UNIVERSIDADE GAMA FILHO PPGEF – MESTRADO EM EDUCAÇÃO FÍSICA UM OLHAR SOBRE OS INTELECTUAIS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NA REVISTA MOVIMENTO André Malina RIO DE JANEIRO FEVEREIRO DE 2001 UM OLHAR SOBRE OS INTELECTUAIS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NA REVISTA MOVIMENTO por André Malina “Dissertação Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho Como Requisito Parcial à Obtenção do Título de Mestre em Educação Física”. Fevereiro - 2001 UM OLHAR SOBRE OS INTELECTUAIS DA EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DO DEBATE EPISTEMOLÓGICO NA REVISTA MOVIMENTO André Malina Apresenta a Dissertação Banca Examinadora: __________________________________ Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira - Orientador - ___________________________________ Prof. Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo ____________________________________ Prof. Dr. Eloísa da Silva Gomes de Oliveira Fevereiro de 2001 “Penso que se deve considerar a produção cultural (em qualquer de suas espécies) a dois níveis, o da produção em si e o da sua incidência social; ou, se se quiser, do ponto de vista do criador, do investigador, e do ponto de vista da coletividade. No primeiro nível, a produção cultural é um fim em si – de fato, o investigador e o criador só serão autênticos produtores enquanto a procura da verdade constituir para eles um objeto e não um meio. (...) Para as coletividades, entretanto, a cultura não é um fim em si: é um meio para conhecer melhor a natureza e a sociedade, para controlar e dirigir as forças do mundo natural e social, para garantir a reprodução da sociedade em condições progressivamente melhores. É neste nível que a intervenção dos intelectuais se conjuga à intervenção dos membros da coletividade – é o nível da escolha de prioridades, da seleção de recursos, etc. É neste nível que se põe à política cultural.” SALOMÃO MALINA “O fundamento ontológico da história é a relação do homem com os outros homens, o fato de que o “eu” individual só existe como pano de fundo da comunidade. O que procuramos no conhecimento do passado é a mesma coisa que procuramos no conhecimento dos homens contemporâneos. Primeiro, as atitudes fundamentais dos indivíduos e dos grupos humanos em face dos valores, da comunidade e do universo. Se o conhecimento da história nos apresenta uma importância prática, é porque nela aprendemos a conhecer os homens que, em condições diferentes e com meios diferentes, no mais das vezes inaplicáveis à nossa época, lutaram por valores e ideais, análogos, idênticos ou opostos aos que possuímos hoje; o que nos dá consciência de fazer parte dum todo que nos transcende, a que no presente damos continuidade, e que os homens vindos depois de nós continuarão no porvir. A consciência histórica existe apenas para uma atitude que ultrapassa o eu individualista, ela é precisamente um dos principais meios para realizar essa superação.” LUCIEN GOLDMANN Dedico esta dissertação a minha família, minha companheira Ângela, meu filho Mateus, meu filho Henrique, minha mãe Rosa, meu pai Salomão, meus irmãos Léo, Mateus (in memorian), Maurício, Carlinhos, Jaques, meus amigos e a todos que devido às contradições sociais não puderam chegar neste patamar. Por todos estes e por mim, materializou-se a minha dissertação. AGRADECIMENTOS Os meus sinceros agradecimentos às pessoas, abaixo relacionadas, por tudo que envolve esta etapa conquistada na trajetória de fazer-se um pesquisador: - Ângela Celeste Barreto de Azevedo; - (GEPHEFE) Grupo de Estudo e Pesquisa em História da Educação Física e do Esporte – RJ e MS - Sílvio de Cássio Costa Telles - Ao corpo docente, discente e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho –, sob a coordenação do Prof. Dr. Helder Guerra Resende - Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira, meu orientador e amigo; - Prof. Dr. Heloísa da Silva Gomes de Oliveira; - Prof. Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo - A CAPES, que investiu na minha qualificação profissional; - Aos entrevistados que muito gentilmente me receberam: Professores Dr. Adroaldo Gaya, Dr. Celi Nelza Zulke Taffarel, Dr. Silvino Santin, Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo, Dr. Lamartine Pereira DaCosta. - Em especial a minha família e amigos, como Fernando, Rogério, Marcelo, Vítor, Walace, Valder, Leonardo, Patrick, Edna, Soraya, Elza e outros que viveram momentos importantes em minha vida. MALINA, André. Um Olhar sobre os Intelectuais da Educação Física a partir do Debate Epistemológico na Revista Movimento. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF, 2001. Orientador: Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira RESUMO O aprofundamento na discussão sobre o intelectual e sua função social pode ser verificado a partir do debate epistemológico ocorrido na revista Movimento, iniciado com os artigos de Gaya (1994) e Taffarel e Escobar (1994). No presente estudo, tal debate é analisado a luz de emblemáticos autores sobre a concepção de intelectual, como Mannheim (1982 e 1986) e, especialmente, Gramsci (1966, 1978, 1987 e 1995), onde discutimos o intelectual da educação física em conjunto com os conceitos gramscianos de intelectual e de hegemonia. Para tanto, foi utilizado o método dialético, através do conceito de concreticidade de Kosik (1995) na busca da essência do fenômeno, apoiado pela perspectiva teórica de Goldmann (1967 e 1980). À análise dos artigos, unimos entrevistas realizadas com seus autores, além do referido referencial teórico. Diante disto, obtivemos como resultado a importância do intelectual no desenvolvimento cultural e social. Estes intelectuais subsidiam inclusive a docência na EF, e, ao mesmo tempo, influenciam os rumos da sociedade, quer numa perspectiva hegemônica ou contra-hegemônica, construindo tais perspectivas buscando um consenso com o senso comum. MALINA, André. An Overlook of the Physical Educations Intelectuals from the Epistemologic Debate in the Movimento Magazine. (Master Dissertation). Rio de Janeiro: Gama Filho University (Pós Graduate Program on Physical Educacion), 2001. ADVISER: Prof. Dr. Vítor Marinho de Oliveira ABSTRACT The depth in the discussion about intellectuals and their social function may be verifyed from the epistemologic debate that took place in the Movimento magazine, initiated with the Gaya’s articles (1994) and Taffarel and Escobar (1994). In the present study, this debate is analyzed in the light of important authors on the definition of intellectual, such as Mannheim (1982 and 1986) and, especially Gramsci (1966, 1978, 1987 and 1995), where we discussed the physical education intelectual together with the gramscianos concepts about the intellectual and the hegemony. To do that, the dialectical method was used, through Kosik’s concreteness concept (1995), in the search for the essence of the phenomenom based on the theoretical perpective of Goldmann (1967 and 1980).The analysis of the articles were added to interviews with the authors, besides the theoric referential. As a result we have the importance of the intelectual in the social and cultural development. These intellectuals even support the faculty in physical education, and influence, at the same time, the direction of the society on a hegemonic or counter-hegemonic perspective constructing such perspectives by trying to reach a consensus with the common sense. ÍNDICE CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO 1.1 – Introdução/problematização........................................................................... p. 01 1.2 – Formulação da situação-problema ..................................................................p. 06 1.3 – Objetivo do estudo...........................................................................................p. 07 1.4 – Questões a investigar.......................................................................................p. 07 1.5 – Relevância do estudo.......................................................................................p. 07 1.6 – Metodologia.....................................................................................................p. 09 1.6.1 - Procedimentos metodológicos..............................................................p. 12 CAPÍTULO II – OS INTELECTUAIS E A HEGEMONIA 2.1 – Conceitos de intelectual...................................................................................p. 15 2.1.1 – O conceito de intelectual de Karl Mannheim......................................p. 17 2.1.2 – O conceito de intelectual de Antonio Gramsci....................................p. 23 2.1.3 – Uma síntese.........................................................................................p. 31 2.2 – O conceito de hegemonia de Antonio Gramsci...............................................p. 33 CAPÍTULO III – A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA ÓTICA DE ALGUNS DOS SEUS INTELECTUAIS E A QUESTÃO DA HEGEMONIA 3.1 – Os artigos da revista Movimento.....................................................................p. 45 3.1.1 – Análise do artigo de Gaya...................................................................p. 46 3.1.2 – Análise do artigo de Taffarel & Escobar.............................................p. 63 3.2 – Os intelectuais da educação física frente à questão da hegemonia..................................................................................................................p. 77 CAPÍTULO IV – CONCLUSÃO 4.1 – Conclusão.........................................................................................................p. 89 4.2 – Referências bibliográficas................................................................................p. 103 4.3 – Anexos..............................................................................................................p. 108 4.3.1 - Anexo 01...............................................................................................p. 110 4.3.2 – Anexo 02..............................................................................................p. 130 CAPÍTULO I - Introdução: Introdução/Problematização: O aprofundamento no trato da questão do discurso teórico do intelectual e sua prática conseqüente é recente no âmbito da Educação Física (EF) brasileira e sua manifestação pode ser verificada de forma mais organizada na discussão sobre a concepção de EF. Antes dos anos 80, registram-se poucas iniciativas neste sentido. No contexto ditatorial pós-64, relacionado à EF, por exemplo, podemos citar as publicações de Faria Júnior (1969) e DaCosta (1971) como significativas de tal discussão. Nesta época, aumentou o número de Instituições de Ensino Superior e houve uma reforma curricular na EF (1969), o que denota indicativos da importância que a área assume. Faria Júnior (1969), enfatiza a necessidade de introdução de técnicas pedagógicas de ensino na EF, apoiado numa perspectiva técnica relacionada à Teoria Geral dos Sistemas, dividindo os objetivos educacionais entre objetivos físico-motores e técnicopedagógicos. Essas técnicas pedagógicas seriam utilizadas a partir de modelos propostos, como exercícios de aula e de planejamento. Apesar de privilegiar a técnica, a contribuição deste estudo foi de suma importância para a EF na época, por haver trazido a discussão sobre a relevância das disciplinas pedagógicas e da própria pedagogia para o ensino da EF. DaCosta (1971), tinha como objetivo traçar um diagnóstico sobre a área da EF e dos desportos no Brasil. O livro pretendia levantar dados em nível macro, e submetidos também à análise sistêmica. A escolha pela utilização da Teoria Geral dos Sistemas deu-se porque, segundo o autor, daria bons índices de correlação com outros países e seria o melhor caminho de análise para países em desenvolvimento. Desta forma, a EF e o desporto são caracterizados pelo modelo de pirâmide, onde se encontrava o desporto de massa na base, logo acima a EF escolar e no topo o desporto de alto nível. DaCosta ainda conclui que havia aumentado a importância da EF/desportos entre 1964 e 1970, período que coincidiu com o Golpe e a conseqüente ditadura militar, e apontou para um desenvolvimento significativo da área (1). Por outro lado, também referiu para a necessidade de maior participação do Governo Federal na educação e nos desportos e para a inexistência de uma política adequada de EF/desportos. A partir da década de 80, houve expansão de cursos em nível de pós-graduação na EF, deslocamento de profissionais para realizarem estes cursos em áreas de conhecimento correlatas, principalmente na Educação, bem como atuação de profissionais dessas áreas na EF. Nessa década, ocorre também efervescência na discussão sobre a concepção de EF por seus intelectuais em âmbito qualitativo. Destacam-se Oliveira (1983), Faria Júnior (1987), e Guiraldelli Júnior (1988) como exemplos de intelectuais que retratam essa questão. Oliveira (1983), numa publicação inicialmente destinada ao antigo Segundo Grau (atual Ensino Médio), mas também adotada em muitas universidades, problematizou a identidade da EF com a pergunta “O que é Educação Física?”. Este livro catapultou esta indagação, suscitando debates posteriores. Nele, o autor enfatiza a História para entendermos como foi tratada a EF através dos tempos, perguntando se ela seria esporte, jogo ou medicina, e caracteriza aproximações e distanciamentos com estes e outros conhecimentos correlatos. Posteriormente, Faria Júnior (1987) discutiu em um artigo a formação profissional em EF, indo às suas origens e identificação político-social. O autor defendeu uma formação profissional generalista, o que, em países como o Brasil, acreditava ser uma tendência que se deve defender. O autor também apontou para o risco da formação de especialistas, especialmente com o advento da Resolução 03/87, trazendo a possibilidade da criação dos cursos de bacharelado (2) e, acarretando, segundo ele, numa fragmentação da área. Tal fato levaria também a criação de códigos de ética, regulamentação da profissão, conseqüente reserva de mercado, enfatizando o entendimento do professor de EF como um técnico. Guiraldelli Júnior (1988), prefaciado por José Carlos Libâneo, tentou aplicar a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos à EF, abordando inicialmente, através da história, as diferentes concepções de EF e suas respectivas filosofias. Desta forma, classificou cinco tendências da EF no Brasil: Higienista (até 1930); Militarista (1930-1945); Pedagogicista (1945-1964); Competitivista (pós-64) e, finalmente a Popular, que existe sem uma teorização formal e é, para o autor, mais abrangente, pois é “uma concepção de EF que, paralela e subterraneamente, veio historicamente se desenvolvendo com e contra as concepções ligadas à ideologia dominante” (Ghuiraldelli Júnior, 1988, p. 21). A concepção de EF Popular e sua filosofia estariam inseridas num marco de lutas de classes, ligadas ao Movimento Operário e Popular que ocorria no Brasil, ganhando corpo no fim dos anos 20 e reforçado no breve período em que tal movimento não esteve na clandestinidade, após o fim do Estado Novo, período ditatorial governado por Getúlio Vargas (1937-1945). O autor apontou o professor de EF como um intelectual e demonstrou indicativos para o entendimento de uma EF crítico-social dos conteúdos. Na década de 90, a discussão sobre a concepção de EF foi aprofundada, bem como encontramos preocupações de diferentes autores sobre a posição encontrada no discurso dos intelectuais da área, reportando-se inclusive à década anterior. No livro Metodologia do Ensino de Educação Física, que ficou conhecido como Coletivo de Autores (1992), houve uma proposta metodológica de ensino para a EF escolar, tomando por base a década de 80. Os autores justificam a escolha desta década, por entendê-la como questionadora do papel da EF frente aos problemas de época, observados por diferentes prismas, como o sócio-político-econômico. Eles acreditavam que a partir de diversos paradigmas resultariam também diversas práticas pedagógicas, e concebem a EF como prática pedagógica vivenciada no ambiente escolar, tematizando “formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, (...) que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal (3)” (Soares et alli, 1992, p. 50). Noutra vertente, Oliveira (1994) destacou dois pólos de propostas teóricas de atuação: a pedagogia do Consenso e a do Conflito, e demonstra que muitos autores, inclusive alguns ligados às discussões mais avançadas politicamente na década de 80, não possuíam discurso especialmente voltado à pedagogia do Conflito, aproximando pari passu suas concepções de EF da pedagogia do Consenso, ou no máximo identificando-as com posições ditas progressistas. Neste contexto, rico em produções relacionadas a diferentes concepções de EF, foi promovido em setembro de 1994 o lançamento da revista Movimento, publicada pela Escola Superior de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Esta revista traz em destaque um debate sobre a concepção de EF, delineando discursos e conseqüentes posições de intelectuais da área, porque tinha como pretensão, escrita no seu editorial, a contribuição para “uma relação entre os pensadores da área e destes com a sociedade." (p. 04). Nas páginas centrais da revista, criou-se uma seção, chamada Temas Polêmicos, e assim formulada por este editorial: "Foi a preocupação em estabelecer realmente a comunicação que nos levou a criar a seção Temas Polêmicos, onde o espaço para o pensamento divergente será garantido, proporcionando um ambiente aberto à reflexão que contribua para o movimento do conhecimento da área.” (1994, p. 04). No seu primeiro número, tal seção contemplou a questão epistemológica da identidade da EF, protagonizada inicialmente pelo artigo do professor Adroaldo Gaya (Gaya), proveniente de sua aula inaugural na UFRGS, denominado "Mas Afinal, o que é Educação Física?", também baseado em estudo realizado na sua tese de doutorado. Este artigo foi analisado pelas professoras Celi Nelza Zulke Taffarel (Taffarel) e Micheli Escobar (Escobar), resultando num outro artigo, denominado "Mas, afinal, o que é Educação Física?: um exemplo de simplismo intelectual". A partir desse debate inicial, outros intelectuais foram convidados a se pronunciarem, escrevendo sobre tais artigos e, por conseguinte, sobre a concepção de EF. Estes escritos foram publicados nas páginas centrais dos números 2 - 3 e 4 dessa revista. Assim, além de Gaya (1994) e Taffarel & Escobar (1994), também Bracht (1995), Lovisolo (1995), Santin (1995), Ghiraldelli Júnior (1995), Pallafox (1996) e DaCosta (1996); manifestaram suas opiniões, que conotavam perspectivas e tendências da EF sob diferentes prismas e relativamente sobre suas visões sociais de mundo. O pensamento dos intelectuais acima descritos apontou para uma concepção de EF de época e ao produzirem tal concepção passaram a exercer uma função intelectual nos termos do debate sobre a questão epistemológica. Desta forma, cabe a análise sistemática dos textos dos autores eleitos no presente estudo (Gaya e Taffarel e Escobar), produzidos para a revista Movimento, o que pode demonstrar posicionamentos assumidos, com conseqüentes desdobramentos e hegemonia vigente. 1.2 - Formulação da situação problema: No contexto acima delineado, evidencia-se a necessidade da investigação de problemas centrais da EF, como a posição demonstrada no discurso de seus intelectuais, manifestada através de concepções relativas à área. Isto posto, a pesquisa inicia-se com o seguinte problema: Compreender posições hegemônicas delineadas por intelectuais através de seus discursos sobre a concepção de EF no âmbito do debate da questão epistemológica. Os artigos de Gaya e Taffarel & Escobar, escritos para a revista Movimento, foram os eleitos para análise, visando a resolução da situação-problema. Cabe ressaltar que a revista Movimento é considerada relevante para a área de EF, é muito lida por estudantes e professores, além de ter promovido o prolongamento deste debate sobre a concepção de EF a partir dos artigos inicialmente publicados. 1.3 - Objetivo do estudo: Verificar em que medida os intelectuais da EF organizam a cultura e constroem um consenso hegemônico através do discurso sobre a concepção de EF. 1.4 - Questões a investigar: - Qual a concepção de EF presente nos textos de Gaya, Taffarel & Escobar que foram publicados na revista Movimento. - Quais os aspectos que caracterizam o caminho para o processo de construção de uma hegemonia? 1.5 - Relevância do estudo: Neste estudo evidencia-se a importância do trabalho de revisão da literatura, com ênfase no conceito de intelectual de Gramsci e Mannheim e de hegemonia de Gramsci, por se tratarem de autores destacados nas perspectivas teóricas diferenciadas que apresentam, além de muitos discutidos e problematizados em diversas áreas de conhecimento. A compreensão das idéias destes autores pode delimitar o discurso dos intelectuais da EF relacionadamente através da análise dos conceitos teóricos e função social que propõem. Generalizando as questões levantadas no estudo, pode-se dizer que a significação social é condição sine qua non do fazer-científico referente a uma prática pedagógica como a EF. Por isso, é importante a postura do intelectual frente aos objetivos de sua produção científica e o que irão fazer dela, ou seja, como os intelectuais pretendem que sua intervenção na área e na sociedade como um todo, seja utilizada. A característica de levantamento dos dados de forma meramente factual não direciona a produção do conhecimento, e nem assim torna-se neutra. É importante também considerar a compreensão que baseia a contribuição dos intelectuais na dinâmica do conhecimento na área da EF porque, embora possuindo características peculiares, ela não é dissociada dos problemas e contradições inerentes à sociedade em geral. Com isto, os intelectuais que produzem conhecimento, também não possuem um discurso dissociado da ideologia, como em qualquer âmbito científico. É pressuposto, no entanto, que a investigação de seus discursos, demonstre que tal ideologia seja subordinada à realidade dos fatos. Ao demonstrar a posição de intelectuais da área através de seu discurso, produz-se um retrato enfocado na produção de consenso, onde se estabelecem determinadas concepções de mundo que podem visar uma postura favorável ou contrária à manutenção dos propósitos sócio-político-econômicos dominantes e com diferentes abordagens. A existência de uma hegemonia em tal discurso indica uma aliança tácita com alguma dessas concepções de mundo e pode ser desvelada. A relação dos dados levantados no presente estudo pode, por sua vez, indicar a matriz teórica que norteia a concepção hegemônica e a contra-hegemônica de EF. Tal fato é dado de contribuição para demonstrar a base teórico-epistemológica da discussão sobre estas concepções, direcionando para o avanço do estabelecimento da demarcação dessa área. Nestes termos, torna-se relevante o estudo referente à questão da discussão dos intelectuais sobre a concepção de EF, no bojo de discussões com cunho epistemológico, porque possibilita a provocação de reflexões críticas sobre a construção de um consenso hegemônico ou de contra-hegemonia através do conceito de EF. As conclusões do estudo podem possibilitar ainda desdobramentos e considerações decorrentes da verificação realizada, indicando uma base teórica sobre a produção científica dos intelectuais da área em determinada época, incitando estudos sobre a atual produção científica e concepção de EF de seus intelectuais. Assim sendo, este estudo pretende se situar na verificação dos discursos de intelectuais da EF, a função social dos discursos e dos intelectuais em relação à área e a sociedade, ampliando a produção científica existente sobre o assunto e buscando aproximação para uma identidade da EF. 1.6 – Metodologia: No presente estudo utilizamos o método dialético, por considerarmos como o mais adequado no atendimento do objetivo proposto, assumindo, desta forma, as idéias de Kosik (1995) sobre a busca da essência do fenômeno para além da pseudoconcreticidade. (4) Segundo Kosik (1995), para compreendermos a essência de um fenômeno faz-se necessário propor antecipadamente a decomposição do todo na ação e no conhecimento filosófico, decorrendo, neste sentido, uma separação do que seja essencial e secundário neste fenômeno. Apesar do fenômeno mostrar-se como um todo, isto não ocorre de forma imediata, mas como uma visão de mundo das aparências. Este mundo das aparências que parece nos mostrar o todo, não reconhece a essência verdadeira. Tal visão de mundo aparente é denominada pseudoconcreticidade. Ao tentarmos atingir a essência precisamos do fenômeno e de sua manifestação, que é a coisa (5) e os elementos constitutivos para tratarmos esta coisa. A representação do fenômeno e de sua manifestação, contudo, pode não ser uma qualidade natural da coisa e da realidade, mas sim “uma projeção na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas” (Kosik, 1995, p. 19). O mundo real ou totalidade concreta encontra-se oculto pelo mundo da pseudoconcreticidade, precisando ser desvelado para que se tente maior aproximação com a verdade. Essas aproximações são sucessivas e permanentes, como um ir e vir do conhecimento em relação ao fenômeno analisado, ou seja, é necessário realizar-se um detóur (Kosik, 1995). Conseguir chegar ao concreto parece ser possível somente com esta mediação do abstrato ou mediação da análise, como Saviani (1986) chama o detóur de Kosik. Isto posto, a maior aproximação com a verdade depende do conhecimento sobre esse fenômeno, que é relativo à construção histórica do sujeito e influenciada por múltiplas relações sociais e com a própria construção do conhecimento. Neste sentido, a compreensão da história ocorre através de explicações com cunho sociológico. Para transpor o modelo de registro de fatos históricos simplesmente, pressupõe, entretanto, mais que a junção das disciplinas história e sociologia tratadas metafisicamente, somando-se as suas abstrações. Uma ciência articulada só poderia ser uma sociologia histórica ou uma história sociológica. Por esta ótica, para se considerar uma ciência como sendo de fatos humanos, deve-se abandonar toda sociologia ou história metafísicas para alcançar uma sociologia que só pode ser concreta se for histórica. Desta forma, “o conhecimento concreto não é a soma mas síntese de abstrações justificadas.” (Goldmann, 1980, p. 17). Na perspectiva de uma teoria materialista do conhecimento, é necessário utilizar-se a consciência de maneira dialética (6), visto que, “a consciência humana é reflexo e projeção, registra e constrói, toma nota e planeja, reflete e antecipa, é ao mesmo tempo receptiva e ativa.” (Kosik, 1995, p. 32-33). Segundo Kosik (1995), é pressuposto a ocorrência de uma visão dialética de mundo pelas pessoas, considerada não-reduzida ou ampliada. A partir do conhecimento velho é possível alcançar tal visão e atingir um conhecimento novo, onde a história é o ponto de partida para atingir este conhecimento, para se alcançar à totalidade concreta. Esta totalidade concreta pode ser atingida ao obter-se o conhecimento da concreticidade do real, sempre acrescentando fatos novos dialeticamente. Tal realidade é um todo dialético que não compreende a realidade total, mas uma teoria da realidade em que o conhecimento humano vem sendo permanentemente acumulado e processado em forma de espiral e na qual a concretização se desloca das partes para o todo e vice-versa. Nessa espiral, todo princípio é abstrato e relativo. (id)) O sujeito desta realidade é, invariavelmente, social, um ser produtivo por meio do desenvolvimento de suas atividades, onde conhece o mundo e se relaciona dialeticamente com ele. Por isso, faz-se necessário conhecer a realidade social do sujeito para melhor compreensão do todo. Ao conhecermos a realidade do sujeito historicamente construído, aproximamo-nos da compreensão do todo e afastamo-nos da pseudoconcreticidade, até a sua destruição, saindo da aparência do fenômeno para chegar à sua verdadeira objetividade (Kosik, 1995). A dialética por sua vez, prevê que as interpretações feitas relativas ao mundo devem ser encaradas como passíveis de mudanças e reconstruções, pois a interpretação prática de transformar o mundo em que vivemos, desencadeia ao mesmo tempo um processo de transformação pessoal num mundo em permanente transformação. Este processo deve ser o da autocrítica e da crítica à realidade social. Tal pensamento é tratado como dialético e deve ser aplicado na prática, apesar da dificuldade e da sedução de estabelecer-se a priori e também de pensar que todos seremos felizes porque pensamos dialeticamente. O método dialético, no entanto, pode causar desconforto em certos segmentos de classe, porque pressupõe mudanças em conceitos admitidos como verdades, até mesmo quando visa se aproximar mais destas. Na vertente dialética, existe uma unidade e uma unicidade entre teoria e prática, isto é, entre o conhecimento e a ação. Existe, portanto, uma visão de mundo orgânica, propiciada pela dialética em que o “ser” o é em detrimento do “ter” e passa a existir também uma oposição relativa à metafísica, pois o movimento ocorre invariavelmente e é concreto. Por outro lado, segundo Politzer et alli (1980), a dialética contraria a lógica formal, porque busca a totalidade dos aspectos do processo, em detrimento do resultado imediato e aparente. Portanto, as conceituações abordadas no presente estudo se respaldam na visão do método dialético proposto por autores marxistas. 1.6.1 - Procedimentos metodológicos: O primeiro procedimento desta pesquisa será analisar a literatura pertinente, buscando evidências necessárias para elaboração de um trabalho de cunho sócio-filosófico. Tendo em vista esta natureza da pesquisa, faz-se necessário recorrer a determinados conceitos ligados à compreensão de significados relacionados à busca da essência do fenômeno. Para tentar aproximações com a verdade existente no fenômeno analisado, buscando alcançar a sua essência, sem permanecer na aparência desse fenômeno, utilizaremos o conceito de busca da essência do fenômeno para além da pseudoconcreticidade, de Kosik (1995), recorrendo também a outros autores, como Goldmann (1980) e Japiassú & Marcondes (1996). Desta forma, busca-se compreender conceitos emitidos pelos intelectuais da educação física, por refletirem sua função para a sociedade. Para chegar à compreensão destes conceitos, utilizamos primeiramente o conceito de intelectual proposto por Giroux (1992). Em seguida, discutimos o conceito de intelectual proposto por dois emblemáticos autores no trato dessa questão: Gramsci (1966, 1978, 1995) e Mannheim (1982 e 1986). Posteriormente, adotamos o conceito gramsciano de intelectual por aproximação ideológica e em virtude da interligação deste com todos os seus outros conceitos explicativos relacionados ao homem e a sociedade que compõem sua proposta teórica. No sentido de possibilitar o aprofundamento na análise dos pressupostos assumidos, utilizaremos especialmente o conceito de hegemonia proposto por Gramsci. Da mesma forma, tal conceito permeia toda a teoria gramsciana, embora se possa afirmar que também funciona como um elo com outros conceitos, delineando a pretensão do presente estudo. Outros autores também auxiliarão no trato desses conceitos ao longo do estudo, como Marx (1987), Bottomore et alli (1997), Bocayuva & Veiga (1992), e Jesus (1989). Finalmente, será verificada a concepção de educação física e feita à análise e descrição do que escreveram os seguintes intelectuais para a Revista Movimento: Gaya (1994), Taffarel & Escobar (1994). Além disso, quando necessário for, para melhor compreender as diferentes concepções de educação física destes referidos autores, serão descritas e analisadas algumas de suas obras, como tese de doutorado ou livro. Por conseguinte, também quando necessário recorreremos a entrevistas realizadas com os autores desses artigos, através de perguntas abertas e estruturadas, para dirimir dúvidas e emitir um parecer condizente com os fatos estudados (7). Desta forma, visa-se argüir sobre suas concepções de EF da época dos artigos, seus conhecimentos e afinidades com os conceitos teóricos adotados no estudo e a possibilidade de autocrítica perante tal concepção. Isto posto, tendo em vista os objetivos a alcançar, apresentamos nos capítulos seguintes análises destas abordagens adotadas, determinadas como mais adequadas metodologicamente. Assim sendo, no capítulo II abordaremos o referencial teórico necessário para a pesquisa, partindo de uma descrição de conceitos de intelectual, do conceito gramsciano de hegemonia. No capítulo III, adotaremos o estilo descritivo-analítico com os artigos dos autores eleitos para análise publicados na revista Movimento e suas respectivas obras, quando consultadas, a luz do referencial teórico. Para desvelar fatos decorrentes serão ainda utilizadas entrevistas. Com esta análise busca-se identificar uma concepção de educação física que atenda a construção de hegemonia ou de contra hegemonia. Já no capítulo IV, descreveremos a conclusão acerca da temática abordada, verificando elementos identificadores sobre uma concepção de EF produzida por seus intelectuais, alinhada com a hegemonia ou contra-hegemonia. CAPÍTULO II – OS INTELECTUAIS E A HEGEMONIA: 2.1 – Conceitos de intelectual: O conhecimento vinculado ao intelectual e a função desempenhada por este na sociedade, vêm sendo discutido no decorrer dos tempos. Na Grécia antiga, por exemplo, o conhecimento e a verdade eram tratados harmoniosamente. Com o advento do cristianismo, no entanto, surgem problemas como a separação entre corpo e alma, fé e razão, humano e divino. Neste sentido, a verdade passou a ser encarada como infinita e divina, diferentemente do ser humano, que por possuir uma existência terrena finita, não pode conhecê-la. Processualmente, a fé passa a ser o problema central da filosofia na Idade Média. (Chauí, 1995). Nesta época, os principais intelectuais estavam vinculados à Igreja que detinha o conhecimento e selecionava os conteúdos a serem transmitidos conforme seus interesses. Com os filósofos modernos, ocorrem mudanças de paradigmas na filosofia. O tratamento da questão do conhecimento é modificado através de explicações sobre fatores como: a separação entre fé e razão, que se tornam distintas entre si; a imaterialidade das idéias tanto quanto da alma; e a sobreposição da razão e do pensamento em detrimento da vontade, que passa a ser controlável, evitando assim o erro. O processo de modificação da questão do conhecimento provoca uma ruptura com o modelo anterior, produzindo um novo pensamento filosófico que trata a inter-relação entre sujeito e objeto do conhecimento a partir da capacidade humana para o erro e a verdade. Surgem, neste período, proposições de teorias do conhecimento com intelectuais como Francis Bacon, René Descartes e John Locke, tornando a Teoria do Conhecimento uma categoria de estudo central da filosofia. A questão do conhecimento para os intelectuais mencionados é anterior a questão da ontologia, bem como pré-requisito para o tratamento da filosofia e das ciências. (Chauí, 1995). Assim, os intelectuais continuam a manter o domínio do conhecimento, mas com um caráter cientificista, ao invés do escolástico. Contemporaneamente, a questão do que são intelectuais e sua função para a sociedade vêm sendo abordada diferentemente por diversos autores, como Mannheim e Gramsci. Embora ratificando a valorosa contribuição de outros autores à questão, como Giroux (1992) (8), o presente estudo elegeu esses autores para seu tratamento. Portanto, neste item será abordado o conceito de intelectual através de uma descrição do pensamento destes dois emblemáticos autores nesse assunto. Tal escolha ocorreu por apresentarem suas propostas de maneira consistente e de forma mais adequada para o estudo e por divergirem entre si relativamente às suas concepções de mundo. 2.1.1 - O conceito de intelectual de Karl Mannheim: Mannheim associa a questão dos intelectuais como um problema da sociologia do conhecimento e da sociologia política, ou seja, o fazer científico dos intelectuais é relacionado a outras questões e passível de análise por parte de uma disciplina específica. O olhar dirigido ao fazer científico por parte do intelectual define a formulação do problema, a abordagem do problema, a classificação, ordenação e as categorias utilizadas. Mannheim define tal olhar como “posição social do observador”. (1986). Os intelectuais por possuírem uma posição social, assumem uma determinada decisão política, o que aparentemente inviabilizaria uma ciência política – e que Mannheim tenta comprovar sua viabilidade apesar dos fatos descritos. Já a própria política, pela ótica do autor, possui uma pedagogia, que transmite valores em forma de uma atitude frente ao mundo e que passa por toda a vida de quem os assimila. A situação de época verifica que toda concepção de mundo seja partidária, especialmente uma visão política de mundo. O conhecimento está fragmentado, mas pode ser integrado complementarmente através de diversos pontos de vista. Nesse sentido, as teorias opostas são produtos de fatos sociais determinados e podem se completar possibilitando preliminarmente uma ciência política. A ciência política não seria, no entanto, uma ciência partidária, mas geral, do todo. (Mannheim, 1986). Na tentativa de elaborar uma Sociologia do Conhecimento e uma Sociologia Política, Mannheim observa o intelectual como aspecto crucial nesta formação. Este intelectual publica seu principal livro Ideologie und Utopie em 1929, pelo qual é apontado como um dos “críticos do marxismo” (Bottomore et alli, in: Bottomore et alli, 1997). Nestes termos, embora tenha sofrido influência do marxismo em seus estudos iniciais, Mannheim se afasta progressivamente deste, alinhando-se cada vez mais com o pensamento de Max Weber. (Delacampagne, 1995). Mannheim (1982, 1986) discute a função dos intelectuais e a questão da ideologia, mas sua ótica, entretanto, é peculiar. Ele destaca que, embora não sejam os únicos, os intelectuais podem ser responsáveis pela melhor elaboração de sínteses relativas à sociedade. Para o autor, se adotarmos uma síntese absoluta, recaímos num intelectualismo estático, admitindo que o pensamento político tem origem desinteressada e que a síntese só ocorreria através de fontes de dentro do próprio âmbito político. Portanto, se o pensamento político vincula-se a uma perspectiva dentro do contexto social, uma síntese total deve tender a estar incorporada em algum grupo social, que pode estar localizado externamente ao meio político. A verdadeira síntese deve ser relativa e dinâmica, adequada ao tempo e espaço presentes e, para ser válida, "deve-se basear numa posição política que venha a constituir um desenvolvimento progressivo, no sentido de reter e utilizar boa parte das aquisições culturais e energias sociais acumuladas na época anterior" (Mannheim, 1986), especialmente no sentido de avaliar o que é necessário e o que ainda não é possível. (id) Esta nova ordem deve permear, se possível, toda a sociedade, buscando transformá-la. Para Mannheim (1986), a intelligentsia (9) seria o estrato que melhor desempenharia esta função, pois o estrato ideal deve ser "relativamente sem classe, cuja situação na ordem social não seja demasiado firme" (p. 180). Em relação à posição dos intelectuais, Mannheim afirma que uma sociologia orientada para referir-se somente às classes sócio-econômicas não conseguirá compreender adequadamente este fenômeno, pois, desta forma, os intelectuais se constituiriam numa classe. É considerável que muitos intelectuais vêm de estratos sociais rentistas (10), diretamente vinculados aos processos econômicos da sociedade. Alguns grupos de funcionários e profissionais liberais também poderiam ir nesta mesma linha de análise, e, com base nesta sociologia, pertenceriam igualmente à intelligentsia. Ao verificarmos tal questão com maior profundidade, conclui-se com um exame da sua base social, que há um menor vínculo destes grupos com uma classe, diferenciando-os dos estratos rentistas, atuantes mais diretamente no processo econômico. (Mannheim, 1986). Ao analisarmos os intelectuais historicamente - pois consideramos a forma mais adequada de entendê-los - verifica-se que possuem grande heterogeneidade, devido principalmente, às modificações nas relações de classe. Estas relações de classe afetaram ora favoravelmente, ora desfavoravelmente aos diferentes grupos existentes, acarretando conseqüentemente a não determinação de sua homogeneidade. Os intelectuais estão unificados pelo que lhes é comum: a herança cultural e a educação, que tendem a "suprimir as diferenças de nascimento, status, profissão e riqueza, e a unir os indivíduos instruídos com base na educação recebida" (Mannheim, 1986, p. 181), mas sem que desapareça completamente seu status e seus laços de classe. (id). A educação moderna é um retrato das contradições da sociedade. A pessoa que recebe esta educação formal é influenciada por tais visões contraditórias e contrárias, chocando-se com a sua orientação, que não é processada baseada na instrução recebida, tendendo a agir influenciado somente por sua situação social imediata. (Mannheim1986). Na vida moderna, a atividade intelectual não ocorre exclusivamente por meio de uma classe, mas por um estrato desvinculado de qualquer classe social, especialmente após a ascensão da burguesia, que, modernamente, tem duas origens sociais: os proprietários do capital e os que possuem como capital, sua instrução. (Mannheim, 1986). Para compreensão desta sociedade moderna, surge um estrato de uma sociologia que dificilmente irá compreende-la caso se oriente exclusivamente em termos de classe. Este estrato não se configura uma classe média, mas tem os processos que ocorrem na vida social. Quanto maior o número e as variantes das classes e estratos onde se recrutam os intelectuais, existirão mais correntes e tendências teóricas que os unem, causando um conflito na pessoa participante deste processo. (Mannheim, 1986). Para o autor, os intelectuais possuem em seu interior, ainda que parcialmente suprimidos, os conflitos e contradições inerentes à vida social, tanto quanto forem maiores os estratos e classes de onde eles provenham. Assim, estão ligados ao seu ponto originário, mas estão "também determinados, em seus pontos de vista, por este meio intelectual que contém todos os pontos de vista contraditórios" (Mannheim, 1986, p. 182). Estes conflitos permitem que apreendam à totalidade da situação analisada com mais profundidade. Dessa forma, o intelectual pode apresentar-se desvinculado, pertencente a uma ordem única, a dos intelectuais. Embora tenham conflitos inerentes tanto à origem quanto à ordem constituída, eles encontram-se também desvinculados para analisarem e emitirem pareceres mais aprofundados a um amplo espectro da sociedade. O pragmatismo e a instabilidade social são aspectos negativos dos intelectuais desvinculados, rótulo adquirido, em grande parte, devido a acusações de grupos politicamente extremistas. Para reverter tal situação, estes intelectuais apostam em duas linhas de ação: 1- A filiação a uma classe social, ou fornecendo teóricos aos conservadores - que não possuem autoconsciência teórica - ou ao proletariado - que não possuem condições para adquirirem conhecimento necessário face aos conflitos políticos modernos - ou a burguesia liberal. 2- Perscrutam suas raízes sociais e tentam cumprir sua predestinada missão de defender interesses intelectuais do todo. (Mannheim, 1986). Os intelectuais podem se filiar a uma classe, pois se adaptam a qualquer ponto de vista e possuem as devidas condições para escolher uma filiação. Entretanto, as pessoas que ainda não são intelectuais e são vinculadas a uma classe, quase sempre não ultrapassam os limites da sua visão de classe. Por outro lado, um indivíduo da classe proletária que ascende a condição de intelectual, não raras vezes muda sua personalidade social. (Mannheim, 1986). Pela teoria mannheimniana, a sociologia dos intelectuais está intrinsecamente ligada à formação de uma ciência política que venha a ser ensinada nas Universidades para jovens, com compreensão da perspectiva e concepção do todo. Não existe a pretensão de que numa escola desta natureza, os professores não tenham tendências partidárias ou não se chegue a decisões políticas, mas “existe uma profunda diferença entre um professor que, após cuidadosa deliberação, se dirige a seus alunos, cujas mentes ainda não estão formadas, de um ponto de vista adquirido por uma cuidadosa meditação, conduzindo a uma compreensão da situação total, e um professor exclusivamente interessado em inculcar um ponto de vista partidário já firmemente estabelecido.” (Mannheim, 1986, p. 187) Uma disciplina como a Sociologia Política, poderá ser útil para resolver questões tais como: Que interesse existe dentro de um contexto de fatos? Este interesse produzirá qual pensamento e que visão do processo social total? As respostas encontradas podem ser relações existentes dentro e fora do campo da política. Na perspectiva de Mannheim, a Sociologia Política deve se ater ao seu fundamento primário: as relações estruturais, passíveis de ensino. Tal ensino não deve se ater aos juízos de valor, mas compreender sua realidade social e a perspectiva de seus adversários, através de suas motivações e de sua realidade histórica e social. Desta forma, a Sociologia Política atinge como ciência a função de melhor síntese para sua época. 2.1.2 - O conceito de intelectual de Antonio Gramsci: Gramsci é um autor que também discute a questão dos intelectuais, sua origem e função para a sociedade, porém numa perspectiva diferente de Mannheim. Gramsci adota uma perspectiva teórica identificada com o marxismo e parte dessa teoria para elaboração de sua proposta, onde tenta evidenciar o papel do intelectual como organizador da sociedade e da cultura (11), vista como dimensão superestrutural da sociedade. A teoria gramsciana de sociedade é formulada quando Gramsci é preso, após pertencer como deputado ao parlamento italiano e ser identificado pelo Governo fascista de Benito Mussolini como um perigo à sociedade por suas idéias. Além disso, Gramsci pertencia e era um dos líderes do Partido Comunista Italiano - PCI - , do qual foi um dos fundadores. Na cadeia, ele escreve os “Quaderni del Carcere”, apontamentos teóricos feitos à mão, com escassa literatura. Gramsci morre em 1937 logo após ter saído da cadeia, mas sua visão social de mundo é publicada em sete volumes, no período compreendido entre 1947 e 1951, tornando-o um dos maiores teóricos do marxismo ocidental. (Fiori, 1974). De acordo com as publicações de Gramsci, as pessoas se destacam em sociedade por diferentes meios. A atividade profissional pode ser considerada um desses meios - com função relevante para a sociedade ou não - dependendo da atuação desenvolvida. O destaque profissional é capacidade de todas as pessoas, mas a maioria não consegue desenvolvê-la ou exercê-la, bem como atingir função de líderes. Neste sentido, um engenheiro com formação para construir pontes e que trabalhe como cozinheiro, por exemplo, utiliza-se desta sua formação somente para aprimorar o ofício ao qual está vinculado socialmente. Podem ser chamados de intelectuais às pessoas que conseguem exercitar sua capacidade plenamente. Diversos são os fatores, no entanto, ocorridos durante o processo de aprendizado ou do surgimento de oportunidades na vida que interferem no exercício da capacidade plena das pessoas, mas mesmo as que não conseguem alcançá-la, continuam mantendo a capacidade de se tornarem intelectuais. A priori, todos são intelectuais, mas nem todos exercem função de intelectual para a sociedade. Todos os grupos sociais que tem origem em funções estratégicas para a economia geram paralelamente um ou mais grupos de intelectuais, dando consistência e consciência de sua função para diferentes campos de atuação, como o social e o político, além do econômico. (Gramsci, 1978 e 1995). Pode ser denominado intelectual orgânico o grupo social que, dentro de suas próprias fileiras, produz intelectuais organizadores e dirigentes da sociedade, fundamentais na busca por uma nova ordem vigente para a sociedade a partir de uma classe social. Nesta perspectiva, são chamados intelectuais atuantes os que desempenham uma função de destaque ou crucial numa sociedade, e de intelectuais não atuantes os que não desempenham. Para Gramsci (1966, 1978, 1995), os intelectuais são detentores e produtores de um discurso que influencia a organização da sociedade e da cultura, pois "uma massa humana não (...) se torna independente ... sem organizar-se (...); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas "especializadas" na elaboração conceitual e filosófica." (Gramsci, 1966, p. 41). Os intelectuais são responsáveis pela organização da rede de crenças e relações tanto institucionais quanto sociais. Os que dominam essas relações são hegemônicos (classe dominante) e esta hegemonia, quando é coercitiva às outras classes, utiliza-se dos intelectuais para obtenção do consentimento das ações da classe dominante frente às outras. É neste sentido que ganha consistência, na teoria de Gramsci, a crítica sobre a redefinição do Estado como força + consentimento. (Sassoon, in: Bottomore et alli, 1997; Gramsci, 1978 e 1995). Um exemplo do papel dos intelectuais pela teoria gramsciana foi frente ao novo Estado-nação que surgiu com a unificação da Itália. Gramsci atribuiu o seu sucesso graças ao campesinato, que consentiu a nova ordem política. Os camponeses eram uma exceção ao amplo leque de grupos sociais em que poderiam se produzir intelectuais orgânicos, pois partilhavam com as idéias dos intelectuais tradicionais, embora não os assimilassem em suas bases. (Kiernam, in: Bottomore et alli, 1997; Gramsci, 1978 e 1995). Os intelectuais tradicionais reproduziam idéias dos grupos mais antigos historicamente, e não eram comprometidos com o progresso, mas sim com tradições históricas anteriores. Eles se consideravam uma classe paralela às outras, o que é uma irrealidade pensada na filosofia idealista.(Kiernam, in Bottomore et alli, 1997; Gramsci, 1978, e 1995). São exemplos de grupos tradicionais: a aristocracia fundiária, os eclesiásticos - ligados organicamente à aristocracia fundiária -, que dominaram historicamente as instituições pertencentes à superestrutura e entraram em conflito com outros grupos tradicionais, podendo ser exemplificado, pelos teóricos e pelos filósofos daquele contexto. (Gramsci, 1995). O senso comum (12) é uma categoria mais restrita às atividades intelectuais e só poderia estar interligado com a intelectualidade se ela emergisse da massa populacional que compõe sua própria classe. Isto posto, os princípios e necessidades que existem, provenientes de suas atividades práticas, seriam mediados pelos intelectuais orgânicos em busca de soluções para alcançar um real movimento filosófico, solidificando assim um bloco sócio-cultural. (Gramsci, 1966) A história da filosofia tem origem com a filosofia dos intelectuais. Tal história pode ser considerada como um ápice da atividade intelectual progressiva do senso comum dos estratos de maior poder cultural da sociedade atingindo, conseqüentemente, os estratos de menor poder cultural (13). Na impossibilidade de se elaborar uma história do senso comum, a história da filosofia vem a ser a maior fonte de referências para as pessoas, sendo a política historicamente definida como uma mediadora deste processo. A partir do senso comum é possível concluir que todos são filósofos, todos têm uma linguagem, que quanto mais rica maior a possibilidade de avanço para a sociedade (14) (Gramsci, 1966). O progresso para alcançar uma filosofia da praxis (15) inicia-se com a catarsis, a superação do modelo de pensamento precedente e do pensamento concreto presente, e não com a introdução de uma ciência na vida individual das pessoas, ou seja, o marxismo tem início ao tornar nova uma atividade pregressa no mundo cultural-concreto existente. (Gramsci, 1966). No mundo moderno, a atividade intelectual desempenha um papel importante na sociedade, que busca a ampliação das capacidades do indivíduo, desenvolvendo e multiplicando espaços para sua especialização e aperfeiçoamento, tanto na ciência quanto nas atividades técnicas. Por esta vertente, a escola seria o melhor instrumento para formação de intelectuais nos mais diferentes níveis. Gramsci (1978 e 1995), considera que quanto maior o espaço físico da escola e mais níveis possuir, mais complexo será o mundo cultural e a civilização do Estado. A categoria ideologia, por sua vez, pode determinar a função social do intelectual atuante, pois embora todos os homens sejam intelectuais, conforme foi abordado anteriormente, nem todos exercem esta função, como no desempenho de um projeto de luta política emancipatória. Nestes termos, os intelectuais atuantes podem também ser agentes da ideologia dominante, criando um senso comum (16) servil, de universalização de idéias, funcionando como um elo de ligação para difusão da racionalização de um contexto social, embutido de valores e normas da classe dominante. A ideologia é vista assim, como "um processo geral de produção de significados e idéias que soldam e moldam como um cimento da sociedade a partir do que ela é” (Bocayuva & Veiga, 1992, p. 216). Constituise, portanto, um bloco histórico, assim chamado na perspectiva gramsciana por retratar a sociedade em seu momento histórico. Desta forma, cabe questionar como se pode analisar a repercussão do que cada intelectual atuante faz com seu potencial de ação e, também, se convém uma análise para conhecer a existência de uma repercussão social em torno do que o intelectual atuante promove com suas ações, sua fala e sua escrita na atividade profissional desenvolvida. Em busca de respostas aproximadas, é pertinente considerar que: a) O critério distinto do intelectual e de sua atividade intelectual em relação a outros grupos sociais não deve ser procurado intrinsecamente, mas ser encontrado no todo das relações que eles individualmente encontram no conjunto das relações sociais e históricas determinadas, tais como os grupos que representam. Afinal, “Quais são os limites “máximos” da acepção de “intelectual”? É Possível encontrar um critério unitário para caracterizar igualmente todas as diversas e variadas atividades intelectuais e para distinguí-las, ao mesmo tempo e de um modo essencial, dos outros agrupamentos sociais? O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, consiste em se ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e portanto os grupos que as personificam) se encontram no conjunto geral das relações sociais. Na verdade, o operário ou proletário, por exemplo, não se caracteriza especificamente pelo trabalho manual ou instrumental, mas por este trabalho em determinadas condições e em determinadas relações sociais ...” (Gramsci, 1995, p 6 7). b) A sociedade produz o ser humano que por sua vez produz a sociedade, tornando o homem caracteristicamente um ser social. Um homem se mostra para o outro somente socialmente, do contrário deixa de sê-lo. A humanidade essencial encontrada na natureza, existe somente para o homem social, e este ser social é a característica fundamental da existência enquanto ser humano. Nestes termos, a sociedade une o homem à natureza, sendo o homem social, tanto individual quanto coletivamente, mesmo quando sua atuação profissional é de caráter científico, pois atua como homem. Todo o material envolvido nesta atividade científica, bem como a linguagem utilizada - na qual existe também atividade pessoal - são produtos sociais. Em suma, o que se faz com a atividade científica, se faz para a sociedade e com consciência da existência enquanto ser social. O que se pensa e o que se faz, embora sejam coisas diferentes, unificam-se quando em conjunto. (Marx, 1987). Desta forma, o vir-a-ser do homem depende da repercussão social dos seus atos, especialmente quando advindos de uma atividade científica. c) A repercussão social dos atos dos intelectuais, principalmente dos que fazem atividade científica, é passível de discussão, pois quando é realizada, é ideológica, mesmo quando o realizador não tem esta intenção. Ao compreendermos a ciência e o fazer científico como um fenômeno social - pois este fazer é produzido por pessoas, seres sociais compreendemos que a atividade científica, apesar de não ser sinônimo de ideologia, está invariavelmente atrelada a ela. Não há ciência nem fazer científico sem ideologia, sob pena de aceitarmos o mito da neutralidade na ciência. Para demarcarmos algo cientificamente, no entanto, é preciso haver critérios de distinção do que é científico, sabendo-se que o científico não é óbvio, mas sim um fenômeno discutível. É considerável ressaltar que o fazer científico puro e intencionalmente ideológico também pode acarretar distorções na análise do fenômeno estudado, norteando a atividade científica para a atividade que tem como princípio o fazer científico ideológico-partidário, sem o distanciamento necessário para a apuração mais próxima da verdade dos fatos. Nestes termos, é considerável também que estes fatores fazem parte dos significados sociais da atividade científica realizada pelos intelectuais, embora muitas vezes não sejam considerados ou sequer observados. Neste sentido, a valorização extrema da erudição leva ao cientificismo, enquanto que a subordinação da pesquisa à ideologia leva ao surgimento de a prioris, ou seja, a erudição, o conhecimento aprofundado no assunto que está em pauta, é ponto importante no fazer científico, mesmo porque se a pesquisa não está concluída, não se sabe sua relevância, embora se acredite nela. Por outro lado, o fazer científico como uma característica particular da mente humana, está ligado "às condutas humanas e às ações do homem no meio ambiente. Fim último para o investigador, o pensamento científico é apenas meio para o grupo social e para a humanidade inteira" (Goldmann, 1980). Assim sendo, para o surgimento de um novo grupo intelectual, pela teoria gramsciana, é necessário que a atividade intelectual seja estimulada e desenvolvida, invertendo a relação da atividade muscular operária, para que essa mesma atividade seja responsável pela construção de um pensamento diferenciado, novo, concebendo o mundo integralmente. (Gramsci, 1978 e 1995). 2.1.3 - Uma síntese: Mannheim, embora influenciado em sua formação teórica pelo marxismo, discorda de sua gênese, adotando uma perspectiva teórica de manutenção do sistema sócio-político econômico vigente. Nesta perspectiva, o intelectual é visto como se pairasse sobre a sociedade, com mais capacidade de produzir análises sem ser obrigatoriamente vinculado, através de suas idéias, a uma classe. Pela perspectiva de Mannheim, os intelectuais dão suporte às classes, mas através de vinculações extrínsecas, pois mesmo o proletário que adquire vigor intelectual, modifica sua personalidade. Ademais, sua classe passa a observá-lo não mais como um proletário, mas como um intelectual, o que gera desconfiança da própria classe. Cabe ressaltar que esta desconfiança ocorre com qualquer intelectual. Tal perspectiva adota o ponto de vista da emancipação dos intelectuais como o principal problema para estes. Há por parte dos intelectuais, uma inquietação por não serem uma classe. Para Mannheim, a grande questão que propiciaria seu avanço, é a tomada de consciência de sua função ou missão predestinada com a sociedade, mas nos termos dos intelectuais, não das classes. Na concepção de Mannheim, os intelectuais são os mais capazes de produzir sínteses, pairando sobre as questões analisadas e também sobre a sociedade, emitindo seus pareceres desvinculados de uma classe social, ou seja, é a chamada freischwebende Intelligenz (17). Oportunamente, entretanto, os intelectuais se vinculam a uma perspectiva social, porém ideologicamente sem comprometimento (Löwy, 1998). Já Gramsci adota uma perspectiva teórica identificada com o marxismo e parte desta teoria para elaboração de sua proposta, onde tenta evidenciar o papel do intelectual como organizador da sociedade e da cultura, vista como parte superestrutural da sociedade. Para Gramsci, o intelectual identifica-se invariavelmente a uma classe, visando à manutenção da sociedade ou sua transformação por meio de uma ruptura social, que o diferencia ideologicamente de Mannheim. Na perspectiva gramsciana, os intelectuais podem ser orgânicos, advindos da própria classe a que pertencem, e a teoria, neste caso, emerge intrinsecamente na classe, não havendo necessariamente uma vinculação advinda de maneira extrínseca. Desta forma, os valores são fundamentais para os intelectuais quando vistos através da teoria gramsciana. Suas concepções ou visões sociais de mundo são determinantes na escolha da perspectiva de vida, do modelo de sociedade e da vinculação social à classe dominante ou à dominada. Cabe ressaltar que o conceito de intelectual na perspectiva gramsciana é parte do seu todo teórico, onde outros conceitos emergem, sendo necessário para solução do problema proposto, elucidarmos outro conceito gramsciano: o de hegemonia. 2.2 - O Conceito de hegemonia de Antonio Gramsci: A palavra hegemonia significa supremacia, predomínio (Luft et alli, 1999), termo que é derivado do grego hghemonia, e tinha significado de direcionamento e superioridade no comando de um exército. Modernamente, este termo assume o significado de “capacidade de direção política e cultural; de um grupo ou classe social sobre as demais classes sociais e suas frações” (Bocayuva e Veiga, 1992). Para Jesus (1989), tal termo origina-se de dois verbos gregos, com o sentido de guiar, conduzir, num significado político-militar, que persistiu até o período moderno. À hegemonia acresceram-se fatores econômicos, culturais e religiosos que no período contemporâneo se mantém presentes, embora continue havendo um predomínio político-militar em sua utilização, com destaque para o segundo. Historicamente o termo hegemonia permanece com sentido de poderdireção ou dominação-consenso, onde dirigir é equivalente a guiar, conduzir, ser líder e dominar possui significado de governar, mandar, ou seja, são binômios que tem significados próximos. Unindo-se estes binômios pode-se alcançar um conceito de hegemonia pleno. (Jesus, 1989). No pensamento gramsciano, o conceito de hegemonia aparece implicitamente desde seus primeiros escritos, quando considera que há necessidade da classe trabalhadora de tornar-se dominante e dirigente. Pode-se afirmar, segundo Jesus (1989), que este pensamento em Gramsci tem o objetivo de domínio consensual nas áreas política, cultural, moral e lingüística (18). Até 1926, o termo “prestígio” era o mais utilizado por Gramsci com sentido de hegemonia. Somente a partir deste ano é que o termo hegemonia aparece explicitado, primeiro numa carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética e depois num trabalho incompleto (por causa de sua prisão em novembro desse ano) denominado Alguns Temas sobre a Questão Meridional, onde se pode notar explicitamente a categoria hegemonia, bem como a realização de aplicação prática na questão meridional. Na prisão, quando estuda as relações entre infra-estrutura e superestrutura, Gramsci demonstra que considerava Lênin (19) o principal teórico do conceito de hegemonia, que se unia em torno da direção e do domínio enquanto categorias. Lênin foi sua principal fonte inspiradora para continuidade da elaboração conceitual da hegemonia. (Jesus, 1989). A questão meridional é um conjunto de escritos desde 1916 até 1926, época de sua militância política. Neles, clarifica-se a sobreposição do norte sobre o sul da Itália, tornando-o hegemônico, mas com um grau de consentimento do sul. Gramsci (1987), nestes escritos, também elabora um pensamento para que as alianças dos operários do norte com os operários do sul desbanquem o poder burguês. No pensamento gramsciano, a hegemonia é um conceito fundamental, interligandose dialeticamente a todos os outros. Trataremos a seguir especialmente de sua descrição, recorrendo, quando necessário, a interligação com outros conceitos gramscianos, como o de intelectual e o de educação, sabendo que outros conceitos gramscianos ou conceitos de autores com perspectivas similares poderão emergir ao longo desta descrição. Segundo Gramsci (1966), o homem produtivo possui consciência teórica, mas não possui exata clareza desta consciência nem de sua ação, que é um conhecimento pertencente ao mundo e que provoca transformações. Tal consciência teórica, algumas vezes encontra-se historicamente em contradição com a ação, tornando-se, possivelmente, uma consciência contraditória ou duas consciências teóricas, onde uma é intrínseca à ação que o une aos seus pares na transformação do mundo e a outra é explícita ou verbal, que o sujeito herda historicamente, mas sem críticas. A consciência teórica verbal possui conseqüências diretas, influenciando “sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode, inclusive, atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política.” (Gramsci, 1966, p. 20-21). Nos termos citados, o sujeito adquire compreensão sobre si mesmo por meio de um confronto de diferentes referenciais de hegemonia política, que perpassam inicialmente a ética, posteriormente a política e, finalmente, uma consciência maior sobre a sua concepção do real. Ao conscientizar-se que é parte de uma força hegemônica, dá-se o primeiro passo para alcance da autoconsciência, onde os elementos teoria e prática unem-se num processo histórico que culmina numa concepção de mundo coerente e unitária. Neste sentido, na medida que o conceito de hegemonia se desenvolve politicamente, ele representa um desenvolvimento filosófico, onde existe “uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos.” (Gramsci, 1966, p. 21). Portanto, para alcance da hegemonia fazse necessário possuir uma massa organizada, mediada por uma elite intelectual com função organizativa ou diretiva. Gramsci considera que as relações que se traduzem em hegemonia são sempre pedagógicas. Tal relação, entretanto, extrapola os limites da escola, onde o conhecimento adquirido pelas novas gerações deve suplantar dialeticamente o conhecimento transmitido pelas gerações anteriores, e perpassa toda a sociedade, no seu todo e no contato indivíduo indivíduo(s); entre intelectuais e os que não tem esta função. Afinal, a relação pedagógica pode ser verificada não somente “no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais” (Gramsci, 1966). Em Gramsci, a natureza humana pensada historicamente apresenta uma pretensa igualdade real, tal como existe em empresas privadas, públicas e no sistema político. Nestas instituições, internamente existe uma igualdade entre os membros pertencentes a uma delas, mas que promove desigualdades quando comparados a outras instituições e os membros que a compõem. Estas igualdades e desigualdades são variáveis conforme o sujeito conscientiza-se individualmente ou em grupo. Da mesma forma, alcança-se à igualdade entre filosofia e política. Em Gramsci, como em Marx, a filosofia é política, e a vida é a história atuante, pois esta é a única filosofia, e tudo é político. Somente nestes termos pode-se compreender, por exemplo, a tese de que a classe proletária alemã é herdeira da filosofia clássica deste país, ou afirmar que tanto a realização como a teorização leninista da hegemonia foi um acontecimento metafísico (20). Desta forma, a transformação social pode ser promovida, através de uma nova hegemonia, existindo a partir e na natureza humana. Pode-se afirmar, no entanto, que determinadas questões ontológicas permanecem, como “o que seria o homem?”, ou “o que seria a natureza humana?”. Quando o homem é definido como indivíduo, as questões futuras e passadas não possuem solução, mas quando o homem é definido como conjunto das relações sociais, a comparação histórica entre homens assume dois sentidos: 1º - a comparação temporal entre homens torna-se impossível, pois são coisas diferentes, ou até mesmo heterogêneas. 2º - pode-se verificar a diferença entre o que houve e o que existe, pois é possível a verificação do progresso de dominação da natureza pelo homem. O que o homem pode ou não fazer importa no valor daquilo que ele faz, pois a possibilidade é uma (e não a) realidade. Se a possibilidade quer dizer liberdade, sua medida também define o homem. Um exemplo disso é a fome. Há possibilidades de que não se morra de fome, mas, de fato, se morre. Tal fato é passível de constatação e espanto (para alguns, talvez muitos) e não é dissociado dos fatores conjunturais que o cercam, desde o indivíduo até uma atividade profissional - que é composta de indivíduos - como a educação física. Nestes termos, são sinônimos: condições objetivas, possibilidade e liberdade, embora não baste apenas reconhecer a existência dos termos, mas conhecê-los, saber utilizá-los e, principalmente, querer utilizá-los, pois o homem é vontade concreta, ou “aplicação efetiva do querer abstrato ou do impulso vital aos meios concretos que realizam esta vontade” (Gramsci, 1966, p. 47). A personalidade do homem é criada dando um direcionamento determinado e concreto à vontade, identificando os mecanismos para que esta vontade não seja arbitrária e contribuindo para a modificação de todas as condições concretas da realização desta vontade. O homem “deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos individuais e de elementos de massa – objetivos ou materiais - com os quais o indivíduo está em relação ativa” (Gramsci, 1966, p. 47). Ao transformar o mundo, as relações como um todo, o homem se fortalece, se desenvolve, pois a elevação da dimensão ética não é só individual, mas também coletiva, tanto com os outros homens como com a natureza, alcançando diversos níveis e relações, até a sua totalidade, quando abarca toda a espécie humana. (Gramsci, 1966). Já Goldmann (1980), no mesmo sentido, ao demonstrar a elaboração de sua proposta de um humanismo materialista dialético - ou humanismo concreto - e a existência do materialismo dialético como uma filosofia, indaga se em sua base há confirmações e juízos de valor que se pretendam universais e validados para os homens em qualquer tempo. A questão, para ele, é a dificuldade advinda do pensar na liberdade do homem, e em seu caráter proveniente da história, onde ao transformar o mundo ele se transforma num processo inexorável, pois tal assertiva não permite verdades imutáveis. Cabe ressaltar, entretanto, que o humanismo materialista dialético realmente possui propostas que se pretendem ter valor universal, e cita, por exemplo, o caráter histórico e social da vida e da manifestação humana. Neste sentido, o humanismo materialista dialético quer como seu maior valor, a “realização histórica de uma comunidade humana autêntica que só pode existir entre homens inteiramente livres, comunidade que pressupõe a supressão de todos os entraves sociais, jurídicos e econômicos à liberdade individual, a supressão das classes sociais e da exploração.” (Goldmann, 1980, p. 33). Pela ótica gramsciana, o princípio teórico-prático da hegemonia é importante em termos de teoria do conhecimento, de uma forma genérica, onde Lênin tem uma contribuição teórica decisiva por fazer progredir o aparato doutrinário e político e, por conseguinte, a filosofia no seu papel real de filosofia. Neste sentido, a prática de uma hegemonia cria uma nova ideologia e reforma consciências e métodos de conhecimento. Isto, para Gramsci, é uma questão filosófica abordada em sua prática. Assim, emerge um bloco histórico formado pela infra-estrutura e pela superestrutura, onde esta reflete a complexidade das relações sociais de produção que são encontradas num primeiro instante por àquela inter-relacionada a essa, na forma de um conjunto único, refletindo às próprias contradições e discordâncias imbricadas no processo descrito. Nestes termos, somente um sistema único de ideologia consegue, de maneira racional, refletir “a contradição da estrutura e representar a existência das condições objetivas para a inversão da práxis”. (Gramsci, 1966, p. 52). A convergência ideológica total da estrutura, propicia às condições objetivas para tal inversão, pois, neste caso, a dialética ocorre num processo real e concreto. (Gramsci, 1966). A estrutura processual dialética como dado de realidade pode ser expressa pelo termo catarsis, que “indica a passagem do momento puramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa, também, a passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’. A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético política, em fonte de novas iniciativas. A fixação do momento ‘catártico’ torna-se assim, creio, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético.” Gramsci, 1966, p. 53) Ao abordar a questão de uma transposição da filosofia puramente especulativa, Gramsci recoloca a idéia de uma nova hegemonia, afirmando que qualquer país tem ou teve em sua História, uma fase em que a filosofia especulativa, escolástica, predominou hegemonicamente como base político-ideológica. No momento em que esse domínio é aparentemente total, contudo, pode coincidir com o momento de desagregação dessa hegemonia real em sua base, com os indivíduos que a compõem. Deste fato, decorre uma reação de aperfeiçoamento dogmático no processo de domínio total – decadência – da filosofia refinada e especulativa. Desta forma, cabe criticamente traduzir tal especulação em termos ideológicos e políticos, servindo a uma ação concreta. Mas essa crítica que aponta para uma direção concreta marca um novo tempo, que terá uma nova e necessária fase filosófica especulativa, e que alcançará da mesma forma o seu limiar. Assim, é pertinente demonstrar que este limiar pode significar o princípio de um novo tempo, onde o binômio necessidade-liberdade (21) - em que o segundo termo de todos os binômios sempre parece se fazer mais importante no pensamento de Gramsci do que o primeiro existirão de fato, de maneira orgânica, abolindo as contradições sociais, forçando uma dialética conceitual e não mais das tensões produzidas historicamente pela luta de classes. (Gramsci, 1966). Nos termos citados, o conceito gramsciano de hegemonia apresenta-se como sendo um dos mais importantes de sua teoria e, tal como os outros, está dialeticamente amarrado aos demais. Em síntese, seu conceito de hegemonia considera que na sociedade existe uma hegemonia da classe dominante, que culmina com ações desta e da classe dominada. Esta dominação, no entanto, ocorre não só pelo viés da violência, mas também por uma ordem consentida pela classe dominada. O Estado, como parte superestrutural da classe dominante, exerce seu poder no somatório de força ou coerção + consentimento, conforme descrito anteriormente. Na base da classe dominada, encontra-se a massa populacional mais suscetível a este processo, o senso comum, que compreende o mundo de maneira enviesada e é, devido ao seu pouco poder intelectual e organizativo, influenciável pelo discurso hegemônico da classe dominante. Os mediadores deste processo são os intelectuais que com a sua postura e o seu discurso vinculado, mantém uma aliança tácita entre as forças dominantes e as forças dominadas, fornecendo um equilíbrio entre as partes. A sociedade, nestes termos, é dividida em superestrutura e estrutura, estando na superestrutura as instituições necessárias à manutenção da hegemonia vigente, como a Igreja, a família, a escola, entre outras. A ideologia também é considerada por Gramsci como parte superestrutural da sociedade, podendo ser considerada como um amálgama ou cimento da sociedade, selando o acordo existente. Este processo ocorre sem que o senso comum tenha percepção de tal ocorrência no campo de tensão existente. Gramsci denomina bloco histórico social ao processo como um todo, que ocorre num continuum. O intelectual, mediador da hegemonia, conforme visto anteriormente, pode ser do tipo tradicional, vinculado aos grupos tradicionais, antigos, oligárquicos, ou do tipo orgânico, mais urbano, vinculado aos grupos mais progressistas (no sentido de progresso mesmo). Os intelectuais orgânicos emergem de uma classe, mas nem por isso são necessariamente vinculados a ela, podendo ser cooptados pela classe dominante, e ele próprio ser agente da hegemonia vigente (22). Nestes termos, pode ser exemplo de hegemonia na teoria gramsciana, o predomínio do norte sobre o sul na Itália, que ocorre através do consenso entre grupos dominantes – dominados na questão meridional. Outro exemplo é o papel desempenhado pela Igreja na Idade Média, onde utilizou coerção e violência sobre o povo e intelectuais orgânicos que contestavam a ordem vigente, bem como das letras, que eram dominados pelos aparelhos pertencentes à superestrutura, especialmente pela própria Igreja. Na periferia deste processo, muitas vezes existem lacunas de desagrado encontradas dispersas e desagregadas. Estas lacunas existentes possuem espaços que podem ser preenchidos por uma luta contra-hegemônica, na qual resultam numa organização com um pensar teórico-ideológico diferenciado dos mantenedores da hegemonia vigente. Os aparelhos de luta contra-hegemônica são, em sua maioria, exatamente os que são mantidos e direcionados pela hegemonia, como a Escola e a Igreja. Os mediadores deste processo de luta contra-hegemônica também são os intelectuais, especialmente os orgânicos, que, em lugar de flutuarem por sobre as classes vinculando-se oportunamente a elas, como os do tipo mannheimniano, emergem e lutam por elas, formando um discurso mais ou menos homogêneo para tentativa de transformação social. O campo de tensão gerado devido a estes fatores, tem demonstrado as dificuldades por que passam tais tentativas, pois o aparato hegemônico mostra-se eficaz na supressão das lutas, até por que é hegemônico e domina os aparelhos usados para contra-hegemonia. Uma das formas de supressão, não especificamente ou explicitamente violenta, se dá quando vão sendo tomados muitos espaços dos aparelhos hegemônicos e isto é percebido pela classe dirigente, justamente quando já se está próximo ou perto do início de um processo de luta ou elevação do patamar de consciência. Quando isto ocorre, a classe dirigente – dominante propõe que o mundo se encontra em crise e que necessita de ajustes para manutenção do direcionamento proposto, só que sob uma outra capa, solucionando parcialmente o problema, até que haja uma nova crise. Este quadro pode ser exemplificado pela pressão atual de organismos como o Banco Mundial para que se dirijam mais verbas direcionadas aos aspectos sociais do mundo. O processo descrito ocorre tanto a nível macro quanto em nível menor, em espaços como a escola, mas dentro dele é permeado todas essas intrincadas relações existentes no plano macro. Todos os processos hegemônicos e contra-hegemônicos são necessariamente pedagógicos, pois visam intervir no meio existente, trespassado pelas relações sociais, e pretendem a manutenção ou a ruptura do sistema vigente, a nível macro ou a nível micro. Muitas vezes, existem tentativas de mudança que aparentam propor ruptura, mas na verdade são concessões do sistema justamente para seu aperfeiçoamento e manutenção. No processo de luta contra-hegemônica, deve-se lutar por uma nova hegemonia, construída a partir da existente. O início desta luta ocorre na compreensão das relações que propiciam a manutenção da hegemonia vigente, compreensão esta que invariavelmente acontece através do viés histórico. A história não só tem papel fundamental; na compreensão do processo existente, mas em sua possível transformação, pois se interliga com as relações do homem com o homem e do homem com a natureza. Isto posto, a história não é só um agrupamento de fatos passados, mas um permanente retrato do passado, que faz o homem compreender o presente e aponta possibilidades para o futuro. Em verdade, o homem é produto da História, mas ao mesmo tempo faz sua História, porque esta existe por causa do homem e não o contrário. A possibilidade de o homem fazer a sua História diferentemente é que moveu Gramsci a delinear seu conceito de uma nova hegemonia, interligando-a com outros conceitos. O princípio educativo em Gramsci, por exemplo, é pertinente ao conteúdo formador de uma nova hegemonia. O procedimento de desta nova hegemonia também é necessariamente uma tarefa pedagógica, onde a escola tem papel fundamental por dispor de meios para formação de intelectuais especializados e uma nova classe dirigente, elevando o nível de consciência da população através também de uma escola única, unitária. O fato de existir uma escola única, no entanto, não significa fazer a mesma abordagem em todas as escolas, levando-se em consideração características diferenciadas, como a cultura local. Na nova hegemonia, o homem é compreendido como um complexo conjunto de relações sociais, compreendido histórica e filosoficamente, mas capaz de fazer a sua história a partir de uma profunda compreensão do que se passou, até que ele fizesse parte dela. Por outro lado, o fazer-histórico coletivo deve ser produzido consensualmente, mas numa inversão social nos termos dirigentes, derivando de maneira dialética a maior hegemonia possível, para também ser possível o seu maior consenso, utilizando sua nova formação organizativa - onde muitos e não mais poucos participam - para mediar esse processo, aumentando a capacidade de direcionamento político. CAPÍTULO III – A Concepção de Educação Física na Ótica de alguns dos seus Intelectuais e a Questão da Hegemonia 3.1 - Os artigos da revista Movimento: No presente capítulo, analisaremos inicialmente o artigo que originou o tema o que é EF, com autoria de Gaya, baseado em sua aula inaugural ministrada na UFRGS (1994) e publicado na revista Movimento, intitulado “Mas Afinal, o que é EF?”. Em seguida, analisaremos os argumentos da polêmica levantada por Celi Taffarel e Micheli Escobar no artigo intitulado “Mas, Afinal, o que é EF: um exemplo de simplismo intelectual”, frente às posições assumidas, segundo elas, por Gaya em seu artigo, tal como o distanciamento em relação ao marxismo. Tal fato é negado posteriormente, em entrevista, por Gaya, que admite apenas ter se desligado de um grupo marxista da EF brasileira, sectário e antidialético, mas não de haver-se desligado do marxismo. Nestes termos, no conjunto da análise, ambos se dizem marxistas e caracterizam o outro de não sê-lo. Paralelamente, através do método dialético, será colocada como contraponto às propostas delimitadas pelos dois artigos, a vertente marxista utilizada como referência neste estudo, anunciada e discutida anteriormente. Além disso, recorreremos a trechos de entrevistas realizadas com esses autores envolvidos, para elucidação de questões pertinentes (23). Desta forma, nos dirigimos para demarcar o debate em torno da questão epistemológica com proposições dos destacados intelectuais da EF que escreveram para a revista Movimento - em 94 – tendo como eixo central os artigos de Gaya e Taffarel e Escobar, onde dissertam sobre o conceito de EF e sua identidade, confrontados com os conceitos de intelectual e hegemonia em que se baseia este estudo. Reapresentamos abaixo os artigos publicados na revista Movimento em 1994 que deram origem ao debate: 1 – Adroaldo Gaya (Gaya) – Mas, Afinal, O Que é Educação Física? (1994). 2 – Celi Nelza Zulke Taffarel (Taffarel) e Micheli Escobar (Escobar) - Mas Afinal, O que é Educação Física? Um exemplo de simplismo intelectual (1994). Primeiramente, será analisado o artigo que originou o tema em questão, de autoria de Gaya, baseado em sua aula inaugural ministrada na UFRGS (1994) e em sua tese de doutoramento, apresentada na Universidade do Porto (1994) e posteriormente o artigo de Taffarel & Escobar, que analisaram o artigo de Gaya. 3.1.1 - Análise do artigo de Gaya: O artigo de Gaya (1994) discutiu sobre a questão acerca do que é a EF. A revisão bibliográfica que realizou para discutir tal questão, levou-o a concluir ser possível reduzir respectivas respostas a duas tendências: 1ª- Na primeira, a EF seria concebida como ciência, tese que ele considera amplamente dominante na área, da qual decorreriam duas perspectivas: Uma delas se constituiria em teorias de grande abrangência, como a Ciência da Motricidade Humana. A outra perspectiva seriam as ciências do Desporto e do Treinamento Desportivo que criaria um espaço para tratamento científico das questões do desporto em qualquer disciplina científica. 2ª- Na segunda tendência, que pretende a EF uma filosofia da corporeidade, também surgem duas perspectivas: (a) a existencialista, concebendo a EF discursada como uma filosofia da corporeidade. (b) a culturalista, prevendo “a reconstrução da EF na ótica do lazer, dos jogos populares e tradicionais" (Gaya, 1994, p. 31). Desta forma, Gaya estabeleceu um campo de tensão onde estaria formulada a pergunta se a EF seria uma ciência ou uma filosofia, bem como a possibilidade de negação dessas duas tendências, partindo para a formulação de sua proposta, que é a percepção da EF como uma pedagogia. Assim sendo, este autor veio conceber EF como sendo uma disciplina normativa e que por isso se constitui numa prática pedagógica com ênfase na transmissão de valores. Nestes termos, a EF teria uma concepção filosófica, sem, contudo, ser um "subproduto da filosofia" (Gaya, 1994, p. 32), porque a EF seria “uma prática de intervenção no mundo concreto enquanto a filosofia não assume esta prerrogativa" (id). Para Gaya, “enquanto os discursos científicos procuram responder aos critérios inerentes aos juízos epistemológicos, a prática da EF enfrenta o desafio que, entretanto, se coloca ao homem concreto". (p. 32 33). Desta forma, com suas especificidades, a EF seria uma pedagogia com valores normativos inserida em um projeto antropológico. Ao analisar esse artigo de Gaya (1994), pretendemos estabelecer comparações entre sua perspectiva marxista - na qual diz se enquadrar e haver se engajado - e à vertente marxista utilizada neste estudo. Em relação a esse fato, Taffarel afirma, por exemplo, que sempre reconheceu nele “uma pessoa que defendia um projeto histórico socialista, que defendia uma concepção de homem emancipado, que defendia uma perspectiva epistemológica marxista”. (Taffarel, 2000, Anexo 02). Nossa análise é sustentável na medida que Taffarel afirma que Gaya não se alinhou com uma perspectiva marxista, ao contrário, formulou uma proposta que se choca com tal perspectiva. Por outro lado, embora Gaya diga que se afastou de um grupo que diz ser radical, afirma em entrevista que continua defendendo posições à esquerda, mais dialético do que este grupo radical, e na militância política em um partido considerado de esquerda. “Eu costumava, até em muitas conversas que eu tinha com o professor Go Tani, ele começou a brincar dizendo que eu fui expulso da esquerda, que eu fui expulso da esquerda e que à direita não me queria. Então eu estava em cima do muro, não é? Vamos deixar bem claro isso: as posições de esquerda são fundamentais. O que eu estou chamando de esquerda, talvez, é esse grupo que se diz tanto, se diz à esquerda, e usa isso como uma categorização, característica. Eu não me sinto menos à esquerda que nenhum deles. Até temos o mesmo partido, temos as mesmas causas muitas vezes, mas, é o trato da EF que eu vejo que nós nos diferenciamos muito”. (Gaya, 2000, Anexo 01). Nestes termos, cabe considerar que Gaya, embora afirme que se mantenha marxista, demonstra estar com uma concepção marxista de mundo compreendida numa perspectiva de revisão em alguns fundamentos. “Absolutamente, eu não nego essa visão, essa teoria marxista de intervenção social. Não é isso, muito pelo contrário. O que eu acho é que, às vezes, ela nos é passada ou é reproduzida de uma forma maniqueísta, ou seja, eu uso aquilo para impor às minhas vontades e não simplesmente para uma prática dialética, para fazer algo concreto. Eu entendo a teoria marxista como uma teoria fundamental em termos de humanidade, em termos de sociedade, e dela a gente não pode querer sair, porque na realidade nós não somos marxistas ou deixamos de ser porque está na moda, nós somos porque os valores que nós temos levam a nos aproximar daquele ponto de vista, e isso eu mantenho claramente. Evidentemente, eu mantenho essa perspectiva. A busca do socialismo para mim é uma luta presente, adequada, e que temos que continuar fazendo (...). Eu particularmente acho que alguns elementos da teoria marxista não se aplicam mais na atualidade. Acho que essas opções, da Revolução, essas coisas assim, eu acho que esses valores, – talvez um exemplo seria esse – quem seriam hoje os donos dos meios de produção? Os fazendeiros estão pobres, só os banqueiros é que estão bem na vida, e eles não têm meios de produção, o meio de produção é o dinheiro.” (Gaya, 2000, Anexo 01). Apesar de rever alguns fundamentos da teoria marxista, Gaya mantém posições que diz serem claras, e que se considera uma pessoa à esquerda. Se por um lado afirma que queria em primeiro lugar um debate fértil relativo a EF, e que não conseguiu realizá-lo em virtude das críticas recebidas, por outro afirma a existência de uma intenção implícita de crítica ao chamado grupo radical de esquerda da EF, mesmo que de forma pouco incisiva, pois “Eu diria assim: em primeiro lugar, que a minha crítica talvez foi o que me moveu a escrever o artigo. Me parece que o artigo não passa claramente isso. Não tenho muita clareza disso, mas, eu tinha intenção de dizer essas coisas, mas acho que no artigo não está muito explícito isso. Sem dúvida a resposta da Celi e da Micheli foram muito mais veementes e muito mais pessoais do que a questão que o artigo abordava. Então, houve ali uma clara evidência de que, digamos assim, perdemos um aliado da esquerda brasileira. Mais um que foi pra Europa e voltou liberal ou coisa assim. Isso é o que está explícito ali. Isso me chateou muito, pessoalmente me chateou muito, pois o debate não era pra ser esse, o debate era pra buscar uma síntese, e aí pegaram frases, linhas do texto, e fizeram com as frases o que bem entenderam”. (Gaya, 2000, Anexo 01). Essa intenção implícita de crítica ao dito grupo radical da EF, também pode ser exemplificada quando foi indagado se a inserção no seu texto da necessidade de intervenção da EF no mundo concreto tinha uma conotação marxista, no que respondeu afirmativamente: “Isso. Sem dúvida. Eu quis, mas havia uma intenção, talvez, uma intenção muito mais implícita no artigo, uma intenção lá no fundo, talvez, que me moveu, e eu estou sendo muito sincero com você, (...) e que eu acho importante alguém estudar isso, é que havia uma intenção no fundo de mostrar, que aqueles que se dizem tão marxistas, não eram tão marxistas assim, não é? E aí a necessidade de se dizer talvez algumas palavras tipo práxis, tipo intervenção social. Me parece que eu queria dizer isso: que os nossos dialéticos eram muito pouco dialéticos”. (Gaya, 2000, Anexo 01). Gaya se refere ao grupo radical da EF, composto, segundo ele, por Celi Taffarel e Micheli Escobar, entre outros. Assim, tal como na referida entrevista com trechos acima registrados, Gaya aponta em seu texto do artigo para uma perspectiva de homem concreto, que desafia a prática da EF, na qual os discursos ditos científicos estão distantes. Gaya também se refere à EF como uma prática de intervenção no mundo concreto (p. 32) e num percurso entre a filosofia e a ciência (p. 33). Cabe questionar, a posteriori, por exemplo, a qual filosofia Gaya ressalta que há identificação da EF. Numa perspectiva marxista a filosofia é exatamente o ato de reflexão crítica em relação ao mundo concreto e se traduz numa intervenção e, portanto, é pari passu intervenção no mundo concreto. Com isso, não basta ter uma concepção filosófica na EF, mas inter-relacionar-se simbioticamente com ela quando em uma proposta de intervenção. No texto de Gaya verificamos também uma distinção entre o discurso científico da EF, classificado por ele como teórico; e o desafio do homem concreto, por sua vez classificado como prática. Tal direcionamento nega o princípio dialético, que se propõe partir da prática - ou do dito desafio do homem concreto - para tratar o fenômeno teoricamente. Entretanto, este tratamento teórico do fenômeno seria com a finalidade de em seguida retornar à prática, com uma melhor compreensão deste mesmo fenômeno, para novamente tratá-lo teoricamente, num sucessivo ir e vir. Kosik (1995), por exemplo, realiza desta forma a busca para compreender a essência do fenômeno. Neste sentido, podemos verificar que Gaya nega o princípio dialético: primeiramente ao propor uma idéia de dicotomização entre teoria e prática e, posteriormente, ao propor uma intervenção com compreensão do fenômeno puramente empírica, para resolver os desafios do chamado homem concreto. Pela proposição marxista de Kosik (1995), diferentemente de Gaya, o mundo concreto é o mundo ocultado pelo mundo da pseudoconcreticidade ou mundo das aparências, que é preciso desvelar para se chegar à essência. O mundo concreto está além do fenômeno como se manifesta, empírico. Já o homem concreto está inserido neste mundo com plena capacidade de mantê-lo ou de transformá-lo. Para exemplificar, podemos citar a alienação do trabalhador (24) como sendo o mundo aparente e a exposição para o trabalhador de sua alienação como sendo o mundo concreto. A transposição do mundo aparente, fazendo com que o trabalhador tome consciência do real concreto pode ser atingida através de uma intervenção pedagógica. A realização desta intervenção pedagógica por um professor seria possível, e a dialética seria uma proposta de atuação, um método, utilizado na tentativa desse professor alcançar seus objetivos. Sendo o professor de EF o trabalhador que faz intervenção pedagógica, poderia ser utilizado como meio, como instrumento de ação, o esporte, a ginástica, a recreação, a dança, etc. Gaya, tal como Goldmann (1980), ressalta que só historicamente se compreende o mundo concreto. Entretanto, Goldmann compreende o mundo concreto com explicações sociológicas, articulando a história e a sociologia com a filosofia. Para ele, a ciência deveria unir a compreensão histórica e sociológica, tratando-as em relação a esse mundo concreto. Além disso, acredita que o conhecimento de tal mundo concreto só pode existir, enquanto uma compreensão da humanidade, se existir a filosofia. A filosofia, bem como a sociologia e a história, são abstrações teóricas desse mundo concreto, e se justificam para resultar numa síntese, que posteriormente deve necessariamente retornar a esse mesmo mundo concreto. Sem a filosofia, o mundo concreto só conseguirá ter o máximo de consciência possível face si mesmo. Por esta perspectiva, a EF deve ser uma filosofia na mesma medida que é uma intervenção no mundo concreto. Para Gaya, as tendências teóricas apontadas criticamente em seu artigo, se inclinam para redução da EF a uma ciência ou a uma filosofia. Compreendemos no presente estudo que, ao ser entendida como ciência, realmente a EF se reduz devido, por exemplo, à especificidade e ao estatuto para ser ciência. Ao ser filosofia, no entanto, a EF não se torna reduzida, pois ela não precisa necessariamente ser somente (25) filosofia, mas, ao contrário, também filosofia. A questão a ser levantada sobre tal assertiva, é que a tendência da filosofia expressa no texto de Gaya é, segundo ele, existencialista ou culturalista, excluindo outras perspectivas filosóficas. Ao fazer esta opção como síntese do conceito da EF, formulada através dos seus autores, reduziu-a a estas duas tendências - além de considerar a sua própria formulação conceitual de EF - tal como quando se refere ao referencial teórico que utiliza. Ou seja: Tendência 1 + Tendência 2 = Conjunto das tendências da EF (enquanto subproduto da filosofia) expressa pelo conjunto de seus principais intelectuais em nível nacional e internacional, somado à proposta conceitual do próprio Gaya. Desta forma, podemos concluir que Gaya obtém como produto final, uma redução da EF a: - um subproduto da filosofia como propõe a análise de Gaya acerca dos autores da EF por ele utilizados em seu artigo; - um percurso entre a filosofia e a ciência como propõe Gaya e, - conseqüentemente, a redução da expressão do conjunto de autores da EF a tais propostas, bem como dos seus atores sociais. Nestes termos, a EF se descarrila do mundo, de seus conflitos políticos, filosóficos, ideológicos, etc., como se estivesse fora dele, onde a EF só fosse atingida pelos espectros filosóficos existencialista e culturalista, ou liberto das implicações filosóficas e científicas embutidas na sua prática social. Ao fazermos uma análise ampliada da EF, poderíamos considerar preliminarmente, a prática como início de um método para entendimento e posterior intervenção de um fenômeno. Diferentemente, Gaya propõe-nos verificar somente a prática para compreendermos o real concreto, indo diretamente para a intervenção, o que, pressupostamente, resultaria numa visão aparente deste real concreto. Nesta perspectiva de Gaya, uma academia de ginástica poderia ser compreendida se fosse entendido o conjunto dos membros que a compõem, os que praticam ginástica, os que praticam natação, os que praticam musculação, os professores, os faxineiros, os donos, enfim, sua população. Aprofundando tal afirmativa, contudo, observamos que apenas esta análise preliminar do método de entendimento do real somente pela prática, pela manifestação empírica, propicia-nos um entendimento abstrato, pois entender uma população relevando as classes que estão embutidas neste processo é uma abstração. Da mesma forma, seria também uma abstração se entendêssemos a palavra classe e ignorássemos as formas de manifestações que as determinam, como o capital e o trabalho assalariado, que por sua vez fazem supor, por exemplo, a divisão do trabalho e o preço. Portanto, ao iniciarmos uma análise de academias de ginástica somente pelos membros que a compõem, somente seria possível ver o todo representado caoticamente e, através da análise por este método - que resulta numa visão do aparente concreto -, teríamos sucessivas abstrações reduzindo o fenômeno às abstrações mais simples. Isto posto, faz-se necessário refazer o caminho percorrido anteriormente de forma invertida, chegando à população que compõe a academia de ginástica pelo entendimento da composição dos seus membros e não mais como o todo representado caoticamente, mas um todo composto de determinações e múltiplas relações. Analogicamente, ao analisar o que é EF somente a partir do que aparenta ser, do aparente real e concreto, sem levarmos em consideração os determinantes e a tecitura das relações envolvidas num todo complexo, teremos também abstrações cada vez mais simples, mas que distanciam o entendimento do real que é real e concreto. Vemos aí um exemplo de dicotomização entre teoria e prática que parece ter ocorrido com a proposta contida no artigo de Gaya. Por outro lado, o entendimento de Gramsci (1966, 1995) nos proporciona compreender em qual medida, na verdade, a história da filosofia dos intelectuais – como os que escreveram os artigos analisados - é um refinamento da análise intelectual que foi proposta inicialmente pelo senso comum, e que tem como partida este senso comum relacionado diretamente ao mundo concreto. É a partir deste mundo concreto e da reflexão crítica (filosófica) em cima dele que se promove o retorno também refinado da análise dos intelectuais, exatamente para este mundo concreto, ponto de partida da idéia inicial de análise. Tal análise, no entanto, provoca uma ascendência dos intelectuais sobre a massa pouco intelectualizada. Este fato existe em maior ou menor grau, e pode promover – tanto na intervenção pedagógica do professor como num livro escrito por uma autoridade intelectual ou numa entrevista de um jogador de futebol - a desocultação ou ocultação do real concreto, dependendo, entre outros fatores, das condições objetivas existentes, de quem faz a intervenção, da visão social de mundo (ou ideologia) de quem a propõe. Isto é a atividade intelectual (política) mediadora desse processo, e que auxilia uma hegemonia ou uma contra-hegemonia, importante papel exercido pelo intelectual enquanto organizador da cultura. Portanto, a EF proposta como intervenção no mundo concreto é atividade social e participa, compreendida desta maneira, da definição da ontologia do homem: ser social. Nestes termos, cabe perguntar se existe alguma atividade - por mais existencial que seja não-social, mesmo quando se pretende a neutralidade. Esta é a responsabilidade social do intelectual, do interventor pedagógico do mundo concreto. Em verdade, a EF não é ciência, mas o fazer científico dela é eminentemente social, portanto filosófico. Já a filosofia é política, enquanto que a vida ou a consciência da vida, existe no mundo concreto pela história pessoal (sócio-interativa) e pela história social propriamente dita. A vida e a história estão em permanente atuação e transformação pela atividade intelectual do homem, traduzida como trabalho e perpassada na sociedade pela luta de classes. Neste sentido, a EF enquanto intervenção pedagógica é filosofia pura, atuante. Ao ser localizada, no entanto, como estando em um percurso entre esta e a ciência, perde o sentido da totalidade, gerando exclusão contextual por ocultação do real e visualização empiricista e a-histórica. Em outro ponto do artigo, Gaya ressalta que a aula de EF pressupõe uma intencionalidade, uma visão de mundo, afirmando que “Portanto, o dar aulas de educação física pressupõe inicialmente uma intencionalidade (26), uma determinada visão de mundo, enfim, uma concepção filosófica”. (Gaya, 1994, p. 32). O termo filosófico intencionalidade remete-nos a uma perspectiva fenomenológica, talvez por que Gaya tenha compreendido uma tendência da EF com esta perspectiva. De qualquer forma, a categoria intencionalidade não está no horizonte marxista. Para Japiassú & Marcondes (1996) e Mora (1982), o termo intencionalidade é um conceito fulcral da fenomenologia, que tem inspiração originária da Escolástica e que, ao definir a consciência, está voltada para um objeto. Nesta acepção, a intencionalidade tentaria superar os opostos idealismo e realismo, mas em nenhum momento se aproximaria da vertente marxista, a qual Gaya diz estar vinculado. Utilizando-se da lógica de Goldmann (1980), verificamos que o marxismo compreende os fenômenos através da história, procurando, tal como a fenomenologia, os significados derivados de ações conscientes, mas, além disso, os seus significados objetivos. Por exemplo: as manifestações esportivas e o interesse na formação profissional em nível superior da EF no Brasil, à época da ditadura militar mais recente, foram uma realização que ocorreu para o povo, alheia às circunstâncias dominantes de época? Ou foi justamente um aparato ideológico de apoio à hegemonia vigente? A resposta deve advir de dois planos: 1 - decorrente da consciência dos realizadores do fenômeno, especialmente os líderes do processo. 2 - decorrente do contexto sócio-político-econômico que determinavam o movimento do Esporte Para Todos (EPT), quaisquer que fossem as intenções de seus líderes, bem como dos significados que tinha para eles. Da mesma forma, a EF existe, mas não em si, ou entre parênteses, isolada do contexto sócio-histórico de época, o que resultaria numa dicotomização teoria e prática. Cabe apontar ainda que Gaya (p.30) coloca em seu texto a referência de Santin autor com formação na filosofia existencialista - como representante de uma tendência da EF, que a entende enquanto uma filosofia da corporeidade, entendida como uma perspectiva existencialista (p. 31). Santin (1995), contudo, nega em seu artigo ter afirmado que compreende a EF como uma filosofia da corporeidade, e acrescenta que “tal equívoco entendo que possa ter acontecido ou por falta de clareza de meus escritos ou por uma leitura parcial”. (p. XII). Neste mesmo artigo, Santin também afirma que em outro texto seu, considera a EF como uma ação pedagógica, e que existe a necessidade de repensar as ciências, mas não de negá-las. Em síntese, ao lermos o artigo de Gaya, verificamos que existe uma preocupação central de abordagem da questão sobre a identidade da EF, configurando-se, na medida que é uma discussão sobre uma categoria filosófica, passível de análise pelo presente estudo. Ao realizarmos um contraponto do artigo de Gaya à perspectiva marxista, notamos que ele norteia a identidade enquanto um fim, mas num sentido de revelar-se numa relação de completitude e semelhança entre coisas que acabam sendo uma coisa só. Se a EF possui identidade nesta perspectiva, ela passa a ser própria, única e deixa de ser a mesma coisa que outra coisa que tem as mesmas semelhanças, ou seja, todas as definições de EF compreendidas como tendências em seu artigo, acabam resultando em uma só, o que é a sua própria identidade. Por outro lado, Gaya também discorda de outras terminologias e define a EF enquanto projeto pedagógico em um percurso entre a ciência e a filosofia. Esta questão nos aponta exatamente para a questão da identidade e da diferença, do mesmo e do outro. A diferença caracteriza a identidade e pode ser definida como relação de alteridade que existe entre coisas possuidoras de elementos que são idênticos. “Quando comparamos dois objetos, eles apresentam semelhanças e diferenças, as diferenças podendo ser de atributos acidentais ou de qualidades essenciais". (Japiassú & Marcondes, 1996, p. 72). A partir desta definição de Gaya, podemos tomar dois rumos: 1- compreender que se a EF tem diferença, identidade, mas se esta diferença for máxima entre objetos, como num percurso entre a ciência e à filosofia – conforme citado por Gaya o não-traço em comum será sua contradição. 2- compreender a questão pelo conceito de totalidade, não somente como vários elementos que formam uma unidade, mas talvez no sentido dialético, onde através das diferenças e contradições buscam-se aproximações com a verdade, pois o objeto é concreto e não metafísico, e está em permanente traço de mudança. Portanto, o objeto é dependente do tempo histórico e das relações sociais e nestes termos, "o conceito dialético de totalidade é dinâmico, refletindo as mediações e transformações abrangentes, mas historicamente mutáveis, da realidade objetiva". (Mészáros, in: Bottomore et alli, 1997, p. 381). A segunda proposta não pareceu ser o rumo tomado por Gaya, pois a totalidade não pode ser alcançada, senão como uma "dominação geral e determinante do todo sobre as partes" (id, p. 382). Desta forma, ao assumir uma definição de EF em si mesmo, sem compreendê-la na totalidade do conjunto das relações sociais, Gaya assumiu uma posição não-dialética, em que a questão chegou ao fim, muito embora ressalte que ela exige progressos. Nesta ótica, a concepção de EF da época do artigo não necessitaria ser passível de análise, pois já estaria definida, o que por um lado pode ser considerado como uma tentativa plausível, que tende ao progresso de se estabelecer academicamente parâmetros de identidade da área; mas por outro demonstra a posição assumida por Gaya relativa a contextos anteriores, o que o presente estudo aponta como retrocesso de análise contextual do mundo e, dialeticamente, da EF. A identidade da EF - concordamos com Gaya - é encontrada a partir de sua prática, mas também necessita de tratamento teórico para que não seja concebida em si, onde a = a, e onde ela não seja por outro lado excludente à ‘a’. A EF possui identidade, e com isso ela passa a ser ‘b’. Sendo ‘b’, ela é ‘não-a’. Ao mesmo tempo, A EF é incluída em ‘a’ e inclui ‘a’, não para retirar ou dar somente subsídios, mas para, num todo uno, ter semelhanças que sejam maiores que as diferenças existentes, com vistas à contribuição no processo de intervenção pedagógica. Nestes termos, não pode existir a EF embaixo, na prática, enquanto a ciência e, principalmente, a filosofia, está acima, como teoria puramente no campo das idéias, que somente pode informar a EF e não fazer parte dela sem afetar sua identidade. Em relação ao artigo, podemos afirmar ainda a existência de indicativos apontados, de que Gaya tem uma terminologia muito próxima da visão marxista, mas quando analisamos mais profundamente alguns aspectos elucida-se um avançado distanciamento desta visão. Assim, Gaya não estava trabalhando, na essência, por uma vertente marxista, e acabou convergindo por outras direções, excluindo, inclusive, esta manifestação filosófica, que para ele não se configurou como uma tendência da EF. Ao negar a existência de uma perspectiva marxista ou à esquerda na EF, Gaya acabou por negar o discurso e o referencial no qual disse que se apoiava, apresentando uma escolha repensada e nova. Nos termos demonstrados, o percurso que Gaya aponta-nos em seu artigo, está entre um idealismo e o cientificismo, colocando a si próprio - em vários trechos do artigo - sem saída. Ao usar estes pressupostos idealista e cientificista para análise do que é a EF, as variáveis teóricas não dão conta de sua própria especificidade proposta por Gaya. Isto propõe novamente um distanciamento entre teoria e prática, o que se traduz num problema: ao analisarmos a prática não encontramos teoria para dialetizar, encontrando assim uma forte aproximação com propostas do tipo empírico-analíticas, pois conceitos da filosofia e da ciência são considerados como apoio e não parte integrante do processo. Por conseguinte, este fato poderia derivar estrategicamente a forçar o encontro de uma teoria própria de dentro da EF, o que poderia também se traduzir em um outro problema: a concepção de EF em si, per se. Na vertente adotada por este estudo, a EF não está entre a ciência e a filosofia, separadamente, mas está imbricada nelas, especialmente na filosofia, pois é educação, antes de educação física. Existe aí, uma simbiose indissolúvel. A EF é vida, é atividade humana e é prática social que, quando contextualizada, faz interface com o todo. Portanto, a EF é e deve ser uma filosofia na mesma medida que é uma intervenção no mundo concreto, e neste sentido se opõe à posição adotada no artigo por Gaya, afinal ela é especialmente filosofia, e também ciência. Por outro lado, cabe ressaltar que a clarificação de um posicionamento de afastamento da vertente marxista demonstrado por Gaya, é resultante de uma modificação que envolve o caráter profissional e pessoal, sendo necessariamente respeitável no regime democrático que queremos dar à sociedade em que vivemos. Conforme ressaltado anteriormente, o fato de ser marxista ou trabalhar com método dialético não faz com que nos tornemos bons ou melhores que outros que não o façam. Nesta perspectiva, embora acreditemos que houve retrocesso no modo de pensar de Gaya no decorrer do artigo em relação a épocas anteriores, podemos verificar uma tentativa de demarcação da área, através de uma opção teórica (que lamentavelmente ou sutilmente esquece-se que parte das pessoas que compõem a área da EF tem identificação com o marxismo) e consegue avanços neste sentido. Tais afirmativas são confirmadas ao enunciarmos que: - Gaya acredita na EF como pedagogia, convergindo com idéias apresentadas neste estudo, creditando-a como intervenção pedagógica; - Gaya insere a EF como disciplina normativa, portanto como portadora necessária de valores anteriores e ulteriores a sua prática; - Existe, para Gaya, uma necessidade de intervenção no mundo concreto por parte da docência na EF; Assim sendo, Gaya faz uma opção teórica distanciada e, de certo modo, oposta ao marxismo, e, mais ainda, o desconsidera enquanto proposta epistemológica ao enunciar as tendências da EF sem abranger uma tendência marxista na EF dentro das perspectivas teóricas que estão em seu artigo. Tal fato não coaduna com uma massa de estudantes e profissionais, livros e artigos convergentes com uma perspectiva marxista dentro da concepção de EF. 3.1.2 - Análise do artigo de Taffarel e Escobar: O artigo de Taffarel e Escobar terminou de ser escrito em 30/11/93, sendo publicado no primeiro número da revista Movimento em 94. Elas constroem uma crítica ao texto de Gaya, tomando como base às referências que ele utilizou, classificadas por elas como idealistas. No trato da questão em pauta consideram-se menos simplistas e mais críticas, adotando como referencial a dialética materialista histórica. A utilização, para as autoras, do simplismo por Gaya é uma recorrência, um artifício, para "sistematizar um conhecimento produzido sobre o assunto" (Taffarel & Escobar, 1994, p. 35). Um exemplo disto é as referências regionais relativas à produção de conhecimento que foram adotadas. Para elas, Gaya também não considerou a categoria atividade no sentido marxista quando fez a análise das duas tendências estabelecidas de concepção do que seria EF (p. 36). Desta forma, "Gaya e suas referências não levam em conta a relação do desenvolvimento geral da sociedade e da sua base material como determinante da 'qualidade' da produção da cultura corporal, que, em um modo de produção capitalista, sobrepõe ao caráter lúdico das atividades, a violência, a competitividade exacerbada, a estimulação por drogas, enfim, os subprodutos da cultura dos esportes de alto rendimento". (Taffarel e Escobar, 1994, p. 37). Para as autoras, Gaya incorre em um erro quando desconsidera "os referenciais da dialética materialista-histórica" (Taffarel & Escobar, 1994, p. 37). Para elas, o autor criticado concluiu que a EF é uma prática de intervenção no mundo concreto, enquanto a Filosofia não assumiria esta prerrogativa. A intervenção no mundo concreto, "não está limitada ao mundo das aparências. A prática da EF em si não garante a intervenção no real, visto que esta prática pode-se dar de maneira alienada e pela apreensão do real a partir de representações, a exemplo da forma como o esporte é considerado na escola, abordado como um trabalho abstrato... e sem avaliar a qualidade destrutiva da socialização subjacente a essa concepção." (Taffarel e Escobar, 1994, p. 37) Segundo as autoras, a EF depende das possibilidades históricas que surgem enquanto que o idealismo demonstrado por Gaya não é suficiente para apreensão dos fenômenos sociais concretos. Ao fazer uma crítica do pensamento de Gaya, clarificou-se, para elas, o estabelecimento de uma dicotomia entre ciência e filosofia, visto que o autor, quando reduz às abstrações de um discurso especulativo de cunho axiológico, recusa a filosofia da práxis e cai na lógica de raciocínio utilizada pelo seu referencial teórico. As autoras radicalizam a compreensão dialética materialista-histórica enquanto teoria do conhecimento, assumindo que, desta forma, poderiam ser apontados os equívocos na terminologia referente à EF, que, quando empregadas pelos autores citados por Gaya, tornam-se concepções idealistas. Nestes termos, no texto de sua autoria, Gaya não considerou, segundo Taffarel e Escobar (1994), que o fazer científico ocorre inserido em determinadas relações históricas, caracterizando a ciência enquanto força produtiva, dominação política e ideologia. Segundo as autoras, também é passível de críticas a EF enquanto Pedagogia no âmbito de um projeto antropológico e interveniente no real. Para Taffarel & Escobar (1994), "a intervenção no real está na dependência da qualidade da práxis social historicamente determinada no marco de produção da vida e segundo interesses de classe". (p. 39). O pensamento dos autores descritos aponta para uma determinada concepção de EF. Ao produzir tal concepção, passam a exercer uma função intelectual nos termos do debate sobre a questão epistemológica. Tal fato pode ser indicativo de relação entre o pensamento dos referidos autores com a dinâmica do pensamento intelectual sobre a concepção atual de EF. Cabe ressaltar que através do posicionamento enunciado pelas autoras, as visões de mundo diferenciadas podem, numa ótica marxista, demarcar posicionamentos que refletem interesses de classe ou de grupos dominantes, evitando assim conflitos e exercendo dominação, pois "As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua dominação." (Marx & Engels, 1986, p. 72). Neste sentido, Taffarel e Escobar (1994) ao intitularem seu artigo em crítica ao de Gaya como “um exemplo do simplismo intelectual”, demonstram a priori um certo descrédito com o artigo de Gaya. Santin (1995), denota o caráter da crítica feita a Gaya na questão desse sub-título, demonstrando que “O texto começa de maneira contundente, o que facilita identificar, já no seu título, o teor contestador imprimido no mesmo. Por outro lado, esta franqueza frontal pode provocar um pré-julgamento nos leitores, impossibilitando uma atitude mais crítica, que se forma ao longo da força da argumentação”. (p. XIII). Em entrevista recente, Santin (2000, Anexo 03) corrobora com tal posicionamento, afirmando que “... a posição da Celi era uma posição, digamos, de denúncia ou de crítica, baseada numa proposta de um paradigma marxista, em que denunciava que a compreensão da educação física do professor Gaya, era de uma EF asséptica, neutra, sem explicações de ordem social, e que o professor Gaya se baseava numa cientificidade que também seria neutra. A preocupação era simplesmente saber em que consiste ou o que é EF, e não via na cientificidade uma vinculação com a ordem social, e portanto a Celi critica logo no início com um discurso muito dirigido, muito radical – não é a palavra que eu gostaria de dizer, mas não estou no momento achando uma melhor – e que caracterizava o seu tipo de discurso, e que portanto, eu digo no meu texto, o autor que perceber no início essa postura da Celi, era capaz de nem mais ler, pois saberia o que ela iria dizer”. Apesar de considerarmos que a crítica de Santin não esgota a questão, é importante frisar Taffarel e Escobar acentuando a crítica com teor semelhante ao ‘simplismo intelectual’ por mais 19 vezes num artigo de seis páginas. Tal fato pode ser exemplificado quando escreve que “... assim desconhecendo, ingenuamente e sem sutilezas” ou “... cometendo um equívoco seríssimo...” (p. 37), ou ainda “... Na saga dos equívocos teóricos...” (p. 37), “...completa o quadro de equívocos...” (p. 39), “... Absurdo teórico...” (p. 39), “... sucatas científicas idealistas...” (p. 39) e “... trocarmos nosso ouro por espelhos...” (p. 39). Deste modo, as críticas contidas nessas 20 assertivas não conseguem ser demonstradas ao longo do texto, possibilitando críticas posteriores. O cerne do texto, no entanto, é que Taffarel e Escobar se esforçaram por desenvolver a tese do idealismo das referências adotadas por Gaya. Por isto ele mesmo acaba por tornar-se identificado com as suas referências. Este tema central pode ter sido deslocado por autores que se seguiram nesse debate, onde não o discutiram, optando pelas críticas às posições consideradas radicais em detrimento de críticas diretas a posição teórica. A temática central do texto é postular uma crítica radical às referências utilizadas por Gaya, classificadas como idealistas pelas autoras. Taffarel e Escobar referem-se no texto ao idealismo no resumo, quando afirmam que o “idealismo é insuficiente para apreender os fenômenos sociais concretos” (p. 37), e quando radicalizam a compreensão de teoria do conhecimento sob o ponto de vista da dialética materialista e histórica, afirmando que ela pode colocar os termos de denominação de EF, movimento humano, psicocinética, ciências do esporte, ciências do desporto e motricidade humana como “marco referencial das concepções idealistas e da referência científica empírico-analítica, hermenêutica e fenomenológica. Nelas fica evidente um recorrer às ciências humanas e sociais somente para legitimar uma perspectiva filosófico-científica superada, esgotada, que é o idealismo e o método empírico-analítico de pesquisa”. (Taffarel e Escobar, 1994, p. 39). Não fica claro neste fragmento de texto se a tendência que, segundo o artigo de Gaya, compreende a EF como filosofia da corporeidade, também é considerada por Taffarel e Escobar como idealista. Isto ocorre porque, neste caso, só foram citadas explicitamente por elas as denominações da primeira tendência exposta por Gaya - que configuram “a EF como uma ciência relativamente autônoma” (Gaya, 1994, p. 31). Por outro lado, não é explicitado pelas autoras se o idealismo referido é stricto sensu o criticado por Marx, tornando incompleta a crítica proposta, pois para Marx existe mais de uma manifestação de idealismo. Concordando com Taffarel e Escobar, acreditamos que o problema não está em considerar as idéias, mas em torná-las modelos que tendem a impedir o aprofundamento da análise do concreto e também o retorno das idéias a este mesmo concreto para sua transformação. Desta forma, incorre-se numa vertente de unidade pelas idéias. Não há indicativo de que as autoras consideraram positiva alguma das referências propostas por Gaya, considerando-as com a mesma perspectiva. Acreditamos também que melhor sintetizaria a crítica de Taffarel e Escobar se recorressem à sexta tese de Marx quando este analisa Feuerbarch e demonstra seu idealismo (27). Entretanto, pode também ter sido criticado por Taffarel e Escobar um idealismo com sentido de alienação, ignorância do concreto das ações do homem, o que não acreditamos. Gaya é um intelectual com qualidades acadêmicas reconhecidas, e que, conforme Taffarel afirmou em entrevista (Anexo 02), em outra época esteve política e teoricamente a seu lado, possibilitando deduzir-se ter sido, nesta ótica, uma crítica irônica. Quando perguntada em entrevista, no entanto, se classificou Gaya ao chamá-lo de idealista, tal como achou que foi classificada por autores que se seguiram no debate, Taffarel respondeu: “Me mostra no texto que eu chamei Gaya de idealista. O que eu vou te mostrar no texto é que a opção teórica que ele fez foi explicar um fenômeno epistemológico, etc. Idealista. É idealista a opção que ele fez. Ele fez uma opção epistemológica. Então, é isso que precisa ficar esclarecido.” (Taffarel, 2000, Anexo 02). Além disso, Taffarel já houvera negado ter feito qualquer ataque pessoal a Gaya, afirmando que: “...eu não fiz ataque pessoal nenhum, isso foi uma tentativa de um monte de gente, muitas pessoas quiseram dizer que eu ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya, eu não ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya, respeito o meu colega professor Adroaldo Gaya, respeito todo o trabalho que ele fez ao longo da história, respeito a nossa convivência, mas me dou o direito de ter divergências e dizer que o companheiro, na sua trajetória, teve aproximações com referências epistemológicas que o levaram a formulações como aquela que nos coube analisar. E esta formulação que ele elaborou, expressou naquele texto no qual nós nos posicionamos, merece questionamentos, e nós fizemos esses questionamentos, e a ciência, ela evolui porque nós somos capazes de questionar.” (Taffarel, 2000, Anexo 02). Voltando ao ponto anterior de nossa análise, cabe ressaltar que as autoras em mais de um momento do texto as autoras procuram mostrar Gaya desembocando. Ratifica-se esse fato ao fazerem afirmações como “... isto é negado, demonstrando, mais uma vez seu raciocínio idealista”. (Taffarel e Escobar, 1994, p. 38), ou “ao estabelecer uma dicotomia entre ciência e filosofia (...) o autor recusa a filosofia da práxis e cai na lógica de raciocínio utilizada pelos autores que ele analisa” (Taffarel e Escobar, 1994, p. 38), ou ainda citando Kosik, onde diz que o posicionamento de Gaya pareceu a de “(...) um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante, que examina a realidade especulativamente.” (Kosik, 1976, p. 9-33. In: Taffarel e Escobar, 1994, p. 38). Esta citação de Kosik está na primeira página do primeiro capítulo do seu livro, denominado Dialética do Concreto, necessitando-se de uma leitura mais rigorosa para que se compreenda a afirmação de Taffarel e Escobar. Ao fazerem a opção de utilizarem-se da idéia do autor sem explicá-la em sua profundidade, as autoras não iluminam totalmente a crítica realizada. Kosik trata da coisa em si ou real concreto, mas demonstra que ele não se manifesta ao homem de forma imediata, e que compreendê-lo exige um esforço e uma estratégia, uma amarração (détour). Por isso, o pensar dialético faz uma distinção entre a representação e o conceito do real concreto, “com isso não pretendendo apenas distinguir duas formas e dois graus de conhecimento da realidade, mas especialmente e, sobretudo, duas qualidades da práxis humana” (Kosik, 1995, p. 13). E continua: “a atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não (28) é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente” (id). Neste ponto, Taffarel e Escobar aplicam de forma inadequada a proposta de Kosik, enquadrando Gaya, num modelo pré-concebido, que antecede à crítica por elas realizada. Talvez a crítica fosse mais bem explicitada na continuidade da citação de Kosik utilizada. Neste ponto, ele propõe o que acredita ser o melhor procedimento de observar a realidade. Taffarel e Escobar enquadram Gaya a partir de uma citação de Kosik, um autor importante, mas que, embora fale do mesmo assunto, é extrínseco ao debate. Ele afirma, conforme dito anteriormente, que a atitude primária ao homem não é de um ser que pensa e verifica a realidade de forma especulativa. Neste ponto do texto, inicia a proposta positiva de Kosik, e não com a citação utilizada por Taffarel e Escobar, o que demonstra sua crítica, mas não clarifica sua proposta epistemológica, possivelmente similar à de Kosik. Este autor continua o texto assim: “(...), porém, a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais” (1995, p. 13). Desta forma, emerge o procedimento de Kosik em relação ao binômio aparênciaessência, onde o primeiro termo é o mundo da pseudoconcreticidade, o olhar sobre o mundo que as autoras afirmam ser o de Gaya. Faltaria às autoras explicitarem a proposta de Kosik – só para ficarmos na primeira parte da leitura de seu livro – sobre o mundo da concreticidade. Segundo este autor ele nos mostra a verdade, apesar de não conseguimos alcançá-la, embora tenhamos que fazer sucessivas idas e vindas, e um détour para nos aproximarmos dela. Ou seja, Kosik está tentando ressaltar a importância da dialética na concepção de mundo e, conseqüentemente, no fazer científico, o que não parece estar bem explicitado no texto de Taffarel e Escobar. Numa outra vertente, foi perguntado em entrevista a Taffarel, se o texto de Gaya era existencial, um texto que marcaria sua saída da esquerda. Ela afirma: “Não, eu não posso, para não ser leviana, fazer colocações do tipo: Adroaldo Gaya saiu da esquerda. Não, seria leviandade da minha parte. O que eu posso dizer é que a base teórica, a fundamentação epistemológica daquele escrito de Adroaldo Gaya, se contradiz com à referência marxista. E ao dizer isto, nós reconhecemos que esta contradição à referência marxista, ela pode perfeitamente estar sendo influenciada por todo um programa desenvolvido por todo um programa, por toda uma orientação, que nós recebemos sim, quando nós decidimos fazer um programa de pós-graduação, e aí, esse texto ele foi produzido dentro de um programa de pós-graduação. Ele representa uma parte de um estudo de doutorado, que se coloca dentro de uma vertente epistemológica. Ou será que nós brasileiros não temos a competência de verificar quais são as vertentes epistemológicas que estão orientando os programas de pós-graduação em Portugal? O que é que tem predominado? O que é que é enfático? O que está sendo trazido para o Brasil, enquanto influência epistemológica? Será que nós brasileiros não temos capacidade de fazer isto? Não podemos criticar isso? Na condição de brasileira, de professora de ensino superior, de quem se propõe a fazer ciência no nosso país, eu quero discutir as bases epistemológicas da produção desse conhecimento. E foi o que nós fizemos. Sem ofensas pessoais, sem atacar o companheiro Adroaldo Gaya, sem nada disso. Isso é uma interpretação de alguém que quer reduzir esse debate a um confronto pessoal, e isto é equivocado” (Taffarel, 2000). Em síntese, concordamos com Taffarel e Escobar no conjunto de sua análise crítica relacionada ao artigo de Gaya, mas consideramos inadequada a forma encontrada por elas nesta análise. Da mesma forma, a postura inflexível no sentido de aparentar um repúdio radical à proposta formulada neste artigo de Gaya, não nos parece a melhor estratégia de ocupação desse espaço de luta contra-hegemônica. Tal fato caracteriza-se inclusive pelas contradições expostas dentro da própria proposta de Gaya. Essa postura determinou um deslocamento da discussão, permitindo a colocação de outras questões dentro do foco central, em detrimento do debate diretamente epistemológico. Como Taffarel e Escobar foram enfáticas no trato de questões secundárias, conforme abordado anteriormente, pôde haver esse deslocamento prejudicial ao debate. Concluindo, a questão central de Gaya, conforme o próprio título afirma, é a da identidade da EF, e sobre isto não basta tentar relacioná-la enquanto prática, como capitalista ou socialista. Não é a prática da EF que é em si a proposta de Gaya como Taffarel e Escobar parecem querer demonstrar, mas a própria identidade da EF que dentro da proposta formulada por Gaya, acaba por ser per se. Isto inclui especialmente a docência, por ser ela prática pedagógica. A atividade física realizada não é, por si, politizada. O sentido que lhe é dado em aula, na prática docente, no esporte, este sim é, em maior ou menor grau, ideologizado, parcial, reflexivo das contradições sociais e posicionado a favor ou contra a hegemonia vigente. Ao mesmo tempo, deixa de ser uma atividade física aleatória e passa a ser realizada com uma intervenção pedagógica, que clarifica sua relação com a sociedade. Neste sentido, por exemplo, a análise de Taffarel e Escobar é periférica. Por outro lado, o caminho tomado pela intervenção pedagógica em relação à hegemonia é fundamental em sua manutenção ou em sua contestação. Esta intervenção é feita pelo docente, um indivíduo construído historicamente, com suas convicções criadas também pelas suas referências teóricas. Assim, os autores que subsidiam este indivíduo docente, ratificam sua posição já predisposta ou, pelo contrário, modificam sua concepção de mundo, influenciando sobremaneira o produto pedagógico, resultante na própria docência. Tais autores subsidiadores constituem-se, num sentido gramsciano adotado neste estudo, como intelectuais orgânicos (organizadores da cultura), mediadores do poder vigente representado pelo Estado + sociedade civil, e a massa populacional ou senso comum. Esta mediação é a favor da hegemonia, embora existam intelectuais orgânicos do tipo contra-hegemônico, que ocupam os espaços deixados pela hegemonia vigente. Portanto, os autores - enquanto intelectuais orgânicos - têm papel fundamental na mediação da intervenção pedagógica docente, na EF ou em qualquer outra área passível desta intervenção. Desta forma, Gaya, Taffarel e Escobar assim como os autores que se seguiram nesse debate, representam papel relevante na manutenção da hegemonia vigente ou na contra-hegemonia, visto que a EF enquanto uma intervenção do tipo pedagógica forma unidade com o todo da sociedade. Assim sendo, não basta entendermos o debate somente nos dizeres dos textos desses intelectuais, mas o que estes dizeres promovem para seus leitores como construção de um consenso hegemônico na EF e que pode atender ou não à hegemonia vigente ou à contra-hegemonia, sob risco de entendermos a função intelectual de forma fragmentada. 3.2 – Os intelectuais da EF frente à questão da hegemonia: Conforme foi abordado anteriormente en passant, o conceito de hegemonia em Gramsci reflete uma busca do domínio em torno de idéias que se articulam de maneira combinada entre um consenso das idéias do Estado e da classe dominante para com as massas e que quando não se estabelece, utiliza-se a força ou a coerção. Este consenso é mediado pelos intelectuais, que organizam a cultura e solidificam para o senso comum, a hegemonia em torno das idéias do Estado e da classe dominante. Tal solidificação dá-se com a ideologia funcionando como um cimento, ou seja, os intelectuais têm a ideologia quando fazem a articulação das idéias, que é transmitida nas idéias adquiridas pelo senso comum. Neste sentido, os intelectuais têm papel fundamental na construção da hegemonia em torno das idéias do Estado e da classe dominante. Por outro lado, conforme existe o consenso hegemônico, vão aparecendo contradições no sistema e sendo oferecidos espaços de ocupação nos espaços de domínio da hegemonia vigente, que é a hegemonia da classe dominante. Esses espaços existem especialmente nos aparelhos ideológicos, e são ocupados exatamente através das mesmas lideranças que mediatizam as idéias do Estado e da classe dominante. Ou seja, existem intelectuais que agem contra a hegemonia vigente e lideram o senso comum especialmente no seu núcleo bom, ou bom senso – para tomada dos espaços deixados pela hegemonia, oferecendo resistência a ela, e processando uma contra-hegemonia. Esta contra hegemonia também se pretende hegemonia, e para isso busca estratégias de alcance do poder. Como isto ocorre em nível macro, em todos os espaços, na verdade se está contribuindo (ou resistindo, no caso da contra-hegemonia) para manutenção do poder. Neste sentido, também os intelectuais têm papel fundamental tanto na contra-hegemonia quanto na construção de uma nova hegemonia e dos meios para se alcançá-la. Mas, e na EF? Na EF não é diferente. A EF é uma área de conhecimento que tem um papel tão importante, fundamental ou superficial, quanto qualquer outra, dependendo das circunstâncias históricas, no contexto hegemônico e contra-hegemônico exemplificado. Não são poucos os exemplos em que a EF foi utilizada tanto como meio de manutenção, propaganda de um sistema político, como de resistência velada ou explícita a ele. Tampouco conteúdos trabalhados na EF têm menos importância do que outros, podendo ser citado, por exemplo, o esporte e a ginástica. Ocorre isto é uma transposição tênue para o contexto amplo da hegemonia e contra-hegemonia, e que sofre várias interferências nesse caminho que dificultam generalizações e a prioris em julgamentos, sob o risco de cometermos erros graves tanto em relação a intelectuais que transitam pela hegemonia como pela contra-hegemonia, especialmente se tratando de dentro de uma prática social como a EF. Desta forma, o pensamento gramsciano acerca da questão da hegemonia foi levado em consideração no momento de analisarmos as formulações de propostas, conceito, identidade e reflexões sobre a EF brasileira. O debate na revista Movimento não indica uma hegemonia no pensamento da EF, mas pode indicar como se auxilia na manutenção da hegemonia vigente, ao mesmo tempo em que se constróem convergências em torno de idéias hegemônicas dentro da EF ou, ao contrário, se ocupam ou tentam ocupar os espaços deixados pela hegemonia do Estado e da classe dominante para que haja luta contra hegemônica na EF, com vistas a construção de uma nova hegemonia. Gramsci, conforme apontado anteriormente, ratifica a concepção de hegemonia com sentido de dominar e dirigir politicamente, com o Estado utilizando-se de força ou coerção + consentimento com a população visando seu domínio, em diálogo para construção da hegemonia com a sociedade civil. Este domínio é mediado pelos intelectuais, formadores de consenso e organizadores da cultura. Mas, e a EF, o que tem a ver com isso? A EF é ministrada por professores, intelectuais orgânicos vinculados às classes dominantes ou não e de diferentes maneiras, sendo, portanto, mediadores do consenso entre Estado e senso comum, e, conseqüentemente, entre classes sociais. A Escola, instituição na qual muitos professores de EF atuam, é um aparelho da sociedade civil, tal como a Universidade que formam os intelectuais que irão promover a continuidade deste processo ou a tentativa de rompimento com ele. Os intelectuais que tentam promover tal ruptura são chamados de contra-hegemônicos, e podem ocupar os espaços deixados na sociedade por parte do Estado e classe dominante, especialmente os espaços deixados na sociedade civil, ambiente em que ao mesmo tempo existe quase uma extensão do Estado e um forte contraponto a ele, ou pelo menos essa possibilidade. Os intelectuais da EF citados no presente estudo subsidiam, através da produção de conhecimento, professores e acadêmicos, com suas idéias, argumentos, posições, ideologias enfim, tal como na hegemonia usam dessa ideologia para consolidar o bloco histórico, agindo como um cimento das idéias do Estado na sociedade e, conseqüentemente, na sociedade civil. Portanto, os intelectuais da EF são passíveis de contornos das ideologias do tipo hegemônicas e das contra-hegemônicas, e, assim, formam também uma hegemonia, um consenso em torno de idéias para sua categoria, exercendo liderança em torno de suas proposições. Desta forma, os intelectuais orgânicos da EF que escreveram para a revista Movimento atendem a uma perspectiva gramsciana de hegemonia ou contra-hegemonia, e de diferentes maneiras e, ao mesmo tempo, tentam construir uma hegemonia em torno de suas idéias, ou simplesmente externam estas idéias como contribuição para construção do conhecimento na área, mas atendendo à perspectiva hegemônica ou à contra-hegemônica. Nestes termos, nesse debate epistemológico da EF ocorre uma tentativa de produção de um consenso hegemônico. Por um lado, Gaya e por outro Taffarel e Escobar, protagonizam um campo de tensão em torno desta tentativa. De acordo com a ótica de Gramsci em relação ao conceito de hegemonia, uma proposta formulada no âmbito da epistemologia de uma prática social como a EF, está em sintonia com uma perspectiva política ampliada de manutenção ou de contrariedade ao poder vigente. Ao adotando uma postura historicista radical, a conjuntura histórica atual relativa ao poder vigente indica uma perspectiva à direita nos principais campos de poder que perpassam a proposta hegemônica criticada por Gramsci. Tanto a sociedade civil quanto o Estado estão alinhados com uma proposta mais ampliada de um movimento mundial de tentativa para manutenção do capitalismo como sistema econômico dominante, inclusive através das suas derivações políticas de sustentação, como a dita democracia da atualidade. Em que pese o avanço político relacionado a alguns momentos anteriores no nosso país, vemos uma distância bastante grande de uma sociedade avançada em termos de democracia, e maior ainda de uma sociedade verdadeiramente democrática, um humanismo radical, como o marxismo. Isto posto, verificamos, conforme os dados levantados anteriormente, Gaya afirmando uma aproximação com uma perspectiva dialética à esquerda, diferentemente de um chamado – pelo mesmo Gaya - grupo radical de esquerda da EF. Posteriormente, verificamos no artigo de Taffarel e Escobar, confirmado posteriormente em entrevista (2000, Anexo 02), um repúdio à proposta de Gaya, por não a considerarem nesta perspectiva dialética. Portanto, a análise dos dados retoma dois pólos de discussão: No primeiro, se Gaya adota, como diz, uma perspectiva contra-hegemônica, o fato de postular uma crítica direta a um chamado grupo radical da esquerda da EF, contra-hegemônico, conota uma postura que propõe uma fragmentação exatamente nesta luta contra-hegemônica, pois, ao contrário, as diferenças existentes teriam que ser superadas em prol de um trabalho coletivo e estratégico, e através do qual o que os uniriam, os identificariam, seria a afinidade teórica e a concepção de mundo, do mundo que se quer construir. De outra forma, Taffarel e Escobar, se também identificam em Gaya um intelectual orgânico do tipo contra hegemônico, conforme Taffarel afirma em entrevista que sempre reconheceu em Gaya “uma pessoa que defendia um projeto histórico socialista, que defendia uma concepção de homem emancipado, que defendia uma perspectiva epistemológica marxista” (2000, Anexo 02), e que seria leviandade de sua parte afirmar que Gaya saiu da esquerda, também precisariam buscar aproximações com essa perspectiva de esquerda na qual acreditavam que Gaya estaria, para conseguir pontos convergentes e diminuir distâncias entre propostas. Noutro sentido, se Gaya é um intelectual orgânico que adota uma postura afinada com uma perspectiva hegemônica, sua estratégia a partir do seu artigo é correta. Seu discurso é posicionado com determinadas ênfases como nos valores, que aparentam ser contra-hegemônicas, mas na essência acabam por se aproximar de propostas do tipo hegemônicas. Tal análise é corroborada na medida que não verifica no seu artigo nenhuma tendência do tipo contra-hegemônica em seu artigo - fato que ocorre ao contrário em sua tese de doutorado (1994), onde verifica uma tendência da produção de conhecimento do tipo contra-hegemônica -, o que pode ser parte de sua estratégia. Por outro lado, Gaya afirmou em entrevista não pretender que o artigo da revista Movimento tomasse a proporção ocorrida. Este fato, entre outros, demonstra fazer-se necessário perscrutar essa sua tese de doutorado, pois devido ao seu teor também epistemológico, possivelmente encontraríamos subsídios sobre sua posição frente a propostas do tipo hegemônicas e contra-hegemônicas, bem como possíveis problemas de ordem metodológica por análise comparativa com seu artigo. Concomitantemente, verificamos que Gaya analisa em seu artigo diversos autores de maneira aparentemente superficial. Santin, por exemplo, nega no artigo publicado na revista Movimento e, posteriormente, em entrevista, a vertente explorada por Gaya de que conceberia a EF como filosofia da corporeidade e que negaria a ciência, conforme visto anteriormente. O principal indicativo do artigo consiste em que diversos autores são citados somente por um livro ou artigo e mecanicamente enquadrados em uma tendência da EF sem análises conotativas. Portanto, são citados muitos autores sem que Gaya explicite com maior consistência suas propostas teóricas, incorrendo no risco de não ir a essência do que estes autores realmente propuseram, enquadrando-os nas tendências apontadas. Para entendermos se houve uma análise profunda, mas não explicitada, recorreremos também à tese de doutorado de Gaya, publicada no mesmo ano do artigo da revista Movimento, 1994, no sentido de verificarmos se é um enxugamento do texto, onde não explicitou para o leitor a proposta do autor, ou um ranço metodológico equivocado, em que a idéia do autor não é, possivelmente, esmiuçada a ponto de explicitação e, conseqüentemente, superficializada. Cabe tal análise na medida que Gaya também se baseou nesta tese para escrever seu artigo. Isto ocorreu em grande escala, a ponto de Gaya praticamente transpor as páginas 19 e 20 dela para o artigo da revista Movimento. Gaya, em sua tese, pretendeu verificar a produção científica na área dos desportos em congressos e revistas de EF, com vistas a verificar as tendências dessa produção. O principal resultado conclusivo é que a área dos desportos não se constitui em uma ciência. Em sua tese, Gaya demonstra dificuldades em conciliar a teoria utilizada ao trabalho de campo, de aplicação na análise empírica, sendo monolítico o complexo referencial teórico. Gaya, quando consultado, assumiu essa dificuldade no estudo, afirmando em entrevista que “eu concordo com sua crítica, eu acho que ela é bem feita. Eu acho que a tese tem duas partes: uma parte que fala e outra parte em que eu fui pra campo, e que talvez esteja um pouco desvinculada. O trabalho prático é mais empiricista, é mais empírico, no sentido de contar as produções científicas para verificar e discutir. Realmente, foi muito bem visto de sua parte, que as coisas não fluem tão diretamente como deveriam fluir. Mas eu te digo com tranqüilidade, eu acho até que por falta de competência, e também por uma mania triste de querer ser intelectualista, mostrar que lê as coisas. Eu acho que isso passa muito por nós. Tinha a preocupação de fazer uma revisão de literatura também, a preocupação de dizer que leu os principais autores, eu acho que passa muito por isso. Sinceramente. A questão psicológica, talvez por vaidade pessoal, não sei, mas você me fez ver isso com muita clareza agora também, ver com muita clareza. A tese tem dois enfoques: o teórico não se enquadra muito com o trabalho de campo. Eu te agradeço por isso.” (Gaya, Anexo I, 2000). Além dessa crítica, podemos apontar um indicativo de erro do ponto de vista da metodologia de um trabalho de cunho filosófico em sua tese, pois Gaya aponta diversos autores desta área, de grande complexidade e com perspectivas diferenciadas num mesmo estudo. Neste sentido, termina aparentando superficialidade na análise. Por outro lado, esses autores complexos, como Adorno, Althusser, Bachelard, Durkheim, Habermas, entre outros, são tratados em poucas linhas, o que banaliza suas teorias. Podemos exemplificar isto com Durkheim e Habermas, onde o primeiro mereceu quatro linhas, e o segundo, quatro palavras na primeira menção e 05 linhas na segunda. Em que pese não serem referências principais na elaboração de sua tese, suas teorias são grandiosas e complexas por demais para tal análise, ou mesmo para corroboração de uma idéia. Analogicamente, portanto, a tese de Gaya apresenta sintomaticamente esse problema de maneira similar ao artigo. Por outro lado, ao abordar a produção científica relativa às ciências do desporto, Gaya tenta traçar um perfil das ciências do desporto que desemboca em publicações multidisciplinares possuidora de interesses das áreas disciplinares as quais se originam, no Brasil e em Portugal. Gaya destaca na área sócio-antropológica, 11,9% da produção científica no período compreendido entre 1975 e 1990, com aumento significativo nos cinco últimos anos. Um fator a ser considerado nesta área disciplinar, “são as fortes influências político-ideológicas o que, ao nosso ver, tem ocasionado expressões de sectarismo que prejudicam sensivelmente o debate das idéias científicas. Deste modo, as investigações de abordagem sócio-antropológicas (principalmente as sociológicas), que surgem na esteira crítica dos modelos empiristas e objetivistas, acabam, ao assumir contornos políticoideológicos exacerbados, por reforçar ainda mais as fronteiras multidisciplinares das ciências do desporto. Este fenômeno pode ser facilmente observado no âmbito da comunidade científica onde é evidente a dificuldade de convivência e diálogo entre grupos de pesquisadores provenientes da área biológica e do treino desportivo e das áreas sócio-antropológica e filosófica. Mas, sobretudo devemos reconhecer que estas dicotomias acabam por trazer sérios prejuízos às ciências do desporto na medida que o produto de suas investigações se reduz aos limites estritos ou de uma miopia empirista ou de uma falácia intelectualista com evidentes dificuldades de desenvolvimento de teorias capazes de expressar o significado transdisciplinar do desporto contemporâneo”. (Gaya, 1994, p. 61). Ao analisar em sua tese a produção de conhecimento relativo a estudos na área filosófica, Gaya a considerou pequena - da ordem de 6,7% do total ou 62 trabalhos pouco satisfatória em termos qualitativos e crescente nos últimos cinco anos dos quinze analisados, tal como à área sócio-antropológica. Gaya também ressalta que tais trabalhos têm pouco rigor metodológico, e que muitos deles “configuram-se em citações de pequenos insertos de importantes filósofos, muitas vezes em contexto impróprio, com o intuito de justificar determinados pontos de vista contra ou a favor do desporto. Portanto, nestas condições, esses trabalhos acabam por constituir-se em discursos claramente de cunho ideológico acarretando dificuldades à consolidação de pressupostos que possam orientar reflexões filosóficas sobre os problemas multidimensionais das práticas desportivas. Paradoxalmente, a dificuldade de uma relação interdisciplinar é, da mesma forma, evidente na área filosófica das ciências do desporto. Observam-se tendências ou concepções distintas que se excluem mutuamente. São discursos diversos que assumem radicalismos críticos e exacerbados em relação ao desporto. Discursos, em grande parte, elaborados a partir de referenciais teóricos limitados a determinadas correntes de pensamento que acabam por delinear contornos ideológicos de tamanha rigidez e sectarismo que impõem limites intransponíveis à possibilidade de interação entre as diversas expressões do conhecimento. Nestas situações o que se evidencia são argumentos no intuito de afirmar a soberania das diversas correntes filosóficas umas sobre as outras, permanecendo as discussões relacionadas ao desporto e suas práticas relegadas a um plano secundário.” (Gaya, 1994, p. 63). Portanto, Gaya aponta ao longo de sua tese, conforme exemplificado, trabalhos científicos que diz serem permeados em vários momentos por questões ideológicas e com posições sectárias, demonstrando similaridade com as críticas implícitas no artigo - e confirmadas em entrevista - relativas ao chamado grupo da esquerda radical da EF. Nestes termos, conclui-se preliminarmente que tal grupo produz conhecimento e poderia configurar como uma tendência da EF, na medida que faz parte dela e contém elementos epistemológicos de compreensão sobre a identidade da EF. Assim posto, cabe ressaltar, que um consenso hegemônico se faz em torno de idéias que refletem uma hegemonia ou uma contra-hegemonia, e de diferentes maneiras. A EF participa na formação de um consenso hegemônico com base numa hegemonia ou numa contra-hegemonia de dentro de um Estado que se diz democrático e, embora o que seja democrático neste Estado seja discutível e questionável, dentro dele é que estão os espaços de ocupação para luta contra-hegemônica e formação de uma nova hegemonia. Para nós, esta luta contra-hegemônica pressupõe alianças em torno de uma identidade entre intelectuais que supere as diferenças e se forme pelas idéias sim, mas também pela forma com que se chega a elas, sem conciliar o que não é passível disto - conforme aparentam ser Gaya e Taffarel e Escobar - mas não afastando o que é passível de conciliação. Neste sentido, compreendemos que não basta somente a perspectiva de interagir com o mundo, de se inserir nele e viver em sociedade, nesta sociedade, mas lutar para transpassar enquanto interventor pedagógico, a maior aproximação com a compreensão da realidade, como a inversão entre racional-irracional propiciada pelo sistema, ou seja, entendendo o sujeito como parte integrante da totalidade na busca de uma sociedade sem classes. CAPÍTULO IV - CONCLUSÃO 4.1 – Conclusão: Os dados analisados demonstram que a proposta do texto de Gaya quando verificada em sua essência e combinadas com a sua tese de doutorado e entrevista, conotam uma perspectiva que remete a propostas que ratificam posições hegemônicas na EF brasileira, e se aproximam com uma vertente empírico-analítica relativa à identidade da EF, na sua prática e, especialmente, na sua docência. Por conseguinte, foi verificado um distanciamento pari passu do referencial marxista e, conseqüentemente, de suas categorias - na qual afirmou em entrevista manter proximidade –, em especial na práxis e na dialética, ou seja, tanto na filosofia quanto no método. O artigo de Gaya foi elaborado com propostas de também instigar o debate, criticando – ainda que dissesse ser de forma implícita – uma vertente da EF que chamou de esquerda radical. Nestes termos, o debate prosseguiu com o editorial chamando exatamente intelectuais considerados membros desta vertente marxista referida, o que aparentemente não foi casual, mas deliberado, provocando naturalmente um acaloramento no debate, até por Taffarel e Escobar perceberem, possivelmente, a crítica implícita ao chamado grupo de esquerda radical da EF. Entretanto, embora atenda a uma perspectiva hegemônica, no sentido gramsciano do termo, o artigo de Gaya avança no sentido da delimitação de uma identidade da área, bem como no debate epistemológico, sendo suficientemente crítico relacionadamente a perspectivas que não incorporam elementos fundantes de uma prática social - como os valores, por exemplo. Além disso, tais perspectivas desconsideram a EF enquanto uma intervenção pedagógica, conforme foi exemplificado pelo próprio Gaya quando se referiu a tendência que identifica a EF enquanto ciência. Neste sentido, a proposta formulada por Gaya é claramente progressista. Noutros termos, Gaya encaminha sua proposta epistemológica para uma concepção de EF como um fim em si mesma, distanciando-se tanto da filosofia quanto da ciência, não incorporando elementos que propiciariam uma concepção no conjunto, no bojo da totalidade que a abrange. Numa perspectiva contra-hegemônica, a EF poderia, enquanto intervenção pedagógica, propiciar a tomada de espaços deixados pela hegemonia vigente nos seus diferentes ambientes de atuação, com destaque para a Escola, aparelho de luta ideológica que necessita de maior incorporação de sua importância pelo docente enquanto intelectual orgânico que atua nesta intervenção pedagógica. Taffarel e Escobar, por sua vez, tentaram ao longo do seu texto demonstrar as contradições no interior do texto de Gaya, mas incorporaram uma certa radicalização na forma com que escreveram seu texto. Esta radicalização compromete seus esforços de verificação de tais contradições e, dialeticamente, acaba por ocultá-las. Este fato revela-se quando analisamos o seu texto de crítica ao de Gaya, visto que não ocorreu a radicalização proposta no texto das autoras referente ao conteúdo escrito por Gaya. As críticas, em sua maioria, eram pertinentes, mas careciam de maior aprofundamento teórico devido à sua natureza, limitado claramente por se tratar de um artigo de poucas páginas, o que não impediria um maior cuidado na forma e ainda economizaria linhas importantes que poderiam ser utilizadas para críticas de conteúdo, evitando adjetivações que pouco acrescentam ao debate. A forma com que Taffarel e Escobar escreveram o texto acabou por propiciar posteriormente um deslocamento no debate epistemológico, auxiliando contraditoriamente aos que combatem a vertente marxista das autoras. Assim, os críticos a esta vertente puderam defender suas posições de dentro da forma com que Taffarel e Escobar escreveram em seu texto, como se o fato de ser marxista fosse ser radical na forma, esquecendo-se que também ocorre o contrário, através, por exemplo, de ideólogos de direita ou anti-marxistas dentro e fora da EF (29). É pertinente salientar a forma e conteúdo parcial da crítica construída pelas autoras do texto de Gaya, ao utilizarem-se da proposta teórica de Kosik. A referência da primeira página do seu livro não clarifica sua idéia por completo e ainda aparece invertida na ordem, pois seu principal argumento, embora parta da refutação da pseudoconcreticidade, está na defesa da concreticidade. A análise realizada pelas autoras, no entanto, revelou autenticidade teórica dos princípios e valores estabelecidos, de acordo com uma determinada visão de mundo marxista, estabelecendo uma construção teórico-argumentativa com coerência interna, sendo singular a defesa destes princípios e valores contra-hegemônicos. De outro modo, também o intelectual orgânico que atua no ambiente acadêmico exerce liderança e é formador de opinião, organizador da cultura, contribuindo nas diferentes manifestações contidas no conceito de hegemonia. Estas manifestações ocorrem sob forma da manutenção da hegemonia, na luta contra-hegemônica e na construção de uma nova hegemonia, onde novamente existirão espaços de luta contra-hegemônica para obtenção de outra nova hegemonia, porém já com uma perspectiva qualitativamente diferenciada, especialmente no que tange aos valores. Assim, os intelectuais orgânicos que escreveram os artigos para a revista Movimento se enquadram em uma das perspectivas citadas anteriormente, relativas ao conceito de hegemonia proposto por Gramsci, e exibem importância fundamental para a área e para a sociedade. Nos termos citados, todo movimento que ocorre na EF reflete no ambiente acadêmico e vice-versa, num intercâmbio dialético que credencia os intelectuais orgânicos mantenedores ou contestadores da hegemonia vigente a intervirem pedagogicamente como mediadores ideológicos de uma massa de professores, influenciando-os em maior ou menor grau. De outra forma, faz-se necessário repensar-se mecanismos de integração entre a Academia e a docência nos diferentes espaços, como clubes e escolas, para participação mais efetiva de intercâmbio, tanto dos membros da Academia quanto dos docentes que promovem a intervenção pedagógica das massas, auspiciando um processo de popularização do conhecimento e elevando o patamar de consciência da sociedade. Desta forma, embora nenhum dos autores dos artigos analisados adote uma perspectiva de neutralidade, cabe salientar que o intelectual não é neutro, pois tem uma postura que antecede sua prática. Quando este intelectual faz o possível para adotar tal neutralidade, acaba por recair numa perspectiva derivativa do Positivismo que tende a enviesar o seu estudo, anulando sua contribuição pessoal. Por outro lado, numa perspectiva goldmaniana, quando o intelectual subordina a ideologia aos fatos estudados, parte destes fatos e consegue resultados mais transparentes e com posicionamentos mais explícitos no encaminhamento de suas propostas e objetivos. Cabe ressaltar que desde a seleção do problema a ser estudado até o referencial teórico adotado, não nos livramos da ideologia, pois esta permeia a prática acadêmicocientífica. Diferentemente, quando a ideologia é sobreposta a esta prática, enviesamos as análises e amarramos os resultados, desprovendo de significado o fazer científico e/ou a docência. Por outro lado, existem intelectuais que acreditam ser mais capazes de produzirem sínteses, negando o intelectual orgânico que emerge de sua categoria profissional e exerce liderança, embora seja desprovido de grande bagagem enciclopédica. Esta perspectiva mannheimniana se enquadra numa tipologia epistemológica da concepção de intelectual produtora de adeptos. Este intelectual paira sobre o senso comum e vincula-se ora a uma ora a outra classe social conforme sua síntese. Deste modo acredita ser imparcial e, ao mesmo tempo, realiza ingerências livremente. Nesta perspectiva o intelectual está numa camada intersticial da sociedade, e também pode ser encontrado na EF ou em outra área de conhecimento. É pertinente salientar ainda a existência de uma hegemonia que se manifesta em diversas vertentes, e que são transpostas, por exemplo, da política e da luta de classes, para a EF e vice-versa, pois tal luta de classes atravessa todos os espaços sociais. Ocorre que, embora a luta de classes seja uma realidade, deve perpassar o trabalho científico, mas sem transpô-lo. A análise intelectual de uma área do conhecimento não pode subjugar-se a questão ideológica, nem tampouco se abster da totalidade. Não podemos negar, no entanto, que a questão da hegemonia é traduzida como uma construção pedagógica, manifestando-se também na EF como um campo fértil – o da educação – na construção de um consenso em torno de idéias, que produzam alguma hegemonia. A aproximação de Gaya com propostas hegemônicas e Taffarel e Escobar com propostas contra-hegêmonicas, acontece de maneira peculiar e, conforme afirmamos anteriormente, de maneira diferenciada em relação a outras propostas hegemônicas e contra-hegemônicas. Não cabe, no presente estudo, generalizar, mas sim particularizar a análise realçando que não se pode nivelar a perspectiva de Gaya ou de Taffarel e Escobar com outras perspectivas do tipo hegemônicas mais radicais ou contra-hegemônicas menos radicais, respectivamente. Assim sendo, acreditamos na importância da existência do capitalismo como etapa de superação no sentido que é dado rumo ao socialismo. Nessa medida, o capitalismo é fundamental enquanto etapa precedente. Notas: (1) – No Brasil destaca-se nas décadas de 60 e 70, a cientifização do esporte, com importantes avanços no treinamento desportivo, na biomecânica e na fisiologia. Por outro lado, houve um crescente número de Instituições de Ensino Superior oferecendo cursos de EF, o que pode caracterizar os avanços desta área na época. (2) – Para melhor elucidação do histórico da EF desde a implantação do curso de graduação em EF na Universidade do Brasil (atual UFRJ) em 1939 até a Resolução 03/87, ver também: AZEVEDO, Ângela Celeste Barreto de. Novas Abordagens sobre o Currículo de Formação Superior em Educação Física no Brasil: memória e documentos – Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PPGEF/UGF, 1999. (3) - Grifo meu. (4) - Kosik trabalha com a manifestação do fenômeno com uma pseudo-essência que necessita ser ultrapassada para que se chegue à verdadeira essência que, no entanto, pode ser alcançada pela via dialética. Isto não se manifesta, contudo, com um conceito de verdade plenamente alcançável, mas com sucessivas aproximações em sua busca. Por outro lado, Saviani (1986), ressalta que o binômio fenômeno-essência é similar ao empírico concreto, onde o empírico, ao mesmo tempo, revela e oculta o concreto. Para ele, o binômio fenômeno-essência tem eco tanto metafísico quanto idealista, e que poucas vezes um desses termos foi utilizado pelo Marx ‘maduro’. Apesar disto, segundo Saviani (1986), Kosik recupera estes termos resultantes desse binômio e articula-os, com vistas à elaboração de uma dialética da totalidade concreta. (5) – COISA – Tudo aquilo que possui uma existência individual e concreta. Sinônimo de objeto, portanto realidade objetiva, isto é, independente da representação. Nesse sentido, a coisa se opõe à idéia. (Japiassú & Marcondes, 1996). Não se trata, contudo, neste estudo, de tratar fatos sociais ou pessoas como coisas, pois acreditamos que os fatos sociais ou as pessoas devem ser tratados de dentro dos fatos sociais, que são geradores de conseqüências. Ou seja, conscientizar as pessoas ou grupos dos fatos conseqüentes que são provocados quando existe adesão a determinados valores decorrentes do fato social e/ou que estão implícitos ou explícitos neles. (Goldmann, 1980). (6) – Kosik refere-se à dialética marxista (7) – Também foram realizadas entrevistas com Silvino Santin, Hugo Rodolfo Lovisolo e Lamartine Pereira DaCosta, autores de artigos escritos para a revista Movimento sobre este debate. Em função do prazo de entrega da dissertação, somente foi inclusa a contribuição de Silvino Santin, na íntegra no anexo 03. As outras entrevistas, não menos importantes, poderão ser utilizadas em estudos posteriores. (8) - Giroux (1992) aborda significativamente a função dos intelectuais na sociedade. Ele discute a função política dos intelectuais, defendendo a necessidade dos professores identificados com a pedagogia radical, serem intelectuais transformadores. Neste sentido, a escola seria um espaço onde cabe a oposição, e a pedagogia radical uma política cultural. O autor focaliza o contexto norte-americano para propor suas idéias, entendendo-o, no aspecto educacional, como em crise. Para ele, a docência não só se proletariza pari passu, como vêm sendo subjugada à divisão social e técnica do trabalho. Deste modo, as forças político-ideológicas que estão envolvidas neste processo são similares às dos países periféricos. Cabe acrescentar que, para esse autor, o intelectual enquanto categoria formata se como fornecedor de bases teóricas examinadoras da atividade do professor, visando o esclarecimento das condições que propiciam o trabalho intelectual e desvelando ideologias e interesses que o trabalho docente produz e legitima. (9) – O termo intelligentsia aparece pela primeira vez na Rússia, no século XIX, como inteligencija, referindo-se a um grupo social local. Hoje, possui um sentido de convergência ideológica de um indivíduo ou grupo. (Bocayuva & Veiga, 1992). (10) – Mannheim refere-se aos estratos que possuem renda e vivem dela. (11) – A expressão “os intelectuais como organizadores da cultura” embora seja título de um livro de Gramsci (1995), aparece somente de maneira esporádica em sua obra. Este livro é um trecho dos seus escritos no cárcere, em forma de coletânea, o que não significa que tal expressão não retrate a visão gramsciana da função dos intelectuais, mas sim que o título do livro tem esse nome por causa dos editores. (Coutinho, 1981). (12) – Por senso comum, Gramsci compreende como às camadas da população que não tinham acesso à apreensão de elementos que podem ser entendidos como cultura, o que ocorre com grande parte dela. Existe dentro do senso comum um núcleo sadio, que é chamado bom senso, e que corresponderia a uma primeira etapa de desenvolvimento cultural em direção a intelectualidade. Este processo está diretamente ligado ao avanço de uma sociedade. (13) – Neste caso, Gramsci chama o bom senso de senso comum ao referir-se ao estrato de maior poder cultural frente à sociedade do primeiro em detrimento do segundo. Neste sentido, o bom senso existe como uma camada mais intelectualizada, com uma visão de mundo menos enviesada relativamente ao senso comum, embora seja parte dele. (14) – Gramsci discorre sobre a formação dos intelectuais, que possui relação direta com a formação do senso comum. Ver referências bibliográficas. (15) – Gramsci traça um paralelo entre a formação e aquisição da linguagem num sentido amplo, como um dos elementos responsáveis pelo progresso de uma sociedade. Em especial, ele analisa os efeitos da construção da linguagem na Itália. Ver referências bibliográficas. (16) – Gramsci refere-se ao marxismo como ‘filosofia da praxis’, possivelmente por encontrar-se preso, à época de seus escritos. (17) – Freischwebende Intelligenz, é um termo utilizado por Max Weber para referir-se a uma intelligentsia socialmente desvinculada (Mannheim, 1986). Em outra publicação, Mannheim afirma que utilizou a expressão Relativ freischwebende Intelligenz, que quer dizer grupo intelectual relativamente descomprometido e advém de Max Weber, mas que não significa um grupo completamente afastado das relações entre classes, e pretendeu demonstrar que “certos tipos de intelectual têm maiores oportunidades de testar e usar as visões socialmente disponíveis e de experimentar suas incoerências” (Mannheim, 1956, in: Foracchi, 1982, p. 106). (18) - Jesus (1989) afirma que a dominação consensual ocorreria para Gramsci sem utilização de violência como meio para o alcance desse domínio. Tal afirmação adquire polêmica ao se perscrutar autores que se manifestem sobre tal questão. Bocayuva & Veiga (1992), por exemplo, afirmam na mesma direção que Gramsci critica a idéia de assalto ao poder e aponta a Revolução como processual e como guerra de posições. Outros autores, contudo, negam que a posição de Gramsci era meramente estratégica ou revolucionária com restrições, como Dias (1987 vols. I-II), onde afirma também a necessidade de entendimento sobre com quem e contra quem Gramsci luta em seus escritos. A questão aparentemente se encontra na aceitação ou não do conceito marxista de práxis revolucionária. O presente estudo admite considerar o consenso sem utilização de violência como o meio mais adequado para tomada do poder numa sociedade, mas não parece ser exatamente isso o que emerge do pensamento gramsciano. A resposta para esta questão parece estar no conceito de guerra de posição X guerra de movimento, onde o primeiro momento é tático, de ocupação dos espaços deixados pela hegemonia vigente até se encontrar num momento onde existam condições objetivas combinadas com produção de subjetividades suficientes que viabilizem a tomada do poder pelos proletários. A via para esta tomada de poder, é dependente das circunstâncias de época e da complexificação da sociedade. Ainda assim, Gramsci aparenta estar mais preocupado em encontrar os meios para explicação da sociedade, ocupando uma lacuna marxiana do estudo da superestrutura - sem negar que, em última análise ela é determinada pela infra-estrutura – e demonstrando possibilidades de avanço dentro do próprio sistema vigente. Além disso, aponta para os benefícios de uma sociedade socialista, bem como os seus limites, derrubando, por outro lado, a tese de que o socialismo é o fim da história e que acabam as contradições com o fim da luta de classes. Portanto, parece ser mais central para Gramsci a tomada do poder pelos proletários do que a forma com que isto ocorreria. (19) - Lênin ou Lenine aparece citado por Gramsci também como Ilitch, Vilitch ou o maior teórico moderno da filosofia da práxis por causa da censura aos seus escritos à época da prisão. O pseudônimo Vilitch é proveniente de Vladimir Ilitch, primeiros nomes de Lênin, juntndo a inicial ‘V’ + Ilicht, ou seja, de V. Ilicht decorre Vilicht. (20) - Deve-se entender o sentido do termo metafísico utilizado por Gramsci em relação a Lênin, como o “ponto mais alto da filosofia da práxis, e não como uma aceitação da filosofia tradicional que Gramsci tenazmente combatia” (Jesus, 1989, p. 25). (21) - Quando ocorrem binômios no pensamento gramsciano, pode-se considerar o segundo termo como sendo o objetivo a se alcançar, o termo que subordina o primeiro. Não se tem precisão sobre a sua consciência na utilização deste fato, mas parece que, mesmo que estivesse inconsciente do ato, devido a sua consciência filosófica, este se transforma em ato consciente. (Jesus, 1989). (22) - Ferreira (1998), quando aborda a disputa entre intelectuais tradicionais versus orgânicos na EF brasileira das décadas de 80 a de 90, coloca o intelectual orgânico numa condição única de crítica à hegemonia vigente e com vistas à criação de uma nova hegemonia. Este parece ser apenas um tipo de intelectual orgânico, mas existe na perspectiva gramsciana, contudo, o intelectual orgânico do tipo cooptado ou vinculado espontaneamente às classes dominantes, conforme descrito anteriormente. Cabe ressaltar ainda, a existência de intelectuais orgânicos que, apesar de críticos à hegemonia vigente, não visam na sua atuação a ruptura definitiva com ela. (23) – Ver nota número 07 (24) – Neste exemplo, cabe tanto o sentido marxista de alienação relativo ao produto conseguido através do seu próprio trabalho ou a ele próprio, quanto o sentido mais comum de ignorar a realidade. (25) - A palavra ‘somente’, está posta por causa da aparente perspectiva do texto de Gaya, que a considera uma redução, quando compreendida como sendo também EF. No presente estudo, a filosofia neste estudo é entendida como a síntese da totalidade, como a capacidade de compreensão e intervenção do homem no real concreto. (26) - Grifo meu (27) – “Feuerbach resolve o mundo religioso na essência humana. Mas a essência humana não é abstrato residindo no indivíduo único. Em sua efetividade é o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não entra na crítica dessa essência efetiva, é por isso forçado: 1) A abstrair o curso histórico e fixar o ânimo religioso como para-si, pressupondo um indivíduo humano, abstrato e isolado. 2) Por isso a essência só pode ser captada como “gênero”, generalidade intera, muda, que liga muitos indivíduos de modo natural.” (Marx, 1987, p. 52). (28) – Grifo meu. (29) - Pode-se citar como exemplo disto, o filósofo Olavo de Carvalho, quando escreve para centenas de milhares de leitores, que a intelectualidade marxista é culpada pela rebelião nos presídios paulistas, pois “... os acontecimentos sangrentos da semana passada foram o efeito lógico e inevitável de uma ação coerente contínua e pertinaz, empreendida pela intelectualidade ativista na intenção de fomentar a revolta e transformar o Brasil primeiro numa Colômbia, depois numa Cuba.” (2001, p. 07). 4.2 – Referências Bibliográficas: AZEVEDO, Ângela Celeste Barreto de. 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Cabe ressaltar, conforme anteriormente, que também foram entrevistados Hugo Rodolfo Lovisolo e Lamartine Pereira DaCosta mas, em virtude do tempo definido para entrega deste estudo, não foram citados e, portanto, não estão disponibilizados. Suas entrevistas, no entanto, servirão para aprofundamento das questões abordadas, em épocas posteriores, bem como seus artigos datados de 1995 e 1996, respectivamente, e de Walter Bracht (1995), Paulo Guiraldelli Júnior (1995), Gabriel Pallafox (1996), assim como o livro de Mauri de Carvalho (1997), todos relativos ao mesmo debate. 4.3.1 - Anexo 02: Entrevistas realizadas com Gaya, Taffarel e Santin, respectivamente. - Entrevista com Adroaldo César Araújo Gaya. Gramado/2000 (André Malina) – Entrevista com o Professor Adroaldo Gaya, perguntando primeiramente a sua identificação: nome, onde trabalha ... (Adroaldo Gaya) – Bem, meu nome é Adroaldo César Araújo Gaya e trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e sou professor de educação física. Lá, foi onde eu fiz meu curso de licenciatura, aonde eu fiz o mestrado em educação e, é lá onde eu vivo, desde 1970. (André Malina) – Me diga uma coisa, como é que foi a tua trajetória? Você pegou, fez a graduação, mestrado e o doutorado, posteriormente, foi fora, não é isso? (Adroaldo Gaya) – Eu fiz a minha licenciatura 70-73, e, naquela época, o meu grande núcleo de interesse - que não deixou depois de ser também - era o treinamento desportivo. O sonho era ser preparador físico, e eu tive professores que me deram assim, muito carinho, me deram muitas indicações, e mais ou menos minha trajetória foi nesse ponto, no treinamento desportivo. Me formei em 73, dei aula em escolas públicas, depois dei aula um ano na cidade de Cruz Alta. Já na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fui fazer o mestrado em educação, no programa em educação. Bom, esse mestrado, de certa forma me levou a uma outra dimensão que foi sobre questões filosóficas, questões históricas, enfim, numa área mais das ciências humanas. A primeira reação nesse estágio, foi uma negação de um passado mais tecnológico, como diriam: tecnicista, biologicista, não sei o quê. Então eu fiquei um pouco negando aquilo que eu tinha feito anteriormente. Posteriormente, comecei a perceber que esta dicotomia é artificial e eu estava mais sendo ideologicamente levado às questões de negar o esporte, de negar o rendimento, de negar a competição, de negar o treinamento, toda uma questão ideológica, do que propriamente uma questão de convencimento próprio. Bom, aí surgiu, nessa época, no Brasil, o Professor Manuel Sérgio, que estava aqui, com a tese da “Motricidade Humana” e por questões de contingência, desde Recife, foi um Encontro em Recife do CBCE, nós começamos a entrar em polêmica. (isso mais ou menos em que ano?) Foi em Recife, acho que foi nos anos ... 86, ou no início dos anos 90, não, não, foi por volta de 86/87/88. Tive um Congresso no Rio de Janeiro, que foi o primeiro Congresso de Língua Portuguesa, aonde tive francamente um debate com um professor muito forte, professor Manuel Sérgio, e aí então, nesse momento, fui convidado pelo professor Jorge Bento e pelo professor Antônio Marques, Antônio Porto, a fazer o doutorado em Portugal. Eu fui pra Portugal, e, chegando lá, a minha tese era basicamente em cima da educação física, a questão da multidisciplinaridade, essas coisas todas, e lá eu fui mais ou menos convencido, foi também uma questão casual: estávamos discutindo, eu, o professor Jorge Bento e o professor Marques, estávamos tomando um vinho, brincando assim, e aí ele falou das ciências do desporto, e eu disse: “olha, a ciência do desporto não existe, isso aí é invenção”. Aí então, o Jorge Bento naquela época me convenceu a fazer uma tese pra demonstrar que ciência é essa. Bom, aí eu fiz a minha tese de doutorado que foi analisando a produção científica no Brasil e em Portugal no âmbito das práticas desportivas, esportes. Essa tese foi fundamental na minha vida. Porque? Porque ela me mostrou que havia, no meu ponto de vista evidentemente, um distanciamento enorme, enorme, entre o que a Academia produz e a prática do professor, do treinador, seja na escola, no clube, na academia, na piscina, na pista. Volto de lá com a idéia de reorganizar a minha vida no Brasil, depois de quatro anos fora, com um grupo de pesquisa e ia, num primeiro momento, passar a fazer uma radiografia do real, pra em cima desse real então, propor algumas idéias de ordem pedagógica ou de ordem do treino, enfim. Construímos um grupo de pesquisa, já fazem basicamente sete anos, vamos festejar este ano, de um grupo de alunos, bolsistas, enfim. Nós começamos a fazer um convênio com a prefeitura de Porto Alegre, e o nosso primeiro trabalho foi uma análise sobre o estilo de vida, hábitos de vida, motivação, crescimento e desenvolvimento, aspectos nutricionais, aptidão física, foi feito um perfil das crianças da Rede Municipal de Porto Alegre, que vai dar, isso, num livro que, possivelmente, será publicado, cujo objetivo era ter indicadores da realidade, e sobre ela então propor discussões, propor aspectos pedagógicos de intervenção. Nesse meio tempo, entrou na nossa história da Universidade o Centro INDESP, o Centro desportivo, que era mais voltado pros esportes de rendimento, enfim. E aí, eu parei pra discutir sobre isso, e me colocou uma posição bastante interessante, porque diferentemente da discussão usual no Brasil, eu não distingo esporte de rendimento, esporte escolar, esporte de deficiente, (perspectiva de esporte educacional, esporte de rendimento, etc.) eu entendo que a prática de esportes pode ter várias motivações pra fazer. Eu posso jogar um tênis contigo, você estar jogando pra me ganhar, pra competir, e eu estou jogando pra manter a saúde ou simplesmente pra tomar uma cervejinha depois do jogo. Eu acho que o esporte tem esses vários sentidos. Eu posso dar a ele um sentido educacional, um sentido de saúde, um sentido de rendimento, um sentido estético, enfim. Mas há algo no esporte, no meu ponto de vista, que é sua natureza intrínseca que perpassa as suas várias dimensões, e entre elas, por exemplo, o rendimento desportivo, a competição, são inerentes a ela. Eu acho que nós no Brasil deturpamos muito a palavra rendimento. Bom, a partir daí então, entrou a parte de esportes, nós participamos de três Jogos da Juventude, onde avaliamos atletas e tal e coisa, então nós já estamos tendo assim uma preocupação de dois níveis: primeiro, uma preocupação com a EF na escola e, tudo que nós fizemos, está muito precário; e uma outra preocupação nossa também, que é com crianças e jovens que fazem esporte de rendimento. Isto talvez seja minha trajetória nesse meio tempo, e eu passei de 90 a 94 em Portugal fazendo doutorado. (André Malina) - Nessa sua trajetória, quais foram os autores, os teóricos que te marcaram, te influenciaram mais nesses pontos que você demarcou, quer dizer, quando você iniciou com o treinamento desportivo, depois quando você foi pro mestrado de educação, depois quando você foi pro Porto, e quando você voltou, que foi a época que você escreveu o artigo? (Adroaldo Gaya) – Tem uma pessoa que marcou a minha vida na EF muito profundamente, desde o treinamento desportivo até as questões mais filosóficas hoje, que foi o Lamartine. O Lamartine Pereira DaCosta é uma pessoa que - aquele livro Ciência do Treinamento Desportivo, que foi publicado nos anos 70, né? Foi à base dos estudos naquela época – depois o Lamartine passa por uma fase voltada para o Esporte Para Todos, enfim, é uma pessoa que marcou muito minha vida. (o Lamartine ou o Tubino?) O Lamartine. O Tubino também, porque no treinamento desportivo nós jamais podemos nos esquecer a importância do professor Tubino, e eu faço um parênteses pra dizer que não só a importância do Tubino como professor e cientista, mas também com o seu papel de administrador que foi muito importante para a História do Brasil no meu ponto de vista, embora possa haver algumas divergências de ordem ideológica, política, mas eu reconheço que a EF deve muito ao Tubino também, ao seu caminho. Fechando o parênteses, posteriormente eu acho também que nós entramos naquela fase política, aonde a literatura de comunistas franceses que fazem aquela crítica radical ao esporte, ali também foi muito importante, e depois eu volto a ter uma retomada, uma mudança na minha vida, que foi o doutorado. Foi ali que eu achei que deveria superar – desculpe a má palavra – alguns ranços ideológicos pra tentar buscar algo mais ligado a realidade, o concreto, olhar com os olhos, se possível, dentro das possibilidades – não digo neutro porque isso não faz sentido -, mas, sem tomar uma posição a priori e forçar essa posição naquilo que eu ver. Digamos assim, mais isento talvez, mais isento, e isso foi o que me deu assim uma linda alegria, que hoje eu estou trabalhando muito, eu estou vendo um grupo maravilhoso trabalhar comigo, e isso tem em levado grandes alegrias por um lado, e algumas tristezas no sentido que ainda percebo, desculpe a minha, a minha arrogância talvez, não é essa a minha idéia, mas é uma questão de muita honestidade contigo, em dizer que eu acho que infelizmente a EF brasileira ainda está muito mais voltada pra disputas ideológicas do que propriamente para a construção de um conhecimento. Esse artigo que iniciou o debate, ele nunca teve a pretensão de se constituir naquilo que ele foi. É curioso isso. Aquilo foi uma aula inaugural. Eu estava em Portugal e vim ao Brasil, e, como ia começar o ano letivo, o então Diretor me convidou para que eu desse uma aula inaugural, já que eu estava voltando ao Brasil, e aquele texto foi nesse sentido, de uma aula inaugural, e depois na revista foi publicado e deu toda aquela série de debates, que foi muito importante, muito interessante, mas também eu entendo que, no meu ponto de vista, muitas incompreensões de alguns críticos, principalmente da Celi e da Micheli, em que eu percebi que a questão do artigo em si não foi trabalhada, em prol de outros ataques que eram devido ao texto em si mesmo. Eu acho que isso muito bem o artigo do Lovisolo depois retoma essa questão. (André Malina) – Você acha que foi devido ao que? Devido à questão ideológica? Você falou em ranço ideológico na EF. Você está se referindo a chamada esquerda da EF marxista, ou à direita da EF? (Adroaldo Gaya) – Eu não vou dizer que é à esquerda porque também me considero uma pessoa de esquerda. Portanto, eu acho que esse grupo que nós estamos falando, emboras sem citar, se acha mais esquerda do que os outros. Mais simplesmente é o grupo da Celi Taffarel, o grupo do Mauri, da própria Micheli, embora seja muito heterogêneo. Eu tenho uma admiração muito grande pela Celi Taffarel. Nós fomos colegas no CBCE num certo tempo, o próprio Lino é uma pessoa muito inteligente, a Carminha, mas há diferenças. Por que eu digo isso? Porque naquele texto da Celi e da Micheli fica evidenciado isso, principalmente nos parágrafos finais, com aquele texto infeliz, que fere as pessoas que estão estudando fora do país. Está trocando ouro por espelhos, não sei o que. O que mostra claramente que era uma advertência de um grupo, dizendo olha aqui, você está indo por um caminho perigoso. Como assim fosse uma declaração dizendo que eu estivesse excluído da tal esquerda brasileira. Então isso mostra o que? Que havia exatamente uma preocupação em atacar alguém que tinha se ligado a uma outra vertente de pensamento, e que, portanto poderia trazer prejuízo ao pensamento hegemônico que esse grupo sempre tendeu a impor ao Brasil, e eu acho legítimo, só me dei o direito de discordar. Então, o artigo tinha essa idéia de entender, de classificar a EF, dar um conceito pra ela. Aí veio aquelas ofensas todas, de simplista, de não sei o que, aquelas coisas, os adjetivos muito comuns nos nossos encontros de EF, que não levam a nada, não fazem o conhecimento avançar, mas a gente tem que conviver com isso também. Então esse trabalho tinha essa idéia. Eu queria demonstrar, e talvez não tenha sido muito feliz nisso, que a EF não pode ser cerceada à condição de ciência, e que no meu ponto de vista a EF é educação, e eu não vejo como a educação possa ser feita sem iniciar por princípios axiológicos, de valores. Quem educa, educa sobre valores, sejam eles éticos, estéticos, políticos, mas são valores, e evidentemente os valores não são uma área de estudo da ciência, são da filosofia. Portanto, se eu quiser enfiar a EF na ciência, certamente eu estou tirando muito da sua relevância, da sua identidade. Por outro lado também, é evidente que a ciência é fundamental, quando aplicada a nossa realidade, não se pode negar isso. Mas, enquanto for só ciência, não é EF. Enquanto for só filosofia, não é EF. Agora, quando a filosofia e a ciência se exteriorizam no ato pedagógico auxiliam a educação. Então a EF pra mim não é filosofia, não é ciência, é pedagogia. Foi esse sentido que eu quis dar no texto. (André Malina) – A filosofia então, pelo que eu entendi, está mais voltada para o campo das idéias, enquanto que a intervenção seria mais pedagógica, foi mais ou menos isto? (Adroaldo Gaya) – É, é. No meu ponto de vista, a filosofia trata do mundo como ele deveria ser, já a ciência trata do mundo como ele normalmente é, evidentemente minimizando essa questão de verdade absoluta. Então eu acho que a ciência aplicada a EF é algo mais concreto, empírico. É mais empírico, trata dos fenômenos como eles se manifestam de algum modo. Já a filosofia é mais reflexiva, é mais da base dos valores do pensamento, dos princípios. Eu acho que isso é importante. Como a educação parte dos princípios, de valores, evidentemente nós temos que ter a filosofia como um dos pilares da nossa formação, como também a ciência. Mas, veja agora, a EF é o ato pedagógico de ensinar. É ali quando eu passo meus valores através das técnicas, enfim, a EF é esse ato pedagógico. Por isso é que eu discordava do Manuel Sérgio quando ele queria propor a motricidade humana como sendo a EF, porque reduz a EF a algo que no meu ponto de vista não a caracteriza como deveria. (André Malina) – Esse ato pedagógico, pelo que eu entendi é a aula (é aula, é aula), deve ser – pelo que eu entendi do que você falou daquele patrulhamento ideológico, policiamento ideológico que você se referiu - mais liberta, deve ser menos ideologizada? (Adroaldo Gaya) – Eu acho, sinceramente, e eu agradeço a oportunidade de estar falando, desculpe eu já ter feito isso, mas eu quero deixar registrado o meu agradecimento e a honra de estar sendo entrevistado sobre este tema. Bom, o que eu acho na realidade é que a EF nas escolas não é permeada por isso. Os professores que estão nas escolas não estão sendo permeados por este discurso. (esse discurso não chega?) Até chega, mas chega aos ouvidos dos professores, mas não é inserido na sua prática. Possivelmente, eu estou fazendo uma pesquisa com meus professores, e eu estou fazendo isto com uma doutoranda minha, o discurso é mais ou menos este, agora, a prática é totalmente desvinculada desse discurso. Uma prática tradicional, ou uma prática que se diz revolucionária, mas que não muda muito, então, eu percebo que, lá na minha escola as coisas acontecem um pouco diferente do que os nossos intelectuais pretendem que fosse. Eu posso dizer isso porque estou a quatro anos investigando dentro da Escola, escolas carentes, vendo lá dentro da Escola, professores, etc. (André Malina) – Do ponto de vista filosófico, que você caracterizou como dever ser, a EF deveria ser assim, ou talvez devesse ser mais – como você falou, se os professores de EF tivessem melhor essa articulação realizada na sua prática – ela deveria ser filosoficamente dessa forma, mais revolucionária, mais ideologizada, ou mais distante, como você colocou anteriormente? (Adroaldo Gaya) – Eu entendo de duas formas: talvez a primeira eu diria, como já disse anteriormente, que o discurso da Academia é uma prática teórica, e há uma prática prática, que é a prática do professor da escola. Essa prática pedagógica está distanciada do saber científico da Academia. Eu acho que há um saber teórico e um saber prático. Este saber prático não é investigado. Nós conhecemos um colega nosso, um grande professor de EF, esse professor se aposenta, morre, e a pedagogia dele foi junto com ele, sem nunca ter explicitado isso. O que a Academia faz está muito longe da prática. Ora, a ideologia é inerente a cada um de nós, suas opções. Então, essa EF vai ser ideologizada na medida que o profissional ou evidentemente nós, que temos um conceito mais de fraternidade, mais de solidariedade, um conceito trabalhado nesse sentido, não tem como negar. Agora, pode ser que do meu lado tenha alguém liberal total, que tenha princípios diferentes dos meus. Eu acho que isso não tem como existir, a EF ideologizada, porque é a idéia hegemônica de alguma corrente. O que eu acho é que a Academia tenta se impor, com uma certa ideologia, oriunda de outras áreas, você sabe muito bem da onde, mas isso não chega até lá na Escola, no meu ponto de vista. Os professores continuam tentando fazer das tripas coração pra conseguir dar a sua aula, enfim. Deixa eu te dizer mais uma coisinha: desculpe, eu acho que estou falando demais. (não, não, por gentileza, quanto mais você se estender, melhor) (André Malina) – O artigo transmitiu tudo o que você queria, ou você acha que ele não foi bem esclarecido em algum ponto que você queria esclarecer agora? (Adroaldo Gaya) – Eu acho que talvez ele poderia ter tido um cuidado mais, mais detalhado nas coisas, porque ele não tinha a pretensão de criar um debate tão grande como ele criou, mas o que eu sinto mais, é que foi visto através de uma ótica que não era a ótica intrínseca. O meu negócio era discutir EF, o que é EF, e não discutir se eu sou simplista, alienado ou não. O artigo das minhas colegas Taffarel e Micheli foi exatamente para o ataque pessoal, claramente para o ataque pessoal, tanto que eu tinha a resposta para os artigos, e não o fiz exatamente porque a resposta também teria que ser a nível do pessoal, e eu entendi que isso não iria colaborar em nada com aquele debate, então eu resolvi me retirar do debate, e depois, para minha felicidade, o Lovisolo, o Lamartine, o Pallafox, o Santin, o Walter Bracht, que é uma pessoa que eu admiro muito o Walter Bracht, tenho um respeito acadêmico por ele imenso. Então as pessoas se manifestaram e aí enriqueceu, mas o problema central do debate foi desviado. Eu acho que o professor Lovisolo foi muito feliz, não por ter saído em minha defesa, mas foi muito feliz em colocar esta questão. (André Malina) – Desfocando um pouquinho o artigo, qual a sua conceituação de intelectual? O que você compreende como intelectual, Já sabendo que eu trabalho com Mannheim e Gramsci? (Adroaldo Gaya) – Pra mim, o intelectual é aquele que trabalha com o conhecimento, ou seja, é aquele indivíduo que deve, dentro das suas possibilidades, trabalhar com a questão da cultura, com a questão do conhecimento enfim, trazendo de certa forma, alguns pressupostos, sejam eles filosóficos, sejam eles éticos, estéticos, políticos, construindo isso para que possa servir como base para uma aplicação posterior. No meu ponto de vista, aí é interessante, eu entendo que intelectual, por exemplo, ele deveria estar mais ou menos distante das questões ideológicas no sentido partidário, radical, enfim, e sectário. O intelectual tem que ter liberdade de circular o mundo todo e tem que ter liberdade de expressar a sua criatura intelectual, e o que eu acho, você tem todo o direito de não concordar comigo evidentemente, é que no Brasil, os nossos jovens da faculdade de EF, a eles já é atribuído que ideologia eles devem ter. Não há espaço para as outras discussões. É imposta uma certa ideologia como a única, e o mais curioso de tudo meu amigo, é que essas pessoas de uma só ideologia, se dizem dialéticos. (você está se referindo as pessoas que se dizem marxistas) É. Não todas, existem pessoas que são extremamente competentes neste discurso. (você está dizendo que muitos professores universitários são assim) É, é. (André Malina) - Você vê isso do outro lado também? Pessoas que são anti dialéticas e também fazem a mesma coisa? Fazem a mesma coisa que você disse que os sectários fazem, só que do outro lado? Ou você acha que mudou alguma coisa em relação a quando você começou até a sua chegada à Movimento. (Adroaldo Gaya) – Essa pergunta é muito interessante, e eu não havia, não tinha tido tempo pra pensar sobre ela, muito interessante. Eu não sei se vou conseguir te responder, mas o que parece é que essa carga ideológica da chamada esquerda brasileira, ela foi tão forte, foi tão radical – e eu digo isso porque eu fazia parte desse mesmo movimento – foi tão raivosa, que ela conseguiu afastar aqueles que tinham uma perspectiva diferente. O CBCE se esfacelou como CBCE. O CBCE hoje infelizmente não passa de um grupo de professores de EF. De ciências do desporto ainda tem muito pouco. Era um colégio brasileiro de ciências do desporto que dá conta do esporte. Eu acho que talvez os dogmáticos da outra linha resolveram, perderam seus espaços e foram encaminhar, foram para outros lados. É por aí, eu acho que é muito pesado, muito articulado este grupo e não passou um tempo ainda na História pra recuperar, eu acho, do mal que nós fizemos, embora em grandes aspectos muito positivos existem também nessa época. Eu vejo por exemplo – já mudou muito isso -, eu trabalho muito com a produção científica, eu tive analisando a produção científica, e você observa, mesmo no último CBCE, os Anais do CBCE, você observa que ainda continua aquele discurso. Um saco. Não faz avançar, mas as pessoas continuam dizendo, enfim. O que me preocupa também é a produção do conhecimento, que é feita muito longe do real concreto. Em outras palavras, eu vi uma palestra hoje de manhã, de alguém que faz crítica ao esporte, de alguém que faz crítica ao joggin, e alguém que nunca teve alegria de fazer um gol, uma cesta, ou fazer um joggin mesmo. Então, esses são alguns dos intelectuais importantes da nossa área. (André Malina) - Sobre a relação do artigo com a sua tese. Eu tive o prazer de ler a sua tese, até porque o artigo é uma questão trabalhada em poucas páginas, e eu queria ver melhor a sua idéia, e li a sua tese, espero que eu tenha compreendido ela. (Adroaldo Gaya) – A minha tese tem que ser recortada no espaço do esporte, ou seja, a minha tese não é sobre EF. Por que? Porque a EF pra mim é mais do que esporte em certos aspectos, e menos em outros aspectos. A EF é mais do que o esporte na medida que ela tem objetivo de formação, ela é uma disciplina pedagógica, que vai usar o esporte como um dos seus meios de educar, valores, atitudes, condutas. Bom, o esporte por outro lado, ele é uma prática cultural, um elemento da cultura corporal, e tem a sua vida própria, que independe da EF. Todavia, esse esporte, eu entendo que foi analisado na minha tese de doutorado, ou seja, as ciências desse esporte, não era EF, era ciência do esporte, e nesse sentido, eu acabo a tese, e estou convicto disso até hoje, de que as ciências do esporte não existem epistemologicamente, não se justifica como tal, nem ela nem a motricidade humana, nem movimento humano como ciência, e também cito dizendo – e talvez isso tenha sido importante na minha vida – que foi demonstrado que a produção científica não dizia muita coisa em relação ao cotidiano da prática desportiva, do dia a dia. Eu costumo dizer o seguinte: nas ciências do esporte, como na EF, as perguntas que são feitas nas pesquisas, são perguntas advindas das áreas das ciências mães, biologia, sociologia, história, psicologia, então se respondem às questões das ciências mães, e não se responde às questões que são intrínsecas da realidade da EF, do esporte. Então, eu acho que aí segue esse caminho. Porque é interessante que esse artigo da Movimento foi depois da tese, foi quando eu volto a falar de EF num sentido mais amplo, entendida como uma questão mais pedagógica, e não em relação ao esporte. Então, o esporte para mim poderia ter uma ciência talvez, o treinamento desportivo ou coisa assim, mas eu acho que o esporte também tem a sua vida cultural, que pode viver muito bem sem a EF. (André Malina) – Você então coloca as ciências do desporto como sendo uma coisa e a EF outra coisa, ou a ciência do esporte contém a EF ou a EF contém a ciência do esporte. Como é que se situa isso? (Adroaldo Gaya) – Eu acho que um não contém o outro, eu acho que são coisas independentes, mas com muitos pontos de interface entre elas. Por exemplo: a EF se vale do esporte, se vale dos jogos. Então a EF, nessa perspectiva, abrange o esporte, porque dá ao esporte todo um fundamento pedagógico pra educação de crianças, jovens e adultos. O esporte pode não ter essa preocupação, pode ser no campo do lazer, do rendimento. O esporte profissional, por exemplo, não está nem um pouco preocupado. Então, nessa perspectiva ele tem uma característica que lhe é própria, e que neste sentido ele não tem nada a ver com a EF, até porque ele é anterior a EF. Então é nessa perspectiva que eu não vejo um abrangendo o outro. São fenômenos diferentes embora interligados. (André Malina) – Então, o esporte é caracteristicamente uma ciência. Ele contém um corpo de conhecimento próprio, na tua opinião ele tem um corpo de conhecimento com essas características, que pode ser uma ciência. (Adroaldo Gaya) – Isso, é por aí. O esporte não é uma ciência. Ele é um elemento da cultura. Eu posso jogar futebol, basquete, vôlei, etc., sem saber nada das biomecânicas, das fisiologias, da psicologia do esporte. Quer dizer: eu jogo, um atleta de fim de semana, um atleta de recreação, um atleta de rendimento, ele joga, então, a cultura esportiva é isso. Evidentemente que sobre esse esporte, sobre esse fenômeno, eu posso construir conhecimentos científicos, o estudo científico do esporte. Só que o estudo científico do esporte, e as práticas do desporto dentro do esporte, não são uma ciência. Eu posso estudar o esporte no viés biológico, antropológico, sociológico, enfim. Então, é nessa perspectiva que eu entendo que o esporte não é uma ciência. Talvez, forçando muito a barra – e eu publiquei num artigo isso, em Portugal - entender como ciência do esporte, aquele tipo de conhecimento ligado a parte técnica, do treinamento desportivo, da periodização do treino, enfim esse tipo de coisa. Talvez aí se possa criar uma ciência, mas fora disso o esporte não é uma ciência. O esporte pode ser estudado pela antropologia, pode ser estudado pela fisiologia, então ele não é uma ciência, o que não impede de termos enfoques científicos sobre ele. (na EF isso seria muito complicado, não é?) Sem dúvida que sim, embora possa – desculpe se eu estou falando demais. (não, de jeito nenhum, de jeito nenhum. Tem bastante fita aqui) É que eu estou abusando da sua paciência aqui, mas é que eu achei interessante isso, uma das coisas que me chama mais atenção na EF, nos cursos de EF, e nos mestrados e doutorados no Brasil, de que se faça o que não é EF. Se faz biomecânica de calçados, se faz fisiologia, se faz antropologia, se faz coisas assim que são muito mais de interesse da área de origem do que da EF. Na minha Universidade, os programas de doutorado e de mestrado, se observarmos às áreas temáticas, nós vamos encontrar um ou dois professores cuja preocupação é a Escola. Os outros estão preocupados com as questões da antropologia, com outras questões, enfim. Interessante isso, porque é importante nós sabermos que o professor de EF, os intelectuais, estão criando um fosso entre EF enquanto prática na Escola, o esporte enquanto prática no clube, numa intelectualidade que, a meu ver, foge muito da sua exigência. Portanto, seria importante recuperar as pesquisas – eu desafio muito os meus alunos a fazerem isso -, estudar a EF escolar, estudar a EF na academia, nos clubes o esporte, eu desafio a estudar a EF. A parte pedagógica, por exemplo, é importante desenvolver pedagogias, desenvolver análises eminentemente ligadas a EF, e eu vejo que cada vez mais nós nos afastamos disso. (André Malina) – Você acha então que nos afastamos, pelo que eu compreendi da sua análise, de duas formas: uma ideologizando demais e outra fisiologizando demais, ou antropologizando demais, e pouco da própria EF, de uma coisa que emerge da própria EF. (Adroaldo Gaya) – Exatamente, exatamente. Eu não sei se poderia ser tão radical assim, mas eu diria que talvez nós queríamos uma EF virtual, que está longe da real. É só ver esse Congresso, os discursos dos simpósios, que não é a EF que se faz na Escola. (André Malina) – Dentro do seu artigo e da própria tese, você fala diversas vezes em práxis, usa essa palavra. A que práxis exatamente você se refere. (Adroaldo Gaya) – É um conceito talvez não muito bem aplicado. Quando eu falava em práxis, a minha intenção era sugerir uma prática respaldada a partir de um conhecimento teórico. Seria essa relação. Aquele professor do dia a dia na Escola, também ele produzindo conhecimento, e trabalhando a partir de um conhecimento, enfim, a práxis era essa íntima relação entre a teoria e o fazer. (mas ela não tinha a questão, digamos assim, do aprofundamento teórico do que é a práxis mesmo, por exemplo: a práxis grega) Não. Não tinha. Até porque a práxis grega não seria bem isso. A palavra não tinha, talvez, até irresponsavelmente da minha parte, foi colocada de uma forma pouco embasada filosoficamente. (André Malina) – Você também fala no seu artigo, e também fala na sua tese, que a EF caracteristicamente deveria intervir no mundo concreto. (sim) Deveria haver uma intervenção no mundo concreto. Essa intervenção no mundo concreto, que se pode chamar a categoria atividade, marxista, que também passa por aí, você quis dar essa conotação marxista? (Adroaldo Gaya) – Isso. Sem dúvida. Eu quis, mas havia uma intenção, talvez, uma intenção muito mais implícita no artigo, uma intenção lá no fundo, talvez, que me moveu, e eu estou sendo muito sincero com você, eu estou abrindo meu coração e mais outras coisas (muito obrigado), e que eu acho importante alguém estudar isso, é que havia uma intenção no fundo de mostrar, que aqueles que se dizem tão marxistas, não eram tão marxistas assim, não é? E aí a necessidade de se dizer talvez algumas palavras tipo práxis, tipo intervenção social. Me parece que eu queria dizer isso: que os nossos dialéticos eram muito pouco dialéticos. (na verdade era uma crítica aos marxistas da EF, teóricos marxistas da EF, você achava que eles eram pouco dialéticos) Sim, é isso. (André Malina) – Uma outra questão, que eu já lhe perguntei, você fala que a filosofia é mais no campo das idéias, e que a pedagogia interfere mais na prática. (Adroaldo Gaya) - isso de ser mais no campo das idéias não quer dizer que seja metafísica. Ela não trata de resolver problemas empíricos, ela trata de resolver problemas de fundo, de princípios, e é essa sua grande relevância. Eu adoro filosofia. Ficou claro isso, não é? Eu quero deixar bem claro essa idéia, de que essa divisão não significa juízos de quem é melhor ou quem é pior. Nós não podemos viver sem filosofia. (André Malina) – Não é isso, é porque, por exemplo, eu que sou marxista, eu trabalho com uma filosofia eminentemente prática. Ela não é especulativa. Ela é de intervenção no mundo concreto como você fala. Você não tem uma filosofia dissociada da prática, você filosofa em cima disso, com ideologia. (eu concordo plenamente contigo, mas a prática no sentido de fazer realmente, de fazer algo no dia a dia) É. É a alteração do cotidiano. Então, quando você faz a crítica no artigo, a Celi Taffarel e a Micheli Escobar, e outros também, você acha que eles se sentiram atingidos nessa questão? Por que você fez a crítica, e depois eles te devolveram. Ou você diz que a sua crítica foi acadêmica e a delas foi pessoal. Como é que você viu isso? (Adroaldo Gaya) – Não, não foi nestes termos isso. Eu diria assim: em primeiro lugar, que a minha crítica talvez foi o que me moveu a escrever o artigo. Me parece que o artigo não passa claramente isso. Não tenho muita clareza disso, mas, eu tinha intenção de dizer essas coisas, mas acho que no artigo não está muito explícito isso. Sem dúvida a resposta da Celi e da Micheli foram muito mais veementes e muito mais pessoais do que a questão que o artigo abordava. Então, houve ali uma clara evidência de que, digamos assim, perdemos um aliado da esquerda brasileira. Mais um que foi pra Europa e voltou liberal ou coisa assim. Isso é o que está explícito ali. Isso me chateou muito, pessoalmente me chateou muito, pois o debate não era pra ser esse, o debate era pra buscar uma síntese, e aí pegaram frases, linhas do texto, e fizeram com as frases o que bem entenderam. (André Malina) – Você saiu realmente dessa chamada esquerda da qual você freqüentava naquele momento? Você sentiu que saiu daquilo? (Adroaldo Gaya) – Eu costumava, até em muitas conversas que eu tinha com o professor Go Tani, ele começou a brincar dizendo que eu fui expulso da esquerda, que eu fui expulso da esquerda e que à direita não me queria. Então eu estava em cima do muro, não é? Vamos deixar bem claro isso: as posições de esquerda são fundamentais. O que eu estou chamando de esquerda, talvez, é esse grupo que se diz tanto, se diz à esquerda, e usa isso como uma categorização, característica. Eu não me sinto menos à esquerda que nenhum deles. Até temos o mesmo partido, temos as mesmas causas muitas vezes, mas, é o trato da EF que eu vejo que nós nos diferenciamos muito. Eu visitei um amigo de Santa Catarina, que é o Kunz, meu amigo de muito tempo, e nós temos posições bastante diversas em relação ao esporte por exemplo, a prática esportiva, o esporte na escola, o esporte da escola, temos grandes diferenças. Agora, nós temos grandes semelhanças também. Então, o que eu diria assim, é que eu acho que eu posso discordar do discurso do Kunz, mas isso não nos impede de termos uma relação fraterna, cordial, e de seguirmos o nosso caminho. Já com esse grupo, ou você pauta pelos princípios ou você está fora, está fora, e isso eu não vou admitir, pra mim, tá? Se tiver que ficar fora, eu fico fora, muito bem. Então eu acho que se aparelhou muito a EF, se aparelhou muito o CBCE, se aparelhou muito as revistas do CBCE e se aparelhou muito os nossos Congressos, e com isso perdemos todos. Um aluno que queira discutir uma questão simples, de como se trabalha uma técnica de corridas de salto, num congresso é ridicularizado como alguém alienado. Então esse tipo de coisa, eu realmente não participo mais, e eu acho que todos nós temos o direito de fazer a opção de estudar aquilo que mais nos agrada. (André Malina) – O que você achou das intervenções das outras pessoas nos artigos posteriores ao seu? (Adroaldo Gaya) – Eu entendi, por exemplo, que as pessoas, com exceção talvez do Lamartine e do Santin, e também do Walter, vamos dizer assim. O Lovisolo tomou partido no debate, claramente, não é?Eu interpreto, embora como crítica eu considero legítima ao meu trabalho,, ele tomou uma posição de defesa, sobre a questão de como foi feita a resposta das colegas. (você acha que ele tomou partido em relação a você?) É, ele tomou partido a meu favor, digamos assim. O Lamartine foi um dos últimos debatedores, fez uma síntese. Eu acho que foi bastante produtivo. O Walter Bracht ficou meio tentando, vou fazer uma figura – o Walter se me ouvir aqui, vai ficar chateado – vamos recuperar esse cara pra esquerda. Ele ficou tentando mediar a questão. O Pallafox foi claramente contra o Lovisolo, atacando o Lovisolo, que tinha atacado a Celi, que tinha me atacado, então, quer dizer, ali já tinha um outro discurso, que era o discurso de espaço, e o meu objetivo não era discutir espaço, era discutir EF. Isso me honrou muito, sabe? Foram oito ou nove artigos, não sei. (teve o Guiraldelli ainda) Teve o Paulo, eu gostei muito do artigo do Paulo. O Paulo se posicionou me chamando de pragmático, não é? E o Paulo me fez pensar muito realmente, com a advertência que me fez o Paulo, me chamou atenção para isso, e eu acho que o Paulo tinha razão. Uma pena que foi muito curto o texto dele, podia ter se alongado mais, podia ter aprendido muito mais com o Paulo. (No Silvino Santin, que você tinha começado a falar, e depois modificou) O Santin foi prejudicado na revista – isso é bom que fique registrado – porque o Santin seria do primeiro número da revista, e se eu não me engano, foi no segundo. (saiu no segundo número) Era pra ser no primeiro. Então o Santin foi publicado no segundo número, quando era pra ser no primeiro. Então, ele tinha perdido o debate, porque o primeiro número era eu a Celi e ele, a primeira revista, e era pra levantar a posição. Como não saiu no primeiro, ele foi pro segundo, daí o Santin perdeu a possibilidade de interferir naquele debate inicial. O Santin foi muito prejudicado nesse debate, embora ele também tenha ficado num jogo, falando da lingüística, da pergunta, do porquê, se estava certo perguntar por quê, o que é EF. (como o Bracht também fez, que disse que a discussão realmente não houve, não é?) É, exatamente isso. E eu acho que a discussão realmente não houve, pelo menos na profundidade que eu gostaria que fosse. Eu acho que descambou mais pra esse lado, dos grupos ficarem se digladiando, do que propriamente o avanço da questão da Escola, embora o texto do Lovisolo seja interessante, as questões de como pensar à EF, eu acho que ele faz com muita propriedade algumas posições, embora a gente possa discordar. O Lamartine fez uma crítica interessante também, e eu acho que disso tudo ficou uma evidência, que nós não sabemos ainda discutir temas de uma forma menos guerreira, menos bélica. Acho que nós discutimos as posições e não as idéias. (você acha que a discussão não foi, digamos assim, muito acadêmica, quer dizer, foi mais pessoal do que acadêmica, a discussão toda?) É, eu penso sim. Eu penso. Não sei. É muito subjetividade. Se eu pegar o texto do Lovisolo, ele foi mais pessoal, o texto do Pallafox foi mais pessoal, o texto do Walter e o do Santin foram mais, digamos assim, intrínsecos, de como foram escritos os artigos, tal e coisa. Acho que a questão da EF mesmo, ela ficou devendo. (André Malina) – Você acha que houve uma preocupação das pessoas em delimitar um espaço próprio delas, ou seja, fazer emergir o que elas pensam da EF e fazer vencer o que elas pensam da EF? Você acha que houve isso? (Adroaldo Gaya) – Sem dúvida. Sem dúvida nenhuma que sim. No meu ponto de vista sim. (tem algum artigo que você gostaria de destacar com essa ênfase?) O texto da Celi, e do Pallafox. Esses dois, principalmente. Quem não pensa como eu é alienado, simplista, e outros adjetivos que eles gostam muito de usar. Eu fui acusado de simplista, de não dialético, de ter pegado autores que não são importantes, que são autores de ponta em alguns trabalhos, por que? Simplista é um adjetivo que não acrescenta nada. Então, eu acho que houve realmente uma perspectiva desse ponto, da Celi e do Pallafox também, que foi importante, porque enriqueceu o debate, mas ele foi muito mais de demonstrar que quem não pensa como eu é simplista, é alienado, virou índio, trocou ouro por espelho, enfim, essas coisas desse tipo. É bom que eu te diga, até – eu estou meio constrangido do tanto que eu estou falando aqui – (por favor, pelo contrário, quanto mais tempo você puder falar, melhor fica elaborada a entrevista e maior a contribuição que você tem a me dar, em relação a minha dissertação) Inclusive, houve um acontecimento lamentável, que foi na Universidade de Coimbra, aonde houve, no Congresso de língua portuguesa, houve uma manifestação de dois portugueses, ofendidos contra o artigo da Celi e da Micheli, por chamar os portugueses de colonizadores, e que estavam trocando ouro por espelhos. E também, eu me senti muito desqualificado, quando dizem que homens briosos, não sei o que, foram para o exterior e trocaram ouro por espelho. Quer dizer, embora eu seja neto de índio –aliás, tenho muita honra disso – eu não troquei ouro por espelho, e eu acho que isso foi uma ofensa pessoal que desqualificou o debate, e eu acho que tinha mais coisas implícitas aí, onde entrava o meu orientador junto, porque naquela época eu estava discutindo muito com o Manuel Sérgio, quer dizer, tinha toda uma questão por trás. (quem era o seu orientador?) O Jorge Olímpio Bento, que naquela época tinha feito algumas críticas ao CBCE, tendo dito inclusive numa carta pessoal, que ele mandou, dizendo que o CBCE era o colégio brasileiro contra o esporte, bom, o Bento tinha, tem algumas discussões fortes com o Manuel Sérgio, que de certa forma foi o grande guru desse grupo de esquerda, e tudo isso foi espetado naquele momento, simplista, alienado, trocou ouro por espelho, português colonizador, enfim. (André Malina) – Em seguida a isso, foi publicado em 97 um livro ainda sobre esse debate. Um livro que foi feito pelo Mauri, e eu não sei se você teve oportunidade de ler, se você leu, ele fala diretamente de você. O que você acha, como é que você se manifesta em relação ao que foi escrito? (Adroaldo Gaya) – Eu entendo também, nós fomos durante muito tempo grandes companheiros, eu e o Mauri, mas o Mauri tem umas posições por demais sectárias, por demais radicais, também não deixa espaço para quem pensa diferente. Então, não faz mais sentido ter este tipo de discussões para marcar posição. Então, eu acho que o Mauri tem muita preparação na EF, mas eu acho que não dá mais, muito, para levar a sério um debate com o Mauri, na medida que ele não permite debate. Ele é o todo poderoso dono da verdade, e se não for como ele quer, ele dá um jeito de ser como ele quer. Eu acho também que o Mauri exacerba muitas críticas a outros colegas nossos, e que isso não vem a colaborar com a EF. Eu acho que dentro da EF nós temos que discutir fraternalmente, pelo seu bem. Eu acho que nós vamos ficando velhos e a gente vai ficando sensível com essas coisas. Então eu te digo sinceramente: eu não tenho mais muita paciência com este tipo de debate não. Este tipo de debate assim, onde não tem chance de chegar a uma coisa nova. Eu não vou debater contigo aqui, nós vamos ficar quatro horas debatendo, para eu sair daqui igual a como eu cheguei. Eu acho que, se nós vamos debater, nós temos que chegar daqui, e sairmos diferentes depois do debate, eu sair pensando nas coisas que você me disse, ter essa humildade, ver o outro como adversário, numa competição, mas onde ambos vamos fazer o caminho juntos, sínteses. Então, se o debate não me permite sínteses, eu acho que não tem porque ter debate. (você acha que no livro dele, não houve essa possibilidade, quer dizer, de avançar mais, responder aquele livro e depois avançar mais? Não havia essa necessidade?) Eu não tenho essa pretensão, talvez, de prejulgar. Eu acho que não houve grandes avanços, até porque o Mauri quando cria os seus desafetos, ele também usa muito isso nos seus textos. Então, eu acho que infelizmente a gente podia ter avançado mais, embora eu ache que avançou bastante. O meu lamento é que se discutiu menos EF, e mais questões de posicionamento pessoal e de grupos. (André Malina) – Com relação à hoje, trazendo para atualmente, qual a sua atual concepção de EF? (Adroaldo Gaya) – Acho que mudou muito pouco. Eu continuo usando àquele conceito, que a EF é uma disciplina normativa, de valores, atitudes, habilidades e condutas, e que através dos elementos da cultura corporal, o jogo, o esporte, a dança, as lutas, tem essa responsabilidade da formação de crianças, jovens e adultos. Eu acho que a EF, estou convicto que a EF é isso. Ela é uma pedagogia, ela é uma disciplina de formação, e por isso que eu fico as vezes indignado com a questão de tanta gente querer fazer dela uma ciência, o que vai tirar muito da sua principal característica, que é a pedagogia. Então a EF pra mim – e aí eu concordo muito com o Walter Bracht, o conceito que ele usa sobre EF escolar, como local de EF relamente – Mal eu penso também que a EF – se me permite avançar um pouco mais – (claro, por favor) na realidade, ela precisa assumir mais os compromissos da sua especificidade, que é a educação da cultura corporal, e cultura corporal não é falar do esporte, dizer quem é que é campeão olímpico, saber quantos esportes, as regras dos esportes. Cultura corporal no meu modo de ver, é que as pessoas façam tenham condições de acesso a todos os esportes. Jogar o seu voleizinho, o seu basquetezinho, dançar, fazer o seu joggin, enfim, e a Escola tem essa formação, para que a pessoa possa ter essa cultura corporal, e isso, no meu ponto de vista, é muito mal trabalhado. Um segundo aspecto também, eu entendo que a EF precisa voltar também para as preocupações também com a saúde. E isso também, o próprio artigo publicado pelo Guina, Marcelo Guina (Marcelo Guina Ferreira) numa revista Movimento, criticando os trabalhos do Dartagnan Pinto Guedes, no meu ponto de vista, o Guina está desfocado do assunto. Há aí uma proposição técnica do nosso amigo Dartagnan Pinto Guedes, no sentido de propor uma política de ação através da EF, e que é descontextualizada no debate com o Guina, e a EF nega isso. Fizemos uma pesquisa nos últimos quatro anos com crianças e jovens da Rede Municipal de Ensino, em Porto Alegre e cidades arredores, e tinham escolas que não permitiam que nós entrássemos, porque nós íamos fazer avaliações da aptidão física e da saúde, e diziam que isso era voltar ao século XIX, que nós éramos higienistas, que nós éramos fascistas. Então, eu acho que a EF precisava retomar essas preocupações com a questão do corpo, e eu acho que está muito longe ainda disso. (André Malina) – A sua concepção de mundo, quer dizer, eu parto do princípio que a concepção de mundo é inerente aos seus atos, quer dizer, você carrega essa concepção de mundo para você fazer algo. Consciente ou não, você carrega essa concepção de mundo, e ela determina suas atitudes, profissionais, enfim. Ela é a mesma de antes, ela mudou em alguma coisa, e em que ela mudou? (Adroaldo Gaya) – Eu acho que ela é a mesma de antes. Eu quero um mundo solidário. Eu quero um mundo aonde o outro seja seu parceiro no dia a dia, um mundo solidário, um mundo até sem desagregações, principalmente de ordem sócio-econômica no nosso país. Eu quero um mundo democrático. Eu quero um mundo aonde o cidadão seja respeitado, um mundo construído com a participação coletiva. O que mudou talvez, foi que hoje eu levo essa luta por um caminho diferente de anteriormente. Eu entendo que durante muito tempo fiz discursos muito veementes de exclusão do outro. Parece assim – vou fazer uma figuração – que nós queríamos eliminar o inimigo, em vez de convencê-lo a participar. Só que, ao tentar convencê-lo, eu corro o risco de ser convencido também. E hoje talvez eu me sinta mais livre para incorporar as diferentes idéias, sem que isso me agrida fundamente. Agora, os meus princípios, continuam sendo os mesmos. (princípios éticos) Princípios éticos. Não é possível – vamos citar um exemplo claro – Nossa pesquisa que foi feita com crianças da periferia de Porto Alegre, mostra que 92% das crianças da Rede de Ensino, de 07 a 14 anos, não têm oportunidade de praticar atividade esportiva orientada. O esporte hoje em dia, nós sabemos, já é um meio de ação, não é pra todos. Noventa e poucos por cento estão excluídos. Então vamos dar o esporte pras crianças também. O esporte como a arte, como dança, o teatro, como as artes plásticas, que as crianças não estão tendo oportunidade de fazer. Então eu acho que é isso que nós temos que trabalhar: oportunizar aqueles que não têm acesso, a esse acesso. Contribuir nosso trabalho para o bem social, para o bem dos outros, e não para o nosso estrelismo, para o nosso bem estar intelectual, ou mesmo acadêmico. Então eu acho que a nossa vida é muito difícil, exatamente porque nós vivemos num país onde as diferenças sociais são imensas, são imensas. O problema da corrupção nos deixa completamente, às vezes, sem esperança, mas eu tenho esperança que nós teremos que dar um jeito nessa caminhada. O mundo assim como está, com tantos excluídos, com tanta injustiça, não é possível que a gente não possa dar um jeito. (André Malina) – Me diga uma coisa: houve uma tentativa, o marxismo, é uma tentativa de você reverter esse quadro de exclusão, que num determinado momento, pelo que você falou, você estava imbuído desse espírito, de transformação por essa via. Você hoje pensa diferente, ou já pensava diferente. (Adroaldo Gaya) – Foi boa essa pergunta, vamos retomar alguma coisa. Absolutamente, eu não nego essa visão, essa teoria marxista de intervenção social. Não é isso, muito pelo contrário. O que eu acho é que às vezes ela nos é passada, ou é reproduzida de uma forma maniqueísta, ou seja, eu uso aquilo para impor as minhas vontades e não simplesmente para uma prática dialética, para fazer algo concreto. Eu entendo a teoria marxista como uma teoria fundamental em termos de humanidade, em termos de sociedade, e dela a gente não pode querer sair, porque na realidade nós não somos marxistas ou deixamos de ser porque está na moda, nós somos porque os valores que nós temos levam a nos aproximar daquele ponto de vista, e isso eu mantenho claramente. Evidentemente eu mantenho essa perspectiva. A busca do socialismo para mim é uma luta presente, adequada, e que temos que continuar fazendo. Então a diferença é que eu não sei do marxismo. Eu talvez use algum instrumento de forma mais intuitiva, de uma forma mais intuitiva. (digamos assim, o que te orienta mais não é uma distinção, no marxismo, entre teoria e prática, é uma coisa mais idealizada, de uma coisa que eu quero alcançar, do que propriamente na sua prática, porque ele prevê práxis revolucionária, prevê essas coisas todas, de você pegar e realmente superar o adversário) Eu particularmente acho que alguns elementos da teoria marxista não se aplicam mais na atualidade. Acho que essas opções, da revolução, essas coisas assim, eu acho que esses valores – talvez um exemplo seria esse – quem seriam hoje os donos dos meios de produção? Os fazendeiros estão pobres, só os banqueiros é que estão bem na vida, e eles não têm meios de produção, o meio de produção é o dinheiro. (André Malina) – Então eu estou perguntando ao professor Adroaldo Gaya – acabou a fita - se naquele momento em que ele escreveu o artigo, que ele retornou do doutorado, se houve essa mudança em relação aos pontos que foram elucidados anteriormente, da teoria marxista. (Adroaldo Gaya) – Num sentido sim. Eu vou contar uma historinha rápida: é que quando eu cheguei em Portugal, eu estava também imbuído desses valores do grupo, de impor uma visão marxista, de esquerda, enfim. E, o que me faz viver – eu tenho até uma história curiosa, eu tinha um professor de filosofia, que era meu co-orientador, um dia ele telefonou para minha casa, e disse que teria na semana seguinte que viajar pra França, Paris, e que eu iria dar aula para ele na faculdade de filosofia, no curso de letras, eu iria dar aula para ele sobre filosofia. Ele ia precisar de mim, e tal e coisa, e me deu o tema da aula, que seria As Semelhanças do Pensamento entre Comte e Marx. Eu achei que aquilo não tem como, mas eu tive que estudar então, buscar semelhanças entre ambos. A questão do socialismo na ciência, enfim várias questões. Chegando no dia da minha aula, o professor me telefonou e falou que não ia viajar mais, que tinha cancelado o compromisso dele e que ele iria dar aula. Depois eu fiquei sabendo que isso simplesmente tinha sido uma estratégia, para eu ter que ler o Comte com mais cuidado, e realmente a partir daí eu tenho uma mudança importante, onde eu entendo que as idéias que eu coloque numa tese, num texto ou num artigo, têm mais importância do que os rótulos pra vender uma idéia. Eu costumo dizer isso: hoje num congresso na Europa, se você disser que é marxista, você toma uma vaia. Antigamente você era aplaudido, ovacionado. Agora, você pode passar todas às suas idéias marxistas, e todos possivelmente concordem, porque são idéias maravilhosas. Então, me parece assim, que essa necessidade de mostrar carteirinha é que eu acho que mudou. Eu não mostro mais no meu texto, eu não tenho a necessidade de citar quatro vezes Marx, ou cinco vezes Gramsci, sem nenhum tom pejorativo, se tiver que tocar, tem que tocar, claro, mas eu noto que às vezes a gente tinha, digamos assim, a necessidade de dar uma pincelada numa frase pra dizer que eu sou do PT, ou que eu sou disso ou daquilo. Eu acho que não precisa. Eu sou do PT, continuo no PT, fazendo militância política, mas isso não precisa estar implícito nos meus artigos, porque muitas vezes os meus princípios podem convencer alguém menos preparado intelectualmente em toda filosofia. Agora se eu disser, botar isto de cara: eu marxista, esse cara nem vai ler meu artigo mais, devido até aos preconceitos que possa ter sobre isso. Eu acho que isso mudou. É jogar as idéias que eu tenho, que vem do fundo, as idéias da corrente marxista, jogar as idéias sem os rótulos, sem o slogan, passa mais, enfim, do que essa posição, do que o contrário. Eu acho que isso mudou. (André Malina) – Existia lá na Europa, quando você estava lá fazendo o doutorado, e isso se deu um pouco depois da queda do muro, isso desorientou um pouco as pessoas. Como era isso lá na Europa, e em Portugal especificamente. (Adroaldo Gaya) – É interessante. Em Portugal, tinha duas posições. O próprio PC meio que se partiu lá, porque havia os mais tradicionais, que diziam que era um absurdo cair o muro, e que a História iria mostrar que isso estava certo, e outros que realmente ficaram desorientados, surgiram partidos novos. Mas, por outro lado, o Partido Comunista Português, principalmente no sul de Portugal, ele tem uma força histórica muito grande. Não vai ser qualquer coisa que vai modificar o poder político que eles tem, principalmente no sul de Portugal, no Alentejo, uma região maravilhosa, que eles é que dominam há muito tempo. Então, isso não mudou muito nesse sentido. Agora, os intelectuais ficaram meio aturdidos. Muitos tentaram, eu acho que foi um equívoco, tentaram se redimir das culpas, julgaram que erraram, erramos, estamos todos errados, e eu acho que é um equívoco, porque nós não estávamos errados, porque nossas idéias, as idéias que o marxismo nos passa são idéias de um mundo que todos nós queremos ter. Eu não posso também confundir lá uma prática, que a gente sabe hoje que foi uma prática absolutista, a gente viu coisas que a televisão nos mostrava nesse período lá, que são coisas que aconteciam no mundo soviético, a própria Alemanha Oriental, que o meu orientador, o Jorge Bento estudou, na Alemanha Oriental, que o dia a dia derrubou, mas sempre que se coloca uma idéia em prática, algumas coisas são deturpadas. Então eu acho que, mais do que nunca, hoje, eu acho que o marxismo se impõe, como um paradigma de pensamento que poderá trazer o progresso da humanidade, a felicidade da humanidade. (André Malina) – Você na tese utiliza como pilares teóricos, o Japiassú e o Pedro Demo, são eles às suas principais fontes? (Adroaldo Gaya) – Foi muito boa a sua pergunta. Eu, naquela época e continuo tendo, era uma fascinação. O Pedro Demo fez muito à minha cabeça. Interessante que eu não o conheço pessoalmente, mas até hoje eu ando com um livrinho dele na mão, sempre, que é um livrinho. (Metodologia das Ciências Sociais) É, mas eu tenho também um livrinho dele que é só sobre números, só quantitativo, é um livro, A Geografia da miséria, uma coisa assim, aonde o Pedro Demo trabalha só com dados quantitativos. Eu levo sempre, porque muitas vezes a gente houve a crítica mais quantitativa a partir do Pedro Demo. Muitos fazem isso. O Pedro Demo tem um texto mais recente, onde ele é só quantitativo, aonde ele mesmo diz no texto, essa é uma análise quantitativa, etc, etc. O Pedro Demo sem dúvida nenhuma foi muito importante. O Japiassú teve uma importância fundamental na minha vida, foi durante o mestrado. Talvez toda a minha abordagem epistemológica - eu tanto gosto de estudar epistemologia – tenha sido de um livrinho – livrinho não, desculpa, livrinho carinhosamente falando – um livrinho do Japiassú, que eu tive uma dificuldade de entender naquela época, lia várias vezes, que era. (O Mito da Neutralidade Científica) Não, antes desse. (era um livro que fala de epistemologia genética, de Popper) Isso, isso, é esse livro, é muito importante. E também foi muito importante na minha paixão pela epistemologia, o famoso debate entre Popper, Kuhn, Lakatos, etc. E aí o Lamartine tem uma importância. Eu queria fazer justiça em relação a uma pessoa que na minha vida foi fundamental, fundamental, que é o Alfredo Faria Júnior. Devo a ele muito, muito mesmo, do pouco que eu consegui fazer, o Alfredo foi uma pessoa, um intelectual, de muito debate, muita luta junto, de muito apoio moral e pessoal. Inclusive eu devo a minha ida ao Porto ao próprio Alfredo Faria Júnior. Mas, o Lamartine também, na área da epistemologia, foi uma pessoa que sempre me ensinou muito. A gente sempre que se encontra debate muito, ele está sempre te desafiando a fazer alguma coisa nova. O Hugo Lovisolo, que é uma pessoa mais recente, a gente tem traçado algumas conversas. O professor Vítor Marinho tem uma importância crucial, naquele livro, O que é EF, tem uma importância crucial, depois nós tivemos um debate muito forte, num congresso que teve, e eu até já tive a oportunidade de me desculpar, tendo em vista que eu acho que foi um mau entendido, e que talvez eu tenha passado um pouco dos limites também. Já pedi até desculpas a ele naquele mesmo momento. Mas é uma pessoa importante, porque eu acho que essa discussão do que é EF parte dele. Será jogo? Será desporto? Será ginástica? Ele deve ter lido, no meu texto eu falo isso. Agora eu estou me lembrando de pessoas que foram importantes, o João Paulo Medina, a Celi Taffarel, o próprio Lino, a gente convivia bastante nesse período. (em termos teórico-filosóficos, essas pessoas que foram citadas, o Popper, o Piaget) Tinha, tinha o lado epistemológico do Piaget. Eu vou te dirigir um pouco, você vai ter que me agüentar agora um pouco. (claro, por favor) Eu acho que no Brasil não se deu muita ênfase aos estudos do Piaget enquanto epistemólogo e muito como psicólogo, e eu acho que a aplicação da teoria de Piaget no Brasil peca exatamente por isso: a falta da leitura do Piaget enquanto epistemólogo. Em Portugal tem dois volumes grandes do Piaget sobre a questão do conhecimento, a epistemologia da física, enfim. Então, se discute muito pouco o Piaget epistemólogo e mais o Piaget psicólogo. O Popper também, neste sentido, eu li toda a obra do Popper, ou grande parte dela, o Thomas Kuhn no sentido do relativismo histórico que ele propõe, que eu acho que é o maior avanço da ciência moderna. Acho que ele viabilizou essa possibilidade do relativismo histórico que ele coloca, embora ele não quisesse ser relativista, ele mesmo diz que não é relativista. Mas ele propõe o relativismo histórico através dos paradigmas. Acho que foi a primeira grande rachadura na ciência positivista. (André Malina) – Na sua tese, que acabou desembocando no artigo, você optou por alguns autores que, digamos assim, te iluminaram mais? Quem foram as pessoas que te iluminaram mais? (Adroaldo Gaya) – Eu vou lhe dizer uma coisa: eu costumo dizer para os meus alunos de pós-graduação, é interessante: naquela época, eu lia o Popper, o Khun, o Lakatos. Eu tinha crises, eu costumo dizer crises, porque eu lia um e concordava com aquele, achava maravilhoso, aí quando eu lia o outro, eu concordava também, e este era contra o outro. Então, eu ficava naquela insensatez, e aí teve um rapaz que fez uma observação muito importante sobre esses filósofos, o Adalberto, ele me ajudou muito, sabe? O professor Jorge Bento, meu orientador também. Então, me ajudaram muito nessa questão. Mas, eu te confesso que na tese, teve um momento que eu tomei a decisão sem estar convencido. O tempo urgia e eu tomei uma decisão basicamente, assim, abstrata: bom, não dá pra ficar mais nessa dúvida existencial, eu tenho que assumir alguém aqui pra seguir esse caminho. Aí eu peguei mais um lado khuniano, um lado que entra Morin, também (Edgar Morin), sem estar muito claro como entrou, meio a fórceps. (retomando a entrevista, porque passou o professor Jorge Bento, que foi orientador do entrevistado) Então, foi interessante. Eu tomei essa decisão, mas hoje, curiosamente, eu estou dando um seminário de pós-graduação no doutorado, também sobre a filosofia da ciência, e estamos discutindo o Popper, o Thomas Kuhn. Mas, hoje em dia, tem um autor que me tranqüiliza muito, e eu fui também pessoa de paixões, de grandes paixões, digamos assim, paixões pelo Marx, paixões pelo Foucault, paixões pelo Morin, e não me arrependo disso, isso dá, de uma certa forma, porque isso dá condições da gente mergulhar nessas idéias. Mas o autor hoje que me comove bastante, digamos assim, que me dá um equilíbrio, é o Henry Atlan, que é um biólogo, mas também entra para a axiologia do judaísmo, e que defende um relativismo fraco, que ele chama, ou seja, o conhecimento não é a realidade, o conhecimento é um modelo do real, e esse modelo do real depende das circunstâncias, do momento histórico, aonde eu estou colocado, e também, eu gosto muito desse autor, na medida que ele não absolutiza o conhecimento científico único, o conhecimento verdadeiro. Seguindo Wittgenstein, por exemplo, ele segue a ordem dos jogos de linguagem. A ciência é uma forma de ver o mundo, como tem a forma teológica de ver o mundo, como tem a forma filosófica de ver o mundo e como têm a forma do senso comum de ver o mundo, todos eles com conhecimentos válidos. (seriam várias realidades, o que você está se referindo?) Seriam formas de ver a realidade (olhares sobre a realidade) E o que eu acho interessante, e que eu concordo também, ele dizia o seguinte: nós temos formas diferentes de ver o mundo, todas elas com as suas razões. Aonde não há razão, é em juntar elas em um só único olhar. Por que? Porque são jogos diferentes com linguagens diferentes. (ele acha muito complicado fazer uma síntese da totalidade) O conhecimento único, como queria fazer o positivismo com a ciência, isso não tem. Tem que ter o conhecimento do senso comum, o conhecimento da filosofia, porque nenhum deles esgota a realidade plena. Eu acho isso interessante. Então, eu como gosto de trabalhar com a ciência, isso não me impede também de ter uma visão mais ideológica, uma visão mais teológica. Eu acho que isso fica bem evidente de que eu posso ver o mundo de várias formas, e o que certamente é preciso fazer, é quando estamos conversando entre nós, saber se nós temos uma mesma ótica. Eu acho interessante essa posição, e o Henry Atlan tem trazido boas idéias a esse respeito. (o Henry Atlan tem muitos livros publicados?) Tem. Tem dois livros principais. Um deles, que praticamente está na minha cabeceira, é Com Razão ou sem Ela, que eu já li várias vezes. Tem também o primeiro livro dele, que é O Cristal e a Fumaça. Todos eles em edições portuguesas, eu não vi no Brasil. Tem outro, se chama Sim, Não, Talvez, que é uma análise sobre a educação, onde ele pega o talvez como solução adequada para avançar. (o relativismo) E tem o livro dele que é sobre a biologia, sobre a bioética, sobre o Projeto Genoma, uma avaliação ética que ele faz, muito interessante também. Ele começou junto com o Morin, inclusive o Morin cita num livro que começou junto com ele, e é um autor muito interessante, e ele coloca uma perspectiva relativista, no sentido epistemológico. (André Malina) – O senhor conhece bem os conceitos de Mannheim e de Gramsci? (Conheço, conheço sim) você acha que o seu pensamento se enquadra em algumas das duas teorias, ou em nenhuma das duas? (Adroaldo Gaya) – Eu acho que estou mais pra Mannheim do que pra Gramsci. Ele é um autor que também me chamou muito a atenção numa determinada época. Ele é um autor que a gente estudou numa certa época, e que me dava uma certa base, porque eu sou uma pessoa – não sei se é assim com as outras pessoas – que tenho dificuldade de ficar pendurado numa coisa. Parece que tem que ter uma base para que eu faça as coisas avançarem, e normalmente a sua base passa por diversos autores. Foi, por exemplo, o Foucault numa época, como foi também numa época o Marx, a teoria marxista, agora eu estou em Henry Atlan. Eu acho que isso são posições que eu assumo e que, certamente, são muito carentes, até pela falta, digamos assim, de cacoete filosófico para poder entender essas teorias com profundidade tal como elas são, tal como elas são expressas pelos seus autores. Eu tenho muito medo que as minhas interpretações fujam um pouco daquilo que os autores queiram dizer, na ânsia de aplicar isso no meu conhecimento. (André Malina) – Na sua tese, você utiliza-se de autores complexos, você se utiliza do Habermas, de outros autores, enfim, mas você na aplicação deles, de análise, do trato da análise empírica, você utiliza, no meu modo de ver, talvez pouco, ou talvez fique mais implícito, talvez fique mais no campo das idéias do que na aplicação da teoria. Isso foi uma opção, ou o que? (Adroaldo Gaya) – Não, isso foi por falta de capacidade, competência, sem dúvida. Habermas é uma coisa muito complexa (a teoria comunicativa) É muito, mas muito difícil e, talvez, eu concordo com sua crítica, eu acho que ela é bem feita. Eu acho que a tese tem duas partes: uma parte que fala e outra parte em que eu fui pra campo, e que talvez esteja um pouco desvinculada. O trabalho prático é mais empiricista, é mais empírico, no sentido de contar as produções científicas para verificar e discutir. Realmente, foi muito bem visto de sua parte, que as coisas não fluem tão diretamente como deveriam fluir. Mas eu te digo com tranqüilidade, eu acho até que por falta de competência, e também por uma mania triste de querer ser intelectualista, mostrar que lê as coisas. Eu acho que isso passa muito por nós. Tinha a preocupação de fazer uma revisão de literatura também, a preocupação de dizer que leu os principais autores, eu acho que passa muito por isso. Sinceramente. À questão psicológica, talvez por vaidade pessoal, não sei, mas você me fez ver isso com muita clareza agora também, ver com muita clareza. A tese tem dois enfoques: o teórico não se enquadra muito com o trabalho de campo. Eu te agradeço por isso. (muito obrigado. Mas, se você tivesse que voltar a fazer a tese, a fazer o artigo, você o faria de forma diferente, você hoje faria de forma diferente, ou você acha que aquilo lá foi satisfatório?) Não, não. Na época, foi o que eu podia ter feito. A minha perspectiva e a minha condição que podia, e foram quatro anos só fazendo isso. Eu não tinha crédito, eu fui dedicado a este trabalho. Hoje eu estou fazendo através de uma orientanda minha de doutorado, a análise da produção científica e do saber pedagógico do professor, ela está juntando as duas coisas, e eu acho que agora nós temos que fazer diferente, nós temos que tomar uma posição teórica mais consistente. Não adianta você por fragmentos de vários autores e perder a consistência na análise. É como eu te disse: na minha tese, naquele momento, eu acho que o fundamento teórico não serviu de fundamento pra fazer a análise. Isso tem que ser corrigido. Nós estamos revendo, através da minha orientanda também, os principais conceitos, porque ali tem também a questão da negação, a questão do pósmodernismo, que hoje já entra com muita força, do pragmatismo. Então, nós temos que ver, num primeiro momento, aonde vai estar essa base de análise, que eu tenho clareza hoje. Agora estão saindo alguns livros maravilhosos também sobre a ciência, sobre a teoria da ciência, em Portugal, sobre a questão pós-moderna que eu acho que a gente tem que ter cuidado pra analisar esse tipo de produção. Eu acho que antes de qualquer coisa tem que ter uma base teórica que te fundamente, e eu acho que hoje eu estou em crise, vamos dizer, crise intelectual, eu estou meio pendurado, sem saber aonde botar os pés, mas isso faz parte do processo, eu já estou acostumado a ter essas crises. Eu gosto delas, porque em seguida dá um avanço, mas dá uma angústia grande também, mas acho que é bom isso também. Eu sou muito feliz na minha vida por viver com preocupações desse tipo, preocupações intelectuais, do conhecimento, trabalhar com estudantes, trabalhar com alunos de pósgraduação, com professores, eu acho fascinante isso. (André Malina) – Pra encerrar eu tenho duas questões aqui, são perguntas objetivas: primeiramente, se em relação a essa entrevista que foi feita, se há alguma restrição à utilização dessa entrevista para fins da dissertação, da publicação em livro. (Absolutamente. Eu estou aqui para lhe servir no que for preciso servir, até te peço desculpas mais uma vez porque eu falei muitas coisas que não teriam muito a ver com os seus objetivos, mas foi um momento muito feliz para mim também, me fez repensar várias coisas, perceber algumas críticas que tu me fizeste com muita propriedade e eu não tenho nenhuma restrição para se usar. Eu também me coloco a disposição para em algum outro momento que queira falar comigo. Eu estou à sua disposição) Encerrando, eu gostaria de agradecer a você, principalmente pela extrema sinceridade com que foi feita a sua entrevista. Você se colocou de uma forma bastante aberta, e isso é uma dificuldade muitas vezes, porque as pessoas numa entrevista, quando você sabe que vai ser utilizado, há uma dificuldade em você se expor da forma como você se expôs, que eu acho que foi de uma clareza muito grande, e elucidou todos os pontos em que eu tinha dúvida para minha dissertação, e gostaria então, novamente, de agradecer a você pela entrevista que foi feita, nós estamos aqui na tarde, no Congresso de História, em Gramado, no dia 30 de maio, nós estamos no Hotel Serrano (bancando o burguês aqui), burgueses, e gostaria de saber se você tem alguma coisa a mais para falar, algo que você queira, alguma passagem, porque tudo isso que está aqui vai ser transferido pra dissertação. (Adroaldo Gaya) – Duas coisas: primeiro eu queria te dizer que eu me sinto extremamente honrado em ter participado deste trabalho, e também dizer da importância desse trabalho, e daí a necessidade de nós também colaborarmos no sentido mais profundo que a gente possa, e tu sabes como é que é alguém fazer uma dissertação, então é nesse sentido de colaboração que eu participei, e evidentemente, repetindo, com muita honra, me sinto muito honrado de ter tido esta oportunidade de conversar contigo, e me coloco a disposição para qualquer esclarecimento que precisar, enfim, estou a sua disposição. Espero que tenha muito sucesso, e que nos possa retribuir tudo isso com o seu trabalho, nos fazendo as críticas que devem ser feitas, para que a gente possa também avançar, e que a EF possa avançar, que o conhecimento possa avançar, e que todos nós possamos alcançar outros níveis, enfim. É isso, obrigado. (muito obrigado a você) - Entrevista com Celi Nelza Zulke Taffarel. Juiz de Fora/2000. (André Malina) – Estamos aqui em Juiz de Fora, próximo a Universidade Federal (UFJF), na qual a professora Celi Taffarel veio dar uma palestra, e eu estou aproveitando para entrevistá-la sobre a questão epistemológica debatida na revista Movimento, junto com o professor Adroaldo Gaya. São 19:02h, hoje é sábado e nós estamos no dia 12/11, se não me engano. Eu vou iniciar pedindo que a professora Celi se identifique, fale sobre a formação dela. (Taffarel) – Quero começar dizendo que acho extremamente importante o teu trabalho. Sou Celi Taffarel. Eu nasci no Rio Grande do Sul, sou filha de colonos, estudei na UFRGS, em Porto Alegre, estudei na Universidade Federal de Pernambuco, estudei na UNICAMP, estudei na Alemanha, fiz graduação, especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado, e agora estou completando 24 anos de exercício profissional. São 24 anos dedicados à educação física, ao desenvolvimento teórico da educação física no Brasil, nesse momento, fazendo a partir da Universidade Federal da Bahia, mas ainda com relações com Pernambuco, com a Federal de Pernambuco, aonde completo, no próximo ano, a formação de 25 mestres. Esses 25 mestres foram e são formados não só por Pernambuco, mas em programas de pós-graduação em serviço social, e orientando alunos da Federal da Paraíba, enfim, configurando um quadro de formação de 25 mestres, depois de 5 anos de formação do doutorado. (André Malina) – Professora, a senhora fez a graduação em educação física, o mestrado em educação física também, e doutorado em educação, e o pós-doutorado foi em educação também ou em educação física? (Taffarel) – A minha formação acadêmica, eu preciso mencionar, eu fiz a licenciatura em educação física, mas eu também estudei filosofia, mas eu não fiz o curso regular, não peguei diploma. Eu fiz disciplinas que me interessavam, porque entendia que a filosofia é um aporte fundamental para nossa área, assim como busquei o doutorado em educação, já em decorrência de uma compreensão do desenvolvimento teórico da nossa área e da essência do que é a educação física, e por entender que todo programa de pós-graduação no país, os que eram estruturados na área da educação física, não apresentavam o currículo favorável as minhas intenções de estudo, e eu reconheci que seria no campo da educação aonde eu poderia ter os melhores aportes pra fazer os estudos, especialmente no campo da formação profissional da educação física, no campo da epistemologia, no campo da metodologia, na prática pedagógica. Essa é a minha formação. (André Malina) – A senhora já tinha terminado o doutorado quando do início do debate da revista Movimento? (Taffarel) – Só para responder a anterior, lá na Alemanha, eu fiz os meus estudos de pós doutoramento no Instituto de Ciências do Esporte. Portanto, fui trabalhar com meus ilustres colegas, professor doutor Dieckert e o professor doutor Hildebrant Stramer, a quem eu devo mencionar como colegas íntegros, colegas que sempre respeitaram as minhas posições teóricas e que me impulsionaram muito e me facilitaram muito nas condições objetivas, os estudos. Quando nós entramos no debate sobre “Mas, Afinal, O Que é Educação Física?”, eu e Micheli (Escobar) escrevemos esse texto, foi depois que eu já havia concluído o doutorado. Eu concluí o meu doutorado em 1993, voltei para Pernambuco, reassumi minhas atividades acadêmicas, e nesse ínterim, nós respondemos a uma solicitação do editor chefe, Ricardo se não me falhar a memória. Ele fez um contato, perguntando se eu aceitaria escrever para um encarte especial, no primeiro número da revista, fazendo um debate com o Adroaldo Gaya, a respeito da questão: mas, afinal, o que é educação física? Eu devo continuar falando? Você vai dirigir? Vai ter que fazer perguntas? Veja só, eu vou recuperar na história o que eu considero que são os elementos centrais. Esse debate foi encomendado pela editoria de uma revista, fundamentalmente porque ela estava sendo lançada, porque ela tinha uma pretensão que trouxesse as polêmicas centrais da área, e então ela procurou privilegiar nesse primeiro momento um conceito básico: mas, afinal de contas, o que é educação física? Creio que o contato foi feito comigo em função de já ter o editorialista identificado que havia indicadores de divergências nas posições entre Gaya e eu. É importante destacar que o professor doutor Adroaldo Gaya, ele foi uma pessoa que eu tive oportunidade de conhecer principalmente quando da construção do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), quando da administração do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, quando ele compôs comigo a diretoria do CBCE. E, essa composição de diretoria me permitiu, então, reconhecer um valorosíssimo companheiro. Um companheiro crítico, um companheiro que tinha formulações instigantes, um companheiro que me deu muita força, uma pessoa que eu tenho uma referência muito singular na minha vida, porque ele foi um desses homens que me deu força pra encarar muitos desafios que eu tive que encarar na minha vida, entre os quais, ser Presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, que vinha com uma tradição de só ter presidentes homens, que vinha com uma tradição de ter presidentes da área médica, e nós começamos a estabelecer referências de ruptura, e ele constituía justo esse Coletivo que assumiu essa tarefa histórica. Então eu, pela prática demonstrada pelo professor Adroaldo Gaya, me identifiquei muito com ele, porque reconheci nele posições avançadas, posições críticas. Sempre reconheci nele uma pessoa que defendia um projeto histórico socialista, que defendia uma concepção de homem emancipado, que defendia uma perspectiva epistemológica marxista. Eu reconhecia, pelo que eu tenho de elementos nas mãos, pelo conhecimento que eu tenho acerca de sociedade, de concepção de homem, de concepção epistemológica, sempre reconheci o professor Adroaldo Gaya nesse campo. (André Malina) – Mas, professora, você reconhecia nele esse referencial, aquilo que você acreditava que ele fosse, ou que ele acreditava nessas idéias, não é? Mas quando da volta do doutorado - do professor Gaya - você achou que ele se mantinha nessas posições, você achou que ele tinha mudado? O que é que aconteceu? (Taffarel) – Quando eu me aproximei da leitura do texto do professor Adroaldo Gaya por uma solicitação - e aí eu estou me referindo ao texto, e a nossa posição foi em relação ao texto - , nós reconhecemos, e aí é importante mencionar que eu e a professora Micheli, nós temos um trabalho muito integrado, nós temos um trabalho sempre muito de diálogo, e eu dialoguei muito com a professora Micheli, e nós consultamos o editor, para ver se ele concordava que eu e a professora Micheli cumpríssemos essa tarefa de fazermos uma análise do texto do professor Adroaldo Gaya. Eles concordaram, e aí nós escrevemos o texto juntos. A análise do texto nos possibilitou levantar alguns elementos, que apontavam que o professor Adroaldo Gaya, nesse estudo, tinha feito uma opção epistemológica que era contraditória a um dado projeto de sociedade, a uma dada concepção de ser humano, a uma dada concepção epistemológica. Isso nós estranhamos. Isso não dizia daquilo que nós conhecemos do professor Adroaldo Gaya, e isto fica evidente no texto, porque o texto se propõe a discutir – e ele apresenta esses elementos – o conceito de educação física, e ele o faz tomando como referências os conceitos formulados em diferentes países, com diferentes autores, mas o texto é completamente desprovido de uma análise histórica. O texto é completamente desprovido de uma crítica radical à formulação desses conceitos. Portanto, nós identificamos que ali estava perpassando uma abordagem simplista de um problema complexo, e que, do ponto de vista epistemológico, ele deveria ser severamente criticado. E mais: levantamos ali, também naquele texto, a questão de que, se o professor Adroaldo Gaya estava fazendo aquela opção epistemológica, ele o fazia porque isto era orientação de um programa onde ele estava trabalhando. E aí, nós reconhecemos também, que esses programas, eles não priorizam o marxismo, eles não priorizam a orientação marxista. E aí, a crítica foi no sentido de que nós brasileiros, pelas nossas condições objetivas de vida, temos elementos riquíssimos para contestar a forma como se dão as relações na sociedade capitalista e de construir uma opção. Mas para isso, nós não podemos abrir mão da riqueza que nós temos para fazer isso. E essa riqueza que nós temos para fazer isso, essa nossa capacidade, essa nossa possibilidade que nos é legada pela referência marxista. Então, abrir mão da referência marxista para ir trabalhar na Europa, sob orientação dos europeus, especificamente os portugueses, com a abordagem científica, entendeu, que reduzem as nossas possibilidades explicativas de um fenômeno complexo, e que contribui para nos desarmar, é temeroso. Então, eu estou fazendo referência a esse texto, e esse texto deixa passar isto. Não falar nisso seria desonestidade da minha parte, da nossa parte. Nós tínhamos que abordar a questão naquilo que é crucial. O conceito que estava sendo formulado ali é um conceito formulado dentro de uma referência epistemológica que precisa ser questionada, e nós questionamos isto. (André Malina) – Uma das críticas ao trabalho que você e a Micheli elaboraram, foi de que vocês ampliaram a discussão além dos limites do que o texto do Gaya se propunha. Você também achou isso, também verificou isso ou você acha que a crítica foi na justa medida que você gostaria? (Taffarel) – A crítica foi na justa medida que o texto viabilizava para nós naquele momento. Nós tínhamos a responsabilidade de ler o texto e dar um contraponto ao texto. Não o fizemos a partir do zero, a partir de referência nenhuma, nós temos uma referência histórica, que orienta a produção do nosso conhecimento, e partir daí elaboramos. Portanto, ao tecer a crítica ao texto, ela traz conseqüências e rebatimentos sim, ela rebate. Ela rebate na proposição epistemológica, ela rebate em toda uma orientação epistemológica, e, através de uma metáfora a gente procurou explicitar isso, que é a metáfora do final do texto, que é a metáfora de trocar ouro por espelho. No meu ponto de vista, não avançar no ponto de vista epistemológico, na radicalidade de uma possibilidade histórica de produção do conhecimento, que se coloque numa perspectiva crítica, que defenda efetivamente uma perspectiva de alteração das relações sociais de produção, ou seja, que construa uma opção ao capitalismo, que se sustente em cima de uma perspectiva ontológica, ela deve ser questionada, e eu sei que nós, eu pelo menos sinto, eu sinto isto, nós não fomos compreendidas, é um direito que as pessoas tem, de compreender como elas bem entendem aquilo, mas isso não significa que as coisas são aquilo que as pessoas representam só, mas nós entendemos que nós fizemos uma crítica que por ter uma referência epistemológica radical, ela rebateu, rebateu longe. (André Malina) – Essa crítica que eu falei, só citando, foi o professor Lamartine e o professor Hugo Lovisolo, que foram duas pessoas que fizeram esta crítica. Primeiro você teria levado a uma dimensão, que o Gaya não teria essa proposição, segundo que teria usado a teoria marxista para fazer uma crítica pessoal, como se fosse uma crítica pessoal ao Gaya, uma questão de confrontação pessoal. (Taffarel) – Em primeiro lugar, os colegas professores doutores Hugo Lovisolo e professor Lamartine, eles estão fazendo uma análise correta dentro do referencial deles, dentro do referencial deles, porque não são homens que falam de lugar nenhum. São dois homens inteligentes e situados, e têm referências sim, e dentro das referências deles, eles não têm outra coisa a dizer a não ser isto. Acontece que a referência deles não é a única, não é exclusiva, quer dizer, tem outras referências. E aí, é importante que se estabeleça, que se estabeleça nesse nosso diálogo, nessa nossa discussão, entendeu, aquilo que corresponde a verdade. E onde está a verdade? Na minha cabeça? Na cabeça de Lamartine? Não, a verdade está nos fatos, a verdade está nas coisas, está nas coisas em si, que nós temos que ser capazes de abstrair, e que nós temos que ser capazes de elaborar e compreender teoricamente. Então, eu não fiz ataque pessoal nenhum, isso foi uma tentativa de um monte de gente, muitas pessoas quiseram dizer que eu ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya, eu não ataquei pessoalmente Adroaldo Gaya, respeito o meu colega professor Adroaldo Gaya, respeito todo o trabalho que ele fez ao longo da história, respeito a nossa convivência, mas me dou o direito de ter divergências e dizer que o companheiro, na sua trajetória, teve aproximações com referências epistemológicas que o levaram a formulações como aquela que nos coube analisar. E esta formulação que ele elaborou, expressou naquele texto no qual nós nos posicionamos, merece questionamentos, e nós fizemos esses questionamentos, e a ciência, ela evolui porque nós somos capazes de questionar. (André Malina) – Mas, me parece que esse texto, o texto do Adroaldo Gaya, ele converge, de certa forma, com a tese produzida por ele anterior. Me parece ser um posicionamento assumido naquele momento, quase que um texto existencial, quase um texto de libertação entre aspas, como é o termo muito utilizado por quem sai da esquerda, não é? Você achou isso ou não? (Taffarel) – Não, eu não posso, para não ser leviana, fazer colocações do tipo: Adroaldo Gaya saiu da esquerda. Não, seria leviandade da minha parte. O que eu posso dizer é que a base teórica, a fundamentação epistemológica daquele escrito de Adroaldo Gaya, se contradiz com à referência marxista. E ao dizer isto, nós reconhecemos que esta contradição a referência marxista, ela pode perfeitamente estar sendo influenciada por todo um programa desenvolvido por todo um programa, por toda uma orientação, que nós recebemos sim, quando nós decidimos fazer um programa de pós-graduação, e aí, esse texto ele foi produzido dentro de um programa de pós-graduação. Ele representa uma parte de um estudo de doutorado, que se coloca dentro de uma vertente epistemológica. Ou será que nós brasileiros não temos a competência de verificar quais são as vertentes epistemológicas que estão orientando os programas de pós-graduação em Portugal? O que é que tem predominado? O que é que é enfático? O que está sendo trazido para o Brasil, enquanto influência epistemológica? Será que nós brasileiros não temos capacidade de fazer isto? Não podemos criticar isso? Na condição de brasileira, de professora de ensino superior, de quem se propõe a fazer ciência no nosso país, eu quero discutir as bases epistemológicas da produção desse conhecimento. E foi o que nós fizemos. Sem ofensas pessoais, sem atacar o companheiro Adroaldo Gaya, sem nada disso. Isso é uma interpretação de alguém que quer reduzir esse debate a um confronto pessoal, e isto é equivocado. (André Malina) – O professor Santin também se manifestou nesse debate em 1995, um ano após vocês, analisando em cima do texto, dizendo especificamente em cima do texto. Já o professor Bracht procurou dizer que a pergunta estava meio deslocada, primeiro se perguntou o que é, realmente é uma questão ontológica, e ele cita Heiddeger, e que a questão estava mal colocada, que a discussão não era bem isso. Talvez um certo afastamento, não houve um posicionamento claro, não identifiquei um posicionamento claro. O professor Guiraldelli mais ou menos a mesma coisa, enfim, diferentemente do professor Hugo Lovisolo e do professor Lamartine que tinham um posicionamento mais clareado, não é? Mais desvelado. Como é que você viu esse debate posterior? O professor Palafox também se manifestou, fazendo um contraponto ao professor Gaya. Como é que você viu esse debate posterior? Inclusive desembocando num livro, o livro do Mauri de Carvalho, um livro grande com uma metodologia própria dele. Como é que você viu esse debate posterior? (Taffarel) – Em primeiro lugar, esse debate se prolonga por mais dois anos, não é? (só na Movimento foram mais dois anos, depois o Mauri de Carvalho escreveu um livro) Então , é um debate que é sustentado por um longo tempo e demonstra ser um debate significativo, que tem relevância. Se não tivesse relevância, não fosse significativo, às pessoas não estariam debatendo. Ele é relevante, ele é significativo porque é crucial pra nossa área, ele é uma necessidade na nossa área, e não é uma necessidade que vai se esgotar aqui nem agora, e é uma necessidade que sempre se recoloca quando entra um novo graduando no curso, toda vez que um professor se confronta com os problemas que hoje batem na porta da escola, toda vez que um pesquisador tem que reconhecer qual é a problemática significativa que ele tem que estudar, sempre se recoloca esta questão. Então, esse debate, ele contou – e aí não dá para deixar de mencionar – a contribuição de intelectuais da nossa área, de intelectuais que fazem interface com a nossa área e, nesse sentido, ele também demonstra uma relevância, não é? Porque Santin é um filósofo, e tem, além de filósofos, sociólogos, nós temos, enfim, profissionais que estão debatendo conosco a nossa área. Isso é fantástico. Acho isso muito bom. Além disso, nós tivemos a possibilidade de ter um mapeamento, um mapeamento muito interessante. Esse mapeamento interessante demonstra a grande diversidade de posições que nós temos, e isso aparece no texto do Santin, no texto do Walter, no texto do Guiraldelli, no Pallafox, no Hugo, no Lamartine, e mostra o quanto de vertentes epistemológicas, que têm nexos com projetos históricos e com o presente, e aí vem o importantíssimo: a gente precisa desvelar o que vai se construindo e fica como hegemônico. Porque desse debate construiu-se uma hegemonia, e essa hegemonia vem na seqüência dos debates, e a construção dessa hegemonia se dá tanto pelas decisões do conselho editorial, que vai dizer quem vai ser convidado ou não para o debate quanto pelas posições dos debatedores. Então, a revista, ela passa a ser um elemento estratégico para explicitar uma hegemonia em construção no nosso país. Eu acho isso esplêndido, esse nivelamento. Então, esse debate, que trouxe diferentes posições, ele mapeou para gente isso, e ele permitiu ver também que o marxismo na sua proposição mais ortodoxa, ele não se fez presente nos debatedores na seqüência. Mas, por que? Porque não foi convidado ninguém numa referência marxista mais ortodoxa, dentro de uma visão marxista-leninista, dentro de uma referência epistemológica que foi a referência que nós utilizamos para debater o texto do Gaya, não é? Isto então veio a se dar posteriormente quando o professor Mauri de Carvalho recupera os debates e escreve o livro a respeito da sagrada família da educação física. Então, no meu ponto de vista, a sagrada família da educação física, ele faz uma analogia com o que Marx escreve, e o debate que Marx trava com os intelectuais da sua época, e eu acho que isso também é interessante na medida que por uma outra via, uma outra opção, intelectuais que trabalham na universidade brasileira – a gente pode ou não concordar com ele –têm a possibilidade de se expressar em relação a esse debate. Mas, no meu ponto de vista, o debate não está encerrado, e o que vai ser viável agora, é justo: uma dissertação de mestrado provocar o desencadeamento do questionamento da hegemonia, para que o debate tenha continuidade no seu aprofundamento, e aí possamos identificar as construções da contra-hegemonia. (você está se referindo à minha dissertação de mestrado) Vai ser a tua, uma outra. (por que não uma de doutorado, pós-doutorado?) Alguém vai fazer isso. Alguém vai fazer. Agora, a gente começa a ver que se coloca um problema de pesquisa. Está vendo não é? Como é que você sabe que um problema de pesquisa é significativo? Quando ele é uma necessidade. Então, eu acho que a gente tem que estar se debruçando nisso, mesmo porque a hegemonia não é construída no vazio, nem é construída sozinha, e são homens que a constroem. E esses homens que constroem a hegemonia, são intelectuais, e o papel desses intelectuais precisa ser desvelado na construção do bloco histórico, no cimento do bloco histórico. (ideologia) É, isso é fundamental. (André Malina) – O referencial teórico utilizado na construção dessa dissertação em torno deste debate, foi o Antonio Gramsci e o Karl Mannheim. Você, naturalmente – a gente já conversou anteriormente – você conhece os dois autores. Você se identifica mais com um do que com outro? Se você tivesse que se identificar mais com um ou com outro – não precisa se debruçar sobre a teoria deles, mas só se você se identifica mais com um ou com outro. ((Taffarel) – Veja só meu querido, a questão da base teórica explicativa: o teu trabalho vai ter uma base teórica explicativa, e você pode se valer de dois, três, quatro, cinco autores, e esses autores podem ter posições epistemológicas diferenciadas. Acontece que tu vais ter uma base teórica explicativa. Tu pode usar Gramsci, Karl, você pode usar Max Weber, você pode usar outros cientistas das ciências sociais, não é? Mas tu vais ter uma base teórica. O que eu queria discutir contigo, porque não tem relevância se eu me aproximo mais de um e de outro, o que tem relevância nesse momento, é que nós estamos nos valendo do aporte da área das ciências sociais para definir categorias de pensamento, para explicar os fenômenos com os quais nós nos confrontamos, para abordarmos as problemáticas que nós nos colocamos. Se eu tivesse que, agora, dizer para você, dos dois autores, qual é o autor que apresenta os elementos consistentes para dar tratamento a problemática que você elegeu, eu diria que é Gramsci. Por quê? Porque você quer fazer um trabalho crítico. Porque você quer fazer um trabalho que leve em consideração não só desvelar uma lógica da coisa, mas você quer situar isto dentro das determinações históricas, e você quer fundamentalmente estar reconhecendo os elementos superadores, e isto é um trabalho dentro de uma perspectiva crítica, e isto significa que nós temos que nos aproximar daquilo que a humanidade foi capaz de elaborar hoje como instrumental científico para construção do pensamento crítico, e por isso eu diria que o Gramsci nos traz um aporte bastante significativo, e nós podemos perfeitamente entrar em detalhes disso: o Gramsci quando estuda a questão do intelectual orgânico, ele busca compreender as inter-relações e às contradições entre a infra-estrutura e a superestrutura, e o papel do jovem intelectual nisto. Então, ele não deixa de fora coisas importantes como são as forças produtivas, as relações de produção, os elementos da sociedade civil na formação de consensos, a sociedade política na formação também na construção da hegemonia pela coerção. (o conceito de Estado dele: força + consentimento) Então, eu te diria que você faz realmente uma opção inteligente, uma opção adequada, quando você recorre a Gramsci. Agora, eu estaria sugerindo que você trouxesse, e não é muito difícil, essa discussão do intelectual orgânico, pegando o texto do Petras. É fundamental você pegar o texto do Petras, num livro que o Curgiola organiza, chamado “Marxismo Hoje”, e lá dentro tem um texto, chamado “Os Intelectuais em Retirada”. (se você puder me mandar) Se você me der seu endereço eu lhe mando na hora. (André Malina) – A pergunta para saber se você concorda mais ideologicamente, ou na sua visão de mundo com um ou com outro, é porque eu estou tratando de vocês, não é? Então, isso ajuda e muito, você dizer se prefere um ou outro ou nenhum deles. Foi por isso a pergunta se Gramsci ou Mannheim, especialmente no conceito de intelectual. (Taffarel) – Isso ficou claro para mim. Isso ficou claro. Eu vejo que ainda em termos da sua dissertação de mestrado, eu estou dando um depoimento com uma finalidade específica, que é contribuir na construção de uma dissertação de mestrado, aonde a discussão da construção da hegemonia e da responsabilidade dos intelectuais orgânicos na construção de dadas hegemonias, etc, ela está posta, e eu gostaria de destacar que eu considero esse debate, um debate atualizadíssimo, um debate que deve ser feito, que deve se confrontar nisso, porque nós não podemos deixar de reconhecer que, isso não é só na educação física, isso é um fenômeno que está acontecendo em várias áreas, na universidade em geral, é uma retirada dos intelectuais de uma base epistemológica marxista. Isto tem que ter explicações. Há uma grande aproximação com referências epistemológicas entre aspas pós-modernas, e que precisam ser questionadas. |O que nós reconhecemos também, é que em nome de abandonar determinadas referências históricas como o marxismo, hoje são produzidas, são produzidas muitas elaborações que são verdadeiros engodos, e isso já está comprovado através de um estudo elaborado por físicos, que desembocou num livro chamado “As Imposturas Intelectuais: o Abuso dos Filósofos em Relação à Ciência”, é mais ou menos esse o título. Ma o que eu queria te dizer, é que é um debate fantástico, e nós precisamos aqui no Brasil estudar isto, porque estes estudos vão viabilizar que a gente tenha mais clareza do que a gente está construindo mesmo. É isso o que você está querendo pegar: o que nós estamos construindo que está se tornando hegemônico, e nós temos que questionar isso, e se a tua dissertação for concluída no sentido de estar apontando questionamentos da hegemonia do pensamento da educação física brasileira, é uma contribuição extremamente relevante, e, por incrível que pareça, ao analisarmos o texto do Gaya, ao analisarmos a sua base referencial epistemológica para responder a pergunta mas, afinal, o que é educação física, nós o fizemos tendo consciência de que se constrói uma hegemonia que precisa ser questionada no nosso país. (André Malina) – Um outro detalhe que me chamou atenção e que eu queria questionar com você, é que há uma linha divisória entre as questões pessoais e as questões profissionais, e as ambições pessoais e profissionais das pessoas, mas nesse debate epistemológico, não sei se ficou caracterizado como um debate epistemológico, ou se esse debate como um todo, foi colocado com uma forma como em termos pessoais. Eu gostaria que você falasse se você também viu alguma coisa desse tipo ou não viu, ou não houve uma colocação trazendo as posições pessoais, quer dizer, cada um trazendo as posições que acredita, pensando talvez, menos numa construção de uma epistemologia para a área e mais num posicionamento pessoal, ou não, se tinha mais um posicionamento de contribuição epistemológica para a área do que trazer, produzir um discurso que vai ter alinhamento com outros, ou que vai ter seguidores, enfim. (Taffarel) – Se nós considerarmos posicionamentos pessoais como sendo uma atitude da pessoa para fazer valer determinadas coisas que dizem respeito aos seus interesses, quando esses interesses, interesses pessoais e não interesses coletivos, esse não é o conceito que eu quero trabalhar. O que eu quero trabalhar é que às posições expressas por todos os debatedores, foram posições das pessoas, e essas posições, por serem posições das pessoas, estão assentadas na sua referência epistemológica. Os fenomenólogos, os empírico-analíticos, os marxistas, eles concordam numa coisa: ninguém fala de lugar nenhum. Todo mundo fala situado. Portanto, ali, desde o texto do Gaya, ao nosso texto, aos textos dos demais, estão expressas posições pessoais, mas não pode ser deturpado este debate como sendo um debate aonde prevaleceram interesses pessoais, por poder, ou por qualquer outra coisa, por alinhamento, não. O debate é uma crítica à concepção epistemológica. Vamos admitir isso. E o que se confronta ali é a questão da referência marxista, e é isso que nós estamos indagando: por que nós temos que responder o que é educação física só dentro de determinadas vertentes epistemológicas como é a vertente empírico-analítica? Setenta por cento do conhecimento produzido no Brasil é com essa base na nossa área. Por que nós temos que responder essa pergunta só dentro da vertente fenomenológica, que são aproximadamente vinte por cento, e é uma tendência que está crescendo? E por que, e aí é que está, e por que o debate não pode se dar do ponto de vista de uma referência marxista, que tem uma dada construção de projeto histórico, de uma dada concepção de homem, de sociedade, como todos têm, entendeu? Mas é na perspectiva da superação radical do capitalismo. E é esse o xis da questão. Então não tem nada de posição, de interesse pessoal, nós somos mulheres que temos clareza das nossas opções de vida. Nossa opção de vida era trabalhar construindo a teoria da educação física a partir do nordeste do Brasil tendo o marxismo como referência, e nós vamos para o debate. (André Malina) – Esse posicionamento anterior, quem falou fui eu. Uma outra crítica que fazem ao trabalho de vocês, e que foi levantada por entrevistas, e já tinha sido colocada num texto dentro do livro “A Arte da Mediação” do Hugo Lovisolo, no texto do Lamartine, e de outras pessoas também, é que havia uma deturpação do marxismo, quando se falava no marxismo na educação física, entendeu? Talvez no próprio Gaya se encontrem alguns elementos que indiquem essa crítica de um marxismo talvez positivista, ou de um tipo de marxismo que nem estava, nem era expresso num conceito dialético marxista. (Taffarel) – Veja só: eu não quero, em hipótese nenhuma, deixar registrado em canto nenhum deste país, que o marxismo é uma referência que se dá acabada na cabeça das pessoas. Não, nós buscamos aproximações com uma possibilidade epistemológica, e esta busca das aproximações é que vai construindo, e eu aceito com muito bom grado qualquer observação que diga: não estamos sendo coerentes. Mas eu acho que esse não era o caso. Fomos extremamente coerentes na crítica. Então, são muito bem-vindas as observações de todos os que leram e estudaram a respeito da referência marxista enquanto uma vertente epistemológica, enquanto uma possibilidade de produção do conhecimento, se nós estivermos sendo incoerentes, e não somos em hipótese nenhuma, que não vamos simplesmente aceitar uma crítica. Nada disso. Então, é extremamente importante que a gente observe que nós levamos um combate sim. E eu vou revelar uma coisa agora aqui pra você: este texto que nós escrevemos, ele inclusive circulou em alguns setores lá na Europa, e essa circulação dos textos lá na Europa se deu inclusive com o levantamento de algumas opiniões, de que nós somos xiitas, de que nós somos fundamentalistas, e a gente precisa admitir que isso são preconceitos. Preconceitos que podem prejudicar terrivelmente a vida de uma mulher ou de um homem. Essa tentativa de classificar os outros com adjetivos que comprometem, isto é extremamente complicado, e bate na vida da gente, e bate na vida da gente. Então, eu sinto hoje na Federal da Bahia, por exemplo, em alguns momentos, também como que um rótulo. Mas por que este rótulo? Só porque nós queremos honesta e sinceramente buscar aproximações com uma dada referência histórica chamada marxismo? Então, isso tem a ver com a construção da hegemonia, e dos mecanismos que são usados, entendeu? Quer dizer: eu creio que você, ao peneirar, ao entrar por dentro de todos esses textos, vai levantar elementos, você vai levantar elementos que permitem reconhecer o que é que está sendo construído mesmo no Brasil, o que é que está sendo hegemônico. E o hegemônico deve ou não ser questionado? E você vai encontrar perfeitamente indicações de proposições para elaborar o seu pensamento científico acerca disto. A tua base teórica te dará bons elementos pra isso. (André Malina) – Fazendo uma pergunta bem direta, você acha que também classificou Gaya, quando você o chama de idealista? Você acha que fez essa mesma classificação que você sentiu dos outros? Você acha que fez isso? Ou você acha que não? (Taffarel) – Me mostra no texto que eu chamei Gaya de idealista. O que eu vou te mostrar no texto é que a opção teórica que ele fez foi explicar um fenômeno epistemológico, etc. Idealista. É idealista a opção que ele fez. Ele fez uma opção epistemológica. Então, é isso que precisa ficar esclarecido. (André Malina) – Você se sente hoje, rememorando o texto que você escreveu, vocês se sentem satisfeitas com o que produziram naquele texto? Vocês mudariam alguma coisa naquele texto? Como é que você faz essa autocrítica em relação ao texto que foi escrito? (Taffarel) – Quando eu olho pra todos os meus escritos, desde o primeiro livro: “Criatividade nas Aulas de Educação Física”, eu não faço como o Fernando Henrique Cardoso que manda jogar tudo no lixo. “não, não considerem mais o que eu escrevi”. Nada disso. Eu sempre digo: considerem o que eu escrevi nas condições objetivas que me estavam colocadas naquele momento e qual era a minha capacidade naquele momento, de formular o que formulei. Eu não posso ver as minhas coisas, sendo um ser inacabado, como acabadas. Então, como tudo na vida, como tudo na vida, a gente olha, situa historicamente, entendeu? Então aquele texto era o texto estratégico a ser elaborado naquele momento. Foi elaborado naquelas condições, deu aquela resposta, entendeu? E eu vejo que o que nós temos que fazer hoje é continuar o debate, e teríamos novos elementos, é claro, porque estudamos, não é? E é isso que eu quero fazer, com todos os colegas, com todos os doutores deste país. Eu quero continuar o debate científico, inacabado, provisório, porque é assim que nós somos, e é assim que nós nos constituímos, enquanto seres humanos. Eu quero fazer isto com dignidade, com respeito. E eu te digo: tentaram dizer que eu desrespeitei meu colega Gaya. Eu não tenho concordância com isso. Eu tenho muito respeito ao Gaya. E por ter respeito a ele é que na minha condição de intelectual, de professora, de mulher, me dou o direito de questionar meu colega intelectual, professor homem. Ou eu não devo questionar porque é homem, porque é intelectual, porque é professor? Não. Não. Eu vou questionar.Vou questionar. Porque a ciência não tem outro jeito de evoluir, a não ser pelos nossos constantes questionamentos e a colocação de problemáticas significativas. É isso. E você está recolocando a problemática. Agora pegando isto na construção da hegemonia. (André Malina) O seu referencial teórico, evidentemente, você já falou, é basicamente Marx, e, enfim, eu gostaria de encerrar a entrevista, agradecendo imensamente a você, dizendo que qualquer coisa que seja utilizada, que seja falada, não será nada pessoal, será puramente uma análise do texto, enfim, das coisas que eu pude identificar, e eu espero fazer isso com a melhor propriedade que for possível. Agradecendo também a sua disposição, eu sei que você estava com febre, está aí morta de cansaço. Dizendo também que eu vou te mandar o trabalho e procurar utilizar a entrevista no meu texto, queria saber se você não se opõe, se tem algum problema nisso. (Taffarel) – Não, muito pelo contrário, eu acho que nós temos que estar facilitando o acesso, e me disponho a fazer nova entrevista, se você mandar questões por escrito, e talvez daí se você tiver alguma dúvida, se quiser que a gente esclareça melhor alguma coisa, se você quiser mandar alguma coisa por escrito, você manda, eu respondo. O importante é que você conclua teu trabalho, faça uma formulação, e que isso ajude a alavancar o desenvolvimento da nossa área, porque esse alavancar o desenvolvimento da nossa área, significa construir a dignidade de todos nós. Então, conta comigo. (obrigado). - Entrevista com Silvino Santin. Gramado/2000. (André Malina) - Estou aqui com o professor Silvino Santin e vou fazer uma entrevista. Estou aqui no Congresso de História (da Educação Física, Esporte, Lazer e Dança). Hoje é dia 31 de maio de 2000, é noite aqui. É uma entrevista centrada no debate ocorrido na Movimento (revista), e cujo artigo Santin publicou em 1995. Inicialmente eu vou pedir para que o Professor Silvino se identifique, para em seguida fazer as perguntas. (Silvino Santin) - Bom, meu nome é Silvino Santin, atualmente eu sou professor bolsista da CAPES no Programa de Mestrado e Doutorado da ESEF da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sou aposentado pela Federal de Santa Maria, minha formação é na área da filosofia, tenho mestrado e doutorado na área da filosofia da linguagem. (André Malina) - Como é que surgiu o convite para que você fizesse a elaboração do seu artigo para a revista Movimento? (Silvino Santin) - Logo na fundação da revista Movimento, uma das maneiras de dar um certo movimento de interesse para a própria revista foi criar estas páginas centrais que eram polêmicas, Temas Polêmicos, e o primeiro texto foi publicado pelo professor Gaya, em que a questão era: afinal o que é educação física?, e juntamente com este texto deveriam sair dois comentários. Um seria o meu e o outro seria o da professora Celi Taffarel, mas eu recebi uma redação do texto do professor Gaya, que não era exatamente aquele que iria ser publicado na revista. Aí eu vendo que eu fazia uma série de comentários de algumas passagens que não constavam na passagem do texto da revista, eu me recusei a publicar. Aí saiu o texto do Gaya e o da Celi. Posteriormente, me foi solicitado que eu fizesse um comentário sobre o texto do professor Gaya e sobre o texto da professora Celi. Exatamente aquele que está na revista. Aqueles que tem o número ou leram sabem mais ou menos em que consiste. (André Malina) - Professor, eu gostaria de saber de onde veio a concepção do artigo. Quer dizer, como é que você se localiza a respeito da concepção de seu artigo? (Silvino Santin) - Eu tenho um hábito de quando redijo um texto, basear-me nas palavras que caracterizam o próprio texto. Seja o tema, seja o tipo de texto a ser elaborado que, no caso, era comentado. Inicialmente eu tentei dizer em que eu podia comentar, é uma técnica de investigação, de estudos acadêmicos digamos, desde a Idade Média, e que tinha um determinado roteiro desenvolvido, para tentar identificar o significado de um texto de um autor, digamos, de nome, um texto que fosse extraído de um livro maior que oferecesse uma dificuldade de compreensão ou simplesmente de maior explicitação no seu conteúdo. O grande problema no texto era saber no que consiste a educação física. Só que eu não tinha, apenas, me parecia, a tarefa de explicitar a educação física, mas era de analisar ou comentar os dois textos. Eu não entendi que meu comentário deveria estar vinculado sobre a questão: afinal, o que é educação física?, mas, a maneira como esta pergunta ou esta questão teria sido respondida pelo professor Gaya – ou pelo menos exposta, não sei se respondida – e o comentário da Celi, que não só questionava a pergunta como também a resposta à pergunta dada pelo professor Gaya. Aí então eu tentei montar o meu comentário partindo do princípio da própria pergunta “o que é?” – uma pergunta clássica grega – e que supostamente já tem uma posição firmada de que a educação física é alguma coisa. O “é” remete a essência ou a natureza, uma realidade estável de alguma coisa. Se você pergunta o que é educação física?, eu suponho que ela já é uma realidade. Eu poderia perguntar: o que eu entendo por educação física?, o que significa educação física?. Aí seria outra formulação de pergunta. Então inicialmente eu procurei mostrar que a formulação da questão era uma formulação metafísica, tradicional, enraizada na filosofia grega, que perpassou todo o mundo medieval, inclusive toda a filosofia clássica. (André Malina) - Professor, quando você fez a sua argumentação, você estabeleceu, lógico, uma linha de pensamento pautada na sua concepção, na sua visão de mundo, na forma que você concebe, inclusive, a educação física. Como é ou era essa concepção, essa visão de mundo, em relação à educação física e aos artigos? (Silvino Santin) - Eu exatamente não me preocupei em responder à questão “o que é a educação física?”. Eu tentei fazer uma análise dos dois textos que se dirigiam a esta questão ou que tinham como alvo esta questão. Eu dizia que eram duas montagens diferenciadas . Todo pensador ou todo autor de um discurso crítico ou científico, ele o faz de um determinado lugar. Então eu tenho uma posição, e desta posição eu olho para o objeto que eu estou procurando ver ou investigar ou sei lá, explicar ou criticar. E, no caso, a grande realidade a ser olhada, era a educação física, e eu não vou responder a esta questão. Eu vou tentar, no texto pelo menos, eu vou tentar mostrar como dois autores, partindo de posições diferenciadas tentam dar a resposta. Então no caso do professor Gaya, eu colocava que ele partia de uma posição totalmente tradicional, de uma epistemologia em que supunha que as coisas têm uma essência. Porque dizer, perguntar o que uma coisa é, é investigar a sua essência, a sua natureza. E a posição da Celi era uma posição, digamos, de denúncia ou de crítica, baseada numa proposta de um paradigma marxista, em que denunciava que a compreensão da educação física do professor Gaya, era de uma educação física asséptica, neutra, sem explicações de ordem social, e que o professor Gaya se baseava numa cientificidade que também seria neutra. A preocupação era simplesmente saber em que consiste ou o que é educação física, e não via na cientificidade uma vinculação com a ordem social, e portanto a Celi critica logo no início com um discurso muito dirigido, muito radical - não é a palavra que eu gostaria de dizer, mas não estou no momento achando uma melhor – e que caracterizava o seu tipo de discurso, e que portanto, eu digo no meu texto, o autor que perceber no início essa postura da Celi, era capaz de nem mais ler, pois saberia o que ela iria dizer. Ela definiu claramente a sua posição marxista, denunciando o texto do Gaya como sendo sem compromisso com a ordem social, e que ela achava que era o grande erro de não ver toda a cientificidade, toda a organização de uma área da ciência, que no caso seria a educação física, sem um compromisso com a ordem social. (André Malina) - E, o seu artigo, o artigo que você fez, ele transmitiu aquilo que o senhor queria transmitir? (Silvino Santin) - Bom, eu relendo meu artigo, eu pelo menos vejo nele aquilo que eu quis dizer. Agora, eu não sei se alguém não viu isto. Eu não tive um retorno para saber se o que explicitei aqui foi bem compreendido. Eu sei que alguém fez um comentário, mas não estou bem lembrado, me parece no terceiro artigo posterior, numa outra revista que eu li, mas eu acho que ele entendeu o que eu queria dizer. Não sei se concordou. Eu também fiquei numa postura, digamos, sem querer condenar nem um e nem outro. Eu quis dizer que esses dois textos mostravam claramente que era interessante um debate acadêmico porque mostra como nós construímos dentro da Academia discursos diferenciados, a partir do momento em que nós olhamos uma determinada realidade de um lugar social, que é aquilo que fala, por exemplo, Paul Ricoeur , eu não me recordo baseado em quem, mas o Paul Ricoeur, em todo o caso, é uma autoridade intelectual suficiente pra aceitar a postura, é impossível analisar, olhar , uma realidade, um objeto, que não seja de algum lugar. Esse lugar é o meu lugar social, cultural, ideológico, e os dois textos mostravam claramente dois lugares diferenciados, que poderiam dialogar como poderiam não dialogar, e se colocavam às vezes, dependendo do autor, antagônicos. Mas não necessariamente seriam antagônicos no meu ponto de vista. (eles dois não seriam antagônicos na sua opinião? ou seriam antagônicos? Como é que você verifica essa questão dos dois?) Eu não os acho antagônicos. Eu os acho diferentes, só que essas diferenças, na medida que têm diferenças, em certos pontos poderão ser tidos como antagônicos, mas são duas montagens de discursos que têm que ser reconhecidas pelo ponto de partida sobre o qual ele se constrói. Então é aquilo que eu chamo de um lugar social, faz com este lugar me dê direções diferenciadas, ou podem ser paralelas, mas acho que há pontos muito divergentes, mas que poderiam ser solucionados. Por exemplo: é evidente que todo aquele, seja qual for, tem um vínculo com a ordem social. Por isto que eu penso, hoje mais do que no passado, um representante desta visão dum pensamento que nasce num contexto, é o chamado pensador o intelectual orgânico de Mafezzolli, que não é exatamente o conceito de pensador orgânico de Gramsci. O pensador orgânico de Mafezzolli seria aquele que mergulha numa realidade vivida e tenta ser apenas o testemunho daquela realidade vivida. Ao passo que Gramsci, no meu ponto de vista ou como eu o interpreto, ele fala que o intelectual orgânico é aquele que é produzido pela própria sociedade. Eu sou um intelectual orgânico, digamos, burguês, porque eu sou gerado, eu estou dando um exemplo, eu não me considero um intelectual orgânico burguês, mas o intelectual orgânico burguês, ele se identifica como tal por que? Porque ele é gerado pela sociedade burguesa. Inclusive ainda, aquele que contesta o intelectual burguês, ele também é gerado pela própria sociedade burguesa, como contraponto de um discurso que apóia a sociedade burguesa. Eu só consigo ser um intelectual anti-burguês graças a sociedade que me dá o espaço para eu ser anti-burguês. Estes pontos não estão incluídos no texto, não é isso? além, fora do texto que eu coloquei nesse comentário. Eu quero insistir que, como eu já disse antes, eu não estava interessado em condenar nenhum dos dois textos. Eu queria só chamar atenção para a área acadêmica, que é interessante haver este tipo de debate, exatamente para perceber como é possível se construir diferentes discursos, porque tem a sua validade interna a partir da argumentação que se usa, baseado na tese que eu vou utilizar. Se eu partir do princípio que a ciência ou uma ciência é uma atividade que busca uma verdade independente da ordem social, tudo bem. É uma tese que eu posso contestar, mas há aqueles que acham que é possível sustentar. Então, no caso da Celi, ela sustenta que uma ciência é uma ciência sempre comprometida com a ordem social. Eu, pessoalmente, penso dessa maneira. Quer dizer, toda época histórica tende a ser um modelo de cientificidade, e é aquele que dá sustentação à própria ordem social. Por isso que poderia se dizer que a ciência moderna, que gera o fundamento capitalismo, também gera uma sociedade capitalista. Então para poder romper com uma ordem moderna, de alguma maneira é preciso romper também com a ordem epistemológica. (Seria uma ruptura epistemológica que você está falando?) Seria buscar um novo paradigma epistemológico. Como a epistemologia medieval construiu uma sociedade medieval, a epistemologia ou a cientificidade moderna gera uma sociedade moderna, gera um intelectual moderno e gera todo um sistema econômico, político e social, e eu até diria religioso, inspirado nesse modelo de cientificidade, tanto que a própria religião busca na ciência para comprovar que o manto sagrado de Milão é o verdadeiro Manto Sagrado, não é?. Assim, nós estamos, digamos, questionando a sociedade moderna, a sociedade capitalista e, junto com este questionamento, nós também criticamos a ciência que a sustenta. Então, falar de uma ciência ou de uma educação física como ciência, significaria o que? tirar seu paradigma científico, porque ela também seria sustentação de uma ordem social científica e capitalista. Aí seria o que? tentar pensar numa nova cientificidade, num novo paradigma, que é só pensar. Aquilo que se chama de pós modernidade, era pós-industrial. O Souza Santos é um dos autores que eu gosto muito, eu não estou dizendo que é porque ele diz a verdade, mas porque diz uma verdade que me agrada, e que nós temos que pensar numa nova ordem científica, e ele têm o livro dele, “Introdução para uma Possível Ciência da Pós-Modernidade”, um título assim, um outro livrinho, que já está na 10ª edição, lançado em 77, 87, por aí, acho que é de 1977, discute sobre a ciência pela mão de Alice. São trabalhos em que ele aponta para a exigência de uma nova cientificidade, que inclusive respeite os saberes alternativos, porque a ciência moderna eliminou todos os outros saberes, como sendo saberes legitimamente válidos, e portanto há outros saberes que precisam ser reconhecidos. Então veja, é por aí que você construiria outro paradigma, mas qual é o novo paradigma? Não existe. A gente vai ter que construí-lo, e construir um novo paradigma provavelmente, provavelmente não, certamente vai construir uma nova ação social. Vão ser construções que vão se organizando de forma simultânea. (André Malina) - Nós estamos falando sobre teorias e sobre autores, alguns autores. Então, só pra gente localizar bem isso aí, você falou que a sua formação vem da área da filosofia, graduação, mestrado e depois doutorado em filosofia, filosofia da linguagem. O que eu queria saber é exatamente nessa ordem teórica. Quais os autores ou as teorias que influenciaram você nesses momentos: graduação, mestrado, doutorado e na época dos artigos, especialmente que autores seduziam você, a teoria que informava você nessa época? (Silvino Santin) – Bom, eu, na minha graduação, fui muito marcado pelas correntes existencialistas. Eu era um leitor assíduo de Sartre e, em parte, Heidegger. Mas Sartre era mais fácil, porque tinha mais traduções e tem uma obra que é literária. Tem uma grande obra filosófica que é “O Ser e o Nada”, mas o Sartre tem uma literatura.abrangente, é romance, novela, etc. Eu me lembro de uma novela, teatro, teatro que eu gostava de ler, relia, não me lembro, mas na França teve uma repercussão muito grande. Eu, baseado nestas teorias de correntes existencialistas, fui em 68 ao Rio, para fazer um curso de mestrado em cultura brasileira. Na época havia teatro popular, pós-golpe militar na área acadêmica os estudantes, a gente fazia teatro nas vilas, fazia esse movimento, e havia muita cultura, cultura brasileira, resgate da cultura brasileira, não é só estudar as culturas estrangeiras sem entender às do país. Aí, eu fui fazer mestrado em cultura brasileira, e como eu estava baseado na leitura dos franceses existencialistas, eu resolvi fazer um trabalho, “Categorias Existenciais em Graciliano Ramos e Jorge Amado”, de Graciliano Ramos era Vidas Secas e de Jorge Amado era Ceará Vermelho, e eu trabalhava das figuras de outras categorias existenciais, mas duas figuras básicas de ser humano, que era Fabiano de Vidas Secas e, esqueci, depois ele aparece, que é a figura que se revolta na fazenda, e acaba indo para São Paulo e ingressa numa célula do Partido Comunista. O Jorge Amado estava vinculado ao Partido Comunista, inclusive esta parte eu acho que, sob o ponto de vista literário, empobrece a obra. Inclusive, esta crítica é feita a partir do Eduardo Portela, que devia ser meu orientador, mas o curso dele de mestrado, não saiu, não sei por que razões administrativas, na Faculdade de letras que funcionava nos antigos pavilhões das exposições de Portugal, na Avenida Chile, eu sei que disseram que construíram ali a nova catedral do Rio. Eu nunca entrei, também não vi nem pronta. Bom, então eu fiz o trabalho monográfico, me deram o título de curso de especialização, e depois eu fui pra França, aí antes eu fiz no Rio uma porção de cursos com o Manoel Carneiro Leão, ele tinha fundado o Colégio do Brasil, na rua Gago Coutinho, aí logo depois o A.I.5, que foi em 68, largou uma bomba, pra atemorizar, depois avisaram que se continuasse a usá-lo seria tido como uma provocação. Então recolheram todas as fichas dos alunos que iam freqüentar aquelas aulas, aí lecionou, deu aulas, o Valderez Chacon, trabalhava lá dentro, o Afrânio Coutinho, o Pierre Secondiffe, que era um dominicano, se não me engano deu um curso sobre Pierre Chardan, foi a primeira vez que eu entrei em contato, gostei da obra dele, depois quando eu cheguei na França vi que a obra do Pierre Chardan estava em qualquer livraria de livros usados, estava a obra completa, ninguém dava maior atenção pra ele, aí comecei a ler mais Heidegger. Em 71 eu consegui uma bolsa do Governo francês, fui para a França e comecei o mestrado em Heidegger. Como quando eu cheguei lá começou uma greve longa, ainda reflexo de 68, que foi a Revolução estudantil, em Dantér, onde eu me inscrevi, praticamente não havia móveis, cadeiras e mesas, então a gente sentava no chão, ficava de pé, até o professor não tinha nem mesa. Aí fizeram uma greve pra ver se recompunham o mobiliário, e eu então sentei na biblioteca e em 6 meses eu tinha minha dissertação de mestrado pronta. Aí eu iniciei o doutorado. A minha bolsa era de dois anos pra fazer o mestrado, como eu entreguei no primeiro ano, eu iniciei o doutorado, depois eu argumentei e pedi a prorrogação por mais um ano, e o meu orientador que era o Manoel Levinás me deu todo o apoio, eu fui aprovado e me deram mais um ano. Mas eu abandonei o Heidegger por que o meu alemão é muito fraco. (André Malina) – O Manuel Levinás é um existencialista também? (Silvino Santin) – Manoel Levinás se julga um pensador anarquista. Ele é lituano, tem a cultura russa, depois ele se tornou francês, e se orgulhava muito de poder pensar em francês, ele adotou a cidadania francesa, ele é de descendência judia, foi do exército francês na Resistência, ficou preso uns 4 anos, uns 3, 4 anos, só não foi morto porque tinha uniforme do exército francês. Ele se julga um anarquista, de fato não bem caracterizado, com uma forte influência heideggeriana, husseriana, e quem utiliza muito seu pensamento aqui na América Latina, é o pessoal da chamada Filosofia da Libertação e Teologia da Libertação. (André Malina) – O senhor estava falando que não falava alemão, por isso que você abandonou, não é? (Silvino Santin) – A minha leitura era fraca. Aí, o que foi que eu fiz? No meu doutorado, comecei uma leitura do Merleau Ponty. Eu já tinha lido alguma coisa, mas muito pouco. Aí eu gostei do trabalho dele, e como ele trabalha a questão da linguagem, resolvi fazer a minha tese de doutorado, sobre o pensamento do Merleau Ponty. A minha idéia era fazer uma antropologia da linguagem. Quer dizer, o título que eu havia dado ao meu trabalho, era “A Palavra como Relação do Homem com o Outro e com o Mundo”, mas o meu orientador não gostou do título, achou que não era muito filosófico, e mandou fazer um trabalho que eu não gostei, pelo menos do enfoque, que era denominado “Ser e Linguagem”, “Etrê e Language”. Então, no fundo era fazer uma ontologia da linguagem e aí, eu notei que essa proposta que ele me fez era porque ele tinha mais influência de Heiddegger do que de Merleau Ponty. Porque “Ser e Linguagem” é um título perfeito para Heiddegger, não para Merleau Ponty. Bom, de qualquer maneira eu fiz, e provavelmente não agradei nem a ele e sem dúvida não agradou a mim o trabalho. Mas, em todo caso, foi aprovado. Eu trabalhei com Merleau Ponty, tenho bastante conhecimento dele, fui aluno e fiz uma série de seminários com Paul Ricoeur, sob o ponto de vista hermenêutico. O Paul Ricoeur tem uma formação religiosa acentuada. Ele ensinava na Faculdade de Teologia Livre Protestante em Paris, realizava seminários no Centro Nacional de Pesquisas PseudoNacional de Ciências da França, e, então, eu me considero fundamentalmente muito influenciado por Heiddegger, Merleau Ponty e Paul Ricoeur, e de uma maneira genérica, bastante por Nietschze, porque eu – não que Nietschze tenha uma definição, mas digamos que ele é inspirador de coisas que você não acha em nenhum lugar – e eu fiz uma série de seminários, três pelo menos, de um professor que dava todo ano leituras contemporâneas de Nietschze. Então, nesse meu texto eu invoco, digamos, essa postura. Eu parto do princípio de que não existe a verdade e ninguém tem a verdade, ninguém vai falar da verdade, ninguém vai falar do sentido de um texto. Eu não posso estabelecer que o texto do Gaya é isso, que o significado do texto do Gaya, que o significado do texto da Celi é isto. Eu posso ver a construção desses textos, desses discursos, e que vinculam vários significados dependendo da leitura que eu fizer. (André Malina) - Mas, voltando a questão da verdade, você não considera que tenha uma verdade, não considera que existe uma verdade, ou considera que existem várias verdades? (Silvino Santin) – Não existe nenhuma verdade nem várias verdades. O que existe é a verdade que existe. Eu não gostaria de falar em verdade. Existe um sentido, um significado, uma coisa que eu diga: por exemplo, para os gregos, as coisas, que significado tinham? Que eram? Isto é, tinham uma essência. Para o moderno, qual é o significado de moderno? O que é funcional. Por exemplo: qual é a verdade de um remédio para um médico? Se ele funciona. Ele nem sabe que estrutura química tem, que composição química tem, ele sabe que funciona. Bom, aí a questão seria muito complicada. Eu não gosto de falar em verdades ou inverdades. Eu acho que eu atribuo significados às coisas. Eu digo que uma coisa é aquilo que eu disse que ela é. Só que se eu disser que uma coisa é fora do modelo da cultura que eu estou, não vão me dar bola, vão dizer que eu sou um bocó, que eu não sei nada, não é? E eu tenho que dizer dentro do modelo epistemológico no qual eu circulo e é imposto por uma ordem cultural existente. (André Malina) – Partindo daquilo que você falou, que tem um lugar de onde se parte, que eu chamaria de concepção de mundo, ou visão social de mundo, não sei o que está aproximado com o que você fala, mas, partindo da Celi Taffarel, como ela classifica o texto do Gaya de idealista do ponto de vista marxista, ela partiu do lugar correto, ou não partiu? (Silvino Santin) – Ela partiu do lugar correto que ela optou. Eu por exemplo, eu não diria que o marxismo é o lugar correto, e nem que o idealismo é o lugar correto. São dois lugares. Eu vou optar por qual? Por aquele que eu achar que é para mim o mais correto. Então, se eu sou marxista, vou dizer que a postura da Celi é o lugar correto. Se eu disser que é o idealismo o correto, eu vou dizer que o Gaya está no lugar correto. Então, não existe o lugar correto, ou se quiser, o lugar correto é aquele que eu escolhi como sendo o lugar correto. Se você pegar a ciência, alias, um dos livros que eu gosto de ler e reler pra passar o tempo, e pra desabafar às vezes as iras, quando certas situações políticas, sociais, econômicas e até mesmo científicas, eu leio o livro do Lantan, é Lantan o sobrenome, um francês, e o título é: “Eu Penso, Logo me Engano”. Subtítulo: breve história do besteirol científico. Então, o que é que acontece: o cientista trabalha dentro de uma teoria, esta teoria é o seu lugar social do qual ele fala, é o lugar científico do qual ele fala. Então, a partir dele ter escolhido essa teoria científica de olhar o universo, ele cria uma visão de mundo, e acha que essa visão é a verdadeira, por que? Porque ele acha que o seu lugar, dado pela teoria que ele adotou, é o lugar correto. Só que se você ler esse livro, você vai verificar que muitos cientistas falaram desse lugar e condenaram os outros. Por exemplo: quando há pouco tempo se formulou a teoria do Big Bang, quem é que criou essa expressão? Quem é que cunhou a expressão “Big Bang?” os contrários da teoria, pra ridicularizá-la. Quando na área da medicina, em 1670, a circulação sanguínea dependia do coração, o coração era uma central de bombeamento, os opostos a essa teoria, que eram aqueles que diziam que o sangue era produzido pelo fígado, frio, e o coração era uma caldeira de aquecimento. Então, esses que defendiam a teoria antiga, ridicularizaram os que pensaram que o coração era uma bomba de impulsão do sangue pra todo o corpo, e o chamaram de “circuladores”. Então veja, quando Newton elaborou e formulou a lei da gravidade, na Inglaterra ela foi aceita como uma teoria vinculada à divindade. Foi Voltaire na França que pegou aquilo e a tratou de maneira profana. Então, se dissesse naquela época quem é que tinha razão era a Inglaterra, que divulgou a teoria como sendo a grande expressão da divindade no universo, não vou aceitar a teoria de Voltaire. Você percebe que eu não trabalho dessa forma: isso está correto aquilo está errado, isso é verdadeiro aquilo é falso. Essas polaridades foram criadas desde os gregos. Merleau Ponty, que eu gosto muito, foge dessas dicotomias, como foge da dicotomia sujeito-objeto. Eu sou sujeito e objeto ao mesmo tempo, na figura ou na metáfora da mão e contramão. (André Malina) – Essa idéia de oposição verdadeiro ou falso, se opõe às idéias, por exemplo, de Popper, essa linhas mais cientificistas, ou não? (Silvino Santin) – Eu acho que a ciência moderna trabalhou sempre em cima da oposição verdade ou faticidade, só que a verdade que era ontem, hoje pode não ser mais verdade, pelo menos a verdade até certo ponto. As verdades colocadas pelas ciências foram circunscritas por uma determinada circunstância. Por exemplo, a circulação da luz; a luz é uma onda ou é um corpúsculo? Se ela for corpúsculo, tem uma teoria da propagação da luz, se ela for onda, tem a teoria ondulatória. Qual é a verdadeira? O Tomas Kuhn diz que eu posso dar várias respostas ao mesmo problema. (André Malina) – No caso da educação física, como é que você vê essa questão? Com a questão da visão da educação física, especialmente como você observava esta visão na época da Movimento? (Silvino Santin) – Eu ainda continuo vendo a educação física da mesma maneira, isto é, uma vez eu vi a educação física como uma atividade puramente militar, um conjunto de exercícios militares que deveria desaparecer da escola no momento em que os militares voltassem pros seus quartéis. Eu hoje vejo a educação física como uma ação educativa, e que ela pode se valer das ciências existentes, como a medicina se vale das ciências existentes. Quem faz a medicina não é propriamente o médico. O médico aplica os conhecimentos do bioquímico, dos químicos, etc. quem faz a análise do material que ele manda pro laboratório são, de novo, os bioquímicos. Ele pega aquilo e aplica a dosagem, que praticamente já vem proposta pela bula do remédio. Então a educação física tem que se valer de todos os conhecimentos, inclusive os científicos, mas eu acho que a educação física tem como ponto de partida a vida, a vida humana, e o que interessa é que um organismo se desenvolva harmoniosamente. E como é que eu vou saber? Em primeiro lugar quem vai saber é aquele que é esse organismo. Exatamente eu, você ou qualquer um outro, e não a ciência. A ciência é para me dar informações, para dizer o que é bom para minha circulação, mas quem vai sentir como é que está a minha circulação, sou eu. Só que eu, por exemplo, nunca fiquei observando qual é a linguagem da circulação sanguínea. Eu vi uma vez, já faz uns 10 anos talvez, o professor Vagner, não me lembro o nome completo dele, lá da Paraíba, que disse que ele deitava e ouvia o barulho da circulação do sangue. Eu tentei e nunca ouvi esse barulho. Eu acho que é possível, porque você sabe que dá para gravar e o ruído é razoavelmente grande, com aparelhos sensíveis para isso. O ponto de partida é saber, ou entender, e eu gostava de ler autores e ainda leio dessa, digamos, linguagem corporal, e o que me chamou atenção, inclusive, na palestra que eu fiz na terça-feira de manhã, foi que eu disse que podia citar vários autores que citavam a linguagem do corpo, da especificidade do corpo, mas eu preferia citar um tenista brasileiro, que é Tomaz Koch. E ele se refere exatamente a isso. Que nós não estamos habituados a ouvir a linguagem do corpo. E ele se referindo ao caso do Guga, que teve que abandonar um torneio devido ao cansaço, disse que esse é um dos exemplos em que o corpo estava dando um alarme e não se escuta. Então eu penso o seguinte, se nós não ouvirmos o alarme, e você sabe que o alarme é um ruído pra assustar, quanto mais difícil será pra entendermos a fala cotidiana do corpo, porque não foi habituado a pensar nisso. Então, eu acho que a educação física é o ponto de partida para eu começar a escutar a linguagem do meu corpo, e a partir dessa linguagem, eu saber como eu devo viver, como eu devo usar o corpo para rendimentos. Às ciências me dão informações à vontade, só que elas não me avisam que depois de eu ter usado dessa maneira, eu vou ter tais e tais conseqüências, mais ou menos graves. Sem dúvida, todas elas agressivas ao desenvolvimento harmônico de um organismo. (André Malina) – Essa sua concepção de educação física, juntando com esse lugar de onde você olha, ela se coaduna com alguns desses dois debatedores da Movimento, ou com algum outro debatedor, dessa mesma discussão, da Movimento? Você verifica uma identificação um pouco maior, entre um e outro? (Silvino Santin) – Eu não vejo nenhuma relação. Eu não me recordo dos textos dos outros, mas eu não vejo nenhuma relação com nenhum dos dois textos que eu comentei. Eu vejo vinculação dessa minha postura com as teses do Maturana, que é um dos pensadores que está me influenciando muito, as teses da ecologia, Baudrillard, Edgar Morin, são autores que eu bebo em alguma de suas fontes, que são os livros Eu poderia dizer que tenho as obras completas de todos eles, e que de fato a vida é colocada, digamos, como um referencial de uma nova proposta, de uma nova ciência. Aquela que é capaz de deixar que a vida seja viva, e não de utilizar a vida, de explorar, de intervir, de violentar de maneira invasiva. Por exemplo, todos os medicamentos bioquímicos, são invasivos ao organismo humano. O bom medicamento é aquele que é proposto pela medicina ortomolecular, isto é, organismos têm recursos para se auto-proteger. A medicina ortomolecular é aquela que propicia ao organismo vivo, os recursos para ele fortalecer suas defesas. O medicamento químico é aquele que vai substituir as funções do organismo. Então eu acho que a educação física é aquela que deve fortalecer, dar reforço, sei lá, dar condições para que o organismo das pessoas se desenvolva dentro das suas características, respeitando, digamos, seu processo auto-organizativo. Como é que se faz isso eu não sei, porque eu só aprendi a usar o meu corpo e aplicar nele conhecimentos que vieram de fora, fornecidos por uma ciência que tem uma imagem do meu corpo como uma máquina. (André Malina) - Com relação a questão da inteliggentsia, dos intelectuais, você tem algum conceito formado sobre o intelectual? (Silvino Santin) – Não. Conceito claro não, mas, dizendo de uma maneira, digamos, existencial, experiência pessoal, eu penso num universo no qual eu estou envolvido. Eu penso que não sou um artefato que ando por aí e pode reproduzir o pensar como se fosse uma máquina de automóvel. O meu pensamento não é meu, ele é do mundo no qual eu existo. Então, ele tem vinculações de ordem, digamos, de confirmação, de vinculação direta, e também de resistência. Eu penso em muitas coisas aquilo que todo mundo pensa, mas eu também penso coisas que resistem a essa maneira de pensar, e talvez, em certas áreas, eu tenha um pensamento resistente ao que se pensa por aí, muito maior do que aquilo que confirma o que está ali. (André Malina) – Você acha que o discurso que é produzido por esse intelectual, o discurso escrito, o discurso falado, ele chega de alguma forma aos professores, à prática profissional? (Silvino Santin) – Eu acho que chega muito pouco. Eu penso que o discurso acadêmico dentro da Universidade, é um discurso muito circunscrito à própria área acadêmica, e ainda eu não vejo que dentro da área acadêmica haja uma circulação entre as diferentes áreas do saber. Eu posso falar dentro de uma área da qual eu convivi, que eu me formei e trabalhei bastante tempo, que é a filosofia. E eu vejo que os filósofos falam pra si mesmos, hoje. Eu não vejo a filosofia ser capaz de fazer um discurso que seja audível, nem dentro da Universidade. (André Malina) - Eu trabalhei com Gramsci e Mannheim na concepção de intelectual especialmente. Você acha que a sua concepção, o seu lugar, se aproxima de alguns dos dois? Algum dos dois te seduz mais enquanto autor? (Silvino Santin) – Eu diria que o Gramsci, numa determinada época, me chamou muito a atenção. Ainda hoje eu reconheço muito que ele tenha um pensamento bom. Talvez eu seja um leitor, uma pessoa que tenha lido muito Gramsci. Na época se falava muito em pensamento orgânico, e tal, mas eu acho que ele trouxe um conceito que para mim está muito presente, de que todo intelectual, seja de que natureza for, faça que discurso fizer, ele é, digamos, resultante de uma ordem sócio-econômica-cultural do momento em que ele vive, da época histórica. Eu gostaria de lembrar nesse sentido o Bourdieu quando, por exemplo, nós usamos muito o livro dele, “A Reprodução”, e esquecemos de ler o livro dele, onde de fato mostra como se criam dinastias dentro da intelectualidade. Então, o médico, o filho vai ser médico, o neto vai ser médico, etc. Então, digamos, os executivos, os professores. O pai era professor, o filho é professor. Essas famílias são a verdadeira herança de uma cultura. Então você vai ter que ter alguém que nasça de um movimento alternativo, que gera um outro tipo de intelectual. Mas, também ele vai ser gerado por aquele grupo alternativo de organização político-social. (O Mannheim não, não...) Não, não. O Mannheim na filosofia eu li algo, mas não vejo nenhuma vinculação com minha maneira de pensar. Uma vez eu assisti a algumas palestras do Florestan Fernandes, que falava do Mannheim, mas não me chamou atenção. (André Malina) – Bom, eu gostaria de salientar e agradecer a sua entrevista, e gostaria que se você tivesse alguma coisa pra falar, falasse, e, anteriormente a isso, me responder se tem algum problema a utilização desta entrevista em parte ou inteira na minha dissertação de mestrado, ou com fins de livro. (Silvino Santin) – Não tem nenhum problema. Aliás, se eu dei foi para que utilizasse. Eu faço questão, inclusive, que ela sirva, seja pra colaborar com as idéias que você tem, seja pra alimentar a sua crítica sobre aquilo que eu disse. Eu não tenho nenhuma preocupação em ser dono da verdade, nem de um discurso que deva ser repetido. Eu sempre digo para os meus alunos que o importante é que eles não saibam o discurso que eu faço na aula, mas que saibam como é que organizam o discurso deles. Inclusive, se esse discurso for contrário ao meu, que eles saibam porque estão produzindo esse discurso que é contrário ao meu. Então, eu não tenho nenhuma preocupação e faço votos que você consiga fazer um bom trabalho de pesquisa, e se eu puder colaborar com essa entrevista, seja de que ordem for essa contribuição, eu estarei plenamente satisfeito. (André Malina) – Muito obrigado doutor Silvino, boa noite pra você.