AVALIAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA DOS PACIENTES COM CÂNCER DE LARINGE NO PÓS-OPERATÓRIO TARDIO Daniela Achette 1 Marcelo Benedito Menezes 2 Mariane Yumi Nakay 3 Bruno Prandini 3 Wilian Kikuchi 3 Antonio José Gonçalves 4 1 Pós-graduanda do Curso Pós-graduação em Ciências da Saúde da FCMSCSP, especialista em psicologia hospitalar pela Santa Casa de SP, distinção de conhecimento em psico-oncologia pela SBPO, psicóloga da Unidade de Psicologia Hospitalar do Hospital Sírio Libanês. 2 Professor Assistente da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), Doutor em Medicina pela FCMSCSP, médico primeiro-assistente do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. 3 Acadêmicos da FCMSCSP 4 Professor Adjunto da FCMSCSP, Doutor em Medicina pela FCMSCSP, chefe do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Projeto realizado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC/CNPq I. Introdução O câncer de laringe é um dos tumores dos mais comuns na região da cabeça e pescoço, representando cerca de 25% dos tumores malignos que acometem esta área e 2% de todas as doenças malignas (Gonçalves, Menezes et al., 2005). A laringe é responsável por três importantes funções do corpo humano: deglutição, respiração e fonação. Os pacientes com câncer de laringe, mesmo quando submetidos a tratamento, geralmente apresentam comprometimento dessas funções, implicando em uma alteração significativa na sua qualidade de vida. A laringectomia total é o tratamento clássico para o câncer de laringe. A reabilitação da voz dos pacientes laringectomizados totais pode ser realizada a partir de três opções; voz esofágica, prótese traqueo-esofágica e laringe eletrônica. A laringectomia parcial horizontal supracricóidea (LPSC) foi descrita por Piquet e Piquet (1965), baseados numa técnica desenvolvida por Majer e Rieder em 1959. Nos anos 90, Laccourreye e cols, difundiram seu uso para o tratamento do câncer glótico na França e em toda Europa. A LPSC possibilita ao paciente o fechamento da traqueostoma, além de preservar a capacidade de comunicação verbal (Laccourreye, Brasnu et al., 1996). Contudo essa técnica ainda não é completamente aceita devido a sua dificuldade na reabilitação do pacientes operados. Segundo a OMS qualidade de vida é: uma percepção individual da posição do indivíduo na vida, no contexto de sua cultura e sistema de valores, nos quais ele está inserido e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações. Tratase de um conceito de alcance abrangente afetado de forma complexa pela saúde física, estado psicológico, nível de independência, relações sociais e relações com as características do meio ambiente do indivíduo (Focus Group Work, 1993). Até o final dos anos 80, o tratamento do câncer visava maximizar a sobrevida do paciente, dando pouca ênfase ao aspecto psicossocial de cada indivíduo. O impacto do tratamento era avaliado primordialmente através dos dados biológicos do paciente, como tamanho do tumor, estadiamento, controle do crescimento local e sobrevida. Havia pouca preocupação com as conseqüências do tratamento na qualidade de vida do doente. Atualmente o interesse pelos aspectos psicossociais do pacientes tem aumentado e a reabilitação funcional do doente tornou-se fator importante no tratamento dos pacientes oncológicos. Em ensaio a respeito dos questionários disponíveis para avaliar qualidade de vida no início da década de 90, o questionário EORTC QOL C-30 foi citado como um relevante instrumento para avaliar adequadamente a qualidade de vida dos pacientes com câncer. Tem caráter multidimensional e é validado em vários países e culturas,. A associação com o C-30, que é um questionário específico, permite um ótimo balanço entre a generalidade e a especificidade. Além disso, é facilmente auto-aplicado (Bjordal e Kaasa, 1992). Avaliar a percepção de saúde do ponto de vista do paciente permite ao médico escolher um tratamento que vise não somente a sobrevida, mas também atenda as suas necessidades psicossociais, garantindo uma melhor qualidade de vida e uma maior satisfação do paciente com o tratamento. Para isso ser possível é importante haver um atendimento multidisciplinar desse doente, com a presença do cirurgião, oncologista, psiquiatra e outros profissionais da saúde (Hassan e Weymuller, 1993). A literatura ainda é pobre em dados que avaliem de maneira objetiva a qualidade de vida dos pacientes laringectomizados, limitando-se a estudos abertos que analisam simultaneamente procedimentos cirúrgicos em diversas áreas na região da cabeça e pescoço. A maioria dos estudos existentes se baseia unicamente nas respostas dos questionários sobre qualidade de vida e não aborda fatores como ansiedade e depressão, o que pode gerar viés nos resultados da avaliação. Por isso ainda é necessária a realização de estudos que possam avaliar de forma mais fidedigna a qualidade de vida dos pacientes laringectomizados. VI. Objetivo Avaliar a qualidade de vida de pacientes com câncer de laringe, submetidos a tratamento cirúrgico com laringectomia parcial supracricóidea (LPSC) ou laringectomia total (LT) no pós-operatório tardio (acima de seis meses). VII. Casuística e Métodos Consiste em um estudo prospectivo descritivo transversal, no qual foram incluídos 17 pacientes com câncer de laringe submetidos à laringectomia no Hospital Central da Santa Casa de São Paulo Todos os pacientes foram devidamente esclarecidos sobre a pesquisa e concordaram em participar da mesma sob assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, devidamente aprovado pelo comitê de ética da instituição. A qualidade de vida foi pelo questionário auto-aplicável desenvolvido pelo Grupo de Estudo de Qualidade de Vida da European Organization for Research and Therapy of Cancer (Aaronson, Ahmedzai et al., 1993). O protocolo é validado também no Brasil, sendo composto de 30 questões generalizadas (QC-30 versão 3.0) e de 35 questões específicas relacionadas aos sintomas em cabeça e pescoço (H & N – 35 versão 1.0). Foi projetado para avaliar a função física, papel funcional, função cognitiva, função emocional, função social, dor, fadiga, emese e qualidade de vida pela forma de escalas de multi-itens (Bjordal e Kaasa, 1992). Os sintomas de depressão e ansiedade foram avaliados a partir da Escala Hospitalar de Ansiedade e Depressão (Hospital Anxiety and Depression Scale – HAD). A HAD possui sua versão em português validada por Botega e cols., 1995. Foi aplicada uma ficha sócio-demográfica para obter dados sobre idade, gênero, escolaridade, ocupação e informações relativas à doença e tratamento. Todos os pacientes incluídos no projeto foram convidados a participar de uma entrevista particular de duração variável, na qual foram aplicados os questionários supramencionados na presença de um estudante de medicina devidamente treinado. Os pacientes foram divididos em dois grupos segundo o tipo de cirurgia realizada no tratamento do câncer de laringe: O Grupo A (laringectomia total) foi constituído por oito pacientes, sendo um do sexo feminino (12,5%) e sete do sexo masculino (87,5%). A faixa etária mais prevalente foi a de 51 a 60 anos (50%), sendo que, a maioria dos pacientes possuía baixa escolaridade - analfabeta ou 1º grau incompleto - (37,5%), era casado (75%) de religião católica (75%), não trabalhava e recebia auxílio doença (37,5%), morava com a família atual (87,5%) e levou mais de um ano para procurar ajuda médica após o surgimento dos primeiros sintomas (62,5%). A média de idade desse grupo foi de 53 anos. O Grupo B (laringectomia supracricóidea) foi constituído por nove pacientes sendo três do sexo feminino (33,3%) e seis do sexo masculino (66,6%). A faixa etária mais prevalente foi acima dos 51 anos (66,6%), sendo a maioria com o 1º grau completo (33,3%), casado (88,9%) de religião católica (66,7%) e aposentado (66,7%). O tempo para procurar ajuda médica foi de 3 a 6 meses após o aparecimento dos primeiros sintomas (66,7%). Todos os pacientes desse grupo afirmaram morar com a família atual. A média de idade foi de 54 anos. VIII. Resultados Os dados do questionário sócio demográfico não apresentaram diferença estatística significativa entre os grupos. Em relação à avaliação da qualidade de vida, os pacientes submetidos à laringectomia supracricóidea apresentaram uma média da qualidade de vida global significativamente superior que os submetidos à laringectomia total (p=0,013). A média do score funcional dos pacientes que sofreram laringectomia supracricóidea foi estatisticamente maior que a dos pacientes submetidos à laringectomia total (p=0,027), sendo que ao analisar individualmente cada campo funcional do protocolo EORTC QLQ-C30, obtemos um ganho significativo na realização das atividades de lazer e atividades laborativas por parte destes pacientes (p=0,016). Os demais campos funcionais mencionados no EORTC QLQ-C30 scoring manual não apresentaram diferença estatística. Na escala que avalia os sintomas específicos e itens individuais, não houve diferença significativa entre os pacientes de ambos os grupos. No questionário específico para avaliação de sintomas de cabeça e pescoço (H&N35), observamos que os pacientes submetidos à laringectomia total apresentaram uma maior perda sensitiva (p=0,012) e apresentaram maiores dificuldades para estabelecer comunicação com outros indivíduos (p=0,016). Diversos parâmetros encontram-se melhores em pacientes submetidos à laringectomia supracricóidea, contudo sem valor estatístico. O questionário de avaliação de ansiedade e depressão (HAD) apontou dois pacientes ansiosos (25%) e um paciente ansioso e depressivo (12,5%) no Grupo A (LT). No Grupo B (LSC) havia apenas dois pacientes ansiosos (22,2%). Os demais pacientes não apresentaram nenhum dos dois quadros. A análise estatística dos scores obtidos pelo HAD não mostrou nenhuma associação significante com o tipo de cirurgia realizada. IX. Discussão Ao observamos os pacientes com câncer de laringe notamos que existe um perfil comum desses indivíduos em nossa população. São pessoas de baixa renda e baixa escolaridade que possuem grande dificuldade em lidar com seus próprios conflitos, baixa auto-estima utilizando muitas vezes, o álcool e o tabaco como mecanismo de fuga do enfrentamento de seus problemas, podendo manifestar dificuldades nas relações sociais, profissionais e familiares. Isso pode ser um motivo para explicar o baixo score do grupo LT no domínio funcional Lazer e Trabalho e Emocional. Possivelmente os pacientes laringectomizados totais já não trabalhavam antes de se submeterem à cirurgia e após o procedimento apenas a situação se manteve. Em relação ao Lazer e Emocional, os pacientes com câncer de laringe já denotam uma atitude mais resignada frente à vida, sendo mais passivos (Santos, 2004; Barbosa et al, 2004). Tais aspectos podem resultar em uma diminuição e ausência no interesse pela busca da felicidade e bem estar emocional, o que pode estar refletido nos baixos scores encontrados nesses domínios. Apesar disso, ao avaliarmos as variáveis sócioeconômicas dos dois grupos abordados nesse estudo (LT e LSC) observamos que não há diferença estatística significativa entres eles, o que nos permite inferir que ambos os grupos são constituídos de indivíduos provenientes da mesma população. Quando comparamos os resultados dos scores obtidos no grupo LT com os do grupo LSC observamos que o domínio funcional Lazer e Trabalho obteve um score significativamente inferior no grupo LT, o que de certa forma nos faz acreditar que o baixo score encontrado não se deve somente pelos motivos populacionais citados acima, mas que o procedimento empregado (laringectomia total) também influenciou nos baixos valores encontrados. O sintoma mais importante apresentado no grupo LT foi a dificuldade na comunicação. Esse resultado concorda com os dados presentes na literatura, que apontam a comunicação como a função mais prejudicada após laringectomia total (Ackerstaff, Hilgers et al., 1994; Vilaseca, Chen et al., 2006). A LT resulta em um traqueostoma definitivo o que, praticamente inviabiliza uma qualidade de voz próxima da normalidade. Das opções atualmente disponíveis, a prótese traqueo-esofágica é a única que permite ao paciente obter uma voz mais próxima do normal, no entanto seu custo é alto no nosso meio, inviabilizando seu uso mais corriqueiro. A laringectomia parcial supracricóidea pode ser considerada uma técnica relativamente recente, ao observamos a literatura notamos que ainda há uma escassez de estudos que avaliem a qualidade de vida dos pacientes submetidos a esse tratamento. A LSC permite ao paciente uma reabilitação vocal com qualidade de voz mais próxima da normalidade, além do traqueostoma não definitivo, preservando a aparência do paciente. A LSC requer um processo de reabilitação mais longo, cujo resultado depende muito da adesão do paciente e sua capacidade cognitiva para executar os comandos necessários para as manobras de deglutição e fonação. Os sintomas mais importantes apresentados no grupo LSC foram Saliva Pegajosa e Dificuldade Financeira. Parece que o score sintomático elevado para Saliva Pegajosa no grupo LSC deve-se principalmente ao fato da diminuição dos demais sintomas e não propriamente devido ao aumento do sintoma de saliva pegajosa. Apesar dos pacientes com câncer de laringe possuírem em geral um perfil socioeconômico comum, como discutido anteriormente, ainda podemos observar uma pequena diferença entre o grupo submetido à LSC e o grupo submetido à LT. Em média, o tempo para procurar ajuda médica foi inferior no grupo LSC (3 a 6 meses) em comparação com o grupo LT (>1 ano), apesar desse dado não ter sido significativo estatisticamente (p=0,110). Isso denota um maior auto-cuidado no campo da saúde, o que talvez influencie em uma maior busca por qualidade de vida e isso pode estar se refletindo no ganho observado em praticamente todos os domínios avaliados. Além disso, os pacientes incluídos em nosso estudo tiveram uma adesão de 100% ao tratamento de reabilitação e por isso puderam gozar plenamente dos benefícios oferecidos por esse tipo de cirurgia (melhor qualidade vocal e ausência do traqueostoma). Esses fatores certamente influenciaram na melhoria da qualidade de vida global, que apresentou valor superior estatisticamente significativo no grupo de LSC em comparação ao grupo de LT (p=0,012). No questionário geral (QLQ C30) o grupo de LT obteve uma perda significativa no domínio funcional Lazer e Trabalho quando comparado ao grupo de LSC (p=0,016). Os pacientes submetidos à LT possuem uma pior qualidade de voz, em relação aos pacientes submetidos à LSC e conseqüente dificuldade na comunicação, o que dificulta a adaptação e interação no meio de trabalho. Além disso, existe a questão estética, a laringectomia total deixa no paciente laringectomizado o estigma da traqueostomia definitiva, gerando dificuldade de aceitação no meio de convívio tanto no trabalho como em locais públicos, como já descrito por Barbosa et al. (2004). A auto-imagem do paciente torna-se prejudicada por esses fatores, gerando desestímulo na busca de atividades prazerosas e, de certa forma, conformismo com a situação estabelecida. No questionário específico (QLQ C30 H&N-35) os pacientes do grupo de LT tiveram um índice de queixa sensitiva significativamente superior que no grupo de LSC (p=0,016). A quase total perda do olfato e, conseqüente prejuízo do paladar deve ser a principal causa da diminuição da sensibilidade no grupo de LT. É importante ressaltar que nosso estudo utilizou no grupo de LT apenas os pacientes considerados “bons falantes” na avaliação fonoaudióloga. Dessa maneira tentando minimizar ao máximo o viés da qualidade de reabilitação, viabilizando a comparação entre os grupos. IX. Conclusão A qualidade de vida dos pacientes estudados mostrou-se boa em ambos os grupos, com ligeira vantagem para a larigectomia supracricóidea. X. Bibliografia Aaronson, N. K., S. Ahmedzai, et al. The European Organization for Research and Treatment of Cancer QLQ-C30: a quality-of-life instrument for use in international clinical trials in oncology. J Natl Cancer Inst, v.85, n.5, Mar 3, p.365-76. 1993. Ackerstaff, A. H., F. J. Hilgers, et al. Communication, functional disorders and lifestyle changes after total laryngectomy. Clin Otolaryngol Allied Sci, v.19, n.4, Aug, p.295-300. 1994. Bjordal, K. e S. Kaasa. Psychometric validation of the EORTC Core Quality of Life Questionnaire, 30-item version and a diagnosis-specific module for head and neck cancer patients. Acta Oncol, v.31, n.3, p.311-21. 1992. Focus Group Work. Quality of Life Group (WHOQOL). World Health Organization – WHO. 2007 1993. Gonçalves, A. J., M. B. Menezes, et al. Câncer de laringe. In: (Ed.). Clínica e Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Ribeirão Preto: Tecmedd Editora, 2005. Câncer de laringe, p.243 Hassan, S. J. e E. A. Weymuller, Jr. Assessment of quality of life in head and neck cancer patients. Head Neck, v.15, n.6, Nov-Dec, p.485-96. 1993. Kaasa, S. Measurement of quality of life in clinical trials. Oncology, v.49, n.4, p.289-94. 1992. Vilaseca, I., A. Y. Chen, et al. Long-term quality of life after total laryngectomy. Head Neck, v.28, n.4, Apr, p.313-20. 2006.