­
dialéticas e também fazem a mesma coisa? Fazem a mesma coisa que você disse que os
sectários fazem, só que do outro lado? Ou você acha que mudou alguma coisa em
relação a quando você começou até a sua chegada à Movimento.
(Adroaldo Gaya) – Essa pergunta é muito interessante, e eu não havia, não tinha
tido tempo pra pensar sobre ela, muito interessante. Eu não sei se vou conseguir te
responder, mas o que parece é que essa carga ideológica da chamada esquerda brasileira,
ela foi tão forte, foi tão radical – e eu digo isso porque eu fazia parte desse mesmo
movimento – foi tão raivosa, que ela conseguiu afastar aqueles que tinham uma perspectiva
diferente. O CBCE se esfacelou como CBCE. O CBCE hoje infelizmente não passa de um
grupo de professores de EF. De ciências do desporto ainda tem muito pouco. Era um
colégio brasileiro de ciências do desporto que dá conta do esporte. Eu acho que talvez os
dogmáticos da outra linha resolveram, perderam seus espaços e foram encaminhar, foram
para outros lados. É por aí, eu acho que é muito pesado, muito articulado este grupo e não
passou um tempo ainda na História pra recuperar, eu acho, do mal que nós fizemos, embora
em grandes aspectos muito positivos existem também nessa época. Eu vejo por exemplo –
já mudou muito isso -, eu trabalho muito com a produção científica, eu tive analisando a
produção científica, e você observa, mesmo no último CBCE, os Anais do CBCE, você
observa que ainda continua aquele discurso. Um saco. Não faz avançar, mas as pessoas
continuam dizendo, enfim. O que me preocupa também é a produção do conhecimento, que
é feita muito longe do real concreto. Em outras palavras, eu vi uma palestra hoje de manhã,
de alguém que faz crítica ao esporte, de alguém que faz crítica ao joggin, e alguém que
nunca teve alegria de fazer um gol, uma cesta, ou fazer um joggin mesmo. Então, esses são
alguns dos intelectuais importantes da nossa área.
(André Malina) - Sobre a relação do artigo com a sua tese. Eu tive o prazer de
ler a sua tese, até porque o artigo é uma questão trabalhada em poucas páginas, e eu
queria ver melhor a sua idéia, e li a sua tese, espero que eu tenha compreendido ela.
(Adroaldo Gaya) – A minha tese tem que ser
recortada no espaço do esporte, ou seja, a minha
tese não é sobre EF. Por que? Porque a EF pra mim
é mais do que esporte em certos aspectos, e menos
em outros aspectos. A EF é mais do que o esporte na
medida que ela tem objetivo de formação, ela é uma
disciplina pedagógica, que vai usar o esporte como
um dos seus meios de educar, valores, atitudes,
condutas. Bom, o esporte por outro lado, ele é uma
prática cultural, um elemento da cultura corporal, e
tem a sua vida própria, que independe da EF.
Todavia, esse esporte, eu entendo que foi analisado
na minha tese de doutorado, ou seja, as ciências
desse esporte, não era EF, era ciência do esporte, e
nesse sentido, eu acabo a tese, e estou convicto disso
até hoje, de que as ciências do esporte não existem
epistemologicamente, não se justifica como tal, nem
ela nem a motricidade humana, nem movimento
humano como ciência, e também cito dizendo – e
talvez isso tenha sido importante na minha vida –
que foi demonstrado que a produção científica não
dizia muita coisa em relação ao cotidiano da prática
desportiva, do dia a dia. Eu costumo dizer o
seguinte: nas ciências do esporte, como na EF, as
perguntas que são feitas nas pesquisas, são
perguntas advindas das áreas das ciências mães,
biologia, sociologia, história, psicologia, então se
respondem às questões das ciências mães, e não se
responde às questões que são intrínsecas da
realidade da EF, do esporte. Então, eu acho que aí
segue esse caminho. Porque é interessante que esse
artigo da Movimento foi depois da tese, foi quando
eu volto a falar de EF num sentido mais amplo,
entendida como uma questão mais pedagógica, e não
em relação ao esporte. Então, o esporte para mim
poderia ter uma ciência talvez, o treinamento
desportivo ou coisa assim, mas eu acho que o
esporte também tem a sua vida cultural, que pode
viver muito bem sem a EF.
(André Malina) – Você então coloca as ciências do desporto como sendo uma
coisa e a EF outra coisa, ou a ciência do esporte contém a EF ou a EF contém a ciência
do esporte. Como é que se situa isso?
(Adroaldo Gaya) – Eu acho que um não contém o outro, eu acho que são coisas
independentes, mas com muitos pontos de interface entre elas. Por exemplo: a EF se vale
do esporte, se vale dos jogos. Então a EF, nessa perspectiva, abrange o esporte, porque dá
ao esporte todo um fundamento pedagógico pra educação de crianças, jovens e adultos. O
esporte pode não ter essa preocupação, pode ser no campo do lazer, do rendimento. O
esporte profissional, por exemplo, não está nem um pouco preocupado. Então, nessa
perspectiva ele tem uma característica que lhe é própria, e que neste sentido ele não tem
nada a ver com a EF, até porque ele é anterior a EF. Então é nessa perspectiva que eu não
vejo um abrangendo o outro. São fenômenos diferentes embora interligados.
(André Malina) – Então, o esporte é caracteristicamente uma ciência. Ele
contém um corpo de conhecimento próprio, na tua opinião ele tem um corpo de
conhecimento com essas características, que pode ser uma ciência.
(Adroaldo Gaya) – Isso, é por aí. O esporte não é uma ciência. Ele é um elemento
da cultura. Eu posso jogar futebol, basquete, vôlei, etc., sem saber nada das biomecânicas,
das fisiologias, da psicologia do esporte. Quer dizer: eu jogo, um atleta de fim de semana,
um atleta de recreação, um atleta de rendimento, ele joga, então, a cultura esportiva é isso.
Evidentemente que sobre esse esporte, sobre esse fenômeno, eu posso construir
conhecimentos científicos, o estudo científico do esporte. Só que o estudo científico do
esporte, e as práticas do desporto dentro do esporte, não são uma ciência. Eu posso estudar
o esporte no viés biológico, antropológico, sociológico, enfim. Então, é nessa perspectiva
que eu entendo que o esporte não é uma ciência. Talvez, forçando muito a barra – e eu
publiquei num artigo isso, em Portugal - entender como ciência do esporte, aquele tipo de
conhecimento ligado a parte técnica, do treinamento desportivo, da periodização do treino,
enfim esse tipo de coisa. Talvez aí se possa criar uma ciência, mas fora disso o esporte não
é uma ciência. O esporte pode ser estudado pela antropologia, pode ser estudado pela
fisiologia, então ele não é uma ciência, o que não impede de termos enfoques científicos
sobre ele. (na EF isso seria muito complicado, não é?) Sem dúvida que sim, embora
possa – desculpe se eu estou falando demais. (não, de jeito nenhum, de jeito nenhum.
Tem bastante fita aqui) É que eu estou abusando da sua paciência aqui, mas é que eu
achei interessante isso, uma das coisas que me chama mais atenção na EF, nos cursos de
EF, e nos mestrados e doutorados no Brasil, de que se faça o que não é EF. Se faz
biomecânica de calçados, se faz fisiologia, se faz antropologia, se faz coisas assim que são
muito mais de interesse da área de origem do que da EF. Na minha Universidade, os
programas de doutorado e de mestrado, se observarmos às áreas temáticas, nós vamos
encontrar um ou dois professores cuja preocupação é a Escola. Os outros estão preocupados
com as questões da antropologia, com outras questões, enfim. Interessante isso, porque é
importante nós sabermos que o professor de EF, os intelectuais, estão criando um fosso
entre EF enquanto prática na Escola, o esporte enquanto prática no clube, numa
intelectualidade que, a meu ver, foge muito da sua exigência. Portanto, seria importante
recuperar as pesquisas – eu desafio muito os meus alunos a fazerem isso -, estudar a EF
escolar, estudar a EF na academia, nos clubes o esporte, eu desafio a estudar a EF. A parte
pedagógica, por exemplo, é importante desenvolver pedagogias, desenvolver análises
eminentemente ligadas a EF, e eu vejo que cada vez mais nós nos afastamos disso.
(André Malina) – Você acha então que nos afastamos, pelo que eu compreendi
da sua análise, de duas formas: uma ideologizando demais e outra fisiologizando
demais, ou antropologizando demais, e pouco da própria EF, de uma coisa que
emerge da própria EF.
(Adroaldo Gaya) – Exatamente, exatamente. Eu não sei se poderia ser tão radical
assim, mas eu diria que talvez nós queríamos uma EF virtual, que está longe da real. É só
ver esse Congresso, os discursos dos simpósios, que não é a EF que se faz na Escola.
(André Malina) – Dentro do seu artigo e da própria tese, você fala diversas
vezes em práxis, usa essa palavra. A que práxis exatamente você se refere.
(Adroaldo Gaya) – É um conceito talvez não muito bem aplicado. Quando eu falava
em práxis, a minha intenção era sugerir uma prática respaldada a partir de um
conhecimento teórico. Seria essa relação. Aquele professor do dia a dia na Escola, também
ele produzindo conhecimento, e trabalhando a partir de um conhecimento, enfim, a práxis
era essa íntima relação entre a teoria e o fazer. (mas ela não tinha a questão, digamos
assim, do aprofundamento teórico do que é a práxis mesmo, por exemplo: a práxis
grega) Não. Não tinha. Até porque a práxis grega não seria bem isso. A palavra não tinha,
talvez, até irresponsavelmente da minha parte, foi colocada de uma forma pouco embasada
filosoficamente.
(André Malina) – Você também fala no seu artigo, e também fala na sua tese,
que a EF caracteristicamente deveria intervir no mundo concreto. (sim) Deveria haver
uma intervenção no mundo concreto. Essa intervenção no mundo concreto, que se
pode chamar a categoria atividade, marxista, que também passa por aí, você quis dar
essa conotação marxista?
(Adroaldo Gaya) – Isso. Sem dúvida. Eu quis, mas havia uma intenção, talvez, uma
intenção muito mais implícita no artigo, uma intenção lá no fundo, talvez, que me moveu, e
eu estou sendo muito sincero com você, eu estou abrindo meu coração e mais outras coisas
(muito obrigado), e que eu acho importante alguém estudar isso, é que havia uma intenção
no fundo de mostrar, que aqueles que se dizem tão marxistas, não eram tão marxistas assim,
não é? E aí a necessidade de se dizer talvez algumas palavras tipo práxis, tipo intervenção
social. Me parece que eu queria dizer isso: que os nossos dialéticos eram muito pouco
dialéticos. (na verdade era uma crítica aos marxistas da EF, teóricos marxistas da EF,
você achava que eles eram pouco dialéticos) Sim, é isso.
(André Malina) – Uma outra questão, que eu já lhe perguntei, você fala que a
filosofia é mais no campo das idéias, e que a pedagogia interfere mais na prática.
(Adroaldo Gaya) - isso de ser mais no campo das idéias não quer dizer que seja
metafísica. Ela não trata de resolver problemas empíricos, ela trata de resolver problemas
de fundo, de princípios, e é essa sua grande relevância. Eu adoro filosofia. Ficou claro isso,
não é? Eu quero deixar bem claro essa idéia, de que essa divisão não significa juízos de
quem é melhor ou quem é pior. Nós não podemos viver sem filosofia.
(André Malina) – Não é isso, é porque, por exemplo, eu que sou marxista, eu
trabalho com uma filosofia eminentemente prática. Ela não é especulativa. Ela é de
intervenção no mundo concreto como você fala. Você não tem uma filosofia dissociada
da prática, você filosofa em cima disso, com ideologia. (eu concordo plenamente contigo,
mas a prática no sentido de fazer realmente, de fazer algo no dia a dia) É. É a alteração do
cotidiano. Então, quando você faz a crítica no artigo, a Celi Taffarel e a Micheli
Escobar, e outros também, você acha que eles se sentiram atingidos nessa questão?
Por que você fez a crítica, e depois eles te devolveram. Ou você diz que a sua crítica foi
acadêmica e a delas foi pessoal. Como é que você viu isso?
(Adroaldo Gaya) – Não, não foi nestes termos
isso. Eu diria assim: em primeiro lugar, que a minha
crítica talvez foi o que me moveu a escrever o artigo.
Me parece que o artigo não passa claramente isso.
Não tenho muita clareza disso, mas, eu tinha
intenção de dizer essas coisas, mas acho que no
artigo não está muito explícito isso. Sem dúvida a
resposta da Celi e da Micheli foram muito mais
veementes e muito mais pessoais do que a questão
que o artigo abordava. Então, houve ali uma clara
evidência de que, digamos assim, perdemos um
aliado da esquerda brasileira. Mais um que foi pra
Europa e voltou liberal ou coisa assim. Isso é o que
está explícito ali. Isso me chateou muito,
pessoalmente me chateou muito, pois o debate não
era pra ser esse, o debate era pra buscar uma
síntese, e aí pegaram frases, linhas do texto, e
fizeram com as frases o que bem entenderam.
(André Malina) – Você saiu realmente dessa chamada esquerda da qual você
freqüentava naquele momento? Você sentiu que saiu daquilo?
(Adroaldo Gaya) – Eu costumava, até em muitas
conversas que eu tinha com o professor Go Tani, ele
começou a brincar dizendo que eu fui expulso da
esquerda, que eu fui expulso da esquerda e que à
direita não me queria. Então eu estava em cima do
muro, não é? Vamos deixar bem claro isso: as
posições de esquerda são fundamentais. O que eu
estou chamando de esquerda, talvez, é esse grupo
que se diz tanto, se diz à esquerda, e usa isso como
uma categorização, característica. Eu não me sinto
menos à esquerda que nenhum deles. Até temos o
mesmo partido, temos as mesmas causas muitas
vezes, mas, é o trato da EF que eu vejo que nós nos
diferenciamos muito. Eu visitei um amigo de Santa
Catarina, que é o Kunz, meu amigo de muito tempo,
e nós temos posições bastante diversas em relação
ao esporte por exemplo, a prática esportiva, o
esporte na escola, o esporte da escola, temos
grandes diferenças. Agora, nós temos grandes
semelhanças também. Então, o que eu diria assim, é
que eu acho que eu posso discordar do discurso do
Kunz, mas isso não nos impede de termos uma
relação fraterna, cordial, e de seguirmos o nosso
caminho. Já com esse grupo, ou você pauta pelos
princípios ou você está fora, está fora, e isso eu não
vou admitir, pra mim, tá? Se tiver que ficar fora, eu
fico fora, muito bem. Então eu acho que se
aparelhou muito a EF, se aparelhou muito o CBCE,
se aparelhou muito as revistas do CBCE e se
aparelhou muito os nossos Congressos, e com isso
perdemos todos. Um aluno que queira discutir uma
questão simples, de como se trabalha uma técnica de
corridas de salto, num congresso é ridicularizado
como alguém alienado. Então esse tipo de coisa, eu
realmente não participo mais, e eu acho que todos
nós temos o direito de fazer a opção de estudar
aquilo que mais nos agrada.
(André Malina) – O que você achou das intervenções das outras pessoas nos
artigos posteriores ao seu?
(Adroaldo Gaya) – Eu entendi, por exemplo, que as pessoas, com exceção talvez do
Lamartine e do Santin, e também do Walter, vamos dizer assim. O Lovisolo tomou partido
no debate, claramente, não é?Eu interpreto, embora como crítica eu considero legítima ao
meu trabalho,, ele tomou uma posição de defesa, sobre a questão de como foi feita a
resposta das colegas. (você acha que ele tomou partido em relação a você?) É, ele tomou
partido a meu favor, digamos assim. O Lamartine foi um dos últimos debatedores, fez uma
síntese. Eu acho que foi bastante produtivo. O Walter Bracht ficou meio tentando, vou fazer
uma figura – o Walter se me ouvir aqui, vai ficar chateado – vamos recuperar esse cara pra
esquerda. Ele ficou tentando mediar a questão. O Pallafox foi claramente contra o Lovisolo,
atacando o Lovisolo, que tinha atacado a Celi, que tinha me atacado, então, quer dizer, ali
já tinha um outro discurso, que era o discurso de espaço, e o meu objetivo não era discutir
espaço, era discutir EF. Isso me honrou muito, sabe? Foram oito ou nove artigos, não sei.
(teve o Guiraldelli ainda) Teve o Paulo, eu gostei muito do artigo do Paulo. O Paulo se
posicionou me chamando de pragmático, não é? E o Paulo me fez pensar muito realmente,
com a advertência que me fez o Paulo, me chamou atenção para isso, e eu acho que o Paulo
tinha razão. Uma pena que foi muito curto o texto dele, podia ter se alongado mais, podia
ter aprendido muito mais com o Paulo. (No Silvino Santin, que você tinha começado a
falar, e depois modificou) O Santin foi prejudicado na revista – isso é bom que fique
registrado – porque o Santin seria do primeiro número da revista, e se eu não me engano,
foi no segundo. (saiu no segundo número) Era pra ser no primeiro. Então o Santin foi
publicado no segundo número, quando era pra ser no primeiro. Então, ele tinha perdido o
debate, porque o primeiro número era eu a Celi e ele, a primeira revista, e era pra levantar a
posição. Como não saiu no primeiro, ele foi pro segundo, daí o Santin perdeu a
possibilidade de interferir naquele debate inicial. O Santin foi muito prejudicado nesse
debate, embora ele também tenha ficado num jogo, falando da lingüística, da pergunta, do
porquê, se estava certo perguntar por quê, o que é EF. (como o Bracht também fez, que
disse que a discussão realmente não houve, não é?) É, exatamente isso. E eu acho que a
discussão realmente não houve, pelo menos na profundidade que eu gostaria que fosse. Eu
acho que descambou mais pra esse lado, dos grupos ficarem se digladiando, do que
propriamente o avanço da questão da Escola, embora o texto do Lovisolo seja interessante,
as questões de como pensar à EF, eu acho que ele faz com muita propriedade algumas
posições, embora a gente possa discordar. O Lamartine fez uma crítica interessante
também, e eu acho que disso tudo ficou uma evidência, que nós não sabemos ainda discutir
temas de uma forma menos guerreira, menos bélica. Acho que nós discutimos as posições e
não as idéias. (você acha que a discussão não foi, digamos assim, muito acadêmica,
quer dizer, foi mais pessoal do que acadêmica, a discussão toda?) É, eu penso sim. Eu
penso. Não sei. É muito subjetividade. Se eu pegar o texto do Lovisolo, ele foi mais
pessoal, o texto do Pallafox foi mais pessoal, o texto do Walter e o do Santin foram mais,
digamos assim, intrínsecos, de como foram escritos os artigos, tal e coisa. Acho que a
questão da EF mesmo, ela ficou devendo.
(André Malina) – Você acha que houve uma preocupação das pessoas em
delimitar um espaço próprio delas, ou seja, fazer emergir o que elas pensam da EF e
fazer vencer o que elas pensam da EF? Você acha que houve isso?
(Adroaldo Gaya) – Sem dúvida. Sem dúvida nenhuma que sim. No meu ponto de
vista sim. (tem algum artigo que você gostaria de destacar com essa ênfase?) O texto da
Celi, e do Pallafox. Esses dois, principalmente. Quem não pensa como eu é alienado,
simplista, e outros adjetivos que eles gostam muito de usar. Eu fui acusado de simplista, de
não dialético, de ter pegado autores que não são importantes, que são autores de ponta em
alguns trabalhos, por que? Simplista é um adjetivo que não acrescenta nada. Então, eu acho
que houve realmente uma perspectiva desse ponto, da Celi e do Pallafox também, que foi
importante, porque enriqueceu o debate, mas ele foi muito mais de demonstrar que quem
não pensa como eu é simplista, é alienado, virou índio, trocou ouro por espelho, enfim,
essas coisas desse tipo. É bom que eu te diga, até – eu estou meio constrangido do tanto que
eu estou falando aqui – (por favor, pelo contrário, quanto mais tempo você puder falar,
melhor fica elaborada a entrevista e maior a contribuição que você tem a me dar, em
relação a minha dissertação) Inclusive, houve um acontecimento lamentável, que foi na
Universidade de Coimbra, aonde houve, no Congresso de língua portuguesa, houve uma
manifestação de dois portugueses, ofendidos contra o artigo da Celi e da Micheli, por
chamar os portugueses de colonizadores, e que estavam trocando ouro por espelhos. E
também, eu me senti muito desqualificado, quando dizem que homens briosos, não sei o
que, foram para o exterior e trocaram ouro por espelho. Quer dizer, embora eu seja neto de
índio –aliás, tenho muita honra disso – eu não troquei ouro por espelho, e eu acho que isso
foi uma ofensa pessoal que desqualificou o debate, e eu acho que tinha mais coisas
implícitas aí, onde entrava o meu orientador junto, porque naquela época eu estava
discutindo muito com o Manuel Sérgio, quer dizer, tinha toda uma questão por trás. (quem
era o seu orientador?) O Jorge Olímpio Bento, que naquela época tinha feito algumas
críticas ao CBCE, tendo dito inclusive numa carta pessoal, que ele mandou, dizendo que o
CBCE era o colégio brasileiro contra o esporte, bom, o Bento tinha, tem algumas
discussões fortes com o Manuel Sérgio, que de certa forma foi o grande guru desse grupo
de esquerda, e tudo isso foi espetado naquele momento, simplista, alienado, trocou ouro por
espelho, português colonizador, enfim.
(André Malina) – Em seguida a isso, foi publicado em 97 um livro ainda sobre
esse debate. Um livro que foi feito pelo Mauri, e eu não sei se você teve oportunidade
de ler, se você leu, ele fala diretamente de você. O que você acha, como é que você se
manifesta em relação ao que foi escrito?
(Adroaldo Gaya) – Eu entendo também, nós fomos durante muito tempo grandes
companheiros, eu e o Mauri, mas o Mauri tem umas posições por demais sectárias, por
demais radicais, também não deixa espaço para quem pensa diferente. Então, não faz mais
sentido ter este tipo de discussões para marcar posição. Então, eu acho que o Mauri tem
muita preparação na EF, mas eu acho que não dá mais, muito, para levar a sério um debate
com o Mauri, na medida que ele não permite debate. Ele é o todo poderoso dono da
verdade, e se não for como ele quer, ele dá um jeito de ser como ele quer. Eu acho também
que o Mauri exacerba muitas críticas a outros colegas nossos, e que isso não vem a
colaborar com a EF. Eu acho que dentro da EF nós temos que discutir fraternalmente, pelo
seu bem. Eu acho que nós vamos ficando velhos e a gente vai ficando sensível com essas
coisas. Então eu te digo sinceramente: eu não tenho mais muita paciência com este tipo de
debate não. Este tipo de debate assim, onde não tem chance de chegar a uma coisa nova. Eu
não vou debater contigo aqui, nós vamos ficar quatro horas debatendo, para eu sair daqui
igual a como eu cheguei. Eu acho que, se nós vamos debater, nós temos que chegar daqui, e
sairmos diferentes depois do debate, eu sair pensando nas coisas que você me disse, ter essa
humildade, ver o outro como adversário, numa competição, mas onde ambos vamos fazer o
caminho juntos, sínteses. Então, se o debate não me permite sínteses, eu acho que não tem
porque ter debate. (você acha que no livro dele, não houve essa possibilidade, quer
dizer, de avançar mais, responder aquele livro e depois avançar mais? Não havia essa
necessidade?) Eu não tenho essa pretensão, talvez, de prejulgar. Eu acho que não houve
grandes avanços, até porque o Mauri quando cria os seus desafetos, ele também usa muito
isso nos seus textos. Então, eu acho que infelizmente a gente podia ter avançado mais,
embora eu ache que avançou bastante. O meu lamento é que se discutiu menos EF, e mais
questões de posicionamento pessoal e de grupos.
(André Malina) – Com relação à hoje, trazendo para atualmente, qual a sua
atual concepção de EF?
(Adroaldo Gaya) – Acho que mudou muito pouco. Eu continuo usando àquele
conceito, que a EF é uma disciplina normativa, de valores, atitudes, habilidades e condutas,
e que através dos elementos da cultura corporal, o jogo, o esporte, a dança, as lutas, tem
essa responsabilidade da formação de crianças, jovens e adultos. Eu acho que a EF, estou
convicto que a EF é isso. Ela é uma pedagogia, ela é uma disciplina de formação, e por isso
que eu fico as vezes indignado com a questão de tanta gente querer fazer dela uma ciência,
o que vai tirar muito da sua principal característica, que é a pedagogia. Então a EF pra mim
– e aí eu concordo muito com o Walter Bracht, o conceito que ele usa sobre EF escolar,
como local de EF relamente – Mal eu penso também que a EF – se me permite avançar um
pouco mais – (claro, por favor) na realidade, ela precisa assumir mais os compromissos da
sua especificidade, que é a educação da cultura corporal, e cultura corporal não é falar do
esporte, dizer quem é que é campeão olímpico, saber quantos esportes, as regras dos
esportes. Cultura corporal no meu modo de ver, é que as pessoas façam tenham condições
de acesso a todos os esportes. Jogar o seu voleizinho, o seu basquetezinho, dançar, fazer o
seu joggin, enfim, e a Escola tem essa formação, para que a pessoa possa ter essa cultura
corporal, e isso, no meu ponto de vista, é muito mal trabalhado. Um segundo aspecto
também, eu entendo que a EF precisa voltar também para as preocupações também com a
saúde. E isso também, o próprio artigo publicado pelo Guina, Marcelo Guina (Marcelo
Guina Ferreira) numa revista Movimento, criticando os trabalhos do Dartagnan Pinto
Guedes, no meu ponto de vista, o Guina está desfocado do assunto. Há aí uma proposição
técnica do nosso amigo Dartagnan Pinto Guedes, no sentido de propor uma política de ação
através da EF, e que é descontextualizada no debate com o Guina, e a EF nega isso.
Fizemos uma pesquisa nos últimos quatro anos com crianças e jovens da Rede Municipal
de Ensino, em Porto Alegre e cidades arredores, e tinham escolas que não permitiam que
nós entrássemos, porque nós íamos fazer avaliações da aptidão física e da saúde, e diziam
que isso era voltar ao século XIX, que nós éramos higienistas, que nós éramos fascistas.
Então, eu acho que a EF precisava retomar essas preocupações com a questão do corpo, e
eu acho que está muito longe ainda disso.
(André Malina) – A sua concepção de mundo, quer dizer, eu parto do princípio
que a concepção de mundo é inerente aos seus atos, quer dizer, você carrega essa
concepção de mundo para você fazer algo. Consciente ou não, você carrega essa
concepção de mundo, e ela determina suas atitudes, profissionais, enfim. Ela é a
mesma de antes, ela mudou em alguma coisa, e em que ela mudou?
(Adroaldo Gaya) – Eu acho que ela é a mesma de antes. Eu quero um mundo
solidário. Eu quero um mundo aonde o outro seja seu parceiro no dia a dia, um mundo
solidário, um mundo até sem desagregações, principalmente de ordem sócio-econômica no
nosso país. Eu quero um mundo democrático. Eu quero um mundo aonde o cidadão seja
respeitado, um mundo construído com a participação coletiva. O que mudou talvez, foi que
hoje eu levo essa luta por um caminho diferente de anteriormente. Eu entendo que durante
muito tempo fiz discursos muito veementes de exclusão do outro. Parece assim – vou fazer
uma figuração – que nós queríamos eliminar o inimigo, em vez de convencê-lo a participar.
Só que, ao tentar convencê-lo, eu corro o risco de ser convencido também. E hoje talvez eu
me sinta mais livre para incorporar as diferentes idéias, sem que isso me agrida
fundamente. Agora, os meus princípios, continuam sendo os mesmos. (princípios éticos)
Princípios éticos. Não é possível – vamos citar um exemplo claro – Nossa pesquisa que foi
feita com crianças da periferia de Porto Alegre, mostra que 92% das crianças da Rede de
Ensino, de 07 a 14 anos, não têm oportunidade de praticar atividade esportiva orientada. O
esporte hoje em dia, nós sabemos, já é um meio de ação, não é pra todos. Noventa e poucos
por cento estão excluídos. Então vamos dar o esporte pras crianças também. O esporte
como a arte, como dança, o teatro, como as artes plásticas, que as crianças não estão tendo
oportunidade de fazer. Então eu acho que é isso que nós temos que trabalhar: oportunizar
aqueles que não têm acesso, a esse acesso. Contribuir nosso trabalho para o bem social,
para o bem dos outros, e não para o nosso estrelismo, para o nosso bem estar intelectual, ou
mesmo acadêmico. Então eu acho que a nossa vida é muito difícil, exatamente porque nós
vivemos num país onde as diferenças sociais são imensas, são imensas. O problema da
corrupção nos deixa completamente, às vezes, sem esperança, mas eu tenho esperança que
nós teremos que dar um jeito nessa caminhada. O mundo assim como está, com tantos
excluídos, com tanta injustiça, não é possível que a gente não possa dar um jeito.
(André Malina) – Me diga uma coisa: houve uma tentativa, o marxismo, é uma
tentativa de você reverter esse quadro de exclusão, que num determinado momento,
pelo que você falou, você estava imbuído desse espírito, de transformação por essa via.
Você hoje pensa diferente, ou já pensava diferente.
(Adroaldo Gaya) – Foi boa essa pergunta, vamos retomar alguma coisa.
Absolutamente, eu não nego essa visão, essa teoria marxista de intervenção social. Não é
isso, muito pelo contrário. O que eu acho é que às vezes ela nos é passada, ou é reproduzida
de uma forma maniqueísta, ou seja, eu uso aquilo para impor as minhas vontades e não
simplesmente para uma prática dialética, para fazer algo concreto. Eu entendo a teoria
marxista como uma teoria fundamental em termos de humanidade, em termos de sociedade,
e dela a gente não pode querer sair, porque na realidade nós não somos marxistas ou
deixamos de ser porque está na moda, nós somos porque os valores que nós temos levam a
nos aproximar daquele ponto de vista, e isso eu mantenho claramente. Evidentemente eu
mantenho essa perspectiva. A busca do socialismo para mim é uma luta presente, adequada,
e que temos que continuar fazendo. Então a diferença é que eu não sei do marxismo. Eu
talvez use algum instrumento de forma mais intuitiva, de uma forma mais intuitiva.
(digamos assim, o que te orienta mais não é uma distinção, no marxismo, entre teoria
e prática, é uma coisa mais idealizada, de uma coisa que eu quero alcançar, do que
propriamente na sua prática, porque ele prevê práxis revolucionária, prevê essas
coisas todas, de você pegar e realmente superar o adversário) Eu particularmente acho
que alguns elementos da teoria marxista não se aplicam mais na atualidade. Acho que essas
opções, da revolução, essas coisas assim, eu acho que esses valores – talvez um exemplo
seria esse – quem seriam hoje os donos dos meios de produção? Os fazendeiros estão
pobres, só os banqueiros é que estão bem na vida, e eles não têm meios de produção, o
meio de produção é o dinheiro.
(André Malina) – Então eu estou perguntando ao professor Adroaldo Gaya –
acabou a fita - se naquele momento em que ele escreveu o artigo, que ele retornou do
doutorado, se houve essa mudança em relação aos pontos que foram elucidados
anteriormente, da teoria marxista.
(Adroaldo Gaya) – Num sentido sim. Eu vou
contar uma historinha rápida: é que quando eu
cheguei em Portugal, eu estava também imbuído
desses valores do grupo, de impor uma visão
marxista, de esquerda, enfim. E, o que me faz viver –
eu tenho até uma história curiosa, eu tinha um
professor de filosofia, que era meu co-orientador,
um dia ele telefonou para minha casa, e disse que
teria na semana seguinte que viajar pra França,
Paris, e que eu iria dar aula para ele na faculdade
de filosofia, no curso de letras, eu iria dar aula para
ele sobre filosofia. Ele ia precisar de mim, e tal e
coisa, e me deu o tema da aula, que seria As
Semelhanças do Pensamento entre Comte e Marx.
Eu achei que aquilo não tem como, mas eu tive que
estudar então, buscar semelhanças entre ambos. A
questão do socialismo na ciência, enfim várias
questões. Chegando no dia da minha aula, o
professor me telefonou e falou que não ia viajar
mais, que tinha cancelado o compromisso dele e que
ele iria dar aula. Depois eu fiquei sabendo que isso
simplesmente tinha sido uma estratégia, para eu ter
que ler o Comte com mais cuidado, e realmente a
partir daí eu tenho uma mudança importante, onde
eu entendo que as idéias que eu coloque numa tese,
num texto ou num artigo, têm mais importância do
que os rótulos pra vender uma idéia. Eu costumo
dizer isso: hoje num congresso na Europa, se você
disser que é marxista, você toma uma vaia.
Antigamente você era aplaudido, ovacionado. Agora,
você pode passar todas às suas idéias marxistas, e
todos possivelmente concordem, porque são idéias
maravilhosas. Então, me parece assim, que essa
necessidade de mostrar carteirinha é que eu acho
que mudou. Eu não mostro mais no meu texto, eu
não tenho a necessidade de citar quatro vezes Marx,
ou cinco vezes Gramsci, sem nenhum tom pejorativo,
se tiver que tocar, tem que tocar, claro, mas eu noto
que às vezes a gente tinha, digamos assim, a
necessidade de dar uma pincelada numa frase pra
dizer que eu sou do PT, ou que eu sou disso ou
daquilo. Eu acho que não precisa. Eu sou do PT,
continuo no PT, fazendo militância política, mas isso
não precisa estar implícito nos meus artigos, porque
muitas vezes os meus princípios podem convencer
alguém menos preparado intelectualmente em toda
filosofia. Agora se eu disser, botar isto de cara: eu
marxista, esse cara nem vai ler meu artigo mais,
devido até aos preconceitos que possa ter sobre isso.
Eu acho que isso mudou. É jogar as idéias que eu
tenho, que vem do fundo, as idéias da corrente
marxista, jogar as idéias sem os rótulos, sem o
slogan, passa mais, enfim, do que essa posição, do
que o contrário. Eu acho que isso mudou.
(André Malina) – Existia lá na Europa, quando você estava lá fazendo o
doutorado, e isso se deu um pouco depois da queda do muro, isso desorientou um
pouco as pessoas. Como era isso lá na Europa, e em Portugal especificamente.
(Adroaldo Gaya) – É interessante. Em Portugal,
tinha duas posições. O próprio PC meio que se
partiu lá, porque havia os mais tradicionais, que
diziam que era um absurdo cair o muro, e que a
História iria mostrar que isso estava certo, e outros
que realmente ficaram desorientados, surgiram
partidos novos. Mas, por outro lado, o Partido
Comunista Português, principalmente no sul de
Portugal, ele tem uma força histórica muito grande.
Não vai ser qualquer coisa que vai modificar o
poder político que eles tem, principalmente no sul de
Portugal, no Alentejo, uma região maravilhosa, que
eles é que dominam há muito tempo. Então, isso não
mudou muito nesse sentido. Agora, os intelectuais
ficaram meio aturdidos. Muitos tentaram, eu acho
que foi um equívoco, tentaram se redimir das culpas,
julgaram que erraram, erramos, estamos todos
errados, e eu acho que é um equívoco, porque nós
não estávamos errados, porque nossas idéias, as
idéias que o marxismo nos passa são idéias de um
mundo que todos nós queremos ter. Eu não posso
também confundir lá uma prática, que a gente sabe
hoje que foi uma prática absolutista, a gente viu
coisas que a televisão nos mostrava nesse período lá,
que são coisas que aconteciam no mundo soviético, a
própria Alemanha Oriental, que o meu orientador, o
Jorge Bento estudou, na Alemanha Oriental, que o
dia a dia derrubou, mas sempre que se coloca uma
idéia em prática, algumas coisas são deturpadas.
Então eu acho que, mais do que nunca, hoje, eu acho
que o marxismo se impõe, como um paradigma de
pensamento que poderá trazer o progresso da
humanidade, a felicidade da humanidade.
(André Malina) – Você na tese utiliza como pilares teóricos, o Japiassú e o
Pedro Demo, são eles às suas principais fontes?
(Adroaldo Gaya) – Foi muito boa a sua pergunta. Eu, naquela época e continuo
tendo, era uma fascinação. O Pedro Demo fez muito à minha cabeça. Interessante que eu
não o conheço pessoalmente, mas até hoje eu ando com um livrinho dele na mão, sempre,
que é um livrinho. (Metodologia das Ciências Sociais) É, mas eu tenho também um
livrinho dele que é só sobre números, só quantitativo, é um livro, A Geografia da miséria,
uma coisa assim, aonde o Pedro Demo trabalha só com dados quantitativos. Eu levo
sempre, porque muitas vezes a gente houve a crítica mais quantitativa a partir do Pedro
Demo. Muitos fazem isso. O Pedro Demo tem um texto mais recente, onde ele é só
quantitativo, aonde ele mesmo diz no texto, essa é uma análise quantitativa, etc, etc. O
Pedro Demo sem dúvida nenhuma foi muito importante. O Japiassú teve uma importância
fundamental na minha vida, foi durante o mestrado. Talvez toda a minha abordagem
epistemológica - eu tanto gosto de estudar epistemologia – tenha sido de um livrinho –
livrinho não, desculpa, livrinho carinhosamente falando – um livrinho do Japiassú, que eu
tive uma dificuldade de entender naquela época, lia várias vezes, que era. (O Mito da
Neutralidade Científica) Não, antes desse. (era um livro que fala de epistemologia
genética, de Popper) Isso, isso, é esse livro, é muito importante. E também foi muito
importante na minha paixão pela epistemologia, o famoso debate entre Popper, Kuhn,
Lakatos, etc. E aí o Lamartine tem uma importância. Eu queria fazer justiça em relação a
uma pessoa que na minha vida foi fundamental, fundamental, que é o Alfredo Faria Júnior.
Devo a ele muito, muito mesmo, do pouco que eu consegui fazer, o Alfredo foi uma pessoa,
um intelectual, de muito debate, muita luta junto, de muito apoio moral e pessoal. Inclusive
eu devo a minha ida ao Porto ao próprio Alfredo Faria Júnior. Mas, o Lamartine também,
na área da epistemologia, foi uma pessoa que sempre me ensinou muito. A gente sempre
que se encontra debate muito, ele está sempre te desafiando a fazer alguma coisa nova. O
Hugo Lovisolo, que é uma pessoa mais recente, a gente tem traçado algumas conversas. O
professor Vítor Marinho tem uma importância crucial, naquele livro, O que é EF, tem uma
importância crucial, depois nós tivemos um debate muito forte, num congresso que teve, e
eu até já tive a oportunidade de me desculpar, tendo em vista que eu acho que foi um mau
entendido, e que talvez eu tenha passado um pouco dos limites também. Já pedi até
desculpas a ele naquele mesmo momento. Mas é uma pessoa importante, porque eu acho
que essa discussão do que é EF parte dele. Será jogo? Será desporto? Será ginástica? Ele
deve ter lido, no meu texto eu falo isso. Agora eu estou me lembrando de pessoas que
foram importantes, o João Paulo Medina, a Celi Taffarel, o próprio Lino, a gente convivia
bastante nesse período. (em termos teórico-filosóficos, essas pessoas que foram citadas,
o Popper, o Piaget) Tinha, tinha o lado epistemológico do Piaget. Eu vou te dirigir um
pouco, você vai ter que me agüentar agora um pouco. (claro, por favor) Eu acho que no
Brasil não se deu muita ênfase aos estudos do Piaget enquanto epistemólogo e muito como
psicólogo, e eu acho que a aplicação da teoria de Piaget no Brasil peca exatamente por isso:
a falta da leitura do Piaget enquanto epistemólogo. Em Portugal tem dois volumes grandes
do Piaget sobre a questão do conhecimento, a epistemologia da física, enfim. Então, se
discute muito pouco o Piaget epistemólogo e mais o Piaget psicólogo. O Popper também,
neste sentido, eu li toda a obra do Popper, ou grande parte dela, o Thomas Kuhn no sentido
do relativismo histórico que ele propõe, que eu acho que é o maior avanço da ciência
moderna. Acho que ele viabilizou essa possibilidade do relativismo histórico que ele
coloca, embora ele não quisesse ser relativista, ele mesmo diz que não é relativista. Mas ele
propõe o relativismo histórico através dos paradigmas. Acho que foi a primeira grande
rachadura na ciência positivista.
(André Malina) – Na sua tese, que acabou desembocando no artigo, você optou
por alguns autores que, digamos assim, te iluminaram mais? Quem foram as pessoas
que te iluminaram mais?
(Adroaldo Gaya) – Eu vou lhe dizer uma coisa: eu costumo dizer para os meus
alunos de pós-graduação, é interessante: naquela época, eu lia o Popper, o Khun, o Lakatos.
Eu tinha crises, eu costumo dizer crises, porque eu lia um e concordava com aquele, achava
maravilhoso, aí quando eu lia o outro, eu concordava também, e este era contra o outro.
Então, eu ficava naquela insensatez, e aí teve um rapaz que fez uma observação muito
importante sobre esses filósofos, o Adalberto, ele me ajudou muito, sabe? O professor Jorge
Bento, meu orientador também. Então, me ajudaram muito nessa questão. Mas, eu te
confesso que na tese, teve um momento que eu tomei a decisão sem estar convencido. O
tempo urgia e eu tomei uma decisão basicamente, assim, abstrata: bom, não dá pra ficar
mais nessa dúvida existencial, eu tenho que assumir alguém aqui pra seguir esse caminho.
Aí eu peguei mais um lado khuniano, um lado que entra Morin, também (Edgar Morin),
sem estar muito claro como entrou, meio a fórceps. (retomando a entrevista, porque
passou o professor Jorge Bento, que foi orientador do entrevistado) Então, foi
interessante. Eu tomei essa decisão, mas hoje, curiosamente, eu estou dando um seminário
de pós-graduação no doutorado, também sobre a filosofia da ciência, e estamos discutindo
o Popper, o Thomas Kuhn. Mas, hoje em dia, tem um autor que me tranqüiliza muito, e eu
fui também pessoa de paixões, de grandes paixões, digamos assim, paixões pelo Marx,
paixões pelo Foucault, paixões pelo Morin, e não me arrependo disso, isso dá, de uma certa
forma, porque isso dá condições da gente mergulhar nessas idéias. Mas o autor hoje que me
comove bastante, digamos assim, que me dá um equilíbrio, é o Henry Atlan, que é um
biólogo, mas também entra para a axiologia do judaísmo, e que defende um relativismo
fraco, que ele chama, ou seja, o conhecimento não é a realidade, o conhecimento é um
modelo do real, e esse modelo do real depende das circunstâncias, do momento histórico,
aonde eu estou colocado, e também, eu gosto muito desse autor, na medida que ele não
absolutiza o conhecimento científico único, o conhecimento verdadeiro. Seguindo
Wittgenstein, por exemplo, ele segue a ordem dos jogos de linguagem. A ciência é uma
forma de ver o mundo, como tem a forma teológica de ver o mundo, como tem a forma
filosófica de ver o mundo e como têm a forma do senso comum de ver o mundo, todos eles
com conhecimentos válidos. (seriam várias realidades, o que você está se referindo?)
Seriam formas de ver a realidade (olhares sobre a realidade) E o que eu acho interessante,
e que eu concordo também, ele dizia o seguinte: nós temos formas diferentes de ver o
mundo, todas elas com as suas razões. Aonde não há razão, é em juntar elas em um só
único olhar. Por que? Porque são jogos diferentes com linguagens diferentes. (ele acha
muito complicado fazer uma síntese da totalidade) O conhecimento único, como queria
fazer o positivismo com a ciência, isso não tem. Tem que ter o conhecimento do senso
comum, o conhecimento da filosofia, porque nenhum deles esgota a realidade plena. Eu
acho isso interessante. Então, eu como gosto de trabalhar com a ciência, isso não me
impede também de ter uma visão mais ideológica, uma visão mais teológica. Eu acho que
isso fica bem evidente de que eu posso ver o mundo de várias formas, e o que certamente é
preciso fazer, é quando estamos conversando entre nós, saber se nós temos uma mesma
ótica. Eu acho interessante essa posição, e o Henry Atlan tem trazido boas idéias a esse
respeito. (o Henry Atlan tem muitos livros publicados?) Tem. Tem dois livros principais.
Um deles, que praticamente está na minha cabeceira, é Com Razão ou sem Ela, que eu já li
várias vezes. Tem também o primeiro livro dele, que é O Cristal e a Fumaça. Todos eles em
edições portuguesas, eu não vi no Brasil. Tem outro, se chama Sim, Não, Talvez, que é uma
análise sobre a educação, onde ele pega o talvez como solução adequada para avançar. (o
relativismo) E tem o livro dele que é sobre a biologia, sobre a bioética, sobre o Projeto
Genoma, uma avaliação ética que ele faz, muito interessante também. Ele começou junto
com o Morin, inclusive o Morin cita num livro que começou junto com ele, e é um autor
muito interessante, e ele coloca uma perspectiva relativista, no sentido epistemológico.
(André Malina) – O senhor conhece bem os conceitos de Mannheim e de
Gramsci? (Conheço, conheço sim) você acha que o seu pensamento se enquadra em
algumas das duas teorias, ou em nenhuma das duas?
(Adroaldo Gaya) – Eu acho que estou mais pra
Mannheim do que pra Gramsci. Ele é um autor que
também me chamou muito a atenção numa
determinada época. Ele é um autor que a gente
estudou numa certa época, e que me dava uma certa
base, porque eu sou uma pessoa – não sei se é assim
com as outras pessoas – que tenho dificuldade de
ficar pendurado numa coisa. Parece que tem que ter
uma base para que eu faça as coisas avançarem, e
normalmente a sua base passa por diversos autores.
Foi, por exemplo, o Foucault numa época, como foi
também numa época o Marx, a teoria marxista,
agora eu estou em Henry Atlan. Eu acho que isso
são posições que eu assumo e que, certamente, são
muito carentes, até pela falta, digamos assim, de
cacoete filosófico para poder entender essas teorias
com profundidade tal como elas são, tal como elas
são expressas pelos seus autores. Eu tenho muito
medo que as minhas interpretações fujam um pouco
daquilo que os autores queiram dizer, na ânsia de
aplicar isso no meu conhecimento.
(André Malina) – Na sua tese, você utiliza-se de autores complexos, você se
utiliza do Habermas, de outros autores, enfim, mas você na aplicação deles, de análise,
do trato da análise empírica, você utiliza, no meu modo de ver, talvez pouco, ou talvez
fique mais implícito, talvez fique mais no campo das idéias do que na aplicação da
teoria. Isso foi uma opção, ou o que?
(Adroaldo Gaya) – Não, isso foi por falta de capacidade, competência, sem dúvida.
Habermas é uma coisa muito complexa (a teoria comunicativa) É muito, mas muito difícil
e, talvez, eu concordo com sua crítica, eu acho que ela é bem feita. Eu acho que a tese tem
duas partes: uma parte que fala e outra parte em que eu fui pra campo, e que talvez esteja
um pouco desvinculada. O trabalho prático é mais empiricista, é mais empírico, no sentido
de contar as produções científicas para verificar e discutir. Realmente, foi muito bem visto
de sua parte, que as coisas não fluem tão diretamente como deveriam fluir. Mas eu te digo
com tranqüilidade, eu acho até que por falta de competência, e também por uma mania
triste de querer ser intelectualista, mostrar que lê as coisas. Eu acho que isso passa muito
por nós. Tinha a preocupação de fazer uma revisão de literatura também, a preocupação de
dizer que leu os principais autores, eu acho que passa muito por isso. Sinceramente. À
questão psicológica, talvez por vaidade pessoal, não sei, mas você me fez ver isso com
muita clareza agora também, ver com muita clareza. A tese tem dois enfoques: o teórico
não se enquadra muito com o trabalho de campo. Eu te agradeço por isso. (muito
obrigado. Mas, se você tivesse que voltar a fazer a tese, a fazer o artigo, você o faria de
forma diferente, você hoje faria de forma diferente, ou você acha que aquilo lá foi
satisfatório?) Não, não. Na época, foi o que eu podia ter feito. A minha perspectiva e a
minha condição que podia, e foram quatro anos só fazendo isso. Eu não tinha crédito, eu fui
dedicado a este trabalho. Hoje eu estou fazendo através de uma orientanda minha de
doutorado, a análise da produção científica e do saber pedagógico do professor, ela está
juntando as duas coisas, e eu acho que agora nós temos que fazer diferente, nós temos que
tomar uma posição teórica mais consistente. Não adianta você por fragmentos de vários
autores e perder a consistência na análise. É como eu te disse: na minha tese, naquele
momento, eu acho que o fundamento teórico não serviu de fundamento pra fazer a análise.
Isso tem que ser corrigido. Nós estamos revendo, através da minha orientanda também, os
principais conceitos, porque ali tem também a questão da negação, a questão do pósmodernismo, que hoje já entra com muita força, do pragmatismo. Então, nós temos que ver,
num primeiro momento, aonde vai estar essa base de análise, que eu tenho clareza hoje.
Agora estão saindo alguns livros maravilhosos também sobre a ciência, sobre a teoria da
ciência, em Portugal, sobre a questão pós-moderna que eu acho que a gente tem que ter
cuidado pra analisar esse tipo de produção. Eu acho que antes de qualquer coisa tem que ter
uma base teórica que te fundamente, e eu acho que hoje eu estou em crise, vamos dizer,
crise intelectual, eu estou meio pendurado, sem saber aonde botar os pés, mas isso faz parte
do processo, eu já estou acostumado a ter essas crises. Eu gosto delas, porque em seguida
dá um avanço, mas dá uma angústia grande também, mas acho que é bom isso também. Eu
sou muito feliz na minha vida por viver com preocupações desse tipo, preocupações
intelectuais, do conhecimento, trabalhar com estudantes, trabalhar com alunos de pósgraduação, com professores, eu acho fascinante isso.
(André Malina) – Pra encerrar eu tenho duas questões aqui, são perguntas
objetivas: primeiramente, se em relação a essa entrevista que foi feita, se há alguma
restrição à utilização dessa entrevista para fins da dissertação, da publicação em livro.
(Absolutamente. Eu estou aqui para lhe servir no que for preciso servir, até te peço
desculpas mais uma vez porque eu falei muitas coisas que não teriam muito a ver com os
seus objetivos, mas foi um momento muito feliz para mim também, me fez repensar várias
coisas, perceber algumas críticas que tu me fizeste com muita propriedade e eu não tenho
nenhuma restrição para se usar. Eu também me coloco a disposição para em algum outro
momento que queira falar comigo. Eu estou à sua disposição) Encerrando, eu gostaria de
agradecer a você, principalmente pela extrema sinceridade com que foi feita a sua
entrevista. Você se colocou de uma forma bastante aberta, e isso é uma dificuldade
muitas vezes, porque as pessoas numa entrevista, quando você sabe que vai ser
utilizado, há uma dificuldade em você se expor da forma como você se expôs, que eu
acho que foi de uma clareza muito grande, e elucidou todos os pontos em que eu tinha
dúvida para minha dissertação, e gostaria então, novamente, de agradecer a você pela
entrevista que foi feita, nós estamos aqui na tarde, no Congresso de História, em
Gramado, no dia 30 de maio, nós estamos no Hotel Serrano (bancando o burguês aqui),
burgueses, e gostaria de saber se você tem alguma coisa a mais para falar, algo que
você queira, alguma passagem, porque tudo isso que está aqui vai ser transferido pra
dissertação.
(Adroaldo Gaya) – Duas coisas: primeiro eu queria te dizer que eu me sinto
extremamente honrado em ter participado deste trabalho, e também dizer da importância
desse trabalho, e daí a necessidade de nós também colaborarmos no sentido mais profundo
que a gente possa, e tu sabes como é que é alguém fazer uma dissertação, então é nesse
sentido de colaboração que eu participei, e evidentemente, repetindo, com muita honra, me
sinto muito honrado de ter tido esta oportunidade de conversar contigo, e me coloco a
disposição para qualquer esclarecimento que precisar, enfim, estou a sua disposição. Espero
que tenha muito sucesso, e que nos possa retribuir tudo isso com o seu trabalho, nos
fazendo as críticas que devem ser feitas, para que a gente possa também avançar, e que a
EF possa avançar, que o conhecimento possa avançar, e que todos nós possamos alcançar
outros níveis, enfim. É isso, obrigado. (muito obrigado a você)
- Entrevista com Celi Nelza Zulke Taffarel. Juiz de Fora/2000.
(André Malina) – Estamos aqui em Juiz de Fora, próximo a Universidade
Federal (UFJF), na qual a professora Celi Taffarel veio dar uma palestra, e eu estou
aproveitando para entrevistá-la sobre a questão epistemológica debatida na revista
Movimento, junto com o professor Adroaldo Gaya. São 19:02h, hoje é sábado e nós
estamos no dia 12/11, se não me engano. Eu vou iniciar pedindo que a professora Celi
se identifique, fale sobre a formação dela.
(Taffarel) – Quero começar dizendo que acho
extremamente importante o teu trabalho. Sou Celi
Taffarel. Eu nasci no Rio Grande do Sul, sou filha de
colonos, estudei na UFRGS, em Porto Alegre,
estudei na Universidade Federal de Pernambuco,
estudei na UNICAMP, estudei na Alemanha, fiz
graduação, especialização, mestrado, doutorado,
pós-doutorado, e agora estou completando 24 anos
de exercício profissional. São 24 anos dedicados à
educação física, ao desenvolvimento teórico da
educação física no Brasil, nesse momento, fazendo a
partir da Universidade Federal da Bahia, mas ainda
com relações com Pernambuco, com a Federal de
Pernambuco, aonde completo, no próximo ano, a
formação de 25 mestres. Esses 25 mestres foram e
são formados não só por Pernambuco, mas em
programas de pós-graduação em serviço social, e
orientando alunos da Federal da Paraíba, enfim,
configurando um quadro de formação de 25 mestres,
depois de 5 anos de formação do doutorado.
(André Malina) – Professora, a senhora fez a graduação em educação física, o
mestrado em educação física também, e doutorado em educação, e o pós-doutorado
foi em educação também ou em educação física?
(Taffarel) – A minha formação acadêmica, eu
preciso mencionar, eu fiz a licenciatura em educação
física, mas eu também estudei filosofia, mas eu não
fiz o curso regular, não peguei diploma. Eu fiz
disciplinas que me interessavam, porque entendia
que a filosofia é um aporte fundamental para nossa
área, assim como busquei o doutorado em educação,
já em decorrência de uma compreensão do
desenvolvimento teórico da nossa área e da essência
do que é a educação física, e por entender que todo
programa de pós-graduação no país, os que eram
estruturados na área da educação física, não
apresentavam o currículo favorável as minhas
intenções de estudo, e eu reconheci que seria no
campo da educação aonde eu poderia ter os
melhores aportes pra fazer os estudos, especialmente
no campo da formação profissional da educação
física, no campo da epistemologia, no campo da
metodologia, na prática pedagógica. Essa é a minha
formação.
(André Malina) – A senhora já tinha terminado o doutorado quando do início
do debate da revista Movimento?
(Taffarel) – Só para responder a anterior, lá na
Alemanha, eu fiz os meus estudos de pós­
doutoramento no Instituto de Ciências do Esporte.
Portanto, fui trabalhar com meus ilustres colegas,
professor doutor Dieckert e o professor doutor
Hildebrant Stramer, a quem eu devo mencionar
como colegas íntegros, colegas que sempre
respeitaram as minhas posições teóricas e que me
impulsionaram muito e me facilitaram muito nas
condições objetivas, os estudos. Quando nós
entramos no debate sobre “Mas, Afinal, O Que é
Educação Física?”, eu e Micheli (Escobar)
escrevemos esse texto, foi depois que eu já havia
concluído o doutorado. Eu concluí o meu doutorado
em 1993, voltei para Pernambuco, reassumi minhas
atividades acadêmicas, e nesse ínterim, nós
respondemos a uma solicitação do editor chefe,
Ricardo se não me falhar a memória. Ele fez um
contato, perguntando se eu aceitaria escrever para
um encarte especial, no primeiro número da revista,
fazendo um debate com o Adroaldo Gaya, a respeito
da questão: mas, afinal, o que é educação física? Eu
devo continuar falando? Você vai dirigir? Vai ter
que fazer perguntas? Veja só, eu vou recuperar na
história o que eu considero que são os elementos
centrais. Esse debate foi encomendado pela editoria
de uma revista, fundamentalmente porque ela estava
sendo lançada, porque ela tinha uma pretensão que
trouxesse as polêmicas centrais da área, e então ela
procurou privilegiar nesse primeiro momento um
conceito básico: mas, afinal de contas, o que é
educação física? Creio que o contato foi feito
comigo em função de já ter o editorialista
identificado que havia indicadores de divergências
nas posições entre Gaya e eu. É importante destacar
que o professor doutor Adroaldo Gaya, ele foi uma
pessoa que eu tive oportunidade de conhecer
principalmente quando da construção do Colégio
Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), quando
da administração do Colégio Brasileiro de Ciências
do Esporte, quando ele compôs comigo a diretoria
do CBCE. E, essa composição de diretoria me
permitiu, então, reconhecer um valorosíssimo
companheiro. Um companheiro crítico, um
companheiro que tinha formulações instigantes, um
companheiro que me deu muita força, uma pessoa
que eu tenho uma referência muito singular na
minha vida, porque ele foi um desses homens que me
deu força pra encarar muitos desafios que eu tive
que encarar na minha vida, entre os quais, ser
Presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do
Esporte, que vinha com uma tradição de só ter
presidentes homens, que vinha com uma tradição de
ter presidentes da área médica, e nós começamos a
estabelecer referências de ruptura, e ele constituía
justo esse Coletivo que assumiu essa tarefa histórica.
Então eu, pela prática demonstrada pelo professor
Adroaldo Gaya, me identifiquei muito com ele,
porque reconheci nele posições avançadas, posições
críticas. Sempre reconheci nele uma pessoa que
defendia um projeto histórico socialista, que
defendia uma concepção de homem emancipado, que
defendia uma perspectiva epistemológica marxista.
Eu reconhecia, pelo que eu tenho de elementos nas
mãos, pelo conhecimento que eu tenho acerca de
sociedade, de concepção de homem, de concepção
epistemológica, sempre reconheci o professor
Adroaldo Gaya nesse campo.
(André Malina) – Mas, professora, você reconhecia nele esse referencial, aquilo
que você acreditava que ele fosse, ou que ele acreditava nessas idéias, não é? Mas
quando da volta do doutorado - do professor Gaya - você achou que ele se mantinha
nessas posições, você achou que ele tinha mudado? O que é que aconteceu?
(Taffarel) – Quando eu me aproximei da leitura do texto do professor Adroaldo
Gaya por uma solicitação - e aí eu estou me referindo ao texto, e a nossa posição foi em
relação ao texto - , nós reconhecemos, e aí é importante mencionar que eu e a professora
Micheli, nós temos um trabalho muito integrado, nós temos um trabalho sempre muito de
diálogo, e eu dialoguei muito com a professora Micheli, e nós consultamos o editor, para
ver se ele concordava que eu e a professora Micheli cumpríssemos essa tarefa de fazermos
uma análise do texto do professor Adroaldo Gaya. Eles concordaram, e aí nós escrevemos o
texto juntos. A análise do texto nos possibilitou levantar alguns elementos, que apontavam
que o professor Adroaldo Gaya, nesse estudo, tinha feito uma opção epistemológica que era
contraditória a um dado projeto de sociedade, a uma dada concepção de ser humano, a uma
dada concepção epistemológica. Isso nós estranhamos. Isso não dizia daquilo que nós
conhecemos do professor Adroaldo Gaya, e isto fica evidente no texto, porque o texto se
propõe a discutir – e ele apresenta esses elementos – o conceito de educação física, e ele o
faz tomando como referências os conceitos formulados em diferentes países, com diferentes
autores, mas o texto é completamente desprovido de uma análise histórica. O texto é
completamente desprovido de uma crítica radical à formulação desses conceitos. Portanto,
nós identificamos que ali estava perpassando uma abordagem simplista de um problema
complexo, e que, do ponto de vista epistemológico, ele deveria ser severamente criticado. E
mais: levantamos ali, também naquele texto, a questão de que, se o professor Adroaldo
Gaya estava fazendo aquela opção epistemológica, ele o fazia porque isto era orientação de
um programa onde ele estava trabalhando. E aí, nós reconhecemos também, que esses
programas, eles não priorizam o marxismo, eles não priorizam a orientação marxista. E aí, a
crítica foi no sentido de que nós brasileiros, pelas nossas condições objetivas de vida, temos
elementos riquíssimos para contestar a forma como se dão as relações na sociedade
capitalista e de construir uma opção. Mas para isso, nós não podemos abrir mão da riqueza
que nós temos para fazer isso. E essa riqueza que nós temos para fazer isso, essa nossa
capacidade, essa nossa possibilidade que nos é legada pela referência marxista. Então, abrir
mão da referência marxista para ir trabalhar na Europa, sob orientação dos europeus,
especificamente os portugueses, com a abordagem científica, entendeu, que reduzem as
nossas possibilidades explicativas de um fenômeno complexo, e que contribui para nos
desarmar, é temeroso. Então, eu estou fazendo referência a esse texto, e esse texto deixa
passar isto. Não falar nisso seria desonestidade da minha parte, da nossa parte. Nós
tínhamos que abordar a questão naquilo que é crucial. O conceito que estava sendo
formulado ali é um conceito formulado dentro de uma referência epistemológica que
precisa ser questionada, e nós questionamos isto.
(André Malina) – Uma das críticas ao trabalho que você e a Micheli
elaboraram, foi de que vocês ampliaram a discussão além dos limites do que o texto do
Gaya se propunha. Você também achou isso, também verificou isso ou você acha que
a crítica foi na justa medida que você gostaria?
(Taffarel) – A crítica foi na justa medida que o texto viabilizava para nós naquele
momento. Nós tínhamos a responsabilidade de ler o texto e dar um contraponto ao texto.
Não o fizemos a partir do zero, a partir de referência nenhuma, nós temos uma referência
histórica, que orienta a produção do nosso conhecimento, e partir daí elaboramos. Portanto,
ao tecer a crítica ao texto, ela traz conseqüências e rebatimentos sim, ela rebate. Ela rebate
na proposição epistemológica, ela rebate em toda uma orientação epistemológica, e, através
de uma metáfora a gente procurou explicitar isso, que é a metáfora do final do texto, que é a
metáfora de trocar ouro por espelho. No meu ponto de vista, não avançar no ponto de vista
epistemológico, na radicalidade de uma possibilidade histórica de produção do
conhecimento, que se coloque numa perspectiva crítica, que defenda efetivamente uma
perspectiva de alteração das relações sociais de produção, ou seja, que construa uma opção
ao capitalismo, que se sustente em cima de uma perspectiva ontológica, ela deve ser
questionada, e eu sei que nós, eu pelo menos sinto, eu sinto isto, nós não fomos
compreendidas, é um direito que as pessoas tem, de compreender como elas bem entendem
aquilo, mas isso não significa que as coisas são aquilo que as pessoas representam só, mas
nós entendemos que nós fizemos uma crítica que por ter uma referência epistemológica
radical, ela rebateu, rebateu longe.
(André Malina) – Essa crítica que eu falei, só citando, foi o professor
Lamartine e o professor Hugo Lovisolo, que foram duas pessoas que fizeram esta
crítica. Primeiro você teria levado a uma dimensão, que o Gaya não teria essa
proposição, segundo que teria usado a teoria marxista para fazer uma crítica pessoal,
como se fosse uma crítica pessoal ao Gaya, uma questão de confrontação pessoal.
(Taffarel) – Em primeiro lugar, os colegas professores doutores Hugo Lovisolo e
professor Lamartine, eles estão fazendo uma análise correta dentro do referencial deles,
dentro do referencial deles, porque não são homens que falam de lugar nenhum. São dois
homens inteligentes e situados, e têm referências sim, e dentro das referências deles, eles
não têm outra coisa a dizer a não ser isto. Acontece que a referência deles não é a única,
não é exclusiva, quer dizer, tem outras referências. E aí, é importante que se estabeleça, que
se estabeleça nesse nosso diálogo, nessa nossa discussão, entendeu, aquilo que corresponde
a verdade. E onde está a verdade? Na minha cabeça? Na cabeça de Lamartine? Não, a
verdade está nos fatos, a verdade está nas coisas, está nas coisas em si, que nós temos que
ser capazes de abstrair, e que nós temos que ser capazes de elaborar e compreender
teoricamente. Então, eu não fiz ataque pessoal nenhum, isso foi uma tentativa de um monte
de gente, muitas pessoas quiseram dizer que eu ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya, eu
não ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya, respeito o meu colega professor Adroaldo Gaya,
respeito todo o trabalho que ele fez ao longo da história, respeito a nossa convivência, mas
me dou o direito de ter divergências e dizer que o companheiro, na sua trajetória, teve
aproximações com referências epistemológicas que o levaram a formulações como aquela
que nos coube analisar. E esta formulação que ele elaborou, expressou naquele texto no
qual nós nos posicionamos, merece questionamentos, e nós fizemos esses questionamentos,
e a ciência, ela evolui porque nós somos capazes de questionar.
(André Malina) – Mas, me parece que esse texto, o texto do Adroaldo Gaya, ele
converge, de certa forma, com a tese produzida por ele anterior. Me parece ser um
posicionamento assumido naquele momento, quase que um texto existencial, quase um
texto de libertação entre aspas, como é o termo muito utilizado por quem sai da
esquerda, não é? Você achou isso ou não?
(Taffarel) – Não, eu não posso, para não ser leviana, fazer colocações do tipo:
Adroaldo Gaya saiu da esquerda. Não, seria leviandade da minha parte. O que eu posso
dizer é que a base teórica, a fundamentação epistemológica daquele escrito de Adroaldo
Gaya, se contradiz com à referência marxista. E ao dizer isto, nós reconhecemos que esta
contradição a referência marxista, ela pode perfeitamente estar sendo influenciada por todo
um programa desenvolvido por todo um programa, por toda uma orientação, que nós
recebemos sim, quando nós decidimos fazer um programa de pós-graduação, e aí, esse
texto ele foi produzido dentro de um programa de pós-graduação. Ele representa uma parte
de um estudo de doutorado, que se coloca dentro de uma vertente epistemológica. Ou será
que nós brasileiros não temos a competência de verificar quais são as vertentes
epistemológicas que estão orientando os programas de pós-graduação em Portugal? O que é
que tem predominado? O que é que é enfático? O que está sendo trazido para o Brasil,
enquanto influência epistemológica? Será que nós brasileiros não temos capacidade de
fazer isto? Não podemos criticar isso? Na condição de brasileira, de professora de ensino
superior, de quem se propõe a fazer ciência no nosso país, eu quero discutir as bases
epistemológicas da produção desse conhecimento. E foi o que nós fizemos. Sem ofensas
pessoais, sem atacar o companheiro Adroaldo Gaya, sem nada disso. Isso é uma
interpretação de alguém que quer reduzir esse debate a um confronto pessoal, e isto é
equivocado.
(André Malina) – O professor Santin também se manifestou nesse debate em
1995, um ano após vocês, analisando em cima do texto, dizendo especificamente em
cima do texto. Já o professor Bracht procurou dizer que a pergunta estava meio
deslocada, primeiro se perguntou o que é, realmente é uma questão ontológica, e ele
cita Heiddeger, e que a questão estava mal colocada, que a discussão não era bem isso.
Talvez um certo afastamento, não houve um posicionamento claro, não identifiquei
um posicionamento claro. O professor Guiraldelli mais ou menos a mesma coisa,
enfim, diferentemente do professor Hugo Lovisolo e do professor Lamartine que
tinham um posicionamento mais clareado, não é? Mais desvelado. Como é que você
viu esse debate posterior? O professor Palafox também se manifestou, fazendo um
contraponto ao professor Gaya. Como é que você viu esse debate posterior? Inclusive
desembocando num livro, o livro do Mauri de Carvalho, um livro grande com uma
metodologia própria dele. Como é que você viu esse debate posterior?
(Taffarel) – Em primeiro lugar, esse debate se prolonga por mais dois anos, não é?
(só na Movimento foram mais dois anos, depois o Mauri de Carvalho escreveu um
livro) Então , é um debate que é sustentado por um longo tempo e demonstra ser um debate
significativo, que tem relevância. Se não tivesse relevância, não fosse significativo, às
pessoas não estariam debatendo. Ele é relevante, ele é significativo porque é crucial pra
nossa área, ele é uma necessidade na nossa área, e não é uma necessidade que vai se esgotar
aqui nem agora, e é uma necessidade que sempre se recoloca quando entra um novo
graduando no curso, toda vez que um professor se confronta com os problemas que hoje
batem na porta da escola, toda vez que um pesquisador tem que reconhecer qual é a
problemática significativa que ele tem que estudar, sempre se recoloca esta questão. Então,
esse debate, ele contou – e aí não dá para deixar de mencionar – a contribuição de
intelectuais da nossa área, de intelectuais que fazem interface com a nossa área e, nesse
sentido, ele também demonstra uma relevância, não é? Porque Santin é um filósofo, e tem,
além de filósofos, sociólogos, nós temos, enfim, profissionais que estão debatendo conosco
a nossa área. Isso é fantástico. Acho isso muito bom. Além disso, nós tivemos a
possibilidade de ter um mapeamento, um mapeamento muito interessante. Esse
mapeamento interessante demonstra a grande diversidade de posições que nós temos, e isso
aparece no texto do Santin, no texto do Walter, no texto do Guiraldelli, no Pallafox, no
Hugo, no Lamartine, e mostra o quanto de vertentes epistemológicas, que têm nexos com
projetos históricos e com o presente, e aí vem o importantíssimo: a gente precisa desvelar o
que vai se construindo e fica como hegemônico. Porque desse debate construiu-se uma
hegemonia, e essa hegemonia vem na seqüência dos debates, e a construção dessa
hegemonia se dá tanto pelas decisões do conselho editorial, que vai dizer quem vai ser
convidado ou não para o debate quanto pelas posições dos debatedores. Então, a revista, ela
passa a ser um elemento estratégico para explicitar uma hegemonia em construção no nosso
país. Eu acho isso esplêndido, esse nivelamento. Então, esse debate, que trouxe diferentes
posições, ele mapeou para gente isso, e ele permitiu ver também que o marxismo na sua
proposição mais ortodoxa, ele não se fez presente nos debatedores na seqüência. Mas, por
que? Porque não foi convidado ninguém numa referência marxista mais ortodoxa, dentro de
uma visão marxista-leninista, dentro de uma referência epistemológica que foi a referência
que nós utilizamos para debater o texto do Gaya, não é? Isto então veio a se dar
posteriormente quando o professor Mauri de Carvalho recupera os debates e escreve o livro
a respeito da sagrada família da educação física. Então, no meu ponto de vista, a sagrada
família da educação física, ele faz uma analogia com o que Marx escreve, e o debate que
Marx trava com os intelectuais da sua época, e eu acho que isso também é interessante na
medida que por uma outra via, uma outra opção, intelectuais que trabalham na universidade
brasileira – a gente pode ou não concordar com ele –têm a possibilidade de se expressar em
relação a esse debate. Mas, no meu ponto de vista, o debate não está encerrado, e o que vai
ser viável agora, é justo: uma dissertação de mestrado provocar o desencadeamento do
questionamento da hegemonia, para que o debate tenha continuidade no seu
aprofundamento, e aí possamos identificar as construções da contra-hegemonia. (você está
se referindo à minha dissertação de mestrado) Vai ser a tua, uma outra. (por que não
uma de doutorado, pós-doutorado?) Alguém vai fazer isso. Alguém vai fazer. Agora, a
gente começa a ver que se coloca um problema de pesquisa. Está vendo não é? Como é que
você sabe que um problema de pesquisa é significativo? Quando ele é uma necessidade.
Então, eu acho que a gente tem que estar se debruçando nisso, mesmo porque a hegemonia
não é construída no vazio, nem é construída sozinha, e são homens que a constroem. E
esses homens que constroem a hegemonia, são intelectuais, e o papel desses intelectuais
precisa ser desvelado na construção do bloco histórico, no cimento do bloco histórico.
(ideologia) É, isso é fundamental.
(André Malina) – O referencial teórico utilizado na construção dessa
dissertação em torno deste debate, foi o Antonio Gramsci e o Karl Mannheim. Você,
naturalmente – a gente já conversou anteriormente – você conhece os dois autores.
Você se identifica mais com um do que com outro? Se você tivesse que se identificar
mais com um ou com outro – não precisa se debruçar sobre a teoria deles, mas só se
você se identifica mais com um ou com outro.
((Taffarel) – Veja só meu querido, a questão da base teórica explicativa: o teu
trabalho vai ter uma base teórica explicativa, e você pode se valer de dois, três, quatro,
cinco autores, e esses autores podem ter posições epistemológicas diferenciadas. Acontece
que tu vais ter uma base teórica explicativa. Tu pode usar Gramsci, Karl, você pode usar
Max Weber, você pode usar outros cientistas das ciências sociais, não é? Mas tu vais ter
uma base teórica. O que eu queria discutir contigo, porque não tem relevância se eu me
aproximo mais de um e de outro, o que tem relevância nesse momento, é que nós estamos
nos valendo do aporte da área das ciências sociais para definir categorias de pensamento,
para explicar os fenômenos com os quais nós nos confrontamos, para abordarmos as
problemáticas que nós nos colocamos. Se eu tivesse que, agora, dizer para você, dos dois
autores, qual é o autor que apresenta os elementos consistentes para dar tratamento a
problemática que você elegeu, eu diria que é Gramsci. Por quê? Porque você quer fazer um
trabalho crítico. Porque você quer fazer um trabalho que leve em consideração não só
desvelar uma lógica da coisa, mas você quer situar isto dentro das determinações históricas,
e você quer fundamentalmente estar reconhecendo os elementos superadores, e isto é um
trabalho dentro de uma perspectiva crítica, e isto significa que nós temos que nos aproximar
daquilo que a humanidade foi capaz de elaborar hoje como instrumental científico para
construção do pensamento crítico, e por isso eu diria que o Gramsci nos traz um aporte
bastante significativo, e nós podemos perfeitamente entrar em detalhes disso: o Gramsci
quando estuda a questão do intelectual orgânico, ele busca compreender as inter-relações e
às contradições entre a infra-estrutura e a superestrutura, e o papel do jovem intelectual
nisto. Então, ele não deixa de fora coisas importantes como são as forças produtivas, as
relações de produção, os elementos da sociedade civil na formação de consensos, a
sociedade política na formação também na construção da hegemonia pela coerção. (o
conceito de Estado dele: força + consentimento) Então, eu te diria que você faz
realmente uma opção inteligente, uma opção adequada, quando você recorre a Gramsci.
Agora, eu estaria sugerindo que você trouxesse, e não é muito difícil, essa discussão do
intelectual orgânico, pegando o texto do Petras. É fundamental você pegar o texto do
Petras, num livro que o Curgiola organiza, chamado “Marxismo Hoje”, e lá dentro tem um
texto, chamado “Os Intelectuais em Retirada”. (se você puder me mandar) Se você me der
seu endereço eu lhe mando na hora.
(André Malina) – A pergunta para saber se você concorda mais ideologicamente, ou
na sua visão de mundo com um ou com outro, é porque eu estou tratando de vocês, não é?
Então, isso ajuda e muito, você dizer se prefere um ou outro ou nenhum deles. Foi por isso
a pergunta se Gramsci ou Mannheim, especialmente no conceito de intelectual.
(Taffarel) – Isso ficou claro para mim. Isso ficou claro. Eu vejo que ainda em
termos da sua dissertação de mestrado, eu estou dando um depoimento com uma finalidade
específica, que é contribuir na construção de uma dissertação de mestrado, aonde a
discussão da construção da hegemonia e da responsabilidade dos intelectuais orgânicos na
construção de dadas hegemonias, etc, ela está posta, e eu gostaria de destacar que eu
considero esse debate, um debate atualizadíssimo, um debate que deve ser feito, que deve
se confrontar nisso, porque nós não podemos deixar de reconhecer que, isso não é só na
educação física, isso é um fenômeno que está acontecendo em várias áreas, na universidade
em geral, é uma retirada dos intelectuais de uma base epistemológica marxista. Isto tem que
ter explicações. Há uma grande aproximação com referências epistemológicas entre aspas
pós-modernas, e que precisam ser questionadas. |O que nós reconhecemos também, é que
em nome de abandonar determinadas referências históricas como o marxismo, hoje são
produzidas, são produzidas muitas elaborações que são verdadeiros engodos, e isso já está
comprovado através de um estudo elaborado por físicos, que desembocou num livro
chamado “As Imposturas Intelectuais: o Abuso dos Filósofos em Relação à Ciência”, é
mais ou menos esse o título. Ma o que eu queria te dizer, é que é um debate fantástico, e
nós precisamos aqui no Brasil estudar isto, porque estes estudos vão viabilizar que a gente
tenha mais clareza do que a gente está construindo mesmo. É isso o que você está querendo
pegar: o que nós estamos construindo que está se tornando hegemônico, e nós temos que
questionar isso, e se a tua dissertação for concluída no sentido de estar apontando
questionamentos da hegemonia do pensamento da educação física brasileira, é uma
contribuição extremamente relevante, e, por incrível que pareça, ao analisarmos o texto do
Gaya, ao analisarmos a sua base referencial epistemológica para responder a pergunta mas,
afinal, o que é educação física, nós o fizemos tendo consciência de que se constrói uma
hegemonia que precisa ser questionada no nosso país.
(André Malina) – Um outro detalhe que me chamou atenção e que eu queria
questionar com você, é que há uma linha divisória entre as questões pessoais e as
questões profissionais, e as ambições pessoais e profissionais das pessoas, mas nesse
debate epistemológico, não sei se ficou caracterizado como um debate epistemológico,
ou se esse debate como um todo, foi colocado com uma forma como em termos
pessoais. Eu gostaria que você falasse se você também viu alguma coisa desse tipo ou
não viu, ou não houve uma colocação trazendo as posições pessoais, quer dizer, cada
um trazendo as posições que acredita, pensando talvez, menos numa construção de
uma epistemologia para a área e mais num posicionamento pessoal, ou não, se tinha
mais um posicionamento de contribuição epistemológica para a área do que trazer,
produzir um discurso que vai ter alinhamento com outros, ou que vai ter seguidores,
enfim.
(Taffarel) – Se nós considerarmos posicionamentos pessoais como sendo uma
atitude da pessoa para fazer valer determinadas coisas que dizem respeito aos seus
interesses, quando esses interesses, interesses pessoais e não interesses coletivos, esse não é
o conceito que eu quero trabalhar. O que eu quero trabalhar é que às posições expressas por
todos os debatedores, foram posições das pessoas, e essas posições, por serem posições das
pessoas, estão assentadas na sua referência epistemológica. Os fenomenólogos, os
empírico-analíticos, os marxistas, eles concordam numa coisa: ninguém fala de lugar
nenhum. Todo mundo fala situado. Portanto, ali, desde o texto do Gaya, ao nosso texto, aos
textos dos demais, estão expressas posições pessoais, mas não pode ser deturpado este
debate como sendo um debate aonde prevaleceram interesses pessoais, por poder, ou por
qualquer outra coisa, por alinhamento, não. O debate é uma crítica à concepção
epistemológica. Vamos admitir isso. E o que se confronta ali é a questão da referência
marxista, e é isso que nós estamos indagando: por que nós temos que responder o que é
educação física só dentro de determinadas vertentes epistemológicas como é a vertente
empírico-analítica? Setenta por cento do conhecimento produzido no Brasil é com essa base
na nossa área. Por que nós temos que responder essa pergunta só dentro da vertente
fenomenológica, que são aproximadamente vinte por cento, e é uma tendência que está
crescendo? E por que, e aí é que está, e por que o debate não pode se dar do ponto de vista
de uma referência marxista, que tem uma dada construção de projeto histórico, de uma dada
concepção de homem, de sociedade, como todos têm, entendeu? Mas é na perspectiva da
superação radical do capitalismo. E é esse o xis da questão. Então não tem nada de posição,
de interesse pessoal, nós somos mulheres que temos clareza das nossas opções de vida.
Nossa opção de vida era trabalhar construindo a teoria da educação física a partir do
nordeste do Brasil tendo o marxismo como referência, e nós vamos para o debate.
(André Malina) – Esse posicionamento anterior, quem falou fui eu. Uma outra
crítica que fazem ao trabalho de vocês, e que foi levantada por entrevistas, e já tinha
sido colocada num texto dentro do livro “A Arte da Mediação” do Hugo Lovisolo, no
texto do Lamartine, e de outras pessoas também, é que havia uma deturpação do
marxismo, quando se falava no marxismo na educação física, entendeu? Talvez no
próprio Gaya se encontrem alguns elementos que indiquem essa crítica de um
marxismo talvez positivista, ou de um tipo de marxismo que nem estava, nem era
expresso num conceito dialético marxista.
(Taffarel) – Veja só: eu não quero, em hipótese nenhuma, deixar registrado em
canto nenhum deste país, que o marxismo é uma referência que se dá acabada na cabeça
das pessoas. Não, nós buscamos aproximações com uma possibilidade epistemológica, e
esta busca das aproximações é que vai construindo, e eu aceito com muito bom grado
qualquer observação que diga: não estamos sendo coerentes. Mas eu acho que esse não era
o caso. Fomos extremamente coerentes na crítica. Então, são muito bem-vindas as
observações de todos os que leram e estudaram a respeito da referência marxista enquanto
uma vertente epistemológica, enquanto uma possibilidade de produção do conhecimento, se
nós estivermos sendo incoerentes, e não somos em hipótese nenhuma, que não vamos
simplesmente aceitar uma crítica. Nada disso. Então, é extremamente importante que a
gente observe que nós levamos um combate sim. E eu vou revelar uma coisa agora aqui pra
você: este texto que nós escrevemos, ele inclusive circulou em alguns setores lá na Europa,
e essa circulação dos textos lá na Europa se deu inclusive com o levantamento de algumas
opiniões, de que nós somos xiitas, de que nós somos fundamentalistas, e a gente precisa
admitir que isso são preconceitos. Preconceitos que podem prejudicar terrivelmente a vida
de uma mulher ou de um homem. Essa tentativa de classificar os outros com adjetivos que
comprometem, isto é extremamente complicado, e bate na vida da gente, e bate na vida da
gente. Então, eu sinto hoje na Federal da Bahia, por exemplo, em alguns momentos,
também como que um rótulo. Mas por que este rótulo? Só porque nós queremos honesta e
sinceramente buscar aproximações com uma dada referência histórica chamada marxismo?
Então, isso tem a ver com a construção da hegemonia, e dos mecanismos que são usados,
entendeu? Quer dizer: eu creio que você, ao peneirar, ao entrar por dentro de todos esses
textos, vai levantar elementos, você vai levantar elementos que permitem reconhecer o que
é que está sendo construído mesmo no Brasil, o que é que está sendo hegemônico. E o
hegemônico deve ou não ser questionado? E você vai encontrar perfeitamente indicações de
proposições para elaborar o seu pensamento científico acerca disto. A tua base teórica te
dará bons elementos pra isso.
(André Malina) – Fazendo uma pergunta bem direta, você acha que também
classificou Gaya, quando você o chama de idealista? Você acha que fez essa mesma
classificação que você sentiu dos outros? Você acha que fez isso? Ou você acha que
não?
(Taffarel) – Me mostra no texto que eu chamei Gaya de idealista. O que eu vou te
mostrar no texto é que a opção teórica que ele fez foi explicar um fenômeno
epistemológico, etc. Idealista. É idealista a opção que ele fez. Ele fez uma opção
epistemológica. Então, é isso que precisa ficar esclarecido.
(André Malina) – Você se sente hoje, rememorando o texto que você escreveu,
vocês se sentem satisfeitas com o que produziram naquele texto? Vocês mudariam
alguma coisa naquele texto? Como é que você faz essa autocrítica em relação ao texto
que foi escrito?
(Taffarel) – Quando eu olho pra todos os meus escritos, desde o primeiro livro:
“Criatividade nas Aulas de Educação Física”, eu não faço como o Fernando Henrique
Cardoso que manda jogar tudo no lixo. “não, não considerem mais o que eu escrevi”. Nada
disso. Eu sempre digo: considerem o que eu escrevi nas condições objetivas que me
estavam colocadas naquele momento e qual era a minha capacidade naquele momento, de
formular o que formulei. Eu não posso ver as minhas coisas, sendo um ser inacabado, como
acabadas. Então, como tudo na vida, como tudo na vida, a gente olha, situa historicamente,
entendeu? Então aquele texto era o texto estratégico a ser elaborado naquele momento. Foi
elaborado naquelas condições, deu aquela resposta, entendeu? E eu vejo que o que nós
temos que fazer hoje é continuar o debate, e teríamos novos elementos, é claro, porque
estudamos, não é? E é isso que eu quero fazer, com todos os colegas, com todos os doutores
deste país. Eu quero continuar o debate científico, inacabado, provisório, porque é assim
que nós somos, e é assim que nós nos constituímos, enquanto seres humanos. Eu quero
fazer isto com dignidade, com respeito. E eu te digo: tentaram dizer que eu desrespeitei
meu colega Gaya. Eu não tenho concordância com isso. Eu tenho muito respeito ao Gaya. E
por ter respeito a ele é que na minha condição de intelectual, de professora, de mulher, me
dou o direito de questionar meu colega intelectual, professor homem. Ou eu não devo
questionar porque é homem, porque é intelectual, porque é professor? Não. Não. Eu vou
questionar.Vou questionar. Porque a ciência não tem outro jeito de evoluir, a não ser pelos
nossos constantes questionamentos e a colocação de problemáticas significativas. É isso. E
você está recolocando a problemática. Agora pegando isto na construção da hegemonia.
(André Malina) O seu referencial teórico, evidentemente, você já falou, é
basicamente Marx, e, enfim, eu gostaria de encerrar a entrevista, agradecendo
imensamente a você, dizendo que qualquer coisa que seja utilizada, que seja falada,
não será nada pessoal, será puramente uma análise do texto, enfim, das coisas que eu
pude identificar, e eu espero fazer isso com a melhor propriedade que for possível.
Agradecendo também a sua disposição, eu sei que você estava com febre, está aí morta
de cansaço. Dizendo também que eu vou te mandar o trabalho e procurar utilizar a
entrevista no meu texto, queria saber se você não se opõe, se tem algum problema
nisso.
(Taffarel) – Não, muito pelo contrário, eu acho que nós temos que estar facilitando
o acesso, e me disponho a fazer nova entrevista, se você mandar questões por escrito, e
talvez daí se você tiver alguma dúvida, se quiser que a gente esclareça melhor alguma
coisa, se você quiser mandar alguma coisa por escrito, você manda, eu respondo. O
importante é que você conclua teu trabalho, faça uma formulação, e que isso ajude a
alavancar o desenvolvimento da nossa área, porque esse alavancar o desenvolvimento da
nossa área, significa construir a dignidade de todos nós. Então, conta comigo. (obrigado).
- Entrevista com Silvino Santin. Gramado/2000.
(André Malina) - Estou aqui com o professor Silvino Santin e vou fazer uma
entrevista. Estou aqui no Congresso de História (da Educação Física, Esporte, Lazer e
Dança). Hoje é dia 31 de maio de 2000, é noite aqui. É uma entrevista centrada no debate
ocorrido na Movimento (revista), e cujo artigo Santin publicou em 1995. Inicialmente eu
vou pedir para que o Professor Silvino se identifique, para em seguida fazer as perguntas.
(Silvino Santin) - Bom, meu nome é Silvino Santin, atualmente eu sou professor
bolsista da CAPES no Programa de Mestrado e Doutorado da ESEF da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, sou aposentado pela Federal de Santa Maria, minha
formação é na área da filosofia, tenho mestrado e doutorado na área da filosofia da
linguagem.
(André Malina) - Como é que surgiu o convite para que você fizesse a elaboração
do seu artigo para a revista Movimento?
(Silvino Santin) - Logo na fundação da revista Movimento, uma das maneiras de dar
um certo movimento de interesse para a própria revista foi criar estas páginas centrais que
eram polêmicas, Temas Polêmicos, e o primeiro texto foi publicado pelo professor Gaya,
em que a questão era: afinal o que é educação física?, e juntamente com este texto deveriam
sair dois comentários. Um seria o meu e o outro seria o da professora Celi Taffarel, mas eu
recebi uma redação do texto do professor Gaya, que não era exatamente aquele que iria ser
publicado na revista. Aí eu vendo que eu fazia uma série de comentários de algumas
passagens que não constavam na passagem do texto da revista, eu me recusei a publicar. Aí
saiu o texto do Gaya e o da Celi. Posteriormente, me foi solicitado que eu fizesse um
comentário sobre o texto do professor Gaya e sobre o texto da professora Celi. Exatamente
aquele que está na revista. Aqueles que tem o número ou leram sabem mais ou menos em
que consiste.
(André Malina) - Professor, eu gostaria de saber de onde veio a concepção do
artigo. Quer dizer, como é que você se localiza a respeito da concepção de seu artigo?
(Silvino Santin) - Eu tenho um hábito de quando redijo um texto, basear-me nas
palavras que caracterizam o próprio texto. Seja o tema, seja o tipo de texto a ser elaborado
que, no caso, era comentado. Inicialmente eu tentei dizer em que eu podia comentar, é uma
técnica de investigação, de estudos acadêmicos digamos, desde a Idade Média, e que tinha
um determinado roteiro desenvolvido, para tentar identificar o significado de um texto de
um autor, digamos, de nome, um texto que fosse extraído de um livro maior que oferecesse
uma dificuldade de compreensão ou simplesmente de maior explicitação no seu conteúdo.
O grande problema no texto era saber no que consiste a educação física. Só que eu não
tinha, apenas, me parecia, a tarefa de explicitar a educação física, mas era de analisar ou
comentar os dois textos. Eu não entendi que meu comentário deveria estar vinculado sobre
a questão: afinal, o que é educação física?, mas, a maneira como esta pergunta ou esta
questão teria sido respondida pelo professor Gaya – ou pelo menos exposta, não sei se
respondida – e o comentário da Celi, que não só questionava a pergunta como também a
resposta à pergunta dada pelo professor Gaya. Aí então eu tentei montar o meu comentário
partindo do princípio da própria pergunta “o que é?” – uma pergunta clássica grega – e que
supostamente já tem uma posição firmada de que a educação física é alguma coisa. O “é”
remete a essência ou a natureza, uma realidade estável de alguma coisa. Se você pergunta o
que é educação física?, eu suponho que ela já é uma realidade. Eu poderia perguntar: o que
eu entendo por educação física?, o que significa educação física?. Aí seria outra formulação
de pergunta. Então inicialmente eu procurei mostrar que a formulação da questão era uma
formulação metafísica, tradicional, enraizada na filosofia grega, que perpassou todo o
mundo medieval, inclusive toda a filosofia clássica.
(André Malina) - Professor, quando você fez a sua argumentação, você estabeleceu,
lógico, uma linha de pensamento pautada na sua concepção, na sua visão de mundo, na
forma que você concebe, inclusive, a educação física. Como é ou era essa concepção, essa
visão de mundo, em relação à educação física e aos artigos?
(Silvino Santin) - Eu exatamente não me preocupei em responder à questão “o que é
a educação física?”. Eu tentei fazer uma análise dos dois textos que se dirigiam a esta
questão ou que tinham como alvo esta questão. Eu dizia que eram duas montagens
diferenciadas . Todo pensador ou todo autor de um discurso crítico ou científico, ele o faz
de um determinado lugar. Então eu tenho uma posição, e desta posição eu olho para o
objeto que eu estou procurando ver ou investigar ou sei lá, explicar ou criticar. E, no caso, a
grande realidade a ser olhada, era a educação física, e eu não vou responder a esta questão.
Eu vou tentar, no texto pelo menos, eu vou tentar mostrar como dois autores, partindo de
posições diferenciadas tentam dar a resposta. Então no caso do professor Gaya, eu colocava
que ele partia de uma posição totalmente tradicional, de uma epistemologia em que
supunha que as coisas têm uma essência. Porque dizer, perguntar o que uma coisa é, é
investigar a sua essência, a sua natureza. E a posição da Celi era uma posição, digamos, de
denúncia ou de crítica, baseada numa proposta de um paradigma marxista, em que
denunciava que a compreensão da educação física do professor Gaya, era de uma educação
física asséptica, neutra, sem explicações de ordem social, e que o professor Gaya se
baseava numa cientificidade que também seria neutra. A preocupação era simplesmente
saber em que consiste ou o que é educação física, e não via na cientificidade uma
vinculação com a ordem social, e portanto a Celi critica logo no início com um discurso
muito dirigido, muito radical - não é a palavra que eu gostaria de dizer, mas não estou no
momento achando uma melhor – e que caracterizava o seu tipo de discurso, e que portanto,
eu digo no meu texto, o autor que perceber no início essa postura da Celi, era capaz de nem
mais ler, pois saberia o que ela iria dizer. Ela definiu claramente a sua posição marxista,
denunciando o texto do Gaya como sendo sem compromisso com a ordem social, e que ela
achava que era o grande erro de não ver toda a cientificidade, toda a organização de uma
área da ciência, que no caso seria a educação física, sem um compromisso com a ordem
social.
(André Malina) - E, o seu artigo, o artigo que você fez, ele transmitiu aquilo que o
senhor queria transmitir?
(Silvino Santin) - Bom, eu relendo meu artigo, eu pelo menos vejo nele aquilo que
eu quis dizer. Agora, eu não sei se alguém não viu isto. Eu não tive um retorno para saber
se o que explicitei aqui foi bem compreendido. Eu sei que alguém fez um comentário, mas
não estou bem lembrado, me parece no terceiro artigo posterior, numa outra revista que eu
li, mas eu acho que ele entendeu o que eu queria dizer. Não sei se concordou. Eu também
fiquei numa postura, digamos, sem querer condenar nem um e nem outro. Eu quis dizer que
esses dois textos mostravam claramente que era interessante um debate acadêmico porque
mostra como nós construímos dentro da Academia discursos diferenciados, a partir do
momento em que nós olhamos uma determinada realidade de um lugar social, que é aquilo
que fala, por exemplo, Paul Ricoeur , eu não me recordo baseado em quem, mas o Paul
Ricoeur, em todo o caso, é uma autoridade intelectual suficiente pra aceitar a postura, é
impossível analisar, olhar , uma realidade, um objeto, que não seja de algum lugar. Esse
lugar é o meu lugar social, cultural, ideológico, e os dois textos mostravam claramente dois
lugares diferenciados, que poderiam dialogar como poderiam não dialogar, e se colocavam
às vezes, dependendo do autor, antagônicos. Mas não necessariamente seriam antagônicos
no meu ponto de vista. (eles dois não seriam antagônicos na sua opinião? ou seriam
antagônicos? Como é que você verifica essa questão dos dois?) Eu não os acho
antagônicos. Eu os acho diferentes, só que essas diferenças, na medida que têm diferenças,
em certos pontos poderão ser tidos como antagônicos, mas são duas montagens de
discursos que têm que ser reconhecidas pelo ponto de partida sobre o qual ele se constrói.
Então é aquilo que eu chamo de um lugar social, faz com este lugar me dê direções
diferenciadas, ou podem ser paralelas, mas acho que há pontos muito divergentes, mas que
poderiam ser solucionados. Por exemplo: é evidente que todo aquele, seja qual for, tem um
vínculo com a ordem social. Por isto que eu penso, hoje mais do que no passado, um
representante desta visão dum pensamento que nasce num contexto, é o chamado pensador
o intelectual orgânico de Mafezzolli, que não é exatamente o conceito de pensador orgânico
de Gramsci. O pensador orgânico de Mafezzolli seria aquele que mergulha numa realidade
vivida e tenta ser apenas o testemunho daquela realidade vivida. Ao passo que Gramsci, no
meu ponto de vista ou como eu o interpreto, ele fala que o intelectual orgânico é aquele que
é produzido pela própria sociedade. Eu sou um intelectual orgânico, digamos, burguês,
porque eu sou gerado, eu estou dando um exemplo, eu não me considero um intelectual
orgânico burguês, mas o intelectual orgânico burguês, ele se identifica como tal por que?
Porque ele é gerado pela sociedade burguesa. Inclusive ainda, aquele que contesta o
intelectual burguês, ele também é gerado pela própria sociedade burguesa, como
contraponto de um discurso que apóia a sociedade burguesa. Eu só consigo ser um
intelectual anti-burguês graças a sociedade que me dá o espaço para eu ser anti-burguês.
Estes pontos não estão incluídos no texto, não é isso? além, fora do texto que eu coloquei
nesse comentário. Eu quero insistir que, como eu já disse antes, eu não estava interessado
em condenar nenhum dos dois textos. Eu queria só chamar atenção para a área acadêmica,
que é interessante haver este tipo de debate, exatamente para perceber como é possível se
construir diferentes discursos, porque tem a sua validade interna a partir da argumentação
que se usa, baseado na tese que eu vou utilizar. Se eu partir do princípio que a ciência ou
uma ciência é uma atividade que busca uma verdade independente da ordem social, tudo
bem. É uma tese que eu posso contestar, mas há aqueles que acham que é possível
sustentar. Então, no caso da Celi, ela sustenta que uma ciência é uma ciência sempre
comprometida com a ordem social. Eu, pessoalmente, penso dessa maneira. Quer dizer,
toda época histórica tende a ser um modelo de cientificidade, e é aquele que dá sustentação
à própria ordem social. Por isso que poderia se dizer que a ciência moderna, que gera o
fundamento capitalismo, também gera uma sociedade capitalista. Então para poder romper
com uma ordem moderna, de alguma maneira é preciso romper também com a ordem
epistemológica. (Seria uma ruptura epistemológica que você está falando?) Seria buscar
um novo paradigma epistemológico. Como a epistemologia medieval construiu uma
sociedade medieval, a epistemologia ou a cientificidade moderna gera uma sociedade
moderna, gera um intelectual moderno e gera todo um sistema econômico, político e social,
e eu até diria religioso, inspirado nesse modelo de cientificidade, tanto que a própria
religião busca na ciência para comprovar que o manto sagrado de Milão é o verdadeiro
Manto Sagrado, não é?. Assim, nós estamos, digamos, questionando a sociedade moderna,
a sociedade capitalista e, junto com este questionamento, nós também criticamos a ciência
que a sustenta. Então, falar de uma ciência ou de uma educação física como ciência,
significaria o que? tirar seu paradigma científico, porque ela também seria sustentação de
uma ordem social científica e capitalista. Aí seria o que? tentar pensar numa nova
cientificidade, num novo paradigma, que é só pensar. Aquilo que se chama de pós­
modernidade, era pós-industrial. O Souza Santos é um dos autores que eu gosto muito, eu
não estou dizendo que é porque ele diz a verdade, mas porque diz uma verdade que me
agrada, e que nós temos que pensar numa nova ordem científica, e ele têm o livro dele,
“Introdução para uma Possível Ciência da Pós-Modernidade”, um título assim, um outro
livrinho, que já está na 10ª edição, lançado em 77, 87, por aí, acho que é de 1977, discute
sobre a ciência pela mão de Alice. São trabalhos em que ele aponta para a exigência de uma
nova cientificidade, que inclusive respeite os saberes alternativos, porque a ciência
moderna eliminou todos os outros saberes, como sendo saberes legitimamente válidos, e
portanto há outros saberes que precisam ser reconhecidos. Então veja, é por aí que você
construiria outro paradigma, mas qual é o novo paradigma? Não existe. A gente vai ter que
construí-lo, e construir um novo paradigma provavelmente, provavelmente não, certamente
vai construir uma nova ação social. Vão ser construções que vão se organizando de forma
simultânea.
(André Malina) - Nós estamos falando sobre teorias e sobre autores, alguns
autores. Então, só pra gente localizar bem isso aí, você falou que a sua formação vem
da área da filosofia, graduação, mestrado e depois doutorado em filosofia, filosofia da
linguagem. O que eu queria saber é exatamente nessa ordem teórica. Quais os autores
ou as teorias que influenciaram você nesses momentos: graduação, mestrado,
doutorado e na época dos artigos, especialmente que autores seduziam você, a teoria
que informava você nessa época?
(Silvino Santin) – Bom, eu, na minha graduação, fui muito marcado pelas correntes
existencialistas. Eu era um leitor assíduo de Sartre e, em parte, Heidegger. Mas Sartre era
mais fácil, porque tinha mais traduções e tem uma obra que é literária. Tem uma grande
obra filosófica que é “O Ser e o Nada”, mas o Sartre tem uma literatura.abrangente, é
romance, novela, etc. Eu me lembro de uma novela, teatro, teatro que eu gostava de ler,
relia, não me lembro, mas na França teve uma repercussão muito grande. Eu, baseado
nestas teorias de correntes existencialistas, fui em 68 ao Rio, para fazer um curso de
mestrado em cultura brasileira. Na época havia teatro popular, pós-golpe militar na área
acadêmica os estudantes, a gente fazia teatro nas vilas, fazia esse movimento, e havia muita
cultura, cultura brasileira, resgate da cultura brasileira, não é só estudar as culturas
estrangeiras sem entender às do país. Aí, eu fui fazer mestrado em cultura brasileira, e
como eu estava baseado na leitura dos franceses existencialistas, eu resolvi fazer um
trabalho, “Categorias Existenciais em Graciliano Ramos e Jorge Amado”, de Graciliano
Ramos era Vidas Secas e de Jorge Amado era Ceará Vermelho, e eu trabalhava das figuras
de outras categorias existenciais, mas duas figuras básicas de ser humano, que era Fabiano
de Vidas Secas e, esqueci, depois ele aparece, que é a figura que se revolta na fazenda, e
acaba indo para São Paulo e ingressa numa célula do Partido Comunista. O Jorge Amado
estava vinculado ao Partido Comunista, inclusive esta parte eu acho que, sob o ponto de
vista literário, empobrece a obra. Inclusive, esta crítica é feita a partir do Eduardo Portela,
que devia ser meu orientador, mas o curso dele de mestrado, não saiu, não sei por que
razões administrativas, na Faculdade de letras que funcionava nos antigos pavilhões das
exposições de Portugal, na Avenida Chile, eu sei que disseram que construíram ali a nova
catedral do Rio. Eu nunca entrei, também não vi nem pronta. Bom, então eu fiz o trabalho
monográfico, me deram o título de curso de especialização, e depois eu fui pra França, aí
antes eu fiz no Rio uma porção de cursos com o Manoel Carneiro Leão, ele tinha fundado o
Colégio do Brasil, na rua Gago Coutinho, aí logo depois o A.I.5, que foi em 68, largou uma
bomba, pra atemorizar, depois avisaram que se continuasse a usá-lo seria tido como uma
provocação. Então recolheram todas as fichas dos alunos que iam freqüentar aquelas aulas,
aí lecionou, deu aulas, o Valderez Chacon, trabalhava lá dentro, o Afrânio Coutinho, o
Pierre Secondiffe, que era um dominicano, se não me engano deu um curso sobre Pierre
Chardan, foi a primeira vez que eu entrei em contato, gostei da obra dele, depois quando eu
cheguei na França vi que a obra do Pierre Chardan estava em qualquer livraria de livros
usados, estava a obra completa, ninguém dava maior atenção pra ele, aí comecei a ler mais
Heidegger. Em 71 eu consegui uma bolsa do Governo francês, fui para a França e comecei
o mestrado em Heidegger. Como quando eu cheguei lá começou uma greve longa, ainda
reflexo de 68, que foi a Revolução estudantil, em Dantér, onde eu me inscrevi, praticamente
não havia móveis, cadeiras e mesas, então a gente sentava no chão, ficava de pé, até o
professor não tinha nem mesa. Aí fizeram uma greve pra ver se recompunham o mobiliário,
e eu então sentei na biblioteca e em 6 meses eu tinha minha dissertação de mestrado pronta.
Aí eu iniciei o doutorado. A minha bolsa era de dois anos pra fazer o mestrado, como eu
entreguei no primeiro ano, eu iniciei o doutorado, depois eu argumentei e pedi a
prorrogação por mais um ano, e o meu orientador que era o Manoel Levinás me deu todo o
apoio, eu fui aprovado e me deram mais um ano. Mas eu abandonei o Heidegger por que o
meu alemão é muito fraco.
(André Malina) – O Manuel Levinás é um existencialista também?
(Silvino Santin) – Manoel Levinás se julga um pensador anarquista. Ele é lituano,
tem a cultura russa, depois ele se tornou francês, e se orgulhava muito de poder pensar em
francês, ele adotou a cidadania francesa, ele é de descendência judia, foi do exército francês
na Resistência, ficou preso uns 4 anos, uns 3, 4 anos, só não foi morto porque tinha
uniforme do exército francês. Ele se julga um anarquista, de fato não bem caracterizado,
com uma forte influência heideggeriana, husseriana, e quem utiliza muito seu pensamento
aqui na América Latina, é o pessoal da chamada Filosofia da Libertação e Teologia da
Libertação.
(André Malina) – O senhor estava falando que não falava alemão, por isso que você
abandonou, não é?
(Silvino Santin) – A minha leitura era fraca. Aí, o que foi que eu fiz? No meu
doutorado, comecei uma leitura do Merleau Ponty. Eu já tinha lido alguma coisa, mas
muito pouco. Aí eu gostei do trabalho dele, e como ele trabalha a questão da linguagem,
resolvi fazer a minha tese de doutorado, sobre o pensamento do Merleau Ponty. A minha
idéia era fazer uma antropologia da linguagem. Quer dizer, o título que eu havia dado ao
meu trabalho, era “A Palavra como Relação do Homem com o Outro e com o Mundo”, mas
o meu orientador não gostou do título, achou que não era muito filosófico, e mandou fazer
um trabalho que eu não gostei, pelo menos do enfoque, que era denominado “Ser e
Linguagem”, “Etrê e Language”. Então, no fundo era fazer uma ontologia da linguagem e
aí, eu notei que essa proposta que ele me fez era porque ele tinha mais influência de
Heiddegger do que de Merleau Ponty. Porque “Ser e Linguagem” é um título perfeito para
Heiddegger, não para Merleau Ponty. Bom, de qualquer maneira eu fiz, e provavelmente
não agradei nem a ele e sem dúvida não agradou a mim o trabalho. Mas, em todo caso, foi
aprovado. Eu trabalhei com Merleau Ponty, tenho bastante conhecimento dele, fui aluno e
fiz uma série de seminários com Paul Ricoeur, sob o ponto de vista hermenêutico. O Paul
Ricoeur tem uma formação religiosa acentuada. Ele ensinava na Faculdade de Teologia
Livre Protestante em Paris, realizava seminários no Centro Nacional de Pesquisas PseudoNacional de Ciências da França, e, então, eu me considero fundamentalmente muito
influenciado por Heiddegger, Merleau Ponty e Paul Ricoeur, e de uma maneira genérica,
bastante por Nietschze, porque eu – não que Nietschze tenha uma definição, mas digamos
que ele é inspirador de coisas que você não acha em nenhum lugar – e eu fiz uma série de
seminários, três pelo menos, de um professor que dava todo ano leituras contemporâneas de
Nietschze. Então, nesse meu texto eu invoco, digamos, essa postura. Eu parto do princípio
de que não existe a verdade e ninguém tem a verdade, ninguém vai falar da verdade,
ninguém vai falar do sentido de um texto. Eu não posso estabelecer que o texto do Gaya é
isso, que o significado do texto do Gaya, que o significado do texto da Celi é isto. Eu posso
ver a construção desses textos, desses discursos, e que vinculam vários significados
dependendo da leitura que eu fizer.
(André Malina) - Mas, voltando a questão da verdade, você não considera que
tenha uma verdade, não considera que existe uma verdade, ou considera que existem
várias verdades?
(Silvino Santin) – Não existe nenhuma verdade nem várias verdades. O que existe é
a verdade que existe. Eu não gostaria de falar em verdade. Existe um sentido, um
significado, uma coisa que eu diga: por exemplo, para os gregos, as coisas, que significado
tinham? Que eram? Isto é, tinham uma essência. Para o moderno, qual é o significado de
moderno? O que é funcional. Por exemplo: qual é a verdade de um remédio para um
médico? Se ele funciona. Ele nem sabe que estrutura química tem, que composição química
tem, ele sabe que funciona. Bom, aí a questão seria muito complicada. Eu não gosto de
falar em verdades ou inverdades. Eu acho que eu atribuo significados às coisas. Eu digo
que uma coisa é aquilo que eu disse que ela é. Só que se eu disser que uma coisa é fora do
modelo da cultura que eu estou, não vão me dar bola, vão dizer que eu sou um bocó, que eu
não sei nada, não é? E eu tenho que dizer dentro do modelo epistemológico no qual eu
circulo e é imposto por uma ordem cultural existente.
(André Malina) – Partindo daquilo que você falou, que tem um lugar de onde se
parte, que eu chamaria de concepção de mundo, ou visão social de mundo, não sei o que
está aproximado com o que você fala, mas, partindo da Celi Taffarel, como ela classifica o
texto do Gaya de idealista do ponto de vista marxista, ela partiu do lugar correto, ou não
partiu?
(Silvino Santin) – Ela partiu do lugar correto que ela optou. Eu por exemplo, eu não
diria que o marxismo é o lugar correto, e nem que o idealismo é o lugar correto. São dois
lugares. Eu vou optar por qual? Por aquele que eu achar que é para mim o mais correto.
Então, se eu sou marxista, vou dizer que a postura da Celi é o lugar correto. Se eu disser
que é o idealismo o correto, eu vou dizer que o Gaya está no lugar correto. Então, não
existe o lugar correto, ou se quiser, o lugar correto é aquele que eu escolhi como sendo o
lugar correto. Se você pegar a ciência, alias, um dos livros que eu gosto de ler e reler pra
passar o tempo, e pra desabafar às vezes as iras, quando certas situações políticas, sociais,
econômicas e até mesmo científicas, eu leio o livro do Lantan, é Lantan o sobrenome, um
francês, e o título é: “Eu Penso, Logo me Engano”. Subtítulo: breve história do besteirol
científico. Então, o que é que acontece: o cientista trabalha dentro de uma teoria, esta teoria
é o seu lugar social do qual ele fala, é o lugar científico do qual ele fala. Então, a partir dele
ter escolhido essa teoria científica de olhar o universo, ele cria uma visão de mundo, e acha
que essa visão é a verdadeira, por que? Porque ele acha que o seu lugar, dado pela teoria
que ele adotou, é o lugar correto. Só que se você ler esse livro, você vai verificar que
muitos cientistas falaram desse lugar e condenaram os outros. Por exemplo: quando há
pouco tempo se formulou a teoria do Big Bang, quem é que criou essa expressão? Quem é
que cunhou a expressão “Big Bang?” os contrários da teoria, pra ridicularizá-la. Quando na
área da medicina, em 1670, a circulação sanguínea dependia do coração, o coração era uma
central de bombeamento, os opostos a essa teoria, que eram aqueles que diziam que o
sangue era produzido pelo fígado, frio, e o coração era uma caldeira de aquecimento. Então,
esses que defendiam a teoria antiga, ridicularizaram os que pensaram que o coração era
uma bomba de impulsão do sangue pra todo o corpo, e o chamaram de “circuladores”.
Então veja, quando Newton elaborou e formulou a lei da gravidade, na Inglaterra ela foi
aceita como uma teoria vinculada à divindade. Foi Voltaire na França que pegou aquilo e a
tratou de maneira profana. Então, se dissesse naquela época quem é que tinha razão era a
Inglaterra, que divulgou a teoria como sendo a grande expressão da divindade no universo,
não vou aceitar a teoria de Voltaire. Você percebe que eu não trabalho dessa forma: isso
está correto aquilo está errado, isso é verdadeiro aquilo é falso. Essas polaridades foram
criadas desde os gregos. Merleau Ponty, que eu gosto muito, foge dessas dicotomias, como
foge da dicotomia sujeito-objeto. Eu sou sujeito e objeto ao mesmo tempo, na figura ou na
metáfora da mão e contramão.
(André Malina) – Essa idéia de oposição verdadeiro ou falso, se opõe às idéias, por
exemplo, de Popper, essa linhas mais cientificistas, ou não?
(Silvino Santin) – Eu acho que a ciência moderna trabalhou sempre em cima da
oposição verdade ou faticidade, só que a verdade que era ontem, hoje pode não ser mais
verdade, pelo menos a verdade até certo ponto. As verdades colocadas pelas ciências foram
circunscritas por uma determinada circunstância. Por exemplo, a circulação da luz; a luz é
uma onda ou é um corpúsculo? Se ela for corpúsculo, tem uma teoria da propagação da luz,
se ela for onda, tem a teoria ondulatória. Qual é a verdadeira? O Tomas Kuhn diz que eu
posso dar várias respostas ao mesmo problema.
(André Malina) – No caso da educação física, como é que você vê essa questão?
Com a questão da visão da educação física, especialmente como você observava esta visão
na época da Movimento?
(Silvino Santin) – Eu ainda continuo vendo a educação física da mesma maneira,
isto é, uma vez eu vi a educação física como uma atividade puramente militar, um conjunto
de exercícios militares que deveria desaparecer da escola no momento em que os militares
voltassem pros seus quartéis. Eu hoje vejo a educação física como uma ação educativa, e
que ela pode se valer das ciências existentes, como a medicina se vale das ciências
existentes. Quem faz a medicina não é propriamente o médico. O médico aplica os
conhecimentos do bioquímico, dos químicos, etc. quem faz a análise do material que ele
manda pro laboratório são, de novo, os bioquímicos. Ele pega aquilo e aplica a dosagem,
que praticamente já vem proposta pela bula do remédio. Então a educação física tem que se
valer de todos os conhecimentos, inclusive os científicos, mas eu acho que a educação
física tem como ponto de partida a vida, a vida humana, e o que interessa é que um
organismo se desenvolva harmoniosamente. E como é que eu vou saber? Em primeiro lugar
quem vai saber é aquele que é esse organismo. Exatamente eu, você ou qualquer um outro,
e não a ciência. A ciência é para me dar informações, para dizer o que é bom para minha
circulação, mas quem vai sentir como é que está a minha circulação, sou eu. Só que eu, por
exemplo, nunca fiquei observando qual é a linguagem da circulação sanguínea. Eu vi uma
vez, já faz uns 10 anos talvez, o professor Vagner, não me lembro o nome completo dele, lá
da Paraíba, que disse que ele deitava e ouvia o barulho da circulação do sangue. Eu tentei e
nunca ouvi esse barulho. Eu acho que é possível, porque você sabe que dá para gravar e o
ruído é razoavelmente grande, com aparelhos sensíveis para isso. O ponto de partida é
saber, ou entender, e eu gostava de ler autores e ainda leio dessa, digamos, linguagem
corporal, e o que me chamou atenção, inclusive, na palestra que eu fiz na terça-feira de
manhã, foi que eu disse que podia citar vários autores que citavam a linguagem do corpo,
da especificidade do corpo, mas eu preferia citar um tenista brasileiro, que é Tomaz Koch.
E ele se refere exatamente a isso. Que nós não estamos habituados a ouvir a linguagem do
corpo. E ele se referindo ao caso do Guga, que teve que abandonar um torneio devido ao
cansaço, disse que esse é um dos exemplos em que o corpo estava dando um alarme e não
se escuta. Então eu penso o seguinte, se nós não ouvirmos o alarme, e você sabe que o
alarme é um ruído pra assustar, quanto mais difícil será pra entendermos a fala cotidiana do
corpo, porque não foi habituado a pensar nisso. Então, eu acho que a educação física é o
ponto de partida para eu começar a escutar a linguagem do meu corpo, e a partir dessa
linguagem, eu saber como eu devo viver, como eu devo usar o corpo para rendimentos. Às
ciências me dão informações à vontade, só que elas não me avisam que depois de eu ter
usado dessa maneira, eu vou ter tais e tais conseqüências, mais ou menos graves. Sem
dúvida, todas elas agressivas ao desenvolvimento harmônico de um organismo.
(André Malina) – Essa sua concepção de educação física, juntando com esse lugar de
onde você olha, ela se coaduna com alguns desses dois debatedores da Movimento, ou
com algum outro debatedor, dessa mesma discussão, da Movimento? Você verifica
uma identificação um pouco maior, entre um e outro?
(Silvino Santin) – Eu não vejo nenhuma relação. Eu não me recordo dos textos dos outros,
mas eu não vejo nenhuma relação com nenhum dos dois textos que eu comentei. Eu vejo
vinculação dessa minha postura com as teses do Maturana, que é um dos pensadores que
está me influenciando muito, as teses da ecologia, Baudrillard, Edgar Morin, são autores
que eu bebo em alguma de suas fontes, que são os livros Eu poderia dizer que tenho as
obras completas de todos eles, e que de fato a vida é colocada, digamos, como um
referencial de uma nova proposta, de uma nova ciência. Aquela que é capaz de deixar que
a vida seja viva, e não de utilizar a vida, de explorar, de intervir, de violentar de maneira
invasiva. Por exemplo, todos os medicamentos bioquímicos, são invasivos ao organismo
humano. O bom medicamento é aquele que é proposto pela medicina ortomolecular, isto é,
organismos têm recursos para se auto-proteger. A medicina ortomolecular é aquela que
propicia ao organismo vivo, os recursos para ele fortalecer suas defesas. O medicamento
químico é aquele que vai substituir as funções do organismo. Então eu acho que a
educação física é aquela que deve fortalecer, dar reforço, sei lá, dar condições para que o
organismo das pessoas se desenvolva dentro das suas características, respeitando,
digamos, seu processo auto-organizativo. Como é que se faz isso eu não sei, porque eu só
aprendi a usar o meu corpo e aplicar nele conhecimentos que vieram de fora, fornecidos
por uma ciência que tem uma imagem do meu corpo como uma máquina.
(André Malina) - Com relação a questão da inteliggentsia, dos intelectuais,
você tem algum conceito formado sobre o intelectual?
(Silvino Santin) – Não. Conceito claro não, mas, dizendo de uma maneira, digamos,
existencial, experiência pessoal, eu penso num universo no qual eu estou envolvido. Eu
penso que não sou um artefato que ando por aí e pode reproduzir o pensar como se fosse
uma máquina de automóvel. O meu pensamento não é meu, ele é do mundo no qual eu
existo. Então, ele tem vinculações de ordem, digamos, de confirmação, de vinculação
direta, e também de resistência. Eu penso em muitas coisas aquilo que todo mundo pensa,
mas eu também penso coisas que resistem a essa maneira de pensar, e talvez, em certas
áreas, eu tenha um pensamento resistente ao que se pensa por aí, muito maior do que aquilo
que confirma o que está ali.
(André Malina) – Você acha que o discurso que é produzido por esse
intelectual, o discurso escrito, o discurso falado, ele chega de alguma forma aos
professores, à prática profissional?
(Silvino Santin) – Eu acho que chega muito pouco. Eu penso que o discurso
acadêmico dentro da Universidade, é um discurso muito circunscrito à própria área
acadêmica, e ainda eu não vejo que dentro da área acadêmica haja uma circulação entre as
diferentes áreas do saber. Eu posso falar dentro de uma área da qual eu convivi, que eu me
formei e trabalhei bastante tempo, que é a filosofia. E eu vejo que os filósofos falam pra si
mesmos, hoje. Eu não vejo a filosofia ser capaz de fazer um discurso que seja audível, nem
dentro da Universidade.
(André Malina) - Eu trabalhei com Gramsci e Mannheim na concepção de
intelectual especialmente. Você acha que a sua concepção, o seu lugar, se aproxima de
alguns dos dois? Algum dos dois te seduz mais enquanto autor?
(Silvino Santin) – Eu diria que o Gramsci, numa determinada época, me chamou
muito a atenção. Ainda hoje eu reconheço muito que ele tenha um pensamento bom. Talvez
eu seja um leitor, uma pessoa que tenha lido muito Gramsci. Na época se falava muito em
pensamento orgânico, e tal, mas eu acho que ele trouxe um conceito que para mim está
muito presente, de que todo intelectual, seja de que natureza for, faça que discurso fizer, ele
é, digamos, resultante de uma ordem sócio-econômica-cultural do momento em que ele
vive, da época histórica. Eu gostaria de lembrar nesse sentido o Bourdieu quando, por
exemplo, nós usamos muito o livro dele, “A Reprodução”, e esquecemos de ler o livro dele,
onde de fato mostra como se criam dinastias dentro da intelectualidade. Então, o médico, o
filho vai ser médico, o neto vai ser médico, etc. Então, digamos, os executivos, os
professores. O pai era professor, o filho é professor. Essas famílias são a verdadeira herança
de uma cultura. Então você vai ter que ter alguém que nasça de um movimento alternativo,
que gera um outro tipo de intelectual. Mas, também ele vai ser gerado por aquele grupo
alternativo de organização político-social. (O Mannheim não, não...) Não, não. O
Mannheim na filosofia eu li algo, mas não vejo nenhuma vinculação com minha maneira de
pensar. Uma vez eu assisti a algumas palestras do Florestan Fernandes, que falava do
Mannheim, mas não me chamou atenção.
(André Malina) – Bom, eu gostaria de salientar e agradecer a sua entrevista, e
gostaria que se você tivesse alguma coisa pra falar, falasse, e, anteriormente a isso, me
responder se tem algum problema a utilização desta entrevista em parte ou inteira na
minha dissertação de mestrado, ou com fins de livro.
(Silvino Santin) – Não tem nenhum problema. Aliás, se eu dei foi para que
utilizasse. Eu faço questão, inclusive, que ela sirva, seja pra colaborar com as idéias que
você tem, seja pra alimentar a sua crítica sobre aquilo que eu disse. Eu não tenho nenhuma
preocupação em ser dono da verdade, nem de um discurso que deva ser repetido. Eu
sempre digo para os meus alunos que o importante é que eles não saibam o discurso que eu
faço na aula, mas que saibam como é que organizam o discurso deles. Inclusive, se esse
discurso for contrário ao meu, que eles saibam porque estão produzindo esse discurso que é
contrário ao meu. Então, eu não tenho nenhuma preocupação e faço votos que você consiga
fazer um bom trabalho de pesquisa, e se eu puder colaborar com essa entrevista, seja de que
ordem for essa contribuição, eu estarei plenamente satisfeito.
(André Malina) – Muito obrigado doutor Silvino, boa noite pra você.
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do trabalho completo - Boletim Brasileiro de Educação