Redefinições da noção de “cultura” e o surgimento de novos sujeitos na política cultural brasileira1 Lorena Avellar de Muniagurria (USP/SP) Resumo: Proponho uma análise da III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba/PR realizada em 2011. Conferências de cultura acontecem hoje em um novo contexto nacional para as políticas públicas culturais: desde os governos Lula, seguindo uma tendência internacional, o MinC reestruturou-se a partir de uma redefinição da noção de cultura, que passou a ser associada a termos como diversidade, cidadania, democracia e direito, e não apenas a belas artes, elite ou saberes universais. Abriu-se então espaço para novos sujeitos políticos na cultura. Um dos casos mais visíveis é o das chamadas culturas populares, que foram objeto de programas específicos do Ministério (como o Cultura Viva) e que desde 2007 é um dos nove setores do Conselho Nacional de Políticas Culturais. Contudo, esse entendimento e o consequente reconhecimento de novos atores não estão consolidados. A Conferência aqui discutida é um caso que torna isso visível, pois houve tanto a reivindicação, por uns, da garantia de espaços para as culturas populares quanto um questionamento, por outros, sobre a legitimidade desses sujeitos serem realmente “sujeitos culturais” e de terem direito a reivindicar recursos e direitos no marco das políticas culturais. A partir de uma etnografia dessa Conferência, proponho estudar alguns usos e reelaborações das noções de “cultura” e “política” e iniciar uma reflexão sobre os modos como essas pessoas se constroem enquanto atores individuais e coletivos de uma política cultural. Palavras-chave: política cultural, conferências municipais de cultural, noção de cultura 1. Introdução: Reestruturação do MinC e redefinições da noção de cultura Neste artigo, apresento uma análise preliminar sobre a III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba/PR. Trata-se de uma etnografia ainda em curso que integra uma pesquisa maior sobre políticas culturais no Brasil contemporâneo e sobre a reestruturação pela qual o Ministério da Cultura (MinC) passou durante os governos Lula (2003-2010), com as gestões dos ministros Gilberto Gil (2003-2006) e Juca 1 Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. 1 Ferreira (2007-2010).2 Essa reestruturação, que implicou em profundas mudanças institucionais, é um processo muito complexo que não pode ser devidamente tratado no espaço aqui disponível, mas do qual é importante destacar dois aspectos para a compreensão do papel e dos significados que as conferências de cultura assumem hoje. O primeiro aspecto refere-se à construção do que é apresentado pelo MinC como uma “verdadeira” política pública nacional para a cultura. As inovações no ministério corresponderam a um esforço de institucionalização de políticas do setor em nível nacional: um Sistema Nacional de Cultura, que articulasse e integrasse as ações existentes nos três níveis federativos. A construção dessa política pública seguiu um modelo proposto no Brasil desde a Constituição de 1988 e já estabelecido em outras áreas (como saúde, educação, assistência social, entre outras), pautado pela busca da democratização do Estado e com previsão de espaços participativos e descentralizados abertos à sociedade civil (Dagnino: 2002; Gohn: 2001; Tatagiba: 2010). Representantes do MinC enfatizam a participação popular em todo esse processo, e os dois exemplos mais referidos são a construção do Plano Nacional de Cultura (PNC) e o Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC).3 O segundo aspecto é que essa reestruturação está associada a uma redefinição do entendimento de cultura. Nos discursos oficiais do MinC, ela é apresentada como resultado de uma ampliação e redefinição dessa noção: para além do sentido restrito e tradicional que associa o termo às belas artes e à cultura erudita, a partir da gestão Gil, o MinC define cultura como tendo três dimensões básicas: cidadã, econômica e simbólica, “adotando uma abordagem antropológica abrangente” (MinC: 2007, 12). O que significa tal afirmação? Qual imagem se fazia ali da Antropologia e que noção de cultura lhe era atribuída? Além disso, se a atuação do MinC passou a ser partilhada com outros grupos da sociedade, haveria o confronto de entendimentos de cultura. Quais eram, e como foram acionados nesses espaços participativos criados pelo governo? E como tamanha diversidade é articulada? Longe de procurar uma definição absoluta ou imaginar que desse processo negociado tenha resultado um consenso, o que 2 Trata-se do projeto de doutorado intitulado “O Plano Nacional de Cultura e a política cultural no Brasil contemporâneo”, desenvolvido por mim no PPGAS/USP, sob orientação da Profa. Dra. Fernanda Peixoto e com apoio da FAPESP. 3 O PNC é um plano plurianual, proposto como mecanismo de planejamento de médio e longo prazo das políticas para a cultura. Ele estabelece estratégias, objetivos e diretrizes para as políticas do setor, com vigência de dez anos. Previsto na Emenda Constitucional nº 48 de 2005, o PNC foi instituído em 2 de dezembro de 2010 pela Lei 12.343 de 2 de dezembro de 2010 (PNC: 2011), e sua implementação está ainda em curso. O CNPC é um órgão colegiado do MinC, sobre o qual escreverei mais adiante. 2 me interessa é dar um ponta-pé inicial na analise de um campo semântico e de ação dentro do qual diferentes compreensões do termo cultura se fazem presentes. A problemática apontada ganha corpo na complexidade e na centralidade que essa categoria assume na vida contemporânea. Se ela e a política sempre estiveram relacionadas, a partir dos novos movimentos sociais surgidos na década de 1970, esse casamento se estreitou e reivindicações políticas passaram a ser, cada vez mais, baseadas em princípios e identidades consideradas “culturais” (Bayardo: 2005; Canclini: 1987; Carneiro da Cunha: 2009; Goldman: 2009; Rubim: 2006). Não se trata apenas de uma crescente associação entre cultura e política, como alguns apontam; trata-se da construção de um novo campo semântico para a cultura. Sabe-se que a redefinição da noção de cultura e a discussão sobre as relações entre diversidade cultural, cidadania e democracia é um processo já antigo, que remonta pelo menos ao segundo pós-guerra mundial, quando a necessidade de convivência pacífica entre povos distintos passou a ser discutida por agências internacionais como a Unesco. Desde então, o Brasil tem tomado parte dessa discussão, muitas vezes de forma pioneira.4 Dois importantes marcos desse processo foram a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2001, e a Convenção Internacional Sobre a Diversidade Cultural, aprovada em 2005, em Conferência na qual o Brasil desempenhou um importante papel (Barbalho: 2007; Rubim: 2007). Nesse contexto, cultura passa a ser associada à diversidade cultural, cidadania, democracia e direito, e não mais às belas artes, elite, privilégios ou saberes universais. Vemos que a reestruturação do MinC e o surgimento de espaços participativos como os conselhos de políticas culturais para a cultura não podem ser dissociados desse contexto nacional e internacional de redefinição da categoria cultura e tampouco dos movimentos de politização da mesma. Trata-se de um ponto central: se cultura hoje é importante a ponto de ser base para reivindicar direitos, é fundamental conhecer suas acepções. Assumo que o sentido das categorias não pode ser adequadamente apreendido a partir de generalizações, apenas em usos específicos, pois sentidos são construídos na prática, através das ações concretas e situacionais dos atores sociais (De Certeau: 2000; Herzfeld: 2001 e 2008; Sahlins: 2007 e 2008). O exercício aqui proposto é justamente 4 Logo após a Segunda Guerra Mundial, preocupada em favorecer o entendimento entre povos diferentes, a Unesco recomendou a criação de órgãos responsáveis pelo estudo da cultura e do folclore. O Brasil foi o primeiro país em atender a esse pedido, com a criação da Comissão Nacional do Folclore em 1947 (Cavalcanti e Vilhena: 1990). 3 uma oportunidade para apreender, a partir de um caso concreto, construções particulares dos sentidos de cultura. 2. Relação Estado e Cultura no Brasil: Conselhos e Conferências na área da cultura A relação entre Estado e cultura no país não é recente, remontando pelo menos à transferência da corte portuguesa para o Brasil (Botelho: 2007). Apesar de haver quem defenda o Segundo Império como momento inaugural das políticas culturais brasileiras (Souza: 2000), a maioria dos autores afirma que isso só se deu no século XX. Esse recorte histórico resulta de uma prévia delimitação conceitual: política cultural é entendida aí como conjunto de ações elaboradas e implementadas de maneira articulada e sistemática (Barbalho: 2007; Botelho: 2007; Calabre: 2007, 2009; Canclini: 1987; Coelho: 1997; Rubim: 2006 e 2007). Os momentos comumente destacados como mais relevantes nessa história são: o período Vargas (1930-1945), o regime ditatorial civil-militar (1964-1985), os governos de FHC (1994-2002) e as gestões Lula (2003-2010). Os dois primeiros foram ocasiões de forte presença do Estado no campo da cultura, com a criação de diversas instituições e projetos, mas com um caráter autoritário e conservador (Barbalho: 2007; Botelho:2007; Cohn: 1984; Miceli: 1984; Ortiz: 1985). O terceiro, foi de caráter neoliberal, observando-se ali a diminuição da presença do Estado na elaboração e no financiamento de políticas para a cultural e o predomínio de leis de incentivo fiscal e ações da iniciativa privada (Calabre: 2009). O quarto e último corresponde à retomada da presença do Estado no campo cultural e à mencionada reestruturação do MinC. O quadro geral das políticas culturais no Brasil, portanto, é o de frequentes autoritarismos, instabilidades e instrumentalização da cultura pelo Estado. É em relação a esse tipo de leitura que as gestões do governo Lula passam a ser vistas, por muitos, como inovadoras. Os pesquisadores são cautelosos em afirmar se tratar de uma ruptura, mas são unânimes em dizer que há mudanças: passagem do foco da cultura erudita e de elite para dimensões mais amplas; valorização da diversidade; proposição de cultura como direito e cidadania; surgimento de espaços participativos e institucionalização efetiva de um sistema nacional de políticas culturais (Barbalho: 2007; Botelho: 2007; Calabre: 2007 e 2009; Rubim: 2006 e 2007). 4 A reestruturação do MinC durante os governos Lula correspondeu a uma série de inovações, incluindo reformas institucionais, criação de novos projetos e programas e instauração de espaços participativos para consulta à sociedade civil. O foco, neste artigo, é em relação aos espaços participativos criados: o Conselho Nacional de Políticas Culturais, seus Colegiados Setoriais e toda uma rede, ainda em construção, de conselhos estaduais e municipais de cultura, aos quais estão associadas as diversas conferências de cultura. Nesse sentido, é fundamental destacar que, se há registro da existência de conselhos e de conferências na área cultural desde o período da ditadura civil-militar (Calabre: 2010; Cohn: 1984; Gohn: 2001; Miceli: 1984; Rubim: 2010; Tatagiba: 2010), há de se considerar a especificidade e o novo papel desses espaços na atualidade. Os conselhos e conferências de então eram integrados por poucos, em geral “notáveis” escolhidos diretamente pelo chefe do executivo, sem portanto contarem com participação popular. Segundo Tatagiba, a Constituição de 1988: … redefine a posição e função dos conselhos a partir de uma nova arquitetura jurídica-política que lhes conferiria maior legitimidade, força e permanência. Nessa fase – na qual nos encontramos – os conselhos apresentam-se como peças centrais no processo de reestruturação das políticas, legitimados pelos novos princípios constitucionais da participação e da descentralização políticoadministrativa. (Tatagiba: 2010, 30. Destaques meus). Diferente dos casos exemplares das áreas da saúde, da criança e do adolescente e da assistência social (que já possuem duas décadas de experiência em espaços participativos), na cultura, a criação de conselhos gestores e a realização de conferências com ampla participação da sociedade civil é recente. O Conselho Nacional de Políticas Culturais, órgão colegiado integrante da estrutura básica do MinC, foi reestruturado em 2005 e passou desde então a representar a instância máxima dos espaços participativos associados a esse Ministério. A metodologia de escolha de delegados para o CNPC garante, em boa medida, uma diversidade de atores, dada em pelo menos três eixos: geográfico, grau de institucionalização do grupo representado e setor cultural. Há representantes das diferentes regiões e estados do país, de grupos mais ou menos institucionalizados (associações oficiais de classes artísticas, grupos comunitários, movimentos culturais e artísticos não institucionalizados, etc.) e dos nove setores hoje presentes como Colegiados Setoriais no CNPC – eles são: Artes visuais; Circo; Culturas indígenas; Culturas populares; Dança; Literatura, livro e leitura; Moda; Música; Teatro.5 5 Os Colegiados Setoriais são órgãos consultivos ligados ao Conselho Nacional de Política Cultural. 5 A primeira conferência de cultura nacional que previa participação popular foi a chamada I Conferência Nacional de Cultura, que aconteceu em Brasília, em dezembro de 2005, após uma série de conferências e encontros preparatórios realizados em diferentes estados brasileiros. A segunda, aconteceu em maio de 2010, na mesma cidade (CNPC: 2011a). Nos níveis estaduais e municipais, as experiências são diversas mas, de modo geral, a criação de conselhos e a realizações de conferências municipais e estaduais seguiu-se à reestruturação do MinC, visando poder inserir as unidades da federação no recém-criado Sistema Nacional de Cultura.6 Para Curitiba e Paraná, foi esse o caso. No estado, esse processo é tardio e extremamente recente, ainda não tendo sido assinado o pacto federativo: o recém criado Conselho Estadual de Cultura foi instituído em janeiro deste ano, e a primeira conferência estadual acontecerá de maneira descentralizada entre os meses de maio e junho.7 Já no nível municipal, vemos que Curitiba envolveu-se desde um início no processo de implantação do Sistema Nacional de Cultura: a primeira conferência de cultura aconteceu em outubro de 2005, sendo uma etapa preparatória da I Conferência Nacional de Cultura; o Conselho Municipal de Curitiba foi criado em 2006, através de lei que também oficializa a Conferência Municipal de Cultura (CTBA: 2012). A segunda conferência municipal, por sua vez, aconteceu em setembro de 2009, também como etapa preparatória para a II Conferência Nacional. Como veremos adiante, diferente do caso da III Conferência de cultura da cidade, as duas primeiras tiveram suas pautas e os eixos temáticos definidos pelo MinC, sendo isso mais um exemplo de que o processo de constituição de espaços participativos para as políticas públicas em cultura nos municípios brasileiros foi uma resposta à iniciativa do governo federal, e que seguiu Eles substituíram, em 2007, as antigas Câmaras setoriais. Ainda não pude verificar os motivos da mudança de nomenclatura, apenas que, junto a essa alteração, o número de setoriais foi ampliado, de seis câmaras para nove colegiados. As seis câmaras eram: Artes visuais; Circo; Dança; Livro e leitura; Música; e Teatro. 6 A inserção no Sistema Nacional de Cultura pressupõe a assinatura de um pacto federativo. É corrente falar-se no “CPF da cultura”, requisitos para a integração ao sistema: possuir Conselho, Plano e Fundo de cultura (municipais ou estaduais, conforme o caso). Além disso, deve-se realizar Conferências estaduais e municipais (ou regionais, em alguns casos, congregando a discussão de várias cidades) de maneira regular – usualmente bianualmente. 7 Até junho de 2010, Paraná, Minas Gerais e Rondônia eram os únicos estados da União que ainda não haviam criado seus Conselhos Estaduais de Cultura e, com isso, corriam o risco de ficarem excluídos do Sistema Nacional de Cultura e, portanto, de não receber repasses de verbas federais para a área (MinC: 2012). O Conselho Estadual de Cultura do Paraná foi criado pela Lei nº 17063 , de 23 de janeiro de 2012 (PR: 2012a). Para detalhes sobre a Conferência Estadual de Cultura, ver: (PR: 2012b). Cabe ressaltar que a criação do Conselho Estadual não é resultado apenas da pressão do governo federal, pois, há anos, o Paraná conta com um movimento de artistas, produtores e gestores culturais que demandavam a criação do conselho. 6 os moldes por ele pautados. Retomando o fio da meada: ao pensar a relação entre Estado e cultura no Brasil, a importância de destacar essa nova configuração dos conselhos e das conferências em cultura está associada ao espaço que ali se abriu para novos sujeitos políticos na cultura, o não pode ser desvinculado da redefinição e ampliação do conceito de cultura que esteve na base de toda a reestruturação pela qual o MinC passou. Como já referi anteriormente, é necessário pensar no campo semântico dentro do qual a noção de cultura ganha hoje significado: a criação de espaços participativos, a ampliação do conceito cultura e o surgimento de novos sujeitos culturais no cenário brasileiro são fenômenos associados, que têm por contexto mais geral o debate nacional e internacional acerca de cultura, cidadania, diversidade e direitos. Fala-se em novos sujeitos culturais porque há atividades que passam a ser consideradas cultura; seus realizadores passaram a ser reconhecidos oficialmente (nos discursos e práticas do MinC) como fazedores de cultura e, portanto, como atores legítimos dos espaços de discussão política da cultura. Vemos que, na referida reestruturação do Ministério da Cultura, esse é um processo que se deu tanto em termos conceituais quanto institucionais: à redefinição do conceito correspondeu a criação de novos espaços institucionais e de toda uma nova linha de programas do ministério visando apoiar os fazeres artísticos e culturais desses novos sujeitos culturais. Um dos casos mais visíveis dessa emergência de novos atores é o das chamadas Culturas populares, que foram objeto de ações específicas do Ministério (como o famoso Cultura Viva e seus Pontos de Cultura) e que desde 2007 é um dos nove setores do Conselho Nacional de Políticas Culturais, junto com o também novo setor de Culturas indígenas e Moda. Ou, seja, a ampliação da noção de cultura é desdobrada na institucionalização de novas áreas como cultura. Não mais apenas as clássicas linguagens artísticas – música, dança, artes visuais, literatura, teatro ... – são reconhecidos oficialmente pelo Estado como cultura e merecem atenção e recursos do MinC: grupos e projetos associados à cultura digital, à mobilidade urbana e ciclismo, a grupos quilombolas, a associações de bairros e outros exemplos dos mais diversos também são cultura, também podem se inscrever em editais do Ministério, também podem e devem estar presentes nos espaços institucionais de discussão das políticas públicas para o setor. 7 Contudo, esse entendimento e o consequente reconhecimento de novos atores não estão consolidados. A III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba, aqui discutida, é um caso que torna isso visível. Nela houve tanto a reivindicação, por uns, da garantia de espaços para as culturas populares quanto um questionamento, por outros, sobre a legitimidade desses sujeitos serem realmente “sujeitos culturais” e de terem direito a reivindicar recursos e direitos no marco das políticas culturais. 3. A III Conferência Municipal de Cultura A III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba (CMC) foi realizada em 17 e 18 de dezembro de 2011 e teve por tema “Políticas Públicas para a Cultura e Economia Criativa”. Ela esteve dividida em seis eixos temáticos que, veremos, foram um dos focos de discussão e divergência logo no início da conferência. Eles eram: Quadro 1. Eixos temáticos da III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba: Patrimônio natural e cultural: - Museus - Sitios Históricos e arqueológicos - Paisagens culturais - Patrimônio natural Espetáculos e celebrações: - Artes de espetáculos - Festas e festivais - Feiras Livros e periódicos: - Livros - Jornais e revistas - Outros materiais impressos - Bibliotecas (incluindo virtuais) - Feiras do livro Audiovisual em mídias interativas: - Cinema e vídeo - TV e rádio (incluindo internet) - Internet podcasting - Videogames (incluindo online) Artes visuais e artesanato: - Pintura - Escultura - Fotografia - Artesanato Design e serviços criativos: - Design de moda - Design gráfico - Design de interiores - Design paisagístico - Serviços de arquitetura - Serviços de publicidade Fonte: Site da III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba (CMC: 2011a) Sendo obrigatória a escolha por um dos eixos já no momento da inscrição, optei por participar do Espetáculos e celebrações, posto que a maior parte de minhas relações no cenário cultural de Curitiba são da dança e do teatro e isso poderia ajudar a situar-me melhor nas discussões que viessem a acontecer ali. A programação do encontro previa: na manhã do primeiro dia, falas oficiais e uma palestra sobre economia criativa; na tarde do primeiro dia, discussões nos seis eixos, dos quais deveriam resultar uma lista de seis diretrizes por setor; na manhã do segundo dia, plenária geral para aprovação das diretrizes tiradas em cada eixo temático e moções. Cada eixo contava com um relator, indicado já pela comissão organizadora, e devia escolher um coordenador que organizasse os trabalhos. Com pequenas alterações 8 – alguns atrasos e a discussão sobre o regimento interno com a plenária geral no início da tarde de sábado, antes das discussões por eixos – a programação foi seguida. Apresento, a seguir, a análise de dois pontos importantes. Primeiramente, de que há uma série de divergências sobre a natureza e o significado de eventos desse tipo, pois os diferentes sujeitos nele envolvidos participam a partir de perspectivas e interesses muito diversos. O segundo, que, mesmo que conferências e conselhos possuam seus limites e possam ser considerados por muito como meros espaços figurativos, a partir deles é possível acessar uma série de relações, conflitos e tensões existentes no campo em questão. 3.1. Os objetivos da III Conferência Municipal de Cultura – ou, sobre os múltiplos significados da conferência Algo que fala muito desses novos espaços participativos e institucionais que são as conferências é o fato de haver uma série de divergências sobre o que eles são e para que servem. No caso específico da III Conferência de Curitiba, algumas dessas divergências são pequenas e, talvez, não muito relevantes – por exemplo, o fato de diferentes documentos apontarem como realizadores, ora, apenas a Fundação Cultural de Curitiba (FCC) – entidade responsável pelas políticas municipais de cultura e que equivale a uma secretaria municipal da área – e, ora, a Fundação e o Conselho Municipal de Cultura.8 Outras, são mais significativas: penso, aqui, nos diferentes entendimentos acerca de quais eram os objetivos específicos dessa conferência. Tentar identificar esses objetivos permite perceber que, para compreender adequadamente as conferências, não podemos nos limitar às visões e documentos oficiais: elas mesmas são diversas, chegando as vezes até a serem divergentes. Quando somamos a essa equação a perspectiva dos diversos participantes da sociedade civil evidencia-se que, de fato, não se pode falar no singular de um encontro desse tipo. Há 8 A questão pode corresponder apenas a conotações diferenciadas entre “realizar” e “organizar”, mas o fato é que, passando dos documentos escritos oficiais para os espaços presenciais de realização da conferência, o Conselho passa a ser cada vez mais destacado como um realizador. Na portaria nº 159/2011 da FCC, que institui e convoca a III Conferência, figura que a Conferência seria “realizada” pela Fundação. Na portaria nº 160/2011, que designa os membros da comissão “organizadora” da Conferência, e também no site oficial do evento, há menção a nomes que integram o Conselho Municipal de Cultura sem, contudo, haver nenhuma referência explícita ao Conselho e tampouco a indicação de que essas pessoas eram delegados. Já durante a realização do encontro, tanto a carta de recepção assinada pela Comissão Organizadora distribuída aos participantes quanto as falas oficiais mencionam que a Conferência foi “organizada e realizada” pelo Conselho Municipal de Cultura e pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC: 2011a; CMC: 2011a). 9 de se reconhecer a existência de várias perspectivas sobre a natureza desse espaço e, por correspondência, de diferentes expectativas e modos de participação. No caso da III Conferência Municipal de Curitiba, os documentos oficiais e escritos possuem profundas discordâncias em relação aos objetivos elencados. Seguindo uma ordem cronológica de geração dos documentos, encontramos: 1. Portaria nº 159/2011 da FCC, que institui e convoca a III CMC: dispõe, em seu artigo 3º, que a conferência “desenvolverá seus trabalhos a partir do tema geral 'Políticas Públicas para a Cultura e Economia Criativa'.” (FCC: 2011a) 2. Regimento interno da III Conferência Municipal de Cultura: no artigo 3º, aponta nove objetivos diversos para a conferência (FCC: 2011b). 3. Site oficial do evento: na sessão de apresentação “O que é”, a única indicação, apresentada como “objetivo principal”, corresponde a uma transcrição do oitavo objetivo presente no Regimento: “... apresentar sugestões para a elaboração, implementação e acompanhamento do Plano Municipal de Cultura e recomentar metodologias de participação, diretrizes e conceitos para subsidiar a sua elaboração” (CMC: 2011a). 4. Carta de recepção aos participantes da Conferência, integrante do material distribuído aos participantes na abertura evento: menciona que a temática da conferência foi definida localmente pelo Conselho Municipal de Cultura e que ela foi pautada “em duas perspectiva principais: a elaboração do Plano Municipal de Cultura e a criação, pelo Ministério da Cultura, da Secretaria de Economia Criativa”, o que corresponde aos objetivos VIII e IX descritos no regimento da Conferência (CMC: 2011b). O mais incrível é que, apesar dessas divergências terem profundas implicações para as metodologias de trabalho a serem adotadas durante a conferência, a maioria dos presentes – inclusive dos organizadores – não pareciam perceber o fato. Afinal, qual o documento final que cada eixo deveria produzir? Suas sugestões para o Plano Municipal, ou uma síntese do debate sobre os nove aspectos elencados no Regimento? No eixo no qual participei, Espetáculos e celebrações, levantei a questão: qual era o objetivo? Havia uma centralidade em levantar diretrizes para o Plano, ou não? A relatora entendia que, sim, o foco era o Plano municipal. Contudo, a maioria dos presentes pensava que ali era um espaço para discutir, de modo geral, reivindicações para “o 10 setor”. E vale ressaltar que apesar dos eixos terem sido pensados como fóruns amplos e transversais, na prática, muitos deles resultaram em grupos de discussão de uma linguagem artística. No eixo em que participei, as discussões foram conduzidas em grande medida como se se tratasse de um setor de artes cênicas ou performáticas, pois a maioria dos presentes eram da dança ou do teatro. Enfim, pelo menos nesse eixo, os trabalhos prosseguiram com cada um tendo em mente ideias diferentes sobre qual era o objetivo oficial daquele evento. E o resultado final – que precisava ser encaixado em uma lista de apenas seis diretrizes por cada eixo – foi a colagem de intervenções sumamente diversas: testemunhos, queixas, pequenos discursos de políticos que queriam marcar sua presença na conferência, e reivindicações que iam desde propostas e questões pontuais até outras mais gerais para o conjunto das políticas municipais em cultura. 3.2. Novos sujeitos políticos nas políticas públicas para a cultura e disputas na III Conferência Municipal de Cultura de Curitiba Comentei que na III Conferência de Curitiba emergiram conflitos protagonizados por representantes dos setores da chamada cultura popular, e que houve tanto reivindicações, por uns, da garantia de espaços para as culturas populares quanto um questionamento, por outros, sobre a legitimidade desses sujeitos serem realmente “sujeitos culturais” e de terem direito a reivindicar recursos e direitos no marco das políticas do setor. Do que pude observar, essas tensões se fizeram presentes de maneira mais explícita apenas na abertura da conferência e, principalmente, no seu encerramento – momentos em que a plenária geral estava reunida. No eixo temático que acompanhei, Espetáculos e celebrações, houve algumas menções ao tema, mas a questão não chegou a se mostrar como um conflito, e a impressão era a de que muitos dos participantes não chegavam a situar essa discussão, sumamente presente e atual em nível nacional, do reconhecimento das culturas populares como cultura nas políticas culturais. Não posso comentar sobre os outros cinco eixos pois não pude acompanhá-los. Para entendermos parte da tensão que envolve a questão das culturas e grupos populares em Curitiba, há de se considerar o imaginário dessa cidade. Ela se pensa e se apresenta como modelo: modelo de gestão pública em diversos setores (como seu sempre referido sistema de transporte público), de ensino público (o melhor dentre os 11 municípios brasileiros), de civilidade, de educação, de cultura etc, estando essas qualidades e toda a imagem da cidade quase sempre associadas à alardeada origem europeia de sua população. Em resumo, um povo “culto” e “educado”. Contudo, ela é considerada por muitos como uma cidade marcada por um pensamento elitista e excludente, pautado por uma visão de alta cultura que termina por negar como parte da cidade diversos aspectos que não condizem com essa autoimagem tão propagada: a população negra, as periferia, entre outros, seriam excluídos. Essas críticas estiveram fortemente presentes no trabalho de campo que realizei até o momento: apesar de a cidade possuir um conjunto invejável de aparatos culturais públicos e um Fundo Municipal de Cultura que viabiliza a realização de diversos projetos artísticos e culturais, muitas pessoas que conheci questionam que a maior parte das ações privilegiariam uma noção restrita de cultura e seriam frequentemente implantadas de cima para baixo, sem grande abertura para discussões com a sociedade civil e, principalmente, com “populares”. A III Conferência municipal de cultura deixou transparecer um pouco dessa invisibilidade de certos grupos e de suas práticas culturais. Ela foi uma conferência, segundo tudo indica, realizada às pressas, tendo todo o seu processo de organização acontecido em apenas um mês e a divulgação iniciado com cerca de duas semanas de antecedência. Diversos participantes diziam que a Fundação Cultural apenas estava realizando o evento para cumprir com exigências legais – segundo a lei que estabelece as conferências municipais, elas devem ser bianuais – mas que não havia se organizado e, por isso, o atraso. Mesmo assim, na manhã do sábado 17 de dezembro – último fim de semana antes do Natal daquele ano – contei cerca de 300 pessoas no ato de abertura e, na plenária de encerramento, realizada no domingo 18, umas 130.9 Em sua maioria, eram artistas e produtores culturais, e a presença de pessoas que se consideravam ou eram reconhecidas como “populares” poderia dizer-se praticamente nula. Alguns comentavam nos corredores que provavelmente a Fundação não esperava – e, na verdade, não queria – um público tão numeroso dado o pouco tempo de divulgação e o atarefado período do ano escolhido. Parte dos presentes entendia a divulgação tardia como um mecanismo para esvaziar a 9 Essa contagem inclui as pessoas presentes no auditório, mas é importante considerar que a presença não era restrita aos credenciados, apenas o voto. Segundo a Ata da Conferência, houve 429 inscritos, entre credenciados e não credenciados. Ainda segundo esse documento, no dia 17 houve 171 participantes e, no 18, 140 participantes. O documento não especifica se esses últimos números são de credenciados ou não (CMC: 2012a). 12 Conferência; e a presença de um número de participantes considerado alto era mencionada como uma pequena vitória, demonstração de força e interesse das pessoas. Logo na abertura, surgiram as tensões. No dia anterior, ocorrera uma Conferência independente, que preparou uma carta de repúdio à Conferência oficial (CMC: 2012b). Eu não soube a tempo desse encontro alternativo, mas posteriormente pude mapear que ele foi iniciativa de integrantes de um grupo bastante atuante na cena das políticas culturais do município e do estado do Paraná, que tem pressionado o poder público em pró do sistema estadual de cultura. Algumas delas estão diretamente vinculadas a grupos, movimentos e ongs que trabalham com a temática das culturas populares. Além da distribuição dessa carta de repúdio, várias dessas pessoas se inscreveram para falar na abertura, após as falas oficiais, e levantaram os principais pontos de crítica à III Conferência. Eles eram: (i) a realização “a toque de caixa” da conferência, sem o devido tempo e espaço de preparação, discussão e articulação da sociedade civil; (ii) a nova divisão por eixos adotada nessa III Conferência; (iii) a reivindicação de que o regimento interno do evento fosse submetido a aprovação da plenária geral; (iv) a pouca efetividade e a falta de continuidade dos espaços participativos (queixavam-se da “falta de estrutura básica de funcionamento” do Conselho Municipal e de que as resoluções da última conferência não haviam sido divulgadas junto aos materiais de referência para a III Conferência) (CMC: 2012b). A discussão inicial foi grande, principalmente em torno de procedimento, exigido por alguns, de submeter o regimento interno à plenária. A metodologia inicialmente proposta previa que, já no fim da primeira manhã, a plenária se dividisse nos respectivos eixos temáticos. Dois eram os principais argumento em favor da submissão desse documento à plenária: primeiro, de que esse era um procedimento padrão em conferências de outras áreas; segundo, de que a maneira como o evento e esse regimento foram organizados comprometia o caráter participativo e democrático da III Conferência. A queixa era: uma vez que fora exigida a anuência ao regimento já no ato da inscrição na III Conferência e que ele não foi verdadeiramente discutido com a sociedade civil (posto que o grupo de trabalho do Conselho Municipal de Cultura não teve tempo suficiente para estudar a questão e, em grande medida, simplesmente aceitou algo que já lhe foi entre pronto), a única opção dada aos cidadãos curitibanos era a de participar em um jogo no qual eles não podiam definir as regras; e que essas regras, de 13 antemão, deixavam questões importantes de fora da discussão, pois certos movimentos culturais encontravam dificuldade de se enquadrar nos eixos – como o exemplo apresentado de uma ong de ciclistas que trabalha com a cultura de mobilidade urbana. Após um primeiro momento de impasse, a presidente da Conferência (que é uma gestora da Fundação Cultural) – decidiu deixar a divisão dos grupos para o inicio da tarde e se reunir, durante o horário de almoço, com representantes da Conferência Independente e com o restante da comissão organizadora da Conferência oficial (alguns conselheiros) para discutir as reivindicações. No inicio da tarde, reuniu-se novamente a plenária para informar sobre as decisões: a Fundação Cultural reconheceu que deveria ter divulgado as resoluções da II Conferência Municipal, (apesar de afirmar que esse documento não foi esquecido e que foi o norteador das ações do órgão); explicou o porquê da escolha dessa divisão por eixos, apresentadas por eles como mais ampla que a anterior; e decidiu-se que a proposta de submeter o regimento à votação da plenária deveria ser encaminhada como moção para próxima conferência. 10 O clima, nesse momento, era o de negociação: ambas as partes cederam em alguns pontos, e assumiuse que todos integravam um processo de construção da política da área e de redemocratização que estava ainda em curso, sendo importante aprender com as experiências e “tentar fazer melhor da próxima vez”. Houve falas de integrantes da conferência independente saudando a abertura para o diálogo demonstrado pela Fundação e posteriormente a ela incorporou no site oficial da III Conferência Municipal a citada carta de repúdio e também os documentos finais da conferência anterior. As pessoas se encaminharam então para seus respectivos eixo e tiveram essa tarde para discutir as questões de seus grupos e criar um documento que indicasse seis diretrizes da área. No domingo, às 9:30 da manhã, a plenária reuniu-se novamente, agora para aprovar ou não os documentos redigidos por cada eixo e votar as propostas de moções. A dinâmica dessa discussão por eixos e depois de votação dos documentos dos setores pela plenária merece uma descrição à parte, mas aqui me deterei apenas em um evento ocorrido por conta da votação de uma moção: justamente, a que estabelecia 10 Em entrevista que realizei posteriormente com um conselheiros que integrava a comissão organizadora do evento, obtive a informação de que essa divisão por eixos foi tomada da Unesco. Pesquisando documentos oficiais do MinC, vi que se trata de uma divisão proposta por aquela agência como áreas da “Economia Criativa”, e que foi adotada como base pela recém-criada Secretaria da Economia Criativa. Contudo, o quadro apresentado pela III Conferência e que transcrevi no Quadro I. possui especificidades que não coincidem nem com o construído pela Unesco, nem com o do MinC (MINC: 2011). 14 que o regimento interno deveria ser submetido à plenária antes do início da conferência. A votação das moções deu-se após a das diretrizes eleitas pelos seis eixos temáticos. Estávamos, portanto, no fim da conferência. Muita discussão e tensão já havia acontecido nesse domingo porque, na verdade, a tal da “metodologia” do encontro não estava claramente definida em lugar algum, e haviam vários entendimentos sobre quais os procedimentos a serem adotados – e, não raro, a disparidade desses entendimentos só se dava na hora de votar um ponto específico, após uma hora de discussão sobre o tema, e aí vinha a frase “não, mas não era isso que íamos votar”... Aprova-se ou rejeita-se em bloco as diretrizes de um eixo? São possíveis alterações? De que tipo? O cansaço e a inquietação das pessoas era grande: já estávamos há mais de quatro horas discutindo as diretrizes dos seis eixos, com direito a diversos mal entendidos e às consequentes falas querendo esclarecer “a questão”; e devemos lembrar que se tratava de 18 de dezembro, um domingo ensolarado de verão, praticamente véspera de natal. A impaciência era realmente grande mas, bem ou mal, o trabalho ia sendo cumprido, e as diretrizes e moções iam sendo aprovadas ou reformuladas. Contudo, a medida que o tempo transcorria, era evidente a vontade de muitos de que tudo aquilo simplesmente acabasse e as votações iam ficando cada vez mais pró-forma. Foi então, há muito ultrapassadas as 13:30 da tarde (horário previsto para o encerramento da conferência), que foi à votação a última moção do dia: sobre o regimento. Esse tema, que ocupara quase uma hora na abertura da conferência, tornou a demandar mais meia hora no encerramento. Pode parecer que meia hora não é muito para ouvir umas seis colocações mas, como os defensores eram os mesmos que haviam participado das mais conflituosas “quebras de braço” da plenária final, a discussão parecia uma continuação daquelas cinco horas de trabalho. A aversão por parte de vários integrantes da plenária em relação aos principais defensores dessa moção era evidente. E, como ela fora eleita por eles como ponto estratégico, suas defesas eram incisivas e, em alguns casos, tidas como agressivas. Foi então que, em meio à discussão técnica e política que se fazia sobre a necessidade de se submeter o regimento interno à plenária no início da conferência, que um participante da sociedade civil, conhecido integrante da classe artística da cidade e com fortes laços junto à Fundação Cultural de Curitiba, fez a seguinte colocação: “Ó, pessoal, é o seguinte. Eu sou super favorável a todo esses tipos de discussões, em qualquer conferência onde tem o poder a sociedade 15 civil, os artistas, os técnicos, as pessoas que são especializadas. Só que eu estou muito preocupada, e isso eu já falei, a questão das coisas de [?] acontece dentro de editais, de gente que entra na nossa praia pra fazer bagunça, para não... pra entrar nos editais, pra abocanhar pedaços, nacos que é da nossa competência. E se faz de área cultural e que não é. Viu, por favor, eu peço que a gente tome uma atenção com pessoas que se fazem culturais, gente que não devia estar... Devia estar como pessoas... Só que tá havendo uma invasão, tá, não só na área da cultura, em outras [áreas também], de pessoas que querem entrar dentro dos nacos, dos nichos, pra se aproveitar dos espaços para usar, ter dinheiro, ter verbas de políticas, inclusive que às vezes nem condiz com o que nós queríamos, para fazer discurso. Eu não quero mais isso. Eu acho que isso é um ponto muito sério. (Trascrição de registro de áudio. Arquivos da pesquisadora)11 Não fica claro, nessa fala, se “os artistas, os técnicos, as pessoas que são especializadas” são ou não parte da sociedade civil; se apenas esses especialistas têm direito a falar nesses encontros ou se outros grupos da sociedade também o têm. Mas, devido à trajetória profissional dessa pessoa e a todo o contexto de discussão colocado, ficou claro que se tratava de um a reação à presença de novos atores no cenário das políticas culturais: pessoas “que não são culturais” que querem “abocanhar nacos” que não lhes pertencem “pra fazer discurso”, e que “inclusive” não corresponde ao que “nós queríamos”. Quem são esses “nós”, e o que eles querem? Essa fala conseguiu sintetizar de uma maneira extremamente clara uma posição que dificilmente é explicitada dessa maneira em espaços públicos, mas que existe. Sem que fosse esse o ponto em questão no momento, a disputa em torno da definição de cultura fez-se presente de maneira extremamente dramática nos últimos momentos da conferência. Durante o evento, o tema da ampliação da noção não foi especialmente destacado: surgiu em algumas falas, que não necessariamente reverberavam nas discussões que se faziam a seguir. O interessante de destacar aqui é que essa fala veio não a partir de uma discussão teórica sobre a noção de cultura: não foi um questionamento direto à ampliação da noção de cultura por parte do MinC, de incluir as dimensões “econômica”, “cidadã” e “simbólica abrangente”. Mas foi, sim, uma resposta emocionada à atuação de pessoas que, nas suas práticas no campo cultural, enfatizavam a importância das duas últimas dimensões: a “cidadã” correspondendo à validade da atuação política – que facilmente podemos associar ao “fazer discurso” criticado na fala transcrita – e a “simbólica abrangente”, 11 Apesar de a plenária final ter sido gravada pelos organizadores do evento, de todas as colocações feitas então serem públicas e das pessoas de quem transcrevo as falas serem figuras públicas e terem espontaneamente se identificado quando de suas intervenções, optei por não identificar nomes, sexo e nem atividades específicas. 16 que insiste em que não apenas as linguagens artísticas eruditas são cultura. Quem eram, concretamente, essas pessoas a quem essa queixa se direcionava? Quem estava “fazendo discurso” na conferência? Pessoas que se apresentaram como defensores das culturas populares e cultura urbana – pessoas que “se fazem de culturais”. Essa justaposição que faço aqui da fala desse participante e de minhas observações não tem por objetivo construir um efeito de ironia ou acusação: apenas, o de explicitar alguns sentidos e significados que muitos presentes perceberam nessa intervenção. Obviamente, não faltaram respostas. Por coincidência, apesar das inscrições para intervenções já estarem finalizadas, havia mais duas pessoas inscritas para falar, e que eram defensoras tanto da moção quanto de um maior espaço para as culturas populares e de uma ampliação da noção de cultura. Transcrevo alguns trechos: Resposta 1: Com relação à questão da cultura eu queria dizer o seguinte. A posição [expressa] eu respeito, é uma posição individual, mas ela não se aplica à lei brasileira. Simplesmente essa visão do que é arte e do que é cultura ela era a visão da época do Getúlio. Exatamente hoje a cultura é a dimensão simbólica, do cidadão, não é o mundo da arte. Todo cidadão é cultural. Isso é cultura [aplausos]. É o povo, e não os artistas, a elite cultural. [o moderador começa a avisar que o tempo se esgotou] É a lei, isso é a lei pessoal. [já fora do microfone] Convenção da diversidade cultural, emenda 48. Constitucional, não é nem uma lei, é constitucional... (Trascrição de registro de áudio. Arquivos da pesquisadora) Resposta 2: … quanto a essa questão da cultura, [...]. Eu acho que é justamente isso que eu pelo menos defendo: que cada vez mais a cultura leve em conta sim a cultura do povo, e não só a arte como algo a ser levado para o povo. A cultura é muito mais que a arte, e eu espero que seja cada vez mais democratizado, quero acabar com isso. (Trascrição de registro de áudio. Arquivos da pesquisadora). Essas três falas aconteceram uma após a outra, em oito minutos. Seguiu-se imediatamente a votação da moção: 32 pessoas foram a favor e 37, contrárias. 12 O drama final ainda incluiu vencidos gritando “Deixem que outros definam por nós as regras do jogo. Aplauso! Eu perdi, mas eu não preciso perder calado”; outro cantando “Eee, oo, vida de gado...”, e outros dizendo pra parar “com isso” ou que “não precisa fazer isso”. Um conhecido, junto a quem estava sentada, falou: “As pessoas não votaram contra a moção; votaram contra esses caras”. Então, seguiu-se uma fala de pouco mais de dois minutos da presidente da conferência, encerrando-a. 12 O texto final da moção foi: “Necessidade de que as normas que definem a metodologia de funcionamento da Conferência Municipal de Cultura e as divisões temáticas sejam submetidas à apreciação e aprovação na plenária de abertura”. 17 Esse incidente final revela que as disputas pela definição de o que é cultura acontecem não apenas nos discursos e das discussões teóricas, mas na prática: inclusive, acontecem e são protagonizados por pessoas que podem estar alheias ao debate nacional sobre ampliação da noção de cultura que foi estimulado pela reestruturação do MinC. O caso da conferência analisada parece ser especialmente representativo porque, em Curitiba, apesar de haver grupos que defendem a cultura popular ou outras modalidades de cultura que passaram a ser reconhecidas como tal pelo MinC, esse debate não é de presente em muitos espaços e não parece ser percebido por uma maioria. A análise apresentada é apenas o ponta-pé inicial de uma pesquisa que pretende pensar a criação e redefinição de uma série de rótulos e categorias: o que é cultura? O que significa, no contexto em questão, ser representante do “Estado”, da “classe artística” ou da “cultura popular”? Como esses grupos se constituem enquanto tais, e o que significa o uso desses rótulos? Essas várias categorias não devem ser tomadas como óbvias: elas, assim como quaisquer outras, são produtos sociais, sendo portanto possível traçar-lhes uma história; apreender como elas são construídas nas práticas e nas ações dos sujeitos concretos (De Certeau: 2000; Herzfeld: 2001 e 2008; Sahlins: 2007 e 2008).13 O objetivo de empreender uma crítica dos rótulos ou idealizações acerca do Estado e da cultura não deve ser confundido com a pretensão ingênua de chegar a algum tipo de verdade absoluta através da simples negação daquelas: a construção de essencializações é intrínseca à vida social e elas são o próprio objeto de estudo antropológico pois, nos termos de Herzfeld, pesquisar a retórica social que as estabelece possibilita analisar os atores, as categorias e as estruturas sociais em ação (2008). Fontes: CMC. Site da III Conferência Municipal de Curitiba. Disponível em: http://cmc2011.fundacaoculturaldecuritiba.com.br Acessado em 10/12/11. 2011a. CMC. Carta de recepção aos participantes da III Conferência Municipal de Cultura. Material distribuído aos inscritos no evento no dia e local de abertura. 2011b. (mimeo). 13 Esta perspectiva demanda um distanciamento em relação a parte da bibliografia existente sobre políticas públicas para a cultura no Brasil. Em grande medida, essa bibliografia tem sido produzida sob o rótulo de “políticas culturais”, área interdisciplinar nova em franco crescimento e que vem ganhando força e visibilidade em nosso país desde a década de 1980 (Calabre: 2009). Uma primeira aproximação a esses trabalhos permite perceber alguns pontos de convergência e outros de divergência em relação à abordagem que me interessa adotar: de um lado, eles também insistem na necessidade de relativizar noções reificadas de Estado, mas, de outro, deixam de empreender uma crítica ao uso essencializado de certas categorias – em especial, relativas aos atores, tais como as noções de agentes estatais e sociedade civil. Além disso, é possível identificar um tom normativo em parte desses escritos, presente já na própria admissão de um conceito específico de política cultural. 18 CMC. Ata da III Conferência Municipal de Cultura. Disponível em: http://cmc2011.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/files/Ata_III_Conferencia_Municipal_de_Cultu ra_17_e_18.pdf Acessado em 25/04/12. 2011a. CMC. Carta de repúdio: “Por uma conferência municipal de cultura efetiva, participativa e democrática”. Disponível em: http://cmc2011.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/files/Por_uma_Confere%CC %82ncia_Municipal_de_Cultura_Efetiva,_Participativa_e_Democra%CC%81tica.pdf Acessado em 25/04/2012. 2012b. CNPC. “Conferência Nacional”. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/cnpc/conferencianacional/conferencia-nacional-2/ Acessado em 9/03/11. 2011a. CTBA. Lei Municipal nº 11.834, de 4 de julho de 2006 . Institui o Conselho Municipal de Cultura e oficializa a Conferência Muncipal de Cultura. 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